Os cristais do reino

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OS CRISTAIS DO REINO por

Bruna e eliana gagliardi


Os cristais do reino Era uma vez, em tempos imemoriáveis, um rei poderoso e sábio. Governava com justiça, respeito e bondade. Por isso era amado e estimado por todos. No dia em que nasceu seu filho realizou uma grande festa, compartilhando essa felicidade com seus súditos.

O

reino celebrou aquele nascimento por três dias e três noites. O povo cantava e dançava. A comida era farta. A alegria dominava os corações.


Passados os festejos, a vida voltou ao habitual - continuou alternando alegrias e tristezas. O filho do rei foi crescendo saudável, inteligente e curioso. Brincava nos jardins do palácio, recebia lições dos mais famosos mestres sobre os mais diversos conhecimentos, aprendia a cuidar das flores, a domar cavalos, a cantar e a tocar os mais diferentes instrumentos musicais. Aprendia, também, a lutar e armar estratégias de guerra, pois aqueles tempos exigiam isso. O menino honrava e reverenciava seus antepassados, seus entes protetores.

Assim transcorria sua formação.


Um

dia, o soberano chamou seu amado filho, agora um belo jovem, forte e corajoso. O rei chamou-o e disselhe que era chegado o momento de sair do castelo, conhecer o mundo e encontrar as três mais poderosas pedras, aquelas necessárias para bem governar – os cristais do reino.

O rei contou-lhe que uma das pedras, a cor-de-rosa, se colocada perto do coração, transformaria suas energias em amorosidade. A outra, azul anil, opaca e intensa, se colocada na testa, estimularia sua intuição. A terceira, amarela, translúcida, enfeitando seu cinturão, lhe promoveria a sabedoria.


O

soberano disse ao filho que a estrada lhe indicaria a direção. Ela o levaria ao encontro daquilo que lhe era proposto. Que o medo e a coragem iriam se alternar, confiança e desespero também, que forças de antigos reinos o favoreceriam.

Chegada

a primavera, partiu o jovem da casa de seu pai. Partiu caminhando, tendo o mundo diante de si. Seguiu por muitos dias, meses e anos. Conheceu a guerra, as disputas, os infortúnios de certas populações distantes e a tirania de muitos governantes. A estrada, no entanto, continuava muda a respeito dos cristais, nada lhe dizia sobre o caminho para conseguir as gemas da amorosidade, da intuição e da sabedoria.

Certo

dia em que descansava perto de uma fonte, já próximo à subida das montanhas altas e nevadas, adormeceu e sonhou.


Sonhou que via um eremita, homem que vivia afastado do mundo, em meditação. O jovem, no sonho, via o ermitão abrir os olhos e dizer: “eu sou Jeremias. Para que você possa governar ao seu povo, precisa encontrar o cristal cor de rosa que despertará a mais profunda amorosidade em sua alma. Ele encontra-se em uma abertura da Montanha Nevada, dentro de uma rocha escura, a mais pontiaguda de todas”.


Ao

acordar, o jovem seguiu seu sonho, pois se procedia assim naquele tempo. Encontrou a abertura no sopé da montanha, entrou pela senda, chegando ao centro de uma caverna.

Avistou

a rocha escura, a mais pontiaguda de todas. Olhou ao redor, procurando algo para quebrá-la - uma pedra grande, solta no chão. Pegou-a e arremessou-a inúmeras vezes na rocha, mas não conseguia parti-la.


Sentou-se

próximo a ela e, enquanto pensava no que fazer, cantou canções de sua terra. Canções que lhe traziam de volta seus tempos de criança, as lições de canto, alaúde e flauta.

Sua voz, plena de recordações, elevou-se clara e harmoniosa, espalhando-se pela cavidade, envolvendo suas paredes maciças. A rocha, a mais pontiaguda de todas, tocada pela música, tremulou, crispou-se e fendeu-se. Dentro dela, uma luz de um rosa sereno brilhou. Lá estava a pequena gema cristalina, escutando a música do filho do rei. Ele, finalizando seu canto, ajoelhou-se, pegou-a em suas mãos, fez um agradecimento aos seus entes protetores, os ancestrais de sua linhagem, e colocou-a sobre o peito.


Continuou

o jovem seu caminho. Sabia que a estrada lhe indicaria a nova direção. Ela o levaria ao encontro daquilo que almejava: os cristais do reino. Lembrava-se sempre do que dissera seu pai: medo e coragem iriam se alternar, confiança e desespero, também.

A

subida para as montanhas nevadas tornava-se cada vez mais estreita. Os pedregulhos faziam o caminho escorregadio, a umidade agarrava-se às pedras, levando o moço a escorregar e cair inúmeras vezes. Estava ele no chão, após uma queda, quando, sem mais, uma criatura medonha ocupou o seu caminho. Alta, terrivelmente disforme, asquerosa, vinha em sua direção com as grandes mãos estendidas. Como em seus sonhos de infância, ameaçava tocá-lo, talvez feri-lo.


O jovem pensou: “não conseguirei passar; será impossível ficar fora do alcance dessas mãos”. em seu desespero, cogitou em saltar para cima dela, em lutar com todas as suas forças, como lhe haviam ensinado os mestres guerreiros. Nisso, ocorreu-lhe um novo pensamento. Devia acolher aquela temida criatura, devia aceitá-la.

Parou

de agitar-se. Levantou-se, deu mais alguns passos, aproximando-se daquela que o impedia de continuar sua busca. Ainda que com medo, também lhe estendeu as mãos e amorosamente envolveu-a em um grande abraço, entregando-se ao seu poder.

Surpresa, a terrível figura recebeu o seu gesto. Olhou-o bem nos olhos. Ele sustentou aquele olhar. Ela aproximou seu rosto ao do jovem, beijou-lhe a face e afagou seus cabelos. Ele, amorosamente, aceitou aquela manifestação. Feito isso, a criatura transformou-se em uma tocha de fogo que, ao extinguir-se, deixou depositada no chão a segunda pedra, cristal de azul intenso, aquela que fazia vibrar a intuição em quem a portasse.


Reverenciou,

o jovem, seus entes protetores, os ancestrais de sua linhagem. Agradeceu-os e continuou seu caminho. Sabia que a estrada lhe indicaria a nova direção. Ela o levaria ao encontro daquilo que almejava. Lembrava-se sempre do que dissera seu pai: medo e coragem iriam se alternar, confiança e desespero, também.

Percorreu,

o filho do rei, florestas, planícies e, finalmente, deparou-se com uma pequena praia represada por altos rochedos. Um escarpado caminho levou-o para o alto, onde encontrou um deserto. Caminhou por muito tempo. Movia-se a custo. O sol escaldante trouxelhe a sede, imensa. Leito seco de rio. Arrastou-se o jovem pelo desfiladeiro por onde corriam o vento quente, cobras e lagartos. Já sem forças, o jovem invocava a proteção de seus ancestrais para suportar as privações. E eles o atenderam, pois era assim naquele tempo.


Ao

longe, pôde enxergar um vale entre as montanhas e, nele, um conjunto de casas que se confundiam com a areia.

Aproximou-se

dele um velho que saciou a sua sede e deu-lhe de comer. Limpou-lhe o corpo ferido e presenteouo com um cajado, para que pudesse seguir até o templo onde, na fraca luz do entardecer, os fiéis sustentavam tochas e os anciões cantavam, incensavam e oravam. Entraram.


Então,

das profundezas do tempo, quando naquele lugar as florestas eram fartas e as grutas úmidas, chegou uma voz que lhe indicava o altar onde estava depositada a gema cristalina, amarela e translúcida. A voz dizia que o povo daquela aldeia o esperava, desde há muito, para libertar a antiga sabedoria que um dia possuíra e, também, despertar, nele próprio, o saber adormecido. A voz dizia que, para isso, o moço deveria vencer a fera que guardava a pedra que ele tanto procurava.

O

jovem olhou para um animal estendido ao lado do altar, de corpo forte e musculoso, crinas ondulantes e narinas ofegantes. A criatura de olhos vermelhos e garras mortíferas também olhava em sua direção.


Em seu medo, recordou-se, então, o moço das palavras de seu mestre: “os animais reagem contra toda força que lhes impomos. Devem ser compreendidos e respeitados em sua natureza.” com esses dizeres em mente, dirigiu-se o moço até a fera e, de um salto, montou-a. ela grunhiu alto, uivou, pôs-se de pé e começou a cabecear e a sacudir o corpo, tentando jogar o intruso no chão. Conseguiu. Levantou-se o rapaz e novamente montou a fera.

Segurava-se

o jovem em seu lombo, com valentia. Ela empinava-se, coiceava, movia o corpo com força e violência, pois para isso era selvagem. Arremessava longe o rapaz que se levantava e a montava novamente. Ele fez isso muitas vezes, pois inúmeras foi ao chão. A cada vez que voltava para cima da fera, equilibrava-se melhor. A cada vez, junto aos ouvidos do animal, pronunciava, ele, palavras amorosas e afagava seus pelos. A cada vez, delicadamente, ele pressionava seu corpo contra o dela, imprimindo-lhe ritmo e direção.

Aos

poucos, acalmou-se a montaria e dirigiu-se para o altar, onde voltou a se estender mansamente pelo chão.


Saltou o moço em terra. Ajoelharam-se os fiéis. Então, todos puderam ouvir o burburinho das águas brotando em nascentes e o farfalhar das folhas, sons que há muito não escutavam. As fontes voltaram a jorrar, as árvores e as plantas a soltar brotos de vida, a brisa, a soprar de mansinho. Cânticos de louvor foram entoados. Com respeito, caminhou o filho do rei até a mesa sagrada e elevou o cristal amarelo, prendendo-o em seu cinturão. Assim feito, ajoelhou-se, fez um agradecimento aos seus entes protetores, ancestrais de sua linhagem.

Podia,

agora, o nosso herói, voltar para casa e ser o governante do seu reino. Levava consigo os cristais do reino.

Fim


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