Espaço da Palavra 4

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IVANISE: SAUDADE QUE O TEMPO NÃO DISSIPA Therezinha Rocha Poles

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53 ANOS SEM A PROSA SECA DE GRACILIANO Antonio Roberto Fava

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A EUTANÁSIA Dáurea de Oliveira Pascote

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MANHÃ DE OUTONO Catharina Fortunato de Barros

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RUA CARIOBA Ismênia Fonseca Faraone

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OS TRÊS PEDIDOS Americana Ferreira Koester

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TRANSITIVA Marina Becker

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O QUE ME CONTOU JORGE REHDER Judith Mac Knight Jones

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OS SEIS JUMENTOS Sidney de Souza Almeida

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MEMÓRIA FOTOGRÁFICA

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ESPAÇO LITERÁRIO: 25 ANOS DE HISTÓRIA Antonio Roberto Fava

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FOI-SE Andréa Moro Caricilli

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GERALDO PINHANELLI: A ALEGRIA QUE SE RENDEU... Antonio Roberto Fava

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O MAR Sílvio Santos Basso

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MÁRIO QUINTANA: NO IRREVERSÍVEL AZUL... Maria Lucia Nascimento Capozzi

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AZUL POEMA AZUL Maria Lucia Nascimento Capozzi

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VOCÊ NA MINHA BOCA Geraldo Trombin

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DOIS E DOIS SÃO CINCO Helena Archer

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LIBERDADE Nelly Rocha Galassi

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MEDOMEIO Magali Berggren Comelato

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O ANJO DA MORTE Marialuiza Ribeiro

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RELÓGIO DO SOL Regina Gouvêa Gonçalves

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NOSTALGIA Therezinha Rocha Poles

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RETA DO INFINITO Bêne Barichello

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TRANSCENDENDO Maria Helena Pires de Campos Ribeiro

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DESEJO João Rodella

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O NOIVADO DOS PÁSSAROS M.B.L. Della Torre

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SUTILEZAS Ana Maria Volpato Jensen

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EU Thaís Polo Worschech

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VOA MEU PENSAMENTO Marlene Alves dos Santos

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MARIA MALUF: AOS NOVENTA, UMA VIDA VOLTADA... Antonio Roberto Fava

EDITORIAL

UM SONHO DE 25 ANOS 25 anos. Quem diria! O Espaço Literário “Nelly Rocha Galassi” está completando duas décadas e meia. Nesse tempo todo, um quarto de século, quantas histórias de vida e de ficção foram escritas, não? Páginas que ficarão registradas em nossa memória e nos anais da história cultural da cidade. Histórias que renderam dezenas de livros e centenas e centenas de poesias, contos e crônicas. Esta aventura começou a ser escrita em 1981, quando um grupo de abnegadas senhoras sob a batuta da poetisa Nelly Rocha Galassi passou a se reunir sem outro propósito senão o de estudar a língua portuguesa, escrever e, - porque não? publicar o que produziam em termos literários. Nascia, assim, o Espaço Literário, cujo único compromisso era fazer literatura. Simplesmente isso. E que fosse de qualidade. Três anos depois, a instituição passou a denominar-se Grupo Espaço Literário e, catorze anos mais tarde, em 1998, foi rebatizado de Espaço Literário “Nelly Rocha Galassi”, em homenagem à sua fundadora, que morria na noite de 28 de abril daquele ano. Criou-se, assim, um legado institucional que tem se preservado graças ao esforço e à dedicação de um grupo de pessoas bem intencionadas que trabalha em prol do aprimoramento da literatura e, por conseqüência, da língua portuguesa. É curioso observar que durante muitos anos - não que houvesse qualquer cerceamento, claro - o grupo foi constituído apenas de mulheres. Um verdadeiro, com licença, “Clube do Bolinha”. Hoje o Espaço Literário “Nelly Rocha Galassi” registra uma lista de 50 sócios (homens e mulheres), entre os quais 25 ativos, nove correspondentes, cinco honorários e quatro beneméritos. É com textos desses autores que a gente aspira fazer uma revista de leitura e não apenas de entretenimento. O sonho que começou a ser acalentado há vinte e cinco anos foi virando realidade nesta duradoura história de amor à palavra. Hoje, amadurecido, superando toda a sorte de dificuldades, ousa esta publicação periódica para democratizar o acesso aos bens culturais - direito constitucional de todo cidadão - e divulgar nossa produção literária. Temos duas boas razões para comemorar a data: primeira, os 25 anos do Espaço Literário “Nelly Rocha Galassi”; segunda, o lançamento da revista Espaço da Palavra que agora chega ao seu quarto número.

EXPEDIENTE Ano I nº 4 abril/junho 2006 - PUBLICAÇÃO: Espaço Literário “Nelly Rocha Galassi”. CONSELHO EDITORIAL: Maria Benedicta Lima Della Torre, Antonio Roberto Fava, Maria Lucia Nascimento Capozzi, Heloísa Cecília Pavan, Magali Berggren Comelato e João Rodella. PROJETO GRÁFICO: Heloísa C. Pavan. PRODUÇÃO EDITORIAL: Maria Lucia Nascimento Capozzi. IMPRESSÃO E ACABAMENTO: Gráfica e Editora Adonis. JORNALISTA RESPONSÁVEL: Antonio Roberto Fava Registro Profissional nº 11.713-SP


HISTÓRIA

Relembrar Ivanise é reacender a luz intensa que ela irradiava. A companheira de verso e prosa partiu, mas permaneceu. Deixou saudades e poemas. Segundo emocionado relato de suas filhas Sílvia e Rosamaria, o pai de Ivanise, Mário Jácome, advogado, Juiz de Direito, “tinha a arte como hobby. Pintava, era poeta e escrevia crônicas para o jornal Diário de Pernambuco”. Sua mãe, Maria Luiza Wanderley, de ascendência holandesa - os Von Der Leyen, nascera no Engenho Camaragibe, na zona da mata sulpernambucana. A avó Julieta, “mulher intelectualizada, raridade àquela época, costumava reunir a família ao som de piano, violão e bandolim; gostavam de cantar e dançar”. Ivanise, privilegiada por ter nascido naquela tradicional família pernambucana, recebeu excelente formação escolar. Estudou no Colégio Sagrada Família, um dos mais conceituados do Recife, onde aprendeu francês por necessidade de comunicação com as freiras francesas, rígidas e disciplinadoras. Assim, educada entre pessoas cultas e intelectualizadas, era de se esperar que delas assimilasse o gosto pelas artes. Escolheu a literatura, cultivando e desen-volvendo os genes de poeta herdados do pai. Quando moça, apaixonou-se por um jovem químico de Americana que lá estava trabalhando: Antonio Pântano, o Toni, como carinhosamente ela o chamava. Casaram-se em 1946. Em 1949, mudaram-se para São Paulo e, no ano seguinte fixaram-se em Americana, com os filhos Sílvia e Antônio Alberto. Aqui nasceu sua caçula, Rosamaria. Ivanise adotou Americana como sua nova cidade; aqui criou seus filhos e fez muitas amizades. Sua inteligência e caráter exemplar, unidos ao seu temperamento alegre e expansivo, faziam dela uma pessoa especial. Com sua simpatia e carinho, não lhe foi difícil adaptar-se ao novo meio e conquistar a todos, como demonstra claramente em sua poesia “Nossa Rua”. Não é só pela beleza desta ruazinha verde, que saudando a primavera se enfeita e fica mais bela com um tapete de flores, fica todinha amarela. O que mais vale na rua é a gente que nela mora, Em cada casa um amigo, amigo pra toda hora. Ivanise amava Americana, porém jamais esqueceu seu lugar de origem, seus costumes, como também nunca perdeu o jeito alegre e peculiar do povo pernambucano. Quando possível, voltava ao Recife para matar saudades, rever amigos e parentes. Lá residia seu único irmão, Mário, a quem ela adorava. Saía sempre com lágrimas nos olhos, como nos conta em seu poema “Recife”, premiado no IV Concurso de Poesia de Piracicaba, em 1981, e publicado em antologia.

Toda vez que te deixo é sempre chorando e vou recordando, saudades levando. Recife da gente que fala cantando e canta sorrindo Nas suas cirandas e nos seus carnavais. Recife das lendas, dos velhos sobrados, que contam dos risos, dos sonhos, das dores, também dos amores das suas sinhás. Ela residia a apenas meia quadra da casa de Nelly, àquela época já conhecida como escritora. Esta proximidade propiciou o encontro de afinidades e, assim, atraída pelo poético clima literário que por lá reinava, passou a freqüentar nossas reuniões semanais. Lá, Ivanise nos transmitia em seus relatos, crônicas e poemas, a beleza e cultura do nordeste, aquela parte do Brasil que nos era desconhecida. Não só recitava e cantava, como também nos ensinava alguns passos de dança, tornando nossos encontros mais ricos e divertidos. Falava-nos muito da sua cidade e do seu povo, como no poema “Visite Recife”: Se alguém for à minha terra, por certo vai encontrar por todo lugar que andar, um pintor, um poeta, um cantor. Não é de se admirar, com todas as coisas lindas que por lá irá achar, se a um carnaval assiste vendo esse povo que pula. Tudo o que tem de amargura, afoga nessa loucura. É uma ilusão que passa com calor, suor, cachaça. Nesse clima alegre de arte e poesia, nós - Nelly, Ivanise e eu - expúnhamos nossos trabalhos literários e, sem prévia intenção, acabamos por dar início ao grupo que mais tarde se chamaria “Espaço Literário”. Em seus poemas, Ivanise revelava claramente que valorizava as pessoas, adorava a natureza, amava a vida. Vida que terminou cedo demais para quem tinha tanto a oferecer. Deixou conosco sua poesia, seu exemplo de riqueza interior e uma saudade imensa que o tempo ainda não conseguiu dissipar. O tempo, hora a hora, dia a dia, o novelo da vida desfia... Até que o tempo dá a última laçada. Não há mais fio, acabou-se a meada. Ivanise Wanderley Jácome Pântano, co-fundadora do Espaço Literário, nasceu no Recife, Pernambuco, em 12/06/1922. Faleceu em Americana, SP em 17/08/1988.


VIDA & OBRA

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Falo somente do que falo: com as mesmas vinte palavras girando ao redor do sol que as limpa do que não é faca.

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Até os vinte anos de idade ainda não havia sequer sentado numa carteira de uma sala de aula. Ler e escrever pareciam um sonho distante, inatingível. Isso não impediu, no entanto, que o garoto Graciliano Ramos se tornasse mais tarde um dos mais importantes escritores da geração de 30, do Modernismo Brasileiro. Neste mês de março faz 53 anos que Graciliano Ramos (1892-l953), autor de Vidas Secas, Angústia e São Bernardo, morreu. (Espera-se que órgãos governamentais e universidades promovam simpósios e seminários para comemorar a data e rediscutir a obra de Graciliano). Bem, apesar de um possível esquecimento, vale lembrar que no Brasil a obra de Graciliano continua sendo editada e rendendo alguns trabalhos acadêmicos. Para o professor Carlos Eduardo Berriel, do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, conhecedor profundo da obra e da vida do escritor alagoano, apesar de Graciliano ter sido estudado pelo melhor da crítica dos últimos 50 anos, pode-se considerar que grande parte de sua obra ainda está por ser avaliada de maneira mais abrangente e detalhada. “Com alguns aspectos existentes em seu estilo literário e as influências que outros escritores exerceram sobre Graciliano - como Dostoiévsky, Tolstói e Eça de Queiroz, por exemplo - é algo que merece ser avaliado com mais acuidade”, diz o professor. E aponta vigorosas características que marcam a obra do escritor: a aridez e a dureza, o realismo e a crítica social que permeiam todos os seus textos. O escritor alagoano tinha o hábito de trabalhar arduamente a linguagem do texto, sempre à procura do termo correto, da frase seca e sóbria. “Isso talvez ocorra pelo fato de Graciliano ter sido um homem do sertão, apesar de pertencer a

“Graciliano Ramos”, de João Cabral de Mello Neto

uma camada social privilegiada daquela região seca de Alagoas”, observa o professor. Isso, no entanto, não significa que, ao contrário do que se possa imaginar, Graciliano não era um homem triste, melancólico ou apático. “Era, isso sim, uma pessoa bastante reservada, que sempre ficava na defensiva. Talvez por não ter tido formação regular universitária. Era um autodidata”, conta Berriel.

O Mundo Coberto de Penas já estava rodando na gráfica quando o autor resolveu fazer uma pequena correção: na última hora mudou o título do livro para Vidas Secas, que se tornaria uma das obras mais aclamadas da literatura brasileira.

Obsessão A secura e a objetividade são uma particularidade marcante no texto de Graciliano, que tem muito a ver com certa concepção de escrita em que se pode encontrar referências muito fortes em Eça de Queiroz e Machado de Assis, por exemplo. O autor de Vidas Secas foi um escritor conhecido pelos cortes que fazia em seus textos. Seus originais eram sempre marcados por sinais de régua para riscar as palavras, frases e até mesmo períodos inteiros e, ao final, quando já havia escrito umas quatro laudas, formandose um amontoado de rabiscos, tirava uma página a lápis “mais ou menos definitiva”. Depois, não necessariamente no mesmo dia, reescrevia toda a página a caneta. “Era um processo tão obsessivo que não raro


VIDA & OBRA

reescrevia até mesmo as provas tipográficas”, revela Berriel. Para se ter uma idéia da compulsão de Graciliano, basta dizer que a primeira edição de O Mundo Coberto de Penas já estava rodando na gráfica quando o autor resolveu fazer uma pequena correção: na última hora mudou o título do livro para Vidas Secas, que se tornaria uma das obras mais aclamadas da literatura brasileira. O livro foi publicado na Polônia, Rússia, Argentina, Portugal e França. Apesar de Graciliano ser um escritor extremamente conhecido no Brasil, jamais viveu de literatura, “mas sim para a literatura”, conforme observa o professor Carlos Eduardo Berriel. É preciso ressaltar que Graciliano Ramos publicou Vidas Secas, em 1938, pela Livraria José Olympio Editora. Até 1970 haviam sido vendidos mais de 200 mil exemplares, incluindo cerca de 450 mil em traduções para onze línguas, segundo o pesquisador Laurence Hallewel, na obra Livro no Brasil (Queiroz e Editora da USP, 1985). Intrigas levam o escritor à prisão Graciliano Ramos foi um escritor que viveu mergulhado nos acontecimentos mais significativos da realidade brasileira da primeira metade do século 20. E os viveu intensamente, numa participação direta e abrangente. Como diretor de Instrução Pública, ainda em Alagoas, e, posteriormente, como Inspetor Federal de Ensino, no Rio de Janeiro, influiu decisivamente no campo da Educação. Começando como revisor, destacou-se como jornalista até chegar à função de redator e cronista. Travou conhecimento com os problemas da administração pública através do prefeito de Palmeira dos Índios. Essa atividade política absorveu grande parte de sua vida, e o Estado Novo marcou o início de sua maturidade, fazendo-o purgar no cárcere, impiedosamente, por um período de onze longos meses, como resultado das pressões e contrapressões exercidas por ideologias contrárias e dominantes naquela época. A prisão de Graciliano Ramos, segundo Berriel, foi provocada por intrigas perpetradas por funcionários públicos. O escritor era funcionário da Secretaria de Educação de Alagoas e, como tal, havia adotado procedimentos que desagradaram algumas pessoas “influentes” na época. Coisas insignificantes. Por exemplo: ser rigoroso com relação à distribuição da merenda escolar e de uniformes. E mais: permitir a matrícula de crianças pobres em escolas de bairros de gente rica. Logo depois da Intentona de 35, houve um movimento de caça às bruxas, de gente ávida por acertar contas com seus desafetos. Diziam que eram comunistas e acabavam presos. Graciliano Ramos foi preso depois de ser denunciado; mas só ingressaria no PCB em 1945. Mas toda essa polêmica foi deflagrada por gente que não tinha outro propósito senão o ocupar seu cargo nos escalões do governo alagoano.

TRECHO DE “VIDAS SECAS” “E doía-lhe a cabeça toda, parecia-lhe que tinha fogo por dentro, parecia-lhe que tinha nos miolos uma panela fervendo. Pobre de sinhá Vitória, inquieta e sossegando os meninos. Baleia vigiando, perto da trempe. Se não fossem eles... Agora Fabiano conseguia arranjar as idéias. O que o segurava era a família. Vivia preso como um novilho amarrado ao mourão, suportando ferro quente. Se não fosse isso, um soldado amarelo não lhe pisava o pé não. O que lhe amolecia o corpo era a lembrança da mulher e dos filhos. Sem aqueles cambões pesados, não envergaria o espinhaço não, sairia dali como onça e faria uma asneira. Carregaria a espingarda e daria um tiro de pé de pau no soldado amarelo. Não. O soldado amarelo era um infeliz que nem merecia um tabefe com as costas da mão. Mataria os donos dele. Entraria num bando de cangaceiros e faria estrago os homens que dirigiam o soldado amarelo. Não ficaria para semente. Era idéia que lhe fervia na cabeça. Mas havia a mulher, havia os meninos, havia a cachorrinha. Fabiano gritou, assustando o bêbedo, os tipos que abanavam o fogo, o carcereiro e a mulher que se queixava das pulgas. Tinha aqueles cambões pendurados ao pescoço. Deveria continuar a arrastálos? Sinhá Vitória dormia mal na cama de varas. Os meninos eram uns brutos, como o pai. Quando crescessem, guardariam as reses de um patrão invisível, seriam pisados, maltratados, machucados por um soldado amarelo”. OBRAS ROMANCES: Caetés (1933); São Bernardo (1934); Angústia (1936) e Vidas Secas (1938). CONTOS: A Terra dos Meninos Pelados (conto infanto-juvenil 1937) e Insônia (1947). MEMÓRIAS: Infância (1945); Memórias do Cárcere (1953); Viagem (1954); Linhas Tortas (crônicas 1962) e Viventes e costumes do Nordeste (1962). LITERATURA INFANTIL: Alexandre e Outros Heróis (1944); Dois Dedos (1945); Histórias Incompletas (1946). CARTAS: Cartas (correspondência íntima). Antonio Roberto Fava é jornalista e escritor.


CONTO

O inseto entrou voando pela janela escancarada e de imediato não se pôde ver bem o que era. Deu algumas voltas pela sala, bateu em uma das paredes e caiu estatelado no chão, com um barulho seco e surdo como fruta madura caída do pé: era um besouro do tamanho de uma azeitona das grandes. Que diferença da sua parenta, a barata... Se fosse, chegaria num farfalhar quase inaudível e pousaria como um broche em uma das paredes, prestes a voar novamente, ou, pior, numa guinada de noventa graus viria para nossa cabeça e ombro, entrando sorrateira gola abaixo e roçando com suas perninhas ásperas o nosso pescoço... Meu pavor pela barata é atávico, ancestral. Uma amiga costumava prognosticar que meu inferno, com certeza teria um diabinho chegando a cada meia hora e esvaziando um saco de baratas vivas sobre minha cabeça... Meus sentimentos quanto ao besouro não chegam a tanto. É um bichinho mais claro e sincero em suas intenções. Quando cai, geralmente de costas, já está fora de combate, pois dificilmente volta à posição normal e acaba morrendo ali mesmo. Voltando ao nosso besouro, depois que caiu, permaneceu agitando as patinhas como carro que ainda girasse as rodas depois de um acidente. Chutei-o para fora da sala e me esqueci do acontecido. No dia seguinte, chamou-me a atenção um montinho escuro como pó de café no canto do terraço. Cheguei mais perto e vi centenas de formigas que se banqueteavam com o corpo já quase inerte do moribundo, que apenas movia uma das pernas. Lembrei-me, então, de uma antiga empregada que costumava ameaçar o filho capeta após uma de suas travessuras, gritando: “Vou te matar mal-matado!” e que aos meus ouvidos de criança já soava como o cúmulo do sadismo: ir matando aos poucos, para fazer sofrer mais! Pois eu havia, também, “matado mal-matado” aquele inseto inofensivo quando o deixara morrer, quem sabe, em grande agonia. Penalizada, coloquei o salto do meu sapato sobre aquela bolinha dura e "enformigada" e girei o calcanhar... Dáurea Oliveira Pascote, assistente social, foi uma das primeiras integrantes do Espaço Literário.

Catharina Fortunato de Barros Dá-me muita paz e tranqüilidade admirar as águas serenas da represa, as garças elegantes que se inclinam para pescar pequenos peixes e apanhar insetos, viajando comodamente sobre as moitas de aguapés. As águas plácidas refletem, como um espelho, o casario que se descortina do lado de lá. Na manhã clara e calma, nenhuma planta se move: nuanças de tons verdes se misturam aos tons variados das flores vermelhas, amarelas e lilases, num arco-íris perfeito. O ar puro que se respira, o aroma das flores agrestes, a sinfonia de orquestra dos ninhos, tudo isso revigora a alma. Os bancos de cimento espalhados pelo jardim esperam, na certa, seus freqüentadores que ali se sentam para apreciar a natureza. Paturis em bando passam perfilados em vôos rasantes, procurando outras paragens. A grama verde, bem aparada, guarda ainda o orvalho fresco da manhã que os primeiros raios de sol vão dissipando. Nesta manhã de outono, diante de tanta beleza, nós nos despimos do orgulho, aproximando-nos de Deus, através do encanto que a paisagem oferece. Catharina Fortunato de Barros, professora, é autora do livro “Teias”.


POESIA

Ismênia Fonseca Faraone Rua Carioba, onde nasci onde cresci, onde brinquei onde me casei... onde deixei um pedacinho do meu coração. Rua Carioba, da minha infância cheia de encantos! Com palavras amigas quero perpetuar a tua lembrança. Rua Carioba, rua da ponte do rio Quilombo, onde o vento levou a minha sombrinha ao fundo do rio. Quando lá passo ainda pergunto: Onde estará a minha sombrinha? No fundo do rio? Ou no fundo do meu eu? Rua Carioba, rua sem fim quanta saudade flutua e dança dentro de mim! Ismênia Fonseca Faraone, poetisa, é sócia honorária do Espaço Literário “Nelly Rocha Galassi”.

Marina Becker Só me quero transitiva fluindo fora de foco no largo longe das dragas além dos arquipélagos. Só tenho a certeza da dúvida e o leve compromisso da transparência Toda a ciência que busco se resume na consciência da pouquidão na percepção das cinzas e na capacidade de rir num rio de raivas. Marina Becker, professora, advogada, escritora e membro da Academia Campinense de Letras e do Espaço Literário “Nelly Rocha Galassi”.

Americana Ferreira Koester É noite, o silêncio é total. O céu riscado pela prata de uma Só estrela encantou-me. Fiquei extasiada e pela estrela, enamorada. Que vontade de recebê-la Em minhas mãos trêmulas de ansiedade Para poder me pratear também. Sorrindo, a fitei, e três pedidos fiz. Queria a humildade, A sabedoria de Salomão E muito amor no coração. Em seguida um clarão atingiu-me, Envolvendo-me com seus fios prateados Enfeitou-me e prateou-me. Extasiada e incrédula Um grito fugiu-me do peito: “Senhor, triunfei”! Deitei-me. Depois de sonhos tão lindos, acordei. O sol sonolento aparecia, Jorrando seus raios mornos Em meu rosto cansado. Três pedidos fiz: Sempre sonhar acordada, Deliciar-me do nada, Ser humana e feliz. Americana Ferreira Koester, falecida em 28 de novembro de 2004, autora de “Veredas Poéticas”, foi professora de Inglês e Francês e integrante do Espaço Literário “Nelly Rocha Galassi” de 1991 a 2004.


CRÔNICA

Judith Mac Knight Jones

Walther Faé e Judith Jones

O clamor nostálgico e emotivo do artigo* de Walter Faé sobre o casarão do Zanaga desencadeou em mim uma onda de saudade. Saudades dos idos de 1946, quando Americana era bem pequena. Jorge Rehder e sua mulher, D. Hilda, moravam em uma pequena casa afastada da rua, no final da Avenida Dr. Antonio Lobo. Naquele local, muitos anos antes, seu Jorge tinha construído uma refinaria de álcool muito sofisticada, com aparelhamento vindo da Alemanha, assim como a armação de ferro do grande galpão. Sua matéria-prima era nossa pinga caipira e o seu técnico o senhor Marco Milani. Chegaram a ser os únicos fabricantes de álcool absoluto no Estado. Isso em 1914. Pouco depois, construiu a majestosa ponte sobre o rio Atibaia, no caminho para Cosmópolis, na Fazenda Santa Lúcia. Depois da construção da barragem do Salto Grande, ela ficou sob as águas. Certa vez, numa viagem pela Europa, viu, num concurso de arquitetura em Frankfurt, a planta de uma casa que encantou sua imaginação. Quando soube que a casa dos seus sonhos tinha sido premiada, mandou buscar a planta e construiu sua casa um pouco acima de onde tinha construído a fábrica de álcool, do outro lado do córrego do parque, onde mais tarde se cruzariam as Ruas Rui Barbosa e Vieira Bueno. Jorge Rehder, nascido em 1880, na fazenda de seus pais, em Santa Bárbara, onde hoje é a grande usina do mesmo nome, veio para a Vila Americana

ainda nos primeiros anos do século, quando sua família se estabeleceu nos altos da Rua 12 de Novembro. Nossas famílias eram amigas há duas ou três gerações. A deles, vinda da Alemanha, e a nossa, dos Estados Unidos, passaram as mesmas dificuldades de comunicação e adaptação. Chegaram a se unir por laços de matrimônio. Saudade. Saudade dos dias em que, na velhice, seu Jorge subia o morro da Rua 30 de Julho até o sítio e passava horas gostosas em nossa casa, contando dos anos em que lutou, como outros tantos aqui da cidade, para a emancipação do município; dos anos em que foi prefeito, o primeiro. Sua bela casa serviu para muito encontro político, para muita recepção, em que altos interesses do município eram tratados entre as amenidades do encontro social. Jorge Rehder era “pra-frente”. Imaginoso. Versátil. Grande apreciador da música, tinha especial preferência por Beethoven. Certa vez, ele sentou-se ao piano e perguntou: “Sabe como Giesiking tocou a 'Patética'? Foi assim!” E aquelas mãos abrutalhadas, de dedos gordos e grandes, repetiam o tocar do grande mestre. O Arquivo Histórico do Município de Americana não chegou a tempo de preservar a casa onde morou o primeiro prefeito da cidade e mais tarde outro prefeito de grata lembrança, Antônio Zanaga. Não chegou a tempo de salvar o Parque Ideal, nem a lindíssima avenida de bambus que nos ligava a Carioba. Saudade. Saudade de coisas que merecem ser lembradas. Disso, também, é feito o nosso patriotismo. *Publicado em “O Liberal” de 14/03/1990, sob o título “Casarão do Zanaga, adeus”, do escritor e jornalista Walther José De Faé.

Rua 30 de Julho, década de 30

Judith Mac Knight Jones, autora de “Soldado, Descansa” e “Folhas Esparsas”, pedagoga e pesquisadora, é uma das primeiras integrantes do Espaço Literário “Nelly Rocha Galassi”.


CRÔNICA

Sidney de Souza Almeida

Num pequeno sítio, em Santa Bárbara d´Oeste, depois transformado em loteamento, cheguei a manter 40 cabeças de vacas leiteiras. De um vizinho havia comprado cinco jumentos: um macho e duas fêmeas com crias ainda pequenas. Para nada me serviam, mas acalmava-me vê-las no pasto, tranqüilos, no meio das vacas. Nem sei por que os havia comprado. Creio que o preço muito baixo influiu: três mil cruzeiros. O vizinho deve ter vendido porque, talvez, quisesse se ver livre deles, principalmente o macho: quando empacava, não havia cristão que o tirasse do lugar. Transformava-se num poste! Em pouco tempo os pequenos cresceram e fiquei com cinco adultos, três machos e duas fêmeas. Numa reunião radiológica em Uberaba, conversando com um colega fazendeiro, falou-me de seu desejo de adquirir alguns jumentos, da raça Pega de origem espanhola. Tentou comprar alguns, mas o preço estava muito alto na região. Havia poucos para uma grande procura. O animal estava em voga e chegaram a lhe pedir 40.000 cruzeiros por um macho e 30.000 por uma fêmea. Quase caí de costas: pensar que havia comprado cinco por 3.000 cruzeiros, oito meses antes. Ao lê contar que possuía cinco jumentos, quis saber se eram da marca Pega. “Sei lá, não entendo disso”! “Está bem! Meu filho, administrador de minha fazenda, é veterinário e, na próxima semana, ele irá até seu sítio para vê-los. Se forem mesmo Pega, fico com um casal e vendo as outras três cabeças para vocês, por um bom preço”. Não lhe falei sobre a importância que havia pagado pelos cinco. Perguntou-me se conseguisse vender três deles por 20.000 cruzeiros cada, se eu cederia o casal restante a ele por 10.000. Negócio da China para ele, mas, principalmente, para mim. Trato fechado, na hora! Voltei a Uberaba no domingo e, já na segunda-feira, seu filho apareceu em Americana. Vistoriando os animais, confirmou serem da raça Pega. Autorizou-me a mandar os cinco animais para a fazenda de seu pai. Não foi fácil: tive que retirar em Campinas, atestados de sanidade para os jumentos e contratar um caminhão para levá-los até Uberaba. Gastei cerca de 2.000 cruzeiros com essas despesas. Uma ninharia, se comparada aos 70.000 que iria receber. Para se ter uma noção desse valor, basta dizer que seria suficiente para comprar um Ford Landau zero

quilômetro. Para lá seguiram os cinco jumentos e para cá fiquei eu a espera dos 70.000. O tempo foi passando: um mês, dois, três meses e o colega, nada! Ficava sem jeito de telefonar. Deve estar procurando um melhor negócio para os jumentos, pensava. Quem sabe 25.000 ou 30.000 cada um. Afinal não lhe haviam pedido 40.000? Depois de uma aflitiva espera de quatro meses, não agüentei mais e telefonei: “Tudo bem? Queria saber sobre os jumentos”. “Sabe, o negócio não está fácil. O preço caiu muito e os jumentos não são lá essas coisas”... “Mas, seu filho disse que eram puros”! “É, ele se enganou um pouco. Estou fazendo força e creio que logo vou vendê-los”. Três meses depois, nova ligação e nada. Continuava “fazendo força para vender”. Por duas ou três vezes, quando o encontrava em congressos médicos, ouvia sempre a mesma ladainha: “Os jumentos estão lá na fazenda e ainda não consegui vendê-los”. Mais três ou quatro telefonemas e continuava “fazendo força”. Deve estar fazendo força até hoje, passados quinze anos, pois nunca mais me deu notícias. Perdi os 3.000 cruzeiros da compra, os 2.000 do transporte e atestados e nem sei mais quanto com incansáveis e inúteis telefonemas interurbanos. Desisti! Mesmo porque a essas alturas, ou os cinco jumentos deveriam estar mortos ou transformados numa “jumentada”, que não teria nem como recambiá-las, por total falta de pasto em nossa região. Dei a essa crônica o título de “OS SEIS JUMENTOS”, mas só falei de cinco. Perceberam? O sexto? Aqui estou, seu criado, às suas ordens. Sidney de Souza Almeida, falecido em 29/12/2001, foi médico, presidente do Espaço Literário “Nelly Rocha Galassi” e autor dos livros “Radiografias do meu Universo” e “Se eu não fosse de circo...”




25 ANOS

Therezinha: estimulando a literatura

Ditinha: sonho acalentado

Maria Lucia: perseguindo a utopia

Antonio Roberto Fava A história do Espaço Literário, quem diria, está completando quase nove mil e duzentos dias de existência. Um tempo convertido em sonhos e palavras impressas nas páginas do livro e do jornal. Quantas frases escritas ao longo desse tempo todo, não? Quantas poesias, contos e crônicas foram imaginados e paridos por seus tutores que, inconformados diante de situações que afligem o mundo, partiram para a escrita como forma de manifestar seu descontentamento. Que não cheguemos a tal ponto, que víssemos impressas nas páginas da Espaço da Palavra poemas e crônicas falando de amores mal (ou bem) sucedidos, mal (ou bem) começados, de conflitos internos, paixões (in) confessáveis apenas nas páginas da revista. Quantos e quantos nomes passaram por este Espaço, que deixaram suas marcas indeléveis por meio de umas poucas linhas de um poema, de um conto ou de uma crônica. Um desses nomes, entre tantos que fizeram a história do Espaço Literário, é o da poetisa e contista Nelly Rocha Galassi, que empresta seu nome a essa instituição cultural desde 1998. Quando o Espaço Literário “Nelly Rocha Galassi” comemora seu jubileu de prata, a revista Espaço da Palavra, criada há pouco mais de sete meses, foi ouvir alguns de seus escritores e profissionais liberais da cidade que representam (ou representaram) esse canal de conhecimentos intelectuais desse o início. De autores mais jovens como Andréa Moro Caricili, até pessoas com maior experiência na bagagem, como a professora e poetisa Maria Benedita Della Torre, é que fazem pulsar a literatura da cidade. É preciso lembrar que as primeiras reuniões do Espaço eram realizadas na casa de dona Nelly, na Rua Sete de Setembro. A princípio, pouco mais de meia dúzia de mulheres. Entre elas Nelinha Fortunato, Ivanise Pântano, Judith Jones,

Clementina Malangolini dos Anjos, Dáurea Pascote, Therezinha Poles e, naturalmente, a dona da casa, Nelly. No início, um verdadeiro “clube da Luluzinha”. Apenas mulheres no grupo. Mulheres de idéias. De talento. Para dona Ditinha, como é conhecida no meio literário, “ontem o nosso Espaço representava apenas o sonho acalentado por três escritoras: Nelly, Ivanise e Therezinha; hoje a realidade é traduzida em dezenas de sócios múltiplos e diversos textos em prosa ou verso, publicados em jornais, livros, antologias e revistas”. São 25 anos de produção literária do grupo formado por pessoas heterogêneas, “porém irmanadas no mesmo ideal e cultivo da língua pátria”, observa a poetisa. Pobreza intelectual - Com o tempo outras mulheres, com talento para a escrita, entraram para o grupo. Como Helena Archer, Maria Lúcia Capozzi, Maria Luiza Pazzinato e Sônia Barros, entre tantas outras. Só mais tarde é que os homens contistas, poetas e cronistas ainda que timidamente, decidiram também entrar para o Espaço Literário, a essa altura rebatizado em homenagem à dona Nelly. André Augusto de Oliveira, juiz da Primeira Vara Criminal de Americana, amigo e conterrâneo de dona Ditinha (ambos de Casa Branca, terra da jabuticaba), diz que “Americana é uma cidade também das letras e da cultura. É o que se observa da leitura agradável da condensada revista Espaço da Palavra. A revista, trimestral, tem o mérito de reunir seletos escritores, contistas, poetas e romancistas...” O doutor André diz ainda que “em cada texto se revela a sensibilidade, o saudosismo e o idealismo dos cooperadores que em sua maioria, há mais de duas décadas, pinçam com arte e devaneio suas obras de leitura”. Para ele é enriquecedor conhecer a cidade por meio de seus moradores e, a esses, pelos contos e 'causos'. “Como é prazeroso compartilhar das


25 ANOS

Regina: café e poesia

Andréa: com destino ao sol

poesias que se estribam na experiência da poetisa e no inconformismo da inquieta pensadora”, diz o magistrado, referindo-se a dona Ditinha. Para a historiadora e professora Fanny Olivieri, há 25 anos o Espaço Literário vem “abraçando uma tarefa extremamente difícil: escrever crônicas, poesias e outros gêneros literários que suscitam debates e argumentações enriquecedoras de reflexões e apontando caminhos para diminuir o fosso existente entre o mundo que se tem e o tipo de mundo que se quer, afirmando a responsabilidade do indivíduo em construir e reconhecer a importância de ler e escrever”. Fanny observa que Americana deve orgulhar-se por contar com um seleto grupo de escritores, cronistas e poetas que, “superando tantos obstáculos, tentam tirar do ostracismo a pobreza intelectual em que vivemos, proporcionando a oportunidade de conhecer o grupo, os livros editados e agora com a revista Espaço da Palavra, grata revelação, com pluralidade de visões literárias, um belo veículo de apropriação do conhecimento”. Driblando a saudade - Para o cronista João Rodella, que também escreve contos, João Rodella, “pertencer ao Espaço Literário Nelly Rocha Galassi ensejou-me convivência literária e fraterna. Acima de tudo um aprendizado constante”. Assíduo freqüentador das páginas de O Liberal, João diz ainda que pode observar, em cada texto seu, “meu aperfeiçoamento como cronista. Foi, é e será sempre muito prazeroso participar desse grupo. E trabalhar em cada evento que realizar, com garra e empenho”. Um dia, a então presidente do Espaço, Maria Lúcia Capozzi, movida pelo senso da multiplicação do que é positivo, idealizou a criação de um grupo literário paralelo que pudesse abrigar os tantos jovens, dotados de talento para a literatura, interessados em participar daquele convívio. Com o apoio irrestrito do grupo, foi criado o Espaço Literário Jovem, sob a batuta da arquiteta Regina Gouvêa Gonçalves, no início auxiliada por Ana Maria Jensen. Um dos nomes que se destacaram, entre outros, é o da estudante Andréa Moro Caricilli, que cursa o 3º ano de Biologia na Unicamp. Dona de um estilo peculiar de fazer literatura, conta que à época “éramos poucos, verdes, instigados pelo

João: convivência literária

mundo. Desejávamos muito e o melhor que se podia ou não obter. Guiados pela utopia e pelo frescor das flores, íamos engatinhando com destino ao sol, embora houvesse idealizadores do nosso espaço, tivemos uma grande mestra que, de fato, segurou nossas mãos e validou a liberdade”. Nos encontros semanais, na casa de Regina, a garotada trocava seus escritos, que eram, depois, comentados e analisados. “Cada vez mais, ler o que escrevíamos, se tornava um momento singular para compartilhar experiências sem necessariamente nos comprometermos a explorar os fatos ásperos e corriqueiros”, explica. O grupo acabou. E não pôde ser recuperado tal como o fora. “Hoje somos produto do que escrevemos, discutimos, desenhamos, ouvimos, lemos e fizemos no grupo somado ao que a vida diferentemente nos trouxe. É preciso driblar a saudade viciada e relembrar o que aprendemos sobre a dinamicidade de tudo que nos cerca”. Therezinha Rocha Poles, por sua vez, tem uma definição muito simples para o Espaço Literário, cujo principal propósito “é estimular seus participantes, proporcionando-lhes meios de aprimorar seus conhecimentos e expressar sentimentos e emoções por meio da literatura. Essas expressões literárias, positivas e benéficas, tanto para quem escreve como para seu público alvo, o leitor, tornam o grupo importante para a cultura em geral e elevam, sobremaneira, o nome de Americana. Foi criado com esse objetivo e tem se mantido assim durante esses 25 anos”. Chá com gosto de prosa - A arquiteta Regina Gouvêa Gonçalves sintetiza a criação do Espaço Literário como “uma viagem no tempo, sentindo o aroma do café adoçado com poesia e palavras, na sala de estar da casa de Nelly. Os sonhos voltam aos sentidos e brincam na memória, incrustados na pele. Discutíamos tudo, instigados a refletir, filosofar, poetizar e escrever”, diz. Observa ainda que havia, à época, uma cumplicidade ímpar entre jovens e adultos, inspirados por Walter Faé e dona Nelly. “Como é possível algo não estribado em valores materiais durar tanto?”. A pergunta é da escritora e editora Maria Lucia Nascimento Capozzi a propósito dos 25 anos do Espaço Literário Nelly Rocha Galassi. Mais que uma pergunta, uma reflexão, para quem “a realidade de nosso


25 ANOS

Fanny: tarefa difícil

Dr. André: letras e cultura

contexto sócio-político, em princípio, tem sido, com raras exceções, desfavorável às expressões culturais. No entanto, contrariando a 'lógica' vigente, o grupo reconheceu e cultiva a importância de uma expressão literária local”. De acordo com Maria Lucia, a convivência de idéias e produções heterogêneas, na paridade de intenções, tem sido a fonte possível de diálogo. “Se o homem não é nada senão aquilo em que acredita, eu sou, o Espaço Literário é, nós somos. Porque entendemos a arte, a literatura, a cultura, enfim, a criatura cocriadora tal uma crença nos valores humanos”. Por fim, Maria Lúcia promete: “Continuaremos perseguindo a utopia da palavra, desconsiderando a heresia pós-moderna de algo durar mais que um instante”. Helena Archer, por sua vez, começou a freqüentar o Espaço Literário há exatos dezoito anos. No início, fazia parte de um grupo de apenas oito escritoras. Entre elas Therezinha Poles, Judith Mac Knight, Dáurea Pascote e dona Nelly, “que sempre foi o grande divisor de águas”, ressalta. Helena diz que aquele foi um período de muita convivência, “que ia muito além das reuniões; de muita fraternidade durante aquele chá ingênuo com gosto de prosa descompromissada... e que hoje se transformou no Espaço Literário Nelly Rocha Galassi”.

Helena: divisor de águas

Para a escritora, a importância de um grupo literário numa cidade é simplesmente inquestionável. “Ao contrário do que apregoam, as pessoas adoram poesia. Afinal, fomos dotados de sensibilidade, e não alimentar essa faceta humana é aumentar, como vem sendo observado, a irracionalidade”.

“São 25 anos de produção literária do grupo formado por pessoas heterogêneas, porém irmanadas no mesmo ideal e cultivo da língua pátria”.

“Continuaremos perseguindo a utopia da palavra, desconsiderando a heresia pós-moderna de algo durar mais que um instante”. Antonio Roberto Fava é jornalista e escritor.


CONTO

Andréa Moro Caricilli

Meu mundo se foi, partiu-se ao meio, trincou suas lentes cor-de-rosa. Perdido em guerra sem adversário real, buscando apoio em paredes de vidro. Hoje percebi que minhas arestas jamais foram aparadas; descobri que o fluido viscoso que se esvai dos meus olhos continua sendo sangue detestável, tristemente desamparado. E mesmo tendo conhecimento do quanto a lamentação sobre o conhecimento fecha-me as portas para o conhecimento almejado, continuo desconhecendo a superação pelo conforto seguro da lágrima. Sim! Não obstante o conhecimento do desconhecimento esteja patente, suspiro um “ai” desconsolado e continuo minha trajetória circular, pateticamente imutável. A história repete-se milhares de vezes, travestida na moda da época ou puramente clássica, pérolas e salto alto o fato continua o mesmo, basta apenas modificar a data do calendário. Tempo vai vai vai vai vai vai vai vai vai, mas volta sempre, com a certeza lunar. Não posso gritar o que cá me remexe as entranhas, porque seria demasiado egoísmo derramar lágrimas tantas vezes pela mesma razão e esperar consolo morno, espontâneo, sereno e delicado em cada desenrolar de tristeza. Convenço-me de que o motivo é o mesmo, que continuo fazendo do meu sentir satélite do sentimento alheio, da visão alheia, do mundo particular alheio, traçando eu mesma o consolo de que necessito, que outrora recebi. Mas... Disparate! O eu dentro de mim não aceita o que o eu superficial diz. O eu da embalagem disserta sobre os problemas da humanidade, constrói sonhos e faz a tônica do ser individual perante a sociedade, porém o eu mais interior diz com toda a sua voz sanguínea, com suas pupilas diabolicamente contraídas, que é uma fraude tudo que é exposto; chora com eloqüência e traz arritmia ao meu respirar ao demonstrar, sem lógica alguma, a distinção entre os fatos e as razões da minha angústia, outrora imaginada como inata. Nada mais importa. Pensamentos caem em cascata ilógica e os expresso em palavras cuja compreensão é inexistente por planejamento prévio. Apóio-me em sua representação, no seu valor simbólico, meu caro. Perder sua presença física de rotina precede a perda de sua forma concatenada de pensar o mundo. Perder seu toque diário, mais do que suas palavras, é perder meu suporte de sobrevivência em curto prazo. Ouço seu nome

e sua imagem retumba com mais intensidade mas é apenas um nome qualquer, de uma pessoa qualquer, não você! Vejo o perfil de alguém que se assemelha a você, ou não se assemelha de maneira alguma, e, num instante, lembro-me de um dia ao seu lado. Sinto seu perfume a todo instante, mesmo quando a realidade diz não haver aroma algum. Meu amor por você é antes de tudo sensorial. Não, não é! Juro que não é! Juro que meu amor por você é puro, dirigido para o intelecto, em sincronia com sua arte mais intrínseca! Ah... Mas não posso... Sinto suas palavras, seu instinto, sua segurança, seu amparo e todas as abstrações a partir da sinestesia. Não! Isso é muito bruto. O tato, a visão ou coisa que o valha não se sobrepõe à delicadeza indescritível que sua existência representa ao meu amor. Você é todo feito de nuvens, brisa e carvalho e lua e azul e transparência e mescla de todas as preciosidades que sinto e não consigo sequer esboçar em palavras ou símbolos. Minha solitude encerra-se em completa obscuridade. Não compreendo. Amo só. Desequilibro-me. Perco-me. Escrevo compulsivamente porque preciso, mas não pressuponho razão alguma, objetivo algum além daquele que é mais essencial. Turbilhão. Fecho meus olhos para tatear meus próprios lábios. Quero-o de volta. Com sua partida, despediu-se também parte de mim, parte essa que jamais de verdade me pertenceu. Com o simbolismo de sua figura, foi-se também a promessa, a doçura do amanhã que recompensaria meu ofício penoso de existir. Perdeu-se a quentura do meu peito, perdeuse a vermelhidão dos meus lábios, perdeu-se meu pensamento moldado à sua ideologia. Resta apenas seu perfume na jaqueta que eu vestia naquele dia de frio. Resta-me sua fotografia cujo olhar já era um prenúncio do que hoje presencio presencio a ausência. Resta-me a lembrança mais serena do seu sorriso visto por mim de perfil pela primeira vez. Aquele sorriso belo... Fecho meus olhos. Sinto meus lábios. Seus lábios. Quando você abriu o peito e me deixou entrar. Andréa Moro Caricilli, estudante de Biologia na Unicamp, integra o "Espaço Literário Jovem" desde a sua criação.


ENTREVISTA

Antonio Roberto Fava “O segredo da existência humana consiste não somente em viver, mas ainda em encontrar um motivo de viver” (Dostoievski, 1821-1881)

Seus olhos, agora baços e melancólicos, revelam um homem triste, sofrido. Diferente, bem diferente daquele que conheci há mais de três décadas, responsável pelos maiores índices de audiência de uma emissora de rádio: a Rádio Clube de Americana. Geraldo Pinhanelli, hoje com 76 anos, foi também o responsável pelo estrondoso sucesso de eventos históricos realizados no extinto Cine Cacique, da Rua Fernando Camargo, hoje casa de bingo, cujo público ocupava as 600 poltronas da casa. O homem que lotava ônibus para que Americana participasse do "Cidade contra Cidade", programa apresentado por Silvio Santos; o homem que promovia campanhas para arrecadar alimentos e presentes para os mais pobres por ocasião do Natal, e tantos outros eventos beneficentes. Foi responsável pelos primeiros festivais de música popular brasileira no Cine Cacique. Mas há uma razão. Uma forte razão para que Pinhanelli, que sempre primou pela alegria, dele e dos outros, tenha se transformado num homem irreme-diavelmente magoado e deprimido: há cinco anos perdia a filha Fátima Cristina, aos 47 anos (casada com o empresário de rádio Edilberto de Paula Ribeiro), que lhe deu dois netos Thiago (25 anos) e Luciana (26). Durante a nossa conversa percebo que Pinhanelli quer falar sobre a filha. Mas creio que isso possa deixá-lo talvez ainda mais triste. “Foi um anjo que passou pela nossa vida”, diz, com os olhos molhados, voz grave, embargada pela emoção. Quando lhe pergunto o que gostaria de ser se não fosse radialista, me responde: “O meu maior sonho foi Deus ter posto um microfone em minha mão. Não tenho, hoje, qualquer outra aspiração. Depois que minha filha se foi, o mundo se diluiu, virou pó. Não sou ninguém dentro da emissora depois que a perdi”. A vida do radialista virou rotina, mas uma rotina sem o brilho e a efervescência que antes a vida no rádio lhe proporcionava. Chega em casa por volta das seis da tarde, conversa com a esposa Sônia Terezinha Fava Pinhanelli. Depois, assiste televisão. Uma rotina só quebrada pela visita, quase constante, dos filhos e netos. Pinhanelli, antes um homem elétrico, ligeiro e risonho, agora chora. Fico comovido e esforço-me para também não me envolver com o seu drama. Impossível. “Talvez um dia eu vá encontrar-me com ela no céu. Tenho certeza absoluta de que vai me encontrar com um microfone para me dar”, e outra vez as lágrimas inundam seus

olhos cansados, tristes e sem brilho. E na pequena sala que me recebe na Rádio Notícia, paredes forradas por imagens da Virgem Maria, há uma foto enorme e bonita de Fátima. Voz bonita - muda Mudo o rumo da conversa. Quero então saber como se envolveu com o rádio. Diz que tudo começou há mais de cinqüenta anos quando foi para a Rádio Jauense. Depois para uma emissora de Brotas. A irmã de Pinhanelli percebia que tinha uma voz bonita, meio grave, solene. “Aí meu pai, proprietário do único hotel na cidade de Dourado, me deu o serviço de alto-falante e, com ele, eu ficava andando pelas ruas. Acabei fazendo um teste na rádio de Jaú e fui aprovado. Assinei contrato e até hoje não consegui me livrar do feitiço que é o rádio, que é mais que uma simples paixão”, diz. Depois de Brotas, mudou-se para Americana, quando então começou a atuar na hoje extinta Rádio Clube. “Sinto falta, no rádio que se faz hoje, do que fazíamos no rádio da minha época, que eram as campanhas beneficentes de Natal, os shows e os programas de auditório. Tudo muda e o rádio também”, diz. E outra vez percebo que o velho homem de rádio está ficando triste, olhos marejados. Aí Geraldo Pinhanelli pega um lenço e aperta-o contra os olhos. Peço então que me conte algo diferente, alegre, digamos. E ele se recorda de algo que nunca vai esquecer, garante. Havia na cidade um padre chamado Flávio, responsável pela benção às rosas que seriam lançadas de um avião sobre a cidade. O padre pediu que Geraldo o levasse também. Ocorre que, curiosamente, ele, o padre, nunca havia voado de avião. “Bem, o padre benzeu as rosas e fomos para o aparelho, pilotado pelo Salvação, levando os sacos com as pétalas, e eu atrás do padre. Minutos depois do avião ter decolado, adivinhe, o padre não conseguiu impedir que expelisse no meu rosto tudo o que comera antes. Como eu não tinha com que me limpar recorri às rosas, esfregando-as na cara. Imagine a cena”. Esse é Geraldo Pinhanelli, radialista, animador de auditório e escritor que, apesar da dor, sempre terá uma boa história ou um fato pitoresco para contar. Esse é o Geraldo Pinhanelli que durante um certo tempo fez parte da minha história de vida. São dele os livros de poesia Sonhos de alguém que gostaria de ser poeta, Oiiiiiii, Geraldinho e Ternura. Antonio Roberto Fava é jornalista e escritor.


CONTO

Venho aqui todas as tardes, na hora da maré alta, na esperança de que o mar a devolva para mim. Não vou mentir que é uma grande tolice. Laura morreu há anos e, no entanto, sinto que aquela tempestade ainda está em mim. É como se eu a alimentasse e dela vivesse... E dela morresse todos os dias, nesta passividade mórbida que desconhecia em mim mesmo. Olho para o mar e sei que ele me olha, e esse olhar me tem feito compreender muitas coisas. A cumplicidade que se estabelece, como um pacto, entre ele e os que dele vivem; nós, a invadir suas entranhas, arrancando seus frutos e depois vendendo-os pelo melhor preço; e ele, como a reclamar sua parte, levando, às vezes, o que nos há de mais caro. Há tempos não escrevo para ninguém. Se antes, quando minha vida era um júbilo, o isolamento era para mim como um êxtase e o melhor dos prazeres, como o prazer de quem se regala nos braços da amada, hoje é uma necessidade premente, talvez uma fuga de tudo o que seja exterior ou o medo de encarar o novo e abandonar o passado. Como na canção do velho pescador, o mar deita suas raízes de solidão em quem dele ousa tirar intimidade, e do silêncio para sempre será escravo. Torna-se um fio atávico a dominar inúmeras gerações. É estranho, mas escrevo isso não para os outros, nem para a posteridade; apenas por ser a única maneira que tenho de encarar meus fantasmas. Eles me rondam, me cercam, e eu deixo que me invadam, sem querer saber se é bom ou ruim. Cada coisa sua está em seu lugar, Laura, dispostos como no último dia, intocáveis e divinos, venerados a cada vez que os olho. São deuses que evoco por imaginá-la neles: uma predisposição para a irracionalidade e o desvario. As sandálias gastas e esfarrapadas sob o tabuleiro do xadrez... Brincava que as enterraria quando morressem. O chapéu de palha que usava para andar pela praia, pendurado no espaldar da cadeira em que se sentava para mirar, pela vidraça, o trabalho dos pescadores. Vejo o espadarte na parede, empalhado, e me pergunto: por que o mar a teria levado? Você o amava tanto e fazia do barco a sua casa, e a minha se ressentia da sua ausência. O peixe era o troféu do qual se orgulhava, por tê-lo pescado numa tarde de tormenta. Era o símbolo da sua força, da sua determinação, e dali da parede ele a impulsionava para uma vida mais intensa. O mar vingara-se de um filho que lhe fora arrancado, ou talvez, também, a amasse de tal forma que a quis só para si. Não levo estas considerações a sério; na verdade, vivo buscando motivos e explicações. É tão difícil aceitar as

tragédias e assimilá-las como conseqüências da vida, e apesar do tempo que passou, desses anos estúpidos incinerados na fogueira da inutilidade, ainda me esforço para não me afundar de vez nessas areias; contudo, meu ânimo é falho, e se disso denota uma inexorável propensão para a covardia, então reconheço que o meu caráter também é falho. Não lamento o que deixamos de fazer; apenas sinto que poderíamos ter feito melhor. Vivemos o que podíamos ter vivido, e isso me alegra e torna suave a minha solidão. Sei que me condenaria por ter desistido; você me inventou como homem, e por homem entendo o fato de ter compreendido o amor e ter amado, como os mais nobres espíritos amam. Em troca, eu lhe dei o melhor de mim. Tudo parecia ser tão harmônico! Os dias vinham assim perfeitos, como as horas que passam sem alarde e trazem uma repetição monótona de todas as coisas: a preparação das linhas e dos arpões, a limpeza do barco, o esticar das velas, a guarnição das iscas, o murmúrio da aldeia nas vozes dos pescadores apressados, no ranger das portas que se abriam e das janelas, no barulho estridente das panelas e dos talheres a se misturar com o choro das crianças e o ladrar dos cães, e as luzes das ruas a iluminar o mar antes do sol. Hoje, essa rotina morna e regular me é insuportável, e o sentido de tudo vai ganhando a mediocridade das coisas triviais, enquanto que o tempo vai apagar da minha memória os pequenos detalhes e, no desespero de retê-los, seu rosto se torna, de pouco em pouco, uma estátua de mármore encravada na minha imensa incapacidade de conciliação para comigo mesmo. Sílvio Santos Basso, sócio-correspondente do Espaço Literário “Nelly Rocha Galassi”, é contista premiado e participante de várias coletâneas.


ENSAIO

Maria Lucia Nascimento Capozzi

tividade surpreendente e enganadora simplicidade,

No irreversível azul, o encontro com a cor do invisível Desde há muito tempo e intuitiva procura, encontrei esse velho-menino: Mário de Miranda Quintana. E, sempre que tenho nas mãos quaisquer de suas páginas, invariavelmente me ocorre uma duplicidade de sentimentos: num deles habita o poeta; no outro, o ser humano. Os dois eu observo, leio o que se apresenta aos olhos e, por instinto irreprimível, busco ler o que não se alcança com o sentido da visão, mas com outros, aqueles mais sutis. Nascido prematuramente no rigor do inverno de 1906, em 30 de julho, em Alegrete, RS, Mario foi o quarto filho de Celso de Oliveira Quintana, farmacêutico, e de D. Virgínia de Miranda Quintana. A frágil criança de pele fina e muito branca, as veias azuladas à mostra, era chamada pelos três irmãos - Celso, Marieta e Miltom, seus protetores, de “menino azul”. Com sete anos, aprendeu a ler tendo como cartilha o "Correio do Povo", em flagrante premonição de seu futuro entre livros e jornais. Seus pais também lhe ensinaram rudimentos de francês, preparando o tradutor de tantas obras importantes, como "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust. O poeta autodidata viria a dar imensa colaboração para que as traduções de clássicos franceses e ingleses fossem lidas pelos brasileiros: Papini, Fred Marsyat, Morgan, Rosamond Lehman, Lin Yutang, Voltaire, Virginia Woolf, Maupassant e Balzac, entre outros.Ser multifacetado,

revelando-se e escondendo-se através de sua cria-

Quintana viveu e criou o “estilo do inesperado”, nos fazendo crer que sua vida e sua obra se transfundem e permanecem amalgamadas. De fato, razão e emoção trasvasam sobre a obra deste poeta universal, desvelando-nos os caminhos para apanhar o inapreensível, os rumos da imanência das cores encerradas no invisível, o encontro definitivo com o azul, matéria-prima constante em sua poesia experimentalista. Se, a princípio, enveredou por caminhos menos convencionais da poesia formal, como o haicai e o epigrama, depois transgrediu normas, metro e rima, criando o seu próprio estilo, sem depender de nenhum. Seus poemas encerram características básicas da modernidade: humor, concisão e criticidade, sempre em linguagem coloquial. E assim, Mario Quintana sobreviveu aos modernistas que execravam o soneto; aos passadistas reacionários aos versos livres; aos concretistas que odiavam o lirismo; aos românticos escandalizados com a crueza de sua poesia e aos críticos que rotulavam seu estilo de provinciano. A eles, alertou em seu poemeto “Cuidado”: A poesia não se entrega a quem a define.

Afirmava e vivia o que dissera: só a poesia possui as coisas vivas. O resto é necropsia.

O homem Mario Quintana conseguiu quase uma unanimidade em torno de seu nome, em processo gradual que culminou na última década de sua vida. Todos amavam sua permanente cordialidade, a acessibilidade aos jornalistas e leitores, a impecável inteligência, a face lúdica, a mente lúcida, e algumas ingenuidades que conviviam com a agudeza de sua sagacidade e vitalidade. Afirmava e vivia o que dissera: só a poesia possui as coisas vivas. O resto é necropsia. Sempre festejado pelo público, lembrado pela crítica, reverenciado por gente como Manuel Bandeira, Drummond, Vinícius de Morais, Cecília Meireles e João Cabral de Melo Neto, Quintana cultivou admiradores. Embora desafiasse as instituições, os costumes sociais e até mesmo o comportamento habitual das pessoas, ele sempre se valeu de sua criação textual para, através do riso, suprimir uma postura acadêmica perante os acontecimentos. Não conseguiu vestir o fardão da Academia Brasileira de Letras. Mas nem mesmo ter perdido a terceira indicação


ENSAIO

para a entidade roubou-lhe o habitual humor e o sarcasmo. Então, compôs o célebre “Poeminha do Contra”: Todos esses que aí estão/atravancando meu caminho,/eles passarão.../e eu, passarinho. Em 1980, essa mesma Academia que vetara a sua entrada para o círculo dos imortais lhe outorgou o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto de sua obra. Sua reconhecida produção literária e seu trabalho de jornalista não lhe valeram uma aposentadoria suficiente para viver com dignidade. O poeta boêmio, que nunca se casou, mas amou muitas mulheres, viveu grande parte de sua vida modestamente instalado em um quarto de hotel. O Majestic ou Grande Hotel, no centro velho de Porto Alegre, foi tombado e transformado em centro cultural, batizado de Casa de Cultura Mario Quintana em sua homenagem. Quando indagado sobre a sua vida, apenas respondia: Sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão.

Quadros são janelas abertas para o outro mundo deste mundo. O poeta Quintana caracterizou seu universo poético por um profundo humanismo. Na forma e no conteúdo, uma “difícil simplicidade” impregnada de ternura, ironia, pureza, misticidade, melancolia, intimismo, humor e nostalgia da infância. Sua criação literária - multifacetada como ele mesmo - alterna características ora românticas, ora realistas, outras surrealistas e, outras ainda, modernistas. Mas, sempre simples e desmistificada, é como as águas que não precisam ser turvadas para o rio parecer profundo. Poeta urbano e universal, Quintana de tudo extraiu matéria-prima poética. Poemizou as ruelas da cidade, as janelas do mundo, vidraças e labirintos, o vento e as árvores, o cristal e o azul irreversível, cirandas e agonias, estrelas e passarinhos, a vida e a morte, tudo que a vista alcança e a alma adivinha na inquietação do dia ou no silêncio da noite. Seu habitat natural, o mundo tangível e o universo impalpável são o cenário de seus versos reveladores da sintonia interior com o impressionismo: as meias-tintas, as sinestesias, aliterações e assonâncias, cores e musicalidade. Disse o próprio Quintana: Quadros são janelas abertas para o outro mundo deste mundo. Seus poemas também. Transcendem os estreitos limites da realidade, alcançam um mundo onírico e sensações incorpóreas, amparando-se na superfície, na exteriorização das coisas, na evidência dos gestos resgatados através da linguagem poética, com seu poder transfigurador. Quando declarou que uma vida não basta apenas ser vivida: também precisa ser sonhada, o poeta resumiu sua obra, uma transposição do real para o virtual, do ilusório para o consciente. De posse de seus instrumentos - a palavra, o verso, a língua - o poeta, com grande eficiência, sintetizou imagens, usou recursos da poesia moderna, para “refletir todas as opções de percepção de mundo em qualquer momento da vida do homem”.

Despreocupado em relação à crítica, Mário Quintana fazia poesia por sentir absoluta necessidade e afirmava, sempre irreverente: “Poeta não é profissão. É um estado espírito, ou de coma”.

“O poeta da simplicidade complexa.”

O ser imortal Já perto do final de sua longa existência, era visto caminhando nas redondezas da Casa de Cultura Mário Quintana. Continuava a produzir a poesia que o consagrara na literatura brasileira como uma voz singular que, assim como sua amada Cecília Meireles, jamais se filiara a nenhuma corrente literária. Seu estilo, à prova de rótulos - poderia ser chamado de prosa lírica - foi o palco onde o poeta expôs suas verdades, as coisas simples da vida filtradas por um lirismo ímpar e uma fina ironia, a postura crítica amenizada por uma ternura explícita. O brilho de sua inteligência, explicitada nas suas delicadas e argutas lições poéticas, coexistindo com uma envolvente honestidade conceitual, perpetuará o nome de Mario Quintana como “o poeta da simplicidade complexa”. A poesia, para ele, possuía um sentido vital, quase sagrado. A brevidade de seus textos claros de profunda transcendência poética, desvela a complexidade de quem buscou inten-samente o sentimento de compreensão da natureza humana, fazendo da poesia uma tentativa de apaziguamento com a ausência de respostas aos seres humanos comprometidos e intrigados com a existência. Buscando desvendar a duplicidade de sentimentos que me assalta ao ler Quintana, repenso o velho-menino mergulhado no azul eterno, feliz pelo encontro com a cor do invisível. Tento, mais uma vez, justificar a cumplicidade estabelecida entre a sua poética e o meu sentimento, recuperar o homem tramado de nervos, vísceras e neurônios sob a pele, o poeta feito da mais fina sensibilidade, percepção e pureza literária. Para, enfim, conjugar o verbo “quintana”, os dois. O escritor morreu em 5 de maio de 1994, aos 88 anos. Poucos souberam que o “poetinha” - título ganho de Vinícius de Morais - tinha partido rumo ao azul. Quatro dias antes, o país, perplexo, assistira em tempo real a um outro vôo, este trágico: Ayrton Senna, o ídolo das manhãs de domingo esgotara seu breve tempo entre nós. E, assim, poucas lágrimas sobraram para nosso verdadeiro poeta... Nem era preciso, o povo é arauto da voz de Deus: um poeta nunca morre! Ele mesmo nos preparara, poeticamente, para sua partida, assim: “Amigos, não consultem os relógios quando um dia me for de vossas vidas... Porque o tempo é uma invenção da morte: não o conhece a vida - a verdadeira - em que basta um Maria Lucia Nascimento Capozzi, editora, é autora de “Espelho de Mim”, “Álbum de Retratos” e “A Literatura Possível”.


POESIA

Geraldo Trombin

Para Mario Quintana

Maria Lucia Nascimento Capozzi Acima dessas frágeis manhãs que te guardam há o irreversível azul que persiste em teus olhos atravessando os dias e as noites em que habitas: há revoadas de anjos sonâmbulos azulinos pássaros voando contra o azul sons d’água pura a escorrer da bilha inundando de azul o arco do algibe - o mais límpido cristal de tuas fontes à luz vertente da estrela Aldebarã! Além dessas silenciosas sombras que te envolvem há um caminho florido em azul para trilhares enquanto o vento dorme azulecido nos telhados das casas e ruazinhas tranqüilas da cidade azulejadas dessas coisas tão mínimas da vida que tu cantavas e luarizavas nas canções sob a luz dos lampiões nas esquinas da poesia onde encontravas moedinhas perdidas pelo chão naquela mesma luz que há de estar a enluarar agora as altas janelas de teus sonhos! Através dessas sombras solitárias de tuas pálpebras a palavra azul esplende nos diamantes que tuas mãos poliam e teus olhos pintavam e teus sonhos sonhavam nas enchentes de luz: o fino hastil do poema soprado pelo vento que se escondia no horizonte azulíneo do Tempo em que Cecília te chegava de um pátio de infância os olhos profundos e as mãos eternamente amadas a dizer-te que nem tudo está perdido: que tu nunca morres e nem te esqueces das palavras!

Maria Lucia Nascimento Capozzi, acadêmica de Letras, foi presidente do Espaço Literário “Nelly Rocha Galassi” por três biênios.

VIAPALAVRA

Você na minha boca Deslumbrante horizonte, Relva edênica, De Vênus, o monte. Abaixo da linha incisiva cesariana, A eminência triangular do seu abdômen Perspicaz, agita minha raça ariana, Meus incivilizados desejos de homem. Você na minha boca Toque mágico clitoridiano, Sensibilidade nada pouca, Gozo arrebatador e insano. Seiva natural que desce/umedece, Sem papas na língua, me intumesce. Seu preparo ventri-aromático/degustativo Alaga o céu da boca minha de atrativo. Você na minha boca Delirante recostar dos lábios Todos em movimentos sábios Perdendo o sentido, dando a louca! Carne trêmula, blefaro-espasmo, o que fazer? Extravagante torpor orgástico, Estresse diluído em suco gástrico, Por que não dizer... “MUITO PRAZER!” Geraldo Trombin, redator, diretor de criação e membro do Espaço Literário Nelly Rocha Galassi.


CONTO

Helena Archer

Se você está pensando em mudar de vida, virar a mesa, ir embora, vá enquanto é tempo, enquanto existe o “Paraonde”. Não vá cair no Drummoniano labirinto do: “E agora, José?...” Nada de dar tempo ao tempo enquanto busca o impecavelmente. Até porque o tempo nunca foi amigo da perfeição. Aliás, o tempo nunca foi amigo de ninguém; veja o que ele faz com as pessoas: antes de destruí-las, transfiguralhes o rosto. Peça licença a si mesmo e saia de cena, vá cantar em outra freguesia. Pensando bem, acho que você tem razão, se não há mais espaço para a poesia... Segundo os experts, a moda agora é rir dos entrecortes nas frases... A mídia acha por bem censurar, em nome, talvez, da TFP (não é nada disso que você está pensando heim?) ou de outros “valores” antagônicos a esses, mas tão ridículos quanto... Não pense duas vezes antes de voltar para a sua Pasárgada. Mas vá logo, antes que, lá, a Monarquia tenha ido para o brejo e seu amigo-rei agora não passe de um jogador de futebol... Ora, dinheiro... Logo você vir me falar em dinheiro? Dinheiro foi inventado pelos homens, essa raça abjeta que a cada milênio mais e mais se deteriora... O que a gente precisa é de autenticidade, é de vínculos com o planeta. Seja lá o que for a Terra, não vale compará-la a Mônaco ou a Serra Leoa. Infelizmente, preconceitos fazem parte da vida: mas será possível que pegamos o metrô das seis, também, na Estação Via-Láctea?... O Sistema é Barra... Que Tijuca nada... É Barra mesmo... Enquanto isso, segundo afirmam meus “filósofos” preferidos: Weinberg, Hawking, Greene, Deus continua, sim, jogando dados com o universo. Embora essa frase de Einstein tenha negado a afirmação, continuamos sem desvendar o “Nonsense” da Quântica. E não adianta confinar o elétron numa espécie de caixa sólida e aproximar as paredes, encarcerá-lo, porque, enlouquecidamente claustrofóbico, desesperado, ele se jogará com velocidade maior ainda, descrevendo imprevisíveis trajetórias sem obedecer a padrões; mandá-lo ao paredão (argh) é perda de tempo, ele se realinhará e, assim como as estrelas e os espelhos, continuará a nos ludibriar. Sim! Serve de modelito para Brasília (claro... o ministro da justiça na passeata da paz e as branas... tudo a ver...) Tudo bem, mas o que fazer com tanta “coerência”? POR FAVOR, A FÍSICA CLÁSSICA! Afinal, já se passaram 100 anos da relatividade geral e resolver um conflito continua sempre a levar a outro conflito. Ninguém sabe de nada! Já sei: nascemos, vivemos e morremos para sermos ridicularizados. Ora, é o que parece se é preciso permitir que a natureza resolva o que faz ou não sentido. Mas também não dá para esquecer que o acaso é uma circunstância da vida. Aliás, pensando bem, isso pra mim é seqüestro! Por acaso você sabe quando e para aonde vai? Pois é... Olha aí! Está configurado: é

seqüestro! Quem diria, heim! A Terra um imenso Cativeiro! Nem me arrisco a um logotipo, eu heim... Sem frases e nem charges... ...O quê? Como posso ter essas idéias? Enquanto aguardo, é claro! O que fazem os seqüestrados convencionais quando não estão amordaçados? Bocejam, claro... Mas sem outra prioridade maior que os mortifiquem, enquanto não “vão”, pensam. Certo? E levam uma vantagem: ao menos nesse caso sabem de onde vieram. Mas, mudando de assunto, vai ser melhor você pegar o trem das onze, sim... Se continuar por aqui, poderá ser a próxima vítima... Ora de quê? Leia esse Catálogo e faça um X. Ainda bem que você não tem sorte no amor... Helena Archer, é autora de “Digitais Cósmicas”.

25 anos de prosa e poesia

Para anunciar nesta revista: contatos@espacoliterario.com


POESIA

passos alados laços trocados trocados passos alados laços carinho ninho laço desfeito refeito defeito ou perfeito? carinho caminho ninho vôo de passarinho. Heloisa C. Pavan, publicitária e sócia benemérita do Espaço Literário.

No meio do dia apenas o medo do meio do meio dos olhos acordados em pleno meio-dia no começo da tarde no fim da noite o meio do sol entre as pontas das estrelas brancas de pavor com medo do meio da rua do tempo cheio de bolhas nos pés parado no meio do relógio com medo dos ponteiros traiçoeiros como a solidão solidão do meio sem fim, nem princípio. Magali Berggren Comelato, empresária, autora de “Poemas Desenhos”, foi vice-presidente do Espaço Literário “Nelly Rocha Galassi”.

Prendi, por alguns instantes, em minhas mãos, a fragilidade de um pássaro. E porque ele era dócil, acomodado na fraqueza, senti ímpetos de retê-lo. A ti, também, o mundo se abre em rasgões de festa. Não quero aprisionar-te por mais tempo. Meus dedos possuem a espera de um milhão de horas. Que não se percam cativos n mansidão de uma ave. Quando dei liberdade ao passarinho, ele partiu, ágil projetando-se contra a tarde de ouro. És apenas um contorno. Abrirei minhas mãos, para que no vôo te definas. As árvores foram feitas de raízes. Mas os pássaros... Esses possuem asas. Asas... e não ramos. Nelly Rocha Galassi,co-fundadora do Espaço Literário, falecida em 28 de abril de 1998.

Sozinho, na lâmina do mundo, ele caminha desde o início. Nem homem, nem menino, Porque é penumbra e, na mudez de uns gritos, choro. Despedida. Também são mãos saciando fome. Garras agudas. O bote certeiro. Dentes caninos, na carne da presa. Sozinho, no lombo do mundo, ele segue desde o começo. Mas deixa rastro pelos caminhos. Rastro de fogo sem calor e lume. Feito da mais nua noite sem astros. Quando o espaço era útero tenro ainda isento das eras. Desluzido de luas, de cometas e de estrelas. Sozinho, no espanto do mundo, ele habita desde o princípio. Marialuiza Ribeiro, professora, artista plástica, autora de “Vida e Verso”, foi membro atuante do Espaço Literário.


POESIA

Colho da vida uma fração de tempo e nela me situo. Há sinfonias antigas embalando as tardes e risos juvenis enfeitando os caminhos. Um viver cotidiano repleto de sonhos e uma paz de algodão que se desfia lenta na calma transparente do meu dia.

No tiquetaquear dos raios solares a transpor o elemento vivo, raios transparentes inundam sombras que determinam o tempo... É dia! Vultos da manhã passam pela rua impura, a tilintar paixões. Alma tão nua das tardes do Sol ardente, tímida feiticeira, que passa acenando sonhos, objeto de uma alquimia transcendente. Sombra mansa a revelar emoções em sua dualidade diurna... Figura da noite tão santa, vestida de manto, canta dormires elevando paixões todo dia. Simbolizando a reflexão que domina as trevas. Ave de Atena, alma amiga e amante, vulto do dia, ser da noite. Em sonho ou verso renasce em encantos, em canto, em manto, em dia. Bom dia! Regina Gouvêa Gonçalves, arquiteta, autora de “Atara: Impressões de um Andarilho”.

Materializo o tempo na lembrança retendo dentro d´alma esse passado que recompõe-se em pensamento vivo. No presente que corre pro infinito ressuscito meus mortos para um encontro na dimensão etérea do impossível. Formulo indagação a cada instante e as respostas se perdem no silêncio do vazio que envolve esse mistério. Perco-me nesse espaço, e assim, a esmo busco no tempo um pouco de mim mesma. Therezinha Rocha Poles, autora de “Túnel do Tempo” e “Quatro Estações”, é sócia-fundadora do Espaço Literário.

Vou ser luar. Brilhar, mesmo atrás das nuvens densas e descuidadas... Vou lançar meu brilho nas calçadas onde meu sentido se espreguiça trazendo à tona um brejeiro gesto de malícia. Não tenho metas, nem sei aonde esse caminho me leva. Não importa. Fecho a porta. O caminho foi percorrido. Cheguei, afinal, na reta do infinito! Bêne Barichelo, cantora popular e lírica, professora de violão, poeta, é integrante do Espaço Literário “Nelly Rocha Galassi” desde 1990.


POESIA

Quero ser a terra fértil Que abraça e germina a semente, Produz a Vida. Quero ser o ar puro Que penetra nas criaturas, Oxigena e purifica seu sangue, sua alma. Quero ser o fogo, A chama ardente, que faz A comida, esquenta o feijão, assa o pão, Que funde o ferro, faz a casa, O bronze, que vira arte, Que aquece o menino no berço, Que acalenta. Quero ser a pedra preciosa, Que vem das entranhas, E conta histórias estranhas... Minérios de aquém, mistérios de além Beleza, silêncio... Espírito. Maria Helena Pires de Campos Ribeiro, é professora e escritora.

Muitos de nós gostaríamos que a vida fosse longa, e que tivesse o festivo e forte grito da araponga, nos galhos do jatobazeiro da mata fechada; que fosse uma caminhada repleta de saúde, e que no final não terminasse em ataúde, e fosse sempre e eternamente feliz jornada. Muitos de nós gostaríamos que somente breves fossem apenas as dores, que de tão leves, seriam sempre fáceis de sofrer e suportar; porém na vida, às vezes, as coisas se invertem, e os fados impiedosos tudo subvertem, a vida tornam curta e as dores vivem a alongar.

Abriu-se a porta da larga morada e a noiva, triunfal, ali entrou. Ele a recebeu com todo carinho, para ela lindas canções cantou. Com voz suave e sons melodiosos, de pronto conquistou a sua amada, que a ele se aconchegou, toda ansiosa batendo as asas, feliz e emocionada. Juntos foram voando para o ninho, para realizar seu sonho com ardor, piando e cantando, os passarinhos, a felicidade encontraram no amor. Não precisaram ricos presentes, nem festas e galas para comemorar, bastou um canto amoroso e ardente para a noiva, em suas asas, se aninhar. Tudo singelo, natural e belo, como só os pássaros sabem casar, da larga gaiola fizeram um castelo, iniciando, ali, um novo doce lar! M.B.L. Della Torre, professora, escritora, atual presidente do Espaço Literário “Nelly Rocha Galassi”, é autora de “O Homem e a Sociedade”, “Cadernos de Estágio”, “Janela Aberta” e “No Ritmo do Tempo”.

Muito de nós gostaríamos - mas pequeno é o nosso querer, porque temos em nós tão diminuto poder, diante do querer e do poder do destino; e mesmo lutando contra intempéries e contra a sorte, por fim, embora contrafeitos nos entregamos à morte, como ao mais forte, entrega um doce, um menino.

São essas mesmas palavras libertadoras que ora escravizam-me. Sinto-me um veículo de sentimentos: meus olhos absorvem, minha mente destila, minhas mãos eternizam. Eu, eu mesma, mal tenho tempo de vivenciar tantas sensações.

O interessante é que após essa entrega chamada morrer, deixamos as dores para trás e passamos a viver.

Ana Maria Volpato Jensen, bióloga, é autora de “Poemas do Faz de Conta” e “Borboletas”.

João Rodella, professor, é autor de “Poesiando”, “Histórias de Peões”, “A Dança das Colheitas” e “Contos Condimentados”.


POESIA

Voa, ó meu pensamento! Para o Alto, para o Além... Desperta-me bons sentimentos Pra que eu viva sempre bem. Vai longe meu pensamento! Para o espaço infinito... E sente a cada momento Como tudo é tão bonito! Contempla a Natureza E Sua Lei obedece... Diante de Sua beleza, Ao Pai Eterno agradece... Viver intensamente: mergulhar nas ondas do mar, caminhar na tempestade, atirar-me nas profundezas do abismo. Viver a dor até sangrar, chorar até esgotarem-se as lágrimas, amar até saciar a saudade, comer até satisfazer a fome, ler até embaralhar a vista, cantar até ficar rouca, dançar até doerem as pernas. Rezar até me sentir iluminada, entregar o coração a quem precisa, e sorrir, sorrir, até a tristeza se apagar... Thaís Polo Worschech, é professora de Letras.

Enxerga por toda parte A presença do Criador... O Universo é uma arte, Arte do Divino Amor! E presta mais atenção Para ver em cada ser Dessa imensa criação O Amor a florescer! Dissipa toda amargura Com fé no Ideal Cristão... Diga não à desventura, Na vida, tudo é lição! Marlene Alves dos Santos, professora, autora de “A Esperança em Versos” e “Construindo o Novo Brasil com Jesus”.


PERFIL

Tem gente que passa por esta vida como se não tivesse existido. Outros, ativos, incansáveis e irrequietos, se assemelham a um furação de idéias, mudanças e trabalho. São pessoas que gostam de trabalhar, de construir e de gente. Um exemplo? Maria Rizek Maluf, advogada e escritora, que aos 90 anos ainda tem fôlego e energia de uma pessoa, digamos de 30 35 anos, e ainda com pique para trabalhar, conceder entrevistas e escrever. Como se não bastasse, adora cozinhar, fazer doces e outras guloseimas para um agrado a quem freqüenta sua casa, no caso, filhos, netos e amigos. E ninguém deixa sua casa sem levar um pote de doce de mamão, cidra ou doce-de-leite. Em dezembro do ano passado foi homenageada com troféu da Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados de Americana, entregue pelo Dr. Archimedes Gomes de Nóbrega. Essa distinção refere-se aos trabalhos de Maria Maluf na defesa dos direitos humanos ao longo de toda a sua vida. Entrevistar dona Maria Maluf não me foi um trabalho, mas uma boa e saborosa conversa. Uma conversa começa pela revelação de que desde o nascimento sua vida tem sido sempre pautada pelo propósito de pensar primeiro nos menos favorecidos. Um preceito que herdou do pai, “uma pessoa única”, como diz, com sua voz doce e macia. De uma família constituída de nove filhos, dona Maria era quem ajudava no trabalho de casa. “Era eu quem levava os caldeirõezinhos de sopa que minha mãe preparava para os pobres do bairro”. Conta que desde muito criança ajudava a mãe nas tarefas domésticas. Principalmente as que se referiam ao forno e fogão. “Eu amassava o pão uma vez por semana. Minha mãe preparava o fermento de noite e, pela manhã, eu cuidava de amassar o pão, que eu mesma enrolava. Como você pode ver, os meus dedos são todos nodosos de tanto amassar pão”, conta, e mostra os dedos de ambas as mãos. Por todos os cantos por onde passou dona Maria deixou marcas indeléveis. Fundou jornais, criou teatro (atuou como atriz), foi oradora responsável pelas festas que se organizava nas escolas. Quando chegou a Americana, residiu durante dois anos perto de onde hoje é o Colégio Salesiano Dom Bosco. Conta que é responsável pela fundação da Igreja que leva o nome do colégio. Por quase meio século Maria Maluf morou numa casa na Praça das Bandeiras, 33. No entanto, precisou mudar-se dali porque a região aos poucos foi sendo invadida por casas comerciais.

Camões e Castro Alves Atuando como professora, lecionou no "João Castro Gonçalves". Isso aconteceu quando deixara de lecionar na Escola Normal de Agudos para fundar o Ginásio de Pederneiras (distante de Americana cerca de 230 quilômetros) onde há um estabelecimento de ensino com o seu nome: Escola Municipal de Ensino Fundamental “Profa. Nagiba Maria Rizek Maluf”. E, de lá, transferiu sua residência para Bauru, quando finalmente aportou em Americana. Apreciadora da literatura de Castro Alves, Camões e José de Alencar, Maria Maluf diz que não fica um só dia sem pelo menos ler um trecho da obra de Castro Alves. “Cada poema, cada verso, tem sempre algo a acrescentar”, diz. Aprecia tanto a obra de Camões que chega a ficar impressionada com as estrofes de seus poemas, “que são de um português castiço, com uma clarividência, que muitas vezes me deixam profundamente comovida”, admite. Quantos aos autores mais novos, Maria Maluf diz que não se liga muito neles. “Não os conheço muito bem”, explica, afirmando que prefere ficar com os mais antigos a recorrer aos novos e não gostar. “Mesmo porque meu tempo é escasso”, diz. Aprecia a leitura de publicações como Veja e Caras. “Leio a Caras porque gosto de saber o que acontece na sociedade e Caras é uma dessas publicações que nos fazem conhecer pessoas proeminentes da alta sociedade. Leio-a por curiosidade, brejeirice minha”. Maria Maluf acredita que “a fofoca alivia o espírito carregado intelectualmente”. Há quem afirme, segundo diz, que os fofoqueiros vivem mais do que os outros, e que os intelectuais têm vida curta “porque não conseguem pôr para fora tudo de negativo que existe dentro deles”. Então”... Filha de Talão Rizek e Ana Huada Rizek, dona Nagiba Maria Rizek Maluf nasceu em Agudos, São Paulo, em 1916. Casou-se com o mestre de Direito Dr. Sahid Maluf. Dessa união vieram quatro filhos, que lhes deram sete netos e um bisneto. É professora, orientadora educacional, advogada e escritora. São dela as obras A revolução de 32: o que foi, porque foi (1986), Pétalas (1985), e os infanto-juvenis O coquinho amarelinho (2003), A formiguinha e seus amiguinhos da floresta (2004) e Alice e as aventuras do peixinho dourado (2006). Suas obras também fazem parte de importantes antologias, como a Via Palavra desde a primeira coletânea até a sétima e da Del Secchi. É membro atuante do Espaço Literário “Nelly Rocha Galassi”. Antonio Roberto Fava, jornalista e escritor.




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