IDÉIAS: A DICA DE VICTOR HUGO “Quem conduz e arrasta o mundo não são as máquinas, mas as idéias”. A frase é do escritor e poeta francês Victor Hugo (1802/1885), autor de clássicos como Os Miseráveis (1862) e O Corcunda de Notre Dame (1882), entre tantas outras obras que perduram indeléveis ao longo desses quase 200 anos. É evidente que nós, que produzimos a Espaço da Palavra, que agora chega ao número 6, não temos a pretensão de fazermos uma obra imortal, que perdure, digamos, para sempre. O que sinceramente desejamos são o desenvolvimento e a proliferação de idéias por meio de textos, sejam contos, crônicas ou poesias. Quer dizer, mostrar a que de fato viemos. E estamos felizes e orgulhosos - perdoem-nos a falta de modéstia - com a repercussão que a revista vem obtendo junto ao público leitor desde o lançamento de seu primeiro número, em julho do ano passado. A resposta, e também os aplausos, vêm de modo imediato. E às vezes de longe, como é o caso do professor de literatura, Carlos Manfredi, que agora está em Santos (preparando um livro), que aplaude a matéria sobre alfabetização. E mais: diz estar feliz por saber que a cidade tem autores de textos-reportagens, poetas, poetisas e cronistas com tamanha sensibilidade. Que a gente faz “uma revista preocupada com a cultura e com o desenvolvimento educacional da cidade”. Nesta edição - a última do ano - o leitor pode ler uma entrevista, feita há vinte anos, com um dos grandes nomes do romance brasileiro: Marcos Rey, autor do clássico Memórias de um gigolô, que morreu em 1999, aos 74 anos. Vai encontrar ainda entrevista com a nova presidente do Espaço Literário “Nelly Rocha Galassi”, Maria Miriam, falando de seus projetos para o futuro à frente da instituição, e um texto de Maria Lúcia Capozzi comentando a vida e a obra da romancista Hilda Hilst, autora de Contos de Escárnio, O Caderno rosa de Lori Lamby e Obscena senhora D, entre outros livros. Sigamos então a dica aí de cima de Victor Hugo. Movimentar o mundo com as nossas idéias - ainda que não sejam tão revolucionárias. Que tenham todos, poetas, contistas, cronistas e anunciantes, um Feliz Natal, e, não se pode fugir do lugar comum, um Ano Novo repleto de realizações, novos textos e... bastante trabalho. Ex toto corde, Espaço da Palavra
EXPEDIENTE Ano II nº 6 dezembro 2006 - PUBLICAÇÃO: Espaço Literário “Nelly Rocha Galassi”. CONSELHO EDITORIAL: Maria Benedicta Lima Della Torre, Antonio Roberto Fava, Maria Lucia Nascimento Capozzi, Heloísa Cecília Pavan e João Rodella. PROJETO GRÁFICO: Heloísa C. Pavan. PRODUÇÃO EDITORIAL: Maria Lucia Nascimento Capozzi. IMPRESSÃO E ACABAMENTO: Gráfica e Editora Adonis. JORNALISTA RESPONSÁVEL: Antonio Roberto Fava - Registro Profissional nº 11.713-SP Capa: Heloisa C. Pavan Fotos: A. Roberto Fava e Maria A. Batista
Em 1995, preparando minhas aulas, precisei consultar o artigo de uma Revista de Antropologia (vol. 37, 1994) publicada pela USP. Folheando suas páginas encontrei um texto que logo me despertou o interesse. O artigo com mais de cinqüenta páginas, era de autoria do Dr. John Cowart Dawsey, dos Estados Unidos. Trazia como título Brazilians for American to see, em português: O Espelho Americano Americanos para brasileiros ver. Para minha surpresa e entusiasmo, todo o trabalho do autor era baseado no livro de Judith Mac Knigth Jones, ilustre moradora e cidadã honorária americanense, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Estado de São Paulo e do nosso Espaço Literário. O artigo fazia referência à colônia de confederados vindos do sul dos Estados Unidos nos meados do século XIX, após a Guerra de Secessão, se estabelecendo na região de Americana e Santa Bárbara d'Oeste. Um grupo heterogêneo, com profissões diversas, porém, unido pela agricultura. Aqui em terras brasileiras, esses americanos tiveram como maior símbolo o arado e o conhecimento agrícola. E por aí vai o artigo do professor Dr. John Cowart Dawsey, narrando, sempre baseado em D. Judith, os primeiros anos dos americanos, em solo brasileiro. Essa nossa querida historiadora, descendente dos sulistas, sempre se preocupou em manter viva para as futuras gerações a história, as tradições, as raízes e os costumes dos imigrantes do sul dos Estados Unidos. Também em minhas mãos chegou o livro The Confederados: Old South Immigrants in Brazil, editado por Cyrus B. Dawsey e James M. Dawsey, da Universidade de Alabama, EUA, dedicado To Judith Mac Knight Jones. A reconhecida pesquisadora nasceu em Campinas, em 21 de junho de 1916. Formou-se em contabilidade pela Academia de Comércio São Luís. Mais tarde graduou-se em Pedagogia pelo Instituto Salesiano Dom Bosco, em Americana. Foi casada com James Roderick Jones, bisneto do Coronel William Hutchinson Norris, um dos pioneiros da imigração dos confederados. Em Americana fixou residência, morando numa bela chácara, rodeada das plantas e árvores de que sempre gostou e, com carinho, as cuidou. Também, nesta cidade iniciou seus trabalhos de pesquisa e compilação dos documentos relativos à imigração dos americanos e, como conseqüência desse minucioso e importante trabalho, em 1967 publicou a obra Soldado Descansa! Uma epopéia norteamericana sob os céus do Brasil. Como sempre estudou e se dedicou à história de seus ascendentes, tornou-se membro do Instituto Genealógico Brasileiro. Orientou a instalação do Museu
da Imigração de Santa Bárbara d´Oeste. Com muita justiça, por todos os seus méritos, recebeu os títulos de Cidadã Honorária de Americana e de Santa Bárbara d´Oeste. Dos Estados Unidos foi contemplada com a cidadania do Estado do Alabama. Em 1996, publicou um livro muito interessante de contos e crônicas: Folhas Esparsas. Com seu estilo pitoresco e sui generis, o seu livro foi recebido com agrado geral pelos seus leitores. Dona Judith foi uma das primeiras sócias do Espaço Literário. Com seus textos produzidos e lidos nas reuniões, publicados em jornais da cidade e em várias antologias, contribuiu literariamente para o engrandecimento deste grupo. Quando vamos a sua casa para visitá-la, ao entrar, deparamos com seu antigo piano. Sobre ele, um volumoso livro de assinaturas dos inúmeros visitantes que ela recebe do Brasil e do exterior. Na época do Natal, em sua sala, D. Judith costuma armar uma árvore de Natal. “É um pinheiro que, obedecendo as tradições, é armado em frente à lareira, para que a árvore reflita num grande espelho todo o esplendor de velinhas acesas, com as chamas multiplicadas nas bolas coloridas”. Há alguns anos nossa estimada D. Judith está doente. Mesmo assim, sua pessoa nos transmite amizade, carinho e respeito. Nela jamais deixaremos de ver a grande mulher que é e para sempre será: a culta historiadora, a escritora reconhecida, a cidadã realizadora. E para nós, do Espaço Literário “Nelly Rocha Galassi” será sempre exemplo e motivo de justo orgulho. A ela, a nossa sincera homenagem. MISSA DO GALO Judith Macknight Jones Nos idos de 1935, quando vim para Americana, a oportunidade de conhecer pessoas de outras origens foi uma revelação. Nascida em Campinas, as minhas saídas de lá eram sempre para a casa de parentes e amigos de descendência americana, com os mesmos costumes e tradições. O contato mais chegado com os brasileiros, italianos e alemães me abriu as portas para um mundo de encantamento. Certa vez, recebendo em casa a visita do Senhor Franz Hetzel, esse assunto foi muito comentado: - Eu também, quando vim da Alemanha, achei muito diferente. Casei com italiana, Joana Dollo, e, quando chegou o Natal, quis mostrar para ela como era o Natal na minha terra. Fui para São Paulo comprar os preparos, que não havia aqui na vila. Comprei maçãs, nozes, queijo e salames. Comprei também chopp no barrilzinho. Quando chegou o dia, eu preparei tudo. Enfeitei a árvore, arrumei a mesa, comprei o gelo, vesti roupa bonita e sentei na cadeira de balanço para esperar o Natal. Minha mulher estava demorando para se aprontar. Quando acabou, disse: - Vamos à Missa do Galo! - Missa do Galo? Natal é em casa, com a família ao redor da mesa, com músicas e canto! - Natal é Missa do Galo! E lá foi ela. Fiquei tão desgostoso, tão desgostoso, que sentei e bebi os vinte e dois litros de chopp. Maria Benedicta Lima Della Torre, professora, escritora, é autora de “O Homem e a Sociedade”, “Janela Aberta” e “No Ritmo do Tempo”.
“Estou no centro escuro de todas as coisas, mas a visão é larga como um grito que se abrisse e abrangesse o mar."
O diálogo invisível entre o tempo e as palavras: uma biografia? Hilda Hilst nasceu na cidade de Jaú, interior de São Paulo, no dia 21 de abril de 1930, filha única do fazendeiro, jornalista, poeta e ensaísta Apolônio de Almeida Prado Hilst e de Bedecilda Vaz Cardoso. Tinha pouco tempo de vida quando seus pais se separaram e ela foi morar com a mãe em Santos, litoral de São Paulo. Seu pai, então com 35 anos de idade, foi internado num sanatório em Campinas para tratarse de esquizofrenia. Até a morte passou longos períodos em sanatórios para doentes mentais. Na idade escolar, em 1937, foi enviada para o colégio Santa Marcelina, na cidade de São Paulo, onde estudou por oito anos, em regime de internato. No ano de 1945 matriculou-se no curso clássico da Escola Mackenzie, também naquela cidade. Em 1946, pela primeira vez, visitou o pai em sua fazenda de Jaú. Naqueles três breves dias, perturbou-se com sua loucura. Em "Carta ao Pai" ela narra: Só três noites de amor, só três noites de amor, implorava o pai, sim, o pai,... sim, a filha deslumbrante, tremendo em seus 16 anos, sim, o pai a confundia com a mãe, sim?
Em 1948, a conselho de sua mãe, iniciou seus estudos na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Largo São Francisco. A partir de então, começaria uma vida boêmia que duraria até 1963. Dotada de invulgar beleza, foi considerada uma das mulheres mais bonitas de sua geração: “Mistura da beleza de Ingrid Bergman e da sensualidade de Rita Hayworth”, descreveu o editor Massao Ohno. Hilda se comportava de forma incomum para os padrões de então, escandalizando a alta sociedade paulista. Despertou paixões em empresários e muitos artistas. A beleza e a personalidade forte tocaram também Carlos Drummond de Andrade, que a ela dedicou um poema. Hilda foi musa de artistas, poetas e alguns intelectuais. Em 1950 Hilda começou a carreira literária, publicando
seu primeiro livro: "Presságio". Conclui o curso de Direito em 1952. Em junho de 1957 embarca para a Europa, lá permanecendo por sete meses. Muito independente e uma das mulheres mais belas e desejadas de sua geração, Hilda viveu quase tudo o que uma mulher desejaria viver na sua juventude: viajou, freqüentou espaços privilegiados e abalou muitos corações. Porém, quando abandonou a mundanidade da capital paulista e fixou-se nos arredores de Campinas, passou a viver apenas para a literatura. “Puxei os cabelos para trás, comecei a usar batas e a me enfear”, declarou a escritora. E ri. Nessa época, Hilda passa a residir numa propriedade de sua mãe, a Fazenda São José, distanciando-se da intensa vida de convívio social para se dedicar definitiva e exclusivamente à arte de escrever. Em 1966, mudou-se para a Casa do Sol, construída na fazenda, onde residiu até a data de sua morte. A mãe estava internada no mesmo sanatório em Campinas onde estivera o pai, falecido há dois anos. Em 1967 inicia uma série de oito peças teatrais que escreveria até 1969. Hilda casou-se com o escultor Dante Casarini, em 1968. Vivendo uma fase profícua e catártica, Hilda vê suas peças serem cada vez mais encenadas. Ao longo da década de 70, baseando-se nos experimentos do pesquisador sueco Juergenson, Hilda Hilst se dedicou à transcomunicação instrumental, gravação através de ondas radiofônicas de vozes que, assegurava, seriam de pessoas mortas. No mesmo período anunciou a visita de óvnis em sua fazenda. Em 1977 é publicado o livro "Ficções", que recebe o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), como "Melhor Livro do Ano". Um entre muitos que mereceu ao longo de sua eloqüente trajetória. Divorcia-se de Dante Casarini, mas o ex-marido continua morando na Casa do Sol. Passa a fazer parte do Programa do Artista Residente da Unicamp, em 1982. Nesse mesmo ano, lança "A obscena senhora D", livro que inicia sua fase pornográfica. Em 1990, com "O Caderno Rosa de Lori Lamby", que consagra aquele período de afrontamento literário, a escritora anuncia o "adeus à literatura séria", uma medida extrema como tentativa de vender mais e conquistar o reconhecimento do público. Há uma década Hilda Hilst já revelara o seu desencanto em relação à literatura e ao seu ofício de ser poeta num “tempo destruído pela falta de caráter e pelas mentiras diárias dos
donos do jogo literário”. Na contracapa de seu belíssimo livro “Amavisse”, essa surpreendente artífice da linguagem, assinou um poema-despedida, de quem passara a vida recolhendo os fragmentos da alma para transformar em poesia requintada e grandiosa: O escritor e seus múltiplos vem vos dizer adeus. Tentou na palavra o extremo-tudo E esboçou-se santo, prostituto e corifeu. A infância Foi velada: obscura na teia da poesia e da loucura. A juventude apenas uma lauda de lascívia, de frêmito Tempo-Nada na página.
A obra erótica provocou espanto e indignação na crítica e até mesmo entre leitores e amigos. Lança "Contos d'Escárnio / Textos grotescos e Alcoólicos", em seguida. O quarto livro de sua fase pornográfica, "Cartas de um sedutor" é lançado em 1991. Em 1992 lança a antologia poética "Do desejo" e "Bufólicas", livro de poesias pornográficas. A ficção erótica de Hilst recusa os padrões burgueses em favor do grotesco, da provocação e do escárnio, cujos narradores freqüentemente assumem uma voz masculina. Seus escritos transgressores causaram grande repercussão ao revelarem os extremos das vicissitudes humanas. A série pornográfica foi, na verdade, um grito de protesto e uma atitude de defesa. As pessoas que conviveram com a poeta a descrevem como uma pessoa, generosa, íntegra e culta. Em 1992 passou a colaborar com o “Correio Popular”, jornal diário de Campinas, escrevendo crônicas semanais, trabalho que se estendeu até 1995. No ano seguinte, o Centro de Documentação “Alexandre Eulálio”, da Unicamp, adquire seu arquivo pessoal. A escritora sofre isquemia cerebral. Em 1997, alguns livros de Hilda Hilst são traduzidos para o francês, inglês, italiano e alemão. Em 1998 retomou suas atividades de pesquisadora de questões sobrenaturais: Deus, imortalidade da alma, transcomunicação, projeção astral, religiões, santidade e óvnis. Pensa em construir um centro de estudos da imortalidade em sua propriedade. Em 2001, a Editora Globo passou a ser responsável por toda sua obra publicada. Três anos mais tarde, após ter estado internada desde o início de janeiro no Hospital das Clínicas da Unicamp, a singular escritora Hilda Hilst, com falência múltilpla de órgãos e sistemas, partiu para outras esferas da existência no dia 4 de fevereiro de 2004, aos 73 anos. Partiu? Não nos enganemos: Hilda Hilst, com sua concepção peculiar da natureza divina, apenas fez a travessia para a outra margem, transitando com a leveza sustentável da poesia... O sinistro das horas/ Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento/Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte/ é um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
O diálogo intangível entre a alma e a poesia: uma cosmogonia? Voz essencial da literatura em língua portuguesa na contemporaneidade, Hilda Hilst, em sua obra com mais de 40 títulos, subverteu os gêneros literários, questionou o papel do escritor-intelectual com inquietante lucidez e viveu com intensa dramaticidade. Poeta, dramaturga e ficcionista, autora
de uma obra raras vezes cumprida pela nossa língua, Hilda inscreveu sua densa trajetória literária e humana sempre repleta de indagações metafísicas: Deus, a paixão e a morte. Estes são os três temas recorrentes sobre os quais a escritora construiu uma das mais intrigantes obras da literatura mundial, numa viagem onírica permeada de tempestades e calmarias, delicadas vertigens transitando entre a vida interior e a obra que ofereceu ao mundo. A realidade e a ficção dialogam na tentativa de expor e exorcizar a dor do mundo, a sua própria inquietação, em permanente colóquio confidencial: Carrega-me contigo, Pássaro-Poesia Quando cruzares o Amanhã, a luz, o impossível Porque de barro e palha tem sido esta viagem Que faço a sós comigo. Isenta de traçado ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem Hei de levar apenas a vertigem e a fé: Para teu corpo de luz, dois fardos breves. Deixarei palavras e cantigas. E movediças Embaçadas vias de Ilusão.
O inefável se traduzindo na condição da transitoriedade humana em conflito com os cimos da linguagem, na tentativa extrema de decifrar seus enigmas. Na poesia intensa e melodiosa, na prosa densa e quase convulsiva, os retratos sintomáticos dos delírios que viu e viveu. Toda a poética centrada no cuidado de representar a vida em estado de ausência da temida loucura genética. Tanto cuidado a fez abdicar da maternidade para não gerar possíveis filhos insanos; cuidou de parir palavras, organizadas em versos livres e em prosa impregnada de verdades ficcionais, estabelecendo um pacto amistoso com a loucura: “Estendi-me ao lado da loucura Porque quis ouvir o vermelho do bronze /… Um louco permitiu que eu juntasse a sua luz À minha dura noite”.
Vida e obra amalgamadas tanto quanto a literatura permite e/ou enseja, tão fundo ela foi nesses questionamentos que acabou cruzando a fronteira da literatura para enveredar pelas ciências exatas: física, filosofia e matemática. Adotou para si a teoria do físico Stephane Lupasco, defensor da idéia de que “a alma é feita de matéria quântica”. Sempre ávida, Hilda Hilst dedicou-se às questões sobrenaturais: a certeza da imortalidade da alma a levou a realizar uma série de experiências com o intuito de gravar vozes de mortos. Estimulada pelas pesquisas feitas por Friederich Yuergenson, cientista sueco, do Instituto Max Planck, na Alemanha, e sob o olhar incrédulo de físicos respeitados, como César Lattes, Schenberg e Bernardes, ela passou a “captar e gravar vozes enigmáticas pronunciando palavras e frases, algumas com até doze vocábulos”. Bem-humorada, dizia que estava estudando “para não chegar idiota em Marduk”, planeta de outra dimensão onde já estariam Einstein, Paracelso e Julio Verne. Hilda afirmava que escritores como Joyce e Kafka anteciparam, na literatura, a dimensão einsteiniana do espaço e do tempo: "É por isso que não acredito mais no texto linear, em romances com começo, meio e fim. Nunca é assim na própria
vida." Mas ela via outras conexões entre a literatura e as ciências exatas. "Eu sempre me fascinei com o matemático indiano Srinivasa Ramanujan. Ele dizia que para resolver seus intricados teoremas era movido apenas pela beleza das equações”. Assim é, também, na poesia. É uma espécie de exercício do não-dizerdizendo, fonte que nos encharca de beleza ao ler um poema. Hilda Hilst asseverou em entrevista a Mora Fuentes: "Expressões como 'número quântico de estranheza', 'algures absoluto' ou 'luz interdita' tinham tudo a ver com a poesia e a metafísica." Não foi levada a sério e suas experiências caíram no vazio. Na literatura, porém, Hilda foi sempre levada a sério. Embora consciente da finitude das coisas, Hilda não perdeu, na vida e na arte, a sua conhecida irreverência. Considerada escritora difícil, de conteúdo hermético, para poucos leitores, nos anos 90 ousou publicar a série pornográfica. “O Caderno Rosa de Lori Lamby”, o primeiro deles, com ilustrações de Millôr Fernandes - no qual uma criança rouba os originais do pai e copia em seu diário passagens pornográficas, sem entender absolutamente nada - deixou os críticos em alvoroço. Provocativa e radical, com sua escrita intencionalmente desconstrutora e polêmica, mesmo nessa narrativa de absoluto deboche, utilizou palavras de Oscar Wilde como paráfrase: "Todos nós estamos na sarjeta, mas alguns de nós olham para as estrelas" E, assim, ela conseguiu o que intencionava: chamar a atenção sobre o seu trabalho predestinado à imortalidade. Complexa, multifacetada, em certa ocasião, durante entrevista para “Cadernos de Literatura Brasileira” do Instituto Moreira Salles, São Paulo, em outubro de 1999, foi indagada:”A sua poética, de certo modo, sempre foi a do desejo?” Hilda Hilst, convicta, respondeu: “Daquele suposto desejo que um dia eu vi e senti em algum lugar”. A jornalista insistiu: “Sua obra, no fundo, então, procura”... E ela completou: “Deus!” Frente a frente com Deus, serei aquele amontoado de perguntas e já posso lhe ver a língua rosada, dourada, e perdigotos azuis roçandonos com suas diminutas asas...
Além da misticidade flagrante, a autora descreve também a solidão e a profunda estranheza diante do comportamento humano, a perplexidade de pertencer à mesma espécie que abriga simultaneamente vilões, santos e heróis. Essa escritura passional e ambivalente nos revela o erotismo como ponto fundamental da sexualidade feminina, elemento-chave da história da humanidade, princípio, meio e fim da vida. A autora, em sua poética cintilante, trava um duelo contra o erotismo puramente fisiológico, elevando o sexo a uma experiência de comunhão e plenitude, nascida no corpo e atingindo raízes metafísicas do ser, peça-chave de uma cadeia cósmica em evolução, como se vê neste fragmento do livro “Do desejo”, de grande lirismo: Visgo e suor, pois nunca se faziam. Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo Tomas-me o corpo. E que descanso me dás Depois das lidas. Sonhei penhascos Quando havia o jardim aqui ao lado. Pensei subidas onde não havia rastros.
Nestes versos, o eu - lírico feminino remete ao desejo efêmero e reservado aos mortais, imperfeitos e carentes. Sendo assim, ele acende a centelha erótica da paixão porque “há desejo em mim, é tudo cintilância”. Essa conotação de imaterialidade do desejo fugaz, ligado às paixões, está intimamente relacionado aos sentimentos e sensações, ao interno, alimento para o corpo e para o espírito. Numa aventura de pós-modernidade impregnada de simbolismos, Hilda Hilst faz de sua poesia - que se proclama "de amor" toda a grandeza imagética e imagística da poeta, que se descerra para dizer o indizível. O diálogo imperecível entre a vida e a morte: uma dicotomia? Talvez a notável poeta, dramaturga e ficcionista Hilda Hilst seja o nome mais controvertido da literatura brasileira contemporânea. Pois, se para alguns críticos como Léo Gilson Ribeiro, trata-se do "maior escritor vivo em língua portuguesa", para outros, que a estigmatizam, a escritora é ilegível, incompreensível. Hilda Hilst possivelmente nunca será popular, acessível. Ela, que desejou ser discutida, focalizada, poderá padecer de uma discriminação inerente a essa inacessibilidade (para a maioria) de seu código de expressão muito peculiar e intencionalmente cifrado. Pairando acima de todas as negações de sua obra, Hilda avançou numa viagem cada vez mais ousada, cada vez mais funda. Ainda segundo Léo Gilson Ribeiro “o espanto diante da criação de Hilda Hilst crescerá à medida que as gerações futuras consigam apreender a grandeza imune ao efêmero desta vivência escrita, deste arame esticado sobre o abismo da prosa resplandecente...” Na revista "Globo Ciência", nº. 61, Cláudio Fragata escreve: “Toda obra universal de Hilda Hilst tem pedaços dela marcados em páginas de absoluta beleza, da poesia como um vaso de porcelana que se põe à janela à espera da tarde”. O poeta e escritor Álvaro Alves de Faria, em matéria da revista “Caros Amigos” n. 21, afirmou: “Universal, Hilda Hilst não tem mundo para habitar, senão o desassossego, a inquietação, esse oceano noturno que sempre bate à janela, visita inesperada”. Assim, essa mulher que transitou à margem dos limites das academias, penetrou outros sóis, mergulhou tão fundamente para dentro de si que experimentou seu próprio avesso, e se perguntou dentro de um poema: "E se eu ficasse eterna na vida?" permanecerá. Hilda, a palavra e a imortalidade estarão para sempre juntas. As barcas afundadas. Cintilantes Sob o rio. E é assim o poema. Cintilante E obscura barca ardendo sob as águas. Palavras eu as fiz nascer Dentro de tua garganta. Úmidas algumas, de transparente raiz: Um molhado de línguas e de dentes. Outras de geometria. Finas, angulosas Como são as tuas Quando falam de poetas, de poesia. As barcas afundadas. Minhas palavras. Mas poderão arder luas de eternidade. Maria Lucia N. Capozzi, é escritora e editora.
Mansa... bem mansinha... o sono vem chegando maroto, tomando conta de seus olhos pintados... cabeça vai, vai, vai... Volta! Olha, olha para os lados! “Pensa que me engana, é, rapaz?! Estou desperta! Oh, sim, estou bem desperta!” E esperta. Com seus 70 anos, o mundo soava como quando tinha 20. Sobrancelhas alinhadas e bem delineadas com um traçado cor de chocolate. Maquilagem rosada nas maçãs do rosto, batom escarlate e uma delicada presilha nos cachinhos brancos tão finos, quase uma penugem. E os trajes? Que elegância! Vestido sedoso e colorido, tal qual se vestia em seus áureos tempos de menina. E fazia sucesso, hein, rapaz, se fazia... Os garotos derretiam-se apaixonados: eram declarações em papel perfumado, flores, docinhos, sorrisos incontáveis. Ah, meu anjo, e se retribuísse os sorrisos? Pronto! Seriam aliança no dedo e malas prontas para a lua-demel... De fato, sua beleza era rara e todos queriam tê-la nos braços, nem que fosse por um instante fugaz. Embora transmitisse a imagem de um passarinho suave e frágil, sempre a preocupar-se com as vestes e as rendas, tinha habitando dentro de si um leão alado, imponente, desejoso de conhecer o universo inteiro montaria no elefante africano mais furioso e, com ele, percorreria toda a savana em fuga, sentindo o furor e o sangue na boca, até que chegaria o momento de urrar e incrustar definitivamente no ar as palavras “Eu posso”. E poderia! Para sempre, poderia tudo! Nada mais importaria. Comeria o coração do elefante assim mesmo, cru, logo depois de abrir-lhe o tórax com as próprias unhas. Ah, querido, não é para se assustar... Afinal, quem é que nunca quis internalizar a fonte pulsante da vida para poder pulsar ainda mais dentro de si? O fato é que, por convenção familiar, teve de se casar. Não queria, bem sabe o rapaz que não queria, porque, se o fizesse, não veria a savana, não correria em explosão, não poderia jamais, que absurdo!, ter o direito de implodir em batuques tribais. Enfim, resolveu retribuir um sorriso. Em poucos segundos, chegou o dia da cerimônia. Vestido branco mas que castidade hipócrita é essa, dirigida a alguém tão livre, que se penetra tão descaradamente desde o primeiro instante de vida?! E a vida não é uma constante penetração em si?! -, flores nos cabelos, algemas prontamente postas. Oh, meu anjo, não deixe nunca que lhe coloquem algemas. Assim, quando foi declarada prisão perpétua, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, deixou de engravidar. Por Deus! Deixou de ter filhos! Como é que pode uma pessoa estar proibida de gerar vida? Ainda se lembra de quando, no ápice de sua jornada, podia ter filhos todos os dias. Era uma beleza... Eles choravam porque tinham fome, então ela os pegava e os apertava contra o peito: a fome passava! E, então, sem explicação, depois de algemada, seu ventre começou a
crescer continuamente, como uma concreção, sugando-lhe as energias de modo irreversível. Como se explica, anjinho? De repente, despencou por entre as pernas, uma dor descomunal, indo alojar-se no chão. Estava de cócoras e viu tão-somente uma massa amorfa se aninhar no assoalho, toda envolta de sangue. Apesar disso, teve de prosseguir os dias, do mesmo jeito que prosseguem os andarilhos cegos. Tapou a boca e, em mímica desconexa, levou adiante o papel a ela atribuído. A massa amorfa continuou crescendo, tal como crescia em seu ventre, de modo a alastrar-se pelos cômodos, a gritar: “Mamãe, mamãe!”. E ela ia atender aos pedidos. Fazia bolos, tortas; enchia balões, pendurava enfeites; sorria para o detentor das algemas, saciava seus desejos carnais; levava os cães para passearem, comprava ração. Uma série de eventos rotineiros em chuvas torrenciais. Nunca parava, jamais parava. Era um carrossel ininterrupto pouco importava se as crianças já estavam zonzas, regurgitando as vísceras... o carrossel simplesmente não parava de girar. Sabe, rapaz, que, nesse tempo todo, nunca conseguiu derramar umas parcas lágrimas? Não obstante cheia de acontecimentos, sua vida era assim: vazia, vazia... De que adiantava ter tudo e tantas pessoas se não podia ter a si própria? Foi quando, ao chegar ao ponto de saturação, percebeu que nada mais poderia se dissolver. Se seu corpo fosse um copo d'água e suas atribuições, punhados de sal, ver-se-ia no fundo uma camada branca de cristaizinhos precipitados. O momento era crítico. As horas haviam se estagnado. Mal era capaz de respirar, quanto mais de olhar para as coisas viventes à sua volta. Entenderam isso como um chamado de emergência. O doutor olhou-lhe os olhos vagos e ela disse tudo, tudo o que lhe veio à mente, desde os elefantes africanos, até a decorrência do dia em que foi algemada. Disse mesmo, sem medir palavras. Ele olhou-a com pesar, fez uma série de exames, segurou-lhe a cabeça, beijando-a na testa, e disse por fim: “É Alzheimer, senhor Silveira. Eu sinto muito, mas não há mais nada que se possa fazer”. Ao ouvir isso, era como se tivesse sido dado o tão esperado grito de libertação. Sim, meu anjo de cabelos encaracolados, pegaram a chave e soltaram as algemas. Num golpe descontrolado, tirou toda a roupa e nua, completamente nua, penetrou-se. Ah, há quanto tempo não se encontrava consigo! Penetrou-se novamente, descaradamente, sem qualquer pensamento pudico que pudesse destruir aquele momento singular de pura implosão! E foi assim que, num ato de desespero, a água evaporou do copo, libertando-se do sal que a impedia de alcançar a tão sonhada ebulição. Os cabelos brancos ficaram novamente dourados, o corpo flácido voltou à sua forma tenra e os olhos, outrora opacos, iluminaram todo o planeta, tamanho era o brilho incontido. Foi à savana, cravou as unhas no elefante africano, tirando-lhe o coração gigantesco, embebido em litros de furor. Andréa Moro Caricilli, estudante de Biologia na Unicamp, foi menbro do “Espaço Literário Jovem”.
“As boas histórias vêm do fundo, sempre ligadas a nossas experiências mais íntimas e essenciais. Nascem do mergulho no grande oceano do inconsciente”. (Marcos Rey 1925-1999).
título, que tem de ser forte, conciso, de maneira que chame a atenção do público leitor”. (Alguns dias depois fico sabendo que o nome do livro ficou sendo A Arca dos Marechais (1983), obra que, trabalhando nela oito horas diárias, demorou apenas dois meses para ser concluída, e que se tornou um de seus livros mais vendidos). É nesta pequena sala que, numa fusão impressionante e dramática, ao mesmo tempo burlesca, entre a ficção e a realidade, são produzidas histórias de personagens saídos de caricaturas geradas em bordéis, bares noturnos, bailecos de terceira categoria, bandidos, prostitutas e cafetinas, boêmios, falsários e artistas, representantes autênticos do universo marginal da Grande São Paulo. Momentos difíceis: demitido da televisão, vendeu até o carro
A sala não tem mais que doze metros quadrados. Nas paredes, originais de Van Gogh, Fernando Dias e Toulouse Lautrec. Numa das estantes de livros, obras de Vladimir Nobokov, Dostoievski, Tchecov, Joyce e Anatoly Kusnetzov. Na outra, menor, livros dos mais variados gêneros: policial, literatura latino-americana e poesia. Sobre a mesa, a máquina semi-portátil, elétrica. Ao lado, um grosso volume de laudas: os originais do roteiro da série Sítio do Pica-Pau Amarelo. Estou diante de um dos maiores escritores brasileiros: Marcos Rey, e esta é a sala onde o autor do clássico Memórias de Um Gigolô (1969), que virou filme e mini-série de tevê, trabalha cerca de oito horas por dia. “Menos aos sábados e domingos” - explica-me com um sorriso maroto, quase infantil num rosto liso, sem rugas. Na máquina, uma lauda com alguns títulos provisórios. O escritor está bolando o título de seu novo livro, baseado no conto A Enguia, inserido no livro Soy Loco por ti América. A coisa lhe parece difícil e ele desabafa: “Não sai, não estou conseguindo fazer um bom
Embora não goste de tocar no assunto, Marcos Rey é um dos escritores brasileiros mais bem sucedidos. Isto é, sobreviveria, se quisesse, pura e exclusivamente de literatura. Conta-me que, por puro gosto pessoal, mantém um emprego fixo na Rede Globo, como integrante da equipe de roteiristas da série do Sitio do Picapau Amarelo. Explica-me que já teve momentos extremamente difíceis na vida. “Cheguei a ser demitido de uma emissora de televisão por causa de uma divergência com um dos diretores do núcleo de telenovelas, quanto eu fazia a adaptação da obra A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo”, diz. “Foi um dos momentos mais difíceis de nossa vida”, completa Palma, esposa do escritor, quando Marcos precisou pedir dinheiro emprestado em banco para poder pagar algumas dívidas. “Chegamos a vender o nosso carro”, recorda-se Palma. Teimosia, otimismo e muito trabalho. Basicamente esta é a maneira que o escritor encontrou para que, com o passar do tempo (não muito, porque aos 16 anos já publicara seus primeiros contos na imprensa de São Paulo), chegasse aonde chegou. Marcos é um homem obcecado por literatura. Talvez, um dos escritores que mais produzem no Brasil. Contudo, como diz, não escreve pelo simples fato de escrever. “É preciso que haja uma identificação entre mim e aquilo que estou escrevendo, com a história. Quando não há essa identificação, quando vejo que não estou gostando da maneira de como a narrativa está se desenvolvendo, é bobagem querer continuar. Aí, então, eu paro e a coisa esfria, há uma certa resistência. E quando isso acontece, creio que chegou a hora de parar”. Isso já aconteceu inúmeras vezes na vida do autor de Memórias de Um Gigolô, Café na Cama, Ópera de Sabão, Malditos Paulistas e Soy Loco por Ti América, entre tantos outros. Ocorre às vezes de concluir grossos volumes de originais e, no fim, chegar à conclusão de que não é bem
aquilo que gostaria de ter feito. (Entretanto, como lembra o escritor João Antonio - 1937/1996 -, autor dos clássicos Malagueta, Perus e Bacanaço e Leão-de-Chácara, Marcos “é um autor que não se deixa envolver por nenhum dos modismos de época e escreve inteiramente voltado para o leitor, sem artifício ou demagogia. Não abre mão do fascínio de uma boa história, é direto, objetivo, funcional, sem golpes de estilo, episódios e não perde o ritmo e a garra pelo realismo crítico que o vem caracterizando desde sua estréia, em 1953, com a novela Um Gato no Triângulo”). No entanto, Marcos me diz que tem uma definição para seu trabalho: “Acredito que possa escrever uma boa história durante o dia, mas é à noite que elas acontecem”. E vai mais longe: “O maior erro dos críticos é confundir moço inteligente com escritor. Duvido dos escritores que escrevem histórias segundo seu estilo. São as histórias que têm estilo próprio. A Bíblia e as histórias em quadrinhos continuam sendo a melhor escola para um escritor honesto”. Ao contrário do que se possa pensar de um escritor como Marcos Rey, que quase sempre enfoca o submundo, os inferninhos, os bordéis noturnos de São Paulo, a malandragem, os falsários, os bêbados das madrugadas (o leitor pode imaginá-lo um retrato fiel ou coisa parecida de seus personagens) ele é, digamos, o oposto: um homem pacato, caseiro até. Trabalha ouvindo músicas da década de 40, os boleros da época, Ernesto Nazareth, ou músicas norte-americanas, principalmente as de Cole Porter. Ou ainda bossa-nova, João Gilberto, Jobim. Faz questão de salientar que não é contra o rock (que às vezes, dependendo da ocasião, também aprecia). “Mas gosto mesmo é das coisas da minha época, que me ligam às lembranças da minha juventude”. Bebedor? Nem tanto. “Sou bebedor de sábado e domingo, mas mesmo assim bastante medíocre. Enquanto trabalho, prefiro mesmo é tomar café. Mas não muito. Não sou Balzac”. Uma proposta honesta: no meio do drama, ser hilariante e engraçado Desde que estreou em 1953 com Um Gato no Triângulo, a literatura feita por Marcos Rey tem uma característica: a sátira. Enquanto outros escritores, demagogicamente, prendem-se ao rótulo de denunciadores de óbvias mazelas sociais contra o chamado “sistema”, Marcos tem uma proposta que parece ser mais sincera: ser linear, hilariante, engraçado. Mesmo ao enfocar temas ou situações dramáticas, grotescas ou tristes. Tudo isso, contudo, sem perder a linha, sem cair no ridículo, no falso. Seu texto é limpo, seguro, quase calculado. O escritor não se deixa envolver por fases de momento. No entanto, não é um autor alienado: em quase todas as suas obras parcelam-se denúncias vivas, autênticas, nuas e cruas, ditas de modo pitoresco, do povo que sofre problemas de ordem social: a solidão coletiva nos grandes centros, “a brutalidade da máquina engolindo o homem no massacre da cidade grande, o permanente descontentamento diante da vida que acompanha escribas e fariseus, ajustados e desajustados, pacatos e espertos” - como lembra João Antonio. Suas obras
vão além de simples e frias denúncias: descem até os porões dos assaltantes, dos assaltados, aos submundos das prostitutas e homossexuais enclausurados nos kitchinetes das ruas dos Triunfos e Auroras do País. Retrata-os de maneira objetiva, direta, sem floreios ou rebuscamentos, e com uma particularidade: tudo é narrado com uma dose de humor que só um texto com a marca Marcos Rey pode construir. Escreve como que voltado para o leitor, sem artifícios ou demagogias baratas. (Léo Gilson Ribeiro, jornalista e crítico literário, dizia que “sem esquecer observações próprias sobre a amoralidade avassaladora dessa imprevisível roleta russa em que os trunfos são a venalidade, o sexo, o dinheiro, Marcos distingue-se pela oralidade concreta de seus diálogos, pelo picante das situações eróticas, pela captação fulminante de uma personalidade em poucos e reveladores traços incisivos. Assim, toda uma galeria do submundo da jogatina, dos bordéis e dos inferninhos noturnos desenha-se nitidamente, viva, cheia de um humorismo grosso e apimentado que satisfaz o leitor. Café na Cama, O Enterro da Cafetina, Memórias de Um Gigolô, entre outros, mostram claramente a percepção visual das cenas que tornam fácil a adaptação dessas criações para o cinema”). Intimamente ligado às fases conflitantes da radionovela e da televisão, Marcos tornou-se um mestre seguro de diálogos espontâneos (raríssimos no cinema brasileiro), que colhia nos bastidores das emissoras que cresciam e que depois cediam lugar a outros fenômenos de comunicação eletrônica de massa. Com isso, em 1980, o escritor aparece com aquele que, segundo ele próprio, é o seu melhor livro e também do qual mais gosta: Ópera de Sabão, que demorou cerca de dois anos para ser concluído. Nele, o escritor praticamente reconstrói a São Paulo de 1954, quando Getúlio Vargas se suicida. O interessante nesse livro é que Marcos não coloca nada de pesquisas maçantes, nem de evocações pormenorizadas: é a atmosfera, o clima da época, daquele momento que ele delineia parcimoniosamente. Limita-se a narrar os dramas de uma família paulista, a Manfredo Manfredi. Em Opera de Sabão, ao mesmo tempo em que o leitor pode chocar-se com situações dramáticas, vê-se à frente de episódios muito engraçados. Mas tudo muito bem costurado numa linguagem direta, objetiva, com um texto bem elaborado, sem que, por um momento sequer, haja excesso ou falta de palavras. Tudo no seu devido tempo e lugar. Marcos Rey foi eleito para a Academia Paulista de Letras, em 1986. Conquistou prêmios importantes, entre eles, o Jabuti em 1967, pelo O Enterro da Cafetina; o Jabuti de 1994, pelo O Último Mamífero do Martinelli, e o Juca Pato, Intelectual do Ano, em 1996. Marcos Rey era portador de hanseníase, doença conhecida até o século 20 como lepra e que desde os tempos bíblicos carrega o estigma de maldição. OBRAS PARA TELEVISÃO Ao longo de uma carreira de 60 anos, Marcos Rey escreveu meia centena de livros, tanto para os adultos como para o público infanto-juvenil, além de novelas para televisão. O Grande Segredo (TV Excelsior, 1967), Os Tigres (TV
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Excelsior, 1968), Super Plá (Tupi, com Bráulio Pedroso, 1969), Mais forte que o Ódio (Excelsior, com Palma Bevilácqua, 1970), O Príncipe e o Mendigo (Record, 1972), Signo da Esperança (Tupi, 1972), Cuca Legal (Globo, 1975), A Moreninha (Globo, 1975), Tchan, a Grande Sacada (Tupi 1977), Sítio do Picapau Amarelo (Globo, 1978/79), Partidas Dobradas (com Mário Donato, seu irmão, TV Cultura, 1982) e Memórias de Um Gigolô (Globo, 1985, minissérie de Walter Geroge Durst). PARA O PÚBLICO ADULTO Um Gato no Triângulo (novela, 1953), Café na Cama (romance, 1960), Entre sem Bater (romance, 1963), Os Grandes Crimes da História (paradidático, 1967), O Enterro da Cafetina (contos, 1967), Memórias de um Gigolô (romance, 1968), O Pêndulo da Noite (contos, 1977), Ópera de Sabão (romance, 1978), Malditos Paulistas (romance, 1980), Esta Noite ou Nunca (romance, 1988), O Roteirista Profissional (1989), A Sensação de Setembro (1989), O Último Mamífero d o Martinelli (novela, 1995), Os Crimes do Olho de Boi (romance, 1995), O Coração Roubado (crônicas, 1996), Fantoches (novela, 1998), O Cão da Meia Noite (contos, 1998), Melhores Contos de Marcos Rey (antologia, 2005) e Mano Juan (romance, 2005). PARA O PÚBLICO INFANTO-JUVENIL
M.B.L. Della Torre Fui ontem visitar-te, amiga, E te encontrei velha senhora Não mais a jovem ardente E alegre que conheci outrora. Teus negros cabelos ondulados São hoje finos fios de prata Tintos pela vida, pelo tempo, E agora em um coque enrolados. Tuas mãos trêmulas apertaram as minhas, Um abraço longo testemunhou carência Que a distância e a saudade deixaram Em nosso longo período de ausência.
Não Era Uma Vez (infantil, 1980), O Mistério do Cinco Estrelas (romance, 1981), O Rapto do Garoto de Ouro (romance, 1982), Um Cadáver Ouve Rádio (romance, 1983), Sozinha no Mundo (romance, 1984), Dinheiro do Céu (romance, 1985), Proclamação da República (paradidático, 1985), Enigma na Televisão (romance, 1986), Bem vindos ao Rio (romance, 1987), Garra de Campeão (1988), Corrida Infernal (romance, 1989), Quem Manda já Morreu (romance, 1990), Na Rota do Perigo (romance, 1992), Um Rosto no Computador (romance, 1993), Doze Horas de Terror (romance, 1994), Brasil, os Fascinantes anos 20 (1994), O Diabo no Porta-Malas (romance, 1995), Gincana da Morte (romance, 1997), O Cão do Filho do Encanador (autobiografia, 1997), O Menino que Adivinhava (romance, 2000) e Diário de Raquel (romance, 2004).
Para mim, emocionada, tu sorriste E procurei em teu olhar e em teu rosto O riso franco e jovial, agora triste, Marcado pela dor, pelo desgosto.
Marcos Rey nasceu na cidade de São Paulo no dia 17 de fevereiro de 1925 e morreu, na mesma cidade, no dia 1° de abril de 1999, aos 74 anos.
M.B.L. Della Torre, professora, atual presidente do Espaço Literário “Nelly Rocha Galassi”, é autora de “O Homem e a Sociedade”, “Cadernos de Estágio”, “Janela Aberta” e “No Ritmo do Tempo”.
Antonio Roberto Fava é jornalista e escritor.
Nada te perguntei. Conversamos muito Sobre tudo e todos que nós sempre amamos O silêncio, muitas vezes, como verbo mudo Expressou mais que as palavras que trocamos. E as horas voaram e, na partida, Novamente a emoção nos envolveu: Em teu rosto as lágrimas, minha amiga, Em mim, a voz, na garganta, emudeceu.
CRÔNICA / POESIA
Lembro-me da escola, do parquinho, onde corria sem parar, suava sem cheirar e vislumbrava as meninas dos meus sonhos, aquelas que em minha imaginação de criança de seis anos seriam minhas esposas perfeitas. Lembro-me dos amigos, os melhores amigos, que seriam companheiros até o fim dos dias. Lembro-me da professora, a mais bonita de todas e eu o aluno predileto dela. Lembro-me da merendeira, que fazia a polenta especialmente para mim. Lembro-me do primeiro ano, tudo novo e eu mais novo ainda para o mundo que não cansava de me olhar. Eu seria o futuro da nação. Amigos novos, passado distante, já tinha sete anos...os seis foram a muito tempo. Meninas novas, agora mais bonitas, mais mulheres, mais decididas e determinadas (aos sete as meninas já sabiam o que queriam ou quem queriam). As professoras ainda mais elegantes e ainda mais apaixonadas por mim. Os funcionários cada vez mais devotos a mim. Estava descobrindo a cada dia que o mundo existia apenas porque eu existia...e essa era a verdade...acreditem... Já na quinta série a coisa começou a tomar outro rumo. Que história é essa de ter mais que um professor. Um só já me enche de lição, imagine cinco, seis professores....coitado de mim. O quê? Ela está gostando do fulano? Como assim? E eu? Não entendi? O dito-cujo te convidou para a festa de aniversário dele e me deixou de fora? Mas essa festa sem mim não terá graça nenhuma, ou terá? A professora teve a coragem de chamar meus pais para reclamar de mim? Quer dizer que ela não acha “tudo” eu interromper sua aula pra fazer os colegas rirem de minhas piadas tão interessantes? Será que eles riem de mim e não das piadas? Ué, o que tá acontecendo? Aos poucos e da pior maneira possível fui percebendo que o mundo não era nada daquilo que eu achava dele. Percebi que as coisas não eram como eu gostaria que fossem. Fui me decepcionando sem ter nada que me fizesse um pouquinho mais feliz ou menos infeliz. Olhava tudo aquilo e era como se algo desmoronasse em meu coração. As meninas não me eram tão lindas, os amigos não me eram tão legais, as professoras não me eram tão perfeitas assim, nem tão bonitas, nem tão generosas. Não queria mais a merenda e sim os salgadinhos encharcados da cantina. Não queria mais a camiseta do uniforme que tanto me orgulhava, queria ir com uma outra qualquer de casa, desde que fosse eu que escolhesse. Não queria mais meus tênis, minha calça, meu cabelo, minha voz...os outros começaram a aparecer pra mim como melhores do que eu, como pode isso?
O outro era eu e eu o outro. Essa confusão perdura até hoje quando vou dizer alguma coisa em público, quando vou comprar uma roupa, quando vou escrever os meus textos, quando vou...enfim sempre quando vou fazer qualquer coisa não consigo deixar de pensar nos outros que existem dentro de mim e que aos poucos tento exorcizá-los. Sim exorcizá-los, pois se apoderam de mim como encostos ou maldições e não me deixam viver como quero, com o dinheiro que tenho, com as pessoas que também tenho ao meu lado, com as ideologias que mantenho e que quero continuar. Esses outros estão sempre me atrapalhando, me impedido, mesmo que eles não existam na verdade. Se me atormentam e não existem são fantasmas, fantasmas de um tempo bom-ruim que preservo dentro do meu peito não querendo mais... Dizem (olha aí os outros de novo!) que o único remédio para fantasmas é: luz acesa. O único receio que tenho é de que se eu acender a luz e, assim, expulsar os fantasmas, pode ocorrer de eu não achar mais nada neste espaço chamado eu, e isso deve ser ainda mais assustador... Ricardo Mardegam, psicanalista e autor dos livros “Alfabeto”, “Metade” e “Diversos e Sortidos.
Joaquim Afonso Fernandes d'Oliveira Eu canto antes que a noite desça, antes que este Sol, o da Vida, se apague e suma. Desapareça! Eu canto antes que envelheça a árvore antiga que já sou e do bálsamo que lhe resta talvez que a vida ressurja, talvez floresça. Que importa que alveje a cabeça, a neve dos anos, nas folhas caducas deste cedro. Talvez dos olhos a bruma venha cedo. Quem sabe se nas ondas de espuma deste oceano que nos une e nos separa, irei ter contigo na crista da vaga. E neste canto, inverto o rumo ao verso. Há luar, calor, amor. Há sonhos risonhos do cedro. As gotas de orvalho diluem as seivas refluem, florescem. Há Sol, há calor, amor e se renasci? Foi por ti que brotei flor. Joaquim Afonso Fernandes d'Oliveira é poeta e crítico literário. (in memoriam)
2006 - Lançamento da antologia Via Palavra 8
Thaís Worschech e Antônio Roque Barrela Associados do Espaço Literário “Nelly Rocha Galassi”
Gustavo e Elizeti Hernandes
M.B.L. Della Torre - Roberta Suzigan - Cecília Dei Santi Maria Batista e Lázara Wonrath
Edna Oliveira - Vera Lúcia Sarete Seleto de Souza
Lázara Wonrath - Wilma Moraes - Marilene Comelato
2000 - Therezinha Rocha Poles - M.B.L.Della Torre - Maria Lucia N. Capozzi - Sidney de S. Almeida - João Rodella Regina G. Gonçalves - Catharina F. de Barros - Jacob Garcia - Walther J. Faé - Ieda de Paula
2004 - No Engenho Central, em Piracicaba, secretários e diretores de cultura recepcionam o Ministro da Cultura Gilberto Gil: Laurentino Braga (Araraquara); Ângela Galter (SBO); MariaLucia N. Capozzi (Americana); Heitor Gaudenci (Piracicaba) e Maria da Graça (Limeira)
2006 - Katya Forti autografando seu livro “Alma em Flor” para Dr. Marli Ferraz 2006 - Lançamento Via Palavra 8 Sílvia Regina Delázari Ferreira
Todos os dias pela manhã, quando introduzia a chave para abrir as portas de sua loja, Luiz Sanajotti, o proprietário, coisa foi mudando, ainda que muito lentamente: três por embora feliz por mais um dia de trabalho, sentia um frio na semana, cinco, dez. O fato é que depois a loja havia se boca do estômago. É que junto aos instrumentos musicais, transformado num ponto de referência de venda de livros discos de vinil e CDs, havia um outro tipo de produto pouco usados da cidade”, recorda-se Sanajoti. E hoje a Sapiente Livros consumido pelo brasileiro: o livro, um artigo para muitos de e Discos tem um acervo de aproximadamente 14 mil volumes luxo, que apenas uma pequena parte da população brasileira de todo tipo: literatura (traduzida e no original), quatro mil consome. Luiz sabia das dificuldades inerentes que iria revistas de grandes tiragens (como Veja e Istoé, além de enfrentar com esse novo tipo de comércio. Se por um lado às publicações em fascículos), de obras religiosas, de medicina, vezes ficava inseguro, por outro confiava num mercado ainda filosofia, poesia, teatro e, entre outras, de auto-ajuda. pouco (ou nada) explorado na cidade. Sanajotti revela que seu gosto pessoal pela leitura é “Sabia que só com a venda de livros eu teria condições bem diversificado. Por exemplo, acabou de ler o clássico de apenas para pagar o aluguel e Aleksander Solzhenitsyn, O outras despesas da loja”, Arq u ip éla g o d e G u la g , conta. Para se ter uma idéia provavelmente a mais forte e “A paz é absoluta. O sebo é a verdadeira aproximada das dificuldades influente obra que revela democracia, para não dizer: uma igreja de todos os que o livreiro enfrentou basta como funcionavam os camsantos, inclusive os demônios, confraternizados e dizer que o comércio de livros pos de concentração e de humildes. Saio dele com um pacote de novidades de sua loja na época com trabalhos forçados na antiga velhas, e a sensação de que visitei, não um cemitério pouco mais de - cinco mil União Soviética. Esse é um de papel, mas o território livre do espírito, contra o volumes - começou a render livro que, segundo Sanajotti, qual não prevalecerá nenhuma forma de os primeiros frutos cinco ou todo mundo deveria ler. “Isso opressão”. seis anos depois. Foi quando para quem quiser saber um Carlos Drummond de Andrade Luizinho teve a certeza que, pouco mais sobre o de fato, estava no caminho romantismo de esquerda no certo. Sabia, no entanto, que mundo. Gente que não tem a teria pela frente ainda um árduo trabalho: tentar disseminar menor idéia dos males que o regime provocou naquele país, a prática da leitura. E que esse também é o papel de quem gente que fala e até baba quando ouve falar em comunismo trabalha no comércio de livros. deveria lê-lo para ter uma idéia mais abrangente sobre o “Pode-se não acreditar se eu disser que no início regime”, ensina o livreiro. Ele diz que aprecia muito a passei meses sem vender um livro sequer. Depois, é claro, a biografia de pessoas importantes no cenário político ou
social, obras que abordam temas relacionados à saga do povo judeu após a diáspora e a sua dispersão por motivos políticos ou religiosos, por exemplo. Instrumento de interferência - No entanto, há um tema que Luiz Sanajotti declara ter um extraordinário interesse: o iluminismo. (Dá-se o nome de Iluminismo ao movimento cultural que se desenvolveu na Inglaterra, Holanda e França, nos séculos 17 e 18. Um período em que o desenvolvimento intelectual, que vinha se desenvolvendo desde o Renascimento, originando-se as idéias de liberdade política e econômica, defendidas pela burguesia da época. Tal movimento trouxe avanços que, de acordo com historiadores, juntamente com a Revolução Industrial, abriu espaço para a profunda mudança política determinada pela Revolução Francesa. O precursor desse movimento foi René Descartes (1596-1650). Bem, o livreiro costuma dizer que é “um mercador” com um único propósito: comercializar o seu produto, o livro, mas de uma forma quase carinhosa, “como se eu fosse um instrumento de interferência e modificador da cultura da minha cidade”. Sanajotti conta que quando iniciou a sua atividade como comerciante de livros não imaginava que, por um lado, a princípio fosse tão difícil, e, por outro, tão prazeroso. Afirma que, no entanto, pelo menos em Americana, “é um mercado em ascensão, embora fala-se muito que no Brasil ainda se lê pouco. Fico feliz de saber que o governo federal, nestes últimos oito anos, tem dado prioridade e desenvolvido campanhas com o propósito de incentivar o hábito da leitura no país. A leitura é uma atividade que começa a fazer parte do universo do indivíduo”, diz Luizinho. Tal hábito só não é mais intenso em virtude do alto preço do livro no Brasil, se comparado ao poder aquisitivo da maioria dos brasileiros. Ele explica que, sempre que possível, costuma sugerir livros para o freguês que se revela indeciso quanto a uma determinada obra. “Isso me proporciona uma coisa legal: geralmente a pessoa cita um título ou o enredo do livro, cujo nome do autor às vezes não conhece. Creio que uma das minhas funções é essa, indicar novos títulos e nomes dos autores. O que não fazemos aqui é empurrar-lhe um livro que consideramos bom. O que fazemos é sugerir determinada obra”. Sanajotti tem observado que grande parte da população da cidade não cultiva o hábito da leitura. Acredita que falta estímulo nas escolas “ou a coisa é mesmo cultural”. No entanto, explica que se pode verificar que há, sim, um público leitor fiel, que frequentemente compra livros em sua loja e os lê. “Até faço troca com quem compra livros aqui”, salienta. O mesmo processo de atendimento se dá também com o restante dos produtos da loja: os instrumentos musicais. Só que nesse caso não há barganha. Negócio é negócio. Antonio Roberto Fava é jornalista e escritor
para meu filho Bruno
Pé recém-parido na palma de minha mão peito pulsante sobre o meu boca a sorver o branco sangue de meus seios E quanto mais de mim se esvai a vida líquida esta alma - outrora escura sólida de luz se incendeia Sônia Barros, professora, escritora premiada, é autora dos livros “Diário ao contrário”, “Um bichinho só prá mim” e “O que é que eu faço agora Afonso?”.
Viver só É sentir o silêncio que nos fala É falar com o pensamento que embala Nossos sonhos e desejos... Viver só É sentir a escuridão amiga A nos envolver no abraço que intriga E que conhece nossa história antiga Desde muito antes de sermos nós... Viver só Foi assim o caminho escolhido Em tempos do inconsciente esquecido Para que, depois de termos sofrido Ganhássemos o Espaço, liberdade de albatroz!... ... Maria Cecília Dei Santi, é professora aposentada e escritora.
Chegada a plenitude dos tempos, Deus-Menino, desceste ao primeiro raio de uma estrela de ouro suspensa sobre o mundo sombrio, de homens severos. Vinhas cumprir as profecias, encarnar os etéreos mistérios do Eterno no humano que há eras pairava nas esferas... Eras um Sol que vinha à Terra, humanizado. Quando o Pai enviou-te, Jesus-Menino, cumpriu-se que "o verbo se fez carne entre nós". Tuas pequeninas mãos lançaram luzes sobre a noite, enxugaram nossas lágrimas de vidro evanescente, desvelaram da matéria o ilusório e o finito aclararam a verdade e o caminho do infinito... E assim, constelado, nos chegaste Luz-Menino! Para dissipar as trevas represadas por milênios, decodificar a linguagem linear da divindade, e ensinar-nos a entoar as canções do amor candente no seio deste mundo dos homens surdos e insensatos, envolvidos pelo ódio e ambições da inconsciência. Mas ficaste para sempre, Homem-Menino! Tu que vinhas das estrelas às vinhas do pecado, um Sol de Amor a envolver a humanidade... Tu que em nós tanto amas a pureza da criança, A repousar no colo, no acalanto da esperança tecida entre os seres e o eterno Amor de Deus! Maria Lucia Nascimento Capozzi é editora e escritora.
O drama da manjedoura mais uma vez se repete: Cristo no berço de palha lembra a Estrela imorredoura que o Amor Divino reflete e o pobrezinho agasalha. Cristo nasce, Cristo vive de Deus entre nós o Filho cresceu, sofreu, Homem livre deixou-nos sua Luz e brilho não há quem dele se prive no seu luminoso trilho. Homem-Deus mostrou sem medo o rumo da salvação! Na história simples o enredo começa na Anunciação e termina o drama-tredo na Cruz, na ressurreição! Na cruz infame, na Cruz criada por fariseus o Mestre ainda seduz mesmo a descrentes, ateus... Na manjedoura Jesus fez-se homem sendo Deus! Dois mil anos decorridos agora tudo outra vez para o prazer dos sentidos: dos homens na embriaguez nascer, morrer, dias idos, o mundo quer, e assim fez! Riqueza vã, farta mesa, - quanta miséria e mentira... Natal sem Luz, sem pureza, Quanta gente que delira e a populaça tristeza por um pãozinho suspira... Natal! Natal! É preciso fazer Jesus renascer não-Presépio e paraíso mas dentro do próprio ser, luz que brilha no sorriso na glória de bem-viver! Viver com Jesus de fato, dia-e-noite, noite-e-dia no espelho de cada ato, que só bondade irradia. É o Natal um bom “barato” Walther José De Faé é escritor.
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Nos estreitos limites do espaço e do tempo, nos debatemos na busca de um viver físico, mental e espiritual plenos, tentando fazer da terra, o Céu. No entanto, dúvidas multiplicam-se em nossas mentes como modernas Hidras de Lerna e as respostas obtidas nem sempre satisfazem nossos anseios. Se os altos cumes são obstáculos postos no caminho para testar nossa capacidade de enfrentá-los, também servem para desenvolver em nós a força e o desejo de vencê-los e nos tarnar capazes de encontrar as respostas que procuramos.
Nesta época de Natal, em que a comunidade está mundialmente congregada com pensamentos e intenções de caridade e pretende, de alguma forma, pôr em prática os ensinamentos de Cristo, temos o momento propício para as buscas espirituais. Nesta época, os pensamentos-forma voltados para Cristo agregam-se numa luminosa nuvem prateada e, como por encanto, surge o desejo de vencer limites em busca do verdadeiro caminho. É tempo do amor aflorar no cadinho do coração e transformar os sentimentos ali retidos em dádivas para o irmão. Natal é nascimento significando início de nova vida. Natal é momento de reflexão e boa vontade. Natal é amor a Deus e aos homens. Therezinha Rocha Poles, co-fundadora do Espaço Literário, é autora de “Túnel do Tempo” e “Quatro Estações: contos e crônicas”.
Mais uma vez é Natal e, apesar dos pesares, das tristezas, das saudades, podemos sentir no ar vibrações bem diferentes. Emana da alma da gente sentimento de carinho com os nossos semelhantes. Não nos sentimos sozinhos ao relembrar um menino de cabelos muito louros e olhar meigo e divino que nasceu há dois mil anos, lá bem longe, em Nazaré, e continua entre nós através da nossa fé. Companheiro de jornada dessa Terra tão sofrida, dessa gente tão cansada. Está sempre ao nosso lado na alegria e na dor nos ajudando na vida, nosso Jesus, nosso mestre, o grande semeador que planta nos corações fé, esperança e amor. Nelly Rocha Galassi, co-fundadora do Espaço Literário, autora de “Retrato em Luz e Sombra”, “Distraídas mais nem tanto...” e “Um sonho de Liberdade”. (U 28 de abril de 1998)
És Maria do povo o excelso encanto! És a glória de Deus na humana argila! Em teu semblante a luz do bem se asila E fitando-a, do lodo me levanto... Vieste até nós... E o orvalho do teu pranto Que verteste no mundo ainda cintila. Em França e em Portugal na tosca vila Onde os zagais cobriste com teu manto... Caminhante ferido em meu calvário Eu tenho um Cirineu em meu rosário Que em cada conta o teu amor traduz... Ajoelhado a teus pés, Mãe, eu desejo Que me dês tua bênção e o bem que almejo, É a firme fé em teu Filho: Jesus!
Jonas Rosa, engenheiro agrônomo, é autor de “Talvez Poesia”, “Dos Santos e dos Meninos” e “Dos Santos do Sagrado Coração”
“Toda arte fala; mas a poesia é a única que fala a linguagem das palavras do olhar”. Cassiano Ricardo
A valorização do olhar como símbolo de reflexão, representa aspectos fundamentais para a fruição na apreensão do leitor, sem culminar numa leitura imediata, esse amadurecimento da leitura que leva a perceber, agir, interpretar, movidos por um novo olhar. As reflexões feitas sob um novo olhar modificam a visão do mundo. Quando se cria uma imagem do olhar, símbolo de forte polissemia, cuja imagem suscita significados em que é possível ampliar a leitura em espaços diversos. Ler para desvendar o mundo onde há tanto para se descobrir e encontrar através de um olhar crítico sobre as palavras, um olhar de revelação da criação poética. A leitura do olhar faz o leitor recuperar a essência da palavra, chamada desvelamento. O pensamento, a sedução pelas formas sensíveis e espirituais do imaginário, a revelação intuitiva do saber, a confrontação com o próprio sistema da linguagem, e a leitura do olhar são linhas fundamentais que permitem traçar o perfil do que a poesia é essencialmente. A imagem desempenha um papel essencial na poesia e nas leituras do olhar. Sob essa perspectiva, a importância da ação metafórica não pode deixar de ser pensada. O fazer poético, oferece a cada texto um gesto de reescrita do mundo ao qual o ato de leitura, que poderá se transformar com a prática transformadora da linguagem, em que o leitor, através de um novo olhar, poderá identificar-se e tornar o co-criador da obra. No olhar existem fronteiras difíceis de serem estabelecidas. O olhar, assim como as palavras expressam sentimentos inexprimíveis. Daí a importância de apreender as leituras que vêm do olhar, porque olhar é comunicar e expressar: todo esforço crítico se vincula a razão. O olhar possibilita revelações e ocultamentos, o olhar pode visualizar indignações e alumbramentos, é uma parte do
objeto que está ligado à contemplação. A leitura do olhar recria novas formas de sensibilidade do pensamento. A linguagem poética é arte sagrada, com poder para suscitar, exprimir e habitar todos os lugares. É arte sagrada da expressão, dos sentidos e da plenitude e do ser. A plenitude que habita todas as formas e imagens poéticas. Sílvia Segato, coordenadora educacional, é autora do livro “Vertente de Corpo e Alma”.
Tu, que transformou A água em vinho. Tu, presente nos meus sonhos, Na minha vida, No meu mundo, És a razão primeira De tudo o que existe! És a soma do possível Com o impossível; Do Bem com o Mal; Do Certo com o Errado! Do Todo e do Nada! És, afinal, o meu Senhor! Pois, em Ti me encontro, Aconchego-me, Entrego-me! E sei que és o meu Criador! Meu Amor Maior E meu Futuro Certo! Maria Jacy Furini Passuelo, é bacharel em Ciências Jurídicas e escritora.
Antonio Roberto Fava O Espaço Literário “Nelly Rocha Galassi” tem, a partir do dia primeiro de janeiro, uma nova presidente: trata-se de Maria Mirian, que substitui a poetisa Maria Benedicta Della Torre, por um mandato de dois anos. Fã incondicional de Brian L. Weiss (Muitas vidas, uma só alma) e de Aghata Christie, de quem, garante, leu todas as suas obras, Mirian diz ter ficado surpresa e espantada com a indicação do seu nome para presidir uma instituição cultural tão importante. “Confesso que fiquei assustada com a indicação porque não me sinto ainda preparada para assumir uma função de tamanha responsabilidade, eu que tenho apenas cinco anos de vivência assídua com o Espaço”, admite. Maria Mirian diz que, como foi a escolhida para administrar o Espaço Literário, está pensando de que maneira vai agir daqui por diante, junto aos associados. Pretende desenvolver um processo de diálogo com os demais integrantes, ouvindo opiniões e pedir ajuda àqueles com mais experiência e conhecimento sobre as atividades que desenvolve. Um de seus propósitos, explicou, é trazer outras pessoas para integrarem o Espaço. Como vai fazer isso ela ainda não teve tempo para definir. “Mas gente que participe ativamente das reuniões, que escreva e que sempre apresente um texto novo nas reuniões”, diz. “Caso contrário, não seria uma reunião de grupo, não é?” Para Maria Benedicta Lima de La Torre, que conheceu Maria Mirian em 1991, nos Estados Unidos, acredita no talento da escritora também como administradora da instituição. “Trata-se de uma pessoa responsável e participante ativa em tudo em que se envolve. Tenho certeza que cumprirá um mandato edificante e de grandes realizações para o nosso Espaço Literário. Confio nela”, diz Ditinha. Mirian revela que na sua gestão pretende dar continuidade ao que a atual diretoria vem desenvolvendo. Pretende, no entanto, fazer algumas mudanças estruturais no que se relaciona às reuniões, enquanto atividade principal do grupo. Inspiração divina - “Embora não tenha ainda nada formalizado, já estou tentando articular as minhas idéias”, explica. Isso implica, segundo diz, em conversar com os componentes do Espaço, ouvir opiniões, tornar as reuniões mais dinâmicas, especificando metas e trocar idéias sobre a criação de cursos àqueles que aspiram aprender e a diversificar os diversos gêneros literários”, adianta, embora julgue que todos que freqüentam o Espaço já sabem o que é literatura em suas mais diversas formas de expressão. Pois fazer literatura é um eterno exercício, que não se aprende de um dia para o outro. Por outro lado, com relação ao gênero conto, Mirian diz que, apesar de admirar essa modalidade literária, não é o tipo
de literatura que mais aprecia: prefere ficar mesmo é com a poesia. “Modalidade com a qual tenho mais afinidade”, acredita. Quanto à preferência de autores, diz que gosta da poesia de Drummond de Andrade e Cecília Meireles. Na literatura, fica com a obra de Aghata Christie, de quem é fã incondicional, de Humberto Eco, autor de O nome da rosa, que, segundo diz, leu a obra três vezes. Revela ainda que há algum tempo leu, em francês no original o “tijolo” Désirée, de Annemarie Selinko, um volume com mais de 600 páginas. “Um livro que simplesmente amei”, confessa. Mirian confessa que antes lia um livro por dia; hoje demora até quinze dias para concluir um livro com igual número de páginas. Apesar de ter uma produção literária bastante significativa, ainda é uma autora inédita, embora tenha trabalhos publicados em antologias literárias e em jornais. Revela que escreve quando sente inspiração; “outras vezes peço ajuda a Deus e sempre sou atendida”, diz. Se por um lado há escritores como o próprio Humberto Eco, Balzac, Fernando Sabino ou Marcos Rey, apenas para citar alguns, que reescreviam seus textos de modo incansável centenas de vezes, por outro Maria Mirian é daqueles autores, acredita, cujo texto já saem praticamente de primeira. Que, segundo diz, não requer revisões posteriores. “Não reescrevo nunca. Francamente, aquilo que escrevo considero produto acabado, já pronto, fruto unicamente da minha inspiração. Vem à minha mente e escrevo. É como se eu os psicografasse. Leio e vejo que está tudo de acordo com aquilo que eu de fato desejava. Ás vezes penso que determinada coisa não era bem aquilo que eu queria dizer, mas considero como um produto de minha inspiração, sendo assim, não vejo razão para que eu reescreva um texto meu, pois saiu do coração e, por isso mesmo, não requer revisão. Está perfeito. Posso corrigir o português, a pontuação. O que está ali é o resultado final da minha inspiração, o pensamento que veio e é ele que vale”, acredita. Revela que o escritor escreve aquilo que lhe vai na alma, no seu íntimo. “Para os eruditos pode ser algo aproveitável, mas o povo vê e
NOVA DIRETORIA Presidente: Maria Aparecida Batista Vice-presidente: Maria Benedicta Lima Della Torre 1° Secretária: Lázara Josepha Wonrath 2° Secretária: Roberta H. Suzigan 1°Tesoureira: Vera Lúcia Sarete Seleto de Souza 2° Tesoureira: Maria Cecília Dei Santi Coord. Departamento de Cultura: Maria Lucia N. Capozzi Coord. Departamento Social: Maria Cecília Dei Santi Conselho Consultivo: Therezinha Rocha Poles Maria Lucia Nascimento Capozzi Maria Benedicta Lima Della Torre
Antonio Roberto Fava e jornalista e escritor
Antonio Roberto Fava Foi numa tarde como esta que Virgínia esteve comigo pela última vez. Chovia, lembro-me bem, o que certamente retardaria o seu vôo para Nova Iorque, previsto para as três da tarde, no Aeroporto Internacional de Cumbica. Tínhamos ainda algum tempo, e gostaríamos de aproveitá-lo da melhor maneira se possível. Bem, eu não queria que ela fosse; ela gostaria de não ter que ir, mas disse que precisava. “Coisas de trabalho, você sabe”, tentou tranqüilizar-me. Ambos sabíamos que não era verdade, que os motivos eram bem outros. O fato é que depois de oito ou dez e-mails, meia dúzia de ligações telefônicas, nunca mais a gente se falou. O tempo correu depressa. Por onde anda Virgínia eu não sei. Naquele dia, sentados no saguão do aeroporto, aguardando pelo embarque de Virgínia, apenas nos olhávamos. A gente pouco se falava. Uma vontade contida e estranha de chorar. Notei em seus olhos que seu mais íntimo e sincero desejo talvez fosse não ter que partir. Talvez. Como discordar de Virgínia, que sempre pôs os compromissos de trabalho acima de tudo? Creio até que podia ter razão. “Precisamos dar um tempo, não?” Ah! Virginia, Virgínia, sempre tão direta, sem rodeios... Sempre fora de uma sinceridade que às vezes me incomodava. Naquele momento, por exemplo, era hora de ficar rememorando pequenos e velhos conflitos? Não, claro que não. Mesmo porque não havia motivos para “dar um tempo”. O tempo é sempre o agora; o lugar é sempre o aqui, caramba! Desviei o olhar para o imenso saguão do aeroporto. Dentro de mais alguns minutos estaria me despedindo de Virgínia. Ficaríamos distantes cerca de doze mil quilômetros. É um bocado de chão. Tínhamos tanto que conversar, falar de nossos sonhos e planos. Acontece que sempre que começávamos a conversar acabávamos discutindo. Aquele talvez pudesse ser um momento diferente. Mas curiosamente não tínhamos muito tempo. Assim como Virgínia, preferi também não tocar em nenhum desses delicados assuntos, muito comuns entre casais, acredito. Nem se eu quisesse, porque Virgínia me faz esquecer qualquer contra-argumento, tocando-me levemente os lábios com a ponta dos dedos, beijando-me a boca com ternura e paixão que me de deixavam de quatro diante do seu rosto bonito. O tempo naquele momento, pelo menos para mim, não era o mesmo que para o resto dos mortais: deslocava-se a uma velocidade despótica e ferina, como se zombasse de mim, como se quisesse que Virgínia se afastasse, fosse embora e me deixasse só. Para sempre. Fiquei observando casais, crianças, velhos, gente moça, andando de um lado para outro. Havia gente de todo tipo. Pessoas bem vestidas, outras nem tanto. Pareciam felizes. Talvez até o fossem. (Uma garota, não deveria ter vinte anos, sentada sobre a mochila, lia Werther, de Goethe).
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Uma voz de mulher ecoou pelo saguão em vários idiomas anunciando as novas partidas. O avião que Virgínia deveria tomar seria o próximo. Agora, olha-me séria e diz, chorosa, voz embargada: - Vai me ver, não vai? Pego de surpresa pela pergunta, que eu logicamente não esperava, respondi que sim. “Na primeira oportunidade”. Mesmo se quisesse eu não iria. É que no fundo no fundo creio que nem mesmo Virgínia desejasse realmente que eu fosse me encontrar com ela em Nova Iorque. Não foi ela que me disse “precisamos dar um tempo?” Outra vez me beijou de um modo um tanto demorado e com tanta paixão (há muito não me beijava assim com tanta ternura) e, esticando seus longos dedos, seguiu para o portão de embarque. Acompanhei-a até aonde meus olhos alcançavam. Segundos depois, voltou (por um momento julguei que talvez tivesse desistido da viagem), olhou-me com os olhos úmidos, acenou-me, soprou-me um beijo e outra vez, cabeça baixa, desapareceu na curva do corredor. De pé, diante da enorme vidraça, fiquei observando os aviões parados na pista lá embaixo, tentando adivinhar em qual deles Virgínia estaria. Até que uma das aeronaves, que devia ser a dela, passou a movimentar-se e, logo após, lá longe, aparentemente de maneira lenta, começou a levantarse, ganhou altura e embrenhou-se por entre as nuvens. Tentei segui-la com os olhos, até que desaparecesse sob o céu cinzento e triste de São Paulo. Antonio Roberto Fava é jornalisa e escritor.
www.espacoliterario.com
Antonio Roberto Fava Leitor assíduo das obras de Maurice Leblanc (“O ladrão de casaca”, “A moça de olhos verdes” e “813”), que tem Arsène Lupin como personagem central, o médico cardiologista Sebastião da Cunha Soares acaba de lançar sua primeira obra de ficção: A escolha por um mundo melhor. Escreveu-a num “Ainda tenho algo a dizer.” tempo recorde de apenas 58 dias, sob o pseudônimo de Amadeus Soares. “Uma espécie de homenagem a Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), que morreu aos 36 anos”, explica. O livro, de 167 páginas, é a primeira obra do médico, que sai sob a coordenação de Maria Lucia Nascimento Capozzi. Ainda se refazendo das emoções como se fosse o nascimento do primeiro filho, Sebastião revela que não sabe direito os motivos que o levaram a escrevê-lo. Conta que é um homem que aprecia a boa literatura. “Embora às vezes você se pega lendo uma obra que é não tem a menor qualidade, não te provoque emoção alguma”, diz. Sebastião revela que sempre teve idéias, e vontade, para escrever um livro. Às vezes o motivo lhe vem durante um sonho, a idéia básica, como o esqueleto de um livro, com enredo, perfis de personagens e tudo mais. Passava para o papel à mão. “Só depois de escrever dezenas de páginas é que eu acabava não entendendo nada do que havia escrito e tudo acabava no lixo”, confessa. Até que um dia, uma semana antes de começar a escrever, em conversa com sua esposa, Maria Aparecida, teve uma sucessão de idéias. E Aparecida lhe sugeriu então uma boa idéia “da primeira a última linha”. E foi essa idéia que acabou empregando Em a escolha por um mundo melhor. E em menos de dois meses de trabalho ininterrupto o livro estava concluído. Escrevendo sempre à noite, às vezes passava o fim de semana debruçado sobre o teclado do computador. E o cardiologista revela: nunca fez esquemas ou roteiros de trabalho para a elaboração de sua obra. “Nada. Tinha apenas umas idéias iniciais do que eu queria contar, que é a história de um povo, uma metáfora de vida de um povo subjugado, como é notadamente a maioria dos povos, principalmente de um país como o nosso, sob um governo cruel, que não dá a mínima para a vida e conforto de seu povo. Como o governo comunista, que prefere mantê-lo sob rédeas curtas, sem opinião e sem poder de decisão sobre o que melhor lhe convém”. Seqüência lógica - O médico-escritor esclarece então como escreveu seu livro: “Não fiz nenhum rascunho e não
tenho o hábito de reescrever. Vou do começo ao fim com uma idéia só. Não mudo nada. Não modifico nada. Não gosto de reescrever, porque não tenho paciência para isso”, diz. No entanto, explica que sempre que possível procura apegar-se a uma idéia já manifestada e juntá-la a outras que surgem naturalmente numa seqüência considerada lógica e, assim, vai até o final do texto da história que quer contar. “Esse livro não teria saído tão bom se não fosse o trabalho excepcional de Maria Lucia Capozzi, que empresou todo o seu talento e competência na elaboração da obra, além de cuidar com carinho da revisão do texto”, salienta o médico. “No final, posso até corrigir o português, colocar ou tirar uma vírgula, verificar a acentuação, concordância, essas coisas. Releio, mas muito a contragosto. Isso é uma tarefa que deixei para competência da Maria Lucia”. O autor de A escolha por um mundo melhor esclarece que não gosta de trabalhar ouvindo música, nem mesmo a clássica, como o fazem outros escritores. “Isso me atrapalha”, apressa-se a dizer. Por outro lado, idéias para escrever outros livros não lhe faltam. Um turbilhão de novas coisas que possam se transformar novos textos. “O que não tenho é estímulo para isso”, diz. Se para muitos escritores a inspiração é algo que não tem a menor importância (dizem que para escrever uma determinada história é puro trabalho reflexivo e de transpiração) para Sebastião é, sim, fator preponderante na confecção de uma história. “Parece-me que alguém soprasse de leve aos meus ouvidos, como se cochichasse o quê e como eu deveria fazer. A impressão que tenho é de estar psicografando um escritor que desconheço, de tão nítidas que as palavras, as imagens e a ação me vêm à cabeça. Enquanto escrevia às vezes voltava algumas páginas para pegar a seqüência, e tinha a nítida sensação de que não fora eu quem as havia escrito”, reflete. Sebastião admite, ao contrário de muitos escritores, entre eles Hemingway, Fernando Sabino, Marcos Rey, Honoré de Balzac, por exemplo, que não tem o hábito de escrever todos os dias. Mas explica: “Não escrevo todos os dias porque estou desestimulado. Estou à espera de uma boa notícia, de alguém que me diga, por exemplo, que leu o meu livro e o que achou dele, se é bom ou nem tanto. Mas me diga. Escrevi esse livro para que fosse lido e isso não está acontecendo. Por isso, não tenho nenhum estímulo para poder continuar, não é?”, pergunta o médico e escritor. E confessa que talvez isso aconteça por ser avesso às badalaçõe. “Às vezes pergunto se sou um escritor com algum talento, se devo ou não insistir porque ainda tenho algo a dizer”. TRECHO: “As pessoas justas, os misericordiosos, os puros de coração, conquistarão níveis mais elevados no paraíso; estarão mais próximos do Criador que mora no último andar. Vocês são homens livres, donos de livre arbítrio, no plano do Criador. A escolha é de vocês: são os donos de seu próprio destino. Procurem, portanto, fazer sempre a melhor escola!” Obra: A escolha por um mundo melhor Autor: Sebastião da Cunha Soares Editora: Gráfica e Editora Adonis Preço: R$ 29,90
www.amadeussoares.com.br Antonio Roberto Fava é jornalista e escritor.
Barro Blanco, de José Mauro de Vasconcelos (19201984). Apesar de haver escrito mais de vinte livros o autor de Rosinha Minha Canoa, obra que o projetou inclusive fora do Brasil, é um escritor que ainda não fora devidamente reconhecido pela crítica especializada deste País. Esse Barro Blanco é a história de Chicão, principal figura do livro, homem rude, afeito à vida igualmente rude, de seus amores com Joaninha Maresia, com seus tormentos e alegrias, e sua trágica vida sem futuro. O leitor pode sentir, por todo o livro, a luta do homem contra o meio ambiente, severo e hostil, a angústia e o terror causados pela seca implacável do lugar, o Rio Grande do Sul. Há uma história de amor, nem sempre bem resolvida. O texto é quase um poema que retrata momentos de heroísmo, de dor, de tragédia e alegria. Bem ao estilo de um Zé Mauro de Vasconcelos. O viúvo, de Oswaldo Franca Júnior. Livro de estréia do autor de Jorge, um Brasileiro e O Homem de Macacão. Nele, o autor sutilmente consegue atingir plenamente o seu propósito. Com sua pureza de estilo - seco e sem firulas domínio da linguagem: o autor mantém a tensão dramática da narrativa do início ao fim da obra, e leva o leitor a compartilhar intimamente dos sentimentos de um homem que, ao perder a mulher ainda jovem, luta para adaptar-se à nova vida e à responsabilidade de criar dois filhos ainda pequenos. É difícil não chorar. O coração é um caçador solitário, de Carson McCullers. O livro revela, de certa forma, várias histórias de vida ao mesmo tempo, entrelaçando-se entre si e que ao mesmo tempo, ou no decorrer natural da vida, se desencontram nos bares tristes e sombrios da cidade, nos cafés infestados de bêbados e prostitutas à espera de um novo parceiro, nas calçadas, nos cortiços e miseráveis quartos de pensão de uma pequena cidade racista do sul dos Estados
Unidos. Verifica-se que o livro é um romance de arquitetura simples, mas nem por isso desprovido de engenhosidade. A história revela os desencontros amorosos, seus desempregados, seus conflitos sociais e seus dramas afetivos, a miniatura do mundo tal como Carson o concebe: um lugar onde homens, por diferentes meios, sexo, álcool violência ou paixão política tentam inutilmente romper o círculo de ferro da solidão. Doce quinta-feira, de John Steinbeck. Trata-se de uma novela impregnada de grande dose de calor humano sobre os habitantes de uma comunidade pobre da Califórnia. É uma história simples, como simples também são todos (ou quase) os seus personagens. O que se destaca na obra de Steinbeck é a história que ele narra. Nesse Doce quinta-feira, o autor evita retratar tipos conservadores, cidadãos comuns, concentrandose nos párias alcoólatras, prostitutas, filósofos vencidos pelo destino para definir os laços comuns de amor que unem a humanidade. Cheia de humor, de profundo conhecimento da alma humana e de ternura, esse livro é, digamos, a exaltação de um grande escritor do que é nobre, forte e imortal no homem. Um coração singelo, de Gustave Flaubert. Ao lado de A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, o conto de Flaubert talvez seja uma das coisas mais belas (e perfeitas) que já li. Um coração singelo é um continho considerado um exemplo perfeito do exercício artístico. Arrisco-me a dizer que é, ao lado de A morte de Ivan Ilitch, uma das mais belas e bem construídas histórias já produzidas por um escritor. O continho Flaubert narra a vida obscura de uma pobre moça do campo, Félicité, devota mas mística, dedicada sem excesso e um poço de ternura. Ama sucessivamente um homem, os filhinhos de sua patroa, a senhora Aubain, um sobrinho, um velho de quem ela cuida, e por fim um papagaio; quando o papagaio morre, manda empalhá-lo, e na hora de sua morte, confunde o papagaio com o Espírito Santo Antonio Roberto Fava é jornalista.
IMAGINAÇÃO
IMPECÁVEL “Meu caro Fava, que grata surpresa ter em mãos um exemplar da Espaço da Palavra sob a sua responsabilidade. Belos textos e acabamento impecável. Com que prazer li a matéria sobre alfabetização e saber que você se preocupa com problema tão sério neste país com índices tão elevados de gente que não sabe ler nem escrever. Igual prazer ao ler também as matérias do médico/cronista Plínio Zabeu e da Lya Luft. Eu não sabia que em sua cidade há um professor com múltiplos talentos como Walhter Faé. Que bom saber que Americana publica uma revista preocupada com a cultura e, de certa forma, com o desenvolvimento educacional da cidade. Se puder, envie-me os números posteriores. Sempre acreditei, você sabe, no seu faro de repórter. Quanto ao texto, dispensa comentários. Abraços a todos que a produzem. Carlos Manfredi, professor de literatura, Santos.
“Quero parabenizar a todos que contribuem para a elaboração desta revista. Realmente a leitura proporcionada nesse maravilhoso trabalho nos tráz, não só um enriquecimento cultural, mas também um alimento para a alma e um mergulho na imaginação. Espero que continuem conquistando cada vez mais leitores”. João Paulo B. Souza, estudante, Santa Bárbara d'Oeste, SP. TEIAS DE AFETO “Justa lembrança e respeito para a poetisa de Americana, batalhadora exemplo de cidadania e competência. Grande homenagem a excelente Maria Lucia Nascimento Capozzi. Existem pessoas que passam pela vida e outras ficam para sempre, é o caso da extraordinária Lya Luft, com uma independência de fazer ‘escola’. Surgirão outras? Tenho certeza que sim. Li, gostei, me sinto dentro do poema. Esse espaço literário mexe com o meu coração. Parabéns a todas vocês. Deus está vendo o trabalho dos seus corações”. Dirineu Soares de Barros.
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