GERALDO Um conto de Henrique Arnholdt
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Geraldo nunca encontra nada no pequeno apartamento em que vive. Quem arrumava tudo era Alma, lá na outra casa, a que Geraldo vendeu depois da morte dela, já lá se vão cinco anos, para comprar este apartamento em que não consegue encontrar sequer a si mesmo. Como agora. É quase meia noite. Na cozinha, Geraldo abre armários, revira-os, sobe numa cadeira para investigar os compartimentos mais altos, não encontra pó de café em lugar algum. E os cigarros estão acabando. Geraldo é incapaz de encontrar uma rotina que lhe dê um mínimo de perspectiva ao viver. Quando lecionava, quando Alma vivia, sua vida era uma repetição de atos, de gestos, de palavras. Não precisava antever, predizer, antecipar nada. Tudo fluía de acordo com padrões imutáveis. Agora, a vida é um presente único, em que Geraldo nunca sabe que horas são, que dia do mês ou da semana hoje possa ser. Anda até a janela da sala, aberta para a noite quente. Vê na calçada a luz projetada pelas portas abertas do bar dois andares abaixo, no térreo do prédio. Resolve descer. Percebe que veste apenas uma bermuda surrada. Vai ao quarto. Num gancho atrás da porta, estão penduradas uma calça e uma camiseta. Enfia-as. Geraldo jamais se apresentaria em público de bermudas. Tateia o bolso traseiro da calça. Encontra-o vazio. Olha em torno, como que perdido. Ali está a carteira, sobre o criado mudo. Apanha a carteira e a guarda no bolso. Vai à porta de entrada. A chave não está na fechadura. A porta, trancada. Revira a sala, procura sob almofadas, em gavetas, livros emborcados uns sobre os outros, e acaba por encontrar o molho de chaves num vão do sofá. Há quantos dias não sai? Sai, tranca a porta. A luz mortiça não esconde a pintura descascada do corredor, os cantos encardidos e mofados, as baratas em expedições forrageiras. O silêncio é completo. Geraldo anda até a porta do elevador, aciona o botão. No alto do edifício, os motores rangem, um ar morno e fétido escapa das pequenas aberturas 2
gradeadas do elevador que chega com um tranco. Geraldo entra, a respiração curta, uma mão no bolso, a outra sacudindo o molho de chaves, os olhos parados na luz do indicador de andar. O elevador para com um solavanco. O saguão do prédio está às escuras, alguma pouca luz entrando pela grade trabalhada da porta. Geraldo tateia no molho de chaves, encontra a da porta, abre a pesada estrutura de metal retorcido e vidro e sai para a rua. Aqui o calor é ainda maior. Relâmpagos passeiam silenciosos pelo horizonte negro. A rua está deserta. Nos prédios ao longo dela, poucas luzes. Geraldo tranca a porta e caminha em direção do facho de luz amarela que se desenha em grossas pinceladas na calçada. Junto à sarjeta, sacos de lixo esperam pacientes pela sua coleta. Do bar emana, além da luz, o som de uma música americana. Geraldo entra. É um bar comum, desses com um balcão em L, uns bancos altos ao longo dele, o caixa no outro canto do balcão, com escaninhos acrílicos de cigarros, chocolates, gomas de mascar… Armandinho, o sócio a quem incumbe o turno da noite, está ali contando a féria. Levanta a cabeça e lança um sorriso na direção de Geraldo, o dente de ouro brilhando. - Professor, isso são horas? - Meu café acabou. Você ainda tem café aí? Armandinho volta os olhos para a urna de café, com uma cara de dúvida. - Se tiver, deve estar horrível. Tome um conhaque, não serve? Geraldo hesita. Contempla as garrafas enfileiradas na prateleira. - Então bota um conhaque aí. De vinho. Nada de alcatrão ou gengibre. Me dá um maço de cigarros, também. Armandinho fecha a gaveta do caixa, anda até a pia, pega um copo do escorredor e serve uma dose de conhaque espanhol que põe diante de Geraldo, enquanto lhe mostra o rótulo da garrafa. - Perdeu o sono, Professor? 3
- Eu durmo pouco, Armandinho. Como pouco. Tudo que faço é pouco. Armandinho espia o rosto amarfanhado de Geraldo. - Na nossa idade, Professor, tudo é pouco. Até o tempo que nos resta é pouco. Geraldo bebe um gole do conhaque, faz uma careta. Armandinho volta ao caixa, examina a prateleira de cigarros. - Sua marca acabou. - Tem algum mentolado? - Tem. - Então me dê. Armandinho traz o maço para Geraldo, que o abre e leva um cigarro à boca. O isqueiro de Armandinho já está aceso e um cinzeiro a seu alcance. - Mais um prego pro meu caixão, – diz Geraldo. Geraldo esvazia o copo. Armandinho torna a enchê-lo sem consultar o freguês. - Já escolheu seu candidato, Professor? - E tem escolha? Pra mim é tudo igual. - O senhor devia ter vindo mais cedo. O pessoal da repartição estava todo aqui. E adivinha o assunto? Política, é claro. - Eu não discuto política, Armandinho. Aliás, o que se discute hoje em dia nem política é. Política sem ideologia… Quer saber mais? Os anarquistas é que estão certos: votar é abrir mão do próprio poder. - Como assim? - Passar a responsabilidade adiante. Permitir que alguém mande em você, dite as suas leis. - Entendi.
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- É verdade, a gente abriu mão de tudo. Deixamos que outros… Gente que a gente nem conhece… Decidam se vamos ter guerra ou paz, se vamos ter raiva de preto ou de alemão… Geraldo bate com o copo vazio no balcão, Armandinho apressa-se em enchê-lo. - O negócio é retomar o próprio poder. A começar pela gente mesmo, nosso poder sobre nós mesmos, o que nos permitimos fazer e o que nos proibimos. Eu me permito fumar. Eu ajudo a sustentar a indústria do tabaco. Eu sou candidato a um enfisema ou coisa pior. - Deus nos livre, Professor! Geraldo dá uma profunda tragada no mentolado. O ar gelado que enche seus pulmões realça a zonzeira que começa a sentir com a terceira dose de conhaque. - Tenho que mudar minha vida, - diz baixiniho. - Do jeito que vai, daqui uns dias eu viro fantasma. Como que cuspidos pela noite, dois jovens encapuzados entram. Ambos exibem armas de fogo. Um é alto; dois olhos pretos faíscam pela abertura da máscara. O outro é baixo, igualmente mascarado, olhos arregalados ricocheteando pelo bar. - Todo mundo parado! Quero ver as mãos, quero ver as mãos! – diz o grandalhão. As mãos de Geraldo estão sobre o bar, uma delas envolvendo o copo de conhaque, a outra segurando o cigarro. São as mãos de Armandinho que eles querem ver e este as ergue para o alto, abanando. - Passa a grana aí, tio. Rápido, rápido! – diz o baixote a Armandinho, brandindo o revólver. - Passa a grana aí… tio, – diz o grandalhão, parando de um salto em frente de Geraldo, que está paralisado de susto. Ao receber o olhar do rapaz à sua frente, percebe uma vacilação em sua postura, uma hesitação antes da última palavra, um refocar dos olhos, um como que reconhecimento. 5
- Tira a carteira do bolso, bota ela aqui. – O grandalhão bate com a mão espalmada sobre o balcão. Geraldo obedece lentamente enquanto examina o rapaz à sua frente. A voz lhe é familiar. Há algo também na postura, as pernas apartadas, o torso avançado, as mão enormes à frente… A quadra de basquete da escola. Sim. Há uns seis anos… Mas o que definitivamente o convence é a voz. - Naldo! Você é o Naldo! - Puta que pariu, Naldo, o velho te reconheceu! – O baixote pira. – Como é que esse velho te conhece, Naldo? - Cala a boca, Baixinho? – diz Naldo sem tirar os olhos de Geraldo. - Como vai Dona Ivete, Naldo? – pergunta Geraldo. Naldo arranca a máscara de esqui da cabeça e fuzila Geraldo com olhos e dentes, muito brancos na pele escura. - Está morta, Professor. Baixinho está frenético. – Puta merda, Naldo, agora a gente vai ter que apagar os dois! - Fica na tua, Baixinho. Pega o dinheiro do otário aí. Armandinho está com a féria da noite na mão direita, imóvel. Baixinho arranca as notas com violência, apontando o revólver para a cara do outro. Naldo retorna toda sua atenção para Geraldo. - O senhor deu muito azar, Professor. Podia até ter me reconhecido e ficado calado. Mas falou. Aliás, o senhor sempre falou mais que a boca. Naldo pega a carteira de Geraldo de sobre o balcão. Abre-a, retira o dinheiro e enfia-o no bolso. Examina os documentos em seus envelopinhos translúcidos. - Aposentado… Viúvo… Dona Alma também morreu? Geraldo faz que sim com a cabeça e tenta retomar a carteira. Naldo resiste, mas logo cede. Geraldo devolve a carteira ao bolso. 6
- Muito azar, Professor. Porque agora vou ter que lhe matar. E ao seu amigo ali. Baixinho começa a pular no mesmo lugar. – É isso aí, Naldo. Vamos apagar os dois. Geraldo sente que o sangue lhe sobe à cabeça, o coração dispara, as mãos se crispam. Culmina numa explosão de ira que o faz erguer-se do banco e encarar Naldo. - Pois então mata, Naldo. Não há de ser a primeira vez que você mata alguém, não é? Mata. Essa é a solução para todos os problemas do mundo. Mata quem te aborrece, quem é diferente de você, quem tem outra cor de pele, quem é mais rico ou mais pobre que você, quem está no lugar errado na hora errada. Naldo se deixa ficar interdito diante do ímpeto de seu antigo professor. É como se estivesse outra vez na decrépita sala de aula suburbana. - De que serviu o que te ensinei? Fracassei nisso também? - O que o senhor me ensinou não me serviu de nada, Professor. Um pouco de História, acho que isso me ajudou. Mas meu mundo é outro, Professor. Ali a história é outra. Baixinho está cada vez mais fissurado e não se contém. - Porra, Naldo, vai ficar batendo papo com o otário? Apaga ele aí, meu! - Fica frio, Baixinho. Tô no controle. - Que controle, Naldo? – grita Geraldo. – No controle de três pessoas? – Lança um olhar pelo bar. – De um território de oitenta metros quadrados? E teu controle depende dessa arma que está na tua mão. Você tinha mais controle numa cancha de basquete. Com uma bola. E vencer não significava matar o antagonista. - Que papo é esse, cara? – berra Baixinho. – Olha a hora, vamos vazar. Naldo olha para Armandinho. – Baixa as portas aí, malandro. Vai, agora! 7
Armandinho vacila. Quer parecer que o comando não lhe chega aos músculos. - Baixa as portas, tio! – Naldo sublinha a ordem apontando a pistola para Armandinho, que sai de seu transe e corre para baixar com estrépito as portas de ferro do bar. Baixinho explode. - Qual é, Naldo, pirou? Baixar as portas? E daí que ele foi teu professor? Não quer apagar ele, deixa que eu apago. Naldo ignora o comparsa e se dirige a Armandinho. - Pro seu lugar, tio. Armandinho volta para trás do balcão. Naldo devolve sua atenção a Geraldo. - Basquete, né Professor? O esporte é a saída pra negrada. Sei como é. – Sacode a arma. – Mas esta é a saída que eu escolhi, Professor. Na verdade, essa é a saída que me escolheu, a mim. Depois que minha mãe morreu, isso foi o que sobrou. Mas não estou me queixando, não. É uma vida que pra mim faz sentido. - Que sentido pode fazer uma vida como a sua, Naldo, com a polícia atrás de você… - A polícia estaria atrás de mim mesmo que eu fosse pedreiro, ou jornaleiro. – Naldo solta um riso amargo. – Ou jogador de basquete, Professor… O senhor não lê os jornais? Não assiste televisão? Não sabe quanto trabalhador inocente morre todos os dias nas mãos da polícia? Geraldo sacode a cabeça lentamente. Naldo prossegue. - Se bem me lembro, era o senhor mesmo quem dizia que a gente tem que tomar o próprio destino nas mãos, determinar a própria vida, não ser dependente do estado, da família, dos outros. Não é? Pois foi o que eu fiz, Professor. – Ergue a arma e a aponta para Geraldo. – Olha aqui meu destino. Baixinho acompanha estupefato o discurso de Naldo, o revólver esquecido pendendo da mão. 8
- Agora é esse teu destino, mesmo, Naldo! – berra Geraldo. – Uma bala de 38 nas costas. Da polícia, dos teus inimigos, até mesmo dos teus amigos, desse Baixinho aí. Quem com ferro fere, tem que estar disposto a ser ferido também. Armandinho acompanha imóvel o diálogo. Vê que Naldo está completamente focado em Geraldo. Olha para Baixinho, vê que esse está embasbacado com a atitude de Naldo. Lentamente, descruza os braços. - Tua faixa etária é onde ocorre o maior número de mortes por arma de fogo, – continua Geraldo. Naldo dá uma gargalhada. - É porque nós somos muitos, Professor. Como é? Lei de seleção natural, né? Só sobram os melhores. E eu vou subir, Professor. Não vou ser sempre isso aqui que o senhor tá vendo. Já estou negociando com os chefes um ponto pra mim. Armandinho estende a mão e tira um revólver debaixo do balcão. O gesto que faz ao erguê-lo é imediatamente percebido por Naldo que, instintivamente, levanta o seu e dispara. A bala atinge Armandinho na testa. O corpo cai como um saco vazio sobre o balcão, o revólver escapando da mão frouxa. Lentamente, a gravidade puxa o que restou de Armandinho para o chão. Baixinho levanta sua arma e aponta para Geraldo. - Baixa o canhão aí, Baixinho, – diz Naldo. – Olha aqui Professor, eu não vou lhe matar. Nem vou deixar que esse psicopata aí mate o senhor. E isso só por que minha mãe gostava do senhor. Admirava o senhor. Se eu for preso, vou saber que foi o senhor que me denunciou. Quando eu sair – e isso não vai demorar – eu volto pra matar o senhor. Pode ter certeza. Baixinho ergue a porta de ferro e sai. Naldo o segue, lançando um olhar para Geraldo. A noite o engole. Geraldo vai onde está o revólver de Armandinho sobre o balcão. Pega a arma e caminha até a porta. Naldo e Baixinho se afastam a passos rápidos pela rua. Geraldo levanta o revólver de Armandinho. Tem as costas de Naldo claramente alinhadas com a 9
alça de mira. Respira fundo. O dedo se retesa no gatilho. É justo vingar a morte estúpida de Armandinho. É justo livrar o mundo de um assassino impiedoso como Naldo. Mas seu braço cai ao longo do corpo, como se pelo próprio peso da arma. Um relâmpago faz da noite dia e a chuva desaba com toda força. Geraldo volta para dentro do bar, põe o revólver sobre o balcão. Debruça-se e contempla o cadáver de Armandinho, do outro lado. Vai para o telefone e chama a polícia.
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