No riviera

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NO RIVIERA Henrique Arnholdt

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Com uma arquitetura que só voltaria à moda nos anos 1990, o Bar Riviera se encontrava, como todo o bar que se preza, numa encruzilhada: Consolação e Paulista. Mas então, nos anos de chumbo, ele passava um ar antiquado. Contudo, ao se entrar no Riviera, o que menos se percebia era a arquitetura. O que saltava aos olhos, após os ouvidos terem sido assaltados pelo burburinho, era a extraordinária variedade de seres que se acotovelavam por todos os espaços livres, entre as mesas, contra as paredes, no balcão, na escada do mezanino, debruçados na amurada do mezanino, parecia que se tinha entrado num desses bares de filme de ficção científica em que seres de outros planetas se entregavam aos prazeres humanos enchendo adequadamente a cara e paquerando. Havia música? Impossível dizer, pois dezenas de conversas (centenas?) se entrecruzavam no ar enfumaçado (não havia apartheid de fumantes então). E que conversas eram essas? Ora, conversas sobre a vida, weltanshaaung, política, arte, literatura, casos de amor, crimes, fofocas. A energia era tal que nos esquecíamos do que estava solto lá fora, a matilha separando e devorando os mais fracos ou os mais desavisados dos inocentes que éramos todos então. Renan foi um desses inocentes que a matilha pegou. Renan era um garoto de seus dezoito ou dezenove anos. O Exército dispensara seus serviços (excesso de contingente) e Renan era um perpétuo vestibulando. Mas cada ano prestava para uma carreira diferente, pois as experiências do ano anterior tinham orientado seus muitos talentos noutra direção. Um porra louca, biruta de aeroporto enfim. Mas talentoso. Tinha belíssima voz e “cantava por favor, cantava por vintém”. Vandré era o carro chefe de seu repertório. Desenhava como Michelangelo (nunca soube que pintasse), tocava piano (a mãe o forçara a aprender na infância). Fazia contas de cabeça. Falava inglês e francês, lia alemão. Mas o que ele queria mesmo era ser revolucionário. 2


Che Guevara, El Doctor, era modelo de muita gente. As lojas de sobra de guerra faturavam alto com japonas verde-oliva e botinas militares. Renan completava o guarda-roupa (ou fantasia) com uma boina preta e uns fiapos de barba alourada. Os amigos convenceram-no a não aplicar o broche da estrela vermelha. Seria muita provocação. Era um sucesso com as meninas. Uma piada para os meninos. Lia muito. Leu O Capital, Origens da Família, da Propriedade Privada e do Estado, o Anti-Düring, o Manifesto, Gramsci, Josué de Castro e qualquer panfleto que a esquerda conseguisse fazer circular. Carregava tudo num grande embornal (verde-oliva, claro). Discorria exaustivamente sobre a seca, a fome e a semi-escravidão dos nordestinos, É claro que os verdadeiros revolucionários (que os havia entre os frequentadores do Riviera) sequer pensavam em cooptá-lo para um VAR-Palmares, digamos. O menino era de uma obviedade atroz. Como tudo no Riviera, as peculiaridades de Renan foram se diluindo no mar de idiossincrasias que compunha a freguesia do bar. Aquela região do centro de São Paulo, então, contava com um certo número de bares pelos quais essa freguesia circulava durante a noite. O rebanho seguia sempre o mesmo roteiro: desce-se a Consolação rumo à Praça da República; o primeiro bar é o chamado “das putas”, porque é lá que as meninas que fazem ponto ao longo da Consolação descansam as pernas e limpam o gosto dos clientes com uma cerveja gelada; depois, passa-se o cemitério, diante do qual alguns se benzem, outros experimentam a súbita noção da própria mortalidade, enquanto a maioria segue perturbando o silêncio dos mortos com sua algazarra; alcança-se a esquina com a Maria Antônia, dobra-se à esquerda e lá, na outra esquina, estão as acolhedoras portas iluminadas do Bar do Zé; na outra esquina, o Ponto 4. Uma geografia de bares, cada qual com sua ecologia própria, mas esses viajantes siderais se adaptam a todas, espalhando-se pelas calçadas, encostando-se nos carros estacionados, segurando postes, encarapitados nos bancos altos 3


que trazem para a rua. Na noite de 6 de setembro de 1975, um revolucionário (que permanecerá sem nome nesta estória) trazia consigo um pistola Colt 45, de uso exclusivo das Forças Armadas. O que ele fazia com uma arma de grosso calibre na véspera do Dia da Pátria? É outra estória. Mas no que aquela estória cruza com esta, o revolucionário estava em pânico, porque estava certo de estar sendo seguido por agentes do DOPS. Tinha que se livrar da arma. Entrou, fez o reconhecimento do ambiente. Nenhum companheiro de célula presente. Ninguém a quem pudesse confiar a pistola. Dirigiu-se ao bar, pediu um chopp ao Renato, bebeu-o devagar na tentativa de se acalmar. Na mesa em frente a ele estavam Renan e duas garotas que escutavam embevecidas o discurso do wannabe revolucionário. O grande alforge verde estava pendurado na cadeira de Renan, entreaberto. O guerrilheiro urbano fingiu deixar cair um maço de cigarros, abaixou-se, depositou a pistola na bolsa e no mesmo gesto recolheu a carteira. Acendeu o cigarro, esgotou o chope e saiu. Do Riviera e desta estória. Um grupo composto principalmente por poetas, músicos e hangers on começou a se agitar para iniciar a via-crucis de todas as noites. Renan e as garotas se juntaram a eles. Eu também. Saímos. O ar puro e úmido da noite nos reenergizou. O assunto que discutíamos no bar (de cujo teor não tenho a mínima lembrança) continuou fluindo entre os líderes intelectuais do grupo (um professor e um jornalista). Paramos no Bar das Putas, todos beberam cerveja, alguns comeram coxinhas ou coisa que o valha. Revigorados, voltamos para a Consolação e iniciamos a segunda perna do trajeto. Diante do cemitério, uma Veraneio preta freiou queimando borracha ao nosso lado, na contramão. A avenida estava deserta de carros e de gente. Apenas nosso grupo de umas oito pessoas e os quatro homens que desceram da camionete ocupávamos aquela paisagem desolada. 4


A maioria de nós já tinha passado por abordagens desse tipo e conhecíamos a rotina. De mãos para o alto, nos encostamos no muro do cemitério. Os quatro homens, de revólveres na mão, se posicionaram de forma a nos cobrir a todos, o que não era difícil: dois de nós para cada um deles. Dois intelectuais subnutridos, fumantes, embriagados, contra um gorila treinado para matar com as mãos. Game over. Dois deles guardaram as armas nos coldres e nos revistaram cuidadosamente. Um dos intelectuais tinha um baseado no bolso da camisa. O policial cheirou o cigarro e deu uma risada ao mesmo tempo em que dava um tapa na cabeça do pobre diabo. Maconheiro! Vagabundo! Inútil! À medida que adjetivava o rapaz, a manopla estalava na cara do infeliz, que começou a sangrar pelo nariz e pelo ouvido esquerdo. As duas meninas começaram a gritar. O outro policial que nos revistava ergueu a mão ameaçando um tabefe e mandou que se calassem. Entre soluços e fungadas, as duas tentaram se calar. Tremiam. Renan, com seu uniforme de combatente, focou a atenção dos dois agentes. E o que temos aqui, perguntou o espancador. O Fidel? Meteu a mão no peito de Renan e o empurrou contra o muro. Esvazia a bolsa aqui no chão, comandou. Renan inverteu a bolsa e o primeiro objeto que caiu foi o mais pesado, a Colt 45. O imbecil do guerrilheiro urbano, em seu afã de se livrar da arma, não havia engajado a segurança. A pistola bateu na calçada e disparou. Um dos agentes que haviam ficado junto ao meio fio puxou o gatilho numa reação involuntária mas firmemente condicionada. A bala acertou Renan no peito e o rapaz caiu como um saco vazio. O espancador berrou um palavrão, a arma já em riste. O atirador olhou para o lado, ergueu os ombros como que constrangido e guardou a arma. As meninas se jogaram sobre Renan, aos prantos. Mas Renan estava morto, talvez como tivesse desejado na confusão de sua rica mente. Vamos dar o fora daqui, disse o espancador, apanhando a Colt do chão e engajando a segurança. Os quatro se enfiaram na Veraneio e 5


saíram cantando pneus. A camionete deu um giro de cento e oitenta graus no asfalto úmido e subiu a Consolação em disparada. Ficamos ali atônitos. Teriam se passado cinco minutos desde que a camionete havia freado a nosso lado. E o mundo era outro. Não nos entreolhamos, os cinco homens que sobramos. Sem dizer palavra, cada um foi se afastando do cadáver estendido na calçada, com as carpideiras sobre ele. Eram os anos de chumbo. Ninguém queria desaparecer numa delegacia. A hubris de Renan, afinal, havia desabado sobre ele. Trágico, mas clássico. E com essas racionalizações, perdemo-nos na noite.

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