OOCO
patrocínio
apoio
realização
NELSON FELIX
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NELSON FELIX NA ESTAÇÃO PINACOTECA TADEU CHIARELLI
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ENSAIO FOTOGRÁFICO DA EXPOSIÇÃO OOCO NELSON FELIX NÃO MORA MAIS AQUI RODRIGO NAVES
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EMARANHADO: A CRONOLOGIA DE NELSON FELIX FRANCESCO PERROTTA-BOSCH
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LISTA DE OBRAS DA EXPOSIÇÃO
NELSON FELIX NA ESTAÇÃO PINACOTECA
A Pinacoteca do Estado de São Paulo vem desenvolvendo nos últimos anos um programa específico de exposições que busca sublinhar a importância e a singularidade de alguns artistas surgidos na cena brasileira a partir dos anos 1970. Em suas galerias (sobretudo aqui na Estação) foram exibidas obras de artistas que, por meio de suas produções ampliaram e ampliam os conceitos já estabelecidos de pintura, escultura, fotografia etc., colaborando para que a arte produzida no Brasil ganhe a visibilidade merecida. Leda Catunda, Cildo Meireles, Jac Leirner e Miguel Rio Branco, entre vários outros, tiveram aqui realizadas mostras antológicas de suas produções em estágio de amadurecimento fecundo. É neste cenário que se insere a mostra OOCO, de Nelson Felix. Artista carioca nascido em 1954, Felix começa a atuar profissionalmente a partir dos anos 1980 e, desde aquela época, sua produção parece ter como foco o fim dos limites entre as modalidades artísticas tradicionais. Melhor dizendo, Nelson Felix inicia seu percurso já num estágio de superação daquilo que o período moderno um dia instituiu como “especificidades de linguagem”, ou seja: se durante a modernidade o plano era o limite máximo da pintura e o volume e a massa aqueles da escultura, na produção do artista há um contínuo trânsito entre essas fronteiras e também entre imagem e matéria. Em Malha (doada à Pinacoteca por meio do programa de Patronos da Arte Contemporânea, 2014) por exemplo, a dimensão tradicionalmente escultórica do mármore parece subsumida ao plano da pintura e/ou do desenho para, ao mesmo tempo, instalar-se como escultura nem um pouco plena, pois depende de uma trave de ferro para sustentar no ar um de seus módulos. Caminhar em volta dessa peça ou atravessá-la por baixo da trave que a une ao teto da sala de exibição é vivenciar ao mesmo tempo imagem e forma, tempo e espaço, uma experiência raramente alcançada, mesmo em outras exposições de arte contemporânea. Neste ano em que a Pinacoteca comemora seu 110º. aniversário, oferecer ao público esta antologia de obras de Felix é apostar na pertinência desse programa de exposições de arte brasileira contemporânea. A Pinacoteca agradece ao artista e a Rodrigo Naves, curador da mostra, assim como a Taisa Palhares, por sua dedicação a esse projeto. A Instituição gostaria de agradecer igualmente ao Deutsch Bank, cujo apoio foi fundamental para o pleno sucesso da mostra. TADEU CHIARELLI DIRETOR TÉCNICO
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nelson felix não mora mais aqui rodrigo naves para José Artur Giannotti, Luiz Felipe de Alencastro, Roberto Schwarz e Ronaldo Brito
Há no trabalho de Nelson Felix uma espiritualização laica do mundo: nem um materialismo pedestre (em que o mundo é idêntico a si mesmo), nem um espiritualismo angelical (em que a transcendência não instila leveza no mundo). Para encontrar, o artista precisou perder inúmeras vezes. Como diz a sabedoria zen (e Picasso repetiu-a astutamente): “Não procure, encontre”. Aqui são narradas e analisadas suas peripécias. Nelson Felix nunca se contentou com a objetividade impositiva da realidade. Ao contrário da aspiração de parcela considerável da arte contemporânea — a arte povera e o minimalismo, por exemplo,1 movimentos importantes na formação do artista —, ele sempre tentou conferir presença esquiva aos materiais com que trabalhou. Grafite, uma escultura de 1988-1989, por exemplo, é formada por duas hastes de grafite (um mineral) com forte aspecto orgânico. O volume
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Como escreve Germano Celant, o mais importante crítico ligado à arte povera, essa vertente artística busca “quase uma redescoberta da tautologia estética: o mar é água, um quarto é um perímetro de ar, algodão é algodão [...] o ângulo é a convergência de três coordenadas [...] a vida é uma série de ações”. CELANT, Germano. Arte povera. Turim: Umberto Allemandi & C., 1989, p. 21. Numa passagem esclarecedora sobre questões fundamentais do minimalismo, Donald Judd escreve: “Uma forma, um volume, uma cor, uma superfície existem em si. Eles não deveriam ser dissimulados obtendo existência apenas como partes de um todo sensivelmente diferente. As formas e os materiais não deveriam ser alterados pelo contexto. Que se apresente uma ou quatro caixas alinhadas, que cada objeto seja tomado isoladamente ou que ele participe de uma série desse tipo — isso diz respeito a uma dis-
ESTUDO PARA CAMIRI, 2003
posição, a um simples arranjo; dificilmente diz respeito à ordem”. JUDD, Donald. Donald Judd: Écrits, 1963-1990. Paris: Daniel Lelong éditeur, 1991, p. 27.
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dos bastões tem uma constituição irregular e curvilínea, lembrando uma jiboia a digerir sua suculenta refeição. A aparência externa do grafite prensado, lisa e homogênea, remete a um organismo vivo, com uma interioridade indiscutível, graças a um mimetismo arguto. As muitas línguas esculpidas ao longo de sua trajetória, tão próximas da serialidade minimalista, serpenteavam pelo espaço, movidas por energias diversas, dependendo do contexto metafórico em que Nelson as inseria. Podiam ser cabelos, cobras ou uma espécie de força ondulante, sustentada por dezenas de pequenas esculturas do Buda, pensador admirado pelo artista. O próprio corpo humano se infiltrava nos materiais em que era moldado (o ferro, por exemplo), tornando-os menos severos. Esculpidas em mármore, suas partes — ou os vazios que as compõem — partilhavam uma dimensão clássica com que Nelson Felix dialoga2 e uma estranheza advinda do fato de não sabermos ao certo diante do quê nos encontramos. Desde muito cedo (faço aqui algumas pontuações mais por motivos didáticos do que por atenção à cronologia dos trabalhos), esse esforço para problematizar realidades idênticas a si mesmas levou o artista a valorizar o contexto em que inseria suas obras. Ou seja, procurava estabelecer relações que ampliassem o alcance das obras isoladas. Grafite (a mesma escultura mencionada acima) já deixava claro o interesse de Nelson Felix por realidades que fossem além dos territórios que nos são familiares: galerias, cidades, desertos ou florestas. Uma antiga insatisfação do artista com o que chamamos “composição” — a disposição de uma obra no espaço segundo certas convenções — o conduziu a sobrepor as duas grandes hastes de grafite que formavam a obra, de modo a criar um ângulo de 23,30 graus, a inclinação do eixo da Terra em relação ao eixo do Sol. Uma das hastes é colocada paralelamente ao eixo do Sol. Com isso, sua posição em relação aos limites do espaço expositivo é desconsiderada. Em outros termos, haveria sempre um elemento deslocado ou descomposto em relação a essas duas grandes balizas imaginárias (os eixos). Por certo, nossos sentidos não poderiam perceber todo o alcance dessa decisão, que procurava colocar a escultura em contato com uma dimensão literalmente planetária. Informações exteriores à dimensão sensível da escultura precisavam entrar no jogo para que a obra adquirisse um significado mais amplo.
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Convivo com Nelson Felix há mais de vinte anos. Muitas das opiniões aqui mencionadas surgiram nas conversas que tivemos ao longo desse convívio, e muitas delas também aparecem em entrevistas e depoimentos.
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Sua intervenção na terceira edição do Arte/Cidade, em 1997, também apontava uma preocupação semelhante. No Moinho da Luz, uma fábrica desativada em região bastante degradada da cidade de São Paulo, Nelson serrou três quadrados na laje de um dos andares do prédio. Sustentadas por cabos de aço fortemente tensionados, as partes secionadas pendiam um pouco acima da laje do piso inferior. Mais que os cortes na laje, a ação da gravidade evidenciada por essa intervenção sem dúvida punha o edifício em contato direto com todo o jogo de forças — ele também planetário — que preside essa lei física. Porém, outra vez seria necessária uma série de mediações conceituais para se estabelecerem os nexos entre a tensão dos pedaços de laje sustentados pelos cabos e sua relação com a massa e a distância entre os planetas, que determinam a lei da gravidade. Acredito que o Grande Budha, 1985, possibilitou ao artista imaginar uma estratégia que colocasse essa necessidade de mediações para a fruição plena das obras num novo patamar. Com o interesse de trabalhar uma escala ampla e meio indefinida, Nelson faz uso da floresta como se ela fosse um material escultórico. Para isso, escolhe um mogno e fixa seis garras de latão ao redor da árvore centenária, numa área da floresta amazônica localizada no Acre. Com a passagem do tempo, seria possível perceber um conjunto de fenômenos amplos e abrangentes. À medida que a árvore crescesse, as garras penetrariam o tronco, revelando a potência da natureza. A violência implicada na intervenção tinha um sentido paradoxal: em vez de dominar a árvore, revelaria sua vitalidade. No meio da enorme floresta, aquela árvore específica adquiria um aspecto que a tornava ainda mais singular. O estabelecimento da posição do Grande Budha teve uma origem consideravelmente arbitrária. Alguns acontecimentos fortuitos, além de uma maior possibilidade de realização de trabalhos dispendiosos, fizeram Nelson Felix dar outro passo em relação a suas intuições. Em 1997, o Itaú Cultural convidou-o para participar de um projeto chamado Fronteiras. A proposta, que envolvia outros artistas, visava à realização de trabalhos de arte em regiões limítrofes, não necessariamente geográficas. O convite levou Nelson a escolher uma localidade perto de Uruguaiana, quase na fronteira entre Brasil e Argentina. Ali ele realizou Mesa, 1997-1999, um trabalho com aspectos semelhantes ao Grande Budha. Uma chapa de aço de 51 metros de extensão e quarenta toneladas foi apoiada sobre tocos de eucalipto. Em cada um dos lados da placa foram plantadas onze mudas de figueira-do-mato, uma árvore imponente e longeva. Depois que os apoios de eucalipto apodrecerem — e simultaneamente as mudas crescerem —, os troncos das árvores irão prensar a mesa de aço, envolvendo e deformando aquele grande e regular
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objeto de metal e transferindo um pouco de potência orgânica a uma peça de origem industrial. Quase por curiosidade — mas, digamos, seguindo uma inclinação para desdobrar suas experiências de forma sistemática —, Nelson uniu com uma reta os pontos em que se situavam Grande Budha e Mesa. Dois biomas distintos — a floresta amazônica e os pampas — abrigavam as obras, embora ambos se caracterizassem por “vegetações” diversas uma da outra. O artista então encontrou o meio dessa linha e fez passar um traço perpendicular sobre ela. Dirigindo-se para o leste, a uma distância semelhante àquela que separava o ponto dos dois outros trabalhos (ao sul e ao norte), Nelson Felix encontra um habitat oposto: o deserto do Atacama, no Chile. No ponto determinado, são produzidas seis fotos em que a velocidade da máquina foi definida pelo batimento cardíaco do artista. A máquina foi apontada para as direções em que se encontravam os outros trabalhos, para o zênite e para o nadir. Posteriormente, ele buscou a direção oposta, até encontrar o elemento que falta ao deserto: a água. E no litoral do Ceará ele abandona uma esfera de mármore, cravejada de pinos de ferro. Ao longo de muitos anos, a oxidação do ferro levará a uma dilatação crescente do metal e, consequentemente, à destruição da esfera. As ações realizadas no deserto e no litoral receberam o nome de Vazio coração, 1999-2004. E a interseção das duas linhas que cortavam o continente de norte a sul e de leste a oeste tornou-se Cruz na América, 1984-2004, o primeiro conjunto de obras que Nelson Felix agrupou sob um nome comum. Um tempo mais ou menos longo permeava todos os trabalhos que formavam a cruz. Como garrafas de náufrago, levavam mensagens que talvez fossem lidas, talvez não. Todas elas, porém, reforçavam aquela busca de ruptura com realidades dadas que sempre moveu o artista, pois falavam de um método para induzir a perda de controle sobre as coisas. Tempo e espaço são noções complexas que podem ter suas ambiguidades reduzidas por meio do estabelecimento de convenções amplamente reconhecidas, que afastam da mensuração de ambos as dimensões subjetivas. Nelson Felix tenta encontrar um caminho distante tanto da objetividade do relógio e da fita métrica quanto da experiência estritamente subjetiva de uma espera angustiante ou da distância que se interpõe entre um sedento e uma fonte de água. Cruz na América constitui-se pelo entrecruzamento de tempos particulares e heterogêneos. A integridade da esfera de mármore atirada ao mar difere em muito do crescimento do tronco de um mogno ou das imagens proporcionadas por um obturador regulado pelo batimento de um coração solitário. Em todas elas, porém, a dimensão impessoal da marcação do tempo é substituída por um processo imaginativo que cada uma das relações (esfera/mar; gar-
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ras/floresta; mesa/figueiras; coração/fotos) desencadeia nos indivíduos. A passagem do plano conceitual para o da imaginação torna o vínculo entre observador e obra mais dependente dos sentidos e da experiência. O processo de oxidação do ferro — que, expandindo os cravos, fará a esfera destroçar — tem uma concretude totalmente distinta daquilo que a oração “três séculos de acontecimentos desastrosos” denota. A cadeia de acontecimentos que envolve a água salgada, os pinos de ferro e a esfera de mármore, por ser mais indeterminada que a relação gramatical entre os cinco vocábulos, estimula a imaginação de uma maneira diversa. Quanto mais claras as relações, menor a possibilidade de fazê-las afetar a imaginação. O choque entre duas bolas de bilhar aguça menos a imaginação do que um “boa-tarde”. O contato entre o mármore, o ferro e a água salgada possibilita que a imaginação literalmente viaje, enquanto simula as ações recíprocas entre os três elementos. A progressiva oxidação dos pinos de ferro desfará a forma regular deles, levando-os a expandir-se lentamente, até que, num dado momento, a esfera de mármore, que as marés e as correntes marítimas arrastaram a seu bel-prazer, tenha sua resistência vencida, e seus fragmentos passarão a conviver com os demais seres marinhos, podendo, quem sabe, juntar-se aos incontáveis grãos de areia de uma praia remota qualquer. Esse passeio da imaginação que se move apoiada em balizas frágeis, como pequenos saguis vagando pelos cipós de uma floresta, tem traços comuns a várias práticas de meditação, por mais difícil que seja a sua caracterização. Essas práticas meditativas oscilam entre concentração e contemplação, entre a capacidade de manter a mente numa direção precisa e seu esvaziamento em busca de uma contemplação prazerosa ou gozosa, como a nomeiam os religiosos. Ainda que a série Cruz na América seja pontuada apenas por quatro trabalhos, o observador é levado a percorrer com a imaginação (desde que a obra o atraia) todos os longos e irregulares caminhos que definem a obra. Os quatro pontos que imantam a cruz só conseguem fazê-lo por serem eles mesmos trabalhos que se recusam a uma objetividade estanque, movendo-se sempre para além de si mesmos, como a imaginação. Nelson Felix tem uma habilidade gráfica incomum nos dias de hoje, uma época em que o desenho praticamente deixou de ser uma mediação para a realização de obras de arte, sejam elas pinturas, esculturas ou instalações. A primeira individual de Nelson, na galeria Jean Boghici, no Rio de Janeiro, em 1980, expunha aquarelas de uma precisão notável do ponto de vista técnico e figurativo. Em muitas outras situações, ele lançou mão dessa habilidade para simular possíveis efeitos de alguns projetos (as figueiras deformando a longa chapa de ferro de Mesa, por exemplo). Em 2013, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, foram
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expostos mais de cem desenhos que o artista realizou durante o processo de desenvolvimento das séries 4 cantos, 2008, e Verso, 2013. Os desenhos mostrados na ocasião tinham uma aparência e uma natureza totalmente diversas daqueles com que Nelson iniciou sua trajetória. À maneira dos processos meditativos, esses desenhos conduziam a um envolvimento crescente com as questões que o ocupavam. Em vez de serem esboços tentativos de uma imagem apenas vislumbrada, eles proporcionavam uma concentração crescente e um afastamento constante em relação àquilo que não dissesse respeito ao trabalho em jogo. Em depoimentos gravados, Nelson Felix menciona de formas variadas seu encanto com que ele chama de “pensamento”. Eu mesmo ouvi dele inúmeras declarações sobre isso, e confesso que apenas há pouco tempo cheguei a entender melhor a que se referia. Para Nelson Felix, “pensamento” não diz respeito àquilo que poderia também receber o nome de “raciocínio”, “elucubração”, “consideração”, “observação” ou “reflexão”, como é mais ou menos corrente. Para ele — que usa esse termo à exaustão —, a palavra designa um processo inseparável dos desenhos. Acredito mesmo que não conseguiria pensar sem lápis e papel nas mãos. Para ele, o que conta no ato de pensar é precisamente a obtenção de uma correspondência entre, digamos, o cérebro e os movimentos corporais (os traços sobre o papel), uma unidade que, com diferenças, também diz respeito ao processo erótico. O substantivo “pensamento” designa então uma antecipação dos amplos (e sintéticos) processos que movem a quase totalidade de seus trabalhos, posto agora numa escala humana e não planetária. Esse conjunto de procedimentos tornou-se central na poética do artista, mesmo porque oferecia saídas a dificuldades que as vertentes mais conceituais da arte contemporânea tendem a escamotear: a necessidade excessiva de explicações para que as obras sejam assimiladas. Restituir aos sentidos a capacidade de ampliar o campo da experiência e das significações tornou-se decisivo num contexto social em que, com frequência, a percepção e os sentidos têm sido as vítimas mais fáceis de práticas regressivas e conservadoras, e isso pelos mais diversos caminhos: da música comercial à literatura de autoajuda, passando por toda sorte de apelações sentimentais que tendem a tornar a experiência sensível do mundo sinônimo de reações banais e imediatas. Se os sentidos podem levar a emoções baixas, o que dizer de tantos sistemas filosóficos, políticos e religiosos que conduziram a desastres inomináveis que testemunhamos até hoje (e que certamente não pararão por aí)? Uma das origens desse viés totalitário não se explicaria justamente pela ênfase quase imemorial na subordinação da matéria ao espírito, do corpo à alma? Uma pessoa verdadeiramente alegre dificilmente saberia defender dualismos tão
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primários. Apenas uma grande obra de arte é capaz de nos fazer experimentar uma relação de unidade não violenta entre corpo e alma, sejam lá quais forem os nomes que se queira dar a esse par imemorial. A emoção física proporcionada por uma obra grandiosa é o indicador mais seguro da intensificação de nossas possibilidades. A alegria de uma tela de Matisse aponta, por meio de uma experiência real, que podemos ir além de uma identidade satisfeita consigo mesma. Em Concerto para encanto e anel, 2005-2009, 4 cantos, 2004-2008, e Verso, 2013, Nelson Felix volta a trabalhar com conjuntos de obras movidas por operações semelhantes. E com eles consegue provar como as soluções propostas nesses trabalhos obtiveram potência estética também em contextos diferentes. A forma encarnada que a meditação ganhou nesses trabalhos proporcionou ao artista conquistar um estatuto estranho para a obra de arte — distante tanto das mediações excessivamente narrativas e conceituais de parte da arte contemporânea quanto da materialidade da arte pós-minimalista (Richard Serra e Eva Hesse, por exemplo). Como se tivesse alcançado um novo modo de intervir na natureza, Nelson Felix realizava uma land art suave. Ao invés de mover toneladas e mais toneladas de terra e pedra, obteve uma presença digna para a realidade natural por meio de operações pontuais, que a envolviam num contexto poético de alta intensidade sensível. Outros fenômenos têm também a capacidade de criar aproximações radicais entre os corpos, entre os seres. Entre eles, o erotismo foi aquele que levou Nelson Felix a realizar um de seus melhores trabalhos: Vazio sexo. Parte da força do trabalho vem da figura geométrica paradoxal que elegeu para representar o erotismo: um cubo. Tivesse se decidido por uma esfera, tudo ficaria bem mais direto. De fato, o círculo metaforiza de perto esse contato em que os corpos deixam de ser norteados por critérios como alto e baixo, direita e esquerda etc. Por mais que sejam os corpos humanos que ponham em ação o jogo erótico, é também ele, o sexo, a via privilegiada para colocarmos em xeque os padrões antropomórficos de localização e orientação, conduzindo-nos a situações de riquíssima desorientação visual. Em vez de escolher a figura que mais se aproximaria do sexo e sua problematização das individualidades, Nelson optou por chegar à ideia de continuidade por meio de um fazer inteiriço. O cubo de que ele partiu tornou-se a geratriz das formas que o atravessaram de alto a baixo, de todos os lados. Trabalhando sem lançar mão de emendas que rompessem a unidade do bloco inicial, Nelson logrou criar um cubo menor dentro do cubo inicial, obedecendo à unidade original. A inteireza do bloco inicial acompanhou desde o início a obtenção de um duplo
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no seu interior, como ocorre na tradição das esferas concêntricas de marfim ou jade de origem chinesa. Os oito cantos dos cubos se mantiveram com toda sua angulosidade. No entanto, o aspecto arejado da trama conferia total comunicação entre as dimensões dos dois sólidos. O problema da quadratura do círculo (dado um círculo, construir um quadrado com a mesma área) obtinha aí uma solução poética. E a porosidade total dos corpos atingida no êxtase erótico talvez não obtivesse experiência mais pertinente. O cubo menor era ligeiramente deslocado por um calço com o molde do interior de uma vagina fundido em prata: também é do erotismo fazer-nos perder o prumo. Se Cruz na América havia realizado a dimensão de concentração da prática meditativa, Vazio sexo era seu lado contemplativo, o estado de suspensão proporcionado pelo êxtase erótico. A preocupação com a problematização da identidade dos seres fará com que o artista se empenhe em conferir estatuto lábil às formas que participam de seus próprios trabalhos, sem o qual seu projeto teria pés de barro. Os anéis são recorrentes em suas obras. A poética do devaneio meditativo de Nelson Felix não pode prescindir dos movimentos circulares, desde que o ponto de partida não seja um duplo simétrico do ponto de chegada, justamente porque eles apenas apontam o começo e o fim de uma trajetória crítica, na qual as coisas serão postas em xeque, em crise, e deverão mudar. Como na tradição das peregrinações, caminho é o outro nome das transformações radicais. Em Concerto para encanto e anel, há dois trabalhos em que os anéis têm forte peso: Camiri e Cavalariças. Em ambos, os anéis apresentam um sentido praticamente oposto, dada a inserção em tramas de forças diversas. Camiri foi concebido e realizado entre 1999 e 2006 para o Museu da Vale do Rio Doce, perto de Vitória, no Espírito Santo. O título da mostra corresponde ao nome da cidade boliviana que se encontra no cruzamento das duas linhas de Cruz na América. Afinal, é da natureza da meditação a busca constante de novos elos que possibilitem seu prosseguimento. Num grande galpão, são dispostas 27 vigas de ferro paralelamente ao plano do chão, a pouco mais de um metro de altura (para ser mais preciso, no nível dos olhos do artista). A partir da última viga, seguem-se doze outras traves de ferro dispostas numa inclinação de 23 graus em relação ao corpo do galpão. A última dessas vigas atravessa um grande anel de mármore de 2,32 metros de diâmetro. No seu interior repousam dois outros anéis, menores.
As dezenas de vigas traçam dois planos no interior do galpão, inclinados um em relação ao outro. Ambos, porém, compõem-se a partir da disposição diversa de unidades idênticas, todas lineares, numa dinâmica serial que também ecoa as discussões minimalistas. Apenas os três anéis se distinguem da geometria dominante. E o anel maior (e mais visível) interrompe a continuidade das bar-
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ras paralelas. Ele ganha ainda mais evidência por ser uma figura geométrica associável ao movimento (a roda) que, nesse caso, paradoxalmente, suspende o andamento das vigas de ferro. Em Camiri, o grande anel que depois também fará parte de Cavalariças desempenha um papel mais formal na constituição da obra, ela mesma fortemente apoiada em variações espaciais que dependem em boa parte de disposições geometricamente variadas de unidades idênticas. Mas atenção: trata-se de uma forma delicada que interrompe um movimento envolvendo muitas toneladas de aço. Outra é a solução apresentada em Cavalariças. Nas antigas cavalariças do palácio da família Lage — no qual desde 1975 funciona a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, na cidade do Rio de Janeiro —, foram fincadas verticalmente 68 vigas de ferro já utilizadas em Camiri. Mais ao centro do espaço, quatro das
vigas sustentam no seu alto o mesmo grande anel do Museu da Vale. A área da parte superior das quatro vigas é menor que a da parte inferior. O grande anel, que estava preso às vigas por fortes amarras, quando solto, produzirá torções e deformações impressionantes no ferro que, por sua disposição, impedia que a força da gravidade se cumprisse. No novo trabalho, porém, o anel se transforma totalmente. Já não é a figura geométrica que detém metaforicamente uma dinâmica estrutural. Ao contrário, faz lembrar um cruel empalamento, como numa das séries gravadas mais violentas de Goya: Los desastres de la guerra [Os desastres da guerra], 1810-1815. Muda também, aqui, a significação que o sexo adquire na obra de Nelson Felix. Em Vazio sexo, um cubo vazado representava a inteireza de homens e mulheres no momento do êxtase erótico. Agora uma forma nada angulosa surge como o foco mesmo do sexo entendido como violência e dor. II Desde que a noção de verossimilhança — de representações que se assemelhassem a uma visão da realidade — deixou de balizar a criação artística, as artes visuais, paradoxalmente, não pararam mais de ceder espaço ao mundo e a suas contingências, por mais que a arte se afastasse da representação da realidade. A recusa consciente ao caráter diferenciador da experiência estética — ou seja, o afastamento voluntário e progressivo de qualquer complexidade formal que diferenciasse os trabalhos de arte dos demais objetos do mundo — foi um dos responsáveis por alguns aspectos importantes, e repletos de armadilhas, da arte de nossos dias. Richard Serra escreveu certa vez que as obras dos minimalistas eram homeless (sem-teto). Com mudanças, a observação seria extensível a parte considerável da arte contemporânea.
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Uma vez que estavam impossibilitadas de criar novas espacialidades (pois isso significaria ceder à arte e se afastar da vida), as artes visuais foram habitar espaços já existentes. A hipertrofia de museus, centros culturais, fundações de arte, bienais, feiras e demais instituições não tem a ver somente com as democracias de massa e sua necessidade de expandir o acesso da população à arte e à cultura. A própria arte (ou pelo menos uma parcela considerável da arte tridimensional realizada nos nossos dias), pela sua dinâmica, se vê forçada a se institucionalizar para sobreviver. A necessidade de corresponder, ao menos parcialmente, às expectativas sociais desses novos espaços de massa levou-a também a soluções participativas e capciosamente ambíguas, que são a outra face das críticas contemporâneas à autonomia da arte e, em parte, derivam das reivindicações a uma aproximação entre arte e vida. Então, põe-se em ação um movimento pendular que, ao espaço que envolve e congestiona os sentidos, opõe um paradoxal retorno aos conteúdos politizantes. À tendência à empatia e ao acolhimento corresponde um retorno às mensagens, de caráter pré-moderno, alheias a quaisquer sutilezas formais e injetadas de fora, como o coroamento dessa dinâmica antiartística. Assim como uma chapa de aço se transforma, digamos, nos para-lamas de um automóvel, pela força de uma prensa pesada, as “mensagens” se inoculam às obras com a mesma violência. Paradoxalmente, usa-se o mundo para criticar a sua instrumentalização. O fenômeno contemporâneo das curadorias só pode ser explicado, a meu ver, se se considerar esse movimento. Afinal, a consumação nua e crua do fim da autonomia da arte deve ser o uso do trabalho de arte para ilustração de alguma tese, seja ela qual for. Por certo, nem tudo aquilo que recebe o nome de arte contemporânea corresponde a essa análise. Há ainda uns poucos grandes artistas em ação. Receio entretanto que, se não houver uma mudança significativa no panorama das artes visuais, aquilo que se entendeu por arte até o final do século XX está com os dias contados. Num ensaio memorável publicado na coletânea The De-definition of Art, de 1972, o crítico de arte norte-americano Harold Rosenberg fez uma afirmação
que sintetizava décadas de reflexão e polêmicas: “Uma pintura ou escultura contemporânea é uma espécie de centauro: metade materiais artísticos, metade palavras”.3 A tentativa dos impressionistas de afastar sua arte de associações literárias, tornando-a uma resposta direta do olho aos estímulos visuais, paradoxalmente deu lugar a um constante conflito entre olho e mente.
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ROSENBERG, Harold. “Art and Words”. In: __________. The De-definition of Art. Nova York: Collier Books, 1972, p. 55. Traduzido para esta edição.
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Depois de analisar essa tensão entre os action painters (um termo cunhado por Rosenberg), artistas ligados à arte pop, ao minimalismo e vários outros, o autor conclui que não há retorno à astúcia intuitiva do artesão tradicional, e tampouco a rendição do artista a seu medium o libertará das obsessões do pensamento. As palavras sobre a arte continuarão a falar ao artista, às vezes dirigindo-o sem que ele se dê conta, por vezes na forma de problemas conscientes a serem confrontados e modificados. [...] Dado o atual grau de consciência estética, até mesmo a mais arbitrária dispersão de dejetos, se se dá num meio de arte, tornase intencional devido ao fato de que o próprio acaso é uma técnica de criação artística há cinquenta anos.4 Na V Documenta de Kassel, de 1972, o trabalho apresentado pelo alemão Joseph Beuys, um dos maiores artistas contemporâneos, foram cem dias de discussão sobre a democracia direta, um sistema político consideravelmente utópico e jamais posto em prática, que mobilizava fortemente a arte e o pensamento de Beuys. Ele defendia uma arte que impulsionasse uma escultura social (“soziale Plastik”), ou seja, um processo de transformação permanente da sociedade, que deveria se afastar das institucionalizações enrijecedoras da dinâmica e da tensão do mundo social. O uso recorrente de gordura, cera de abelha e feltro em suas obras — para além de uma possível, porém improvável associação a sua biografia5 — ajudaria a desenvolver uma noção de calor que permitiria conceber transformações de dentro para fora, sem a violência comum aos processos artificiais de manipulação do mundo. Passados quase trinta anos de sua morte, em 1986, acredito que seus trabalhos, cada vez mais afastados do forte discurso que os envolvia (embora essa prosa também os tenha impregnado), mantêm sua potência, sem que sua dimensão discursiva tenha abafado a força sensível deles. O texto de Rosenberg tem sem dúvida uma dimensão premonitória. Há nele, porém, uma resignação com o destino da arte, que pode transformá-la em pouco mais que um ramo criativo da boa e velha cultura. Nunca saberemos ao certo o que Rosenberg entendia por “astúcia intuitiva do artesão tradicional” (“intuitive astuteness of the traditional craftsman”). No contexto do ensaio, sou
4
Ibidem, p. 68.
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Durante a Segunda Guerra Mundial, Joseph Beuys foi piloto da Luftwaffe (a Força Aérea alemã), tendo participado de campanhas no sul da Itália, Croácia, Ucrânia e na C rimeia, onde foi abatido. Segundo o próprio artista, ele foi salvo por nômades tártaros, que teriam usado gordura e cobertores militares de feltro para restituir calor a seu corpo.
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levado a crer que ele se refere aos grandes mestres anteriores à arte moderna. Acreditar que o fazer de um Leonardo da Vinci, por exemplo, não tivesse em si mesmo uma dimensão altamente reflexiva irá nos conduzir a ver na prática artística uma racionalidade necessariamente estranha a ela. Nesse caso, a arte estaria mesmo fadada a relações extraconjugais com o pensamento, o que me parece um rebaixamento da arte a um estatuto pré-kantiano, e portanto merecidamente artesanal. A grande arte nunca foi a solução de problemas artísticos. Mais que tudo, nunca coube à arte a solução do que quer que fosse. Talvez se possa esperar dela o delineamento de questões, desde que ela faça a mais radical e generosa experiência da realidade, ainda que essa realidade — como a dos nossos dias — pareça se mostrar como fugacidade e fantasia, como um mundo sem densidade que não oferece resistência à prática humana, ou seja, uma pura virtualidade. A obra de Nelson Felix tem todo o hibridismo de um centauro: materiais e práticas artísticos intrinsecamente associados a pensamentos, discursos, diagramas, mapas etc. Essa ampliação dos meios de expressão das artes visuais não o conduziu, no entanto, a direções que forçassem seus trabalhos a um reconhecimento de inferioridade em face das atividades do espírito. A interrogação em torno da natureza da arte, como na arte conceitual em geral e na de Joseph Kosuth em particular, deve necessariamente conduzir à desqualificação do mundo sensível. Afinal, se não fosse assim, como negar que toda grande obra de arte é a reflexão insuperável sobre ela mesma? Kosuth tem reflexões que ultrapassem aquelas materializadas numa obra de Matisse, Picasso ou Brancusi, entre tantos outros? Em arte, para que servem conceitos, se não pode haver um conceito de arte? O juízo reflexionante de Kant é o movimento reflexivo em ato, e não a sua reificação, como nas Três cadeiras, de Kosuth. Poderia haver uma história da arte, se houvesse um conceito de arte? A “obra” de Duchamp pode servir de alicerce ao arranha-céu que se edificou sobre ela? Se um cão engolisse a própria cauda, seria cão a mais ou a menos? Sempre que escrevemos sobre um artista específico, tendemos a valorizar em excesso suas realizações. Não acredito que o trabalho de Nelson Felix tenha a saída para os sérios impasses da arte que se faz nos nossos dias. Penso porém que seu trabalho expõe e problematiza pontos centrais da arte contemporânea. Sobretudo leva adiante uma experiência do mundo repleta de surpresas e revelações. Na mitologia grega, Anteu era um deus cuja força descomunal dependia do seu contato com o chão — sua mãe, Gaia, era a deusa da Terra. Não havia rival que o derrotasse. Até que Hércules descobre seu ponto fraco e o mantém suspenso, além do tempo suportável por seu adversário, que morre. Gosto de pensar que a arte de Nelson Felix, mais que o hibridismo
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dos centauros, tiraria sua potência da combinação da força de Anteu com a astúcia de Hércules. No entanto, diferentemente do mito, é do interesse da arte que Anteu e Hércules sobrevivam. A meu ver, é precisamente na difícil combinação entre materialidade e leveza que reside a possibilidade de sobrevivência de uma atividade que é simultaneamente essa combinação ponderada, cuja regra felizmente desconhecemos, entre objeto e sujeito, entre matéria e espírito, entre afirmação e dúvida. Nos trabalhos de Nelson Felix, a grande incorporação de novos aspectos da realidade depende de sua capacidade de magnetizar segmentos do mundo, de modo que voltemos sempre a ele. Não por nostalgia ou carência, mas pela simples razão de que precisamos, por vezes, substituir um Hércules cansado do peso de Anteu, já que mitos não morrem jamais.
87
emaranhado a cronologia de nelson felix francesco perrotta-bosch
Nelson Tavares Felix de Oliveira nasceu no Rio de Janeiro, em 1954. Filho do médico Nelson Felix de Oliveira e da assistente social Andrea Dias Tavares, morou durante a infância e a adolescência no bairro de Ipanema, zona sul carioca. A família paterna era de classe média intelectualizada. Médico-farmacêutico, seu avô foi general do Exército, tendo tido quatro filhos. O primogênito era o pai do artista. O segundo filho era o poeta Moacyr Felix, diretor da editora Paz e Terra e autor de diversos livros, como Neste lençol, 1977, Singular plural, 1988, e Introdução a escombros, 1998, pelo qual recebeu o Prêmio Jabuti. Também foi colaborador do Paratodos, jornal de cultura do Partido Comunista Brasileiro (PCB), dirigido por Jorge Amado e Oscar Niemeyer. Ao recordar do pai e do tio, o artista Nelson Felix relata: Quando eu era menino, com mais ou menos cinco anos, via meu pai sendo sempre tratado com “ô, doutor!”, e meu tio como “ô, poeta!”, com reverência, enquanto se referiam às outras pessoas como “senhor”. Desde pequeno fiquei atento àquela deferência que faziam ao meu pai e ao meu tio. Passei a achar que médico e poeta eram seres humanos especiais. Fiquei com aquilo na cabeça: poesia era uma coisa especial. Quando fui ler poesia pela primeira vez, entre oito e nove anos, achei que teria um êxtase, que algo especial aconteceria na minha vida. Li poemas de Rilke que meu tio me deu, e não aconteceu nada. Foi uma pequena decepção.1
1
88
Entrevista de Nelson Felix concedida a Francesco Perrotta-Bosch. Nova Friburgo, 6
KARRATHA,
jan. 2015 .
AUSTRÁLIA
89
A mãe era filha de um português que, entre outras coisas, foi dono de uma fábrica de saltos de sapato e teve como cliente mais ilustre Carmen Miranda. Sua esposa, a avó do artista, morou no apartamento de Nelson Felix quando ele era criança, ajudando a filha Andrea a criar os filhos sem ter que deixar de trabalhar. Na época, Ipanema era um dos pontos em que a cidade do Rio de Janeiro praticamente terminava, fazendo limite com um areal, a praia do Leblon. Quando o bairro ainda tinha bondes, Nelson Felix lembra que passava as tardes desenhando, extremamente concentrado. De tão compenetrado, emitia um som que não percebia, somente se dando conta quando alguém o chamava, interrompendo-o. Esse som, que se tornou seu apelido de infância, era a exteriorização de sua concentração. Ouvia muito Dorival Caymmi, desde pequeno, em virtude do gosto do pai. “Para mim, o maior artista que conheço”, classifica Nelson Felix. “Um violão, uma voz grossa, umas letras mínimas.”2 No momento em que foi apresentado ao minimalismo nas artes plásticas, aquilo já lhe parecia normal por conhecer Caymmi, um minimalista avant la lettre. Quando houve o golpe militar em 1964, Nelson Felix tinha apenas dez anos de idade. Naquele momento, diz ele, pouco compreendeu o que estava acontecendo no país. Recorda que membros do Exército entravam na casa do pai para vasculhar tudo em busca de livros ou objetos relacionados ao comunismo do tio: “Quando os caras saíam, a casa estava de cabeça para baixo”.3 Quando tinha cerca de doze anos, seus pais se separaram — algo raro na década de 1960. Cresceu em Ipanema, junto à praia, os dias inteiros na rua jogando bola na praça General Osório, próxima do acesso ao morro Pavão-Pavãozinho, onde moravam alguns amigos. Na adolescência, estudava bateria. Gostava de rock and roll, mas praticava jazz pela autonomia que esse gênero musical dá ao instrumento. Àquela altura, teve contato com o samba. Então desmembrava sua bateria, pegava o tarol e subia o morro para tocar samba com os colegas que lá moravam. Considera essa uma das experiências mais marcantes para sua noção de arte. Pela presença do meu tio poeta, minha família não via o artista como um sujeito sem profissão. Eu tomei a noção de que artista era uma profissão como as outras. Logo, seguindo a lógica da classe média, como todas as profissões, o artista faz uma carreira. Lembro de uma das primeiras vezes que subi o mor-
2
Idem.
VULCÃO HEKLA,
3
Idem.
ISLÂNDIA
90
91
ro para fazer samba. Eu percebi que um cara era mecânico, um segundo era porteiro, o outro era não sei o quê. Cada um tinha o seu trabalho, mas faziam samba porque gostavam de fazer samba. Sabiam que aquilo era uma atividade secundária. Tinham ciência de que nunca iam ser reconhecidos, mas eles davam a vida por aquele samba. Aos catorze anos, me identifiquei muito com isso. Eles faziam samba por necessidade vital.4
Viu ganhar corpo a Banda de Ipanema, da turma mais velha que fazia O Pasquim. Batucou para comemorar as vitórias da seleção na Copa do Mundo de 1970. No ano seguinte, teve o primeiro contato mais consistente com as artes visuais, ao fazer o curso de Ivan Serpa. Por ser ainda muito jovem, comenta ter assimilado pouco das aulas, mas reteve especialmente a relação obsessiva de Serpa com a arte. A escolha de Nelson Felix pela arquitetura foi quase involuntária. No científico (equivalente ao atual ensino médio) já era decidida a área de especialização do aluno. No período em que seu colégio buscou contatá-lo para que tomasse a decisão, realizava sua primeira viagem pela América Latina. Sua mãe deduziu que arquitetura seria o melhor, devido ao gosto pelo desenho que o filho tinha desde a infância. Na época ele concordou e, em 1972, após terminar a escola, ingressou no curso de arquitetura da Universidade Santa Úrsula. Nesse mesmo período, fez longas viagens pelo continente latino-americano, visitando comunidades e buscando experiências espirituais. Quando estava no terceiro ano da faculdade, interrompeu o curso e foi morar na Venezuela por cerca de um semestre. “Havia uma vontade intrínseca de consertar o mundo: alguns pegaram em armas, outros foram pelo pacifismo ou pela ecologia. Mas era a mesma vontade de consertar o mundo, de agir politicamente. Se eu tivesse nascido dez anos antes, talvez tivesse pegado em armas.”5
Também no período em que esteve na Venezuela, Nelson Felix tornou-se consciente de que sua noção de espiritualidade se incorporava à ideia que tinha de arte. De regresso ao Rio de Janeiro, retoma a faculdade, mas já certo de que ia se tornar artista. “Foi a maior festa na minha família: entre não ser nada e ser artista, tem um ganho nisso.”6 Da arquitetura, aproveitou o pensamento espacial e,
4
Idem.
5
Idem.
FLORESTA AMAZÔNICA,
6
Idem.
BRASIL
92
93
principalmente, as aulas e as conversas com a artista plástica Lygia Pape, que o apresentara a certas noções de arte contemporânea. Continuou a desenhar e foi incentivado pelas premiações recebidas em 1976 no I Salão Nacional Universitário de Artes Plásticas e no III Salão Carioca de Arte, promovidos pela Funarte, e no XI Salão de Maio da Sociedade Brasileira de Belas Artes. Em 1977, Nelson forma-se na faculdade de arquitetura e se casa. Começa a expor alguns trabalhos em mostras coletivas, enquanto atua como arquiteto da Legião Brasileira de Assistência (LBA), órgão assistencial público do governo federal. Participa de grupos de estudos na casa da psiquiatra Nise da Silveira, e também realiza trabalhos com os artistas Fernando Barata e Lula Wanderley e o poeta Flávio Nascimento. No dia 8 de julho de 1978, preparava sua primeira exposição individual no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ) quando um incêndio destruiu grande parte do acervo da instituição. No ano seguinte, forma o grupo Configuração com mais sete artistas, entre eles Evandro Salles, Fernando Barata e Luiza Interlenghi. Nessa mesma época, Nelson Felix procura o colecionador e marchand Jean Boghici, que estava construindo sua segunda galeria. Deixa com ele a pasta de seus desenhos. Boghici se interessa, e o convívio entre os dois permite que o artista tenha contato com a vasta coleção do marchand. Como ainda não tinha ido à Europa e à América do Norte, é por meio do acervo particular de Boghici que Felix vê diversas obras-primas modernas pela primeira vez. O colecionador também o apresenta a diversas figuras importantes do meio artístico nacional, como Sérgio Camargo — um dos primeiros compradores de seus desenhos — e o crítico de arte Mário Pedrosa. “Quando ele [Pedrosa] via meus desenhos, sentia que era como se estivesse lendo mapa astral: ele começava a falar da minha personalidade pelos desenhos. Voltei lá algumas vezes; gostava de mostrar o que estava fazendo.”7 Em 1980, Nelson Felix tem sua primeira exposição individual na Galeria Jean Boghici. Foi uma das primeiras mostras do local, sendo precedida pela exposição do artista uruguaio Joaquín Torres García (que teve muitos de seus trabalhos destruídos na retrospectiva que acontecia no MAM-RJ no momento do grande incêndio) e pela exposição Homenagem a Mário Pedrosa, com dezenas de artistas do mundo inteiro que tiveram contato com o crítico. Alexander Calder e Frans Krajcberg, por exemplo, também tiveram seus trabalhos expostos na galeria de Boghici na mesma época. Composta de “desenhos hedonísticos e irônicos”, segundo o crítico de arte Wilson Coutinho, “carregados de humor frívolo”8 — que antecipavam a Geração 80, da qual o artista prontamente se des-
7
Idem.
8
COUTINHO, Wilson. “De corpo e alma”. Revista Rio Artes, Rio de Janeiro, mar. 1993.
94
DONG SHA, TAIWAN
95
vencilhou —, a exposição tinha no folder o texto “Da cor do amarelo”, escrito por um jovem Nelson Felix e num tom ácido com relação à chamada arte conceitual, amplamente difundida na época. Nesse mesmo texto — uma das primeiras expressões públicas do seu pensamento —, o artista demonstra certas referências que remetem às viagens que fez pela América Latina ao longo dos anos 1970, além de temas psiquiátricos, em especial o inconsciente, que indicam seu interesse por questões estudadas por Nise da Silveira. A convite de Lygia Pape e do diretor de arte e cenógrafo Anísio Medeiros, Nelson Felix começa a lecionar na Universidade Santa Úrsula em 1982. No ano anterior, havia iniciado seus desenhos em grafite, que depois vieram a compor sua segunda exposição individual na galeria carioca Paulo Klabin, em 1983, cujos trabalhos — a exemplo de Noite, de 1982 — são, como descrito no texto do folder da mostra, “massas tão profundamente negras, que luminosas”.9 É um período em que Nelson Felix passa a ter obras expostas em diversas exibições coletivas, tendo também sua primeira individual fora de sua cidade natal, na galeria de arte Paulo Figueiredo, em São Paulo. Após diversas viagens pela América Latina, África e Europa, e um breve período de moradia em Florianópolis, em 1984, Nelson Felix muda-se para Nova Friburgo, interior do Rio de Janeiro, ao encontro de um terreno distante da zona urbana, em meio a uma paisagem composta pela exuberante vegetação de mata atlântica e pelo relevo de declividades abruptas da serra fluminense. Até hoje, lá estão sua casa e seu ateliê. Tal opção, justifica o artista, foi feita “para levar às últimas consequências essa ideia de ser dono do meu tempo”.10 É uma opção de vida que guarda semelhanças com aquela dos monges, cuja reclusão permite a concentração e a devoção à sua atividade. A crítica de arte e curadora Glória Ferreira alerta de partida: “De fato, desde o início, o trabalho de Nelson Felix fusiona e amalgama a dimensão espiritual e o orgânico, humano ou natural”.11 Em 1984, o artista deixa de apresentar trabalhos exclusivamente bidimensionais e passa a realizar esculturas com diferentes materiais, como borracha maleável e diversos metais. São desse mesmo ano as obras Preparando venenos, Cabeças felizes e Sono, por exemplo. Preparando vePREPARANDO VENENOS, 1984
9
SALLES, Evandro. In: FELIX, Nelson. Nelson Felix (folder da exposição na Galeria Paulo
Klabin). Rio de Janeiro, mar. 1983. 10 Entrevista de Nelson Felix concedida a Francesco Perrotta-Bosch. Nova Friburgo, 6 jan. 2015. 11 FERREIRA , Glória. “Acasos predeterminados”. In: FELIX , Nelson. Trilogias (folder da exposição no Paço Imperial). Rio de Janeiro, 2005 .
96
BORRACHA, CHUMBO, ELEMENTO RADIOATIVO, OURO E PRATA 12 X 240 X 12 CM COLEÇÃO DO ARTISTA, RJ
FALTA SCAN
97
DA COR DO AMARELO NELSON FELIX
A originalidade do “homem moderno”, sua grande
homem atual, ao deslocar o
novidade com respeito
centro de gravidade de seu
às sociedades primitivas
interesse do interior para
tradicionais, está precisamente
o exterior, alterou sua vida
na vontade de considerar-
espiritual, mas não chegou
-se como um ser unicamente
a romper as matrizes de sua
histórico, no desejo de viver
imaginação. Um imenso resíduo
num cosmo radicalmente
de imagens perdura em suas
dessacralizado.
zonas pouco controladas.
Apesar disso, podemos
98
Poderíamos dizer que o
Isso é o que sucede em
notar um constante
grande parte da chamada
desabrochar de imagens em
“vanguarda” dos séculos XIX
suas ocupações, festividades e
e XX. Nesse berço, ela cresceu.
diversões: os atos públicos, os
O moderno introduziu em
espetáculos, as competições
nós a ideia de campeões do
esportivas, as organizações
progresso através de sucessivas
burocráticas, a propaganda
rupturas ideológicas que
por meio de slogans, a
buscavam sempre o mais novo,
literatura de amplo consumo
a novidade. Mas o certo é que,
popular, tudo isso ainda
como nos diz Octavio Paz,
conserva a estrutura dos
“chegamos a um ponto em
símbolos, dos mitos e dos ritos
que a ideia de futuro perdeu
— se bem que desprovidos de
sua antiga força e sedução.
seu conteúdo religioso. Mas
Daí a crise da vanguarda [...]
ainda, segundo Mircea Eliade,
ela tornou-se acadêmica [...]
a “atividade imaginária e a
o que a distingue das artes
experiência onírica do homem
de outras épocas é a crítica
moderno seguem impregnadas
— e ela deixou de ser crítica,
de símbolos, figuras e temas
à medida que ingressou no
religiosos. Como alguns
circuito de produção e consumo
psicólogos gostam de repetir:
da sociedade industrial, seja
o inconsciente é religioso”.
como objeto, seja como notícia;
perdeu sua vitalidade; já
viemos sempre esbarrando,
existe. Realizar o presente é a
não é uma crítica, e sim uma
por toda a nossa história, em
única verdade”.
convenção aceita e codificada.
culturas “mágicas” (aborígines
Em vez de ser uma heresia,
e negros). Será nossa própria
os aborígines americanos
como foi até a metade do
culpa se insistirmos somente
buscaram viver essa realidade,
nosso século, converteu-se em
na aplicação de conceitos ao
mas também, dentre muitos, o
um artigo de fé de que todos
campo do pensamento: nos
complexo xamanista e os povos
compartem”.
castraremos e acabaremos
orientais. A ioga, com suas
no impasse de nos fecharmos
dezoito vias, visa conscientizar
América anglo-saxã, prolifera
no mecanismo — o que não é
o indivíduo do instante, através
o conceito. Seu avanço é
inerente a nós.
de posturas do corpo (asanas)
Hoje, na Europa e na
medido pelo grau de domínio
Esses restos de imagens
Nem só os negros ou
e de exercícios respiratórios
do pensamento sobre as
mágicas, como vimos
(pranaiama). Muitas vezes, o
palavras. Porém, já é sensível
anteriormente, estão presentes
oriental também se utiliza de
o seu cansaço, assim como o
em nós e oferecem um ponto
imagens, com os iantras ou
do debate sobre a história, o da
de partida possível para
as mandalas: “O iantra é um
perda de solidariedade com a
a renovação espiritual do
elemento de concentração que
natureza e com a vida mesma e,
homem moderno — ponto de
resume uma missão inteira;
finalmente, o do atual excesso
partida que nos levará a viver
é como uma chave, dada
de palavras.
o presente. A nossa civilização
através de várias instruções
— e, em decorrência, sua
gráficas” (De la Ferrière). Em
contrário, as linguagens
arte — visou quase sempre o
concentração, o estudante
poéticas vêm cada vez
passado ou o futuro, sendo o
busca revelações que entendam
mais ocupando um lugar
presente geralmente esquecido.
o símbolo em todos os seus
importante. Quanto a nós,
Para melhor definir a ideia
porquês, e também como
Brasil, mesmo com os freios
de presente, recorro ao dr.
revelações sensitivas (quanto
das ideias missionárias
Serge Raynaud de la Ferrière:
à sua forma, quanto ao local,
colonizadoras portuguesas e
“O passado não existe, ainda
hora, situação em que foi
dos imperialismos culturais
que possa haver existido [...]
recebido etc.). Toda uma gama
(principalmente europeu e
mas em todo caso não existe;
de fatores próprios e relativos
norte-americano), ou com os
existe unicamente o presente.
relacionam-se com esses
estímulos, recebidos com a
O futuro não existirá talvez [...]
signos. Seria interessante,
vinda dos negros africanos,
mas de todos os modos não
também, estendermo-nos até
Na América Latina, ao
99
o zen. Durante sua prática,
Nada de novo. Aliás, a única
coincidência dos opostos, que é
a meditação zen priva o ser
novidade (que na realidade não
tão abundante na vida espiritual
do excesso de pensamento
é novidade) é o renascimento
e dificilmente acessível ao
dedutivo. A aprendizagem
da atividade artesanal do
discurso. Ao deixar intato — e
não consiste no acúmulo de
artista, da volta ao simples, do
em comunhão — o princípio da
conhecimento — a meditação
“feito em casa”. Com esse fazer
contradição, a lógica dialética
não “ensina” nada. Ela busca
meticuloso, tem-se a satisfação
condena a imagem, pois evita
colocar o homem numa
do constante contato com
o pensar seletivo da síntese.
situação-limite, e não somente
o trabalho; logo, o processo
As imagens são um paradoxo
na situação histórica: a
criativo admitirá diversas
absoluto: em qualquer relação,
situação-limite é aquela que
interações em todo o seu
representam teses e antíteses
o homem descobre ao ter
decorrer e, por sua vez, também,
e, ao mesmo tempo, sínteses.
consciência do seu lugar no
o trabalho interagirá na própria
Elas não são abstratas nem
universo.
alma do artista. Enfim, o prazer
figurativas, racionais nem
alquimista.
irracionais, intelectuais nem
Finalmente, diz ainda Octavio Paz: “Voltamos a
Todos esses diversos
emocionais, e tampouco reais
algo que o Ocidente havia
complementos apontados, que
ou irreais: são, em cada caso,
esquecido: o renascimento da
na sua maioria são formados
ambas as coisas, ou melhor,
arte como ação coletiva e de
por ideias contrárias, procedem
estabelecem um diálogo-
seu complemento contrário,
de modo semelhante ao
relâmpago entre os polos.
a meditação solitária. Se a
da expressão das imagens.
palavra não tivesse perdido o
Etimologicamente, a
“a individualidade é uma
seu significado exato, eu diria:
imaginação é solidária de
reunião de antagonismos”.
uma arte espiritual”. E dá-nos
imago (imitar, reproduzir,
Portanto, sem a vivência
o exemplo de ação coletiva:
representar). A imaginação
dos contrastes não existe
aquela em que se exige do
imita modelos exemplares —
experiência alguma de
leitor a vivência sensitiva
as imagens arquetípicas que
totalidade e, com isso,
do trabalho. Como em toda
ela reproduz e reatualiza. Ter
nenhum mergulho às imagens
recriação, a leitura da obra
imaginação é ver o mundo
internas. O pensar simbólico
não é a mesma proposta pelo
em sua totalidade. Cabe
não é exclusivo da criança, do
artista (posição semelhante
aqui citar novamente Mircea
desequilibrado ou da atitude
à de Umberto Eco), mas é
Eliade: “A missão e o poder
poética. Presente na essência do
idêntica ao próprio ato de
das imagens é fazer ver tudo
ser humano, preenche a função
criação: o “receptor” recria o
quanto permanece refratário
de deixar nuas as modalidades
instante e cria-se a si mesmo.
ao conceito”. As imagens, por
mais secretas do ser.
Já a meditação solitária
suas estruturas multivalentes,
é o próprio processo de
estampam a realidade imediata
sua própria lógica: ninguém
individualização (agregação do
e revelam uma realidade
tumultua se o artista traçar um
consciente e do inconsciente)
inacessível aos demais meios de
gato com cabeça de marreco
do artista, através de seu fazer.
comunicação. Por exemplo: a
ou disser que o tempo corre.
100
À luz da psicologia analítica,
Já a imagem poética possui
Dentro desse universo, tudo é
Aprender a conviver com essa
válido: as imagens adquirem
constante mudança e com
um poder de perenidade e,
essa dualidade harmônica é
embora estando no presente,
algo limítrofe da magia, das
ultrapassam o momento e
práticas espirituais e de outras
chegam mesmo ao diálogo
tentativas de modificar o
entre culturas geográfica e
homem e atualizá-lo no tempo
historicamente diferentes.
primordial, ou seja, colocá-lo
Toda arte contém imagens — umas mais, outras menos; umas conscientes, outras inconscientes —, e é principalmente graças a elas que conversamos culturalmente.
simultaneamente no presente e na origem. PUBLICADO ORIGINALMENTE NO FOLDER DA EXPOSIÇÃO AQUARELAS, GALERIA JEAN BOGHICI, RIO DE JANEIRO, 1980.
101
nenos é um composto de borracha que resulta numa forma linear, porém sem qualquer matriz geométrica. Por sua vez, Cabeças felizes é uma sequência de sete esferas feitas de matérias-primas distintas: chumbo, estanho, ferro, cobre, latão, prata e ouro. Sono, por outro lado, é feita de chumbo, borracha e elemento radioativo. Em 1985, Nelson Felix inicia o Grande Budha, o primeiro trabalho cuja idealização, processo e realização duram vários anos, estendendo-se até 2000 . Essa temporalidade expandida torna-se recorrente na trajetória do artista (ele compõe também Cruz na América, trabalho que vai de 1985 a 2004). O Grande Budha é constituído por seis hastes lineares e pontiagudas de latão, com dobras em ângulo de noventa graus, posicionadas de modo equidistante ao redor de uma árvore e direcionadas para o eixo central do caule. Isto é, são seis garras que penetram na madeira, conforme a árvore se desenvolve. Nota-se um caráter agressivo da intervenção do artista, que revela o crescimento desse grande vegetal no meio da floresta. É um ato cultural que exterioriza o tempo da natureza. Porém, não acompanhamos o contato da madeira com o latão, das forças expansivas em sentidos contrários. Somente temos em mente, sem ver, o que acontece com a escultura — árvore e seis peças metálicas — ao longo do tempo. Como o crítico de arte Rodrigo Naves esclarece: Com isso sua obra tende a existir praticamente em dois planos: um estritamente formal, que se entrega plenamente aos olhos do observador, e outro sugerido, ao qual não temos acesso direto e que possui uma vida interior misteriosa e intensa.12
No mesmo ano, Nelson Felix faz a Segunda noção do zero e passa a realizar esculturas em grafite maciço, dando origem a obras como Sem título, 1986, pertencente à coleção de Jean Boghici, um objeto monolítico que flerta com o informe, e Colocar os pés sobre o chão firme, 1986, com 22 peças feitas de grafite e diamante (ambos provenientes do carbono) que pousam sobre o chão, cada elemento com sua sutil singularidade formal em eterno relacionamento com o conjunto de unidades que o envolvem: “Peças que instituíam um centro de energias, proto-obeliscos que captam o espaço circunvizinho”.13 Grafite, 1988-1989, é constituído por duas hastes do material que dá nome à obra, mas cujo posicionamento enCOLOCAR OS PÉS NO CHÃO FIRME, 1986
12 NAVES , Rodrigo. “O espírito da coisa”. In: __________. Nelson Felix. São Paulo: Cosac Naify, 1998 , p. 14 .
13 AGUILAR, Nelson. “Nelson Felix cultua espaço aberto”. Folha de S.Paulo, 4 jun. 1988.
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DIAMANTE E GRAFITE 18 X 12 X 9 CM (CADA) COLEÇÃO JUSTO WERLANG, RS
103
trecruzado define-se pelo alinhamento de uma unidade ao eixo do Sol (23 graus) e a outra dispondo-se de acordo com parâmetros espaciais de onde se encontra. Essa é a primeira vez que aparece na produção de Nelson Felix a coexistência de referências espaciais em uma única obra, como Glória Ferreira observa: “Introduz, igualmente, a ideia de simultaneidade, de espaços distintos interagindo”.14 Na segunda metade da década de 1980, o artista carioca produz um conjunto de desenhos amalgamando grafite, chumbo e pastel oleoso. Tais desenhos estruturam-se no formato do papel: nas suas dimensões, no seu posicionamento, na própria divisão de folhas de papel — parte considerável dessas obras é feita sobre mais de uma unidade de papel —, não dividindo a obra, mas organizando a leitura, como uma pauta musical dentro da partitura. Aqui se destaca a série Desenhos verticais, 1987, e as obras Desenho horizontal, 1987-1989, Árvore, 1988, Montanha e chuva, 1988, Eu vi a América com os olhos dele, 1989, e Fênix, 1987, que se diferencia levemente por sua alvura em virtude do uso da cal e do pó de esmeralda. A série Gênesis — que se inicia em 1985 e está em curso até hoje15 — é apresentada pela primeira vez ao público em 1988. No princípio, era composta por três ações: o enxerto de um pequeno cristal em forma de pênis no interior de uma árvore, uma microestatueta de Buda em ouro incrustrada no osso de um cão por meio de uma intervenção cirúrgica e a inserção de um brilhante no interior de uma ostra. As três operações artísticas desencadeiam reações que podemos supor ao criar as mais distintas hipóteses — desde naturais cicatrizações em volta do objeto estranho enxertado até transformações estimuladas pela imagem do que foi introduzido —, mas não podemos saber ao certo, pois não há como acompanhá-las. Incita a nossa imaginação pelo caráter misterioso das transformações em curso enquanto estiverem vivos os seres que sofreram intervenção. Em palavras de Rodrigo Naves, “atos que deem a esses seres uma dimensão oculta e insondável”.16 Nelson Felix recebeu uma bolsa do Ministério da Cultura da França para sua primeira exposição individual em Paris, na Galerie Charles Sablon, em 1989. No mesmo ano, a Associação Paulista de Críticos de Arte ( APCA) conde-
corou-o com o Prêmio Melhor Exposição de 1988, na categoria desenho, pela
FÊNIX, 1987 CAL, CHUMBO, PASTEL SECO E PÓ DE ESMERALDA
14 FERREIRA , Glória. “A coisa é ar”. In: FERREIRA , Glória; SALZSTEIN , Sônia; BRISSAC , Nelson. Nelson Felix. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001 , p. 16 . 15 Em diversas publicações, a série Gênesis tem seu início datado de 1988, mas Nelson Felix avalia que os primeiros ensaios acerca do trabalho datam de 1985. 16 NAVES, Rodrigo. “O espírito da coisa”. In: __________. Nelson Felix. Op. cit., p. 9.
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150 X 70 CM COLEÇÃO JOÃO BOSCO, RJ IMAGEM DO PROJETO SÉRIE GÊNESIS, 1988 — 1991
eu vi a américa com os olhos dele FUJOKA VAI ESCANEAR E TRATAR
TROCAMOS PARA FÊNIX
FUJOCKA SCAN COMPLETAR IMAGEM OU TROCAR POR UMA VERTICAL?
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O TRABALHO FOI REALIZADO EM SEIS AÇÕES ESCULTÓRICAS NUM PERCURSO DE 29 ANOS, MESMO PERÍODO DA REVOLUÇÃO SOLAR DO PLANETA SATURNO — PAI DO TEMPO. OBJETOS CONFECCIONADOS EM MATERIAIS NOBRES, COMO DIAMANTE E OURO, SÃO INTRODUZIDOS EM ORGANISMOS VIVOS, EM FORMAÇÃO, COM A FINALIDADE DE SEREM ABSORVIDOS. ENTRE A AÇÃO E A ESPERA, ELEMENTOS RÍTMICOS DO TEMPO, ESTES OBJETOS PERSISTEM E INDICAM A PRESENÇA DA VIDA E DA CULTURA, PELA SUA MANUFATURA. O QUE ERA MORTO TORNA-SE SIGNO VIVO EM CONTATO COM A MORTE E VICE-VERSA. IMAGENS DO PROJETO SÉRIE GÊNESIS, 1988–1991
mostra individual na Galeria Luisa Strina, em São Paulo. Em 1991, ganhou a Bolsa Vitae de Artes Visuais. Na virada dos anos 1980 para os 1990, o artista passou a realizar esculturas cuja peça principal é um fuste em madeira: esguio (sempre superior a seis metros de comprimento), com uma forma ondulada (com estreita amplitude dos vários ciclos de onda que ali já vemos rijos) e superfícies constantemente curvas e polidas. São dessa fase Copacabana, 1989-1997, Língua, 1990, — com as três dezenas de pequenas estatuetas de Buda de três centímetros em bronze escorando as duas longas placas de madeira, “mesclando a relação matéria e espírito”17 —, Língua II, 1990-1997, e Ponte, 1992. A formalização em vagas da madeira ganha esbelteza e verticalidade no grafite e ferro de Frontal, 1990-1992. Em 1992, Nelson Felix começa as primeiras esculturas metálicas relacionadas aos espaços vazios do corpo humano — peças com formas orgânicas e distantes entre si, o que sugere uma interioridade que não pode ser vista —, como em Vazio, 1992, que anos depois vem a dar origem à Trilogia do vazio. O conjunto de esculturas mencionado neste parágrafo constituiu o núcleo de sua exposição individual no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), em 1993, que ocupou com oito peças o grande Hall Cívico do subsolo do edifício, sendo levada posteriormente para o Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), no Rio de Janeiro.
IMAGEM DA EXPOSIÇÃO NELSON FELIX, NO MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO ASSIS CHATEAUBRIAND, 1993 COPACABANA III, 1989–1997 FERRO E MADEIRA 40 X 630 X 65 CM
17 COUTINHO , Wilson. “De corpo e alma”. Revista Rio Artes, Rio de Janeiro, mar. 1993 .
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COLEÇÃO DO ARTISTA, RJ
No mesmo ano, montou na Galeria Luisa Strina a obra Flor na pele, 1993: duas peças delgadas e horizontais na forma de medula posicionadas frente a frente em paredes opostas de uma sala, separadas por uma renda trançada com fios metálicos, que poderia ser vista como um plano onde os elementos se espelham. Porém, tal equivalência das partes é quebrada pelo apoio que um coração de cobre dá a somente uma das peças. “Na solidão da sala de exposições, as duas hastes voltavam uma para a outra suas pontas afiadas, sem que soubéssemos a causa do confronto”, interpreta Rodrigo Naves. “A própria natureza se desdobrava ameaçadoramente, opondo-se a si mesma. Uma de suas partes no entanto apoiava-se num coração solitário, sinal de que aquele enfrentamento tinha seus dias contados, que mancava de uma perna e não podia durar.”18 O tecido ameaçado mas não perfurado de Flor na pele de fato vai enredar o coração em Escultura estéril, 1993, e tal qual uma rede de arrasto vai ao chão ao final da pesca tendo o ser ainda vivo enrolado a ela, temos Crochê e máscara, 1995, em que o artista também introduz o uso do azeite na obra. A medicina desempenhada pelo avô e pelo pai decerto fomentou o interesse de Nelson Felix pela anatomia humana, que já se observa nas obras Língua,
FLOR NA PELE, 1993
Vazio e Flor na Pele. Entretanto, em meados dos anos 1990, as formas moldadas
DIMENSÕES VARIÁVEIS
em seu próprio corpo passam a aparecer de modo mais literal nos trabalhos,
COBRE E MADEIRA COLEÇÃO DO ARTISTA, RJ CROCHÊ E MÁSCARA, 1995 AZEITE, COBRE E FERRO 12 X 100 X 100 CM
18 NAVES, Rodrigo. “O espírito da coisa”. In: __________. Nelson Felix. Op. cit., p. 15.
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COLEÇÃO DO ARTISTA, RJ
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recorrentemente em partes rearranjadas, como membros ou órgãos. Desse período, destacam-se Monte, 1994, Máscaras, 1995, — os moldes em ferro do rosto, do tronco e do ventre de um homem, estando as três peças separadas entre si —, Cada 2, 1996, e ½ eu, 1995, — a cabeça em ferro “submersa” no chão de concreto tal qual a ponta do iceberg está para o mar. Em 1994, viaja para a Austrália como artista residente e expõe no Perth Institute of Contemporary Art. Também recebe pela segunda vez o Prêmio Melhor Exposição da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), agora na categoria escultura, pela mostra no Masp. No ano seguinte, Nelson Felix realiza com Luiz Felipe Sá o vídeo O oco, por intermédio da RioArte, pertencente à Prefeitura do Rio de Janeiro, em que apresenta algumas de suas obras e a reflexão sobre sua produção. No meio desse caminho temos Cacto, 1994. Poderíamos interpretá-lo através de uma relação de caráter prototípico com o Grande Budha, mas essa relação não seria de todo modo verdadeira. A obra é o cacto em embate com diversos parafusos sustentados em placas de cerâmica. Natural e cultural se espelham com pontas afiadas voltadas umas para as outras. Diferentemente do Grande Budha, não vemos somente a natureza expandir-se, evidenciando a temporalidade da vida. Ela também reage violentamente com seus espinhos. Nesse mesmo período, Nelson Felix começa a fazer esculturas em mármore e granito. Nesse ponto de sua trajetória, o artista atinge a mais ampla diversidade de materiais para constituir suas obras. Como ressalta Glória Ferreira, seus trabalhos “absorvem como elemento constitutivo a história e a simbologia dos próprios materiais, quer seja mogno, figueiras, dormideiras, ostras ou o mármore e sua tradição na escultura, ou ainda a imagem”.19 De início, ele mantém-se próximo da formalização da Língua, com obras como Vertical, 1994, e Vertical com máscara, 1996. A haste ondulada em mármore também retoma o conteúdo de Crochê e máscara na obra Sem título, 1995, apresentada na Galeria Millan, e esmaga a graxa mole em Terceira noção do zero, 1997, tal como havia feito em Cada 2. Mesas, trabalho apresentado ao público pela primeira vez em 1995, fundamenta-se em uma das mobílias mais triviais na história humana. Pelas mãos do artista, a obra adquire um formato geométrico e proporcionalmente equilibrado somado à superfície áspera própria ao granito maciço do qual são feitas as peças. Contudo, seu caráter utilitário e cotidiano é totalmente transformado quando, sobre as mesas, Nelson Felix deposita peças — praticamente três estilhaços — de ferro que se
½ EU, 1995 FERRO 12 X 18 X 15 CM COLEÇÃO JUSTO
19 FERREIRA, Glória. “Acasos predeterminados”. In: FELIX, Nelson. Trilogias (folder da exposição no Paço Imperial). Rio de Janeiro, 2005.
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WERLANG, RS COLEÇÃO LUIZ GAMA, RJ
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deduz terem sido moldadas em seu corpo, mas não conseguimos bem identificá -las. Algumas plantinhas — dormideiras, mais especificamente — são somadas a esses corpos estranhos, conferindo energia própria ao trabalho. Esses frágeis vegetais são implantados sobre uma mesa e abaixo de outra, estando esta última suspensa por fios e fugindo do regular posicionamento das outras cinco mesas. Com o rigor formal das mesas em conjunto com elementos de forte carga simbólica, temos um enigmático agrupamento: “Seu aspecto visceral acaba predominando e seu significado parece escapar. A natureza de Nelson Felix tem uma face oculta, e reluta em se deixar compreender e manusear”.20 Esse estranhamento se ratifica em Tombo, 1996, com a mesa agora em mármore tombada e já imersa nas dormideiras.
Em Julia, 1995-2014, uma foto documenta uma recém-nascida com peças
TOMBO, 1996
de ferro em forma de glândulas endócrinas posicionadas cuidadosamente so-
DORMIDEIRAS
bre seu pequeno corpo. Passados dezenove anos, fotografa a mesma pessoa, já
80 X 170 X 170 CM
adulta, com as peças na mesma posição, e acrescenta alianças de ouro sobre a
COLEÇÃO DO
imagem projetada na parede, ao lado da primeira imagem. Em Ford, 1997, ope-
E MÁRMORE
ARTISTA, RJ TERCEIRA NOÇÃO DO ZERO, 1997 GRAXA E MÁRMORE
20 NAVES , Rodrigo. “Corações solitários”. In: FELIX , Nelson. Nelson Felix (folder da exposição na Galeria Luisa Strina e na Galeria Millan). São Paulo, maio 1995 .
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15 X 485 X 40 CM COLEÇÃO DO ARTISTA, RJ
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ração semelhante é feita sobre o motor de um carro com um molde de osso de uma coluna vertebral em cobre. Com a curadoria de Nelson Aguilar e o título A desmaterialização da arte no final do milênio, a XXIII Bienal Internacional de São Paulo, em 1996, teve um trabalho de Nelson Felix: Vão, realizado no mesmo ano. Os espaços vazios do sistema nervoso humano interessam ao artista desde a obra Vazio, desenvolvida quatro anos antes. Em Vão, a forma é oriunda de uma cavidade do cérebro: o terceiro ventrículo, que é um buraco na linha média do encéfalo preenchido com um líquido. O que há de ausência no cérebro dá origem formal a uma grande peça de mármore polido suspenso por cabos de aço que, em um primeiro momento, parece centralizar toda aquela sala branca onde está implantada. Aliás, não é qualquer pedra; é o mármore de Carrara, na Itália, escolhido muito pela compreensão da herança da cultura clássica europeia, como o próprio artista atesta: “Uma pedra com 3 mil anos de pensamento em cima. Isso entra como questão conceitual
VAZIO, 1992 CHUMBO, COBRE, ESTANHO, FERRO E LATÃO
no trabalho”. No entanto, há outra peça de mármore deitada no piso que não se
80 X 120 X 1200 CM
integra com a escultura suspensa; ali também opõem-se a graxa e o azeite que
WERLANG, RS
21
emanam do chão, criando rastros naquele cubo branco. O que a princípio parece centralizado na escultura do espaço vazio mental é pura dispersão.
COLEÇÃO JUSTO
VÃO, 1996 AZEITE, CABO DE AÇO E MÁRMORE 170 X 485 X 25 CM | 10 X 210 X 170 CM
21 FERREIRA, Glória. “Concentrações mentais”. In: FERREIRA, Glória (org.). Trilogias: conversas entre Nelson Felix e Glória Ferreira. Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 2005, p. 10.
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COLEÇÃO JOÃO CARLOS FIGUEIREDO FERRAZ, RIBEIRÃO PRETO, SP
Não por acaso, são da mesma época obras em formas indefinidas, a sugerir um movimento de dissolução ou transformação. Escultura sem lugar, 1996, é uma sequência de fileiras de pequenas esculturas de Buda em ferro, sobre as quais pousa de maneira instável um papel translúcido. O artista deposita azeite em certos trechos dessa folha, formando poças do líquido que, de certo modo, dão peso à superfície. É latente o constante risco de perda do tênue equilíbrio do azeite sobre o papel, qualquer que seja o movimento de toque na peça. Essa evidente incapacidade de permanência da obra, isto é, de sua estática em uma condição ideal, também pode ser averiguada em trabalhos como Óleo sobre tela, 1997, e Cada 2, II, 1997, — em ambos os casos, igualmente em virtude da viscosidade do azeite. O Beijo em Madalena, 1998, de Nelson Felix é acima de tudo tributário à Madalena, 1453-1455, do mestre renascentista Donatello. Segundo o artista brasileiro, existem “esculturas que são buracos negros, elas absorvem o espaço”, 22 como a obra exposta no Museo dell’Opera del Duomo, em Florença. A tragicidade da figura feminina bíblica, dos farrapos e cabelos que, ao se misturar, conferem verticalidade à obra em madeira, causou no artista um sentimento de total absorção: “Por um momento, contemplando a escultura, eu ESCULTURA SEM LUGAR, 1996 AZEITE, PAPEL E FERRO
22 Entrevista de Nelson Felix concedida a Francesco Perrotta-Bosch. Nova Friburgo, 6 jan. 2015 .
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40 X 350 X 35 CM COLEÇÃO DO ARTISTA, RJ
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esqueci que estava no espaço do museu”. Beijo em Madalena é a busca pela recriação dessa absorção, agora pela horizontalidade do enorme plano ondulado de madeira, paralelo ao chão, que ocupa praticamente toda a sala. Sua superfície é interrompida somente pelo molde do rosto do artista em bronze e por um pé de cadeira, que está apoiada sobre o fundo de um vaso também em bronze com azeite. Tal como ocorre diante da obra de Donatello, após entrarmos na sala, intenta-se que a superfície ondulosa capte o observador de tal maneira que este esqueça o espaço que o envolve. Em oposição à ideia da obra que nos faz esquecer o espaço ao redor, a obra Lajes, 1996-1997, é o próprio espaço. Em 1997, na terceira edição do projeto Arte/Cidade, Nelson Felix fez esse trabalho no Moinho da Luz, edifício abandonado na região central de São Paulo. A intervenção ocorre diretamente no prédio em ruínas: o recorte de três lajes de um andar, deslocando-as para baixo e sustentando-as por cabos de aço a uma distância de poucos centímetros do pavimento inferior. Tal ato altera a perspectiva arquitetônica do local, antes ordenada pela modulação estrutural claramente visível no sequenciamento de pilares, e cria ali uma inédita relação entre espaços de pavimentos diferentes. A espacialidade do edifício é apreendida pelo visitante de modo distinto ao idealizado no projeto original do Moinho da Luz, com uma nova tensão entre andares (planos horizontais). Além disso, todo o equilíbrio estrutural do edifício é irremediavelmente alterado: as cargas das lajes recortadas deixam de ser distribuídas para as vigas e os pilares adjacentes, passando a se concentrar no ponto em que estão presos os cabos de aço no andar superior. O crítico Lorenzo Mammì nota que Nelson Felix tem ali a virtude de ter “encarado o Moinho Central como um problema formal e não apenas como tema ou cenário”. 23 Por esse aspecto, Lajes está diretamente relacionado com Pilar, 1999-2001. Executado para a quarta edição do Arte/Cidade, em 2002, no edi-
fício que veio a sediar o Sesc Belenzinho, esse trabalho é um recorte de um trecho de um pilar de concreto, substituindo-o por um perfil metálico. É uma operação artística com evidente tensão e risco de desestabilização de toda a estrutura do edifício. A inter-relação entre as obras estabelecida pelo artista — por exemplo, entre Lajes e Pilar — é algo que aflora e se torna recorrente a partir do final da década de 1990. Como Glória Ferreira preconiza: “Tudo se liga, ou pode se ligar, adquirindo novas configurações e significações no constante movimento de relação IMAGENS DO PROJETO LAJES, 1996-1997 PROJETO ARTE/
23 MAMMÌ , Lorenzo. “Evento acha cidade morta dentro da cidade atual”. Folha de S.Paulo, 20 nov. 1997 .
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CIDADE III MOINHO DA LUZ, SÃO PAULO
entre os trabalhos”. 24 Posteriormente ao lançamento de seu primeiro livro pessoal, publicado em 1998 pela editora Cosac Naify e com texto de Rodrigo Naves, torna-se mais clara uma guinada no trabalho de Nelson Felix, quando são estabelecidas incontáveis conexões entre suas obras, derivadas de um raciocínio muito próprio do artista: No processo de metamorfoses e entrecruzamentos dos trabalhos, com sua profusão de materiais, técnicas e suportes aliados à profusão de evocações simbólicas, a recorrência às representações gráficas e convencionais que constituem os mapas, liberados de qualquer representação mimética, tem sido uma constante no trabalho de Nelson Felix. 25
Cruz na América, 1985 - 2004 , como vimos, explicita essa lógica do entrecruzamento de obras num todo único. Ela é formada pelo eixo entre o Grande Budha e a Mesa, 1997 - 1999 , sendo cortado perpendicularmente pela linha imaginária entre o Vazio coração — deserto, 1999 - 2003 , e o Vazio coração — litoral, 1999 - 2004 , ligando o deserto do Atacama, no Chile, e uma praia do litoral do Ceará. Para a concepção e realização de Cruz na América, os mapas surgem como suporte para os desenhos, as ideias. A localização de cada obra advém de coordenadas de latitude e longitude definidas a priori, isto é, ainda como uma operação de inserção na cartografia e sem que a escolha esteja atrelada a qualquer especificidade do sítio onde será implantada. As quatro paisagens escolhidas por Nelson Felix são, antes de tudo, espaços mentais. Os trabalhos não expressam, assim, conteúdos de um espaço psicológico particular nem implicam uma relação de formalização com o contexto: evocam o mundo em sua totalidade. 26
Nessa frase de Glória Ferreira, o uso dos mapas como suporte demonstra que o artista não está estabelecendo relações puramente pessoais ou consequentes de características distintivas de determinados lugares. É esclarecedora a GRANDE BUDHA, 1985-2000
24 FERREIRA, Glória. “Acasos predeterminados”. In: FELIX, Nelson. Trilogias (folder da exposição no Paço Imperial). Rio de Janeiro, 2005. 25 Idem, ibidem. 26 FERREIRA , Glória. “A coisa é ar”. In: FERREIRA , Glória; SALZSTEIN , Sônia; BRISSAC , Nelson. Nelson Felix. Op. cit., p. 14 .
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LATÃO E MOGNO DIMENSÕES VARIÁVEIS SERINGAL NOVA OLINDA, AC PROJETO CRUZ NA AMÉRICA, 1985-2004
nomenclatura do aparelho pelo qual encontra o posicionamento físico antes idealizado em coordenadas: o GPS, Global Positioning System (em português, Sistema de Posicionamento Global). A cartografia permite a Nelson Felix que sua obra abranja a escala do planeta. A dimensão de caráter mental de Cruz na América também é sua dimensão global. Qual palimpsestos, seus mapas são suportes para desenhos, projetos e indicações diversas em uma espécie de nomadismo do olhar que incorpora a ordem pré-gráfica de linhas e nomes de lugares. Desenhos que nos localizam entre o abstrato e o real, entre o visível e o que podemos apenas imaginar, estabelecendo, de certa forma, uma relação entre a cartografia geográfica e a cartografia dos vazios nos corpos, entre a ação no coração do real e a extraterritorialidade. 27
Em 1999, Nelson Felix instala a Mesa na cidade de Uruguaiana, Rio Grande do Sul, em virtude do projeto Fronteiras, do Itaú Cultural, que permite seu financiamento e realização. Em meio ao pampa gaúcho e próximo à fronteira brasileira com o Uruguai, coloca uma chapa de aço de 51 metros de comprimento e 41 toneladas apoiada sobre uma sequência de tocos de eucalipto e 22 mudas de
figueiras-do-mato (onze em cada aresta longitudinal da chapa). O que importa aqui é a transformação ao longo dos anos. As curtas toras de eucalipto tendem a apodrecer, enquanto as árvores provenientes da Índia crescerão e sustentarão a chapa de aço, mordendo-a pelos lados. O tempo de crescimento de uma figueira-do-mato é de 250 anos, ou seja, o trabalho só estará concluso em séculos, tendo a chapa de aço perdido seu paralelismo com o campo e a paisagem horizontal dos pampas. O plano de aço receberá constantemente a seiva dos vegetais e será incorporado ao interior dos caules das árvores em crescimento — um longo processo de deformação do plano da Mesa, que não está restrito à visibilidade do presente. A respeito disso, Luiz Camillo Osorio analisa: A maneira como o natural e o artificial, o belo e o estranho, combinam-se na poética de Nelson Felix, revela seu interesse em ampliar a noção de forma, pondo em tensão o percebido, o concebido e o sugerido. O que “vemos” no embate com suas obras ultrapassa o que se mostra; e esta diferença nasce da capacidade de nossa imaginação interagir reflexivamente com o fenômeno IMAGENS DO PROJETO
27 FERREIRA, Glória. “Acasos predeterminados”. In: FELIX, Nelson. Trilogias (folder da exposição no Paço Imperial). Rio de Janeiro, 2005, p. 213.
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CRUZ NA AMÉRICA / MESA, 1985-2004 URUGUAIANA, RS
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percebido. A potência da forma é proporcional à quantidade de ideias que ela libera no jogo reflexivo da percepção. 28
Idealizado desde 1985, o Grande Budha encontra o seu lugar, em 2000, no Seringal Nova Olinda, no Acre. Aqui o interesse repousava na floresta amazônica, na escala da floresta, em inserir a obra em meio à imensidão de árvores infinita ao olhar. A posição de Vazio coração — deserto no Chile foi definida pela latitude do Grande Budha com a longitude do Paço Imperial, no Rio de Janeiro. Chegando às coordenadas pré-estabelecidas — fortuitamente próximas à mina de cobre denominada “Tesouro”, que passou a ser o segundo nome do trabalho —, Nelson Felix pegou a máquina fotográfica e mediu o tempo de pulsação de seu coração. A velocidade aferida foi aplicada à câmera por meio do controle de abertura: o ritmo do coração de Nelson e o tempo de exposição para tirar a foto eram de pouco mais de um segundo. Como o próprio artista definiu: “Colocar a velocidade do meu pulso é o único jeito de falar, sem palavra, documentar o meu coração sem tentar expressar o sentimento, só mencioná-lo”.29 Entretanto, o tempo de exposição da câmera relativamente alto, somado à claridade do ambiente desértico, fez com que as fotos estourassem. O aparente inconveniente só ressalta que o importante é a experiência do processo, e não o resultado em si. Dentro de Cruz na América, a temporalidade do Vazio coração — deserto é a única que diz respeito ao instante; afinal, os outros três trabalhos estão em constante transformação. O último vértice de Cruz na América é o Vazio coração — litoral: uma esfera de mármore cravejada por 22 pinos de ferro e deixada em um lugar chamado Ponta Grossa, ao final da praia Redonda, no litoral cearense. Deduz-se que as pontas metálicas oxidarão e se dilatarão ao longo dos anos, vindo a quebrar o mármore. As ondas e as marés poderão gerar deslocamentos: de certo modo lá abandonado, o objeto circular poderá mover-se e aparecer nas águas do oceano. O trabalho está acontecendo no presente e, por séculos, permanecerá em transformação distante dos nossos olhos, como observa a pesquisadora e curadora Gabriela Motta em texto recente sobre o trabalho de Nelson Felix. Seu segundo livro foi publicado em 2001 , pela editora Casa da Palavra, com textos de Glória Ferreira, Sônia Salzstein e Nelson Brissac. No mesmo
28 OSORIO, Luiz Camillo. “Improvisos entre o belo e o estranho”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 7 nov. 2001. 29 FERREIRA , Glória. “Concentrações mentais”. In: FERREIRA , Glória (org.). Trilogias: conversas entre Nelson Felix e Glória Ferreira. Op. cit., p. 119.
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VAZIO CORAÇÃO — LITORAL, 2005 FERRO E MÁRMORE 0,60 M DE DIÂMETRO PONTA GROSSA, CE
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ano, apresenta a série Árabe, composta pelas obras Malha,30 Placa e Quadrado, todas realizadas em 2001 . Em Malha, peças em formato de quadrícula em mármore branco italiano são assentadas no piso de modo linear, com exceção de um trecho parcialmente suspenso por um perfil de metal na diagonal e apoiado na parede. Quadrado é a forma dos quatro perfis metálicos que ocupam transversalmente a sala, tendo um prisma de mármore de Carrara assentado no chão. Por sua vez, Placa corta a parede da antiga cavalariça do Parque Lage, sede da Escola de Artes Visuais, no Rio de Janeiro, contrariando o excesso de zelo comum em uma construção tombada como patrimônio histórico. Um grande e ondulado plano de mármore atravessa enviezadamente a parede, sendo avistado pelas duas salas — a que abrigava a Malha e a outra onde estava o Quadrado —, que passaram a estabelecer uma relação mediada por Placa. Aqui há uma franca solidariedade entre obra e edificação, entre a série Árabe e a antiga cavalariça, como assinalou o crítico de arte Wilson Coutinho. Em 2003, a Fundação Iberê Camargo, de Porto Alegre, convida Nelson Felix para realizar Gravura, feita a partir de imagens de órgãos do corpo humano produzidas em um ateliê provisório montado dentro do Departamento de Anatomia da Faculdade de Medicina do Rio Grande do Sul. IMAGENS DA EXPOSIÇÃO SÉRIE ÁRABE, 2001
30 Escultura danificada e destruída. Uma segunda versão da peça foi realizada em 2014.
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PARQUE LAJE, RJ
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EQUILÍBRIO SUBLIME NUM RICO MOMENTO DA ARTE WILSON COUTINHO
Alguns pensadores julgam
paredes, a luz, enfim, tudo o
que se Deus fosse ateu —
que a arquitetura oferece. A
uma impossibilidade e um
ideia pode ser velha. Afinal, o
paradoxo — seria obrigado a
Papa Júlio II apontou, em 1508,
pensar as coisas do mundo e a si
o teto da Capela Sistina para
próprio com a elegância formal
Michelangelo, mandando-o
encontrada na “Ética”, do
se virar.
filósofo holandês Spinoza (16321667). Quando os matemáticos
IR AO PARQUE LAGE CHEGA
resolvem um problema dizem
A SER ATITUDE SOLENE
que “a solução encontrada foi a mais elegante”. Esta
Esta questão voltou, desde
combinação de elegância e
os anos 1960, com outros
formalismo pode ser vista na
problemas. Felix os resolveu
mostra Série Árabe, de Nelson
com brilhantismo, astúcia e
Felix, na cavalariça, dentro
elegância. Para quem gosta de
do Projeto Zona Instável,
artes plásticas, ir ao Parque
no Parque Lage. O artista
Lage chega a ser solene: há
conseguiu fazer de uma questão
muito tempo um brasileiro
do pós-modernismo — a obra
não faz uma instalação com
no lugar in situ, como dizem em
rigor, método e inteligência.
latim os críticos e os artistas —
Sobretudo com emoção,
um verdadeiro clássico. O conceito geral é o de que a antiga estrebaria seja ocupada
de elegância de uma solução
não com obras postas no local,
matemática.
mas que o artista utilize o
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embora esta seja muito contida. A mostra tem o mesmo recado
Usando uma malha
interior do prédio. A obra deve
quadriculada de mármore,
ser disposta, relacionando-se
inclinou uma barra de ferro,
com as dimensões, a altura, as
que se eleva até o teto. A parede
é cortada, em diagonal, com o
exata, sem escorregar em
ondeamento de uma peça de
exibicionismo e fragmentações.
mármore, preenchendo os dois
A mostra tem uma unidade
campos que ela abriu. Na saleta,
perfeita. A sobriedade dos
vedada ao espectador por um
materiais, a ruptura do
vidro, vê-se a continuidade
mármore na parede, que
das ondas marmóreas, espécie
significa o debochado ato de
de subtração do que foi visto
transgredir um local preservado
na outra sala. Na cabeça do
pelo Patrimônio Histórico, mas
espectador, soma-se tudo em
ocupá-lo, de forma plástica,
pura forma, inspirando beleza
faz da mostra um dos mais
e evocando algo semelhante
ricos momentos deste ano
a um sublime; do equilíbrio,
de arte contemporânea no
quase sempre belo, das formas
Rio. Deus, que não é tolo, não
Sabe-se então que não foi
gostaria de ser Spinoza. É
à toa que Spinoza Ética à
possível, porém, imaginar
maneira geométrica.
que o filósofo fosse ver a obra
Se tudo não for verdadeiro,
de Felix. Geometria suave e
há, ao menos, beleza.
sublime, a instalação com
Nelson é, ainda, um dos
pureza plástica dos materiais é
poucos artistas a ter evolução
uma entonação de sobriedade
segura, desde os seus desenhos
e beleza. Construção e puro
dos anos 1980 muito ruins
encantamento.
por sinal — até hoje, quando demonstra audácia e o seu controle. É fascinante ver como organizou sua obra com astúcia, exibindo método e segurança, sem deixar que a exuberância
PUBLICADO ORIGINALMENTE NO
do seu passe da medida
JORNAL O GLOBO, 1 DE JUNHO DE 2001.
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Vazios, projeto iniciado em 1992 e em curso até o momento, diz respeito aos espaços vazios internos do corpo humano, não vistos como áreas de ausência, mas como pontos que concentram (ou por onde passam) forças e energias vitais. É composto por Vazio cérebro, Vazio sexo e Vazio coração. Note-se que este último também se faz presente em Cruz na América, com os trabalhos realizados no deserto do Atacama, 2003, e no litoral do Ceará, 2004, o que expõe, mais uma vez, o ato constante de entrecruzar obras. Vazio cérebro tem sua primeira versão no Vazio de 1992, depois ressurge em Vão, na Bienal de São Paulo de 1996, e reaparece nesta atual mostra da Pinacoteca com o título de Eu vi a América com os olhos d’Ele, iniciado em 2001 e apresentado agora em 2015. Exposto em 2004 em mostra individual na Marília Razuk Galeria de Arte, Vazio sexo é proveniente de um cubo de mármore de Carrara de noventa centímetros de lado e 2,5 toneladas de peso. O artista extrai matéria do bloco de pedra dando forma a um grid vazado, sem qualquer emenda, e faz uma escultura cúbica menor — um duplo da forma externa — dentro do interior escavado. Fez isso sem abrir o objeto exterior, isto é, somente se utilizou das aberturas do cubo maior para esculpir o cubo menor. Por fim, forja-se certo desequilíbrio do rigor formal e construtivo das peças de mármore ao apoiá-las sobre moldes de órgãos sexuais femininos em prata, resultando um ligeiro deslocamento entre as partes. O crítico de arte Rodrigo Naves nota que “os vãos que introduz no mármore servem somente para encontrar dentro o que já havia fora. Sem mistério”.31 Nelson Felix e Glória Ferreira fizeram a curadoria da exposição Trilogias, no Paço Imperial, em 2005, e publicaram um livro com o mesmo nome e no mesmo ano pela editora Pinakotheke, no qual se destaca “Concentrações mentais”, uma compilação de conversas entre os dois que durou seis anos. Reforçando os entrelaçamentos próprios à sua obra, trabalhos de Nelson Felix são organizados em trilogias do tempo, do vazio e da cruz. A Trilogia do tempo conjuga Cruz na América, a série Gênesis e Mesas. A Trilogia do vazio compila os Vazios já mencionados acima. E a Trilogia da cruz agrupa Cruz na América, Lajes/ Pilar e a série Árabe. Uma pequena aldeia no interior da Bolívia deu nome à obra que ocupou o Museu Vale do Rio Doce, em Vila Velha, em 2006. Camiri, desse mesmo ano, encontra-se na mesma latitude do museu no Espírito Santo, a uma distância de 23 graus, sendo este número proveniente dos 23 graus de inclinação em que a Terra gira ao redor do eixo do Sol. O deslocamento de Nelson Felix até o GRAVURA, 2003 TÉCNICA E DIMENSÕES
31 NAVES, Rodrigo. “O vento e o moinho”. O Estado de S. Paulo, 2005.
132
COLEÇÃO FUNDAÇÃO IBERÊ CAMARGO, RS
O VENTO E O MOINHO RODRIGO NAVES
No dia 16 de junho de 2005, o
e afirmou que a empresa
seu Grande vidro de 1912 a
artista Nelson Felix recebeu
se propunha a restaurá-lo
1923, quando o abandona. Em
por telefone uma notícia
prontamente. Então ocorreu o
1926, ao ser transportado, o
desoladora. A caixa que abrigava
que, para mim, foi a revelação
trabalho tem sua parte superior
sua escultura Vazio sexo caíra da
proporcionada pelo incidente.
trincada e só então o artista o
empilhadeira que a carregava
O artista descartou sem mais o
dá por finalmente terminado. O
— o trabalho ia ser exposto em
restauro da peça, argumentando
antirromantismo de Duchamp
Paris — e partira-se em catorze
que sua inteireza “era parte
parecia precisar da intervenção
pedaços.
do conceito do trabalho”. O
do acaso — a perda de controle
Sou amigo de Nelson Felix
“conceito do trabalho” talvez
trazida pelo acidente — para
e sabia de seu carinho por
possa ser entendido pelo sentido
coroar a finalização de uma
aquela obra, dos cinco longos
que o próprio autor vê em sua
das obras mais intrincadas da
meses para realizá-la e até
obra. Em seu diálogo com a
história da arte. No caso de Vazio
dos problemas físicos que a
crítica Glória Ferreira (publicado
sexo foi a destruição da obra que
execução lhe trouxe. Tratava-
no livro Trilogias, editado pela
me ajudou a compreendê-la,
se de um cubo de mármore de
Pinakotheke), Nelson Felix
que me ajudou a completá-la,
noventa centímetros de lado,
entende Vazio sexo como uma
enquanto sentido e significação.
com mais de 2,5 toneladas, que
espécie de Coluna infinita — o
o artista esculpira na forma
magistral trabalho de Brancusi
se partem. Ao menos não se
de uma grade vazada, sem
— voltada para dentro, o que
partem como objetos de vidro
nenhuma emenda. Mais: no
de fato a relacionaria com o
ou louça. Podem envelhecer,
interior do cubo maior escavara
êxtase sexual, ele também
perder a pertinência ou ser
um outro menor, novamente
experiência sem fissuras em
esquecidos. Por que então não
sem abrir a forma exterior,
que os limites do corpo parecem
permitir o restauro da obra, que
realizando-a através dos espaços
momentaneamente dissolvidos.
guardaria ainda muito do seu
que abrira no cubo maior. Ao
Considero fecunda essa
Como se sabe, conceitos não
conceito e significado, como já
expô-lo, o artista deslocou
interpretação. Mas para mim
ocorreu tantas vezes com outras
ambos os cubos, calçando-os
o acidente e a destruição do
obras de arte?
com moldes do órgão sexual
trabalho, paradoxalmente,
feminino.
puseram em movimento uma
escultura propriamente dita,
obra que, intata, talvez não
diferente da modelagem e
que entrara em contato com
me intrigasse tanto. Marcel
da fundição — sempre foi o
Nelson Felix estava nervoso
Duchamp esteve às voltas com
campo privilegiado das tensões
O gerente da transportadora
134
A escultura — sobretudo a
entre espírito e matéria, desde
estabelecendo com elas uma
intelecto a ele acede”. Porém,
que entendamos esse dois
relação conflituosa e dramática,
tamanha era a tensão entre esses
termos em sentido ampliado,
em que a vontade humana
dois polos — sobretudo para a
como consciência e história,
(as formas) já não consegue
visão cristã e neoplatônica de
vontade e intersubjetividade,
se impor placidamente aos
Michelangelo — que mesmo
religiosidade e mundo. Talvez
acontecimentos. Essa visão mais
as obras mais acabadas, como
o classicismo grego seja um
complexa da realidade, histórica
os dois Escravos do Museu do
dos poucos momentos em que
e trágica, talvez encontre seu
Louvre, mantêm a dramaticidade
esse embate encontrou uma
ponto culminante na esplêndida
implicada por suas escolhas.
solução harmônica e grandiosa,
Madalena em madeira —
um momento em que ambos
desgrenhada, lacerada de cima
artistas, penso que nenhum outro
os polos conciliavam-se no
a baixo —, na qual as forças
escultor — Rodin e Giacometti
belo ideal helênico. Mesmo a
mundanas agem sobre a forma
modelavam — alcançou a
retomada das formas antigas
mais intensamente do que sua
mesma intensidade. Até que
pelo Renascimento rapidamente
capacidade de ordená-las.
Brancusi apontasse para um novo
se vê crispada por uma nova
Depois desses dois grandes
Michelangelo — sobretudo
classicismo, moderno, conduzido
resistência que os materiais (e
nas obras posteriores ao Davi
por uma noção de universalidade
a história) oporão a uma serena
— adota outro caminho. Em
em que a economia de suas
formalização.
lugar de procurar ordenar a
formas deixava entrever todas as
matéria a partir de um projeto
focas em sua Foca. Ou seja, não
no início de sua trajetória,
humano, exterior a ela, desloca a
mais o belo corpo grego, singular,
submeter o mármore a seus
espiritualidade, o espírito divino,
mas exemplo de todas as belas
desígnios, esculpindo-o
para o interior do próprio bloco
proporções, padrão de todas as
de modo a ordenar
de mármore. Caberia ao artista
belezas possíveis. As esculturas
inequivocamente a luz — a
“apenas” libertar da opacidade
de Brancusi nascem dos traços
natureza a ser domada — que
da rocha uma alma que já a
estritamente necessários para
incidia sobre os volumes. Logo,
habitava. Como diz Michelangelo
identificar um ser qualquer, peixe
porém — como Argan mostra em
em um de seus poemas (que
ou pássaro, que precisará, para
suas análises —, põe em causa
traduzo livremente), “o grande
existir, conquistar uma realidade
esse poder de ordenar o mundo
artista não tem um conceito
só sua. Ganhar carne: coisa que o
e, em seus relevos comprimidos,
que o bloco de mármore não
extravasamento do mármore na
a luz resvala sobre as superfícies
contenha em sua massa, mas
Foca — com seus veios (as estrias
levemente escavadas,
apenas a mão obediente ao
do bicho) e com a matéria que se
Donatello ainda consegue,
135
expande (a gordura da foca) —
Na verdade, nessa obra o
desenham, não se sabe se por
espírito (ou projeto, ou mente,
falta de vento ou por falta de
pouco importa) não conforma
moinho. Ou dos dois? Energias
de Nelson Felix tem a ver com
nada. Cria apenas uma baliza
escassas em um mundo que
tudo isso? Embora reate com
gradeada por onde o espaço
assimila tudo que não se lhe
a tradição da escultura, utilize
circula. E os vãos que introduz
assemelhe. Só restaria à arte,
um material com milênios
no mármore servem somente
então, identificar um estado de
de tradição — o mármore de
para encontrar dentro o que já
paralisia e desorientação? Não
Carrara — e suponha muito
havia fora. Sem mistério. Nem
me parece pouco: uma modesta
trabalho, ela aparentemente
como metáfora de uma suposta
vela a indicar o sentido do
contraria aquela tradição. A
relação entre microcosmo e
pouco vento, a fugacidade da
forma de Vazio sexo tem uma
macrocosmo — como ocorre
experiência contemporânea.
simplicidade evidente, a ponto
na milenar tradição chinesa
Uma forma montada para
de lembrar certas construções
de esculpir esferas dentro de
revelar aquilo que nos escapa.
muito pouco complexas de Sol
esferas — o trabalho presta, já
No entanto, a obra oferece
LeWitt, artista americano ligado
que não tem a dimensão da mão
mais. Esse trabalho árduo e inútil
ao minimalismo, movimento
(a outra esfera a completar as
apresenta, na sua modéstia,
que sempre hostilizou qualquer
esferas esculpidas) e é anguloso
um outro modo de vida, que
procedimento que implicasse
demais para representar a
fala do prazer de realizarmos
expressividade e formas
harmonia do mundo.
aquilo que gostamos, ainda
indicava claramente. E o que a escultura partida
complexas, mesmo aquelas
E também a realidade (o
que não saibamos bem por
resultantes do confronto com
mármore) se deixa talhar
quê. Escrevendo sobre o
um material resistente a ser
preguiçosamente, sem oferecer
perfeccionismo de João Gilberto,
trabalhado.
resistência àquilo que o
Lorenzo Mammì mostra como
Em Vazio sexo, o fazer
desbasta. Numa passagem
ele ultrapassa o profissionalismo,
se oculta na obra, e dentro
tocante de uma carta de 1884
reatando paradoxalmente com
do bloco — Michelangelo
ao irmão Theo, Van Gogh —
o diletantismo, “pois é diletante
borgiano — não há nenhum
comentando o esmagamento da
também aquele que leva o
espírito a ser revelado, apenas
revolução de 1848 na França e
acabamento do produto muito
o duplo da forma externa,
a permanência das barricadas
além das exigências do mercado”.
outro cubo. Estaríamos então
no ânimo de muitos cidadãos
Isso é arte. Ou sexo. Um conceito
diante de mais uma cansada
inconformados — cita a seguinte
que mantemos porque queremos.
demonstração dos limites
frase: “O moinho não mais
E que ficamos danados da vida
ou da impotência da arte
existe, mas o vento continua”.
quando alguém o parte.
contemporânea? De mais um
A escultura de Nelson
trabalho que quer manter viva a
Felix é a revelação de uma
arte apenas para escarnecer de
situação muita semelhante
sua inanição, um proxenetismo
àquela, talvez mais grave: a
do espírito tão corrente nos
nossa. Vivemos num período
nossos dias? Não acredito.
em que os projetos não se
136
PUBLICADO ORIGINALMENTE NO JORNAL O ESTADO DE S. PAULO, 4 DE SETEMBRO DE 2005. DETALHE DA OBRA VAZIO SEXO, 2004
REMISSÕES GLÓRIA FERREIRA
Com os riscos, vícios e repetições
concluem-se por ocasião do Vazio
com José Resende, Lygia Pape,
inerentes à troca de ideias,
coração, que completa a Trilogia
Nuno Ramos e Rodrigo Naves”.
essas conversas com Nelson
do Vazio e que também faz parte
Questões que, de certa
Felix foram gravadas em dez
da Cruz na América.
encontros, na cidade do Rio de
Distinto de um ato de
maneira, também perpassam pelo conjunto de textos críticos
Janeiro e no ateliê do artista, em
avaliação, “Concentrações
aqui reproduzidos, nos quais
Nova Friburgo, no interior do
mentais” centra-se na fala do
a pluralidade de vozes pontua
estado. Iniciaram-se em 1999, um
artista sobre o desenvolvimento
momentos de sua trajetória.
pouco após Mesa ser realizada em
de seu processo de trabalho,
A começar por “Da cor do
Uruguaiana, no âmbito do projeto
enfim, sobre as intenções e a
amarelo”, texto de Nelson Felix
Fronteiras, do Itaú Cultural, que
exterioridade de sua prática
que acompanha sua primeira
reuniu um conjunto expressivo
artística. Ao delinear-se a
exposição individual, realizada
de artistas — Carmela Gross,
possiblidade de publicação, as
na galeria Jean Boghici, em
Carlos Fajardo, Angelo Venosa,
conversas, sobretudo no último
maio de 1980. Partindo da
José Resende, Artur Barrio,
período, foram adquirindo o tom
característica do homem
entre outros — e se constituiu
de entrevista. E se a entrevista
moderno em querer considerar-
em um marco de atuação no
está relacionada a seu aspecto
se “um ser unicamente histórico,
espaço não museológico no
jornalístico, sobretudo em sua
no desejo de viver num cosmo
Brasil. Desenvolvidas de certo
origem, torna-se, enquanto
radicalmente dessacralizado”,
modo como um “processo”
declaração em primeira pessoa,
com a consequente “perda de
sem objetivo definido de futura
uma fonte de informação direta
solidariedade com a natureza
publicação, essas conversas
do artista, com grande expansão
e com a vida mesma”, o artista
acompanharam o próprio
a partir dos anos de 1950, em
insiste na concepção do processo
processo do artista na idealização
especial desde a pop art, com
criativo como algo que admite
de trabalhos extremamente
o declínio dos manifestos ou
diversas interações em todo o
significativos e em sua realização,
programas artísticos. As questões
decorrer e que afeta sua própria
por vezes solitária, na floresta
aqui abordadas estão presentes
alma. “Da cor do amarelo”
amazônica ou no deserto — por
em suas notas e comentários dos
introduz-nos ao universo de
exemplo, em 2000, no Acre,
projetos, em mapas ou em textos
suas reflexões, opções éticas,
Nelson Felix finaliza Grande
e entrevistas, como por exemplo
espirituais e estéticas, que
Budha, iniciado em 1985 e
em “O que me interessa é essa
até hoje informam sua práxis.
apresentado, ainda como projeto,
coisa indefinidamente sugestiva...
Neste longo depoimento atual
em diversas ocasiões —, e
Uma conversa de Nelson Felix
há uma densa imersão em
seus interesses e constructos
remetendo a sua significação
vertical, em rotação, talvez),
ficcionais, os quais permeiam e
mais primitiva de demarcação
e que ainda permitem outras
qualificam a especificidade de
espacial, além de sua simbologia
correspondências — por acaso,
sua ação. Sua edição aproxima
religiosa. Questões igualmente
entre a Cruz na América e a
temas abordados em diferentes
presentes na arte do século XX
constelação do Cruzeiro do
ocasiões, estabelecendo
— apesar do eclipse, enquanto
Sul, ambas à deriva, em seus
cruzamentos diversos.
tema, da arte cristã, mas não de
deslocamentos e transformações.
significações espirituais —, como
Quiçá subjugadas à atração
A cruz, com seu amplo universo de significações e
em Mondriam, por exemplo. Ou
que a simbologia da cruz — de
simbologias, declina-se em
em Beyus. Ou, ainda, no colossal
maneira indefinida, segundo o
uma série sempre renovada de
Double Negative (1969-1970), de
artista — sempre exerceu sobre ele,
remissões na obra de Nelson
Michael Heizer, e no efêmero
essas conversas retomam questões
Felix, sendo sua maior expressão
Cross (1969), de Walter de Maria,
sempre em outras abordagens,
Cruz na América, na qual cintilam
ambos em Nevada.
desvelando os compromissos
uma travessia do espaço cósmico
Utilizar-se de cruzamentos
existenciais de sua poética. Ao
e a impossibilidade do acesso
entre diferentes simbologias e
conjugar a dimensão espiritual
direto às coisas. As coordenadas,
referências, sejam elas orgânicas
com seu engajamento no processo
que localizam com precisão cada
ou científicas, enquanto
histórico da arte, Nelson Felix,
uma das obras, são os únicos
“acasos predeterminados” que
sem considerar prescindíveis a
elementos estáveis. Impossível
precisam do lugar, tem sido
cultura e a filosofia ocidentais,
documentá-la em sua totalidade
uma estratégia de Nelson Felix
recorre à filosofia oriental como
mesmo por satélite: incorpora
para demarcar o site specific e
abertura para questionar conceitos
imagens, como as do deserto
os efeitos de composição, ao
causais e lineares. Questão nem
do Atacama, ou perde-se na
mesmo tempo incorporando
sempre facilmente abordada pela
floresta, como o Grande Budha.
o hibridismo e a transgressão,
herança formalista presente na
Evoca e dialoga com a extensa
como em sua particular relação
história e crítica da arte.
história da representação da
com a escultura e sua tradição.
cruz na arte e na arquitetura.
De maneira surpreendente
Em A crucificação de São Pedro,
e por vezes estonteante,
por exemplo, um dos últimos
entrecruza trabalhos que se
afrescos de Michelangelo, uma
irrigam uns aos outros, como
imensa cruz invertida estrutura
constelações móveis (a leitura
o espaço de toda a composição,
jamais é linear, mas diagonal,
139
PUBLICADO ORIGINALMENTE EM FERREIRA, GLÓRIA. CONVERSAS ENTRE NELSON FELIX E GLÓRIA FERREIRA. RIO DE JANEIRO: PINAKOTHEKE, 2005.
vilarejo boliviano é o princípio do trabalho, ou, em termos dados pelo crítico de arte Ronaldo Brito, de sua “operação escultórica”.32 O que há de visível dentro do antigo galpão capixaba é uma sequência de perfis metálicos incrustados nas paredes, nas quais se apoiam, além de dois cubos, um cilindro maior e dois anéis menores, todos ocos e em mármore de Carrara. O posicionamento ritmado das vigas de ferro nos restringe a observar a obra em somente duas áreas. O fato de o espectador estar diante da obra sem poder percorrê-la é uma condição semelhante à da fotografia que Nelson Felix faz ao estar frente a Camiri, na Bolívia. Esse deslocamento até Camiri é uma matéria tão constituinte da escultura quanto qualquer mármore ou ferro dentro do museu. Tanto que os 23 graus da Terra em relação ao Sol têm um “estatuto de ‘Princípio de Composição’”,33 isto é, todos os elementos do trabalho — elementos visíveis e invisíveis — são posicionados de acordo com essa referência. Por mais amplas as interpretações que o visitante pode ter diante da obra, por mais que nossa imaginação seja incitada, é o ato de deslocamento que fundamenta e dá espessura ao trabalho. A ida a Camiri, a oeste, teve rebatimentos ao norte, depois ao leste e, por fim, ao sul. Em desenhos, por vezes sobrepostos a planos cartográficos, Nelson Felix estabelece novas coordenadas sobre o mapa-múndi, vértices de um retângulo com quatro cantos no mundo. Sobre esse procedimento, esclarece: Os trabalhos não respondem aos lugares; são guiados por suas abstrações, por rebatimentos, teóricos e geográficos, de coordenadas e convenções. Um desenho no globo os determina.34
Na República Dominicana e em Anguilla, no Caribe, o artista deixa os dois anéis menores de mármore que estavam no museu de Vila Velha. No mesmo ano de 2007 , cumpre um longo procedimento burocrático para ir até Dongsha, um atol em formato circular em meio ao oceano Pacífico, pertencente a Taiwan, mas reivindicado pela República Popular da China. Lá abandona um delicado anel de mármore de apenas 43 centímetros de diâmetro. No ano seguinte, vai até a Austrália, mais especificamente Karratha, onde deixa 22
32 BRITO, Ronaldo. “Corrigir pelo erro”. In: FELIX, Nelson; BRITO, Ronaldo; FLÓRIDO CESAR, Marisa. Concerto para encanto e anel. Rio de Janeiro: Editora Casa 11, 2011, p. 71.
33 Idem, ibidem, p. 73. 34 FELIX , Nelson; BRITO , Ronaldo; FLÓRIDO CESAR , Marisa. Concerto para encanto e anel. Op. cit., p. 20.
140
IMAGENS DA EXPOSIÇÃO CAMIRI, 2006 MUSEU VALE DO RIO DOCE, ES
CORRIGIR PELO ERRO RONALDO BRITO
142
A forma da exposição é a
natural é acumular negativas,
conjunção imponderável de
constatar a inoperância do nosso
dois fatores mais que diversos.
vocabulário ao lidar com essa
De imediato, há a sequência de
espécie de ação escultórica
vigas de ferro que sustentam um
contemporânea. Temos de
tanto precariamente dois cubos
assumir desde logo, por exemplo,
e um grande anel de mármore
que uma dimensão invisível seja
de Carrara, a tomar o galpão do
parte integrante da forma. E, de
Museu Vale do Rio Doce. À falta
fato, não pode ser diferente, ou
de um verbo adequado, digamos,
o artista não elegeria Camiri o
soma-se a isso o deslocamento
título da exposição. No entanto,
do artista até Camiri, pequena
é evidente que a formidável ação
aldeia no interior da Bolívia, em
material dentro do galpão não
função de sua (quase) perfeita
visa apenas ilustrar uma ideia
correspondência com a situação
poética — ela é o que é — o que
geográfica do museu em Vila
inclui as graves decisões técnicas
Velha: encontram-se a 23 graus
e estéticas de sua realização. Por
um do outro, sobre a mesma
outro lado, como dar a medida
latitude no globo, os mesmos
crítica exata à ida do artista a
23 graus de inclinação em que a
Camiri? Está bem claro, não se
Terra gira ao redor do eixo do Sol.
trata de turismo afetivo. Chamá-
A operação escultórica, bastante
la aventura existencial, porém,
concreta, que envolve o espaço
parece-me um pouco forçado,
do museu e a viagem casual mas
anacrônico, convocar uma alta
esteticamente compulsória do
espiritualidade e uma exigência
artista, deslocando-se a Camiri,
de liberdade a essa altura
constituem, portanto, a forma
descabidas. Sem dúvida, alguma
aberta do trabalho. A notória
coisa dessa ordem investe-se
dificuldade do texto crítico
na ética de trabalho do artista.
consiste em achar palavras
Receio, contudo, que tanto
para descrever e qualificar
“aventura” quanto “existencial”
semelhante forma, tão material
sejam termos culturalmente
quanto intangível. A tendência
saturados.
Já a eventual solução mítica
fazê-lo vibrar, propagá-lo no
e mais outro voo até chegar a uma
não é solução porque é parte do
curso da linguagem verbal. A sua
remota vila no interior da Bolívia.
problema. Qual o estatuto de
decodificação imprescindível,
De lá, fotografa sucintamente o
mitologias pessoais no universo
e sempre relativa, é inseparável
que está à sua frente. A foto vai
onipotente da ciência? Ainda
de uma determinada estratégia
se juntar à sua correspondente,
que se suponha inerradicável
expressiva.
também tirada sem maiores
O desafio é sustentar, no
pretensões, num ponto preciso
da sociedade humana, sobra
plano da razão crítica, a tensão
nas cercanias do museu em Vila
inteira a questão de sua
específica desse enigma poético
Velha. Os dois cliques fecham o
relevância para o processo
a envolver duas instâncias
arco imaginário, a parábola de
estético contemporâneo.
tão díspares. Tentar descobrir
deslocamento que o trabalho
Independentemente da
pontos de contato ali onde
descreve.
orientação espiritual de
eventualmente elas se cruzem
seu autor, uma poética
e se interpenetrem ou, quem
alongaríamos ao infinito,
contemporânea não se qualifica
sabe, atravessem uma o caminho
deixemos somente registrado que
graças a esta ou àquela
da outra. Senão vejamos. Uma
o evento atual, no Museu Vale do
mitologia, sequer pelo grau
das principais características
Rio Doce, inscreve-se num plano
maior ou menor de intensidade
da instalação (reabilitemos por
poético mais amplo que prevê a
de seu componente mítico.
ora esse vocábulo um tanto
realização de outros trabalhos,
Mitologias, em suma, acabam
desmoralizado) é impedir quase
também a exigir o deslocamento
elas próprias, em larga medida,
por completo a livre circulação
do artista a meridianos
escolhas estéticas.
num local onde ela seria natural
predestinados do planeta. Sem
e fluente. Mas não. Com seus
intenções polêmicas, que teriam
recorrer à máxima duchampiana:
elementos pesados, a misturar o
aqui uma escala social risível,
não há solução porque não há
rude e o artístico, o cotidiano e
devemos observar, contudo,
problema. A frase é boa e tem sua
o histórico, e apesar de seu trato
que semelhante trajeto artístico
parcela de verdade, mas emprega
arriscado com a lei da gravidade,
é inversamente proporcional
uma noção estrita, matemática,
a instalação curiosamente
ao fenômeno da globalização
de problema. Porque, nesse
resulta, à primeira vista, bem
cultural — trata-se de um projeto
sentido, um texto crítico não
pictórica: só podemos contemplá-
discreto e fragmentário de
visa propriamente resolver o
la a partir de duas áreas restritas,
subjetivação, entre o ético e o
problema do trabalho (seria o
não há como percorrê-la. E, no
estético, a empenhar certo modo
equivalente a esterilizá-lo) e sim
entanto, o artista viaja, toma um
de comportamento. O essencial
certa dimensão mítica, básica,
Sempre se pode, é verdade,
143
Porque, do contrário, nos
é desde logo compreender que,
partido aleatório radical — tudo
(1,40 metro), termina (ou começa,
hoje em dia, muito mais do que
o que fizesse, dali em diante,
depende do ponto de vista)
pela criação de obras e situações
viria predeterminado por esse
por atravessar os dois cubos de
inusitadas, a arte contemporânea
deslocamento. Eis aí, a meu ver,
mármore (noventa centímetros)
distingue-se pela qualidade
uma simpática variante pouco
que se situam, digamos, em
singular de sua experiência de
ortodoxa de perfeccionismo
ligeira conjunção; no outro
produção. De novo, para a crítica,
moral: corrigir o erro pelo erro.
extremo da sala, numa outra
Para efeitos produtivos,
sequência das mesmas vigas,
a árdua tarefa é caracterizar tal experiência sem diluí-la em
que é o que conta, a decisão
agora transversais, inclinadas a
retóricas culturais mais ou menos
intempestiva concede ao artista
23 graus, a primeira delas ergue
politicamente corretas.
ampla margem de manobra. Todo
o grande anel de mármore (2,30
acaso, todas as circunstâncias
metros de diâmetro).
Essa experiência singular
A mesma força que move o
de produção determinou, há
vitais e formais encontram um
um tempo, que o desvio de 23
denominador comum, um agente
artista a pôr literalmente mãos
graus da órbita da Terra em
poético catalisador. Extrapolando
à obra, ao tornear ele próprio
relação ao eixo do Sol adquirisse,
um pouco, o que seria, pelo visto,
os dois cubos de mármore (um
para o artista, o estatuto de
o próprio do humano, considero
mais, outro menos vazado), o
Princípio de Composição.
a ideia dessa errância cósmica
impulsiona até Camiri. Nada
Colocando o dilema em termos
um bom sólido geométrico
existe aí de heroico ou glamoroso:
escolares: depois do all-over de
imaginário — cubos e cruzes,
dispor-se a cumprir, na íntegra,
Jackson Pollock e do site specific
vigas e anéis, todo o repertório
a demanda do trabalho gera um
minimalista, respostas últimas,
formal do artista enfim passa a ter
estado de mobilização poética
pós-cubistas, ao esquema
um núcleo de referência, passa
que, por sua vez, estimula o
composicional da perspectiva
a girar na órbita de influência
ânimo vital.
renascentista, o que fazer? A
desse sólido errante imaginário.
saída providencial do artista foi,
Só por causa desse princípio,
materialidade e uma certa
partindo da planaridade e da
dessa arché composicional,
invisibilidade compõem juntas
serialidade anti-ilusionistas do
Nelson Felix pôde contar agora
o conteúdo da exposição. Muito
minimalismo, recusá-las como
com a sorte: a latitude quase
esquematicamente, eu diria
padrão definitivo. Tudo afinal
perfeita (segundo a lógica do erro
que, feita a experiência física da
é composição, ele argumenta,
genérico) do Museu Vale do Rio
instalação, somos induzidos a
nenhum sítio será assim tão
Doce praticamente lhe cai do
percorrer o espaço imaginativo
específico que consiga abstrair
céu. O que de pronto, como pude
de suas ilações poéticas. Não
o resto do planeta. Comovido
acompanhar de perto, o levou
estivesse a aura da palavra
por uma meditação dos antigos
a visualizar, quase como uma
“viagem” tão degradada, sempre
persas, que enxergavam no
fatalidade, a presente instalação.
a figurar o pseudodelírio ou o
desvio de 23 graus da Terra
Ao cortar de lado a lado o galpão
mero equívoco, poderíamos
em relação ao eixo do Sol a
pronunciadamente longitudinal,
desfrutá-la mais à vontade.
razão da errância cósmica do
uma sequência de vigas paralelas,
De fato, a viagem a Camiri
homem, Nelson Felix adota um
à altura e intervalos regulares
é um componente material,
144
Uma considerável
embora oculto, da escultura da
do mundo da vida. Mas tudo
exposição, outra de suas vigas,
isso só nos ocorre depois: como
associada aos dois cubos e,
se apresenta concretamente,
naturalmente, à emblemática
fazendo vibrar sua presença no
forma circular do anel. O artista
espaço do museu, essa escultura
fez efetivamente a viagem, e com
aberta, expansiva, não conhece
um propósito bem definido. Não
nostalgia.
é o caso de dramatizá-la; ela foi o que foi, isto é, parte constitutiva do processo do trabalho. Sem o deslocamento do artista a Camiri, vigas, cubos e anel ficariam, quem sabe, sem sustentação. Ou, ao contrário, talvez ficassem presos, estáticos, esquecidos
PUBLICADO ORIGINALMENTE NA EXPOSIÇÃO CAMIRI, MUSEU VALE DO RIO DOCE, VILA VELHA, ESPÍRITO SANTO, 2006.
145
anéis de ferro e um de mármore em meio a uma salina. Completado o retângulo, uma quinta coordenada externa a essa figura geométrica sobre o mapa é escolhida de maneira praticamente aleatória: o vulcão Hekla, na Islândia. Lá realiza o mesmo procedimento inicial de Camiri: olha para o próximo lugar onde irá expor, o Parque Lage, no Rio de Janeiro, e tira uma foto. Os registros desses deslocamentos são as fotografias. Por maior que tenha sido o périplo, o resultado não é majestoso, nem mesmo diretamente consequente. Os deslocamentos são “passagens para a futura escultura”.35 A futura exposição em questão chama-se Cavalariças, de 2009, que ocupa toda a edificação de mesmo nome no Parque Lage. Duas salas são moduladas com 68 vigas de aço na vertical e 1,40 metro distantes entre si. Fincados ao piso, os perfis metálicos variam de cinco a sete metros de altura, quase sempre tocando o teto. O mesmo anel de mármore de Carrara, de 2,30 metros de diâmetro e nove toneladas, equilibra-se em quatro vigas enviesadas a cerca de um metro de altura, interrompendo a sequência vertical e rigorosamente distante dos outros perfis bem no centro da sala e alinhada à porta de acesso. A forma cilíndrica acomoda-se torta naquela estrutura metálica. Como descrito por Ronaldo Brito: “A situação escultórica arma-se entre o cálculo preciso e o dado circunstancial, entre um processo formal longamente elaborado e o aspecto de canteiro de obras”.36 Retornando à questão fundante de Cavalariças, os deslocamentos para os cinco pontos longínquos na esfera terrestre informam o ofício da escultura. Camiri, Caribe, Dongsha, Karratha — quatro cantos — e Hekla estão presentes no antigo pavilhão do Parque Lage, de maneira latente: Tudo é a escultura pronta, finalmente, tudo conta em seu processo de realização. A experiência de Cavalariças se quer autônoma, imanente, prescinde da narrativa das manobras poéticas que a antecedem. E, no entanto, elas foram inadiáveis, imprescindíveis: agentes positivos da forma da escultura.37
Também no ano de 2009 , na H.A.P. Galeria, no Rio de Janeiro, Nelson Felix apresenta Cubounido, que havia iniciado em 2007. A obra consiste em três peças, cada uma composta por dois cubos vazados — as arestas são mantidas e
35 BRITO, Ronaldo. “Percurso da escultura”. In: FELIX, Nelson; BRITO, Ronaldo; FLÓRIDO CESAR , Marisa. Concerto para encanto e anel. Op. cit., p. 85 .
IMAGEM DO PROJETO CONCERTO PARA ENCANTO E ANEL
36 Idem, ibidem, p. 83.
VULCÃO HEKLA,
37 Idem, ibidem, p. 86.
ISLÂNDIA, 2008
146
147
CAMIRI É UMA CIDADE NA BOLÍVIA QUE SE LOCALIZA NO CENTRO DA CRUZ TRAÇADA SOBRE O MAPA PARA DEFINIÇÃO DO PROJETO CRUZ NA AMÉRICA. CONCERTO PARA ENCANTO E ANEL ORIGINA-SE DAS COORDENADAS DESSE CENTRO (LATITUDE E LONGITUDE) E É REALIZADO EM TRÊS PARTES: DUAS EXPOSIÇÕES E UMA SÉRIE DE AÇÕES ESCULTÓRICAS FEITAS AO REDOR DO MUNDO. OS LOCAIS DAS AÇÕES SÃO DEFINIDOS PELOS REBATIMENTOS DAS COORDENADAS DE CAMIRI, E O DESENHO DESSE DESLOCAMENTO NO GLOBO ESTRUTURA TODA A OBRA. A IDEIA DE CÍRCULO E DE TEMPO CIRCULAR PERMEIA TODO ESTE TRABALHO. SEJA NA FORMA OU NA MANUFATURA DOS BLOCOS DE MÁRMORE, NO DESLOCAMENTO DO ARTISTA PELO MUNDO E, PRINCIPALMENTE, NA ROTAÇÃO DAS VIGAS NOS ESPAÇOS DAS DUAS EXPOSIÇÕES, CAMIRI (MUSEU VALE, VILA VELHA, ES, 2006) E CAVALARIÇAS (ESCOLA DE ARTES VISUAIS DO PARQUE LAGE, RIO DE JANEIRO, RJ, 2009). O ARTISTA TECE UMA SEQUÊNCIA DE RELAÇÕES, ENTRECRUZA SIGNIFICADOS E TURVA DELIBERADAMENTE INÍCIO E FIM DOS TRABALHOS, INTERLIGANDO EXPOSIÇÕES, ESCULTURAS, AÇÕES, DESLOCAMENTOS, ÂNGULOS ETC. AS DUAS EXPOSIÇÕES E A SÉRIE DE AÇÕES NÃO SÃO ESTANQUES, MAS FORMAM UMA UNIDADE, COMO UMA ÓPERA E SEUS ATOS, OU UM CONCERTO E SUAS PARTES. IMAGENS DO PROJETO CONCERTO PARA ENCANTO E ANEL, 2005-2009
o núcleo esvaziado — retirados do mesmo bloco de mármore italiano. A ideia de um cubo dentro do outro executado sem emendas remete ao Vazio sexo. Em Cubounido, anéis de ouro tornam-se pontos de apoio entre a obra e o piso, e também uma espécie de “cartilagem metálica” que evita a fricção entre os cubos de mármore. É evidente um componente simbólico na escolha do anel para os pontos onde as partes se encontram e se apoiam. Nota-se também que os três exemplares de Cubounido permitem um jogo de equilíbrio e desequilíbrio entre os cubos, de inclinação e paralelismo entre as partes, ou como escreveu Ronaldo Brito: “Como de costume na obra de Nelson Felix, enquanto se afirma, a geometria também se desmente”.38 A quarta peça é Desenho no mundo, de 2009: dois paralelepípedos de Carrara entrecruzados, um na vertical e outro na horizontal. Desde Camiri, passando pelos deslocamentos pelo globo, tudo se amarra no projeto Concerto para encanto e anel, desenvolvido de 2005 a 2009 e realizado no Oi Futuro, no Rio de Janeiro, em 2011 (o livro homônimo com imagens desses trabalhos e textos de Ronaldo Brito e Marisa Flórido Cesar foi publicado no mesmo ano). Quando esteve na Austrália, Nelson Felix fez uma segunda obra a partir de uma figura geométrica desenhada sobre um mapa — no caso, o de Portugal. IMAGEM DA EXPOSIÇÃO CAVALARIÇAS, 2009
38 Idem, ibidem, p. 87.
150
PARQUE LAGE, RJ
151
4 cantos, de 2008, é o deslocamento do artista acompanhado de quatro blocos
de pedra calcária de quatro a seis toneladas extraídos de uma pedreira da cidade portuguesa de Fátima. Com o suporte da Fundação Serralves (Porto) e do Ministério de Turismo de Portugal, Nelson Felix atravessou o país a bordo de um caminhão Munck com os blocos de pedra, sem corte regular. O que o orientava eram as coordenadas preestabelecidas a partir das extremidades do território lusitano e o poema “A casa térrea”, da poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, do qual foram extraídos os oito versos inscritos nas ponteiras de bronze que fixavam os blocos de pedra.39 Como interpretado por Adolfo Montejo Navas: “No fundo, esta ‘ação escultórica’ não se encaixa no ideário do site specific. É uma ‘situação escultórica’ mutante e cumpre a função de intervenção efêmera em locais diversos da geografia portuguesa”.40 4 cantos desdobra-se em Verso, de 2013, um trabalho que parte da latitude
e da longitude de São Paulo como ponto médio de uma linha que liga o arquipélago de Juan Fernández, no oceano Pacífico (próximo à costa do Chile), à ilha de Ascensão, na porção sul do oceano Atlântico. No deslocamento até esses lugares, Nelson Felix fez em cada um deles uma fotografia e cravou no solo estacas de bronze cuja forma parte do poema visual Desmuntatge [Desmontagem], de 1974, do catalão Joan Brossa. Verso foi apresentado em 2013 na Galeria Millan e no Instituto Tomie Ohtake, ambos em São Paulo. Enquanto na galeria é instalado o trabalho formado por vários anéis de mármore, cujos tamanhos e posicionamentos promoviam uma circularidade instável, no instituto foram expostos cerca de 140 desenhos que representam o registro de seu processo de deslocamento, junto com duas fotografias sobrepostas a cartografias e uma flauta esculpida em mármore. Como atentou o curador Paulo Miyada, a mostra no Tomie Ohtake continha os desenhos que, de certo modo, nos dão as mais interessantes pistas do futuro na obra de Nelson Felix: O desenho é o recurso pelo qual o artista conversa consigo mesmo e articula, cotidianamente, as ideias fundadoras de seus percursos, viagens e formas. Se as instalações são a consolidação do pensamento e os processos a duração de
39 “Que a arte não se torne para ti a compensação daquilo que / Não soubeste ser / Que não seja transferência nem refúgio / Nem deixes que o poema te adie ou dívida: mas que seja / A verdade do teu inteiro estar terrestre / Então construirás a tua casa na planície costeira / A meia distância entre montanha e mar/ Construirás — como se diz — a casa térrea — / Construirás a partir do fundamento. ANDRESEN , Sophia de Mello Breyner. O nome das coisas.” In:_____. Obra poética. Alfragide: Caminho, 2011. 40 MONTEJO NAVAS, Adolfo. “4 Cantos”. Revista Dasartes, São Paulo, fev. 2008.
152
IMAGEM DE PEDREIRA EM FÁTIMA, PORTUGAL, 2008
153
NO PROJETO MÉTODO POÉTICO
ESPAÇO INTERNO, DIRECIONOU
PARA DESCONTROLE DE
OS BLOCOS CONTRA OS CANTOS
LOCALIDADE I, NELSON FELIX
DAS PAREDES E OS FIXOU COM
EXPLORA A RELAÇÃO ENTRE
OITO PONTEIRAS DE BRONZE
O ESPAÇO E A POESIA. SEU
ONDE ESTAVAM INSCRITOS OS
PROCESSO ASSEMELHA-SE AOS
OITO VERSOS DO POEMA CASA
LIVROS DE POESIA MODERNA,
TÉRREA, DE SOPHIA DE MELLO
NOS QUAIS DESENHOS OU
BREYNER ANDRESEN.
GRAVURAS CRIAM UMA RELAÇÃO
VERSO NASCE DA
ENTRE TEXTO E IMAGEM. NESSE
OBSERVAÇÃO DE QUE A
SENTIDO, ESCULTURAS, OBJETOS,
CIDADE DE SÃO PAULO, O
FOTOGRAFIAS E AÇÕES BUSCAM
PRINCIPAL CENTRO BRASILEIRO,
TAMBÉM ILUSTRAR O TEXTO
ENCONTRA-SE SOBRE UMA
POÉTICO, MAS RECORRENDO
LINHA IMAGINÁRIA QUE LIGA
AGORA AO PRÓPRIO ESPAÇO
DUAS PEQUENAS ILHAS, UMA
GLOBAL.
NO OCEANO PACÍFICO E OUTRA
CONSTITUÍDO DE DUAS
NO ATLÂNTICO, EQUIDISTANTE
OBRAS, 4 CANTOS E VERSO,
A ELAS. O ARTISTA VIAJA ÀS
ABORDA UM PENSAMENTO
DUAS ILHAS — DOIS OPOSTOS,
POÉTICO SOBRE O ESPAÇO, NA
DOIS VERSOS, CRIADOS
SUA ESTRUTURA MAIS SIMPLES
PELA ESTRUTURA POÉTICA
— OS CANTOS, O CENTRO E O
DO TRABALHO NO GLOBO
VERSO –, E O QUE SERIAM ESSES
TERRESTRE. DELAS OLHA EM
LOCAIS, HOJE, NA PERCEPÇÃO
DIREÇÃO A SÃO PAULO, ONDE
MULTIFACETADA DO ESPAÇO. E
IRÁ EXPOR, E FINCA NO SOLO
PRINCIPALMENTE A RELAÇÃO
TRÊS PEÇAS DE BRONZE QUE
AMBÍGUA QUE EXISTE NA
CONSTITUEM AS TRÊS PARTES
LÍNGUA PORTUGUESA ENTRE
DA LETRA A, EM HOMENAGEM
AS PALAVRAS CANTO E VERSO,
AO POETA CATALÃO JOAN
ORA COM SENTIDO ESPACIAL,
BROSSA E AO SEU POEMA
ORA COM SENTIDO POÉTICO. O
INTITULADO DESMUNTATGE.
ARTISTA VIAJOU AOS QUATROS EXTREMOS DO TERRITÓRIO
O TRABALHO REMETE À SENSAÇÃO POÉTICA DE UM
PORTUGUÊS EM UM CAMINHÃO
LOCAL CENTRAL, CONSTRUÍDO
CARREGADO COM QUATRO
TOTALMENTE POR CENTROS
BLOCOS CÚBICOS DE PEDRA.
— TRÊS CENTROS, SE ASSIM
EM CADA CANTO, O ARTISTA
PODEMOS FALAR. UMA CIDADE,
COLOCAVA AS PEDRAS NO
QUE AGLUTINA E CENTRALIZA
SOLO E AS DESENHAVA, ATÉ
UM PAÍS, E DUAS PEQUENAS
IMPREGNAR-SE DA PAISAGEM.
ILHAS, PONTOS EM MEIO A
NO ÚLTIMO EXTREMO, ESTE UM
OCEANOS.
IMAGENS DO PROJETO 4 CANTOS, 2008
seu fluxo e corrente, os desenhos são sua emergência aquecida sem restrições ou limites, senão aqueles próprios ao ato de desenhar.41
Oriunda da presença e influência do tio Moacyr Felix desde muito cedo, a relação do artista com a poesia se amplia e permeia toda a sua vida, tornando-se particularmente especial nas séries Flautas e cactus, com exposição na H.A.P. Galeria, e Cantosrev no Instituto Ling, em Porto Alegre, ambas de 2014. As duas mostras são desdobramentos de 4 cantos e Verso por se inspirarem nos poemas citados e manterem traços da operação de deslocamento. Nessas exposições destacam-se as Flautas, esculturas em mármore das quais se subtraem as palavras “canto” e “verso”. Nas palavras do artista: O trabalho aborda, primeiramente, um pensamento poético sobre o espaço, na sua estrutura mais simples — os cantos, o centro e o verso —, e o que seriam estes locais, hoje, na percepção multifacetada do espaço. Depois, na relação ambígua que existe na língua portuguesa nas palavras “canto” e “verso”, ora com sentido espacial, ora com sentido poético.
Nesta retrospectiva que a Pinacoteca promove no primeiro semestre de 2015, 4 cantos e Verso unem-se a Um canto para onde não há canto, 2001 , dando
origem ao projeto Método poético para descontrole da localidade, 2008-2015: uma reunião de toda a reflexão do artista fundamentada no entrelaçamento de poesia e espacialidade, isto é, quando poemas alicerçam os deslocamentos e as expansões espaciais. Assim, durante o primeiro decênio dos anos 2000 , os desenhos surgiram a fim de viabilizar o grau de complexidade que
os trabalhos iam ganhando, com o aumento de informações que se incorporavam às obras e o crescente entrelaçamento entre elas. Os desenhos ligam tudo, no entanto, sem terem a intenção de se tornar “obras de arte”. São desenhos de concepção, como esclarece Nelson Felix: “Eu gosto muito desses desenhos, pois eles não têm obrigação nenhuma de existir, a não ser para que eu coordene um amálgama de significados e para que eu possa pensar graficamente”.42
41 MIYADA , Paulo. “Verso (meu ouro deixo aqui)”. In: FELIX , Nelson. Verso (meu ouro deixo aqui) (folder da exposição no Instituto Tomie Ohtake). São Paulo, 2013 . 42 Entrevista de Nelson Felix concedida a Francesco Perrotta-Bosch. Nova Friburgo, 6 jan. 2015 .
156
IMAGENS DO PROJETO VERSO, 2013
O PULSO DAS COISAS VIVAS GABRIELA MOTTA
O vocabulário normalmente utilizado para se escrever sobre arte parece insuficiente para
deixemo-nos cair no abismo — e imobiliza — falar, escrever,
abordar a obra de Nelson Felix.
é sempre menos do que estar
Uma possibilidade seria partir
diante do inefável.
do começo de cada projeto,
158
que simultaneamente atrai —
Esse arrebatamento revela o
como cada um surge, a partir
que acredito: a obra de Nelson
de quais procedimentos e
Felix é uma das mais relevantes
conceitos o artista os constrói.
da produção contemporânea
No entanto, com isso, seria
de artes visuais, justamente
preciso admitir logo de saída
porque escapa aos esquemas
uma omissão fundamental:
de leitura, das abordagens
o fato de que os trabalhos
usuais do campo da arte. Estão
de Felix amalgamam-se uns
lá, na obra, o minimalismo, a
nos outros, constituindo um
escultura clássica, o site specific.
corpo único em permanente
Mas também a astronomia, o
transformação. Ou seja, em
budismo, a filosofia, a botânica.
primeiro lugar, é preciso
Disso tudo, nada aparece
perceber como fundamental
como referência, citação ou
para a produção do artista
reverência, mas sim como
a noção de continuidade
matéria viva, como fluxo vital
permanente. Esse sentido de
que anima a existência da obra
continuidade é a vertigem
enquanto ser e jamais enquanto
1 Desenho no mundo é como o artista
do Sul), no deserto do Atacama (Chile)
chama a série de trabalhos que tem
e no litoral do Ceará. Cada uma dessas
início com Cruz na América (1985-
quatro paisagens geográficas ocupa
2003). Esse projeto de quase vinte
a extremidade dos vértices de uma
anos conforma-se a partir de quatro
cruz imaginária, traçada sobre o globo
intervenções realizadas na floresta
terrestre. Desenho no mundo abriga ainda
amazônica (Acre), no pampa (Rio Grande
Camiri (1999-2006) — ação realizada
objeto. Por isso, por essa
tais formas e materiais são
do mar — não estão ao nosso
relação com a existência, que é
submetidos a situações
alcance, são próprios de seus
sempre uma noção repleta de
em que protagonizam um
elementos e de suas reações
perguntas, o trabalho de Felix
diálogo irreversível com seus
intrínsecas com o mundo. O
pede um envolvimento em que
contextos físicos. São como
trabalho está acontecendo
entram em jogo sentimentos
sujeitos, permanentemente
neste momento, algo nele se
como confiança, crença e
transformados por suas
transforma permanentemente
entrega.
experiências. Assim, por
a despeito de todo e qualquer
exemplo, em uma das
sujeito que nomeie ou
Desde o início de sua trajetória, mas de modo
intervenções do projeto
qualifique tal ação. O trabalho
mais evidente a partir da
Cruz na América, realizada
é sujeito. E o artista, ao
série de ações reunidas sob
no litoral do Ceará, o artista
empenhar na construção
a alcunha de “desenhos no
abandona no mar uma esfera de
da obra muito mais do que
mundo”, Felix desenvolve
mármore ao redor da qual estão
materiais, formas, significados,
trabalhos que transcendem
cravadas 22 pontas de ferro. 2
conceitos, deslocamentos,
as noções clássicas de obra,
O que se intui da descrição
estrutura de produção, reafirma
espaço, tempo, lugar, peso,
da obra é que essas pontas de
em cada projeto aberto um
forma. Simultaneamente,
ferro, em contato com a água
comprometimento irrevogável
suas intervenções valem-
salgada, acabarão por oxidar-
com o fazer artístico e
se de materiais e formas
se e expandir-se, causando a
especialmente com a arte
tradicionais, como mármore,
ruptura da esfera.
enquanto imponderável.
1
aço, círculos, planos. No
O tempo em que isso
entanto, com frequência,
ocorrerá e o lugar — o fundo
operam, a extensão espacial
em Camiri, na Bolívia, e uma exposição
Cavalariças (2005-2009) — intervenção
(Portugal, 2008), homônima daquela
no Museu Vale do Rio Doce, em Vila
no Parque Lage, no Rio de Janeiro, e uma
citada anteriormente, também poderiam
Velha, no Espírito Santo —, 4 cantos
ação no vulcão Hekla, na Islândia. Os
estar neste conjunto de trabalhos, já que
(2004-2008) — intervenções realizadas
trabalhos Camiri, 4 cantos e Cavalariças,
envolvem grandes deslocamentos e uma
na República Dominicana e em Anguilla,
por sua vez, aparecem reunidos sob
complexa relação entre a planaridade da
no Caribe, em Dongsha, no mar da China,
o nome Concerto para encanto e anel.
representação do espaço geográfico e a
e em Karratha, na costa australiana — e
As obras Verso (2008-2013) e 4 cantos
experiência do próprio espaço.
159
A expansão temporal em que
que ocupam, os procedimentos
contexto institucional. Nesses
encontramos na formalização
e negociações que reivindicam
aparecimentos, há uma inversão
de seus aparecimentos públicos.
são também matéria da obra, o
absoluta na perspectiva da
As peças que o artista produz
núcleo conceitual que estrutura
qual se vê a obra, de um ponto
são absolutamente precisas (não
o trabalho. No entanto, tal
de vista do pesquisador, que
poderiam ser maiores ou feitas
núcleo conceitual não se
busca a literatura dos projetos,
em outros materiais ou terem
apresenta apenas como conceito,
suas justificativas e premissas,
outras formas) exatamente
ou seja, enquanto abstração ou
para um ponto de vista do
porque são justas aos seus
exemplo, como em algumas
espectador, que vê coisas,
conceitos. Não representam ou
obras efêmeras que lidam com
objetos, desenhos, formas,
ilustram algo, são a coisa mesma
materiais perecíveis. Seus
imagens.
da qual falam. E dizem tanto
conceitos de espaço, de tempo,
No entanto, por mais que
da sua história quanto da sua
de deslocamento, corporificam-
tais pontos de vista sejam
se como experiência da
de fato independentes (é
própria obra, conferindo-lhe
possível construir e fazer a
enormes blocos de gelo de cujo
continuidade não como ideia,
experiência de alguns trabalhos
volume total apenas cerca de
mas enquanto verdade da obra. ICEBERGS
presença. Como se fossem icebergs,
apenas mentalmente, ou
10% emergem à superfície, a
ver as exposições enquanto
obra de Felix flutua entre a
conjunção de objetos e
complexidade de suas razões de
formas, independente de suas
ser e uma aparente simplicidade
Diante dessa verdade, o que
referências), essas perspectivas
de seu estar no mundo. O jogo
são as exposições de Nelson
são complementares e
em que seus trabalhos estão
Felix? Ao reconhecer a obra
simultaneamente fundamentais
envolvidos não tem começo
de Felix enquanto ser é preciso
para os trabalhos que se
nem fim, não se funda em
perceber suas exposições como
encontram em situação
dicotomias contrárias, como
situações em que o trabalho,
expositiva. Tal contração
não são contrários o visível e
no decorrer de uma trajetória
entre diferentes modos de
o invisível de um iceberg. Ao
que antecede e ultrapassa esses
percepção só é possível porque
emergirem, já estavam lá. Seus
momentos, abre-se para um
o mesmo rigor e obstinação que
enigmas abrem-se em outros
encontro público e mediado,
encontramos na execução de
mistérios, suas faces dobram-se
já que amparado por algum
projetos de décadas também
sobre si mesmas, e as escolhas
2 Esta intervenção chama-se Vazio
3 No site do artista, o verbete sobre a obra
Depois, na relação ambígua que existe na
coração — litoral. Além de ser um
4 cantos e Verso relata que “o trabalho
língua portuguesa nas palavras ‘canto’ e
dos vértices de Cruz na América, ela
aborda, primeiramente, um pensamento
‘verso’, ora com sentido espacial, ora com
faz parte de um outro conjunto de
poético sobre o espaço, na sua estrutura
sentido poético. A primeira parte, 4 cantos,
trabalhos do artista chamado Vazios,
mais simples — os cantos, o centro e o
prima pela relação espacial; a segunda,
que reúne três obras realizadas entre
verso —, e o que seriam estes locais, hoje,
Verso, pela poética”. Ver www.nelsonfelix.
1992 e 2004.
na percepção multifacetada do espaço.
com.br (acesso em 17 set. 2014).
160
que fazemos ao olhá-las
colocava as pedras no solo e
a mais básica e fundamental
implicam sempre reconhecer a
as desenhava, até impregnar-
relação com a arte: olhar.
ordem poética em que operam.
se da paisagem. No último extremo, este em espaço
Já Verso, o outro ato da obra, nasce da observação
UM ENCON TRO DE
interno, direcionou os blocos
de que a cidade de São Paulo
ENCON TROS
contra os cantos das paredes e
encontra-se equidistante e
os fixou com oito ponteiras de
sobre uma linha imaginária
A exposição — encontro —
bronze, onde estavam inscritos
que liga duas pequenas ilhas,
CantOsreV é uma face de um
os oito versos do poema Casa
uma no oceano Pacífico e outra
iceberg. Ainda que seja possível
térrea, de Sophia de Mello
no Atlântico. O artista viajou
vê-la desde suas referências
Breyner Andresen.
às duas ilhas, onde olhou na
conceituais específicas, essa
4
O poema de Sophia fala-
direção de São Paulo e fincou
instalação abre-se em um
nos de comprometimento
no solo três peças de bronze,
léxico próprio, dado por sua
e posicionamento, atribui
que constituem as três partes
presença poética no mundo.
uma imagem — a construção
da letra “A”. Essas peças de
No entanto, ao saber dessas
de uma casa térrea a partir
bronze referem-se ao poema
possibilidades complementares
do fundamento — à verdade
Desmuntatge [Desmontagem],
de abordagem, não é possível
indispensável de nossas
do catalão Joan Brossa.5
eleger uma ou outra: é preciso
escolhas. Seus versos, gravados
escolher a vertigem em ambas
nas ponteiras de bronze sobre
Enquanto 4 cantos vale-se de um poema absolutamente
as quais se apoiavam os blocos
rítmico, repleto de significados,
de pedra, sustentavam não a
e de um procedimento que
em busca de suas origens
matéria bruta desses cubos,
reitera o sentido espacial da
leva-nos à obra 4 cantos
mas esse compromisso com
palavra “canto” — deslocar-
(Portugal, 2008) e Verso (São
nossas escolhas que precisa
-se aos quatro extremos de
Paulo, 2013),3 um trabalho
ser diariamente reafirmado.
Portugal —, Verso traz um
realizado em dois atos. Em 4
Ao desenhar tais pedras por
poema-imagem. As três partes
cantos, Felix viajou aos quatro
dezenas e dezenas de horas,
do “A” são também linhas,
extremos de Portugal, com
deslocando-as pelo país,
como aquela imaginária que
quatro blocos cúbicos de
Nelson impregna-as de tempo,
liga as tais ilhas que compõem
pedra. Em cada canto, o artista
o tempo em que se submete
o trabalho. E linhas não têm
4 “Que a arte não se torne para
na planície costeira / A meia distância
5 Realizado em 1974, Desmuntatge
ti a compensação daquilo que /
entre montanha e mar/ Construirás
é um poema visual no qual a letra
as direções. Olhar esta exposição
Não soubeste ser / Que não seja
— como se diz — a casa térrea — /
“A” aparece primeiro em sua forma
transferência nem refúgio / Nem deixes
Construirás a partir do fundamento."
maiúscula, como aqui (“A”), e logo a
que o poema te adie ou dívida: mas
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner.
seguir como se desmontada, em três
que seja / A verdade do teu inteiro estar
O nome das coisas. In:_____. Obra poética.
traços.
terrestre / Então construirás a tua casa
Alfragide: Caminho, 2011.
161
verso — um outro lado —, são
grão de areia a contaminar uma
artista nas ilhas do trabalho,
versões da banda de Moebius
possível nitidez do trabalho
projetadas sobre outros mapas
sem a banda, geometria espacial
e a agregar outra gama de
em ouro e sobre a terceira
antes do espaço. Abstração pura
sentidos ao pensamento sobre
ponteira da exposição.
ou materialidade absoluta, é
espaço até então instaurado
como Brossa olha para o “A”, e é
por 4 cantos e Verso. Com este
sobreposições que se reiteram
como permanentemente somos
novo elemento, deparamo-
em todas as situações
convidados a olhar para a obra
nos também com uma das
escultóricas, e também na
de Felix.
características marcantes de
relação da instalação com o
Nelson Felix: a incansável
todo do espaço físico em que
percursos mentais e
tarefa de abrir frestas
ela se encontra, determinam a
geográficos, dessas poesias
em sua obra pelas quais
irreversibilidade da experiência
e das imagens sugeridas por
escorra qualquer ilusão de
tais deslocamentos entre
compreensão.
Assim, a partir desses
linguagem oral e experiência, estrutura-se CantOsreV. A
A espacialização de CantOsreV define-se de
Os atravessamentos e
— algo que se dá no tempo e sobre o qual não é possível retornar sem estar modificado. Ou seja, tais arranjos, mais do
exposição reúne imagens
acordo com as características
que significarem um princípio
do artista com o poema
da galeria, um retângulo. A
composicional, reconhecem
Desmuntatge, mapas em ouro
instalação seciona a dimensão
o tempo como dimensão
dos territórios atravessados por
longitudinal do espaço criando
fundamental do espaço na
Felix nas obras 4 cantos e Verso,
três situações escultóricas
medida em que o trabalho não
duas flautas em mármore de
complementares e interligadas.
toma esse espaço como estático
Carrara vazadas pelas palavras
As primeiras dessas situações
e não negociável. Desta forma,
é uma parede atravessada
o poema de Brossa (El temps),
“canto” e “verso”, três anéis em mármore de Carrara e
por ponteiras de bronze
ainda que não seja legível na
ponteiras em bronze. Nas
que sustentam os anéis de
obra de Felix, corporifica-se
ponteiras inscreve-se um
mármore. Ao centro da galeria,
na instalação. Em um dos seus
encontram-se as duas flautas,
versos lê-se: “las palabras/
terceiro poema, também de Brossa, intitulado El temps.
sobrepostas e como se unidas
están aquí, tanto se las leéis/
a um mapa em ouro. Ao fundo,
como si no”. E o mesmo vale
El temps surge como mais um
vemos as duas imagens do
para a obra de Felix, sua inteira
6 “Este verso es el presente./ El verso
terrestre/ puede modificarlo.” BROSSA,
que habéis leído ya es el pasado,/ ya ha
Joan. Poemes de Joan Brossa (antologia).
quedado atrás después de la lectura./
Trad. de A. S. Robayana e M. Mur. Madri:
El resto del poema es el futuro,/ que
Ediciones Libertarias, 1983.
6
O aparecimento do poema
existe fuera de vuestra/ percepción./ Las palabras/ están aquí, tanto si las leéis/ como si no. Y ningún poder
162
presença capaz de aglutinar
abstrações que não são próprias
tudo o que em si é visível e
da arte ou do que quer que seja.
invisível.
São próprias daquilo que faz cada experiência importante
EU CONFIO EM VOCÊ
ser inenarrável. Se não abordei
Ao reconhecer os trabalhos
especificamente as questões
de Felix enquanto sujeitos,
metafísicas dos projetos de
a noção de continuidade
Felix, é porque acredito que
como verdade da obra e suas
toda arte que “dá barato” tem
exposições como encontros,
algo de metafísico. Portanto,
resta-nos recebê-los em sua
não é o “falar de algo indizível”
ordem poética. Como tal,
que importa, mas a capacidade
enquanto poesia, seus trabalhos
mesma de ser transcendente.
são fugidios às tentativas
Essa potência sem nome que
de compreensão. Pedem
se apresenta quase como
uma relação de confiança e
revelação ou clarividência
entrega pois entregam-se e
e que, em sua concentração
acreditam na potência de uma
máxima de energia, nos
linguagem que opera através
faz perceber (ou achar que
do sensível e que escapa às
percebemos) coisas sobre nós
exegeses teóricas. A fragilidade
mesmos, sobre o mundo, sobre
dos conceitos tradicionais do
a arte, sobre icebergs, sobre
campo da arte para dar conta
abismos.
de uma obra tão densa e com tantos desdobramentos dá-se exatamente porque tal obra reitera constantemente a possibilidade de relacionar-se com o outro através de
PUBLICADO ORIGINALMENTE NO CATÁLOGO DA EXPOSIÇÃO CANTOSREV, INSTITUTO LING, PORTO ALEGRE, 2014.
163
Eles foram apresentados pela primeira vez ao público na exposição Camiri, ainda de maneira secundária numa sala ao lado do espaço principal. Sobre eles, o crítico Ronaldo Brito comenta: Segundo o tempo abstrato da escultura, na verdade, tudo obedecia ao empuxo de sua forma: a disciplina do artista consistia sobretudo em manter-se atento, no prumo, em contato criativo com o seu desenvolvimento. O que, em uma palavra, significava: trabalho. E o provam, flagrantes, os desenhos inquietos produzidos à época da montagem de Camiri: Nelson Felix já se encontrava então sob o influxo da futura escultura. Urgentes, incisivos, em lúcido tumulto, esses desenhos saem em busca da forma da escultura e impelem o artista em sua direção. Mas agem também em sentido inverso, a detê-lo, ocupá-lo no papel, impedi-lo de partir prematuramente.43
O desenho é o seu modo de conversar com o próprio pensamento: a mão realiza graficamente o que está na cabeça, a qual recebe um retorno — uma informação — por meio do desenho, instigando a mente a responder, e assim, sucessivamente, se estabelece um diálogo. O artista é claro ao demonstrar que esse diálogo em muito se distancia do domínio da palavra, da linguagem verbal. Seu pensamento e seu desenho estão, acima de tudo, dialogando graficamente. Não à toa, Nelson Felix assume: “Na realidade, é o que eu mais gosto. O desenho não tem a linha do tempo. Não importa se foi há um, ou cinco, ou dez anos atrás, ou se ainda será: eu dou o traço”.44 Por eles, como em cada trabalho do artista, ocorrem “a expansão temporal em que operam, a extensão espacial que ocupam, os procedimentos e negociações que reivindicam”.45 Os desenhos são como um emaranhado capaz de reunir todo o pensamento do artista, mesmo que, em palavras de Rodrigo Naves, ponham “em xeque as incursões tradicionais da própria compreensão”. São desenhos que revelam o cerne do 46
pensamento em seus trabalhos; desenhos que predizem o que Nelson Felix irá nos proporcionar no porvir.
IMAGEM DA EXPOSIÇÃO VERSO GALERIA MILLAN, SÃO PAULO, 2013 IMAGEM DA EXPOSIÇÃO VERSO, INSTITUTO TOMIE OHTAKE, SÃO PAULO, 2013
43 BRITO, Ronaldo. “Percurso da escultura”. In: FELIX, Nelson; BRITO, Ronaldo; FLÓRIDO CESAR , Marisa. Concerto para encanto e anel. Op. cit., p. 85.
44 Idem, ibidem. 45 MOTTA, Gabriela. “O pulso das coisas vivas”. In: NELSON, Felix. Cantosrev (folder da exposição no Instituto Ling). Porto Alegre, 2014. 46 NAVES, Rodrigo. “Duas mostras de Nelson Felix questionam os limites da produção artística”. O Estado de S. Paulo, 11 nov. 2013.
164
IMAGEM DA EXPOSIÇÃO CANTOSREV INSTITUTO LING, PORTO ALEGRE, 2014 * TODAS AS IMAGENS PERTENCEM AO ARQUIVO DO ARTISTA.
LISTA DE OBRAS
SEGUNDA NOÇÃO DO ZERO, 1985
FRONTAL, ENTRE 1990 E 1992
CHUMBO, COBRE, ESTANHO,
FERRO E GRAFITE
BEIJO EM MADALENA, 1998 AZEITE, BRONZE E MADEIRA
FERRO, GRAFITE E LATÃO
480 X 70 X 80 CM
80 X 1110 X 446 CM
5 X 437 X 164 CM
COLEÇÃO JOÃO SATTAMINI,
COLEÇÃO DO ARTISTA, NOVA FRIBURGO,
COLEÇÃO PARTICULAR, SÃO PAULO
RIO DE JANEIRO
RIO DE JANEIRO
CABEÇAS FELIZES, 1984 CHUMBO, COBRE, ESTANHO, FERRO, LATÃO 27 X 91,5 X 30 CM COLEÇÃO PARTICULAR, SÃO PAULO
JULIA I, 1995
VAZIO CORAÇÃO, ENTRE 1999 E 2004
PROJEÇÃO E OURO
FOTOGRAFIA, GRAFITE, MÁRMORE E
153 X 275 CM
PRATA
COLEÇÃO DO ARTISTA, NOVA
6 FOTOGRAFIAS DE 69,5 X 102 CM
FRIBURGO, RIO DE JANEIRO
2 ESFERAS DE Ø 60CM COLEÇÃO HELOISA AMARAL PEIXOTO, RIO DE JANEIRO
GRAFITE, ENTRE 1988 E 1989 GRAFITE E OURO 324 X 299,5 X 155,5 CM COLEÇÃO CHARLES COSAC, SÃO PAULO COLEÇÃO RICARDO REGO, RIO DE JANEIRO
MESAS, 1995 DORMIDEIRA, FERRO, GRANITO, OURO E PRATA 108 X 1026 X 102 CM COLEÇÃO DO ARTISTA, NOVA FRIBURGO, RIO DE JANEIRO
VAZIO SEXO, 2004 MÁRMORE E PRATA 94 X 90,5 X 91 CM COLEÇÃO LUIS ANTONIO ALMEIDA BRAGA, RIO DE JANEIRO
VAZIO SEXO, 2004
CACTO, 2014
GRAFITE, LACRE, OURO E PRATA
CACTO, BRONZE E LACRE SOBRE PAPEL
SOBRE PAPEL
VASO E CACTO 110 X 60 X 51 CM
6 DESENHOS DE 73 X 41 CM
6 DESENHOS DE 75 X 60 CM
COLEÇÃO JUSTO WERLANG,
COLEÇÃO DO ARTISTA, NOVA FRIBURGO,
PORTO ALEGRE
RIO DE JANEIRO
CUBUNIDO, 2009
MALHA, 2014
EU VI A AMERICA COM OS OLHOS
MÁRMORE E BRONZE
MÁRMORE
D’ELE, ENTRE 2001 E 2015
154 X 116 X 93 CM
350 X 837 X 1002 CM
BRONZE, CABO DE AÇO, CACTOS,
ACERVO BANCO ITAÚ, SÃO PAULO
ACERVO DA PINACOTECA DO ESTADO
DORMIDEIRAS, ESTRUTURA DE
CUBUNIDO, 2009
DE SÃO PAULO. DOAÇÃO DOS PATRONOS
FERRO, MÁRMORE E TIJOLO
DA ARTE CONTEMPORÂNEA DA
625 X 350 X 1237 CM
MÁRMORE E BRONZE
PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO
COLEÇÃO JUSTO WERLANG,
154 X 116 X 93 CM
2014, POR INTERMÉDIO DA ASSOCIAÇÃO
PORTO ALEGRE
COLEÇÃO JUSTO WERLANG,
PINACOTECA ARTE E CULTURA — APAC —
PORTO ALEGRE
OBRA EM PROCESSO DE TOMBAMENTO.
JULIA II, 2014
DESENHO HORIZONTAL, 2015
PROJEÇÃO E OURO
CHUMBO, GRAFITE, E ÓLEO SOBRE PAPEL
153 X 275 CM
78 X 736 CM
COLEÇÃO DO ARTISTA, NOVA FRIBURGO,
COLEÇÃO DO ARTISTA, NOVA FRIBURGO,
RIO DE JANEIRO
RIO DE JANEIRO
VÍDEOS DOCUMENTAIS CRUZ NA AMÉRICA, ENTRE 1985 E 2004 3'22 EDIÇÃO: GUILHERME BEGUÉ SÉRIE GÊNESIS, ENTRE 1985 E 2014 5'1 EDIÇÃO: GUILHERME BEGUÉ GRAFITE, 1988 DA SÉRIE ÁRABE, 2001 5'46S EDIÇÃO: GUILHERME BEGUÉ VAZIOS, ENTRE 1992 E 2004 10' EDIÇÃO: GUILHERME BEGUÉ LAJES/PILAR, ENTRE 1997 E 2001 2'35 EDIÇÃO: GUILHERME BEGUÉ CONCERTO PARA ENCANTO E ANEL, ENTRE 2005 E 2009 4'18 EDIÇÃO: GUILHERME BEGUÉ MÉTODO POÉTICO PARA DESCONTROLE DE LOCALIDADE I, ENTRE 2008 E 2013 5'26 EDIÇÃO: GUILHERME BEGUÉ MÉTODO POÉTICO PARA DESCONTROLE DE LOCALIDADE II, 2011 3'10 EDIÇÃO: GUILHERME BEGUÉ
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO GERALDO ALCKMIN
CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO
GOVERNADOR DO ESTADO
LEANDRO DOS SANTOS OLIVEIRA PRESIDENTE
MARCELO MATTOS ARAUJO
MIRIAN MARIA DE JESUS
JOSÉ OLYMPIO DA VEIGA PEREIRA
SECRETÁRIO DE ESTADO DA CULTURA RENATA VIEIRA DA MOTTA
ANGELA MARIA AVANÇO POMBAL
ÁREA DE ACERVO E CURADORIA VICE-PRESIDENTE
VALÉRIA PICCOLI
PEDRO BOHOMOLETZ DE ABREU DALLARI
NÚCLEO ACERVO MUSEOLÓGICO
COORDENADORA DA UNIDADE DE
FERNANDA D’AGOSTINO DIAS
PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO
CONSELHEIROS
GABRIELA R. PESSOA DE OLIVEIRA
MUSEOLÓGICO
ANA CARMEN RIVABEN LONGOBARDI
INDRANI TACCARI
CARLOS JEREISSATI
KEIKO NISHIE
CONSELHO DE ORIENTAÇÃO ARTÍSTICA DA
CARLOS WENDEL DE MAGALHÃES
RAFAEL GUARDA LATERÇA
PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO
DARLAN DOS SANTOS LOPES —
NÚCLEO DE ACERVO BIBLIOGRÁFICO E
LETÍCIA COELHO SQUEFF
REPRESENTANTE DOS FUNCIONÁRIOS
ARQUIVÍSTICO
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MANOEL ANDRADE REBELLO NETO
ISABEL CRISTINA AYRES DA SILVA MARINGELLI
MARTA VIEIRA BOGÉA
ROBERTO BIELAWSKI
CLEBER SILVA RAMOS
PAULO AUGUSTO PASTA
SÉRGIO FINGERMANN
DIEGO SILVA
PAULO PORTELLA FILHO
SÉRGIO SISTER
ELIANE BARBOSA LOPES
SERGIO FINGERMANN
TAIS GASPARIAN
GIOVANA BERALDI FAVIANO
TADEU CHIARELLI
LEANDRO ANTUNES ARAUJO NÚCLEO DE PESQUISA E CURADORIA
CONSELHO DE ORIENTAÇÃO CULTURAL DO
CONSELHO FISCAL
MEMORIAL DA RESISTÊNCIA DE SÃO PAULO
FERNANDA MENDONÇA PITTA GIANCARLO HANNUD
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PRESIDENTE
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CARLA JULIANA PISSINATTI BORGES
OSVALDO ROBERTO NIETO
JULIA SOUZA AYERBE
LAURO PEREIRA ÁVILA
PEDRO NERY
MARIA CRISTINA OLIVEIRA BRUNO
CONSELHEIRO
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MARLON WEICHERT
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TAISA PALHARES NÚCLEO DE CONSERVAÇÃO E RESTAURO
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DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO
VALÉRIA DE MENDONÇA
MARCELO COSTA DANTAS
TEODORA CAMARGO CARNEIRO ANA LÚCIA NAKANDAKARE
ASSOCIAÇÃO PINACOTECA ARTE E
DIRETOR TÉCNICO
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CULTURA — APAC
DOMINGOS TADEU CHIARELLI
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INTERNACIONAIS
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LUIZ OLAVO BAPTISTA
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JOELMA SILVA DE OLIVEIRA
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CÍCERO FERNANDES DA SILVA
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MEMORIAL DA RESISTÊNCIA
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PAULO RODRIGUES PEREIRA
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PEDRO BISPO SAMPAIO
RAQUEL DA SILVA
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REGIANE ALVES DA ROSA
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ADEMILTON LARANJEIRAS SILVA
REGIANE GOMES DA SILVA VIEIRA
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ALCIDES SANTOS
RODRIGO DO NASCIMENTO
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ALINE SILVA MATOS
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DANIEL BARBOSA DE LIMA
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DANIELE APARECIDA R. DE CAMPOS
SIMONE SOUZA DE ANDRADE
DANILO BATISTA DE OLIVEIRA SANTOS
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DARIL ALEXANDRE COSTA
VICTOR ONODERA ISRAEL
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DAVID ATILA DE OLIVEIRA
VIVIANE PALOMO DOS SANTOS
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WILLDES MANOEL DA SILVA
ELIDE DE SOUZA REIS ELIZANGELA HENRIQUE DA SILVA
ÁREA DE INFRAESTRUTURA
EMANUELLE RODRIGUES DE CASTRO
ERIC BRAGA LEISTER
FABIANA BORGES DOS SANTOS
FLÁVIO DA SILVA PIRES
FABIANE CAVALCANTE TEIXEIRA
HIROMU KINOSHITA
FABIO LAZARINI
GILBERTO OLIVEIRA CORTES
EXPOSIÇÃO
AGRADECIMENTOS
CURADORIA
ANDRÉ MILLAN
RODRIGO NAVES
ARY PEREZ GABRIELA MOTTA
COORDENAÇÃO CURATORIAL
GLÓRIA FERREIRA
TAISA PALHARES
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ASSISTÊNCIA
IVO MESQUITA
DERECK MAROUÇO
JUSTO WERLANG MARCELO MATTOS ARAUJO
EXPOGRAFIA E MONTAGEM
MARCOS HOOTZ
ÁREA DE INFRAESTRUTURA DA
RENATA NANTES
PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO
RONALDO BRITO
ARY PEREZ (VI AMÉRICA COM OS OLHOS D'ELE)
SOCORRO DE ANDRADE LIMA VANDERLEI LOPES
PRODUÇÃO
E TODOS OS COLECIONADORES E
ÁREA DE PROJETOS CULTURAIS DA
INSTITUIÇÕES QUE GENTILMENTE
PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO
EMPRESTARAM OBRAS PARA EXPOSIÇÃO.
COMUNICAÇÃO VISUAL CLAUDIO FILUS ZOL DESIGN CATÁLOGO EDIÇÃO
NELSON FELIX : OOCO / CURADORIA RODRIGO NAVES;
JÚLIA AYERBE
TEXTOS RODRIGO NAVES, TAISA PALHARES E FRANCESCO
TAISA PALHARES
PERROTA-BOSCH. SÃO PAULO: PINACOTECA DO ESTADO, 2015.
ASSISTÊNCIA
EXPOSIÇÃO REALIZADA NA ESTAÇÃO PINACOTECA,
LUIZ VIEIRA
DE 18 DE ABRIL A 19 DE JULHO DE 2015. ISBN 978-85-8256-056-3
PROJETO GRÁFICO
1. FELIX, NELSON, 1954- 2. DESENHO BRASILEIRO. 3.
LUCIANA FACCHINI
ESCULTURA BRASILEIRA. 4. INSTALAÇÃO (OBRAS VISUAIS)
ASSISTÊNCIA
– BRASIL. 5. FOTOGRAFIA – BRASIL. 6. PINACOTECA DO
JULIA CONTREIRAS
ESTADO DE SÃO PAULO. I. CURADORIA. II. TEXTOS.
REVISÃO OSVALDO TAGLIAVINI PRODUÇÃO GRÁFICA MARCIA SIGNORINI IMPRESSÃO IPSIS GRÁFICA E EDITORA REPRODUÇÕES FOTOGRÁFICAS EVERTON BALLARDIN PP. 16, 20, 26-28, 30-33, 36-37, 41, 45-49, 52-53, 55, 58-59, 62-63, 72-73 ISABELLA MATHEUS PP. 8-15, 17, 19, 22-25, 29, 34-35, 38-39, 42-43, 50-51, 56-57, 60-61, 64-67, 69, 70-71
CDD 709.81