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NELSON FELIX



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NELSON FELIX NA ESTAÇÃO PINACOTECA TADEU CHIARELLI

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ENSAIO FOTOGRÁFICO DA EXPOSIÇÃO OOCO NELSON FELIX NÃO MORA MAIS AQUI RODRIGO NAVES

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EMARANHADO: A CRONOLOGIA DE NELSON FELIX FRANCESCO PERROTTA-BOSCH

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LISTA DE OBRAS DA EXPOSIÇÃO



NELSON FELIX NA ESTAÇÃO PINACOTECA

A Pinacoteca do Estado de São Paulo vem desenvolvendo nos últimos anos um programa específico de exposições que busca sublinhar a importância e a singularidade de alguns artistas surgidos na cena brasileira a partir dos anos 1970. Em suas galerias (sobretudo aqui na Estação) foram exibidas obras de artistas que, por meio de suas produções ampliaram e ampliam os conceitos já estabelecidos de pintura, escultura, fotografia etc., colaborando para que a arte produzida no Brasil ganhe a visibilidade merecida. Leda Catunda, Cildo Meireles, Jac Leirner e Miguel Rio Branco, entre vários outros, tiveram aqui realizadas mostras antológicas de suas produções em estágio de amadurecimento fecundo. É neste cenário que se insere a mostra OOCO, de Nelson Felix. Artista carioca nascido em 1954, Felix começa a atuar profissionalmente a partir dos anos 1980 e, desde aquela época, sua produção parece ter como foco o fim dos limites entre as modalidades artísticas tradicionais. Melhor dizendo, Nelson Felix inicia seu percurso já num estágio de superação daquilo que o período moderno um dia instituiu como “especificidades de linguagem”, ou seja: se durante a modernidade o plano era o limite máximo da pintura e o volume e a massa aqueles da escultura, na produção do artista há um contínuo trânsito entre essas fronteiras e também entre imagem e matéria. Em Malha (doada à Pinacoteca por meio do programa de Patronos da Arte Contemporânea, 2014) por exemplo, a dimensão tradicionalmente escultórica do mármore parece subsumida ao plano da pintura e/ou do desenho para, ao mesmo tempo, instalar-se como escultura nem um pouco plena, pois depende de uma trave de ferro para sustentar no ar um de seus módulos. Caminhar em volta dessa peça ou atravessá-la por baixo da trave que a une ao teto da sala de exibição é vivenciar ao mesmo tempo imagem e forma, tempo e espaço, uma experiência raramente alcançada, mesmo em outras exposições de arte contemporânea. Neste ano em que a Pinacoteca comemora seu 110º. aniversário, oferecer ao público esta antologia de obras de Felix é apostar na pertinência desse programa de exposições de arte brasileira contemporânea. A Pinacoteca agradece ao artista e a Rodrigo Naves, curador da mostra, assim como a Taisa Palhares, por sua dedicação a esse projeto. A Instituição gostaria de agradecer igualmente ao Deutsch Bank, cujo apoio foi fundamental para o pleno sucesso da mostra. TADEU CHIARELLI DIRETOR TÉCNICO

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nelson felix não mora mais aqui rodrigo naves para José Artur Giannotti, Luiz Felipe de Alencastro, Roberto Schwarz e Ronaldo Brito

Há no trabalho de Nelson Felix uma espiritualização laica do mundo: nem um materialismo pedestre (em que o mundo é idêntico a si mesmo), nem um espiritualismo angelical (em que a transcendência não instila leveza no mundo). Para encontrar, o artista precisou perder inúmeras vezes. Como diz a sabedoria zen (e Picasso repetiu-a astutamente): “Não procure, encontre”. Aqui são narradas e analisadas suas peripécias. Nelson Felix nunca se contentou com a objetividade impositiva da realidade. Ao contrário da aspiração de parcela considerável da arte contemporânea — a arte povera e o minimalismo, por exemplo,1 movimentos importantes na formação do artista —, ele sempre tentou conferir presença esquiva aos materiais com que trabalhou. Grafite, uma escultura de 1988-1989, por exemplo, é formada por duas hastes de grafite (um mineral) com forte aspecto orgânico. O volume

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Como escreve Germano Celant, o mais importante crítico ligado à arte povera, essa vertente artística busca “quase uma redescoberta da tautologia estética: o mar é água, um quarto é um perímetro de ar, algodão é algodão [...] o ângulo é a convergência de três coordenadas [...] a vida é uma série de ações”. CELANT, Germano. Arte povera. Turim: Umberto Allemandi & C., 1989, p. 21. Numa passagem esclarecedora sobre questões fundamentais do minimalismo, Donald Judd escreve: “Uma forma, um volume, uma cor, uma superfície existem em si. Eles não deveriam ser dissimulados obtendo existência apenas como partes de um todo sensivelmente diferente. As formas e os materiais não deveriam ser alterados pelo contexto. Que se apresente uma ou quatro caixas alinhadas, que cada objeto seja tomado isoladamente ou que ele participe de uma série desse tipo — isso diz respeito a uma dis-

ESTUDO PARA CAMIRI, 2003

posição, a um simples arranjo; dificilmente diz respeito à ordem”. JUDD, Donald. Donald Judd: Écrits, 1963-1990. Paris: Daniel Lelong éditeur, 1991, p. 27.

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dos bastões tem uma constituição irregular e curvilínea, lembrando uma jiboia a digerir sua suculenta refeição. A aparência externa do grafite prensado, lisa e homogênea, remete a um organismo vivo, com uma interioridade indiscutível, graças a um mimetismo arguto. As muitas línguas esculpidas ao longo de sua trajetória, tão próximas da serialidade minimalista, serpenteavam pelo espaço, movidas por energias diversas, dependendo do contexto metafórico em que Nelson as inseria. Podiam ser cabelos, cobras ou uma espécie de força ondulante, sustentada por dezenas de pequenas esculturas do Buda, pensador admirado pelo artista. O próprio corpo humano se infiltrava nos materiais em que era moldado (o ferro, por exemplo), tornando-os menos severos. Esculpidas em mármore, suas partes — ou os vazios que as compõem — partilhavam uma dimensão clássica com que Nelson Felix dialoga2 e uma estranheza advinda do fato de não sabermos ao certo diante do quê nos encontramos. Desde muito cedo (faço aqui algumas pontuações mais por motivos didáticos do que por atenção à cronologia dos trabalhos), esse esforço para problematizar realidades idênticas a si mesmas levou o artista a valorizar o contexto em que inseria suas obras. Ou seja, procurava estabelecer relações que ampliassem o alcance das obras isoladas. Grafite (a mesma escultura mencionada acima) já deixava claro o interesse de Nelson Felix por realidades que fossem além dos territórios que nos são familiares: galerias, cidades, desertos ou florestas. Uma antiga insatisfação do artista com o que chamamos “composição” — a disposição de uma obra no espaço segundo certas convenções — o conduziu a sobrepor as duas grandes hastes de grafite que formavam a obra, de modo a criar um ângulo de 23,30 graus, a inclinação do eixo da Terra em relação ao eixo do Sol. Uma das hastes é colocada paralelamente ao eixo do Sol. Com isso, sua posição em relação aos limites do espaço expositivo é desconsiderada. Em outros termos, haveria sempre um elemento deslocado ou descomposto em relação a essas duas grandes balizas imaginárias (os eixos). Por certo, nossos sentidos não poderiam perceber todo o alcance dessa decisão, que procurava colocar a escultura em contato com uma dimensão literalmente planetária. Informações exteriores à dimensão sensível da escultura precisavam entrar no jogo para que a obra adquirisse um significado mais amplo.

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Convivo com Nelson Felix há mais de vinte anos. Muitas das opiniões aqui mencionadas surgiram nas conversas que tivemos ao longo desse convívio, e muitas delas também aparecem em entrevistas e depoimentos.

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Sua intervenção na terceira edição do Arte/Cidade, em 1997, também apontava uma preocupação semelhante. No Moinho da Luz, uma fábrica desativada em região bastante degradada da cidade de São Paulo, Nelson serrou três quadrados na laje de um dos andares do prédio. Sustentadas por cabos de aço fortemente tensionados, as partes secionadas pendiam um pouco acima da laje do piso inferior. Mais que os cortes na laje, a ação da gravidade evidenciada por essa intervenção sem dúvida punha o edifício em contato direto com todo o jogo de forças — ele também planetário — que preside essa lei física. Porém, outra vez seria necessária uma série de mediações conceituais para se estabelecerem os nexos entre a tensão dos pedaços de laje sustentados pelos cabos e sua relação com a massa e a distância entre os planetas, que determinam a lei da gravidade. Acredito que o Grande Budha, 1985, possibilitou ao artista imaginar uma estratégia que colocasse essa necessidade de mediações para a fruição plena das obras num novo patamar. Com o interesse de trabalhar uma escala ampla e meio indefinida, Nelson faz uso da floresta como se ela fosse um material escultórico. Para isso, escolhe um mogno e fixa seis garras de latão ao redor da árvore centenária, numa área da floresta amazônica localizada no Acre. Com a passagem do tempo, seria possível perceber um conjunto de fenômenos amplos e abrangentes. À medida que a árvore crescesse, as garras penetrariam o tronco, revelando a potência da natureza. A violência implicada na intervenção tinha um sentido paradoxal: em vez de dominar a árvore, revelaria sua vitalidade. No meio da enorme floresta, aquela árvore específica adquiria um aspecto que a tornava ainda mais singular. O estabelecimento da posição do Grande Budha teve uma origem consideravelmente arbitrária. Alguns acontecimentos fortuitos, além de uma maior possibilidade de realização de trabalhos dispendiosos, fizeram Nelson Felix dar outro passo em relação a suas intuições. Em 1997, o Itaú Cultural convidou-o para participar de um projeto chamado Fronteiras. A proposta, que envolvia outros artistas, visava à realização de trabalhos de arte em regiões limítrofes, não necessariamente geográficas. O convite levou Nelson a escolher uma localidade perto de Uruguaiana, quase na fronteira entre Brasil e Argentina. Ali ele realizou Mesa, 1997-1999, um trabalho com aspectos semelhantes ao Grande Budha. Uma chapa de aço de 51 metros de extensão e quarenta toneladas foi apoiada sobre tocos de eucalipto. Em cada um dos lados da placa foram plantadas onze mudas de figueira-do-mato, uma árvore imponente e longeva. Depois que os apoios de eucalipto apodrecerem — e simultaneamente as mudas crescerem —, os troncos das árvores irão prensar a mesa de aço, envolvendo e deformando aquele grande e regular

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objeto de metal e transferindo um pouco de potência orgânica a uma peça de origem industrial. Quase por curiosidade — mas, digamos, seguindo uma inclinação para desdobrar suas experiências de forma sistemática —, Nelson uniu com uma reta os pontos em que se situavam Grande Budha e Mesa. Dois biomas distintos — a floresta amazônica e os pampas — abrigavam as obras, embora ambos se caracterizassem por “vegetações” diversas uma da outra. O artista então encontrou o meio dessa linha e fez passar um traço perpendicular sobre ela. Dirigindo-se para o leste, a uma distância semelhante àquela que separava o ponto dos dois outros trabalhos (ao sul e ao norte), Nelson Felix encontra um habitat oposto: o deserto do Atacama, no Chile. No ponto determinado, são produzidas seis fotos em que a velocidade da máquina foi definida pelo batimento cardíaco do artista. A máquina foi apontada para as direções em que se encontravam os outros trabalhos, para o zênite e para o nadir. Posteriormente, ele buscou a direção oposta, até encontrar o elemento que falta ao deserto: a água. E no litoral do Ceará ele abandona uma esfera de mármore, cravejada de pinos de ferro. Ao longo de muitos anos, a oxidação do ferro levará a uma dilatação crescente do metal e, consequentemente, à destruição da esfera. As ações realizadas no deserto e no litoral receberam o nome de Vazio coração, 1999-2004. E a interseção das duas linhas que cortavam o continente de norte a sul e de leste a oeste tornou-se Cruz na América, 1984-2004, o primeiro conjunto de obras que Nelson Felix agrupou sob um nome comum. Um tempo mais ou menos longo permeava todos os trabalhos que formavam a cruz. Como garrafas de náufrago, levavam mensagens que talvez fossem lidas, talvez não. Todas elas, porém, reforçavam aquela busca de ruptura com realidades dadas que sempre moveu o artista, pois falavam de um método para induzir a perda de controle sobre as coisas. Tempo e espaço são noções complexas que podem ter suas ambiguidades reduzidas por meio do estabelecimento de convenções amplamente reconhecidas, que afastam da mensuração de ambos as dimensões subjetivas. Nelson Felix tenta encontrar um caminho distante tanto da objetividade do relógio e da fita métrica quanto da experiência estritamente subjetiva de uma espera angustiante ou da distância que se interpõe entre um sedento e uma fonte de água. Cruz na América constitui-se pelo entrecruzamento de tempos particulares e heterogêneos. A integridade da esfera de mármore atirada ao mar difere em muito do crescimento do tronco de um mogno ou das imagens proporcionadas por um obturador regulado pelo batimento de um coração solitário. Em todas elas, porém, a dimensão impessoal da marcação do tempo é substituída por um processo imaginativo que cada uma das relações (esfera/mar; gar-

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ras/floresta; mesa/figueiras; coração/fotos) desencadeia nos indivíduos. A passagem do plano conceitual para o da imaginação torna o vínculo entre observador e obra mais dependente dos sentidos e da experiência. O processo de oxidação do ferro — que, expandindo os cravos, fará a esfera destroçar — tem uma concretude totalmente distinta daquilo que a oração “três séculos de acontecimentos desastrosos” denota. A cadeia de acontecimentos que envolve a água salgada, os pinos de ferro e a esfera de mármore, por ser mais indeterminada que a relação gramatical entre os cinco vocábulos, estimula a imaginação de uma maneira diversa. Quanto mais claras as relações, menor a possibilidade de fazê-las afetar a imaginação. O choque entre duas bolas de bilhar aguça menos a imaginação do que um “boa-tarde”. O contato entre o mármore, o ferro e a água salgada possibilita que a imaginação literalmente viaje, enquanto simula as ações recíprocas entre os três elementos. A progressiva oxidação dos pinos de ferro desfará a forma regular deles, levando-os a expandir-se lentamente, até que, num dado momento, a esfera de mármore, que as marés e as correntes marítimas arrastaram a seu bel-prazer, tenha sua resistência vencida, e seus fragmentos passarão a conviver com os demais seres marinhos, podendo, quem sabe, juntar-se aos incontáveis grãos de areia de uma praia remota qualquer. Esse passeio da imaginação que se move apoiada em balizas frágeis, como pequenos saguis vagando pelos cipós de uma floresta, tem traços comuns a várias práticas de meditação, por mais difícil que seja a sua caracterização. Essas práticas meditativas oscilam entre concentração e contemplação, entre a capacidade de manter a mente numa direção precisa e seu esvaziamento em busca de uma contemplação prazerosa ou gozosa, como a nomeiam os religiosos. Ainda que a série Cruz na América seja pontuada apenas por quatro trabalhos, o observador é levado a percorrer com a imaginação (desde que a obra o atraia) todos os longos e irregulares caminhos que definem a obra. Os quatro pontos que imantam a cruz só conseguem fazê-lo por serem eles mesmos trabalhos que se recusam a uma objetividade estanque, movendo-se sempre para além de si mesmos, como a imaginação. Nelson Felix tem uma habilidade gráfica incomum nos dias de hoje, uma época em que o desenho praticamente deixou de ser uma mediação para a realização de obras de arte, sejam elas pinturas, esculturas ou instalações. A primeira individual de Nelson, na galeria Jean Boghici, no Rio de Janeiro, em 1980, expunha aquarelas de uma precisão notável do ponto de vista técnico e figurativo. Em muitas outras situações, ele lançou mão dessa habilidade para simular possíveis efeitos de alguns projetos (as figueiras deformando a longa chapa de ferro de Mesa, por exemplo). Em 2013, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, foram

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expostos mais de cem desenhos que o artista realizou durante o processo de desenvolvimento das séries 4 cantos, 2008, e Verso, 2013. Os desenhos mostrados na ocasião tinham uma aparência e uma natureza totalmente diversas daqueles com que Nelson iniciou sua trajetória. À maneira dos processos meditativos, esses desenhos conduziam a um envolvimento crescente com as questões que o ocupavam. Em vez de serem esboços tentativos de uma imagem apenas vislumbrada, eles proporcionavam uma concentração crescente e um afastamento constante em relação àquilo que não dissesse respeito ao trabalho em jogo. Em depoimentos gravados, Nelson Felix menciona de formas variadas seu encanto com que ele chama de “pensamento”. Eu mesmo ouvi dele inúmeras declarações sobre isso, e confesso que apenas há pouco tempo cheguei a entender melhor a que se referia. Para Nelson Felix, “pensamento” não diz respeito àquilo que poderia também receber o nome de “raciocínio”, “elucubração”, “consideração”, “observação” ou “reflexão”, como é mais ou menos corrente. Para ele — que usa esse termo à exaustão —, a palavra designa um processo inseparável dos desenhos. Acredito mesmo que não conseguiria pensar sem lápis e papel nas mãos. Para ele, o que conta no ato de pensar é precisamente a obtenção de uma correspondência entre, digamos, o cérebro e os movimentos corporais (os traços sobre o papel), uma unidade que, com diferenças, também diz respeito ao processo erótico. O substantivo “pensamento” designa então uma antecipação dos amplos (e sintéticos) processos que movem a quase totalidade de seus trabalhos, posto agora numa escala humana e não planetária. Esse conjunto de procedimentos tornou-se central na poética do artista, mesmo porque oferecia saídas a dificuldades que as vertentes mais conceituais da arte contemporânea tendem a escamotear: a necessidade excessiva de explicações para que as obras sejam assimiladas. Restituir aos sentidos a capacidade de ampliar o campo da experiência e das significações tornou-se decisivo num contexto social em que, com frequência, a percepção e os sentidos têm sido as vítimas mais fáceis de práticas regressivas e conservadoras, e isso pelos mais diversos caminhos: da música comercial à literatura de autoajuda, passando por toda sorte de apelações sentimentais que tendem a tornar a experiência sensível do mundo sinônimo de reações banais e imediatas. Se os sentidos podem levar a emoções baixas, o que dizer de tantos sistemas filosóficos, políticos e religiosos que conduziram a desastres inomináveis que testemunhamos até hoje (e que certamente não pararão por aí)? Uma das origens desse viés totalitário não se explicaria justamente pela ênfase quase imemorial na subordinação da matéria ao espírito, do corpo à alma? Uma pessoa verdadeiramente alegre dificilmente saberia defender dualismos tão

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primários. Apenas uma grande obra de arte é capaz de nos fazer experimentar uma relação de unidade não violenta entre corpo e alma, sejam lá quais forem os nomes que se queira dar a esse par imemorial. A emoção física proporcionada por uma obra grandiosa é o indicador mais seguro da intensificação de nossas possibilidades. A alegria de uma tela de Matisse aponta, por meio de uma experiência real, que podemos ir além de uma identidade satisfeita consigo mesma. Em Concerto para encanto e anel, 2005-2009, 4 cantos, 2004-2008, e Verso, 2013, Nelson Felix volta a trabalhar com conjuntos de obras movidas por operações semelhantes. E com eles consegue provar como as soluções propostas nesses trabalhos obtiveram potência estética também em contextos diferentes. A forma encarnada que a meditação ganhou nesses trabalhos proporcionou ao artista conquistar um estatuto estranho para a obra de arte — distante tanto das mediações excessivamente narrativas e conceituais de parte da arte contemporânea quanto da materialidade da arte pós-minimalista (Richard Serra e Eva Hesse, por exemplo). Como se tivesse alcançado um novo modo de intervir na natureza, Nelson Felix realizava uma land art suave. Ao invés de mover toneladas e mais toneladas de terra e pedra, obteve uma presença digna para a realidade natural por meio de operações pontuais, que a envolviam num contexto poético de alta intensidade sensível. Outros fenômenos têm também a capacidade de criar aproximações radicais entre os corpos, entre os seres. Entre eles, o erotismo foi aquele que levou Nelson Felix a realizar um de seus melhores trabalhos: Vazio sexo. Parte da força do trabalho vem da figura geométrica paradoxal que elegeu para representar o erotismo: um cubo. Tivesse se decidido por uma esfera, tudo ficaria bem mais direto. De fato, o círculo metaforiza de perto esse contato em que os corpos deixam de ser norteados por critérios como alto e baixo, direita e esquerda etc. Por mais que sejam os corpos humanos que ponham em ação o jogo erótico, é também ele, o sexo, a via privilegiada para colocarmos em xeque os padrões antropomórficos de localização e orientação, conduzindo-nos a situações de riquíssima desorientação visual. Em vez de escolher a figura que mais se aproximaria do sexo e sua problematização das individualidades, Nelson optou por chegar à ideia de continuidade por meio de um fazer inteiriço. O cubo de que ele partiu tornou-se a geratriz das formas que o atravessaram de alto a baixo, de todos os lados. Trabalhando sem lançar mão de emendas que rompessem a unidade do bloco inicial, Nelson logrou criar um cubo menor dentro do cubo inicial, obedecendo à unidade original. A inteireza do bloco inicial acompanhou desde o início a obtenção de um duplo

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no seu interior, como ocorre na tradição das esferas concêntricas de marfim ou jade de origem chinesa. Os oito cantos dos cubos se mantiveram com toda sua angulosidade. No entanto, o aspecto arejado da trama conferia total comunicação entre as dimensões dos dois sólidos. O problema da quadratura do círculo (dado um círculo, construir um quadrado com a mesma área) obtinha aí uma solução poética. E a porosidade total dos corpos atingida no êxtase erótico talvez não obtivesse experiência mais pertinente. O cubo menor era ligeiramente deslocado por um calço com o molde do interior de uma vagina fundido em prata: também é do erotismo fazer-nos perder o prumo. Se Cruz na América havia realizado a dimensão de concentração da prática meditativa, Vazio sexo era seu lado contemplativo, o estado de suspensão proporcionado pelo êxtase erótico. A preocupação com a problematização da identidade dos seres fará com que o artista se empenhe em conferir estatuto lábil às formas que participam de seus próprios trabalhos, sem o qual seu projeto teria pés de barro. Os anéis são recorrentes em suas obras. A poética do devaneio meditativo de Nelson Felix não pode prescindir dos movimentos circulares, desde que o ponto de partida não seja um duplo simétrico do ponto de chegada, justamente porque eles apenas apontam o começo e o fim de uma trajetória crítica, na qual as coisas serão postas em xeque, em crise, e deverão mudar. Como na tradição das peregrinações, caminho é o outro nome das transformações radicais. Em Concerto para encanto e anel, há dois trabalhos em que os anéis têm forte peso: Camiri e Cavalariças. Em ambos, os anéis apresentam um sentido praticamente oposto, dada a inserção em tramas de forças diversas. Camiri foi concebido e realizado entre 1999 e 2006 para o Museu da Vale do Rio Doce, perto de Vitória, no Espírito Santo. O título da mostra corresponde ao nome da cidade boliviana que se encontra no cruzamento das duas linhas de Cruz na América. Afinal, é da natureza da meditação a busca constante de novos elos que possibilitem seu prosseguimento. Num grande galpão, são dispostas 27 vigas de ferro paralelamente ao plano do chão, a pouco mais de um metro de altura (para ser mais preciso, no nível dos olhos do artista). A partir da última viga, seguem-se doze outras traves de ferro dispostas numa inclinação de 23 graus em relação ao corpo do galpão. A última dessas vigas atravessa um grande anel de mármore de 2,32 metros de diâmetro. No seu interior repousam dois outros anéis, menores.

As dezenas de vigas traçam dois planos no interior do galpão, inclinados um em relação ao outro. Ambos, porém, compõem-se a partir da disposição diversa de unidades idênticas, todas lineares, numa dinâmica serial que também ecoa as discussões minimalistas. Apenas os três anéis se distinguem da geometria dominante. E o anel maior (e mais visível) interrompe a continuidade das bar-

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ras paralelas. Ele ganha ainda mais evidência por ser uma figura geométrica associável ao movimento (a roda) que, nesse caso, paradoxalmente, suspende o andamento das vigas de ferro. Em Camiri, o grande anel que depois também fará parte de Cavalariças desempenha um papel mais formal na constituição da obra, ela mesma fortemente apoiada em variações espaciais que dependem em boa parte de disposições geometricamente variadas de unidades idênticas. Mas atenção: trata-se de uma forma delicada que interrompe um movimento envolvendo muitas toneladas de aço. Outra é a solução apresentada em Cavalariças. Nas antigas cavalariças do palácio da família Lage — no qual desde 1975 funciona a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, na cidade do Rio de Janeiro —, foram fincadas verticalmente 68 vigas de ferro já utilizadas em Camiri. Mais ao centro do espaço, quatro das

vigas sustentam no seu alto o mesmo grande anel do Museu da Vale. A área da parte superior das quatro vigas é menor que a da parte inferior. O grande anel, que estava preso às vigas por fortes amarras, quando solto, produzirá torções e deformações impressionantes no ferro que, por sua disposição, impedia que a força da gravidade se cumprisse. No novo trabalho, porém, o anel se transforma totalmente. Já não é a figura geométrica que detém metaforicamente uma dinâmica estrutural. Ao contrário, faz lembrar um cruel empalamento, como numa das séries gravadas mais violentas de Goya: Los desastres de la guerra [Os desastres da guerra], 1810-1815. Muda também, aqui, a significação que o sexo adquire na obra de Nelson Felix. Em Vazio sexo, um cubo vazado representava a inteireza de homens e mulheres no momento do êxtase erótico. Agora uma forma nada angulosa surge como o foco mesmo do sexo entendido como violência e dor. II Desde que a noção de verossimilhança — de representações que se assemelhassem a uma visão da realidade — deixou de balizar a criação artística, as artes visuais, paradoxalmente, não pararam mais de ceder espaço ao mundo e a suas contingências, por mais que a arte se afastasse da representação da realidade. A recusa consciente ao caráter diferenciador da experiência estética — ou seja, o afastamento voluntário e progressivo de qualquer complexidade formal que diferenciasse os trabalhos de arte dos demais objetos do mundo — foi um dos responsáveis por alguns aspectos importantes, e repletos de armadilhas, da arte de nossos dias. Richard Serra escreveu certa vez que as obras dos minimalistas eram homeless (sem-teto). Com mudanças, a observação seria extensível a parte considerável da arte contemporânea.

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Uma vez que estavam impossibilitadas de criar novas espacialidades (pois isso significaria ceder à arte e se afastar da vida), as artes visuais foram habitar espaços já existentes. A hipertrofia de museus, centros culturais, fundações de arte, bienais, feiras e demais instituições não tem a ver somente com as democracias de massa e sua necessidade de expandir o acesso da população à arte e à cultura. A própria arte (ou pelo menos uma parcela considerável da arte tridimensional realizada nos nossos dias), pela sua dinâmica, se vê forçada a se institucionalizar para sobreviver. A necessidade de corresponder, ao menos parcialmente, às expectativas sociais desses novos espaços de massa levou-a também a soluções participativas e capciosamente ambíguas, que são a outra face das críticas contemporâneas à autonomia da arte e, em parte, derivam das reivindicações a uma aproximação entre arte e vida. Então, põe-se em ação um movimento pendular que, ao espaço que envolve e congestiona os sentidos, opõe um paradoxal retorno aos conteúdos politizantes. À tendência à empatia e ao acolhimento corresponde um retorno às mensagens, de caráter pré-moderno, alheias a quaisquer sutilezas formais e injetadas de fora, como o coroamento dessa dinâmica antiartística. Assim como uma chapa de aço se transforma, digamos, nos para-lamas de um automóvel, pela força de uma prensa pesada, as “mensagens” se inoculam às obras com a mesma violência. Paradoxalmente, usa-se o mundo para criticar a sua instrumentalização. O fenômeno contemporâneo das curadorias só pode ser explicado, a meu ver, se se considerar esse movimento. Afinal, a consumação nua e crua do fim da autonomia da arte deve ser o uso do trabalho de arte para ilustração de alguma tese, seja ela qual for. Por certo, nem tudo aquilo que recebe o nome de arte contemporânea corresponde a essa análise. Há ainda uns poucos grandes artistas em ação. Receio entretanto que, se não houver uma mudança significativa no panorama das artes visuais, aquilo que se entendeu por arte até o final do século XX está com os dias contados. Num ensaio memorável publicado na coletânea The De-definition of Art, de 1972, o crítico de arte norte-americano Harold Rosenberg fez uma afirmação

que sintetizava décadas de reflexão e polêmicas: “Uma pintura ou escultura contemporânea é uma espécie de centauro: metade materiais artísticos, metade palavras”.3 A tentativa dos impressionistas de afastar sua arte de associações literárias, tornando-a uma resposta direta do olho aos estímulos visuais, paradoxalmente deu lugar a um constante conflito entre olho e mente.

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ROSENBERG, Harold. “Art and Words”. In: __________. The De-definition of Art. Nova York: Collier Books, 1972, p. 55. Traduzido para esta edição.

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Depois de analisar essa tensão entre os action painters (um termo cunhado por Rosenberg), artistas ligados à arte pop, ao minimalismo e vários outros, o autor conclui que não há retorno à astúcia intuitiva do artesão tradicional, e tampouco a rendição do artista a seu medium o libertará das obsessões do pensamento. As palavras sobre a arte continuarão a falar ao artista, às vezes dirigindo-o sem que ele se dê conta, por vezes na forma de problemas conscientes a serem confrontados e modificados. [...] Dado o atual grau de consciência estética, até mesmo a mais arbitrária dispersão de dejetos, se se dá num meio de arte, tornase intencional devido ao fato de que o próprio acaso é uma técnica de criação artística há cinquenta anos.4 Na V Documenta de Kassel, de 1972, o trabalho apresentado pelo alemão Joseph Beuys, um dos maiores artistas contemporâneos, foram cem dias de discussão sobre a democracia direta, um sistema político consideravelmente utópico e jamais posto em prática, que mobilizava fortemente a arte e o pensamento de Beuys. Ele defendia uma arte que impulsionasse uma escultura social (“soziale Plastik”), ou seja, um processo de transformação permanente da sociedade, que deveria se afastar das institucionalizações enrijecedoras da dinâmica e da tensão do mundo social. O uso recorrente de gordura, cera de abelha e feltro em suas obras — para além de uma possível, porém improvável associação a sua biografia5 — ajudaria a desenvolver uma noção de calor que permitiria conceber transformações de dentro para fora, sem a violência comum aos processos artificiais de manipulação do mundo. Passados quase trinta anos de sua morte, em 1986, acredito que seus trabalhos, cada vez mais afastados do forte discurso que os envolvia (embora essa prosa também os tenha impregnado), mantêm sua potência, sem que sua dimensão discursiva tenha abafado a força sensível deles. O texto de Rosenberg tem sem dúvida uma dimensão premonitória. Há nele, porém, uma resignação com o destino da arte, que pode transformá-la em pouco mais que um ramo criativo da boa e velha cultura. Nunca saberemos ao certo o que Rosenberg entendia por “astúcia intuitiva do artesão tradicional” (“intuitive astuteness of the traditional craftsman”). No contexto do ensaio, sou

4

Ibidem, p. 68.

5

Durante a Segunda Guerra Mundial, Joseph Beuys foi piloto da Luftwaffe (a Força Aérea alemã), tendo participado de campanhas no sul da Itália, Croácia, Ucrânia e na C rimeia, onde foi abatido. Segundo o próprio artista, ele foi salvo por nômades tártaros, que teriam usado gordura e cobertores militares de feltro para restituir calor a seu corpo.

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levado a crer que ele se refere aos grandes mestres anteriores à arte moderna. Acreditar que o fazer de um Leonardo da Vinci, por exemplo, não tivesse em si mesmo uma dimensão altamente reflexiva irá nos conduzir a ver na prática artística uma racionalidade necessariamente estranha a ela. Nesse caso, a arte estaria mesmo fadada a relações extraconjugais com o pensamento, o que me parece um rebaixamento da arte a um estatuto pré-kantiano, e portanto merecidamente artesanal. A grande arte nunca foi a solução de problemas artísticos. Mais que tudo, nunca coube à arte a solução do que quer que fosse. Talvez se possa esperar dela o delineamento de questões, desde que ela faça a mais radical e generosa experiência da realidade, ainda que essa realidade — como a dos nossos dias — pareça se mostrar como fugacidade e fantasia, como um mundo sem densidade que não oferece resistência à prática humana, ou seja, uma pura virtualidade. A obra de Nelson Felix tem todo o hibridismo de um centauro: materiais e práticas artísticos intrinsecamente associados a pensamentos, discursos, diagramas, mapas etc. Essa ampliação dos meios de expressão das artes visuais não o conduziu, no entanto, a direções que forçassem seus trabalhos a um reconhecimento de inferioridade em face das atividades do espírito. A interrogação em torno da natureza da arte, como na arte conceitual em geral e na de Joseph Kosuth em particular, deve necessariamente conduzir à desqualificação do mundo sensível. Afinal, se não fosse assim, como negar que toda grande obra de arte é a reflexão insuperável sobre ela mesma? Kosuth tem reflexões que ultrapassem aquelas materializadas numa obra de Matisse, Picasso ou Brancusi, entre tantos outros? Em arte, para que servem conceitos, se não pode haver um conceito de arte? O juízo reflexionante de Kant é o movimento reflexivo em ato, e não a sua reificação, como nas Três cadeiras, de Kosuth. Poderia haver uma história da arte, se houvesse um conceito de arte? A “obra” de Duchamp pode servir de alicerce ao arranha-céu que se edificou sobre ela? Se um cão engolisse a própria cauda, seria cão a mais ou a menos? Sempre que escrevemos sobre um artista específico, tendemos a valorizar em excesso suas realizações. Não acredito que o trabalho de Nelson Felix tenha a saída para os sérios impasses da arte que se faz nos nossos dias. Penso porém que seu trabalho expõe e problematiza pontos centrais da arte contemporânea. Sobretudo leva adiante uma experiência do mundo repleta de surpresas e revelações. Na mitologia grega, Anteu era um deus cuja força descomunal dependia do seu contato com o chão — sua mãe, Gaia, era a deusa da Terra. Não havia rival que o derrotasse. Até que Hércules descobre seu ponto fraco e o mantém suspenso, além do tempo suportável por seu adversário, que morre. Gosto de pensar que a arte de Nelson Felix, mais que o hibridismo

86


dos centauros, tiraria sua potência da combinação da força de Anteu com a astúcia de Hércules. No entanto, diferentemente do mito, é do interesse da arte que Anteu e Hércules sobrevivam. A meu ver, é precisamente na difícil combinação entre materialidade e leveza que reside a possibilidade de sobrevivência de uma atividade que é simultaneamente essa combinação ponderada, cuja regra felizmente desconhecemos, entre objeto e sujeito, entre matéria e espírito, entre afirmação e dúvida. Nos trabalhos de Nelson Felix, a grande incorporação de novos aspectos da realidade depende de sua capacidade de magnetizar segmentos do mundo, de modo que voltemos sempre a ele. Não por nostalgia ou carência, mas pela simples razão de que precisamos, por vezes, substituir um Hércules cansado do peso de Anteu, já que mitos não morrem jamais.

87


emaranhado a cronologia de nelson felix francesco perrotta-bosch

Nelson Tavares Felix de Oliveira nasceu no Rio de Janeiro, em 1954. Filho do médico Nelson Felix de Oliveira e da assistente social Andrea Dias Tavares, morou durante a infância e a adolescência no bairro de Ipanema, zona sul carioca. A família paterna era de classe média intelectualizada. Médico-farmacêutico, seu avô foi general do Exército, tendo tido quatro filhos. O primogênito era o pai do artista. O segundo filho era o poeta Moacyr Felix, diretor da editora Paz e Terra e autor de diversos livros, como Neste lençol, 1977, Singular plural, 1988, e Introdução a escombros, 1998, pelo qual recebeu o Prêmio Jabuti. Também foi colaborador do Paratodos, jornal de cultura do Partido Comunista Brasileiro (PCB), dirigido por Jorge Amado e Oscar Niemeyer. Ao recordar do pai e do tio, o artista Nelson Felix relata: Quando eu era menino, com mais ou menos cinco anos, via meu pai sendo sempre tratado com “ô, doutor!”, e meu tio como “ô, poeta!”, com reverência, enquanto se referiam às outras pessoas como “senhor”. Desde pequeno fiquei atento àquela deferência que faziam ao meu pai e ao meu tio. Passei a achar que médico e poeta eram seres humanos especiais. Fiquei com aquilo na cabeça: poesia era uma coisa especial. Quando fui ler poesia pela primeira vez, entre oito e nove anos, achei que teria um êxtase, que algo especial aconteceria na minha vida. Li poemas de Rilke que meu tio me deu, e não aconteceu nada. Foi uma pequena decepção.1

1

88

Entrevista de Nelson Felix concedida a Francesco Perrotta-Bosch. Nova Friburgo, 6

KARRATHA,

jan. 2015 .

AUSTRÁLIA


89


A mãe era filha de um português que, entre outras coisas, foi dono de uma fábrica de saltos de sapato e teve como cliente mais ilustre Carmen Miranda. Sua esposa, a avó do artista, morou no apartamento de Nelson Felix quando ele era criança, ajudando a filha Andrea a criar os filhos sem ter que deixar de trabalhar. Na época, Ipanema era um dos pontos em que a cidade do Rio de Janeiro praticamente terminava, fazendo limite com um areal, a praia do Leblon. Quando o bairro ainda tinha bondes, Nelson Felix lembra que passava as tardes desenhando, extremamente concentrado. De tão compenetrado, emitia um som que não percebia, somente se dando conta quando alguém o chamava, interrompendo-o. Esse som, que se tornou seu apelido de infância, era a exteriorização de sua concentração. Ouvia muito Dorival Caymmi, desde pequeno, em virtude do gosto do pai. “Para mim, o maior artista que conheço”, classifica Nelson Felix. “Um violão, uma voz grossa, umas letras mínimas.”2 No momento em que foi apresentado ao minimalismo nas artes plásticas, aquilo já lhe parecia normal por conhecer Caymmi, um minimalista avant la lettre. Quando houve o golpe militar em 1964, Nelson Felix tinha apenas dez anos de idade. Naquele momento, diz ele, pouco compreendeu o que estava acontecendo no país. Recorda que membros do Exército entravam na casa do pai para vasculhar tudo em busca de livros ou objetos relacionados ao comunismo do tio: “Quando os caras saíam, a casa estava de cabeça para baixo”.3 Quando tinha cerca de doze anos, seus pais se separaram — algo raro na década de 1960. Cresceu em Ipanema, junto à praia, os dias inteiros na rua jogando bola na praça General Osório, próxima do acesso ao morro Pavão-Pavãozinho, onde moravam alguns amigos. Na adolescência, estudava bateria. Gostava de rock and roll, mas praticava jazz pela autonomia que esse gênero musical dá ao instrumento. Àquela altura, teve contato com o samba. Então desmembrava sua bateria, pegava o tarol e subia o morro para tocar samba com os colegas que lá moravam. Considera essa uma das experiências mais marcantes para sua noção de arte. Pela presença do meu tio poeta, minha família não via o artista como um sujeito sem profissão. Eu tomei a noção de que artista era uma profissão como as outras. Logo, seguindo a lógica da classe média, como todas as profissões, o artista faz uma carreira. Lembro de uma das primeiras vezes que subi o mor-

2

Idem.

VULCÃO HEKLA,

3

Idem.

ISLÂNDIA

90


91


ro para fazer samba. Eu percebi que um cara era mecânico, um segundo era porteiro, o outro era não sei o quê. Cada um tinha o seu trabalho, mas faziam samba porque gostavam de fazer samba. Sabiam que aquilo era uma atividade secundária. Tinham ciência de que nunca iam ser reconhecidos, mas eles davam a vida por aquele samba. Aos catorze anos, me identifiquei muito com isso. Eles faziam samba por necessidade vital.4

Viu ganhar corpo a Banda de Ipanema, da turma mais velha que fazia O Pasquim. Batucou para comemorar as vitórias da seleção na Copa do Mundo de 1970. No ano seguinte, teve o primeiro contato mais consistente com as artes visuais, ao fazer o curso de Ivan Serpa. Por ser ainda muito jovem, comenta ter assimilado pouco das aulas, mas reteve especialmente a relação obsessiva de Serpa com a arte. A escolha de Nelson Felix pela arquitetura foi quase involuntária. No científico (equivalente ao atual ensino médio) já era decidida a área de especialização do aluno. No período em que seu colégio buscou contatá-lo para que tomasse a decisão, realizava sua primeira viagem pela América Latina. Sua mãe deduziu que arquitetura seria o melhor, devido ao gosto pelo desenho que o filho tinha desde a infância. Na época ele concordou e, em 1972, após terminar a escola, ingressou no curso de arquitetura da Universidade Santa Úrsula. Nesse mesmo período, fez longas viagens pelo continente latino-americano, visitando comunidades e buscando experiências espirituais. Quando estava no terceiro ano da faculdade, interrompeu o curso e foi morar na Venezuela por cerca de um semestre. “Havia uma vontade intrínseca de consertar o mundo: alguns pegaram em armas, outros foram pelo pacifismo ou pela ecologia. Mas era a mesma vontade de consertar o mundo, de agir politicamente. Se eu tivesse nascido dez anos antes, talvez tivesse pegado em armas.”5

Também no período em que esteve na Venezuela, Nelson Felix tornou-se consciente de que sua noção de espiritualidade se incorporava à ideia que tinha de arte. De regresso ao Rio de Janeiro, retoma a faculdade, mas já certo de que ia se tornar artista. “Foi a maior festa na minha família: entre não ser nada e ser artista, tem um ganho nisso.”6 Da arquitetura, aproveitou o pensamento espacial e,

4

Idem.

5

Idem.

FLORESTA AMAZÔNICA,

6

Idem.

BRASIL

92


93


principalmente, as aulas e as conversas com a artista plástica Lygia Pape, que o apresentara a certas noções de arte contemporânea. Continuou a desenhar e foi incentivado pelas premiações recebidas em 1976 no I Salão Nacional Universitário de Artes Plásticas e no III Salão Carioca de Arte, promovidos pela Funarte, e no XI Salão de Maio da Sociedade Brasileira de Belas Artes. Em 1977, Nelson forma-se na faculdade de arquitetura e se casa. Começa a expor alguns trabalhos em mostras coletivas, enquanto atua como arquiteto da Legião Brasileira de Assistência (LBA), órgão assistencial público do governo federal. Participa de grupos de estudos na casa da psiquiatra Nise da Silveira, e também realiza trabalhos com os artistas Fernando Barata e Lula Wanderley e o poeta Flávio Nascimento. No dia 8 de julho de 1978, preparava sua primeira exposição individual no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ) quando um incêndio destruiu grande parte do acervo da instituição. No ano seguinte, forma o grupo Configuração com mais sete artistas, entre eles Evandro Salles, Fernando Barata e Luiza Interlenghi. Nessa mesma época, Nelson Felix procura o colecionador e marchand Jean Boghici, que estava construindo sua segunda galeria. Deixa com ele a pasta de seus desenhos. Boghici se interessa, e o convívio entre os dois permite que o artista tenha contato com a vasta coleção do marchand. Como ainda não tinha ido à Europa e à América do Norte, é por meio do acervo particular de Boghici que Felix vê diversas obras-primas modernas pela primeira vez. O colecionador também o apresenta a diversas figuras importantes do meio artístico nacional, como Sérgio Camargo — um dos primeiros compradores de seus desenhos — e o crítico de arte Mário Pedrosa. “Quando ele [Pedrosa] via meus desenhos, sentia que era como se estivesse lendo mapa astral: ele começava a falar da minha personalidade pelos desenhos. Voltei lá algumas vezes; gostava de mostrar o que estava fazendo.”7 Em 1980, Nelson Felix tem sua primeira exposição individual na Galeria Jean Boghici. Foi uma das primeiras mostras do local, sendo precedida pela exposição do artista uruguaio Joaquín Torres García (que teve muitos de seus trabalhos destruídos na retrospectiva que acontecia no MAM-RJ no momento do grande incêndio) e pela exposição Homenagem a Mário Pedrosa, com dezenas de artistas do mundo inteiro que tiveram contato com o crítico. Alexander Calder e Frans Krajcberg, por exemplo, também tiveram seus trabalhos expostos na galeria de Boghici na mesma época. Composta de “desenhos hedonísticos e irônicos”, segundo o crítico de arte Wilson Coutinho, “carregados de humor frívolo”8 — que antecipavam a Geração 80, da qual o artista prontamente se des-

7

Idem.

8

COUTINHO, Wilson. “De corpo e alma”. Revista Rio Artes, Rio de Janeiro, mar. 1993.

94

DONG SHA, TAIWAN


95


vencilhou —, a exposição tinha no folder o texto “Da cor do amarelo”, escrito por um jovem Nelson Felix e num tom ácido com relação à chamada arte conceitual, amplamente difundida na época. Nesse mesmo texto — uma das primeiras expressões públicas do seu pensamento —, o artista demonstra certas referências que remetem às viagens que fez pela América Latina ao longo dos anos 1970, além de temas psiquiátricos, em especial o inconsciente, que indicam seu interesse por questões estudadas por Nise da Silveira. A convite de Lygia Pape e do diretor de arte e cenógrafo Anísio Medeiros, Nelson Felix começa a lecionar na Universidade Santa Úrsula em 1982. No ano anterior, havia iniciado seus desenhos em grafite, que depois vieram a compor sua segunda exposição individual na galeria carioca Paulo Klabin, em 1983, cujos trabalhos — a exemplo de Noite, de 1982 — são, como descrito no texto do folder da mostra, “massas tão profundamente negras, que luminosas”.9 É um período em que Nelson Felix passa a ter obras expostas em diversas exibições coletivas, tendo também sua primeira individual fora de sua cidade natal, na galeria de arte Paulo Figueiredo, em São Paulo. Após diversas viagens pela América Latina, África e Europa, e um breve período de moradia em Florianópolis, em 1984, Nelson Felix muda-se para Nova Friburgo, interior do Rio de Janeiro, ao encontro de um terreno distante da zona urbana, em meio a uma paisagem composta pela exuberante vegetação de mata atlântica e pelo relevo de declividades abruptas da serra fluminense. Até hoje, lá estão sua casa e seu ateliê. Tal opção, justifica o artista, foi feita “para levar às últimas consequências essa ideia de ser dono do meu tempo”.10 É uma opção de vida que guarda semelhanças com aquela dos monges, cuja reclusão permite a concentração e a devoção à sua atividade. A crítica de arte e curadora Glória Ferreira alerta de partida: “De fato, desde o início, o trabalho de Nelson Felix fusiona e amalgama a dimensão espiritual e o orgânico, humano ou natural”.11 Em 1984, o artista deixa de apresentar trabalhos exclusivamente bidimensionais e passa a realizar esculturas com diferentes materiais, como borracha maleável e diversos metais. São desse mesmo ano as obras Preparando venenos, Cabeças felizes e Sono, por exemplo. Preparando vePREPARANDO VENENOS, 1984

9

SALLES, Evandro. In: FELIX, Nelson. Nelson Felix (folder da exposição na Galeria Paulo

Klabin). Rio de Janeiro, mar. 1983. 10 Entrevista de Nelson Felix concedida a Francesco Perrotta-Bosch. Nova Friburgo, 6 jan. 2015. 11 FERREIRA , Glória. “Acasos predeterminados”. In: FELIX , Nelson. Trilogias (folder da exposição no Paço Imperial). Rio de Janeiro, 2005 .

96

BORRACHA, CHUMBO, ELEMENTO RADIOATIVO, OURO E PRATA 12 X 240 X 12 CM COLEÇÃO DO ARTISTA, RJ


FALTA SCAN

97


DA COR DO AMARELO NELSON FELIX

A originalidade do “homem moderno”, sua grande

homem atual, ao deslocar o

novidade com respeito

centro de gravidade de seu

às sociedades primitivas

interesse do interior para

tradicionais, está precisamente

o exterior, alterou sua vida

na vontade de considerar-

espiritual, mas não chegou

-se como um ser unicamente

a romper as matrizes de sua

histórico, no desejo de viver

imaginação. Um imenso resíduo

num cosmo radicalmente

de imagens perdura em suas

dessacralizado.

zonas pouco controladas.

Apesar disso, podemos

98

Poderíamos dizer que o

Isso é o que sucede em

notar um constante

grande parte da chamada

desabrochar de imagens em

“vanguarda” dos séculos XIX

suas ocupações, festividades e

e XX. Nesse berço, ela cresceu.

diversões: os atos públicos, os

O moderno introduziu em

espetáculos, as competições

nós a ideia de campeões do

esportivas, as organizações

progresso através de sucessivas

burocráticas, a propaganda

rupturas ideológicas que

por meio de slogans, a

buscavam sempre o mais novo,

literatura de amplo consumo

a novidade. Mas o certo é que,

popular, tudo isso ainda

como nos diz Octavio Paz,

conserva a estrutura dos

“chegamos a um ponto em

símbolos, dos mitos e dos ritos

que a ideia de futuro perdeu

— se bem que desprovidos de

sua antiga força e sedução.

seu conteúdo religioso. Mas

Daí a crise da vanguarda [...]

ainda, segundo Mircea Eliade,

ela tornou-se acadêmica [...]

a “atividade imaginária e a

o que a distingue das artes

experiência onírica do homem

de outras épocas é a crítica

moderno seguem impregnadas

— e ela deixou de ser crítica,

de símbolos, figuras e temas

à medida que ingressou no

religiosos. Como alguns

circuito de produção e consumo

psicólogos gostam de repetir:

da sociedade industrial, seja

o inconsciente é religioso”.

como objeto, seja como notícia;


perdeu sua vitalidade; já

viemos sempre esbarrando,

existe. Realizar o presente é a

não é uma crítica, e sim uma

por toda a nossa história, em

única verdade”.

convenção aceita e codificada.

culturas “mágicas” (aborígines

Em vez de ser uma heresia,

e negros). Será nossa própria

os aborígines americanos

como foi até a metade do

culpa se insistirmos somente

buscaram viver essa realidade,

nosso século, converteu-se em

na aplicação de conceitos ao

mas também, dentre muitos, o

um artigo de fé de que todos

campo do pensamento: nos

complexo xamanista e os povos

compartem”.

castraremos e acabaremos

orientais. A ioga, com suas

no impasse de nos fecharmos

dezoito vias, visa conscientizar

América anglo-saxã, prolifera

no mecanismo — o que não é

o indivíduo do instante, através

o conceito. Seu avanço é

inerente a nós.

de posturas do corpo (asanas)

Hoje, na Europa e na

medido pelo grau de domínio

Esses restos de imagens

Nem só os negros ou

e de exercícios respiratórios

do pensamento sobre as

mágicas, como vimos

(pranaiama). Muitas vezes, o

palavras. Porém, já é sensível

anteriormente, estão presentes

oriental também se utiliza de

o seu cansaço, assim como o

em nós e oferecem um ponto

imagens, com os iantras ou

do debate sobre a história, o da

de partida possível para

as mandalas: “O iantra é um

perda de solidariedade com a

a renovação espiritual do

elemento de concentração que

natureza e com a vida mesma e,

homem moderno — ponto de

resume uma missão inteira;

finalmente, o do atual excesso

partida que nos levará a viver

é como uma chave, dada

de palavras.

o presente. A nossa civilização

através de várias instruções

— e, em decorrência, sua

gráficas” (De la Ferrière). Em

contrário, as linguagens

arte — visou quase sempre o

concentração, o estudante

poéticas vêm cada vez

passado ou o futuro, sendo o

busca revelações que entendam

mais ocupando um lugar

presente geralmente esquecido.

o símbolo em todos os seus

importante. Quanto a nós,

Para melhor definir a ideia

porquês, e também como

Brasil, mesmo com os freios

de presente, recorro ao dr.

revelações sensitivas (quanto

das ideias missionárias

Serge Raynaud de la Ferrière:

à sua forma, quanto ao local,

colonizadoras portuguesas e

“O passado não existe, ainda

hora, situação em que foi

dos imperialismos culturais

que possa haver existido [...]

recebido etc.). Toda uma gama

(principalmente europeu e

mas em todo caso não existe;

de fatores próprios e relativos

norte-americano), ou com os

existe unicamente o presente.

relacionam-se com esses

estímulos, recebidos com a

O futuro não existirá talvez [...]

signos. Seria interessante,

vinda dos negros africanos,

mas de todos os modos não

também, estendermo-nos até

Na América Latina, ao

99


o zen. Durante sua prática,

Nada de novo. Aliás, a única

coincidência dos opostos, que é

a meditação zen priva o ser

novidade (que na realidade não

tão abundante na vida espiritual

do excesso de pensamento

é novidade) é o renascimento

e dificilmente acessível ao

dedutivo. A aprendizagem

da atividade artesanal do

discurso. Ao deixar intato — e

não consiste no acúmulo de

artista, da volta ao simples, do

em comunhão — o princípio da

conhecimento — a meditação

“feito em casa”. Com esse fazer

contradição, a lógica dialética

não “ensina” nada. Ela busca

meticuloso, tem-se a satisfação

condena a imagem, pois evita

colocar o homem numa

do constante contato com

o pensar seletivo da síntese.

situação-limite, e não somente

o trabalho; logo, o processo

As imagens são um paradoxo

na situação histórica: a

criativo admitirá diversas

absoluto: em qualquer relação,

situação-limite é aquela que

interações em todo o seu

representam teses e antíteses

o homem descobre ao ter

decorrer e, por sua vez, também,

e, ao mesmo tempo, sínteses.

consciência do seu lugar no

o trabalho interagirá na própria

Elas não são abstratas nem

universo.

alma do artista. Enfim, o prazer

figurativas, racionais nem

alquimista.

irracionais, intelectuais nem

Finalmente, diz ainda Octavio Paz: “Voltamos a

Todos esses diversos

emocionais, e tampouco reais

algo que o Ocidente havia

complementos apontados, que

ou irreais: são, em cada caso,

esquecido: o renascimento da

na sua maioria são formados

ambas as coisas, ou melhor,

arte como ação coletiva e de

por ideias contrárias, procedem

estabelecem um diálogo-

seu complemento contrário,

de modo semelhante ao

relâmpago entre os polos.

a meditação solitária. Se a

da expressão das imagens.

palavra não tivesse perdido o

Etimologicamente, a

“a individualidade é uma

seu significado exato, eu diria:

imaginação é solidária de

reunião de antagonismos”.

uma arte espiritual”. E dá-nos

imago (imitar, reproduzir,

Portanto, sem a vivência

o exemplo de ação coletiva:

representar). A imaginação

dos contrastes não existe

aquela em que se exige do

imita modelos exemplares —

experiência alguma de

leitor a vivência sensitiva

as imagens arquetípicas que

totalidade e, com isso,

do trabalho. Como em toda

ela reproduz e reatualiza. Ter

nenhum mergulho às imagens

recriação, a leitura da obra

imaginação é ver o mundo

internas. O pensar simbólico

não é a mesma proposta pelo

em sua totalidade. Cabe

não é exclusivo da criança, do

artista (posição semelhante

aqui citar novamente Mircea

desequilibrado ou da atitude

à de Umberto Eco), mas é

Eliade: “A missão e o poder

poética. Presente na essência do

idêntica ao próprio ato de

das imagens é fazer ver tudo

ser humano, preenche a função

criação: o “receptor” recria o

quanto permanece refratário

de deixar nuas as modalidades

instante e cria-se a si mesmo.

ao conceito”. As imagens, por

mais secretas do ser.

Já a meditação solitária

suas estruturas multivalentes,

é o próprio processo de

estampam a realidade imediata

sua própria lógica: ninguém

individualização (agregação do

e revelam uma realidade

tumultua se o artista traçar um

consciente e do inconsciente)

inacessível aos demais meios de

gato com cabeça de marreco

do artista, através de seu fazer.

comunicação. Por exemplo: a

ou disser que o tempo corre.

100

À luz da psicologia analítica,

Já a imagem poética possui


Dentro desse universo, tudo é

Aprender a conviver com essa

válido: as imagens adquirem

constante mudança e com

um poder de perenidade e,

essa dualidade harmônica é

embora estando no presente,

algo limítrofe da magia, das

ultrapassam o momento e

práticas espirituais e de outras

chegam mesmo ao diálogo

tentativas de modificar o

entre culturas geográfica e

homem e atualizá-lo no tempo

historicamente diferentes.

primordial, ou seja, colocá-lo

Toda arte contém imagens — umas mais, outras menos; umas conscientes, outras inconscientes —, e é principalmente graças a elas que conversamos culturalmente.

simultaneamente no presente e na origem. PUBLICADO ORIGINALMENTE NO FOLDER DA EXPOSIÇÃO AQUARELAS, GALERIA JEAN BOGHICI, RIO DE JANEIRO, 1980.

101


nenos é um composto de borracha que resulta numa forma linear, porém sem qualquer matriz geométrica. Por sua vez, Cabeças felizes é uma sequência de sete esferas feitas de matérias-primas distintas: chumbo, estanho, ferro, cobre, latão, prata e ouro. Sono, por outro lado, é feita de chumbo, borracha e elemento radioativo. Em 1985, Nelson Felix inicia o Grande Budha, o primeiro trabalho cuja idealização, processo e realização duram vários anos, estendendo-se até 2000 . Essa temporalidade expandida torna-se recorrente na trajetória do artista (ele compõe também Cruz na América, trabalho que vai de 1985 a 2004). O Grande Budha é constituído por seis hastes lineares e pontiagudas de latão, com dobras em ângulo de noventa graus, posicionadas de modo equidistante ao redor de uma árvore e direcionadas para o eixo central do caule. Isto é, são seis garras que penetram na madeira, conforme a árvore se desenvolve. Nota-se um caráter agressivo da intervenção do artista, que revela o crescimento desse grande vegetal no meio da floresta. É um ato cultural que exterioriza o tempo da natureza. Porém, não acompanhamos o contato da madeira com o latão, das forças expansivas em sentidos contrários. Somente temos em mente, sem ver, o que acontece com a escultura — árvore e seis peças metálicas — ao longo do tempo. Como o crítico de arte Rodrigo Naves esclarece: Com isso sua obra tende a existir praticamente em dois planos: um estritamente formal, que se entrega plenamente aos olhos do observador, e outro sugerido, ao qual não temos acesso direto e que possui uma vida interior misteriosa e intensa.12

No mesmo ano, Nelson Felix faz a Segunda noção do zero e passa a realizar esculturas em grafite maciço, dando origem a obras como Sem título, 1986, pertencente à coleção de Jean Boghici, um objeto monolítico que flerta com o informe, e Colocar os pés sobre o chão firme, 1986, com 22 peças feitas de grafite e diamante (ambos provenientes do carbono) que pousam sobre o chão, cada elemento com sua sutil singularidade formal em eterno relacionamento com o conjunto de unidades que o envolvem: “Peças que instituíam um centro de energias, proto-obeliscos que captam o espaço circunvizinho”.13 Grafite, 1988-1989, é constituído por duas hastes do material que dá nome à obra, mas cujo posicionamento enCOLOCAR OS PÉS NO CHÃO FIRME, 1986

12 NAVES , Rodrigo. “O espírito da coisa”. In: __________. Nelson Felix. São Paulo: Cosac Naify, 1998 , p. 14 .

13 AGUILAR, Nelson. “Nelson Felix cultua espaço aberto”. Folha de S.Paulo, 4 jun. 1988.

102

DIAMANTE E GRAFITE 18 X 12 X 9 CM (CADA) COLEÇÃO JUSTO WERLANG, RS


103


trecruzado define-se pelo alinhamento de uma unidade ao eixo do Sol (23 graus) e a outra dispondo-se de acordo com parâmetros espaciais de onde se encontra. Essa é a primeira vez que aparece na produção de Nelson Felix a coexistência de referências espaciais em uma única obra, como Glória Ferreira observa: “Introduz, igualmente, a ideia de simultaneidade, de espaços distintos interagindo”.14 Na segunda metade da década de 1980, o artista carioca produz um conjunto de desenhos amalgamando grafite, chumbo e pastel oleoso. Tais desenhos estruturam-se no formato do papel: nas suas dimensões, no seu posicionamento, na própria divisão de folhas de papel — parte considerável dessas obras é feita sobre mais de uma unidade de papel —, não dividindo a obra, mas organizando a leitura, como uma pauta musical dentro da partitura. Aqui se destaca a série Desenhos verticais, 1987, e as obras Desenho horizontal, 1987-1989, Árvore, 1988, Montanha e chuva, 1988, Eu vi a América com os olhos dele, 1989, e Fênix, 1987, que se diferencia levemente por sua alvura em virtude do uso da cal e do pó de esmeralda. A série Gênesis — que se inicia em 1985 e está em curso até hoje15 — é apresentada pela primeira vez ao público em 1988. No princípio, era composta por três ações: o enxerto de um pequeno cristal em forma de pênis no interior de uma árvore, uma microestatueta de Buda em ouro incrustrada no osso de um cão por meio de uma intervenção cirúrgica e a inserção de um brilhante no interior de uma ostra. As três operações artísticas desencadeiam reações que podemos supor ao criar as mais distintas hipóteses — desde naturais cicatrizações em volta do objeto estranho enxertado até transformações estimuladas pela imagem do que foi introduzido —, mas não podemos saber ao certo, pois não há como acompanhá-las. Incita a nossa imaginação pelo caráter misterioso das transformações em curso enquanto estiverem vivos os seres que sofreram intervenção. Em palavras de Rodrigo Naves, “atos que deem a esses seres uma dimensão oculta e insondável”.16 Nelson Felix recebeu uma bolsa do Ministério da Cultura da França para sua primeira exposição individual em Paris, na Galerie Charles Sablon, em 1989. No mesmo ano, a Associação Paulista de Críticos de Arte ( APCA) conde-

corou-o com o Prêmio Melhor Exposição de 1988, na categoria desenho, pela

FÊNIX, 1987 CAL, CHUMBO, PASTEL SECO E PÓ DE ESMERALDA

14 FERREIRA , Glória. “A coisa é ar”. In: FERREIRA , Glória; SALZSTEIN , Sônia; BRISSAC , Nelson. Nelson Felix. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001 , p. 16 . 15 Em diversas publicações, a série Gênesis tem seu início datado de 1988, mas Nelson Felix avalia que os primeiros ensaios acerca do trabalho datam de 1985. 16 NAVES, Rodrigo. “O espírito da coisa”. In: __________. Nelson Felix. Op. cit., p. 9.

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150 X 70 CM COLEÇÃO JOÃO BOSCO, RJ IMAGEM DO PROJETO SÉRIE GÊNESIS, 1988 — 1991


eu vi a américa com os olhos dele FUJOKA VAI ESCANEAR E TRATAR

TROCAMOS PARA FÊNIX

FUJOCKA SCAN COMPLETAR IMAGEM OU TROCAR POR UMA VERTICAL?

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O TRABALHO FOI REALIZADO EM SEIS AÇÕES ESCULTÓRICAS NUM PERCURSO DE 29 ANOS, MESMO PERÍODO DA REVOLUÇÃO SOLAR DO PLANETA SATURNO — PAI DO TEMPO. OBJETOS CONFECCIONADOS EM MATERIAIS NOBRES, COMO DIAMANTE E OURO, SÃO INTRODUZIDOS EM ORGANISMOS VIVOS, EM FORMAÇÃO, COM A FINALIDADE DE SEREM ABSORVIDOS. ENTRE A AÇÃO E A ESPERA, ELEMENTOS RÍTMICOS DO TEMPO, ESTES OBJETOS PERSISTEM E INDICAM A PRESENÇA DA VIDA E DA CULTURA, PELA SUA MANUFATURA. O QUE ERA MORTO TORNA-SE SIGNO VIVO EM CONTATO COM A MORTE E VICE-VERSA. IMAGENS DO PROJETO SÉRIE GÊNESIS, 1988–1991



mostra individual na Galeria Luisa Strina, em São Paulo. Em 1991, ganhou a Bolsa Vitae de Artes Visuais. Na virada dos anos 1980 para os 1990, o artista passou a realizar esculturas cuja peça principal é um fuste em madeira: esguio (sempre superior a seis metros de comprimento), com uma forma ondulada (com estreita amplitude dos vários ciclos de onda que ali já vemos rijos) e superfícies constantemente curvas e polidas. São dessa fase Copacabana, 1989-1997, Língua, 1990, — com as três dezenas de pequenas estatuetas de Buda de três centímetros em bronze escorando as duas longas placas de madeira, “mesclando a relação matéria e espírito”17 —, Língua II, 1990-1997, e Ponte, 1992. A formalização em vagas da madeira ganha esbelteza e verticalidade no grafite e ferro de Frontal, 1990-1992. Em 1992, Nelson Felix começa as primeiras esculturas metálicas relacionadas aos espaços vazios do corpo humano — peças com formas orgânicas e distantes entre si, o que sugere uma interioridade que não pode ser vista —, como em Vazio, 1992, que anos depois vem a dar origem à Trilogia do vazio. O conjunto de esculturas mencionado neste parágrafo constituiu o núcleo de sua exposição individual no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), em 1993, que ocupou com oito peças o grande Hall Cívico do subsolo do edifício, sendo levada posteriormente para o Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), no Rio de Janeiro.

IMAGEM DA EXPOSIÇÃO NELSON FELIX, NO MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO ASSIS CHATEAUBRIAND, 1993 COPACABANA III, 1989–1997 FERRO E MADEIRA 40 X 630 X 65 CM

17 COUTINHO , Wilson. “De corpo e alma”. Revista Rio Artes, Rio de Janeiro, mar. 1993 .

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COLEÇÃO DO ARTISTA, RJ



No mesmo ano, montou na Galeria Luisa Strina a obra Flor na pele, 1993: duas peças delgadas e horizontais na forma de medula posicionadas frente a frente em paredes opostas de uma sala, separadas por uma renda trançada com fios metálicos, que poderia ser vista como um plano onde os elementos se espelham. Porém, tal equivalência das partes é quebrada pelo apoio que um coração de cobre dá a somente uma das peças. “Na solidão da sala de exposições, as duas hastes voltavam uma para a outra suas pontas afiadas, sem que soubéssemos a causa do confronto”, interpreta Rodrigo Naves. “A própria natureza se desdobrava ameaçadoramente, opondo-se a si mesma. Uma de suas partes no entanto apoiava-se num coração solitário, sinal de que aquele enfrentamento tinha seus dias contados, que mancava de uma perna e não podia durar.”18 O tecido ameaçado mas não perfurado de Flor na pele de fato vai enredar o coração em Escultura estéril, 1993, e tal qual uma rede de arrasto vai ao chão ao final da pesca tendo o ser ainda vivo enrolado a ela, temos Crochê e máscara, 1995, em que o artista também introduz o uso do azeite na obra. A medicina desempenhada pelo avô e pelo pai decerto fomentou o interesse de Nelson Felix pela anatomia humana, que já se observa nas obras Língua,

FLOR NA PELE, 1993

Vazio e Flor na Pele. Entretanto, em meados dos anos 1990, as formas moldadas

DIMENSÕES VARIÁVEIS

em seu próprio corpo passam a aparecer de modo mais literal nos trabalhos,

COBRE E MADEIRA COLEÇÃO DO ARTISTA, RJ CROCHÊ E MÁSCARA, 1995 AZEITE, COBRE E FERRO 12 X 100 X 100 CM

18 NAVES, Rodrigo. “O espírito da coisa”. In: __________. Nelson Felix. Op. cit., p. 15.

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COLEÇÃO DO ARTISTA, RJ


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recorrentemente em partes rearranjadas, como membros ou órgãos. Desse período, destacam-se Monte, 1994, Máscaras, 1995, — os moldes em ferro do rosto, do tronco e do ventre de um homem, estando as três peças separadas entre si —, Cada 2, 1996, e ½ eu, 1995, — a cabeça em ferro “submersa” no chão de concreto tal qual a ponta do iceberg está para o mar. Em 1994, viaja para a Austrália como artista residente e expõe no Perth Institute of Contemporary Art. Também recebe pela segunda vez o Prêmio Melhor Exposição da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), agora na categoria escultura, pela mostra no Masp. No ano seguinte, Nelson Felix realiza com Luiz Felipe Sá o vídeo O oco, por intermédio da RioArte, pertencente à Prefeitura do Rio de Janeiro, em que apresenta algumas de suas obras e a reflexão sobre sua produção. No meio desse caminho temos Cacto, 1994. Poderíamos interpretá-lo através de uma relação de caráter prototípico com o Grande Budha, mas essa relação não seria de todo modo verdadeira. A obra é o cacto em embate com diversos parafusos sustentados em placas de cerâmica. Natural e cultural se espelham com pontas afiadas voltadas umas para as outras. Diferentemente do Grande Budha, não vemos somente a natureza expandir-se, evidenciando a temporalidade da vida. Ela também reage violentamente com seus espinhos. Nesse mesmo período, Nelson Felix começa a fazer esculturas em mármore e granito. Nesse ponto de sua trajetória, o artista atinge a mais ampla diversidade de materiais para constituir suas obras. Como ressalta Glória Ferreira, seus trabalhos “absorvem como elemento constitutivo a história e a simbologia dos próprios materiais, quer seja mogno, figueiras, dormideiras, ostras ou o mármore e sua tradição na escultura, ou ainda a imagem”.19 De início, ele mantém-se próximo da formalização da Língua, com obras como Vertical, 1994, e Vertical com máscara, 1996. A haste ondulada em mármore também retoma o conteúdo de Crochê e máscara na obra Sem título, 1995, apresentada na Galeria Millan, e esmaga a graxa mole em Terceira noção do zero, 1997, tal como havia feito em Cada 2. Mesas, trabalho apresentado ao público pela primeira vez em 1995, fundamenta-se em uma das mobílias mais triviais na história humana. Pelas mãos do artista, a obra adquire um formato geométrico e proporcionalmente equilibrado somado à superfície áspera própria ao granito maciço do qual são feitas as peças. Contudo, seu caráter utilitário e cotidiano é totalmente transformado quando, sobre as mesas, Nelson Felix deposita peças — praticamente três estilhaços — de ferro que se

½ EU, 1995 FERRO 12 X 18 X 15 CM COLEÇÃO JUSTO

19 FERREIRA, Glória. “Acasos predeterminados”. In: FELIX, Nelson. Trilogias (folder da exposição no Paço Imperial). Rio de Janeiro, 2005.

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WERLANG, RS COLEÇÃO LUIZ GAMA, RJ


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deduz terem sido moldadas em seu corpo, mas não conseguimos bem identificá -las. Algumas plantinhas — dormideiras, mais especificamente — são somadas a esses corpos estranhos, conferindo energia própria ao trabalho. Esses frágeis vegetais são implantados sobre uma mesa e abaixo de outra, estando esta última suspensa por fios e fugindo do regular posicionamento das outras cinco mesas. Com o rigor formal das mesas em conjunto com elementos de forte carga simbólica, temos um enigmático agrupamento: “Seu aspecto visceral acaba predominando e seu significado parece escapar. A natureza de Nelson Felix tem uma face oculta, e reluta em se deixar compreender e manusear”.20 Esse estranhamento se ratifica em Tombo, 1996, com a mesa agora em mármore tombada e já imersa nas dormideiras.

Em Julia, 1995-2014, uma foto documenta uma recém-nascida com peças

TOMBO, 1996

de ferro em forma de glândulas endócrinas posicionadas cuidadosamente so-

DORMIDEIRAS

bre seu pequeno corpo. Passados dezenove anos, fotografa a mesma pessoa, já

80 X 170 X 170 CM

adulta, com as peças na mesma posição, e acrescenta alianças de ouro sobre a

COLEÇÃO DO

imagem projetada na parede, ao lado da primeira imagem. Em Ford, 1997, ope-

E MÁRMORE

ARTISTA, RJ TERCEIRA NOÇÃO DO ZERO, 1997 GRAXA E MÁRMORE

20 NAVES , Rodrigo. “Corações solitários”. In: FELIX , Nelson. Nelson Felix (folder da exposição na Galeria Luisa Strina e na Galeria Millan). São Paulo, maio 1995 .

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15 X 485 X 40 CM COLEÇÃO DO ARTISTA, RJ


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ração semelhante é feita sobre o motor de um carro com um molde de osso de uma coluna vertebral em cobre. Com a curadoria de Nelson Aguilar e o título A desmaterialização da arte no final do milênio, a XXIII Bienal Internacional de São Paulo, em 1996, teve um trabalho de Nelson Felix: Vão, realizado no mesmo ano. Os espaços vazios do sistema nervoso humano interessam ao artista desde a obra Vazio, desenvolvida quatro anos antes. Em Vão, a forma é oriunda de uma cavidade do cérebro: o terceiro ventrículo, que é um buraco na linha média do encéfalo preenchido com um líquido. O que há de ausência no cérebro dá origem formal a uma grande peça de mármore polido suspenso por cabos de aço que, em um primeiro momento, parece centralizar toda aquela sala branca onde está implantada. Aliás, não é qualquer pedra; é o mármore de Carrara, na Itália, escolhido muito pela compreensão da herança da cultura clássica europeia, como o próprio artista atesta: “Uma pedra com 3 mil anos de pensamento em cima. Isso entra como questão conceitual

VAZIO, 1992 CHUMBO, COBRE, ESTANHO, FERRO E LATÃO

no trabalho”. No entanto, há outra peça de mármore deitada no piso que não se

80 X 120 X 1200 CM

integra com a escultura suspensa; ali também opõem-se a graxa e o azeite que

WERLANG, RS

21

emanam do chão, criando rastros naquele cubo branco. O que a princípio parece centralizado na escultura do espaço vazio mental é pura dispersão.

COLEÇÃO JUSTO

VÃO, 1996 AZEITE, CABO DE AÇO E MÁRMORE 170 X 485 X 25 CM | 10 X 210 X 170 CM

21 FERREIRA, Glória. “Concentrações mentais”. In: FERREIRA, Glória (org.). Trilogias: conversas entre Nelson Felix e Glória Ferreira. Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 2005, p. 10.

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COLEÇÃO JOÃO CARLOS FIGUEIREDO FERRAZ, RIBEIRÃO PRETO, SP



Não por acaso, são da mesma época obras em formas indefinidas, a sugerir um movimento de dissolução ou transformação. Escultura sem lugar, 1996, é uma sequência de fileiras de pequenas esculturas de Buda em ferro, sobre as quais pousa de maneira instável um papel translúcido. O artista deposita azeite em certos trechos dessa folha, formando poças do líquido que, de certo modo, dão peso à superfície. É latente o constante risco de perda do tênue equilíbrio do azeite sobre o papel, qualquer que seja o movimento de toque na peça. Essa evidente incapacidade de permanência da obra, isto é, de sua estática em uma condição ideal, também pode ser averiguada em trabalhos como Óleo sobre tela, 1997, e Cada 2, II, 1997, — em ambos os casos, igualmente em virtude da viscosidade do azeite. O Beijo em Madalena, 1998, de Nelson Felix é acima de tudo tributário à Madalena, 1453-1455, do mestre renascentista Donatello. Segundo o artista brasileiro, existem “esculturas que são buracos negros, elas absorvem o espaço”, 22 como a obra exposta no Museo dell’Opera del Duomo, em Florença. A tragicidade da figura feminina bíblica, dos farrapos e cabelos que, ao se misturar, conferem verticalidade à obra em madeira, causou no artista um sentimento de total absorção: “Por um momento, contemplando a escultura, eu ESCULTURA SEM LUGAR, 1996 AZEITE, PAPEL E FERRO

22 Entrevista de Nelson Felix concedida a Francesco Perrotta-Bosch. Nova Friburgo, 6 jan. 2015 .

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40 X 350 X 35 CM COLEÇÃO DO ARTISTA, RJ


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esqueci que estava no espaço do museu”. Beijo em Madalena é a busca pela recriação dessa absorção, agora pela horizontalidade do enorme plano ondulado de madeira, paralelo ao chão, que ocupa praticamente toda a sala. Sua superfície é interrompida somente pelo molde do rosto do artista em bronze e por um pé de cadeira, que está apoiada sobre o fundo de um vaso também em bronze com azeite. Tal como ocorre diante da obra de Donatello, após entrarmos na sala, intenta-se que a superfície ondulosa capte o observador de tal maneira que este esqueça o espaço que o envolve. Em oposição à ideia da obra que nos faz esquecer o espaço ao redor, a obra Lajes, 1996-1997, é o próprio espaço. Em 1997, na terceira edição do projeto Arte/Cidade, Nelson Felix fez esse trabalho no Moinho da Luz, edifício abandonado na região central de São Paulo. A intervenção ocorre diretamente no prédio em ruínas: o recorte de três lajes de um andar, deslocando-as para baixo e sustentando-as por cabos de aço a uma distância de poucos centímetros do pavimento inferior. Tal ato altera a perspectiva arquitetônica do local, antes ordenada pela modulação estrutural claramente visível no sequenciamento de pilares, e cria ali uma inédita relação entre espaços de pavimentos diferentes. A espacialidade do edifício é apreendida pelo visitante de modo distinto ao idealizado no projeto original do Moinho da Luz, com uma nova tensão entre andares (planos horizontais). Além disso, todo o equilíbrio estrutural do edifício é irremediavelmente alterado: as cargas das lajes recortadas deixam de ser distribuídas para as vigas e os pilares adjacentes, passando a se concentrar no ponto em que estão presos os cabos de aço no andar superior. O crítico Lorenzo Mammì nota que Nelson Felix tem ali a virtude de ter “encarado o Moinho Central como um problema formal e não apenas como tema ou cenário”. 23 Por esse aspecto, Lajes está diretamente relacionado com Pilar, 1999-2001. Executado para a quarta edição do Arte/Cidade, em 2002, no edi-

fício que veio a sediar o Sesc Belenzinho, esse trabalho é um recorte de um trecho de um pilar de concreto, substituindo-o por um perfil metálico. É uma operação artística com evidente tensão e risco de desestabilização de toda a estrutura do edifício. A inter-relação entre as obras estabelecida pelo artista — por exemplo, entre Lajes e Pilar — é algo que aflora e se torna recorrente a partir do final da década de 1990. Como Glória Ferreira preconiza: “Tudo se liga, ou pode se ligar, adquirindo novas configurações e significações no constante movimento de relação IMAGENS DO PROJETO LAJES, 1996-1997 PROJETO ARTE/

23 MAMMÌ , Lorenzo. “Evento acha cidade morta dentro da cidade atual”. Folha de S.Paulo, 20 nov. 1997 .

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CIDADE III MOINHO DA LUZ, SÃO PAULO



entre os trabalhos”. 24 Posteriormente ao lançamento de seu primeiro livro pessoal, publicado em 1998 pela editora Cosac Naify e com texto de Rodrigo Naves, torna-se mais clara uma guinada no trabalho de Nelson Felix, quando são estabelecidas incontáveis conexões entre suas obras, derivadas de um raciocínio muito próprio do artista: No processo de metamorfoses e entrecruzamentos dos trabalhos, com sua profusão de materiais, técnicas e suportes aliados à profusão de evocações simbólicas, a recorrência às representações gráficas e convencionais que constituem os mapas, liberados de qualquer representação mimética, tem sido uma constante no trabalho de Nelson Felix. 25

Cruz na América, 1985 - 2004 , como vimos, explicita essa lógica do entrecruzamento de obras num todo único. Ela é formada pelo eixo entre o Grande Budha e a Mesa, 1997 - 1999 , sendo cortado perpendicularmente pela linha imaginária entre o Vazio coração — deserto, 1999 - 2003 , e o Vazio coração — litoral, 1999 - 2004 , ligando o deserto do Atacama, no Chile, e uma praia do litoral do Ceará. Para a concepção e realização de Cruz na América, os mapas surgem como suporte para os desenhos, as ideias. A localização de cada obra advém de coordenadas de latitude e longitude definidas a priori, isto é, ainda como uma operação de inserção na cartografia e sem que a escolha esteja atrelada a qualquer especificidade do sítio onde será implantada. As quatro paisagens escolhidas por Nelson Felix são, antes de tudo, espaços mentais. Os trabalhos não expressam, assim, conteúdos de um espaço psicológico particular nem implicam uma relação de formalização com o contexto: evocam o mundo em sua totalidade. 26

Nessa frase de Glória Ferreira, o uso dos mapas como suporte demonstra que o artista não está estabelecendo relações puramente pessoais ou consequentes de características distintivas de determinados lugares. É esclarecedora a GRANDE BUDHA, 1985-2000

24 FERREIRA, Glória. “Acasos predeterminados”. In: FELIX, Nelson. Trilogias (folder da exposição no Paço Imperial). Rio de Janeiro, 2005. 25 Idem, ibidem. 26 FERREIRA , Glória. “A coisa é ar”. In: FERREIRA , Glória; SALZSTEIN , Sônia; BRISSAC , Nelson. Nelson Felix. Op. cit., p. 14 .

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LATÃO E MOGNO DIMENSÕES VARIÁVEIS SERINGAL NOVA OLINDA, AC PROJETO CRUZ NA AMÉRICA, 1985-2004



nomenclatura do aparelho pelo qual encontra o posicionamento físico antes idealizado em coordenadas: o GPS, Global Positioning System (em português, Sistema de Posicionamento Global). A cartografia permite a Nelson Felix que sua obra abranja a escala do planeta. A dimensão de caráter mental de Cruz na América também é sua dimensão global. Qual palimpsestos, seus mapas são suportes para desenhos, projetos e indicações diversas em uma espécie de nomadismo do olhar que incorpora a ordem pré-gráfica de linhas e nomes de lugares. Desenhos que nos localizam entre o abstrato e o real, entre o visível e o que podemos apenas imaginar, estabelecendo, de certa forma, uma relação entre a cartografia geográfica e a cartografia dos vazios nos corpos, entre a ação no coração do real e a extraterritorialidade. 27

Em 1999, Nelson Felix instala a Mesa na cidade de Uruguaiana, Rio Grande do Sul, em virtude do projeto Fronteiras, do Itaú Cultural, que permite seu financiamento e realização. Em meio ao pampa gaúcho e próximo à fronteira brasileira com o Uruguai, coloca uma chapa de aço de 51 metros de comprimento e 41 toneladas apoiada sobre uma sequência de tocos de eucalipto e 22 mudas de

figueiras-do-mato (onze em cada aresta longitudinal da chapa). O que importa aqui é a transformação ao longo dos anos. As curtas toras de eucalipto tendem a apodrecer, enquanto as árvores provenientes da Índia crescerão e sustentarão a chapa de aço, mordendo-a pelos lados. O tempo de crescimento de uma figueira-do-mato é de 250 anos, ou seja, o trabalho só estará concluso em séculos, tendo a chapa de aço perdido seu paralelismo com o campo e a paisagem horizontal dos pampas. O plano de aço receberá constantemente a seiva dos vegetais e será incorporado ao interior dos caules das árvores em crescimento — um longo processo de deformação do plano da Mesa, que não está restrito à visibilidade do presente. A respeito disso, Luiz Camillo Osorio analisa: A maneira como o natural e o artificial, o belo e o estranho, combinam-se na poética de Nelson Felix, revela seu interesse em ampliar a noção de forma, pondo em tensão o percebido, o concebido e o sugerido. O que “vemos” no embate com suas obras ultrapassa o que se mostra; e esta diferença nasce da capacidade de nossa imaginação interagir reflexivamente com o fenômeno IMAGENS DO PROJETO

27 FERREIRA, Glória. “Acasos predeterminados”. In: FELIX, Nelson. Trilogias (folder da exposição no Paço Imperial). Rio de Janeiro, 2005, p. 213.

124

CRUZ NA AMÉRICA / MESA, 1985-2004 URUGUAIANA, RS


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percebido. A potência da forma é proporcional à quantidade de ideias que ela libera no jogo reflexivo da percepção. 28

Idealizado desde 1985, o Grande Budha encontra o seu lugar, em 2000, no Seringal Nova Olinda, no Acre. Aqui o interesse repousava na floresta amazônica, na escala da floresta, em inserir a obra em meio à imensidão de árvores infinita ao olhar. A posição de Vazio coração — deserto no Chile foi definida pela latitude do Grande Budha com a longitude do Paço Imperial, no Rio de Janeiro. Chegando às coordenadas pré-estabelecidas — fortuitamente próximas à mina de cobre denominada “Tesouro”, que passou a ser o segundo nome do trabalho —, Nelson Felix pegou a máquina fotográfica e mediu o tempo de pulsação de seu coração. A velocidade aferida foi aplicada à câmera por meio do controle de abertura: o ritmo do coração de Nelson e o tempo de exposição para tirar a foto eram de pouco mais de um segundo. Como o próprio artista definiu: “Colocar a velocidade do meu pulso é o único jeito de falar, sem palavra, documentar o meu coração sem tentar expressar o sentimento, só mencioná-lo”.29 Entretanto, o tempo de exposição da câmera relativamente alto, somado à claridade do ambiente desértico, fez com que as fotos estourassem. O aparente inconveniente só ressalta que o importante é a experiência do processo, e não o resultado em si. Dentro de Cruz na América, a temporalidade do Vazio coração — deserto é a única que diz respeito ao instante; afinal, os outros três trabalhos estão em constante transformação. O último vértice de Cruz na América é o Vazio coração — litoral: uma esfera de mármore cravejada por 22 pinos de ferro e deixada em um lugar chamado Ponta Grossa, ao final da praia Redonda, no litoral cearense. Deduz-se que as pontas metálicas oxidarão e se dilatarão ao longo dos anos, vindo a quebrar o mármore. As ondas e as marés poderão gerar deslocamentos: de certo modo lá abandonado, o objeto circular poderá mover-se e aparecer nas águas do oceano. O trabalho está acontecendo no presente e, por séculos, permanecerá em transformação distante dos nossos olhos, como observa a pesquisadora e curadora Gabriela Motta em texto recente sobre o trabalho de Nelson Felix. Seu segundo livro foi publicado em 2001 , pela editora Casa da Palavra, com textos de Glória Ferreira, Sônia Salzstein e Nelson Brissac. No mesmo

28 OSORIO, Luiz Camillo. “Improvisos entre o belo e o estranho”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 7 nov. 2001. 29 FERREIRA , Glória. “Concentrações mentais”. In: FERREIRA , Glória (org.). Trilogias: conversas entre Nelson Felix e Glória Ferreira. Op. cit., p. 119.

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VAZIO CORAÇÃO — LITORAL, 2005 FERRO E MÁRMORE 0,60 M DE DIÂMETRO PONTA GROSSA, CE


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ano, apresenta a série Árabe, composta pelas obras Malha,30 Placa e Quadrado, todas realizadas em 2001 . Em Malha, peças em formato de quadrícula em mármore branco italiano são assentadas no piso de modo linear, com exceção de um trecho parcialmente suspenso por um perfil de metal na diagonal e apoiado na parede. Quadrado é a forma dos quatro perfis metálicos que ocupam transversalmente a sala, tendo um prisma de mármore de Carrara assentado no chão. Por sua vez, Placa corta a parede da antiga cavalariça do Parque Lage, sede da Escola de Artes Visuais, no Rio de Janeiro, contrariando o excesso de zelo comum em uma construção tombada como patrimônio histórico. Um grande e ondulado plano de mármore atravessa enviezadamente a parede, sendo avistado pelas duas salas — a que abrigava a Malha e a outra onde estava o Quadrado —, que passaram a estabelecer uma relação mediada por Placa. Aqui há uma franca solidariedade entre obra e edificação, entre a série Árabe e a antiga cavalariça, como assinalou o crítico de arte Wilson Coutinho. Em 2003, a Fundação Iberê Camargo, de Porto Alegre, convida Nelson Felix para realizar Gravura, feita a partir de imagens de órgãos do corpo humano produzidas em um ateliê provisório montado dentro do Departamento de Anatomia da Faculdade de Medicina do Rio Grande do Sul. IMAGENS DA EXPOSIÇÃO SÉRIE ÁRABE, 2001

30 Escultura danificada e destruída. Uma segunda versão da peça foi realizada em 2014.

128

PARQUE LAJE, RJ


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EQUILÍBRIO SUBLIME NUM RICO MOMENTO DA ARTE WILSON COUTINHO

Alguns pensadores julgam

paredes, a luz, enfim, tudo o

que se Deus fosse ateu —

que a arquitetura oferece. A

uma impossibilidade e um

ideia pode ser velha. Afinal, o

paradoxo — seria obrigado a

Papa Júlio II apontou, em 1508,

pensar as coisas do mundo e a si

o teto da Capela Sistina para

próprio com a elegância formal

Michelangelo, mandando-o

encontrada na “Ética”, do

se virar.

filósofo holandês Spinoza (16321667). Quando os matemáticos

IR AO PARQUE LAGE CHEGA

resolvem um problema dizem

A SER ATITUDE SOLENE

que “a solução encontrada foi a mais elegante”. Esta

Esta questão voltou, desde

combinação de elegância e

os anos 1960, com outros

formalismo pode ser vista na

problemas. Felix os resolveu

mostra Série Árabe, de Nelson

com brilhantismo, astúcia e

Felix, na cavalariça, dentro

elegância. Para quem gosta de

do Projeto Zona Instável,

artes plásticas, ir ao Parque

no Parque Lage. O artista

Lage chega a ser solene: há

conseguiu fazer de uma questão

muito tempo um brasileiro

do pós-modernismo — a obra

não faz uma instalação com

no lugar in situ, como dizem em

rigor, método e inteligência.

latim os críticos e os artistas —

Sobretudo com emoção,

um verdadeiro clássico. O conceito geral é o de que a antiga estrebaria seja ocupada

de elegância de uma solução

não com obras postas no local,

matemática.

mas que o artista utilize o

130

embora esta seja muito contida. A mostra tem o mesmo recado

Usando uma malha

interior do prédio. A obra deve

quadriculada de mármore,

ser disposta, relacionando-se

inclinou uma barra de ferro,

com as dimensões, a altura, as

que se eleva até o teto. A parede


é cortada, em diagonal, com o

exata, sem escorregar em

ondeamento de uma peça de

exibicionismo e fragmentações.

mármore, preenchendo os dois

A mostra tem uma unidade

campos que ela abriu. Na saleta,

perfeita. A sobriedade dos

vedada ao espectador por um

materiais, a ruptura do

vidro, vê-se a continuidade

mármore na parede, que

das ondas marmóreas, espécie

significa o debochado ato de

de subtração do que foi visto

transgredir um local preservado

na outra sala. Na cabeça do

pelo Patrimônio Histórico, mas

espectador, soma-se tudo em

ocupá-lo, de forma plástica,

pura forma, inspirando beleza

faz da mostra um dos mais

e evocando algo semelhante

ricos momentos deste ano

a um sublime; do equilíbrio,

de arte contemporânea no

quase sempre belo, das formas

Rio. Deus, que não é tolo, não

Sabe-se então que não foi

gostaria de ser Spinoza. É

à toa que Spinoza Ética à

possível, porém, imaginar

maneira geométrica.

que o filósofo fosse ver a obra

Se tudo não for verdadeiro,

de Felix. Geometria suave e

há, ao menos, beleza.

sublime, a instalação com

Nelson é, ainda, um dos

pureza plástica dos materiais é

poucos artistas a ter evolução

uma entonação de sobriedade

segura, desde os seus desenhos

e beleza. Construção e puro

dos anos 1980 muito ruins

encantamento.

por sinal — até hoje, quando demonstra audácia e o seu controle. É fascinante ver como organizou sua obra com astúcia, exibindo método e segurança, sem deixar que a exuberância

PUBLICADO ORIGINALMENTE NO

do seu passe da medida

JORNAL O GLOBO, 1 DE JUNHO DE 2001.

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Vazios, projeto iniciado em 1992 e em curso até o momento, diz respeito aos espaços vazios internos do corpo humano, não vistos como áreas de ausência, mas como pontos que concentram (ou por onde passam) forças e energias vitais. É composto por Vazio cérebro, Vazio sexo e Vazio coração. Note-se que este último também se faz presente em Cruz na América, com os trabalhos realizados no deserto do Atacama, 2003, e no litoral do Ceará, 2004, o que expõe, mais uma vez, o ato constante de entrecruzar obras. Vazio cérebro tem sua primeira versão no Vazio de 1992, depois ressurge em Vão, na Bienal de São Paulo de 1996, e reaparece nesta atual mostra da Pinacoteca com o título de Eu vi a América com os olhos d’Ele, iniciado em 2001 e apresentado agora em 2015. Exposto em 2004 em mostra individual na Marília Razuk Galeria de Arte, Vazio sexo é proveniente de um cubo de mármore de Carrara de noventa centímetros de lado e 2,5 toneladas de peso. O artista extrai matéria do bloco de pedra dando forma a um grid vazado, sem qualquer emenda, e faz uma escultura cúbica menor — um duplo da forma externa — dentro do interior escavado. Fez isso sem abrir o objeto exterior, isto é, somente se utilizou das aberturas do cubo maior para esculpir o cubo menor. Por fim, forja-se certo desequilíbrio do rigor formal e construtivo das peças de mármore ao apoiá-las sobre moldes de órgãos sexuais femininos em prata, resultando um ligeiro deslocamento entre as partes. O crítico de arte Rodrigo Naves nota que “os vãos que introduz no mármore servem somente para encontrar dentro o que já havia fora. Sem mistério”.31 Nelson Felix e Glória Ferreira fizeram a curadoria da exposição Trilogias, no Paço Imperial, em 2005, e publicaram um livro com o mesmo nome e no mesmo ano pela editora Pinakotheke, no qual se destaca “Concentrações mentais”, uma compilação de conversas entre os dois que durou seis anos. Reforçando os entrelaçamentos próprios à sua obra, trabalhos de Nelson Felix são organizados em trilogias do tempo, do vazio e da cruz. A Trilogia do tempo conjuga Cruz na América, a série Gênesis e Mesas. A Trilogia do vazio compila os Vazios já mencionados acima. E a Trilogia da cruz agrupa Cruz na América, Lajes/ Pilar e a série Árabe. Uma pequena aldeia no interior da Bolívia deu nome à obra que ocupou o Museu Vale do Rio Doce, em Vila Velha, em 2006. Camiri, desse mesmo ano, encontra-se na mesma latitude do museu no Espírito Santo, a uma distância de 23 graus, sendo este número proveniente dos 23 graus de inclinação em que a Terra gira ao redor do eixo do Sol. O deslocamento de Nelson Felix até o GRAVURA, 2003 TÉCNICA E DIMENSÕES

31 NAVES, Rodrigo. “O vento e o moinho”. O Estado de S. Paulo, 2005.

132

COLEÇÃO FUNDAÇÃO IBERÊ CAMARGO, RS



O VENTO E O MOINHO RODRIGO NAVES

No dia 16 de junho de 2005, o

e afirmou que a empresa

seu Grande vidro de 1912 a

artista Nelson Felix recebeu

se propunha a restaurá-lo

1923, quando o abandona. Em

por telefone uma notícia

prontamente. Então ocorreu o

1926, ao ser transportado, o

desoladora. A caixa que abrigava

que, para mim, foi a revelação

trabalho tem sua parte superior

sua escultura Vazio sexo caíra da

proporcionada pelo incidente.

trincada e só então o artista o

empilhadeira que a carregava

O artista descartou sem mais o

dá por finalmente terminado. O

— o trabalho ia ser exposto em

restauro da peça, argumentando

antirromantismo de Duchamp

Paris — e partira-se em catorze

que sua inteireza “era parte

parecia precisar da intervenção

pedaços.

do conceito do trabalho”. O

do acaso — a perda de controle

Sou amigo de Nelson Felix

“conceito do trabalho” talvez

trazida pelo acidente — para

e sabia de seu carinho por

possa ser entendido pelo sentido

coroar a finalização de uma

aquela obra, dos cinco longos

que o próprio autor vê em sua

das obras mais intrincadas da

meses para realizá-la e até

obra. Em seu diálogo com a

história da arte. No caso de Vazio

dos problemas físicos que a

crítica Glória Ferreira (publicado

sexo foi a destruição da obra que

execução lhe trouxe. Tratava-

no livro Trilogias, editado pela

me ajudou a compreendê-la,

se de um cubo de mármore de

Pinakotheke), Nelson Felix

que me ajudou a completá-la,

noventa centímetros de lado,

entende Vazio sexo como uma

enquanto sentido e significação.

com mais de 2,5 toneladas, que

espécie de Coluna infinita — o

o artista esculpira na forma

magistral trabalho de Brancusi

se partem. Ao menos não se

de uma grade vazada, sem

— voltada para dentro, o que

partem como objetos de vidro

nenhuma emenda. Mais: no

de fato a relacionaria com o

ou louça. Podem envelhecer,

interior do cubo maior escavara

êxtase sexual, ele também

perder a pertinência ou ser

um outro menor, novamente

experiência sem fissuras em

esquecidos. Por que então não

sem abrir a forma exterior,

que os limites do corpo parecem

permitir o restauro da obra, que

realizando-a através dos espaços

momentaneamente dissolvidos.

guardaria ainda muito do seu

que abrira no cubo maior. Ao

Considero fecunda essa

Como se sabe, conceitos não

conceito e significado, como já

expô-lo, o artista deslocou

interpretação. Mas para mim

ocorreu tantas vezes com outras

ambos os cubos, calçando-os

o acidente e a destruição do

obras de arte?

com moldes do órgão sexual

trabalho, paradoxalmente,

feminino.

puseram em movimento uma

escultura propriamente dita,

obra que, intata, talvez não

diferente da modelagem e

que entrara em contato com

me intrigasse tanto. Marcel

da fundição — sempre foi o

Nelson Felix estava nervoso

Duchamp esteve às voltas com

campo privilegiado das tensões

O gerente da transportadora

134

A escultura — sobretudo a


entre espírito e matéria, desde

estabelecendo com elas uma

intelecto a ele acede”. Porém,

que entendamos esse dois

relação conflituosa e dramática,

tamanha era a tensão entre esses

termos em sentido ampliado,

em que a vontade humana

dois polos — sobretudo para a

como consciência e história,

(as formas) já não consegue

visão cristã e neoplatônica de

vontade e intersubjetividade,

se impor placidamente aos

Michelangelo — que mesmo

religiosidade e mundo. Talvez

acontecimentos. Essa visão mais

as obras mais acabadas, como

o classicismo grego seja um

complexa da realidade, histórica

os dois Escravos do Museu do

dos poucos momentos em que

e trágica, talvez encontre seu

Louvre, mantêm a dramaticidade

esse embate encontrou uma

ponto culminante na esplêndida

implicada por suas escolhas.

solução harmônica e grandiosa,

Madalena em madeira —

um momento em que ambos

desgrenhada, lacerada de cima

artistas, penso que nenhum outro

os polos conciliavam-se no

a baixo —, na qual as forças

escultor — Rodin e Giacometti

belo ideal helênico. Mesmo a

mundanas agem sobre a forma

modelavam — alcançou a

retomada das formas antigas

mais intensamente do que sua

mesma intensidade. Até que

pelo Renascimento rapidamente

capacidade de ordená-las.

Brancusi apontasse para um novo

se vê crispada por uma nova

Depois desses dois grandes

Michelangelo — sobretudo

classicismo, moderno, conduzido

resistência que os materiais (e

nas obras posteriores ao Davi

por uma noção de universalidade

a história) oporão a uma serena

— adota outro caminho. Em

em que a economia de suas

formalização.

lugar de procurar ordenar a

formas deixava entrever todas as

matéria a partir de um projeto

focas em sua Foca. Ou seja, não

no início de sua trajetória,

humano, exterior a ela, desloca a

mais o belo corpo grego, singular,

submeter o mármore a seus

espiritualidade, o espírito divino,

mas exemplo de todas as belas

desígnios, esculpindo-o

para o interior do próprio bloco

proporções, padrão de todas as

de modo a ordenar

de mármore. Caberia ao artista

belezas possíveis. As esculturas

inequivocamente a luz — a

“apenas” libertar da opacidade

de Brancusi nascem dos traços

natureza a ser domada — que

da rocha uma alma que já a

estritamente necessários para

incidia sobre os volumes. Logo,

habitava. Como diz Michelangelo

identificar um ser qualquer, peixe

porém — como Argan mostra em

em um de seus poemas (que

ou pássaro, que precisará, para

suas análises —, põe em causa

traduzo livremente), “o grande

existir, conquistar uma realidade

esse poder de ordenar o mundo

artista não tem um conceito

só sua. Ganhar carne: coisa que o

e, em seus relevos comprimidos,

que o bloco de mármore não

extravasamento do mármore na

a luz resvala sobre as superfícies

contenha em sua massa, mas

Foca — com seus veios (as estrias

levemente escavadas,

apenas a mão obediente ao

do bicho) e com a matéria que se

Donatello ainda consegue,

135


expande (a gordura da foca) —

Na verdade, nessa obra o

desenham, não se sabe se por

espírito (ou projeto, ou mente,

falta de vento ou por falta de

pouco importa) não conforma

moinho. Ou dos dois? Energias

de Nelson Felix tem a ver com

nada. Cria apenas uma baliza

escassas em um mundo que

tudo isso? Embora reate com

gradeada por onde o espaço

assimila tudo que não se lhe

a tradição da escultura, utilize

circula. E os vãos que introduz

assemelhe. Só restaria à arte,

um material com milênios

no mármore servem somente

então, identificar um estado de

de tradição — o mármore de

para encontrar dentro o que já

paralisia e desorientação? Não

Carrara — e suponha muito

havia fora. Sem mistério. Nem

me parece pouco: uma modesta

trabalho, ela aparentemente

como metáfora de uma suposta

vela a indicar o sentido do

contraria aquela tradição. A

relação entre microcosmo e

pouco vento, a fugacidade da

forma de Vazio sexo tem uma

macrocosmo — como ocorre

experiência contemporânea.

simplicidade evidente, a ponto

na milenar tradição chinesa

Uma forma montada para

de lembrar certas construções

de esculpir esferas dentro de

revelar aquilo que nos escapa.

muito pouco complexas de Sol

esferas — o trabalho presta, já

No entanto, a obra oferece

LeWitt, artista americano ligado

que não tem a dimensão da mão

mais. Esse trabalho árduo e inútil

ao minimalismo, movimento

(a outra esfera a completar as

apresenta, na sua modéstia,

que sempre hostilizou qualquer

esferas esculpidas) e é anguloso

um outro modo de vida, que

procedimento que implicasse

demais para representar a

fala do prazer de realizarmos

expressividade e formas

harmonia do mundo.

aquilo que gostamos, ainda

indicava claramente. E o que a escultura partida

complexas, mesmo aquelas

E também a realidade (o

que não saibamos bem por

resultantes do confronto com

mármore) se deixa talhar

quê. Escrevendo sobre o

um material resistente a ser

preguiçosamente, sem oferecer

perfeccionismo de João Gilberto,

trabalhado.

resistência àquilo que o

Lorenzo Mammì mostra como

Em Vazio sexo, o fazer

desbasta. Numa passagem

ele ultrapassa o profissionalismo,

se oculta na obra, e dentro

tocante de uma carta de 1884

reatando paradoxalmente com

do bloco — Michelangelo

ao irmão Theo, Van Gogh —

o diletantismo, “pois é diletante

borgiano — não há nenhum

comentando o esmagamento da

também aquele que leva o

espírito a ser revelado, apenas

revolução de 1848 na França e

acabamento do produto muito

o duplo da forma externa,

a permanência das barricadas

além das exigências do mercado”.

outro cubo. Estaríamos então

no ânimo de muitos cidadãos

Isso é arte. Ou sexo. Um conceito

diante de mais uma cansada

inconformados — cita a seguinte

que mantemos porque queremos.

demonstração dos limites

frase: “O moinho não mais

E que ficamos danados da vida

ou da impotência da arte

existe, mas o vento continua”.

quando alguém o parte.

contemporânea? De mais um

A escultura de Nelson

trabalho que quer manter viva a

Felix é a revelação de uma

arte apenas para escarnecer de

situação muita semelhante

sua inanição, um proxenetismo

àquela, talvez mais grave: a

do espírito tão corrente nos

nossa. Vivemos num período

nossos dias? Não acredito.

em que os projetos não se

136

PUBLICADO ORIGINALMENTE NO JORNAL O ESTADO DE S. PAULO, 4 DE SETEMBRO DE 2005. DETALHE DA OBRA VAZIO SEXO, 2004



REMISSÕES GLÓRIA FERREIRA

Com os riscos, vícios e repetições

concluem-se por ocasião do Vazio

com José Resende, Lygia Pape,

inerentes à troca de ideias,

coração, que completa a Trilogia

Nuno Ramos e Rodrigo Naves”.

essas conversas com Nelson

do Vazio e que também faz parte

Questões que, de certa

Felix foram gravadas em dez

da Cruz na América.

encontros, na cidade do Rio de

Distinto de um ato de

maneira, também perpassam pelo conjunto de textos críticos

Janeiro e no ateliê do artista, em

avaliação, “Concentrações

aqui reproduzidos, nos quais

Nova Friburgo, no interior do

mentais” centra-se na fala do

a pluralidade de vozes pontua

estado. Iniciaram-se em 1999, um

artista sobre o desenvolvimento

momentos de sua trajetória.

pouco após Mesa ser realizada em

de seu processo de trabalho,

A começar por “Da cor do

Uruguaiana, no âmbito do projeto

enfim, sobre as intenções e a

amarelo”, texto de Nelson Felix

Fronteiras, do Itaú Cultural, que

exterioridade de sua prática

que acompanha sua primeira

reuniu um conjunto expressivo

artística. Ao delinear-se a

exposição individual, realizada

de artistas — Carmela Gross,

possiblidade de publicação, as

na galeria Jean Boghici, em

Carlos Fajardo, Angelo Venosa,

conversas, sobretudo no último

maio de 1980. Partindo da

José Resende, Artur Barrio,

período, foram adquirindo o tom

característica do homem

entre outros — e se constituiu

de entrevista. E se a entrevista

moderno em querer considerar-

em um marco de atuação no

está relacionada a seu aspecto

se “um ser unicamente histórico,

espaço não museológico no

jornalístico, sobretudo em sua

no desejo de viver num cosmo

Brasil. Desenvolvidas de certo

origem, torna-se, enquanto

radicalmente dessacralizado”,

modo como um “processo”

declaração em primeira pessoa,

com a consequente “perda de

sem objetivo definido de futura

uma fonte de informação direta

solidariedade com a natureza

publicação, essas conversas

do artista, com grande expansão

e com a vida mesma”, o artista

acompanharam o próprio

a partir dos anos de 1950, em

insiste na concepção do processo

processo do artista na idealização

especial desde a pop art, com

criativo como algo que admite

de trabalhos extremamente

o declínio dos manifestos ou

diversas interações em todo o

significativos e em sua realização,

programas artísticos. As questões

decorrer e que afeta sua própria

por vezes solitária, na floresta

aqui abordadas estão presentes

alma. “Da cor do amarelo”

amazônica ou no deserto — por

em suas notas e comentários dos

introduz-nos ao universo de

exemplo, em 2000, no Acre,

projetos, em mapas ou em textos

suas reflexões, opções éticas,

Nelson Felix finaliza Grande

e entrevistas, como por exemplo

espirituais e estéticas, que

Budha, iniciado em 1985 e

em “O que me interessa é essa

até hoje informam sua práxis.

apresentado, ainda como projeto,

coisa indefinidamente sugestiva...

Neste longo depoimento atual

em diversas ocasiões —, e

Uma conversa de Nelson Felix

há uma densa imersão em


seus interesses e constructos

remetendo a sua significação

vertical, em rotação, talvez),

ficcionais, os quais permeiam e

mais primitiva de demarcação

e que ainda permitem outras

qualificam a especificidade de

espacial, além de sua simbologia

correspondências — por acaso,

sua ação. Sua edição aproxima

religiosa. Questões igualmente

entre a Cruz na América e a

temas abordados em diferentes

presentes na arte do século XX

constelação do Cruzeiro do

ocasiões, estabelecendo

— apesar do eclipse, enquanto

Sul, ambas à deriva, em seus

cruzamentos diversos.

tema, da arte cristã, mas não de

deslocamentos e transformações.

significações espirituais —, como

Quiçá subjugadas à atração

A cruz, com seu amplo universo de significações e

em Mondriam, por exemplo. Ou

que a simbologia da cruz — de

simbologias, declina-se em

em Beyus. Ou, ainda, no colossal

maneira indefinida, segundo o

uma série sempre renovada de

Double Negative (1969-1970), de

artista — sempre exerceu sobre ele,

remissões na obra de Nelson

Michael Heizer, e no efêmero

essas conversas retomam questões

Felix, sendo sua maior expressão

Cross (1969), de Walter de Maria,

sempre em outras abordagens,

Cruz na América, na qual cintilam

ambos em Nevada.

desvelando os compromissos

uma travessia do espaço cósmico

Utilizar-se de cruzamentos

existenciais de sua poética. Ao

e a impossibilidade do acesso

entre diferentes simbologias e

conjugar a dimensão espiritual

direto às coisas. As coordenadas,

referências, sejam elas orgânicas

com seu engajamento no processo

que localizam com precisão cada

ou científicas, enquanto

histórico da arte, Nelson Felix,

uma das obras, são os únicos

“acasos predeterminados” que

sem considerar prescindíveis a

elementos estáveis. Impossível

precisam do lugar, tem sido

cultura e a filosofia ocidentais,

documentá-la em sua totalidade

uma estratégia de Nelson Felix

recorre à filosofia oriental como

mesmo por satélite: incorpora

para demarcar o site specific e

abertura para questionar conceitos

imagens, como as do deserto

os efeitos de composição, ao

causais e lineares. Questão nem

do Atacama, ou perde-se na

mesmo tempo incorporando

sempre facilmente abordada pela

floresta, como o Grande Budha.

o hibridismo e a transgressão,

herança formalista presente na

Evoca e dialoga com a extensa

como em sua particular relação

história e crítica da arte.

história da representação da

com a escultura e sua tradição.

cruz na arte e na arquitetura.

De maneira surpreendente

Em A crucificação de São Pedro,

e por vezes estonteante,

por exemplo, um dos últimos

entrecruza trabalhos que se

afrescos de Michelangelo, uma

irrigam uns aos outros, como

imensa cruz invertida estrutura

constelações móveis (a leitura

o espaço de toda a composição,

jamais é linear, mas diagonal,

139

PUBLICADO ORIGINALMENTE EM FERREIRA, GLÓRIA. CONVERSAS ENTRE NELSON FELIX E GLÓRIA FERREIRA. RIO DE JANEIRO: PINAKOTHEKE, 2005.


vilarejo boliviano é o princípio do trabalho, ou, em termos dados pelo crítico de arte Ronaldo Brito, de sua “operação escultórica”.32 O que há de visível dentro do antigo galpão capixaba é uma sequência de perfis metálicos incrustados nas paredes, nas quais se apoiam, além de dois cubos, um cilindro maior e dois anéis menores, todos ocos e em mármore de Carrara. O posicionamento ritmado das vigas de ferro nos restringe a observar a obra em somente duas áreas. O fato de o espectador estar diante da obra sem poder percorrê-la é uma condição semelhante à da fotografia que Nelson Felix faz ao estar frente a Camiri, na Bolívia. Esse deslocamento até Camiri é uma matéria tão constituinte da escultura quanto qualquer mármore ou ferro dentro do museu. Tanto que os 23 graus da Terra em relação ao Sol têm um “estatuto de ‘Princípio de Composição’”,33 isto é, todos os elementos do trabalho — elementos visíveis e invisíveis — são posicionados de acordo com essa referência. Por mais amplas as interpretações que o visitante pode ter diante da obra, por mais que nossa imaginação seja incitada, é o ato de deslocamento que fundamenta e dá espessura ao trabalho. A ida a Camiri, a oeste, teve rebatimentos ao norte, depois ao leste e, por fim, ao sul. Em desenhos, por vezes sobrepostos a planos cartográficos, Nelson Felix estabelece novas coordenadas sobre o mapa-múndi, vértices de um retângulo com quatro cantos no mundo. Sobre esse procedimento, esclarece: Os trabalhos não respondem aos lugares; são guiados por suas abstrações, por rebatimentos, teóricos e geográficos, de coordenadas e convenções. Um desenho no globo os determina.34

Na República Dominicana e em Anguilla, no Caribe, o artista deixa os dois anéis menores de mármore que estavam no museu de Vila Velha. No mesmo ano de 2007 , cumpre um longo procedimento burocrático para ir até Dongsha, um atol em formato circular em meio ao oceano Pacífico, pertencente a Taiwan, mas reivindicado pela República Popular da China. Lá abandona um delicado anel de mármore de apenas 43 centímetros de diâmetro. No ano seguinte, vai até a Austrália, mais especificamente Karratha, onde deixa 22

32 BRITO, Ronaldo. “Corrigir pelo erro”. In: FELIX, Nelson; BRITO, Ronaldo; FLÓRIDO CESAR, Marisa. Concerto para encanto e anel. Rio de Janeiro: Editora Casa 11, 2011, p. 71.

33 Idem, ibidem, p. 73. 34 FELIX , Nelson; BRITO , Ronaldo; FLÓRIDO CESAR , Marisa. Concerto para encanto e anel. Op. cit., p. 20.

140

IMAGENS DA EXPOSIÇÃO CAMIRI, 2006 MUSEU VALE DO RIO DOCE, ES



CORRIGIR PELO ERRO RONALDO BRITO

142

A forma da exposição é a

natural é acumular negativas,

conjunção imponderável de

constatar a inoperância do nosso

dois fatores mais que diversos.

vocabulário ao lidar com essa

De imediato, há a sequência de

espécie de ação escultórica

vigas de ferro que sustentam um

contemporânea. Temos de

tanto precariamente dois cubos

assumir desde logo, por exemplo,

e um grande anel de mármore

que uma dimensão invisível seja

de Carrara, a tomar o galpão do

parte integrante da forma. E, de

Museu Vale do Rio Doce. À falta

fato, não pode ser diferente, ou

de um verbo adequado, digamos,

o artista não elegeria Camiri o

soma-se a isso o deslocamento

título da exposição. No entanto,

do artista até Camiri, pequena

é evidente que a formidável ação

aldeia no interior da Bolívia, em

material dentro do galpão não

função de sua (quase) perfeita

visa apenas ilustrar uma ideia

correspondência com a situação

poética — ela é o que é — o que

geográfica do museu em Vila

inclui as graves decisões técnicas

Velha: encontram-se a 23 graus

e estéticas de sua realização. Por

um do outro, sobre a mesma

outro lado, como dar a medida

latitude no globo, os mesmos

crítica exata à ida do artista a

23 graus de inclinação em que a

Camiri? Está bem claro, não se

Terra gira ao redor do eixo do Sol.

trata de turismo afetivo. Chamá-

A operação escultórica, bastante

la aventura existencial, porém,

concreta, que envolve o espaço

parece-me um pouco forçado,

do museu e a viagem casual mas

anacrônico, convocar uma alta

esteticamente compulsória do

espiritualidade e uma exigência

artista, deslocando-se a Camiri,

de liberdade a essa altura

constituem, portanto, a forma

descabidas. Sem dúvida, alguma

aberta do trabalho. A notória

coisa dessa ordem investe-se

dificuldade do texto crítico

na ética de trabalho do artista.

consiste em achar palavras

Receio, contudo, que tanto

para descrever e qualificar

“aventura” quanto “existencial”

semelhante forma, tão material

sejam termos culturalmente

quanto intangível. A tendência

saturados.


Já a eventual solução mítica

fazê-lo vibrar, propagá-lo no

e mais outro voo até chegar a uma

não é solução porque é parte do

curso da linguagem verbal. A sua

remota vila no interior da Bolívia.

problema. Qual o estatuto de

decodificação imprescindível,

De lá, fotografa sucintamente o

mitologias pessoais no universo

e sempre relativa, é inseparável

que está à sua frente. A foto vai

onipotente da ciência? Ainda

de uma determinada estratégia

se juntar à sua correspondente,

que se suponha inerradicável

expressiva.

também tirada sem maiores

O desafio é sustentar, no

pretensões, num ponto preciso

da sociedade humana, sobra

plano da razão crítica, a tensão

nas cercanias do museu em Vila

inteira a questão de sua

específica desse enigma poético

Velha. Os dois cliques fecham o

relevância para o processo

a envolver duas instâncias

arco imaginário, a parábola de

estético contemporâneo.

tão díspares. Tentar descobrir

deslocamento que o trabalho

Independentemente da

pontos de contato ali onde

descreve.

orientação espiritual de

eventualmente elas se cruzem

seu autor, uma poética

e se interpenetrem ou, quem

alongaríamos ao infinito,

contemporânea não se qualifica

sabe, atravessem uma o caminho

deixemos somente registrado que

graças a esta ou àquela

da outra. Senão vejamos. Uma

o evento atual, no Museu Vale do

mitologia, sequer pelo grau

das principais características

Rio Doce, inscreve-se num plano

maior ou menor de intensidade

da instalação (reabilitemos por

poético mais amplo que prevê a

de seu componente mítico.

ora esse vocábulo um tanto

realização de outros trabalhos,

Mitologias, em suma, acabam

desmoralizado) é impedir quase

também a exigir o deslocamento

elas próprias, em larga medida,

por completo a livre circulação

do artista a meridianos

escolhas estéticas.

num local onde ela seria natural

predestinados do planeta. Sem

e fluente. Mas não. Com seus

intenções polêmicas, que teriam

recorrer à máxima duchampiana:

elementos pesados, a misturar o

aqui uma escala social risível,

não há solução porque não há

rude e o artístico, o cotidiano e

devemos observar, contudo,

problema. A frase é boa e tem sua

o histórico, e apesar de seu trato

que semelhante trajeto artístico

parcela de verdade, mas emprega

arriscado com a lei da gravidade,

é inversamente proporcional

uma noção estrita, matemática,

a instalação curiosamente

ao fenômeno da globalização

de problema. Porque, nesse

resulta, à primeira vista, bem

cultural — trata-se de um projeto

sentido, um texto crítico não

pictórica: só podemos contemplá-

discreto e fragmentário de

visa propriamente resolver o

la a partir de duas áreas restritas,

subjetivação, entre o ético e o

problema do trabalho (seria o

não há como percorrê-la. E, no

estético, a empenhar certo modo

equivalente a esterilizá-lo) e sim

entanto, o artista viaja, toma um

de comportamento. O essencial

certa dimensão mítica, básica,

Sempre se pode, é verdade,

143

Porque, do contrário, nos


é desde logo compreender que,

partido aleatório radical — tudo

(1,40 metro), termina (ou começa,

hoje em dia, muito mais do que

o que fizesse, dali em diante,

depende do ponto de vista)

pela criação de obras e situações

viria predeterminado por esse

por atravessar os dois cubos de

inusitadas, a arte contemporânea

deslocamento. Eis aí, a meu ver,

mármore (noventa centímetros)

distingue-se pela qualidade

uma simpática variante pouco

que se situam, digamos, em

singular de sua experiência de

ortodoxa de perfeccionismo

ligeira conjunção; no outro

produção. De novo, para a crítica,

moral: corrigir o erro pelo erro.

extremo da sala, numa outra

Para efeitos produtivos,

sequência das mesmas vigas,

a árdua tarefa é caracterizar tal experiência sem diluí-la em

que é o que conta, a decisão

agora transversais, inclinadas a

retóricas culturais mais ou menos

intempestiva concede ao artista

23 graus, a primeira delas ergue

politicamente corretas.

ampla margem de manobra. Todo

o grande anel de mármore (2,30

acaso, todas as circunstâncias

metros de diâmetro).

Essa experiência singular

A mesma força que move o

de produção determinou, há

vitais e formais encontram um

um tempo, que o desvio de 23

denominador comum, um agente

artista a pôr literalmente mãos

graus da órbita da Terra em

poético catalisador. Extrapolando

à obra, ao tornear ele próprio

relação ao eixo do Sol adquirisse,

um pouco, o que seria, pelo visto,

os dois cubos de mármore (um

para o artista, o estatuto de

o próprio do humano, considero

mais, outro menos vazado), o

Princípio de Composição.

a ideia dessa errância cósmica

impulsiona até Camiri. Nada

Colocando o dilema em termos

um bom sólido geométrico

existe aí de heroico ou glamoroso:

escolares: depois do all-over de

imaginário — cubos e cruzes,

dispor-se a cumprir, na íntegra,

Jackson Pollock e do site specific

vigas e anéis, todo o repertório

a demanda do trabalho gera um

minimalista, respostas últimas,

formal do artista enfim passa a ter

estado de mobilização poética

pós-cubistas, ao esquema

um núcleo de referência, passa

que, por sua vez, estimula o

composicional da perspectiva

a girar na órbita de influência

ânimo vital.

renascentista, o que fazer? A

desse sólido errante imaginário.

saída providencial do artista foi,

Só por causa desse princípio,

materialidade e uma certa

partindo da planaridade e da

dessa arché composicional,

invisibilidade compõem juntas

serialidade anti-ilusionistas do

Nelson Felix pôde contar agora

o conteúdo da exposição. Muito

minimalismo, recusá-las como

com a sorte: a latitude quase

esquematicamente, eu diria

padrão definitivo. Tudo afinal

perfeita (segundo a lógica do erro

que, feita a experiência física da

é composição, ele argumenta,

genérico) do Museu Vale do Rio

instalação, somos induzidos a

nenhum sítio será assim tão

Doce praticamente lhe cai do

percorrer o espaço imaginativo

específico que consiga abstrair

céu. O que de pronto, como pude

de suas ilações poéticas. Não

o resto do planeta. Comovido

acompanhar de perto, o levou

estivesse a aura da palavra

por uma meditação dos antigos

a visualizar, quase como uma

“viagem” tão degradada, sempre

persas, que enxergavam no

fatalidade, a presente instalação.

a figurar o pseudodelírio ou o

desvio de 23 graus da Terra

Ao cortar de lado a lado o galpão

mero equívoco, poderíamos

em relação ao eixo do Sol a

pronunciadamente longitudinal,

desfrutá-la mais à vontade.

razão da errância cósmica do

uma sequência de vigas paralelas,

De fato, a viagem a Camiri

homem, Nelson Felix adota um

à altura e intervalos regulares

é um componente material,

144

Uma considerável


embora oculto, da escultura da

do mundo da vida. Mas tudo

exposição, outra de suas vigas,

isso só nos ocorre depois: como

associada aos dois cubos e,

se apresenta concretamente,

naturalmente, à emblemática

fazendo vibrar sua presença no

forma circular do anel. O artista

espaço do museu, essa escultura

fez efetivamente a viagem, e com

aberta, expansiva, não conhece

um propósito bem definido. Não

nostalgia.

é o caso de dramatizá-la; ela foi o que foi, isto é, parte constitutiva do processo do trabalho. Sem o deslocamento do artista a Camiri, vigas, cubos e anel ficariam, quem sabe, sem sustentação. Ou, ao contrário, talvez ficassem presos, estáticos, esquecidos

PUBLICADO ORIGINALMENTE NA EXPOSIÇÃO CAMIRI, MUSEU VALE DO RIO DOCE, VILA VELHA, ESPÍRITO SANTO, 2006.

145


anéis de ferro e um de mármore em meio a uma salina. Completado o retângulo, uma quinta coordenada externa a essa figura geométrica sobre o mapa é escolhida de maneira praticamente aleatória: o vulcão Hekla, na Islândia. Lá realiza o mesmo procedimento inicial de Camiri: olha para o próximo lugar onde irá expor, o Parque Lage, no Rio de Janeiro, e tira uma foto. Os registros desses deslocamentos são as fotografias. Por maior que tenha sido o périplo, o resultado não é majestoso, nem mesmo diretamente consequente. Os deslocamentos são “passagens para a futura escultura”.35 A futura exposição em questão chama-se Cavalariças, de 2009, que ocupa toda a edificação de mesmo nome no Parque Lage. Duas salas são moduladas com 68 vigas de aço na vertical e 1,40 metro distantes entre si. Fincados ao piso, os perfis metálicos variam de cinco a sete metros de altura, quase sempre tocando o teto. O mesmo anel de mármore de Carrara, de 2,30 metros de diâmetro e nove toneladas, equilibra-se em quatro vigas enviesadas a cerca de um metro de altura, interrompendo a sequência vertical e rigorosamente distante dos outros perfis bem no centro da sala e alinhada à porta de acesso. A forma cilíndrica acomoda-se torta naquela estrutura metálica. Como descrito por Ronaldo Brito: “A situação escultórica arma-se entre o cálculo preciso e o dado circunstancial, entre um processo formal longamente elaborado e o aspecto de canteiro de obras”.36 Retornando à questão fundante de Cavalariças, os deslocamentos para os cinco pontos longínquos na esfera terrestre informam o ofício da escultura. Camiri, Caribe, Dongsha, Karratha — quatro cantos — e Hekla estão presentes no antigo pavilhão do Parque Lage, de maneira latente: Tudo é a escultura pronta, finalmente, tudo conta em seu processo de realização. A experiência de Cavalariças se quer autônoma, imanente, prescinde da narrativa das manobras poéticas que a antecedem. E, no entanto, elas foram inadiáveis, imprescindíveis: agentes positivos da forma da escultura.37

Também no ano de 2009 , na H.A.P. Galeria, no Rio de Janeiro, Nelson Felix apresenta Cubounido, que havia iniciado em 2007. A obra consiste em três peças, cada uma composta por dois cubos vazados — as arestas são mantidas e

35 BRITO, Ronaldo. “Percurso da escultura”. In: FELIX, Nelson; BRITO, Ronaldo; FLÓRIDO CESAR , Marisa. Concerto para encanto e anel. Op. cit., p. 85 .

IMAGEM DO PROJETO CONCERTO PARA ENCANTO E ANEL

36 Idem, ibidem, p. 83.

VULCÃO HEKLA,

37 Idem, ibidem, p. 86.

ISLÂNDIA, 2008

146


147


CAMIRI É UMA CIDADE NA BOLÍVIA QUE SE LOCALIZA NO CENTRO DA CRUZ TRAÇADA SOBRE O MAPA PARA DEFINIÇÃO DO PROJETO CRUZ NA AMÉRICA. CONCERTO PARA ENCANTO E ANEL ORIGINA-SE DAS COORDENADAS DESSE CENTRO (LATITUDE E LONGITUDE) E É REALIZADO EM TRÊS PARTES: DUAS EXPOSIÇÕES E UMA SÉRIE DE AÇÕES ESCULTÓRICAS FEITAS AO REDOR DO MUNDO. OS LOCAIS DAS AÇÕES SÃO DEFINIDOS PELOS REBATIMENTOS DAS COORDENADAS DE CAMIRI, E O DESENHO DESSE DESLOCAMENTO NO GLOBO ESTRUTURA TODA A OBRA. A IDEIA DE CÍRCULO E DE TEMPO CIRCULAR PERMEIA TODO ESTE TRABALHO. SEJA NA FORMA OU NA MANUFATURA DOS BLOCOS DE MÁRMORE, NO DESLOCAMENTO DO ARTISTA PELO MUNDO E, PRINCIPALMENTE, NA ROTAÇÃO DAS VIGAS NOS ESPAÇOS DAS DUAS EXPOSIÇÕES, CAMIRI (MUSEU VALE, VILA VELHA, ES, 2006) E CAVALARIÇAS (ESCOLA DE ARTES VISUAIS DO PARQUE LAGE, RIO DE JANEIRO, RJ, 2009). O ARTISTA TECE UMA SEQUÊNCIA DE RELAÇÕES, ENTRECRUZA SIGNIFICADOS E TURVA DELIBERADAMENTE INÍCIO E FIM DOS TRABALHOS, INTERLIGANDO EXPOSIÇÕES, ESCULTURAS, AÇÕES, DESLOCAMENTOS, ÂNGULOS ETC. AS DUAS EXPOSIÇÕES E A SÉRIE DE AÇÕES NÃO SÃO ESTANQUES, MAS FORMAM UMA UNIDADE, COMO UMA ÓPERA E SEUS ATOS, OU UM CONCERTO E SUAS PARTES. IMAGENS DO PROJETO CONCERTO PARA ENCANTO E ANEL, 2005-2009



o núcleo esvaziado — retirados do mesmo bloco de mármore italiano. A ideia de um cubo dentro do outro executado sem emendas remete ao Vazio sexo. Em Cubounido, anéis de ouro tornam-se pontos de apoio entre a obra e o piso, e também uma espécie de “cartilagem metálica” que evita a fricção entre os cubos de mármore. É evidente um componente simbólico na escolha do anel para os pontos onde as partes se encontram e se apoiam. Nota-se também que os três exemplares de Cubounido permitem um jogo de equilíbrio e desequilíbrio entre os cubos, de inclinação e paralelismo entre as partes, ou como escreveu Ronaldo Brito: “Como de costume na obra de Nelson Felix, enquanto se afirma, a geometria também se desmente”.38 A quarta peça é Desenho no mundo, de 2009: dois paralelepípedos de Carrara entrecruzados, um na vertical e outro na horizontal. Desde Camiri, passando pelos deslocamentos pelo globo, tudo se amarra no projeto Concerto para encanto e anel, desenvolvido de 2005 a 2009 e realizado no Oi Futuro, no Rio de Janeiro, em 2011 (o livro homônimo com imagens desses trabalhos e textos de Ronaldo Brito e Marisa Flórido Cesar foi publicado no mesmo ano). Quando esteve na Austrália, Nelson Felix fez uma segunda obra a partir de uma figura geométrica desenhada sobre um mapa — no caso, o de Portugal. IMAGEM DA EXPOSIÇÃO CAVALARIÇAS, 2009

38 Idem, ibidem, p. 87.

150

PARQUE LAGE, RJ


151


4 cantos, de 2008, é o deslocamento do artista acompanhado de quatro blocos

de pedra calcária de quatro a seis toneladas extraídos de uma pedreira da cidade portuguesa de Fátima. Com o suporte da Fundação Serralves (Porto) e do Ministério de Turismo de Portugal, Nelson Felix atravessou o país a bordo de um caminhão Munck com os blocos de pedra, sem corte regular. O que o orientava eram as coordenadas preestabelecidas a partir das extremidades do território lusitano e o poema “A casa térrea”, da poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, do qual foram extraídos os oito versos inscritos nas ponteiras de bronze que fixavam os blocos de pedra.39 Como interpretado por Adolfo Montejo Navas: “No fundo, esta ‘ação escultórica’ não se encaixa no ideário do site specific. É uma ‘situação escultórica’ mutante e cumpre a função de intervenção efêmera em locais diversos da geografia portuguesa”.40 4 cantos desdobra-se em Verso, de 2013, um trabalho que parte da latitude

e da longitude de São Paulo como ponto médio de uma linha que liga o arquipélago de Juan Fernández, no oceano Pacífico (próximo à costa do Chile), à ilha de Ascensão, na porção sul do oceano Atlântico. No deslocamento até esses lugares, Nelson Felix fez em cada um deles uma fotografia e cravou no solo estacas de bronze cuja forma parte do poema visual Desmuntatge [Desmontagem], de 1974, do catalão Joan Brossa. Verso foi apresentado em 2013 na Galeria Millan e no Instituto Tomie Ohtake, ambos em São Paulo. Enquanto na galeria é instalado o trabalho formado por vários anéis de mármore, cujos tamanhos e posicionamentos promoviam uma circularidade instável, no instituto foram expostos cerca de 140 desenhos que representam o registro de seu processo de deslocamento, junto com duas fotografias sobrepostas a cartografias e uma flauta esculpida em mármore. Como atentou o curador Paulo Miyada, a mostra no Tomie Ohtake continha os desenhos que, de certo modo, nos dão as mais interessantes pistas do futuro na obra de Nelson Felix: O desenho é o recurso pelo qual o artista conversa consigo mesmo e articula, cotidianamente, as ideias fundadoras de seus percursos, viagens e formas. Se as instalações são a consolidação do pensamento e os processos a duração de

39 “Que a arte não se torne para ti a compensação daquilo que / Não soubeste ser / Que não seja transferência nem refúgio / Nem deixes que o poema te adie ou dívida: mas que seja / A verdade do teu inteiro estar terrestre / Então construirás a tua casa na planície costeira / A meia distância entre montanha e mar/ Construirás — como se diz — a casa térrea — / Construirás a partir do fundamento. ANDRESEN , Sophia de Mello Breyner. O nome das coisas.” In:_____. Obra poética. Alfragide: Caminho, 2011. 40 MONTEJO NAVAS, Adolfo. “4 Cantos”. Revista Dasartes, São Paulo, fev. 2008.

152

IMAGEM DE PEDREIRA EM FÁTIMA, PORTUGAL, 2008


153


NO PROJETO MÉTODO POÉTICO

ESPAÇO INTERNO, DIRECIONOU

PARA DESCONTROLE DE

OS BLOCOS CONTRA OS CANTOS

LOCALIDADE I, NELSON FELIX

DAS PAREDES E OS FIXOU COM

EXPLORA A RELAÇÃO ENTRE

OITO PONTEIRAS DE BRONZE

O ESPAÇO E A POESIA. SEU

ONDE ESTAVAM INSCRITOS OS

PROCESSO ASSEMELHA-SE AOS

OITO VERSOS DO POEMA CASA

LIVROS DE POESIA MODERNA,

TÉRREA, DE SOPHIA DE MELLO

NOS QUAIS DESENHOS OU

BREYNER ANDRESEN.

GRAVURAS CRIAM UMA RELAÇÃO

VERSO NASCE DA

ENTRE TEXTO E IMAGEM. NESSE

OBSERVAÇÃO DE QUE A

SENTIDO, ESCULTURAS, OBJETOS,

CIDADE DE SÃO PAULO, O

FOTOGRAFIAS E AÇÕES BUSCAM

PRINCIPAL CENTRO BRASILEIRO,

TAMBÉM ILUSTRAR O TEXTO

ENCONTRA-SE SOBRE UMA

POÉTICO, MAS RECORRENDO

LINHA IMAGINÁRIA QUE LIGA

AGORA AO PRÓPRIO ESPAÇO

DUAS PEQUENAS ILHAS, UMA

GLOBAL.

NO OCEANO PACÍFICO E OUTRA

CONSTITUÍDO DE DUAS

NO ATLÂNTICO, EQUIDISTANTE

OBRAS, 4 CANTOS E VERSO,

A ELAS. O ARTISTA VIAJA ÀS

ABORDA UM PENSAMENTO

DUAS ILHAS — DOIS OPOSTOS,

POÉTICO SOBRE O ESPAÇO, NA

DOIS VERSOS, CRIADOS

SUA ESTRUTURA MAIS SIMPLES

PELA ESTRUTURA POÉTICA

— OS CANTOS, O CENTRO E O

DO TRABALHO NO GLOBO

VERSO –, E O QUE SERIAM ESSES

TERRESTRE. DELAS OLHA EM

LOCAIS, HOJE, NA PERCEPÇÃO

DIREÇÃO A SÃO PAULO, ONDE

MULTIFACETADA DO ESPAÇO. E

IRÁ EXPOR, E FINCA NO SOLO

PRINCIPALMENTE A RELAÇÃO

TRÊS PEÇAS DE BRONZE QUE

AMBÍGUA QUE EXISTE NA

CONSTITUEM AS TRÊS PARTES

LÍNGUA PORTUGUESA ENTRE

DA LETRA A, EM HOMENAGEM

AS PALAVRAS CANTO E VERSO,

AO POETA CATALÃO JOAN

ORA COM SENTIDO ESPACIAL,

BROSSA E AO SEU POEMA

ORA COM SENTIDO POÉTICO. O

INTITULADO DESMUNTATGE.

ARTISTA VIAJOU AOS QUATROS EXTREMOS DO TERRITÓRIO

O TRABALHO REMETE À SENSAÇÃO POÉTICA DE UM

PORTUGUÊS EM UM CAMINHÃO

LOCAL CENTRAL, CONSTRUÍDO

CARREGADO COM QUATRO

TOTALMENTE POR CENTROS

BLOCOS CÚBICOS DE PEDRA.

— TRÊS CENTROS, SE ASSIM

EM CADA CANTO, O ARTISTA

PODEMOS FALAR. UMA CIDADE,

COLOCAVA AS PEDRAS NO

QUE AGLUTINA E CENTRALIZA

SOLO E AS DESENHAVA, ATÉ

UM PAÍS, E DUAS PEQUENAS

IMPREGNAR-SE DA PAISAGEM.

ILHAS, PONTOS EM MEIO A

NO ÚLTIMO EXTREMO, ESTE UM

OCEANOS.

IMAGENS DO PROJETO 4 CANTOS, 2008



seu fluxo e corrente, os desenhos são sua emergência aquecida sem restrições ou limites, senão aqueles próprios ao ato de desenhar.41

Oriunda da presença e influência do tio Moacyr Felix desde muito cedo, a relação do artista com a poesia se amplia e permeia toda a sua vida, tornando-se particularmente especial nas séries Flautas e cactus, com exposição na H.A.P. Galeria, e Cantosrev no Instituto Ling, em Porto Alegre, ambas de 2014. As duas mostras são desdobramentos de 4 cantos e Verso por se inspirarem nos poemas citados e manterem traços da operação de deslocamento. Nessas exposições destacam-se as Flautas, esculturas em mármore das quais se subtraem as palavras “canto” e “verso”. Nas palavras do artista: O trabalho aborda, primeiramente, um pensamento poético sobre o espaço, na sua estrutura mais simples — os cantos, o centro e o verso —, e o que seriam estes locais, hoje, na percepção multifacetada do espaço. Depois, na relação ambígua que existe na língua portuguesa nas palavras “canto” e “verso”, ora com sentido espacial, ora com sentido poético.

Nesta retrospectiva que a Pinacoteca promove no primeiro semestre de 2015, 4 cantos e Verso unem-se a Um canto para onde não há canto, 2001 , dando

origem ao projeto Método poético para descontrole da localidade, 2008-2015: uma reunião de toda a reflexão do artista fundamentada no entrelaçamento de poesia e espacialidade, isto é, quando poemas alicerçam os deslocamentos e as expansões espaciais. Assim, durante o primeiro decênio dos anos 2000 , os desenhos surgiram a fim de viabilizar o grau de complexidade que

os trabalhos iam ganhando, com o aumento de informações que se incorporavam às obras e o crescente entrelaçamento entre elas. Os desenhos ligam tudo, no entanto, sem terem a intenção de se tornar “obras de arte”. São desenhos de concepção, como esclarece Nelson Felix: “Eu gosto muito desses desenhos, pois eles não têm obrigação nenhuma de existir, a não ser para que eu coordene um amálgama de significados e para que eu possa pensar graficamente”.42

41 MIYADA , Paulo. “Verso (meu ouro deixo aqui)”. In: FELIX , Nelson. Verso (meu ouro deixo aqui) (folder da exposição no Instituto Tomie Ohtake). São Paulo, 2013 . 42 Entrevista de Nelson Felix concedida a Francesco Perrotta-Bosch. Nova Friburgo, 6 jan. 2015 .

156

IMAGENS DO PROJETO VERSO, 2013



O PULSO DAS COISAS VIVAS GABRIELA MOTTA

O vocabulário normalmente utilizado para se escrever sobre arte parece insuficiente para

deixemo-nos cair no abismo — e imobiliza — falar, escrever,

abordar a obra de Nelson Felix.

é sempre menos do que estar

Uma possibilidade seria partir

diante do inefável.

do começo de cada projeto,

158

que simultaneamente atrai —

Esse arrebatamento revela o

como cada um surge, a partir

que acredito: a obra de Nelson

de quais procedimentos e

Felix é uma das mais relevantes

conceitos o artista os constrói.

da produção contemporânea

No entanto, com isso, seria

de artes visuais, justamente

preciso admitir logo de saída

porque escapa aos esquemas

uma omissão fundamental:

de leitura, das abordagens

o fato de que os trabalhos

usuais do campo da arte. Estão

de Felix amalgamam-se uns

lá, na obra, o minimalismo, a

nos outros, constituindo um

escultura clássica, o site specific.

corpo único em permanente

Mas também a astronomia, o

transformação. Ou seja, em

budismo, a filosofia, a botânica.

primeiro lugar, é preciso

Disso tudo, nada aparece

perceber como fundamental

como referência, citação ou

para a produção do artista

reverência, mas sim como

a noção de continuidade

matéria viva, como fluxo vital

permanente. Esse sentido de

que anima a existência da obra

continuidade é a vertigem

enquanto ser e jamais enquanto

1 Desenho no mundo é como o artista

do Sul), no deserto do Atacama (Chile)

chama a série de trabalhos que tem

e no litoral do Ceará. Cada uma dessas

início com Cruz na América (1985-

quatro paisagens geográficas ocupa

2003). Esse projeto de quase vinte

a extremidade dos vértices de uma

anos conforma-se a partir de quatro

cruz imaginária, traçada sobre o globo

intervenções realizadas na floresta

terrestre. Desenho no mundo abriga ainda

amazônica (Acre), no pampa (Rio Grande

Camiri (1999-2006) — ação realizada


objeto. Por isso, por essa

tais formas e materiais são

do mar — não estão ao nosso

relação com a existência, que é

submetidos a situações

alcance, são próprios de seus

sempre uma noção repleta de

em que protagonizam um

elementos e de suas reações

perguntas, o trabalho de Felix

diálogo irreversível com seus

intrínsecas com o mundo. O

pede um envolvimento em que

contextos físicos. São como

trabalho está acontecendo

entram em jogo sentimentos

sujeitos, permanentemente

neste momento, algo nele se

como confiança, crença e

transformados por suas

transforma permanentemente

entrega.

experiências. Assim, por

a despeito de todo e qualquer

exemplo, em uma das

sujeito que nomeie ou

Desde o início de sua trajetória, mas de modo

intervenções do projeto

qualifique tal ação. O trabalho

mais evidente a partir da

Cruz na América, realizada

é sujeito. E o artista, ao

série de ações reunidas sob

no litoral do Ceará, o artista

empenhar na construção

a alcunha de “desenhos no

abandona no mar uma esfera de

da obra muito mais do que

mundo”, Felix desenvolve

mármore ao redor da qual estão

materiais, formas, significados,

trabalhos que transcendem

cravadas 22 pontas de ferro. 2

conceitos, deslocamentos,

as noções clássicas de obra,

O que se intui da descrição

estrutura de produção, reafirma

espaço, tempo, lugar, peso,

da obra é que essas pontas de

em cada projeto aberto um

forma. Simultaneamente,

ferro, em contato com a água

comprometimento irrevogável

suas intervenções valem-

salgada, acabarão por oxidar-

com o fazer artístico e

se de materiais e formas

se e expandir-se, causando a

especialmente com a arte

tradicionais, como mármore,

ruptura da esfera.

enquanto imponderável.

1

aço, círculos, planos. No

O tempo em que isso

entanto, com frequência,

ocorrerá e o lugar — o fundo

operam, a extensão espacial

em Camiri, na Bolívia, e uma exposição

Cavalariças (2005-2009) — intervenção

(Portugal, 2008), homônima daquela

no Museu Vale do Rio Doce, em Vila

no Parque Lage, no Rio de Janeiro, e uma

citada anteriormente, também poderiam

Velha, no Espírito Santo —, 4 cantos

ação no vulcão Hekla, na Islândia. Os

estar neste conjunto de trabalhos, já que

(2004-2008) — intervenções realizadas

trabalhos Camiri, 4 cantos e Cavalariças,

envolvem grandes deslocamentos e uma

na República Dominicana e em Anguilla,

por sua vez, aparecem reunidos sob

complexa relação entre a planaridade da

no Caribe, em Dongsha, no mar da China,

o nome Concerto para encanto e anel.

representação do espaço geográfico e a

e em Karratha, na costa australiana — e

As obras Verso (2008-2013) e 4 cantos

experiência do próprio espaço.

159

A expansão temporal em que


que ocupam, os procedimentos

contexto institucional. Nesses

encontramos na formalização

e negociações que reivindicam

aparecimentos, há uma inversão

de seus aparecimentos públicos.

são também matéria da obra, o

absoluta na perspectiva da

As peças que o artista produz

núcleo conceitual que estrutura

qual se vê a obra, de um ponto

são absolutamente precisas (não

o trabalho. No entanto, tal

de vista do pesquisador, que

poderiam ser maiores ou feitas

núcleo conceitual não se

busca a literatura dos projetos,

em outros materiais ou terem

apresenta apenas como conceito,

suas justificativas e premissas,

outras formas) exatamente

ou seja, enquanto abstração ou

para um ponto de vista do

porque são justas aos seus

exemplo, como em algumas

espectador, que vê coisas,

conceitos. Não representam ou

obras efêmeras que lidam com

objetos, desenhos, formas,

ilustram algo, são a coisa mesma

materiais perecíveis. Seus

imagens.

da qual falam. E dizem tanto

conceitos de espaço, de tempo,

No entanto, por mais que

da sua história quanto da sua

de deslocamento, corporificam-

tais pontos de vista sejam

se como experiência da

de fato independentes (é

própria obra, conferindo-lhe

possível construir e fazer a

enormes blocos de gelo de cujo

continuidade não como ideia,

experiência de alguns trabalhos

volume total apenas cerca de

mas enquanto verdade da obra. ICEBERGS

presença. Como se fossem icebergs,

apenas mentalmente, ou

10% emergem à superfície, a

ver as exposições enquanto

obra de Felix flutua entre a

conjunção de objetos e

complexidade de suas razões de

formas, independente de suas

ser e uma aparente simplicidade

Diante dessa verdade, o que

referências), essas perspectivas

de seu estar no mundo. O jogo

são as exposições de Nelson

são complementares e

em que seus trabalhos estão

Felix? Ao reconhecer a obra

simultaneamente fundamentais

envolvidos não tem começo

de Felix enquanto ser é preciso

para os trabalhos que se

nem fim, não se funda em

perceber suas exposições como

encontram em situação

dicotomias contrárias, como

situações em que o trabalho,

expositiva. Tal contração

não são contrários o visível e

no decorrer de uma trajetória

entre diferentes modos de

o invisível de um iceberg. Ao

que antecede e ultrapassa esses

percepção só é possível porque

emergirem, já estavam lá. Seus

momentos, abre-se para um

o mesmo rigor e obstinação que

enigmas abrem-se em outros

encontro público e mediado,

encontramos na execução de

mistérios, suas faces dobram-se

já que amparado por algum

projetos de décadas também

sobre si mesmas, e as escolhas

2 Esta intervenção chama-se Vazio

3 No site do artista, o verbete sobre a obra

Depois, na relação ambígua que existe na

coração — litoral. Além de ser um

4 cantos e Verso relata que “o trabalho

língua portuguesa nas palavras ‘canto’ e

dos vértices de Cruz na América, ela

aborda, primeiramente, um pensamento

‘verso’, ora com sentido espacial, ora com

faz parte de um outro conjunto de

poético sobre o espaço, na sua estrutura

sentido poético. A primeira parte, 4 cantos,

trabalhos do artista chamado Vazios,

mais simples — os cantos, o centro e o

prima pela relação espacial; a segunda,

que reúne três obras realizadas entre

verso —, e o que seriam estes locais, hoje,

Verso, pela poética”. Ver www.nelsonfelix.

1992 e 2004.

na percepção multifacetada do espaço.

com.br (acesso em 17 set. 2014).

160


que fazemos ao olhá-las

colocava as pedras no solo e

a mais básica e fundamental

implicam sempre reconhecer a

as desenhava, até impregnar-

relação com a arte: olhar.

ordem poética em que operam.

se da paisagem. No último extremo, este em espaço

Já Verso, o outro ato da obra, nasce da observação

UM ENCON TRO DE

interno, direcionou os blocos

de que a cidade de São Paulo

ENCON TROS

contra os cantos das paredes e

encontra-se equidistante e

os fixou com oito ponteiras de

sobre uma linha imaginária

A exposição — encontro —

bronze, onde estavam inscritos

que liga duas pequenas ilhas,

CantOsreV é uma face de um

os oito versos do poema Casa

uma no oceano Pacífico e outra

iceberg. Ainda que seja possível

térrea, de Sophia de Mello

no Atlântico. O artista viajou

vê-la desde suas referências

Breyner Andresen.

às duas ilhas, onde olhou na

conceituais específicas, essa

4

O poema de Sophia fala-

direção de São Paulo e fincou

instalação abre-se em um

nos de comprometimento

no solo três peças de bronze,

léxico próprio, dado por sua

e posicionamento, atribui

que constituem as três partes

presença poética no mundo.

uma imagem — a construção

da letra “A”. Essas peças de

No entanto, ao saber dessas

de uma casa térrea a partir

bronze referem-se ao poema

possibilidades complementares

do fundamento — à verdade

Desmuntatge [Desmontagem],

de abordagem, não é possível

indispensável de nossas

do catalão Joan Brossa.5

eleger uma ou outra: é preciso

escolhas. Seus versos, gravados

escolher a vertigem em ambas

nas ponteiras de bronze sobre

Enquanto 4 cantos vale-se de um poema absolutamente

as quais se apoiavam os blocos

rítmico, repleto de significados,

de pedra, sustentavam não a

e de um procedimento que

em busca de suas origens

matéria bruta desses cubos,

reitera o sentido espacial da

leva-nos à obra 4 cantos

mas esse compromisso com

palavra “canto” — deslocar-

(Portugal, 2008) e Verso (São

nossas escolhas que precisa

-se aos quatro extremos de

Paulo, 2013),3 um trabalho

ser diariamente reafirmado.

Portugal —, Verso traz um

realizado em dois atos. Em 4

Ao desenhar tais pedras por

poema-imagem. As três partes

cantos, Felix viajou aos quatro

dezenas e dezenas de horas,

do “A” são também linhas,

extremos de Portugal, com

deslocando-as pelo país,

como aquela imaginária que

quatro blocos cúbicos de

Nelson impregna-as de tempo,

liga as tais ilhas que compõem

pedra. Em cada canto, o artista

o tempo em que se submete

o trabalho. E linhas não têm

4 “Que a arte não se torne para

na planície costeira / A meia distância

5 Realizado em 1974, Desmuntatge

ti a compensação daquilo que /

entre montanha e mar/ Construirás

é um poema visual no qual a letra

as direções. Olhar esta exposição

Não soubeste ser / Que não seja

— como se diz — a casa térrea — /

“A” aparece primeiro em sua forma

transferência nem refúgio / Nem deixes

Construirás a partir do fundamento."

maiúscula, como aqui (“A”), e logo a

que o poema te adie ou dívida: mas

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner.

seguir como se desmontada, em três

que seja / A verdade do teu inteiro estar

O nome das coisas. In:_____. Obra poética.

traços.

terrestre / Então construirás a tua casa

Alfragide: Caminho, 2011.

161


verso — um outro lado —, são

grão de areia a contaminar uma

artista nas ilhas do trabalho,

versões da banda de Moebius

possível nitidez do trabalho

projetadas sobre outros mapas

sem a banda, geometria espacial

e a agregar outra gama de

em ouro e sobre a terceira

antes do espaço. Abstração pura

sentidos ao pensamento sobre

ponteira da exposição.

ou materialidade absoluta, é

espaço até então instaurado

como Brossa olha para o “A”, e é

por 4 cantos e Verso. Com este

sobreposições que se reiteram

como permanentemente somos

novo elemento, deparamo-

em todas as situações

convidados a olhar para a obra

nos também com uma das

escultóricas, e também na

de Felix.

características marcantes de

relação da instalação com o

Nelson Felix: a incansável

todo do espaço físico em que

percursos mentais e

tarefa de abrir frestas

ela se encontra, determinam a

geográficos, dessas poesias

em sua obra pelas quais

irreversibilidade da experiência

e das imagens sugeridas por

escorra qualquer ilusão de

tais deslocamentos entre

compreensão.

Assim, a partir desses

linguagem oral e experiência, estrutura-se CantOsreV. A

A espacialização de CantOsreV define-se de

Os atravessamentos e

— algo que se dá no tempo e sobre o qual não é possível retornar sem estar modificado. Ou seja, tais arranjos, mais do

exposição reúne imagens

acordo com as características

que significarem um princípio

do artista com o poema

da galeria, um retângulo. A

composicional, reconhecem

Desmuntatge, mapas em ouro

instalação seciona a dimensão

o tempo como dimensão

dos territórios atravessados por

longitudinal do espaço criando

fundamental do espaço na

Felix nas obras 4 cantos e Verso,

três situações escultóricas

medida em que o trabalho não

duas flautas em mármore de

complementares e interligadas.

toma esse espaço como estático

Carrara vazadas pelas palavras

As primeiras dessas situações

e não negociável. Desta forma,

é uma parede atravessada

o poema de Brossa (El temps),

“canto” e “verso”, três anéis em mármore de Carrara e

por ponteiras de bronze

ainda que não seja legível na

ponteiras em bronze. Nas

que sustentam os anéis de

obra de Felix, corporifica-se

ponteiras inscreve-se um

mármore. Ao centro da galeria,

na instalação. Em um dos seus

encontram-se as duas flautas,

versos lê-se: “las palabras/

terceiro poema, também de Brossa, intitulado El temps.

sobrepostas e como se unidas

están aquí, tanto se las leéis/

a um mapa em ouro. Ao fundo,

como si no”. E o mesmo vale

El temps surge como mais um

vemos as duas imagens do

para a obra de Felix, sua inteira

6 “Este verso es el presente./ El verso

terrestre/ puede modificarlo.” BROSSA,

que habéis leído ya es el pasado,/ ya ha

Joan. Poemes de Joan Brossa (antologia).

quedado atrás después de la lectura./

Trad. de A. S. Robayana e M. Mur. Madri:

El resto del poema es el futuro,/ que

Ediciones Libertarias, 1983.

6

O aparecimento do poema

existe fuera de vuestra/ percepción./ Las palabras/ están aquí, tanto si las leéis/ como si no. Y ningún poder

162


presença capaz de aglutinar

abstrações que não são próprias

tudo o que em si é visível e

da arte ou do que quer que seja.

invisível.

São próprias daquilo que faz cada experiência importante

EU CONFIO EM VOCÊ

ser inenarrável. Se não abordei

Ao reconhecer os trabalhos

especificamente as questões

de Felix enquanto sujeitos,

metafísicas dos projetos de

a noção de continuidade

Felix, é porque acredito que

como verdade da obra e suas

toda arte que “dá barato” tem

exposições como encontros,

algo de metafísico. Portanto,

resta-nos recebê-los em sua

não é o “falar de algo indizível”

ordem poética. Como tal,

que importa, mas a capacidade

enquanto poesia, seus trabalhos

mesma de ser transcendente.

são fugidios às tentativas

Essa potência sem nome que

de compreensão. Pedem

se apresenta quase como

uma relação de confiança e

revelação ou clarividência

entrega pois entregam-se e

e que, em sua concentração

acreditam na potência de uma

máxima de energia, nos

linguagem que opera através

faz perceber (ou achar que

do sensível e que escapa às

percebemos) coisas sobre nós

exegeses teóricas. A fragilidade

mesmos, sobre o mundo, sobre

dos conceitos tradicionais do

a arte, sobre icebergs, sobre

campo da arte para dar conta

abismos.

de uma obra tão densa e com tantos desdobramentos dá-se exatamente porque tal obra reitera constantemente a possibilidade de relacionar-se com o outro através de

PUBLICADO ORIGINALMENTE NO CATÁLOGO DA EXPOSIÇÃO CANTOSREV, INSTITUTO LING, PORTO ALEGRE, 2014.

163


Eles foram apresentados pela primeira vez ao público na exposição Camiri, ainda de maneira secundária numa sala ao lado do espaço principal. Sobre eles, o crítico Ronaldo Brito comenta: Segundo o tempo abstrato da escultura, na verdade, tudo obedecia ao empuxo de sua forma: a disciplina do artista consistia sobretudo em manter-se atento, no prumo, em contato criativo com o seu desenvolvimento. O que, em uma palavra, significava: trabalho. E o provam, flagrantes, os desenhos inquietos produzidos à época da montagem de Camiri: Nelson Felix já se encontrava então sob o influxo da futura escultura. Urgentes, incisivos, em lúcido tumulto, esses desenhos saem em busca da forma da escultura e impelem o artista em sua direção. Mas agem também em sentido inverso, a detê-lo, ocupá-lo no papel, impedi-lo de partir prematuramente.43

O desenho é o seu modo de conversar com o próprio pensamento: a mão realiza graficamente o que está na cabeça, a qual recebe um retorno — uma informação — por meio do desenho, instigando a mente a responder, e assim, sucessivamente, se estabelece um diálogo. O artista é claro ao demonstrar que esse diálogo em muito se distancia do domínio da palavra, da linguagem verbal. Seu pensamento e seu desenho estão, acima de tudo, dialogando graficamente. Não à toa, Nelson Felix assume: “Na realidade, é o que eu mais gosto. O desenho não tem a linha do tempo. Não importa se foi há um, ou cinco, ou dez anos atrás, ou se ainda será: eu dou o traço”.44 Por eles, como em cada trabalho do artista, ocorrem “a expansão temporal em que operam, a extensão espacial que ocupam, os procedimentos e negociações que reivindicam”.45 Os desenhos são como um emaranhado capaz de reunir todo o pensamento do artista, mesmo que, em palavras de Rodrigo Naves, ponham “em xeque as incursões tradicionais da própria compreensão”. São desenhos que revelam o cerne do 46

pensamento em seus trabalhos; desenhos que predizem o que Nelson Felix irá nos proporcionar no porvir.

IMAGEM DA EXPOSIÇÃO VERSO GALERIA MILLAN, SÃO PAULO, 2013 IMAGEM DA EXPOSIÇÃO VERSO, INSTITUTO TOMIE OHTAKE, SÃO PAULO, 2013

43 BRITO, Ronaldo. “Percurso da escultura”. In: FELIX, Nelson; BRITO, Ronaldo; FLÓRIDO CESAR , Marisa. Concerto para encanto e anel. Op. cit., p. 85.

44 Idem, ibidem. 45 MOTTA, Gabriela. “O pulso das coisas vivas”. In: NELSON, Felix. Cantosrev (folder da exposição no Instituto Ling). Porto Alegre, 2014. 46 NAVES, Rodrigo. “Duas mostras de Nelson Felix questionam os limites da produção artística”. O Estado de S. Paulo, 11 nov. 2013.

164

IMAGEM DA EXPOSIÇÃO CANTOSREV INSTITUTO LING, PORTO ALEGRE, 2014 * TODAS AS IMAGENS PERTENCEM AO ARQUIVO DO ARTISTA.





LISTA DE OBRAS

SEGUNDA NOÇÃO DO ZERO, 1985

FRONTAL, ENTRE 1990 E 1992

CHUMBO, COBRE, ESTANHO,

FERRO E GRAFITE

BEIJO EM MADALENA, 1998 AZEITE, BRONZE E MADEIRA

FERRO, GRAFITE E LATÃO

480 X 70 X 80 CM

80 X 1110 X 446 CM

5 X 437 X 164 CM

COLEÇÃO JOÃO SATTAMINI,

COLEÇÃO DO ARTISTA, NOVA FRIBURGO,

COLEÇÃO PARTICULAR, SÃO PAULO

RIO DE JANEIRO

RIO DE JANEIRO

CABEÇAS FELIZES, 1984 CHUMBO, COBRE, ESTANHO, FERRO, LATÃO 27 X 91,5 X 30 CM COLEÇÃO PARTICULAR, SÃO PAULO

JULIA I, 1995

VAZIO CORAÇÃO, ENTRE 1999 E 2004

PROJEÇÃO E OURO

FOTOGRAFIA, GRAFITE, MÁRMORE E

153 X 275 CM

PRATA

COLEÇÃO DO ARTISTA, NOVA

6 FOTOGRAFIAS DE 69,5 X 102 CM

FRIBURGO, RIO DE JANEIRO

2 ESFERAS DE Ø 60CM COLEÇÃO HELOISA AMARAL PEIXOTO, RIO DE JANEIRO

GRAFITE, ENTRE 1988 E 1989 GRAFITE E OURO 324 X 299,5 X 155,5 CM COLEÇÃO CHARLES COSAC, SÃO PAULO COLEÇÃO RICARDO REGO, RIO DE JANEIRO

MESAS, 1995 DORMIDEIRA, FERRO, GRANITO, OURO E PRATA 108 X 1026 X 102 CM COLEÇÃO DO ARTISTA, NOVA FRIBURGO, RIO DE JANEIRO

VAZIO SEXO, 2004 MÁRMORE E PRATA 94 X 90,5 X 91 CM COLEÇÃO LUIS ANTONIO ALMEIDA BRAGA, RIO DE JANEIRO


VAZIO SEXO, 2004

CACTO, 2014

GRAFITE, LACRE, OURO E PRATA

CACTO, BRONZE E LACRE SOBRE PAPEL

SOBRE PAPEL

VASO E CACTO 110 X 60 X 51 CM

6 DESENHOS DE 73 X 41 CM

6 DESENHOS DE 75 X 60 CM

COLEÇÃO JUSTO WERLANG,

COLEÇÃO DO ARTISTA, NOVA FRIBURGO,

PORTO ALEGRE

RIO DE JANEIRO

CUBUNIDO, 2009

MALHA, 2014

EU VI A AMERICA COM OS OLHOS

MÁRMORE E BRONZE

MÁRMORE

D’ELE, ENTRE 2001 E 2015

154 X 116 X 93 CM

350 X 837 X 1002 CM

BRONZE, CABO DE AÇO, CACTOS,

ACERVO BANCO ITAÚ, SÃO PAULO

ACERVO DA PINACOTECA DO ESTADO

DORMIDEIRAS, ESTRUTURA DE

CUBUNIDO, 2009

DE SÃO PAULO. DOAÇÃO DOS PATRONOS

FERRO, MÁRMORE E TIJOLO

DA ARTE CONTEMPORÂNEA DA

625 X 350 X 1237 CM

MÁRMORE E BRONZE

PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO

COLEÇÃO JUSTO WERLANG,

154 X 116 X 93 CM

2014, POR INTERMÉDIO DA ASSOCIAÇÃO

PORTO ALEGRE

COLEÇÃO JUSTO WERLANG,

PINACOTECA ARTE E CULTURA — APAC —

PORTO ALEGRE

OBRA EM PROCESSO DE TOMBAMENTO.

JULIA II, 2014

DESENHO HORIZONTAL, 2015

PROJEÇÃO E OURO

CHUMBO, GRAFITE, E ÓLEO SOBRE PAPEL

153 X 275 CM

78 X 736 CM

COLEÇÃO DO ARTISTA, NOVA FRIBURGO,

COLEÇÃO DO ARTISTA, NOVA FRIBURGO,

RIO DE JANEIRO

RIO DE JANEIRO


VÍDEOS DOCUMENTAIS CRUZ NA AMÉRICA, ENTRE 1985 E 2004 3'22 EDIÇÃO: GUILHERME BEGUÉ SÉRIE GÊNESIS, ENTRE 1985 E 2014 5'1 EDIÇÃO: GUILHERME BEGUÉ GRAFITE, 1988 DA SÉRIE ÁRABE, 2001 5'46S EDIÇÃO: GUILHERME BEGUÉ VAZIOS, ENTRE 1992 E 2004 10' EDIÇÃO: GUILHERME BEGUÉ LAJES/PILAR, ENTRE 1997 E 2001 2'35 EDIÇÃO: GUILHERME BEGUÉ CONCERTO PARA ENCANTO E ANEL, ENTRE 2005 E 2009 4'18 EDIÇÃO: GUILHERME BEGUÉ MÉTODO POÉTICO PARA DESCONTROLE DE LOCALIDADE I, ENTRE 2008 E 2013 5'26 EDIÇÃO: GUILHERME BEGUÉ MÉTODO POÉTICO PARA DESCONTROLE DE LOCALIDADE II, 2011 3'10 EDIÇÃO: GUILHERME BEGUÉ




GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO GERALDO ALCKMIN

CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO

GOVERNADOR DO ESTADO

LEANDRO DOS SANTOS OLIVEIRA PRESIDENTE

MARCELO MATTOS ARAUJO

MIRIAN MARIA DE JESUS

JOSÉ OLYMPIO DA VEIGA PEREIRA

SECRETÁRIO DE ESTADO DA CULTURA RENATA VIEIRA DA MOTTA

ANGELA MARIA AVANÇO POMBAL

ÁREA DE ACERVO E CURADORIA VICE-PRESIDENTE

VALÉRIA PICCOLI

PEDRO BOHOMOLETZ DE ABREU DALLARI

NÚCLEO ACERVO MUSEOLÓGICO

COORDENADORA DA UNIDADE DE

FERNANDA D’AGOSTINO DIAS

PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO

CONSELHEIROS

GABRIELA R. PESSOA DE OLIVEIRA

MUSEOLÓGICO

ANA CARMEN RIVABEN LONGOBARDI

INDRANI TACCARI

CARLOS JEREISSATI

KEIKO NISHIE

CONSELHO DE ORIENTAÇÃO ARTÍSTICA DA

CARLOS WENDEL DE MAGALHÃES

RAFAEL GUARDA LATERÇA

PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO

DARLAN DOS SANTOS LOPES —

NÚCLEO DE ACERVO BIBLIOGRÁFICO E

LETÍCIA COELHO SQUEFF

REPRESENTANTE DOS FUNCIONÁRIOS

ARQUIVÍSTICO

MARIA STELLA TEIXEIRA DE BARROS

MANOEL ANDRADE REBELLO NETO

ISABEL CRISTINA AYRES DA SILVA MARINGELLI

MARTA VIEIRA BOGÉA

ROBERTO BIELAWSKI

CLEBER SILVA RAMOS

PAULO AUGUSTO PASTA

SÉRGIO FINGERMANN

DIEGO SILVA

PAULO PORTELLA FILHO

SÉRGIO SISTER

ELIANE BARBOSA LOPES

SERGIO FINGERMANN

TAIS GASPARIAN

GIOVANA BERALDI FAVIANO

TADEU CHIARELLI

LEANDRO ANTUNES ARAUJO NÚCLEO DE PESQUISA E CURADORIA

CONSELHO DE ORIENTAÇÃO CULTURAL DO

CONSELHO FISCAL

MEMORIAL DA RESISTÊNCIA DE SÃO PAULO

FERNANDA MENDONÇA PITTA GIANCARLO HANNUD

ANTÔNIO VISCONTI

PRESIDENTE

JOSÉ AUGUSTO PEREIRA RIBEIRO

CARLA JULIANA PISSINATTI BORGES

OSVALDO ROBERTO NIETO

JULIA SOUZA AYERBE

LAURO PEREIRA ÁVILA

PEDRO NERY

MARIA CRISTINA OLIVEIRA BRUNO

CONSELHEIRO

REGINA TEIXEIRA DE BARROS

MARLON WEICHERT

SILVIO BARBOSA BENTES

TAISA PALHARES NÚCLEO DE CONSERVAÇÃO E RESTAURO

MAURICE POLITI RENAN HONÓRIO QUINALHA

DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO

VALÉRIA DE MENDONÇA

MARCELO COSTA DANTAS

TEODORA CAMARGO CARNEIRO ANA LÚCIA NAKANDAKARE

ASSOCIAÇÃO PINACOTECA ARTE E

DIRETOR TÉCNICO

ANTONIO CARLOS TIMACO

CULTURA — APAC

DOMINGOS TADEU CHIARELLI

CAMILLA VITTI MARIANO

ORGANIZAÇÃO SOCIAL DE CULTURA

HENRIQUE FRANCISCO COSTA FILHO DIRETOR DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS

MANUEL LEY RODRIGUEZ

CONSELHO CONSULTIVO

PAULO VICELLI

PRISCILA LEITÃO DENARDI ALEGRE

PRESIDENTE

ASSESSORA PARA ASSUNTOS

CELSO LAFER

INTERNACIONAIS

ÁREA DE AÇÃO EDUCATIVA

NATASHA BARZAGHI GEENEN

MILA MILENE CHIOVATTO

TATIANA RUSSO DOS REIS

CONSELHEIROS

GABRIELA AIDAR

ALFREDO EGYDIO SETUBAL

ASSESSORA DE DIRETORIA ADMINISTRATIVA

DENYSE EMERICH

BRUNO MUSSATI

FINANCEIRA

ALINE STIVALETTI BARBOSA

DENISE AGUIAR ÁLVAREZ

BIANCA CORAZZA

CARINA DA SILVA LIMA BIANCOLIN

HEITOR SANT’ANA MARTINS

DANIELLE CHRISTINA VARGAS LUZ

HORÁCIO BERNARDES NETO

SECRETÁRIO DE DIRETORIA

DANIELLE RODRIGUES AMARO

JAY KHALIFEH

RENIVALDO NASCIMENTO BRITO

DANILO PERA PEREIRA

JOÃO CARLOS DE FIGUEIREDO FERRAZ

DEBORAH FROHLICH CORTEZ

JULIO ROBERTO MAGNUS LANDMANN

RELAÇÕES INSTITUCIONAIS

ELIDAYANA DA SILVA ALEXANDRINO

LUIZ OLAVO BAPTISTA

JULIA PUGLIA BERGAMASCO

GABRIELA DA CONCEIÇÃO SILVA

MARGUERITE NADEIJDA NELLY H. M. ETLIN

JULIANA ASMIR

HELOIZA SENSULINI S. OLIVARES

MARIA LUISA DE SOUZA ARANHA MELARAGNO

LARISSA DE CAMARGO GONTSCHAROW

NILO MARCOS MINGRONI CECCO

NÚCLEO DE COMUNICAÇÃO E MARKETING

LEANDRO MENDES DA SILVA

ORANDI MOMESSO

ADRIANA KROHLING KUNSCH

MARGARETE DE OLIVEIRA

RICARDO STEINBRUCH

ELIZABETH ALVES MONTEIRO

MARIA CHRISTINA DA SILVA COSTA

RUY ROBERTO HIRSCHHEIMER

PATRICIA LOPES EWALD

MARIA HELENA MARINHO OLIVEIRA MARIA STELLA DA SILVA


PAULO ROGÉRIO FERNANDES

FERNANDO EDUARDO ALMEIDA DAVID

ANDRÉ LUIZ MELLO PEIXOTO

RAFAELLA DE CASTRO FUSARO

FRANCISCO FRANCELI PEREIRA

CÍCERO TEIXEIRA PEIXOTO

RENATA CORDEIRO DOS SANTOS

GRAZIELLE ALVES BASTOS

FRANCISCO ROZENILSON FERREIRA

RENATO AKIO DA CRUZ YAMAGUCHI

IONE SALES

HAMILTON MANOEL DE JESUS

SABRINA DENISE RIBEIRO

ISAIAS JOSÉ DOS SANTOS

JONATAS SANTANA BIET

TALITA DAYANE DEMICHILI

JOANNA ANGÉLICA S. MARCARIN

JOSÉ MARIA ALVES LIMA

TELMA CRISTINA MOSKEN

JOELMA GUILHERME SILVA

MARCOS CARDOSO

VALDIR ALEXANDRE DE OLIVEIRA

JOELMA PAES DE SOUSA

MAURICIO DA SILVA APPOLINARIO SERRANO

VERA LUCIA CARDOSO FARINHA

JOELMA RAMOS DE OLIVEIRA SOBRINHO

NOEL AMÉRICO DOS SANTOS

WANDERSON GOMES

JOELMA SILVA DE OLIVEIRA

PAULO CESAR PEREIRA DUARTE DE CARVALHO

JOSÉ CLEOLENILDO DA SILVA

RAIMUNDO PEREIRA DA SILVA

ÁREA DE PROJETOS CULTURAIS

JUCELI DA CUNHA FERREIRA ALVES

WILSON DA SILVA

FLAVIA OLIVEIRA LEGNAIOLI

LÍDIA DE SOUZA AMORIM

ANGELA ALEM GENNARI

LUCIANA MARIA PATRIOTA

NÚCLEO DE TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO

ANDRÉ LUÍS DE OLIVEIRA

LUCIMARA CRISTIANE VIEIRA SILVA

ROBSON SERAFIM VALERO

ELENICE DOS SANTOS LOURENÇO

LUIZ HENRIQUE DA SILVA

RODRIGO JUSTINO DA SILVA

JAMERSON CORREIA DE LIMA

LURDES IRENE DA COSTA

THIAGO NASCIMENTO DOS ANJOS

MARISA BUENO E SOUZA

MÁRCIA MENDES VIANA

MIRIAN SASAKI

MARCILENE MARIA DA SILVA MARIA ALDENICE DA SILVA SANTOS

NÚCLEO DE SEGURANÇA PATRIMONIAL

ÁREA FINANCEIRA

MARIA APARECIA S. GONÇALVES

CLÁUDIO CECÍLIO DE OLIVEIRA

MARILTON RODRIGUES DA SILVA

MARIA EVALDINA N. DE SOUSA

ERICK URIAS DE MOURA

RENATA APARECIDA SILVA DE MELO

MARIA HILDA VIEIRA RODRIGUES

JANAINA FERREIRA DE S. CORTES

ANA PAULA ALENCAR QUARESMA

MARIA JOSÉ DA SILVA BALBINO

JOSÉ RUBENS DE LIMA JUNIOR

CÍCERO FERNANDES DA SILVA

MARIA JOSÉ DE ANDRADE SANTANA

KARINA INÁCIO DA SILVA

EDUARDO OUBEUR GOUVEIA

MARIA SANDRA B. DE MELO SOUZA

LEANDRO APARECIDO SIRES DOS SANTOS

FERNANDO HENRIQUE LAU

MARIANA GOMES DE OLIVEIRA PENHA

MARCELO NEVES LOURENÇO

ISAAC AARÃO PEREIRA DA SILVA

MARTA CONCEIÇÃO AUGUSTO

PAULO PEREIRA DA SILVA

NICEIA DE MORAES

TARCISIO DA SILVA

ÁREA DE RECURSOS HUMANOS E

PATRÍCIA APARECIDA BATISTA DE SOUZA

ATENDIMENTO AO PÚBLICO

PAULO ALEXANDRE DE MORAES XAVIER

MEMORIAL DA RESISTÊNCIA

MARCIA REGINA GUIOTE BUENO

PAULO HENRIQUE BRISOLA DE FARIAS

KÁTIA REGINA FELIPINI NEVES

GILSON PIMENTA DE CARVALHO

PAULO NEI PRATA FERNANDES

AURELI ALVES DE ALCANTARA

JULIANA IVO GARCIA DA SILVEIRA

PAULO RODRIGUES PEREIRA

ALESSANDRA SANTIAGO DA SILVA

EDNALVA SOARES B. JANEIRO0

RAFAEL LEMOS SOUSA NERY DE CASTRO

DANIEL AUGUSTO BERTHO GONZALES

PEDRO BISPO SAMPAIO

RAQUEL DA SILVA

DANILO DA COSTA MORCELLI

REGIANE GOMES DA SILVA VIEIRA

REGIANE ALVES DA ROSA

HANNAH CAROLINA SILVA FERREIRA

ADEMILTON LARANJEIRAS SILVA

REGIANE GOMES DA SILVA VIEIRA

JULIA CERQUEIRA GUMIERI

ALCIDES SANTOS

RODRIGO DO NASCIMENTO

JULIANA ANTUNES MENDES

ALINE SILVA MATOS

ROSEMEIRE DOS SANTOS CEZAR

RENAN RIBEIRO BELTRAME

ANA LÚCIA ASTOLPHO

ROSILDA SANTANA DE SOUZA

ANTONIO RODRIGUES DE ALMEIDA JUNIOR

ROSIMEIRE DOS SANTOS FIGUEIREDO

CELY AUREA DE LIMA CEZAR

ROZEANE MATIAS DOS SANTOS

CLAUDIA APARECIDA DOS SANTOS

RUBENIA MARIA CARMONA

CONCELI ROCHA DE SOUZA

SHEILA DE SIQUEIRA CARDOSO

DANIEL BARBOSA DE LIMA

SIMONE ANTUNES DOS SANTOS

DANIELE APARECIDA R. DE CAMPOS

SIMONE SOUZA DE ANDRADE

DANILO BATISTA DE OLIVEIRA SANTOS

SORAYA CORREA DA ROCHA PEQUENO

DANILO DA SILVA JARDIM

VANESSA CAROLINE MARQUES FREIRE

DANILO RODRIGUES DOS SANTOS

VERA LUCIA DE ALMEIDA SILVA

DARIL ALEXANDRE COSTA

VICTOR ONODERA ISRAEL

DARLAN DOS SANTOS LOPES

VIVIAN MIRANDA

DAVID ATILA DE OLIVEIRA

VIVIANE PALOMO DOS SANTOS

DENISE CRISTINA M. DE OLIVEIRA

WILLDES MANOEL DA SILVA

ELIDE DE SOUZA REIS ELIZANGELA HENRIQUE DA SILVA

ÁREA DE INFRAESTRUTURA

EMANUELLE RODRIGUES DE CASTRO

ERIC BRAGA LEISTER

FABIANA BORGES DOS SANTOS

FLÁVIO DA SILVA PIRES

FABIANE CAVALCANTE TEIXEIRA

HIROMU KINOSHITA

FABIO LAZARINI

GILBERTO OLIVEIRA CORTES


EXPOSIÇÃO

AGRADECIMENTOS

CURADORIA

ANDRÉ MILLAN

RODRIGO NAVES

ARY PEREZ GABRIELA MOTTA

COORDENAÇÃO CURATORIAL

GLÓRIA FERREIRA

TAISA PALHARES

IRENE DOS ANJOS DE SOUZA MAROUÇO

ASSISTÊNCIA

IVO MESQUITA

DERECK MAROUÇO

JUSTO WERLANG MARCELO MATTOS ARAUJO

EXPOGRAFIA E MONTAGEM

MARCOS HOOTZ

ÁREA DE INFRAESTRUTURA DA

RENATA NANTES

PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO

RONALDO BRITO

ARY PEREZ (VI AMÉRICA COM OS OLHOS D'ELE)

SOCORRO DE ANDRADE LIMA VANDERLEI LOPES

PRODUÇÃO

E TODOS OS COLECIONADORES E

ÁREA DE PROJETOS CULTURAIS DA

INSTITUIÇÕES QUE GENTILMENTE

PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO

EMPRESTARAM OBRAS PARA EXPOSIÇÃO.

COMUNICAÇÃO VISUAL CLAUDIO FILUS ZOL DESIGN CATÁLOGO EDIÇÃO

NELSON FELIX : OOCO / CURADORIA RODRIGO NAVES;

JÚLIA AYERBE

TEXTOS RODRIGO NAVES, TAISA PALHARES E FRANCESCO

TAISA PALHARES

PERROTA-BOSCH. SÃO PAULO: PINACOTECA DO ESTADO, 2015.

ASSISTÊNCIA

EXPOSIÇÃO REALIZADA NA ESTAÇÃO PINACOTECA,

LUIZ VIEIRA

DE 18 DE ABRIL A 19 DE JULHO DE 2015. ISBN 978-85-8256-056-3

PROJETO GRÁFICO

1. FELIX, NELSON, 1954- 2. DESENHO BRASILEIRO. 3.

LUCIANA FACCHINI

ESCULTURA BRASILEIRA. 4. INSTALAÇÃO (OBRAS VISUAIS)

ASSISTÊNCIA

– BRASIL. 5. FOTOGRAFIA – BRASIL. 6. PINACOTECA DO

JULIA CONTREIRAS

ESTADO DE SÃO PAULO. I. CURADORIA. II. TEXTOS.

REVISÃO OSVALDO TAGLIAVINI PRODUÇÃO GRÁFICA MARCIA SIGNORINI IMPRESSÃO IPSIS GRÁFICA E EDITORA REPRODUÇÕES FOTOGRÁFICAS EVERTON BALLARDIN PP. 16, 20, 26-28, 30-33, 36-37, 41, 45-49, 52-53, 55, 58-59, 62-63, 72-73 ISABELLA MATHEUS PP. 8-15, 17, 19, 22-25, 29, 34-35, 38-39, 42-43, 50-51, 56-57, 60-61, 64-67, 69, 70-71

CDD 709.81



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