El Greco Rodrigo Naves
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Nota do autor
Este pequeno livro sobre El Greco foi escrito em 1985. Tinha então 30 anos. A coleção Encanto Radical da Editora Brasiliense buscou com essa série, concebida por Luiz Schwarcz – então o principal assistente de Caio Graco –, produzir livros relevantes por um preço muito acessível, que sem dúvida contribuiu para seu grande sucesso. Para baratear a produção, dispensavam-se as notas de rodapé e outros aparatos acadêmicos. Passávamos por um período histórico carregado de esperanças – a queda da ditadura militar – e não era a hora de pensar em pequenos detalhes. Passaram-se 32 anos, poucas daquelas esperanças se cumpriram. E acredito que um novo momento histórico, talvez de magnitude incalculável, parece estar se armando. O velho El Greco – um pintor irregular que teve momentos brilhantes e inovadores – não tem nada a ver com isso. Resolvi tirar o livro da cova porque ainda vejo pertinência em muita coisa aí escrita. Tentei com a grande ajuda de Dulce Castellar e Luísa Amoroso recuperar as citações de que já havia me desfeito. Nem todas foram recuperadas, mas acredito que não farão muita falta. Rodrigo Naves
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Índice
introdução
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Capítulo 1
O olho de cristal
10
Capítulo 2
O fim das metamorfoses
34
Capítulo 3
A percepção problemática
64
Capítulo 4
O místico e o intelectual
86
Cronologia
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Indicações para leitura
104
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ร memรณria de Dagoberto Naves e Karl Koehler Para a Thereza
O sol não é os raios dele – é o fogo da bola. Guimarães Rosa
Introdução
É curiosa a sorte reservada a alguns dos maiores artistas deste e de outros séculos. Parece que a tradição com a qual se bateram na busca de novas formas e imagens insiste em refluir sobre suas obras, depositando sobre elas todo tipo de resíduos. Do mesmo modo que certos objetos lançados ao mar, também os trabalhos destes artistas vão recebendo depósitos que aos poucos os desfiguram. São antigas leituras que se cristalizam, temas que desgarram, opiniões que se sedimentam, aspectos biográficos que tendem a se sobrepor a telas e esculturas. Surgem então as musculaturas contorcidas de Michelangelo, a luz de Rembrandt, as maçãs de Cézanne, a loucura de Van Gogh, as garrafas de Morandi, as manchas de Pollock. Com o tempo torna-se praticamente impossível apreciar aquilo que eles nos queriam fazer ver. El Greco não escapou a esse destino. Ao contrário, poucos pintores experimentaram um processo tão sólido de mistificação. Tanto sua personalidade quanto seus quadros ganharam um poder evocativo que acabou relegando sua pintura a um plano secundário. Ao longo penedo de esquecimento de sua obra — quase três séculos — sucedeu um alvoroço de interpretações que fizeram dele o legítimo precursor das mais opostas ideias e movimentos. Hoje em dia, é difícil olhá-lo 6
sem a intermediação de um recorrente misticismo, ora a serviço da subjetividade laica, ora às voltas com revelações e transes religiosos. Também por conta desta interpretação, El Greco acabou sendo eleito o pintor da dilaceração e da espiritualização da matéria. As deformações e tensões presentes em suas telas já foram comparadas a tantas coisas que resta pouco espaço a novas metáforas nos textos que virão. Já foram chamas, lavas, sombras projetadas, serpentes, raios de luz, água sagrada, mandrágoras, vísceras. Raramente foram pintura. Várias vezes El Greco esteve às raias da loucura. Já foi astigmata, visionário, estrábico. E autor de impregnantes olhos esgazeados. Seria pretensão querer resgatar, a esta altura, uma suposta pureza da obra de El Greco. Mas se a história inevitavelmente constrói uma lógica estrita em que as produções mais díspares passam a fazer sentido — pela criação de uma sequência pacificante e pela consagração de certas leituras —, é também no seu interior que se podem evidenciar as mudanças e inovações ocorridas na arte. Este ensaio procura mostrar os traços que diferenciam a pintura de El Greco em meio à incomparável produção que caracterizou o final do Renascimento e o Maneirismo. Há nela uma radicalidade de pensamento poucas vezes alcan7
çada por outros artistas. Desde já, peço a compreensão do leitor para eventuais exageros que possa cometer. É que às vezes, por simples admiração, acabamos por fixar mais uma concha na velha garrafa jogada ao mar. Ao querer analisar a obra de El Greco a primeira dificuldade que se apresenta é justamente encontrar um modo de entendê-la como pintura: afastando-se tanto de uma visão meramente temática ou filológica quanto de uma crítica que se limita a parafrasear os trabalhos de arte num tom poético de gosto duvidoso — duas vertentes em que se divide grande parte dos textos sobre El Greco. Acrescente-se a isso a escassez de seus dados biográficos e de concreto só nos restam suas obras e os vínculos com seu tempo. É desnecessário dizer — até mesmo pelo caráter desta coleção — que este trabalho não tem a menor intenção de ser um estudo erudito. Ele é norteado por algumas questões básicas que, tenho a impressão, não receberam dos estudiosos toda a atenção que mereciam. Mas sobretudo é um texto realizado no Brasil — e isto implica algumas particularidades que vão além da extrema dificuldade prática em encontrar material e orientação que ajudem a desenvolver questões nesta área. Talvez por herança lusitana — à exceção do pintor quatrocentista 8
Nuno Gonçalves, não se tem notícia de grandes pintores, escultores ou críticos de arte portugueses — a situação das artes e da crítica no Brasil ressente-se do peso de uma tradição predominantemente literária. Como em todo exercício pouco familiar, há momentos em que fazemos um esforço exagerado em função do peso a ser vencido. Noutros, ao contrário, somos surpreendidos por uma pressão inesperada. Sempre há algo de ridículo nisto. Paciência.
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capítulo 1
O olho de cristal
Em uma de suas Novelas Exemplares — O Licenciado Vidriera —, Cervantes conta as aventuras de um jovem humilde, Tomás Rodaja, que, ajudado por dois aristocratas, inicia os estudos na Universidade de Salamanca, licenciando-se em Leis. Certo dia, chega à cidade uma dama que se apaixona por Tomás e tenta por todos os meios conquistá-lo, sem no entanto obter êxito. Por fim busca conseguir os seus favores por meio de um marmelo enfeitiçado que o coloca de cama por seis longos meses. Restabelecido da doença, ele todavia não recupera o juízo. “Ficou são, e louco da mais estranha loucura que entre as loucuras se tinha visto até então. Imaginou o infeliz que era todo feito de vidro...”1 E temia partir-se ao contato das pessoas, pedindo”... que lhe falassem de longe, porque a todos responderia com mais entendimento, por ser homem de vidro e não de carne: e, por ser de uma matéria tênue e delicada, a alma operava através do vidro com mais prontidão e eficácia do que no corpo, feito de matéria pesada e terrestre”2. Em seu estúdio, El Greco imagina aos poucos um homem oposto, todo “feito de matéria pesada e terrestre”3. Contemporâneos, El Greco (1541-1614) e Cervantes (1547-1616), por caminhos aparentemente divergentes, realizam
1 CERVANTES, Miguel
de. Novelas Exemplares. Editorial Bruguera, 1972, p. 308 2 CERVANTES, Miguel de. Op. Cit. p. 309
3 CERVANTES, Miguel de. Op. Cit. p. 309
10
4 CHASTEL, André. Mar-
sile Ficin et L’art. Geneve: Libraire Droz, 1975, p. 87 11
um movimento semelhante de revisão e mudança de traços fundamentais do ideário de seu tempo. Podem ser muitas as interpretações desta novela e da obra de Cervantes e da de El Greco. Uma no entanto parece ganhar uma dimensão tão ampla, que faz da ironia de Cervantes e da tragédia difusa de El Greco verdadeiras críticas de um espírito de época. Embora presente em diversos momentos da história das ideias, a contraposição entre o aspecto diáfano da alma e o caráter turvo e mundano do corpo tem uma importância decisiva no Renascimento. Não tanto a oposição corpo-alma, mas sobretudo um certo anseio de suprimir a opacidade do mundo em troca da conquista de uma realidade cristalina. Quando Marsilio Ficino (1433-1499) — a figura mais importante da Academia de Careggi, pólo central do neoplatonismo florentino, então uma das filosofias dominantes — escreve que “a beleza do corpo não consiste na sombra da matéria, mas na claridade e na graça da forma, não na massa obscura, mas em uma espécie de harmonia luminosa...”4, não é outra a sua preocupação. A sapiência de Tomás Rodaja decorre então da perfeita adequação aos exercícios do entendimento. Ao eliminar os obstáculos colocados pelo corpo ele se converte na própria essência do real,
e dessa comunhão surge sua intimidade com as coisas. Mas também daí decorre sua loucura. E como se a interioridade extrema propiciada por naturezas tão semelhantes terminasse produzindo uma fusão irreversível, uma indefinição da mesma ordem da demência. Por sua vez, os objetos deveriam livrar-se de sua brutalidade. A presença excessiva proporcionada por manifestações desengonçadas e balbuciantes irá solicitar a atribuição de significado aos seres. Para o pensamento da época — contra o qual se voltam tanto Cervantes quanto El Greco — , a criação de um universo transparente está estritamente ligada a uma indagação poética da realidade. De certo modo, a desmaterialização das coisas é obtida por meio de sua conversão em imagens metafóricas. Saavedra Fajardo, pensador espanhol seiscentista, irá escrever: “Todas as coisas são folhas deste grande livro do mundo, obra da natureza, onde a divina Sabedoria escreveu todas as ciências para que nos ensinassem e conduzissem a trabalhar”. Mas a resistência da natureza sucumbe somente diante daquele que sabe ler, o poeta: “... Orfeu teceu os mistérios de seus dogmas com envoltórios e os dissimulou sob os véus da poesia...”5, anota Pico della Mirandola, pensador italiano quatrocentista e um dos
5 FARJADO, Diego
Saavedra. Antologia del Ensayo. 12
6 FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas – uma arqueologia das
ciências humanas. São paulo: Martins Fontes, 2016, p. 65 13
expoentes do neoplatonismo. Por sua afinidade com a comunicação entre as coisas, o poeta é aquele que, de dentro da natureza, a encanta, transformando-a em significação. Tomás Rodaja, o licenciado Vidriera, é a exponenciação irônica dessa concepção. Já no Dom Quixote — como bem mostrou Michel Foucault, em As Palavras e as Coisas —, Cervantes tornara problemático aquele mundo cristalino, feito de afinidades e correspondências: “as semelhanças e os signos romperam sua antiga aliança; as similitudes desiludem, descambam em visão e delírio ( ... ) A erudição que lia como um texto único a natureza e os livros é restituída às suas quimeras...”6. Abandonando as operações metafóricas — em que todas as coisas são indícios de outras —, o trabalho com semelhanças, a filosofia se volta paulatinamente para as diferenças e igualdades, concatenadas por um método que as ordena e mede. Astros e planetas, com seus diferentes tamanhos e composições, aos poucos vão perdendo influência sobre os homens e reduzem-se a órbitas, cursos e relações. A astronomia afasta-se da astrologia. As formas, cores e texturas dos objetos veem enfraquecer o poder simbólico que detinham para se transformarem em propriedades físico-químicas. O sujeito do saber, por
seu turno, se recolhe deste mundo horizontal, onde tudo reverbera em tudo, e pergunta-se pelo fundamento do conhecimento. Assim como em Cervantes as palavras tornam-se esquivas e fugidias, sem a antiga adesão às coisas, também o pensamento pergunta por sua origem e validade. Descartes (1596-1650) será o grande pensador desta passagem. Em lugar de instalar-se no cerne da natureza e — dando como pressuposto a inter-relação simbólica de tudo — imantar a afeição entre os elementos, ele negará toda fundamentação que não tenha passado pelo crivo da dúvida metódica e somente colocará em contato o que foi decantado e aproximado por um método de ordem e medida. Exterior ao mundo, o geômetra substitui o poeta. Seria tentador fazer de El Greco uma espécie de Descartes da pintura, momento de inflexão da história da arte em que o próprio ato de pintar estivesse colocado em xeque. De fato, há nos seus quadros uma constante incerteza que facilitaria uma análise voltada para os caminhos de uma pintura permanentemente problematizada, sempre às voltas com os dilemas de sua verdade, e distante da simples tentativa de reprodução fiel da realidade. É a impressão que fica quando lemos os comentários de Francisco Pacheco (1564-1654) sobre El 14
7 PACHECO, Francisco. Arte de la Pintura su
antigüedad y grandezas. Librería de D. Leon Pablo Villaverde, p. 78 15
Greco, em seu Arte da Pintura. O pintor e escritor espanhol, um dos poucos contemporâneos a escrever sobre El Greco, conta que ele “frequentemente retomava suas pinturas e as retocava várias vezes para deixar as cores distintas e desunidas, dando-lhes a aparência de cruéis borrões para afetar vigor”7. É como se El Greco quisesse deixar à mostra a trajetória percorrida e de certo modo zombasse de uma arte mimética. Guardadas as devidas proporções, surge aí um outro intelectual do método — preocupado mais com o caminho para pensar os objetos do que com o conhecimento imediato deles — e novamente a comparação com Descartes. No entanto, e não só por força da atividade artística e do envolvimento inexorável com o sensível, a comparação não vinga. Em El Greco a dúvida — que em Descartes alcança uma verdade — não cessa. A oposição. à ideia de um mundo transparente, organizado em torno de relações de simpatia entre coisas semelhantes elegível em sua simbologia, não se contenta com a criação de outro universo cristalino, regido pelos instrumentos do método e da análise. Observemos com atenção o quadro Cristo na Cruz com Paisagem (circa 1605-1610, Museu de Arte de Cleveland). Por que a composição não se entrega ao rigor
dessa linha que corta a tela de alto a baixo, de um lado a outro? Porque todos os outros elementos conspiram contra a redução do espaço à simplicidade de duas linhas de força. A madeira da cruz, indecisa, ora se apresenta como matéria bruta, ora como pura forma. Em vez de reinar sobre o espaço do quadro, a cruz é submetida a um jogo de forças que domina a cena. Ao fim prevalece uma atmosfera indefinida em que as formas não alcançam uma decantação rigorosa. Não é à toa que a cruz não é visível em toda a extensão e que um certo monocromatismo é dominante. A distorção da figura de Cristo e o aspecto corpóreo das nuvens são mais que um simples recurso de expressividade. El Greco lida com uma matéria que reluta em galvanizar-se numa forma permanente e que, por ser matéria, pode-se sujeitar a todo tipo de torções, sem todavia aceitar um caráter volátil. É essa concepção de matéria — algo sempre residual, que não se converte totalmente em significação — que em grande parte distingue a obra de El Greco dos antecessores. Como o pensamento da época, também a pintura dos séculos XV e XVI se baseia numa noção de transparência. No conhecido ensaio A Perspectiva como Forma Simbólica, Erwin Panofsky mostra que com a perspectiva lia superfície
El Greco Christ on a cross Espanha, 1610
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material pictórica ou em relevo, sobre a qual aparecem as formas das diversas figuras ou coisas desenhadas ou fixadas plasticamente, é negada como tal”. Leon Battista Alberti (1404-1519), teórico italiano do Renascimento, se refere às obras perspectivas como “janelas” e Leonardo da Vinci (1452-1519) compara-as a “paredes de vidro”. Em todas essas afirmações a tela perde a consistência para se transformar no resultado de uma projeção. Nela, o real se condensa. Com ela termina por se confundir. Seriam no entanto necessários mais alguns movimentos para que a noção de transparência impregnasse totalmente a arte. Além da profundidade permitida pela perspectiva — por meio da qual se pode olhar através do quadro —, foi preciso que elementos constituintes da pintura sofressem um processo de recalque. Foi preciso que passassem despercebidos. A tinta, a tela e sobretudo o pincel são pensados como ausência. Quando Michelangelo (1475-1564) revela um relativo desprezo pela pintura, o motivo que emprega para se justificar é significativo: o pintor acrescenta matéria à tela. Pela mesma razão ele negava o nome de escultura a toda obra realizada “per via di porre” (isto é, em que se punha algo — obras que, após serem modeladas em barro ou cera, eram fundidas em bronze, por exemplo). 17
Para Michelangelo somente eram dignas deste nome as obras executadas “per forza di levare” (ou seja, em que se retirava algo, esculpindo diretamente no bloco de mármore). Tudo leva a crer que a concretização da perda de presença dos elementos da pintura — o ideal de transparência — exigiu, simultaneamente à invenção da perspectiva, a redução ao mínimo da sua materialidade. Não é só o espaço que adquire uma virtualidade imune a qualquer restrição empírica ou afetiva: uma trama geométrica abstrata onde se pode traçar potencialmente toda e qualquer imagem, mas que no entanto antecede, como possibilidade, os quadros particulares. A própria fatura das obras — e isso pode valer também para a escultura —, isto é, sua textura, o modo de aplicar as cores e combiná-las, deve apresentar um caráter virtual que não evidencie a sua presença. Para isso, foi fundamental que o próprio pincel não deixasse marcas. As cores aparecem sobre a tela, em lugar de serem aplicadas. O crítico italiano contemporâneo Giulio Carlo Argan, na História da Arte Italiana, diz que é inútil interrogar o famoso sorriso da Gioconda para saber que sentimentos percorriam sua alma. Seu prazer advém da condição de “perfeito equilíbrio no mundo natural”8. E essa harmonia,
8 ARGAN, Giulio Carlo.
História da Arte Italiana. São Paulo: Cosac & Naif, 2003. 18
além de ser uma concepção sobre a natureza, determina simultaneamente o estatuto da pintura de Leonardo da Vinci. Ela não se sobrepõe ao mundo. Ao contrário, é uma continuidade dele. Na tela, de maneira sintética, expõe-se a gênese do equilíbrio do mundo. E esse equilíbrio é luz. Mais precisamente, uma gradação de luz. A invenção do sfumato (sombreado) por Da Vinci é presidida por uma necessidade intrínseca do seu raciocínio. É o sombreado que comanda a integração harmônica de todas as partes. O mesmo procedimento seria impensável para El Greco. Que se compare a Gioconda com o retrato de Giacomo Bosio (circa 1610-1614, Fort Worth, Museu de Arte Kimbell). Não é só a ausência de uma paisagem ao fundo que o diferencia da obra-prima de Leonardo. O importante é a mudança operada no conceito mesmo de natureza. Logo à primeira vista sobressai a falta de integração entre figura e fundo. Em vez de uni-las por meio de uma combinação tonal, El Greco os separa pela criação de duas texturas distintas: o marrom, antes de ser uma cor, é uma espessura determinada, sem termos de comparação com a trama do negro. Não tendo uma consistência neutra que permita o surgimento, a partir de si, de qualquer tonalidade, o marrom do 19
fundo ostenta uma corporeidade que o distingue totalmente do negro dos trajes do clérigo italiano. A luz, ao formar um halo em volta da figura de Bosio, acentua uma distância, em lugar de fazer uma transição luminosa. Mas são sobretudo as pinceladas, seus diversos ritmos e intensidades, que imprimem caráter corpóreo à tela. Desvencilhadas da antiga obrigação de compor um todo harmônico e, por esse motivo, de esconder as próprias pegadas, elas adquirem uma singularidade extrema. Como já não existe um roteiro que as norteie e dissolva, as pinceladas se sobrepõem, hesitam, movimentam-se em todas as direções, formam camadas de diferentes densidades. O crítico inglês Roger Fry, na coletânea de artigos Visão e Desenho, comenta magnificamente este traço fundamental de El Greco: “Desde que o olho possa seguir todos os golpes do pincel, a mente poderá recuperar os gestos do artista e quase refazer os movimentos de seu espírito. Pois nunca o trabalho foi mais perfeitamente transparente à ideia, nunca a intenção de um artista foi mais deliberada e precisamente registrada”9. Só que em El Greco a ideia que preside as telas é também trabalho e não a limpidez do conceito, como a passagem de Fry poderia sugerir. Mesmo o brilho — o lugar onde a luz reflete
9 FRY, Roger. Vision and Design. Londres: Chatto & Windus, p. 139 20
— perde a função de sublimar os materiais que o abrigam. As estrias brancas são pintadas por cima das outras cores, sem ser uma versão esmaecida delas. Em meio a esse ambiente espesso, Giacomo Bosio, ao contrário da Monna Lisa del Giocondo, parece prensado entre superfícies movediças. A natureza, a atmosfera mostram-se resistentes, radicalmente opostas à situação amena dos quadros de Leonardo da Vinci. A leveza se converte em peso e o movimento da tela conduz a vista para as mãos de Bosio. No primeiro plano, elas parecem afundar sobre o livro, e no entanto mal pousam sobre ele. Será interessante observar também um dos raros retratos de El Greco em que existe uma paisagem ao fundo. No Giulio Clovio (circa 1570, Museu e Galeria Nacional de Capodimonte, Nápoles), à direita, uma janela deixa entrever um pedaço de céu e algumas árvores. O simples enquadramento deste fragmento de natureza — interrompido abruptamente pelas margens da tela — indica uma mudança em relação à concepção de Leonardo. O que era exuberante e totalizador agora surge a distância e carente dos poderes de síntese. O que era continuidade — arte e natureza — tem agora um aspecto fragmentário. A claridade que invade o ambiente, a luz que entra pela 21
janela, limita-se a evidenciar um artifício: o livro ilustrado por Clovio, amigo e protetor de Greco em Roma e um dos maiores miniaturistas de seu tempo. A arte não é mais um momento da luz do mundo, e sim um poder à parte, capaz inclusive de mutilar o viço da natureza. Esta janela de El Greco tem ainda um traço sugestivo. De certo modo, ela é um comentário irônico sobre a definição da perspectiva como “janela”. Aqui no entanto os termos se invertem. Ao invés de ser o lugar por excelência da transparência, a abertura — pintada com movimentos rápidos e sem nenhuma preocupação de verossimilhança, quase um efeito cênico — lembra mais um quadro pendurado na parede. O quadro, aquele lugar virtual que multiplicava o alcance do olhar, fazendo-o ver paisagens longínquas através
El Greco Retrato Giulio Clovio Roma, 1572 Museu de Capodimonte
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El Greco Portrait of Dr. Francisco de Pisa c. 1610–14 Kimbell Art Museum
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da espessura das paredes, transforma-se num empecilho para a visão. O ideal de transparência com que El Greco se bate tem contudo algumas peculiaridades a mais. Em seus escritos, várias vezes Leonardo da Vinci se refere ao olho como “janela da alma”, o que cria uma espécie de identidade entre o olho e a pintura. Em outra passagem diz que “... por ele (olho) a alma se contenta com sua prisão humana, que sem ele seria um tormento...”. O olho é a única parte do corpo que mantém uma afinidade substancial com a alma. No elogio constante do olho — o mais importante dos órgãos dos sentidos —, Da Vinci faz dele uma matéria ambígua que tem o condão de sublimar-se, situada no limite difuso entre a matéria e o espírito. Mais ainda, o olho é o único poder capaz de transubstanciar matéria em luz.
De fato, o ideal de transparência que se depreende da pintura da época tem a particularidade de aproximar-se do olho. Como ele, o quadro converte o mundo em luminosidade. Como ele, deve absterse de expor sua presença física. Para o pensamento renascentista a mesma imagem é uma constante. É o que mostra Sérgio Buarque de Holanda na Visão do Paraíso, ao comentar o pensamento de Leão Hebreu. Para o humanista português, o meio de todos os sentidos (a carne, no tato, o vapor, no odor, a umidade para o paladar, e o ar em movimento, na audição) está comprometido com o “mundo inferior”. “Mas o meio da vista é o lúcido diáfano espiritual, isto é, ar iluminado pela luz celeste, que excede em beleza a todas as outras partes do mundo, como o olho excede todas as mais partes do corpo animal”10 (Leão Hebreu). Nas palavras de Marsilio Ficino, o olho e concebido como o centro do universo: “Deus é este olho pelo qual veem todos os olhos e, segundo a palavra de Orfeu, o olho que vê tudo em todos os objetos, e verdadeiramente percebe todas as coisas nele mesmo”11. Além de transparente, este olho é pura interioridade e portanto nada lhe é exterior. Voraz, ele tem o poder de transformar tudo em sua substância. Portanto, não é de estranhar que, à medida
10 HOLANDA, Sergio
Buarque de. Visão do Paraíso. Brasiliense, 1992, p. 277. 11 CHASTEL, André. Op. Cit. p. 83.
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que na pintura começa a desenhar-se uma nova concepção de mundo, imediatamente alguns defeitos da visão sejam associados aos artistas que a realizam. É o que acontece, por exemplo, com o Tiziano (circa 1488-1576) da maturidade. Vários comentadores falam de um enfraquecimento de sua vista nos últimos anos de vida, outros mencionam mesmo princípios de cegueira. O assunto é controverso. No entanto, afora a discussão em torno da saúde dos olhos de Tiziano, alguma coisa nas obras derradeiras parece solicitar o recurso a este tipo de argumento. De fato, quadros como o Auto-Retrato (pintado por volta de 1570) e Cristo Coroado de Espinhos (circa 1570), ambos executados nos últimos dez anos da vida de Tiziano, possuem uma textura que contraria tudo que tinha sido feito até então. As cores, mais que uma combinação cromática, adquirem uma plasticidade desconhecida em outros pintores. O pincel já não consegue realizar o duplo movimento que consistia em espalhar a tinta e, ao mesmo tempo, esconder seus rastros. E não deixa de ser sintomático o fato de Tiziano muitas vezes usar os dedos para pintar e empregar telas com uma trama cada vez mais larga. A tão decantada luz de Tiziano não funciona como um elemento que coloque em suspensão a solidez dos objetos, desintegrando-os 25
em infinitas partículas. Ela aponta antes uma certa resistência da atmosfera — arrasta-se com uma dificuldade elástica, sem um meio que a multiplique. El Greco também foi contemplado com diagnósticos semelhantes. O historiador alemão Karl Justi credita as peculiaridades de sua arte à “enfermidade do órgão da visão”. Outros chegam a conclusões mais brandas: astigmatismo e estrabismo do olho direito. Para os oftalmólogos German Beritens e Goldschmidt e para o psicólogo David Katz, todos deste século, estes problemas visuais explicariam as deformações de El Greco e seu fraco pelas elipses. O doutor Beritens chegou ao ponto de “corrigir” telas de El Greco por meio de lentes adaptadas a câmaras fotográficas, com a intenção de comprovar suas teses. Numa conferência o oftalmólogo espanhol explica que até os 30 anos El Greco ainda consegue pintar novamente, superando seus defeitos. Com o tempo, porém, diz German Beritens, o problema se agrava e os quadros lembram “fotografias fora de foco. É a época em que não se veem mais que manchas, e manchas deixa em suas telas. Para ele desapareceram as meias-tintas; por isso aparecem as manchas sem se fundir: pinta verdadeiramente por impressão”12. É realmente espantoso como homens do século XX adotem,
12 BERITENS, Cesar. Impressionismo. In LÓPEZ, Manuel Villegas (org.) El Greco (Antologia de textos em torno a su vida y obra). Madri: Taurus, 1960, p. 249 26
sem nenhuma alteração, pontos de vista renascentistas e praticamente repitam observações feitas há séculos, como a de Pacheco, há pouco citada. E por que recorrente uso de defeitos da visão para explicar determinadas obras? Ora, como vimos, o ideal de transparência acabava transformando o mundo num olho que continha em si todo o conjunto possível de imagens. Plenamente diáfano, esse olho de cristal identificava-se, em última análise com o curso da visão, com o caminho que é “percorrido” pela luz até sensibilizar a retina. Um olho saudável é aquele que rigorosamente não se vê, ou seja, nada no seu trajeto o força a voltar-se sobre si mesmo. Para o ideário renascentista — ao menos em boa parte — o olho não era propriamente sensibilizado pela luz. Era, sim, um jato luminoso capaz de converter as coisas à sua substância. Quando essa capacidade momentaneamente cessa, surgem coágulos que “não se fundem”, manchas que se furtam às meias-tintas. Assim nada mais compreensível que a menção das deficiências visuais. Apenas um olhar que se turva adquire o poder de enxergar-se a si mesmo. No seu interior formam-se pontos que são mais do que luz. Do mesmo modo que as pinceladas de El Greco são mais que simples continuação de um mundo cristalino. Ou então, 27
quando ele deforma as figuras, cria dentro do olho regiões de diferentes índices de refração (o astigmatismo) que necessariamente correspondem a materiais diversos... num órgão que deveria ser completamente homogêneo. Mas a doença era hereditária. Quando parte de Creta — então uma possessão veneziana, onde nascera em 1541 — com destino a Veneza, por volta de 1567, Domenikos Theotokopoulos, o verdadeiro nome de El Greco, já poderá encontrar todo um processo de transformação na arte local. A luz suave que emanava da obra de Giovanni Bellini (circa 1430-1516) é sucedida por uma nova concepção de composição e forma. Tradicionalmente, a arte veneziana é diferenciada da de Roma ou de Florença por privilegiar a cor, enquanto romanos e florentinos estariam mais preocupados com o apuro do desenho de seus quadros. Além do mais, a influência dos pensadores neoplatônicos, concentrados sobretudo em Florença, era menos intensa em Veneza, onde pontificavam críticos menos afeitos às discussões teóricas, como Aretino, Dolce e Pino. E isso reduzia, aos olhos dos venezianas, o peso daquele ideal de transparência e luminosidade, tão caros aos artistas romanos e florentinos, e quase convertido em método de análise e julgamento 28
no conhecido Vidas dos mais Excelentes Pintores, Escultores e Arquitetos, de Giorgio Vasari (15111574). Importante pintor, arquiteto e historiador da arte, Vasari escreve este seu alentado livro sobretudo para evidenciar a perfeição da obra de Michelangelo. Sobranceiro, o trabalho do Buonarroti parece culminar, ao fim das Vidas, o esforço de todos os artistas anteriores e contemporâneos, colocado como a verdadeira quintessência da arte italiana. É a partir desse ponto de vista que Vasari irá julgar as demais obras, e acompanhando os seus comentários sobre os principais pintores de Veneza à época aproximada da chegada de El Greco à cidade veremos com mais clareza os procedimentos e avaliações da concepção artística então dominante. A primeira crítica que Vasari fará a Giorgione (1478-1510) — com quem Tiziano estudará, abandonando o ateliê de Giovanni Bellini — diz respeito à falta de desenhos preparatórios na execução das telas. Giorgione aplicava as tintas diretamente e com isso, segundo Vasari, não podia saber como cada parte funcionaria no conjunto. O resultado do procedimento de Giorgione não é contudo uma desarmonia das partes. O que os quadros apresentam de novo é uma maneira diferente de articular as diversas porções da compo29
sição. Como não existe um desenho que acomode e tranquilize volumes e superfícies, eles tendem a confundir-se. Nestes pontos, a leve sobreposição das camadas introduz uma distância e uma profundidade de uma ordem que não se podiam vislumbrar com o simples recurso à perspectiva. Muito mais generoso com Tiziano, Vasari não deixa todavia de criticá-lo, desta feita pela boca do próprio Michelangelo: ele e o escultor florentino passeavam por Roma, quando encontram Tiziano. Michelangelo, dirigindo-se ao pintor de Veneza, lamenta a falta de domínio do desenho nos artistas venezianos, embora elogie o colorido de seus quadros. A posição de Vasari no entanto delineia-se mais claramente na passagem em que compara as telas da velhice de Tiziano com as anteriores. E lastima que nas últimas obras Tiziano trabalhe com grandes golpes e largas manchas — ainda que retoque as telas e não dê mostras do esforço realizado — porque, desse modo, elas só podem ser vistas de longe, ao contrário das anteriores, que podiam ser admiradas a qualquer distância. Mas é nos comentários sobre Tintoretto (1518-1594) — ao qual não concede sequer um capítulo à parte em suas Vidas, encaixando-o no item dedicado ao pintor Battista Franco — que 30
13 VASARI, Giorgio. Vida dos Artistas. São Paulo: Martins Fontes, 2011 31
Vasari deixa transparecer nitidamente seus critérios. Parcimonioso nos elogios, depois de chamá -lo de “extravagante e caprichoso”, faz a seguinte observação: “Algumas vezes, ele (Tintoretto) fez passar esboços por obras acabadas, depurados com tanta dificuldade que se podem ver as marcas dos pincéis movidos mais pelo acaso e pelo orgulho do que pelo desenho e pelo juízo”13. E reprova a falta de apuro nos detalhes, a confusão do conjunto e a excessiva rapidez na execução das obras. Em todos os julgamentos — nos quais fica de fora Jacopo Bassano (1510-1592), importante na formação de El Greco e a quem Vasari dedica apenas umas poucas linhas — sobressaem as exigências de nitidez, de harmonia entre as partes e o todo, clareza nos detalhes e, interessante, uma constante preocupação no sentido de que os pintores não deem mostras do esforço realizado na consecução das obras . Até certo ponto, a reivindicação constante da necessidade de desenhos apurados unifica a avaliação de Vasari. É evidente, por outro lado, que a ênfase neste aspecto da pintura revela um desconforto em relação a quaisquer distâncias não-perspectivas existentes no interior dos quadros. Ao defender a precisão dos detalhes e a perfeita integração das partes, Vasari ao mesmo tempo afirma uma visual idade que independe das
coisas vistas, de seu tamanho e nitidez naturais, e do afastamento em relação ao ponto de vista do pintor. Não é à toa que ele recua para olhar as obras do velho Tiziano. É preciso de alguma maneira restituir a definição de contornos que a textura daquelas telas aboliu, dar a todas as coisas ali representadas uma mesma distância visual. Afinal, esses elementos não são vistos por um olho empírico — o do pintor, por exemplo —, mas se condensam no interior de um olho ideal, estranho a distância produzida pela materialidade das coisas. Uma tela pode e deve causar a impressão de profundidade. Para isso inventou-se a perspectiva. Mas uma profundidade rude, provocada por superfícies que se atraem e repelem, quando ufa mão pode assemelhar-se mais a um pedaço de madeira do que ao próprio braço — o que chamei distância —, é praticamente inaceitável para a formação visual de Vasari. Deixemos de lado, por enquanto, seu mau humor frente aos artistas que deixam à mostra o esforço empregado e as marcas do pincel. Já voltaremos ao assunto.
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capítulo 2
O fim das metamorfoses Entre os anos de 1567 e 1570 El Greco permanece em Veneza. A República, outrora tão poderosa, dá claros sinais de declínio. Um tratado com os turcos, em 1540, reduz as colônias no Levante, e portugueses e espanhóis, tendo acesso direto à África e ao Novo Mundo, contribuem para solapar os domínios comerciais de Veneza. Seus governos tornam-se mais e mais autocráticos e o Conselho dos Três Inquisidores empalma o poder quase absolutamente. Culturalmente no entanto Veneza permanece um centro dos mais importantes e é aí que El Greco receberá a formação decisiva para o desenvolvimento de sua arte. Como em outros momentos de sua vida, não se sabe ao certo quando chegou e quando decidiu partir para Roma. Só se tem noticia de um único documento comprovando a estada de El Greco em Veneza, datado de 18 de agosto de 1568 e concernente a alguns desenhos, provavelmente cartográficos, feitos pelo pintor de Creta. Atualmente pode-se afirmar que Domenikos Theotokopoulos, ao deixar a cidade de Cândia — então capital da ilha de Creta, atualmente conhecida como Heraklion —, aos 26 anos, já tinha feito sua iniciação artística na pintura de ícones, na tradição pós-bizantina. Ao chegar a Veneza, já era considerado mestre-pintor. No terceiro capítulo analisaremos as possíveis influências desta 34
14 AZNAR, Jose Camon. El Greco, En Roma. In
LÓPEZ, Manuel Villegas (org.) Op. Cit, p. 73 35
formação no período em que, fixando-se em Toledo, produzirá a parte mais expressiva de sua obra. Em Veneza porém seus rastros se confundem. Até pouco tempo, havia a convicção de que El Greco teria sido discípulo de Tiziano. Numa carta ao cardeal Alessandro Farnese (1520-1589), influente prelado da corte papal, o protetor romano de El Greco, o miniaturista Giulio Clovio, ao solicitar que o pintor cretense fosse acolhido no palácio do cardeal, descreve-o como sendo “um jovem candiota discípulo de Tiziano”14. A partir desse documento, ficou s assente o aprendizado de El Greco. A influência de Tiziano é de fato inegável. Já a estada no seu ateliê é contestada por um dos mais importantes estudiosos contemporâneos da obra de El Greco, o norte-americano Jonathan Brown. Para ele, as circunstâncias do pedido de Clovio forçariam a aproximação com um artista do renome de Tiziano. Em segundo lugar, argumenta, no século XVI a extensão do termo “discípulo” não permite identificá-lo exclusivamente com a acepção “aluno”, podendo significar também “seguidor”. De qualquer modo, El Greco conviveu com um momento de ruptura da arte veneziana e soube tirar o máximo proveito deste ambiente. A progressiva liberação da cor e das formas e os embates com a noção de representação vigente no
Alto Renascimento foram sendo assimilados e as influências de Giorgione, Tiziano, Jacopo Bassano e Tintoretto tornaram-se marcantes e definitivas. Aos poucos El Greco é contagiado pelos “olhos doentios” de Veneza. O El Greco veneziano era todavia um iniciante. Um dos poucos quadros desse período que chegaram até nós — Purificação do Templo (antes de 1570, National Gallery of Art, Washington) — mostra os limites da assimilação ou, melhor, os limites que a assimilação lhe impunha. O cineasta soviético Sergei Eisenstein, em um de seus dois ensaios sobre o pintor, confessa ser esta a única obra de El Greco que lhe desagrada. E mesmo as últimas versões do tema, como a da coleção
El Greco Christ driving the Traders from the Temple c. 1600 National Gallery
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Várez-Fisa (circa 1610-1614), menos comprometidas com uma concepção classicista, lhe parecem tradicionais e distante das inovações que fizeram de El Greco um dos maiores pintores de todos os tempos. Realizado com têmpera sobre madeira — resquícios da pintura bizantina —, o quadro de fato organiza-se de uma maneira quase mecânica. As figuras estão plantadas num espaço indiferente aos movimentos que abriga e se expande ao infinito, alheio à ação do primeiro plano. O gesto trágico de Cristo expulsando os mercadores do templo sucumbe frente à desproporcional idade do espaço, transformado num movimento frouxo e vago. O modelado estritamente linear, submisso ao desenho, de algumas figuras — como a mulher do primeiro plano — não coaduna com a tentativa de criar uma massa em movimento que se oponha à perspectiva que se abre ao fundo, e ao fim o quadro resulta um produto hibrido e irresoluto. Há aí, é certo, sinais do que será a maturidade de Greco, sobretudo no uso das cores. Elas não se norteiam por uma noção de composição, e vivem de contraposições — por exemplo, no uso intuitivo das complementares, no caso o verde e o vermelho. O que sem dúvida distinguirá a obra de Domenikos Theotokopoulos não será o simples aprimoramento das tendências avançadas da pin37
tura veneziana. O caráter um tanto esdrúxulo da Purificação do Templo talvez advenha justamente da dificuldade de encampar um projeto que, na intimidade, é em parte estranho aos desígnios do pintor de Creta. É inegável, por exemplo, a extraordinária ascendência da pintura de Tintoretto sobre El Greco. No pioneiro estudo Sobre El Greco e o Maneirismo (1920), Max Dvorak já assinalara o afastamento de Tintoretto do naturalismo — esta concepção que busca ser tão fiel à “realidade” — nas cores e na composição e o quanto El Greco tirara partido destas inovações. No entanto, como nota Giulio Carlo Argan, o traço inusitado da pintura de Tintoretto nasce de uma radicalização extrema da luminosidade. É por meio dela que consegue ultrapassar a oposição entre sombra e luz e atingir uma intensidade coloristica estranha à cor local. Para obter esses efeitos, porém, ele precisará identificar luz e perspectiva. É a vertiginosa expansão dos raios de luz que irá permitir que as cores escapem à adesão servil aos contornos. Todavia essa velocidade luminosa tem a contrapartida na exacerbação da profundidade dos quadros — pois é preciso criar uma perspectiva acentuada — e num ponto de vista bastante elevado (às vezes quase uma perspectiva cavaleira) e de grande exterioridade em relação ao primeiro plano. 38
Nada disso foi herdado por El Greco. À radicalidade de Tintoretto no trato com a luz — tornando-a presente como materialidade, sem usá-la para acomodar volumes, num jogo de claro-escuro — El Greco acrescentará dúvidas e outras soluções. A pintura veneziana é para ele o indício de uma vasta gama de novas possibilidades. O mundo que a pintura do Renascimento pressupunha e desenvolvia era um mundo contínuo. Quando Vasari demonstra tanta preocupação com o aparecimento das pinceladas de Tintoretto ou com a possível demonstração de esforço no ato de pintar de Tiziano, o que em verdade o obceca é o surgimento de pistas que maculem a placidez de uma realidade que morde a própria cauda — autônoma e autofecundada. A partir de Giorgione essa concepção começa a esfacelar-se e somente com El Greco uma nova direção vai se mostrar verdadeiramente. Não é gratuita a admiração que Velásquez, Goya e Manet, entre outros, nutriam por El Greco. Nem podia ser diferente. Com ele, o olho passa a ter uma espessura e uma reflexividade que serão decisivas para a arte moderna. Para El Greco contudo espessura e reflexividade irão implicar a produção de uma opacidade. Uma parte considerável do pensamento da época — sobretudo aquele mais influente nas 39
artes plásticas, o neoplatonismo renascentista — estava comprometida com uma filosofia da transparência, praticamente concebendo o universo, como já observei, à imagem do olho. Essa noção carregava consigo um conceito particular de origem. Ou melhor, de uma origem entendida como eterna continuidade: uma luz ubíqua que muda de feição por meio de diferentes movimentos e agregações. Em Marsilio Ficino e a Arte, André Chastel escreve que “... é pela luz que se realiza essa inervação do universo material e imaterial; ela lhe dá consistência por suas refrações sucessivas a cada nível do real...”15. Tudo o que existe são diferentes refrações de luz, e há um engendramento narcisista das diversas realidades: “O céu, esposo da terra, não a toca (...) mas a ilumina pelos raios de seus astros, que são como olhos, e com este olhar a fecunda e engendra os seres vivos”16 (Marsilio Ficino). No mundo hierarquizado por gradações de luz, “a beleza é uma espécie de violência feita ao pesadume da matéria; ela é iluminação e metamorfose espiritual do objeto...”17. Na Theologia Platonica, Marsilio Ficino pergunta-se: “O que é uma obra de arte se não o espírito do artista que penetra a matéria bruta?”18. Em resumo: transparência, luz, interioridade e ausência de origem são características funda-
15 CHASTEL, André. Op. Cit. p. 81
16 CHASTEL, André. Op. Cit. p. 42
17 CHASTEL, André. Op. Cit. p. 87
18 FICINO, Marsilio. Platonic Theology.
Harvard University Press. 40
mentais tanto das artes plásticas quanto de parte significativa da filosofia do Alto Renascimento. Em meio a uma névoa espessa, aqui e ali, insinuam-se contornos, despontam formas tímidas, e eles são conduzidos, nomeados, pela mão ou pela palavra do artista. No exato momento em que El Greco torna as pinceladas visíveis, à medida que a fatura dos quadros perde a serenidade do Classicismo e não mais mimetiza aquele mundo luminoso, é também um novo tipo de pensamento que brota. Nesta pintura as coisas deixam de ser diferentes refrações de uma mesma substância. A continuidade luminosa que, em movimentos de condensação e enervação, recortava objetos de uma extensão infinita perde o poder de metamorfose. Todos os seres que, por terem um substrato luminoso comum, mantinham relações inquestionáveis, convertem-se em ilhas à deriva. O problema de El Greco é saber como as coisas podem estar juntas a partir do momento em que adquirem uma solidez tão profunda que as isola entre si. O surgimento das marcas e toques do pincel porém não desperta estas interrogações exclusivamente pelo fato de restituir materialidade às tintas e à tela, transferindo-a às coisas ali representadas. Ao tornar explícito o esforço de pintar, Domenikos Theotokopoulos introduz no 41
íntimo das telas a distância que separa o pintor do suporte sobre o qual trabalha. O quadro, antes um momento da luz onipresente, converte-se em superfície objetiva onde se sobrepõem camadas de cor. O artista agora realmente pinta — e abandona o papel de pastor de luminosidades. E El Greco fazia questão de revelar isso: além do testemunho já citado de Francisco Pacheco — em que ele comentava o empenho do cretense em deixar “as cores distintas e desunidas”19 —, sabe-se que El Greco aplicava camadas desiguais de verniz sobre os quadros, de modo a produzir espessuras diversas. E então, como reunir, numa mesma obra, coisas que se destacam umas das outras devido à saturação e presença das camadas de cor e, consequentemente, devido ao verdadeiro relevo (a outra distância) que se intromete no interior das telas? A primeira resposta de El Greco parece estar por demais comprometida com a tradição. No início deste ensaio, vimos como o pensamento da época norteava-se por relações de semelhança entre os seres, produzindo um saber de ordem poética e metafórica. Num mundo em que “toda a Criação converte-se, por essa forma, num imenso cenário figurativo...”20, uma serpente, por exemplo, remete à circularidade cósmica; Saturno, um planeta pesado, rege os espíritos melancólicos e
19 PACHECO, Francisco.
El Colorido y el Relieve. In LÓPEZ, Manuel Villegas (org.) Op. Cit. p. 16 20 HOLANDA, Sergio Buarque de. Op. Cit. p. 244
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contemplativos; a própria realidade despe-se de sua crueza selvagem para apresentar-se como um livro decifrável aos olhos dos que sabem ler suas correspondências. El Greco irá criar uma ponte entre as coisas por meio da associação de texturas. Não se trata mais de procurar uma ligação metafórica e exterior entre as imagens, e sim de registrar e aproximar os graus de resistência das coisas diante do olhar do artista. Em lugar de representar aquilo que vê como fruto de um olhar cristalino, El Greco traduzirá nos quadros os diferentes níveis de densidade das superfícies. Anteriormente essa questão não se colocava porque tudo era composto da mesma substância (luz). Para El Greco o ato de pintar será a reprodução da corporeidade dos materiais. Na maior parte de sua produção parece faltar tinta aos pincéis. As camadas se desdobram com dificuldade, como se o pincel corresse sobre elas quando já estavam prestes a secar. De fato, ele lida com as tintas como se se tratasse de coisas sólidas, e não líquidas. A sua noção de representação é a tradução dos graus de dureza e maleabilidade dos corpos. Em consequência, cada cor — mais precisamente, cada extensão de cor — será trabalhada de modo a revelar materialidades distintas. A demonstração de esforço no ato de pintar — que tanto afligia Vasari — não 43
é mostra de insegurança ou falta de domínio do ofício. Denota, isto sim, a decisão de quem sabe que não está às voltas com uma realidade feita de partículas de luz. Num primeiro momento, é a transformação das coisas em textura e resistência que possibilita que elas estejam juntas. O segundo passo de El Greco é atribuir às diferentes texturas uma trama comum. À primeira vista, a fatura rude de suas obras sugere um mundo precário, em constante processo de criação. Como num palimpsesto, as camadas de cor não recobrem totalmente umas às outras e promovem um movimento continuo de aparecimento e ocultamento. De certo modo, nos vemos às voltas, mais uma vez, com aquele mundo luminoso que trazia em si todas as possibilidades de formas e imagens. Em El Greco porém esse caráter transitório tem outro sentido. Ao conquistar em parte a materialidade das telas, ele ao mesmo tempo renega o aspecto mimético e naturalista das cores. Em lugar de se comportarem como atributo de algum objeto — o vermelho da maçã, o verde das folhas —, adquirindo assim uma naturalidade ingênua, imune a qualquer interrogação sobre sua razão de ser, elas transbordam e obtêm vida própria. Neste momento, a observação das obras incide sobre um ponto cego, pois a um excesso de presença corresponde 44
um mínimo de significação. Diante dos quadros deparamos uma matéria infensa às manobras do intelecto, o que lhes dá um realce e uma evidência raros na história da arte. A opacidade na obra de El Greco não é portanto apenas uma contraposição à noção de transparência. É igualmente uma reivindicação da irredutibilidade da matéria aos trâmites do pensamento e à limpidez do conceito e uma defesa da pintura como um saber específico. Além disso, ao emprestar solidez aos corpos faz cessar a ação daquele mundo contínuo, traz à baila o problema da origem das coisas e introduz distâncias onde somente havia interioridade. Um grande número de telas de El Greco traz “ao fundo” formações de nuvens que, por sua persistência, vão se tornando tão naturais que acabam por passar despercebidas. Nelas dificilmente um espírito imaginoso conseguiria vislumbrar figuras familiares, coisa tão comum aos que andam olhando para os ares. Jonathan Brown, no estudo El Greco e Toledo, diz que o sol nunca brilha no mundo de Greco. Também não há sinais de chuva, é de se acrescentar. Quase tudo na pintura de Domenikos Theotokopoulos permanece em suspenso, paralisado pela solidez das texturas, insensível aos chamamentos de uma significação 45
imediata. A presença tão crua dos quadros gera uma iminência de sentidos que é ao mesmo tempo um momento turvo e opaco. Na História da Arte Italiana, Giulio Carlo Argan mostra como a arte de Rafael, ao basear-se numa concepção de história como exemplum, contrapõe-se à noção michelangesca de história como tragédia em ato. Para Rafael (1483-1520), a história é modelo; para Michelangelo, embate, enfrentamento. O pensamento que preside a obra de El Greco tem outra direção, e neste aspecto O Enterro do Conde de Orgaz (1586-1588, Toledo, Igreja de São Tomé), uma de suas obras mais conhecidas, é extremamente representativo. Em 1323 morre Gonzalo de Ruiz, Conde de Orgaz, nobre que durante toda a vida ajudou as instituições religiosas de Toledo. Conta a lenda que durante os funerais do conde, na Igreja de São Tomé, São Estêvão e Santo Agostinho acorrem ao local e ajudam a colocar o corpo do nobre espanhol na tumba. Em outubro de 1584 obtém-se permissão para que fosse representada a cena do milagre em tela. El Greco é encarregado da empreitada em 1586, sendo obrigado, por contrato, a seguir uma narrativa do episódio composta em latim por Alvar Gómez de Castro. Na parte inferior do quadro, junto aos dois santos 46
El Greco O Enterro do Conde de Orgaz Espanha, 1587 Catedral de Toledo, Igreja de São Tomé
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e alguns padres, El Greco retratou várias personalidades contemporâneas importantes de Toledo, alinhadas no plano imediatamente posterior ao do enterro. Na parte superior, um anjo acompanha a alma do Conde de Orgaz em sua ascensão para perto de Jesus Cristo, da Virgem Maria, São João Batista e outros santos. Vários autores detectam no Enterro do Conde de Orgaz elementos ligados ao ideário da Contra-Reforma — movimento da Igreja Católica em reação à Reforma Protestante do começo do século XVI e que teve no Concílio de Trento (15451563) o principal motor de suas ações —, então em plena atividade. A adoração dos santos e o
triunfo da caridade e das boas ações, por exemplo, temas atacados pelo protestantismo, ganham realce na tela. São questões aparentemente indiscutíveis. Há no entanto na obra uma noção de história que requer algum comentário. Em seu El Greco, o espanhol Manuel B. Cossío, um dos principais responsáveis pela reavaliação da pintura do cretense, considera o Enterro do Conde de Orgaz, “... por seu fundo e sua forma, como protótipo dessa corrente, sempre melancólica, em geral fúnebre, que atravessa toda a arte espanhola, sem ainda ter se esgotado”21. Há porém mais do que tristeza no Enterro. El Greco realiza ali uma verdadeira suspensão da passagem do tempo. A falta de expressividade das personagens é a exata correspondência à falta de passado e futuro inerente à estrutura da obra. Armado a partir de uma ordenação altamente complexa, o quadro é um cenário repleto, sem linha de fuga possível. No primeiro plano, tendo cortado os pés dos primeiros personagens, como observou Max Dvorak, o pintor eliminou inclusive o chão sobre o qual eles se apoiam, restringindo ainda mais os limites da ilusão de profundidade. Na parte inferior, um verdadeiro balé de mãos espalmadas, apontadas para as mais diversas direções, rebate o olhar que por ventura queira ser tragado por uma
21 COSSIO, Manuel B.
El entierro del Conde de Orgaz. In LÓPEZ, Manuel Villegas López. Op. Cit. p. 195 48
perspectiva inexistente. E nesse movimento as mãos são acompanhadas e reforçadas pela ordenação totalmente excêntrica dos olhares. Se a tela no entanto fosse realizada a partir de um ponto de vista recuado, à maneira de um Nicolas Poussin, esse distanciamento — gerando espacialmente um sentimento ligado ao passado — compensaria, ao menos em parte, o caráter plano da obra, e propiciaria uma temporalidade evocativa, ligada à rememoração e à lembrança. Nada disso acontece. Com um ponto de vista bem próximo ao tema, e um consequente ângulo visual amplo, El Greco comprime a cena e a entrega aos próprios limites. Outros detalhes reforçam um tempo moroso e insondável: em primeiro lugar, todos os cavalheiros trajam roupas do século XVI, e não do século XIV, como seria de esperar. Transferida para o presente de El Greco, a cena histórica no entanto parece congelar-se. O que deveria ser exemplo na luta contra a Reforma, reforçando uma tradição, ergue-se sem passado. Aquilo que confirmaria o conceito de tempo da Contra-Reforma, um movimento mais ou menos cíclico de gestos modelares, é aqui o único fundamento de sua presença. A simultaneidade entre as cerimônias fúnebres e o cenário celestial (alguns personagens da parte inferior inclusive dão mostras de vê-lo) introduz 49
uma cunha de irrealidade no coração de uma narrativa que deveria ser histórica. A impressão que sobressai é a de que a própria morte está sendo retratada ali, e não a ressurreição — como indica a parte superior —, entendida como recompensa pelos bons atos levados a cabo na terra. Nem modelo nem conflito com um destino predeterminado, basicamente imponderável, a história para El Greco confina com o presente. Do mesmo modo que, em outra escala, cria opacidades por meio de texturas excessivas, a nível de composição — mas dependendo sobremaneira da fatura — gera uma noção de história alheia a toda e qualquer clarividência e dependente apenas de
El Greco Alegoria da Santa Aliança Espanha, c. 1580 National Gallery
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22 HUXLEY, Aldous.
Meditaciones sobre El greco. In LÓPEZ, Manuel Villegas (org.) Op. Cit. p. 161 23 HUXLEY, Aldous. Op. Cit. p. 163 51
um movimento presente. Nas Meditações sobre El Greco, Aldous Huxley intriga-se com seu interesse pela Alegoria da Santa Aliança (circa 1577-1579, Escorial), admitindo não ser essa uma das melhores obras do pintor de Creta. E afirma que gosta do quadro “pela hoje desgraçadamente inadmissível razão de que o tema me interessa. E o tema me interessa precisamente porque não sei que tema é”22. Hoje, tem-se como certo que a tela é uma comemoração da vitória obtida sobre os turcos, na Batalha de Lepanto, em 1571, pela aliança entre Espanha, Veneza e o Vaticano. No primeiro plano, ajoelhados, estão os líderes das três forças: Filipe II, rei da Espanha; o doge Mocenigo, de Veneza; e o papa Pio V. Essas informações contudo não satisfariam Aldous Huxley. Percorrendo os vários motivos que o atrairiam na obra, ele confessa que é a baleia — com a bocarra repleta de corpos contorcidos, numa alegoria do Inferno — pintada à direita do quadro o que mais o impressiona. E por que o atrai? Pelo simples fato de ser esta baleia “o objeto mais significativo no aspecto autobiográfico de todas as primeiras pinturas de Greco. (...) Pois na última fase da obra do cretense cada personagem é um Jonas”23. Para o escritor inglês,
os personagens de El Greco “estão encarcerados no pior dos cárceres: num cárcere visceral. Tudo que os rodeia é orgânico, animal”24. De fato, o ambiente, a natureza na obra do pintor tem muito do caráter orgânico apontado por Huxley. E outra vez seria possível detectar um compromisso de suas pinturas com o pensamento a que se opõem. A agorafobia de Greco — o terror aos espaços amplos, traduzido nos quadros pela ausência de profundidade — realmente cria um tipo de interioridade que, em relação à natureza, se assemelha em muito à concepção mágica do mundo, em vigor em boa parte da Idade Média e do Renascimento. Em Idade Média e Renascimento, o estudioso Eugenio Garin mostra que “... se encontra sem cessar, nestes inumeráveis escritos (medievais), a ideia da plasticidade das coisas, a ideia de que o homem as pode dominar, transformá-las e, por meio da arte dos encantamentos, comandar o céu e os elementos”25. A concepção, que preside a magia, de uma intervenção na natureza a partir de seu interior, totalmente avessa à noção moderna de ciência, articula-se à perfeição com o ideal de transparência a que El Greco não se filia. Ambos pressupõem uma realidade íntima e maleável — orgânica, para falarmos como Huxley — e um sujeito que age a partir
24 HUXLEY, Aldous. Op. Cit. p. 163
25 GARIN, Eugenio.
Idade Média e Renascimento. Estampa, 1994 52
do coração do mundo. El Greco no entanto não corresponde plenamente a esta descrição. Há sem dúvida momentos ambíguos em sua obra, mas nos pontos altos é difícil falar com rigor, em compromisso. A classificação sumária de El Greco como místico facilitou uma tal interpretação. No quarto capítulo deste livro voltaremos à questão do misticismo. Numa de suas raras paisagens, Vista de Toledo (circa 1600, The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque), obra de maturidade, Domenikos Theotokopoulos deixa entrever as diferenças com uma visão mágica e orgânica da natureza. O cineasta soviético Sergei Eisenstein, no ensaio El Greco e o Cinema, apoiado sobretudo nos estudos de Willumsen — A Juventude do Pintor El Greco —, ressalta nesta tela o uso da montagem, pois a imagem obtida não é contemplável de nenhum ponto de vista, requerendo portanto a recriação da paisagem natural. De outro lado, os norte-americanos Jonathan Brown e Richard Kagan, num ensaio sobre a Vista de Toledo, explicam as reorganizações executadas por El Greco a partir de uma posição mais histórica, isto é, a necessidade de promover, por meio de uma visada emblemática que realçasse as construções mais significativas de Toledo (o palácio real, a cate53
El Greco Vista de Toledo Espanha, c.1599 Metropolitan Museum of Art
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dral etc.), a grandeza da cidade. Existem ainda outras interpretações deste quadro. Em relação à questão que estávamos trilhando, contudo, nem o construtivismo de Eisenstein nem a perspectiva histórica de Brown e Kagan são decisivos. Há na Vista de Toledo um encantamento que não se cumpre. De imediato salta aos olhos o monocromatismo — em tons de verde — da parte inferior do quadro, uma espécie de essencialização do reino vegetal. A desproporcionalidade das ramagens em primeiro plano, o caráter compacto e vigoroso de toda a vegetação, a ausência de detalhes nas plantas — pintadas em largas manchas —, tudo aponta para uma manifestação da natureza. Ela é, em ato, energia. O artista não pretende, como pregava boa parte da estética da época, “corrigir” a realidade por meio de uma escolha adequada de determinados aspectos e da composição harmônica das partes. Ao contrário, ele é apenas uma espécie de condutor, de intermediário de sua expansão. E realmente curioso o fato de os estudiosos privilegiarem a cidade de Toledo na leitura do quadro. Encerrada entre duas substâncias que se expandem — uma substância azul (celeste) e outra verde (vegetal) —, ela recorda mais escombros prestes a serem tragados pela força dos elementos. No mesmo ensaio mencionado há pou55
co, Eisenstein acentua o aspecto extático da obra de El Greco. Entendido na acepção etimológica — ex-stasis, ou seja, fora de seu estado —, pondo de lado o tom místico que o impregna, o termo mostra os limites daquilo que seria o compromisso de El Greco com a tradição. Embora haja de fato intimismo e substancialismo na sua concepção de natureza, ele não a conduz à significação propiciada pelo jogo de semelhanças. O mundo extático, manifestação de uma energia descontrolada, nem ao menos apresenta formas que possam ser comparadas e conduzidas a um saber. Na tela de El Greco o mago desperta forças que estão além de sua capacidade de controle e manipulação. Em todos os aspectos da pintura de Greco que foram analisados até aqui é patente a oposição a traços importantes do ideário da época, em parte abrigados no neoplatonismo renascentista — nos escritos de Marsilio Ficino, Pico della Mirandola, Landino, Policiano e outros — e nas diversas ramificações deste pensamento nas mais diversas áreas culturais. No entanto, alguns documentos e várias interpretações apontam para um caminho oposto, ou seja, a influência do neoplatonismo na produção de El Greco. O primeiro indício surge no levantamento da sua biblioteca. Em meio a volumes em grego, italiano e espanhol, entre a Bíblia, 56
vidas de santos, obras de medicina, história e arquitetura, textos de Homero, Eunpedes, Isócrates, Demóstenes, Plutarco e Aristóteles, entre outros, deu-se destaque a dois volumes neoplatônicos: A Hierarquia Celeste, do pseudo-Dionísio (teólogo sírio anônimo do século V), e Da Retórica, Dez Diálogos, do pensador dálmata Francesco Patrizzi (1529-1597). A segunda pista é uma inscrição contida no quadro Vista e Mapa de Toledo, que termina com esta afirmação: “Também na história de Nossa Senhora que traz a casula para São Ildefonso, para seu ornamento, para fazer as figuras grandes, me vali de certa maneira do fato de serem corpos celestiais, como vemos nas luzes, que vistas de longe, por pequenas que sejam, nos parecem grandes”. A frase de Greco, usada para justificar a dimensão de um grupo de figuras na parte superior do quadro, também foi interpretada numa chave neoplatônica e, comparada a textos realmente vinculados àquela escola filosófica, serviu para consolidar a tese do neoplatonismo do artista. Embora haja testemunhos de que El Greco tenha escrito tratados de pintura e de arquitetura, os únicos escritos que chegaram até nós — e mesmo assim supostamente — são anotações marginais do pintor em dois volumes das Vidas 57
de Vasari e no livro De Arquitetura, de Vitruvius. É nelas que veem o terceiro indício para o neoplatonismo de Domenikos Theotokopoulos. Características como graça, intuição, facilidade, complexidade, novidade e variedade surgem naquelas notas e, segundo Jonathan Brown, “correspondem ao espectro de ideias geralmente associadas aos filósofos neoplatônicos”. A partir dessas indicações é que se foi formando o El Greco neoplatônico. Poucos defensores desta interpretação — à exceção do norte-americano David Davies, que, no livro El Greco26, desenvolve uma leitura realmente sedutora — contudo pautaram-se na pintura de Greco e aqueles poucos indícios me parecem bem pouco conclusivos. Possuir livros neoplatônicos, numa época em que era um pensamento tão disseminado, deveria ser algo tão corriqueiro quanto o exercício do piano pelas moças de bem no Brasil do século passado. A inscrição na Vista e Mapa de Toledo associa-se mais a certas noções de óptica do que à metafísica neoplatônica, e o próprio David Davies o comprova, comparando a frase de El Greco a um trecho do tratado de óptica de John Pecham, Perspectiva Comunis. Já o exame das notas atribuídas ao pintor, pela generalidade, não permite conclusões seguras, e as qualidades pic-
26 DAVIES, David. El
Greco. Londres: National Gallery London, 2003. 58
tóricas assinaladas seriam certamente endossadas pelos mais diferentes pintores. É difícil, num texto como este, ampliar o âmbito da discussão. Em 1570 El Greco deixa Veneza e parte para Roma. Durante a viagem, é provável, passa por Parma e aproveita para ver algumas pinturas de Correggio (circa 1489-1534), artista que tinha em grande consideração. Já em Roma, com a ajuda do miniaturista Giulio Clovio, é introduzido no Palácio Farnese, onde, em torno da figura de Fulvio Orsini — bibliotecário do palácio e grande conhecedor da antiguidade clássica —, reunia-se um importante círculo de humanistas que terá papel decisivo na sua formação intelectual. E aí, inclusive, que conhecerá Luis de Castilla (circa 1536-1615), religioso e humanista espanhol que o ajudará a conseguir as primeiras encomendas em Toledo. Foi a primeira e única vez que El Greco conviveu com um ambiente palaciano. O pintor no entanto não usou esta experiência para criar uma arte marcada pelo espírito privado e intimista — como em certo grau foi a produção maneirista — e recheada de enigmas compositivos e temáticos propostos a uns poucos observadores requintados. As novidades do maneirismo de El Greco — veremos no terceiro capítulo — pediam também uma relação com o público diferente da intimidade dos palácios. 59
Pouco antes da chegada de El Greco a Roma, morria Michelangelo, em 1564. Rafael morrera antes, em 1520. Mas é ainda sob a égide de Rafael e Michelangelo que a arte romana é feita. Discípulos de ambos artistas desenvolvem os elementos mais característicos dos mestres, num comportamento às vezes puramente acadêmico, na busca da supremacia em Roma. O afastamento de El Greco em relação à tradição renascentista fará com que procure responder sobretudo a algumas questões deixadas em aberto por Michelangelo — embora discorde dele em vários pontos — e pouco dialogue com Rafael, talvez a culminância de toda a estética clássica do Renascimento. A primeira manifestação conhecida de El Greco sobre Michelangelo surge no depoimento de seu único aluno romano, Lattantio Bonastri da Licignano. Registrado pelo médico romano Giulio Mancini — e escrito somente quarenta anos depois da partida de Greco de Roma, em 1577 —, o testemunho possui um tom quase anedótico. Diz Mancini que o papa Pio V, desagradado com a nudez de alguns personagens do Juízo Final, na Capela Sistina, mandou que fossem recobertos. Tendo ouvido isso, Greco propôs-se a repintar todo o teto, com “honestidade e decência” e com a mesma mestria, desde que a obra já existente 60
fosse totalmente destruída. Conforme a narrativa de Mancini, o gesto de Theotokopoulos contrariou de tal modo os artistas e amantes da arte de Roma que ele foi obrigado a deixar a cidade. Outras avaliações de El Greco em relação a Michelangelo aparecem nas notas marginais mencionadas anteriormente. Nelas, ele critica o pouco domínio do colorido em Michelangelo — chegando a dizer que ele não sabia “imitar as cores tais como elas aparecem para o olho” — e reserva os elogios somente para os desenhos. Julgar todavia a influência de Michelangelo exclusivamente por esses resquícios de opinião seria ingenuidade. No ensaio Sobre El Greco e o Maneirismo, Max Dvorak já mostrara brilhantemente como Michelangelo, no desenvolvimento de sua obra, explode de dentro o naturalismo do Renascimento, liberando as formas dos empecilhos da imitação, como na Pietà Rondanini, e o quanto essa operação servirá à arte de El Greco. Em esculturas como O Dia e A Noite — do túmulo de Giuliano de Medici — e, sobretudo, na Pietà Rondanini, a matéria para Michelangelo vai perdendo a maleabilidade e se torna, cada vez mais, entrave à formalização: a superfície do mármore, não mais sublimada no rigor do contorno, deixa à mostra as imperfeições e resistências aos golpes do artista. 61
É justamente nos momentos em que ocorre a indefinição entre a forma e a ação sobre o material que El Greco pôde tirar, para sua pintura, grandes lições da escultura de Michelangelo. Em geral atribui-se a origem das formas contorcidas de El Greco à figura serpentinata — construções mais ou menos piramidais, muitas vezes comparadas a uma chama, atribuídas a Michelangelo por Lomazzo, importante escritor italiano do século XVI. O norte-americano David Summers, no ensaio Maniera e Movimento: a Figura Serpentinata, demonstra que, embora a atribuição taxativa da figura serpentinata a Michelangelo seja problemática — pois envolve um sem-número de fontes e práticas artísticas —, ela foi fundamental para a concepção michelangesca de movimento. Mais do que isso, no entanto, a figura serpentinata — pelas complexas estruturações que possibilitava — foi um ponto central da estética maneirista e é de fato muito provável que El Greco tenha tirado proveito dessas discussões. Mas na pintura de Domenikos Theotokopoulos a incorporação da figura serpentinata raramente serviu para a criação das pirotecnias compositivas que ajudaram a tornar o Maneirismo uma arte acadêmica e estéril. Colocando-a a serviço do seu raciocínio 62
27 BROWN, Jonathan. El
Greco of Toledo. Boston: Little, Brown and Company, 1982. 63
pictórico, El Greco usou-a sobretudo como um recurso que lhe permitia modelar os corpos sem precisar lançar mão, ortodoxamente, do claro -escuro, construindo-os a partir de contornos não-lineares e contorcidos. Jonathan Brown, no ensaio El Greco e Toledo27, considera a obra de Greco uma síntese da arte de Veneza e Roma. Sem dúvida, já vimos, ele colheu ensinamentos de ambas as escolas. Afora, contudo, o caráter irremediavelmente original — que não permite uma assimilação total por esta ou aquela tendência artística — sou de opinião que, na poética geral, a obra de El Greco termina por ser mais legatária da arte veneziana. A ruptura com o ideal de transparência, a problematização do uso das cores e das formas, noções originais sobre a história e a natureza — traços fundamentais da pintura de El Greco — tiveram origem principalmente em Veneza. Em relação a Michelangelo, ele soube tirar proveito de elementos de sua arte, desviando-se contudo, no geral, da estética romana. Há momentos — como no conjunto de quadros realizados para a Igreja de Santo Domingo El Antiguo, em Toledo — em que a semelhança com Michelangelo é impressionante. Não foram no entanto essas obras que proporcionaram os traços característicos da arte de El Greco.
capítulo 3
A percepção problemática Após sete anos de estada em Roma, EI Greco ainda não lograra uma situação de reconhecimento. Sem obter os favores de ordens religiosas ou outro patronato permanente, vendo o talento de retratista pouco solicitado e não conhecendo aceitação fora dos limites do Palácio Farnese, aos 36 anos decide oferecer sua arte em outros lugares. Na Espanha Filipe II — um dos mais poderosos monarcas europeus — anda à procura de artistas. As obras do Escorial — palácio e monastério que ele manda construir nas cercanias de Madri, no vilarejo de San Lorenzo del Escorial — encaminham-se para o seu final, e o rei da Espanha envia emissários à Itália em busca de artistas que pudessem contornar as limitações impostas pelo escasso talento local. Artistas como Muziano (15281592), Marcello Venusti (1512-1579) e Federico Zuccari (circa 1540-1609) são cogitados para os trabalhos de decoração do Escorial. Mesmo sem receber um convite direto, em 1577 El Greco abandona Roma e parte para a Espanha. Ao que tudo indica, a tela Alegoria da Santa Aliança — mencionada anteriormente — foi uma primeira tentativa de conseguir os favores reais. Estabelecendo-se diretamente em Toledo, onde, por intermediação de Luis de Castilla, começa a receber encomendas da Igreja local, El Greco, em 1580, 64
obtém o primeiro pedido de Filipe II. Sua tarefa é pintar, para a igreja do Escorial, o martírio de São Maurício e a legião tebana. Mas o rei da Espanha recusa o trabalho. Frustrado no esforço de aproximar-se da corte, a Domenikos Theotokopoulos somente resta permanecer em Toledo, onde morre a 7 de abril de 1614. De sua união com Jerónima de las Cuevas nasce o filho único Jorge Manuel Theotokopoulos (1578-1631), que durante toda a vida do pai ajudou-o em seus trabalhos. A confirmar-se a pesquisa de Harold E. Wethey — autor da mais completa obra sobre o pintor, EI Greco e Sua Escola —, por uma única vez o artista deixou a cidade, dirigindo-se a Madri. Tradicionalmente, a Toledo de El Greco é descrita como uma cidade em declínio. Em junho de 1561, após dois anos de permanência na cidade, Filipe II transfere-se com sua corte para Madri. Baseado sobretudo neste fato, Antonio Martín Gamero — autor da única obra geral sobre a localidade, História da Cidade de Toledo (1862) — traçou as linhas gerais da decadência toledana e foi acompanhado por quase todos que escreveram sobre El Greco. E o enfraquecimento da cidade ajudou a intensificar a melancolia “detectada” nas obras de Domenikos Theotokopoulos. Os estudos recentes de Richard Kagan — Toledo de El Greco 65
(1982) — demonstram que “durante o período em que El Greco viveu ali Toledo pode ser descrita antes como uma cidade relativamente próspera que gradualmente foi declinando”. Em 1560 contava com aproximadamente 60 000 habitantes, uma das maiores populações da Espanha; em 1571, com 62 000 e somente em 1591 os censos indicam um decréscimo (57 000). Cosmopolita e importante centro comercial, Toledo empregava, em 1575, um terço de seus moradores na manufatura têxtil, além de produzir espadas numa escala considerável. A vida intelectual, relativamente intensa, girava em torno da Universidade de Santa Catarina e da catedral e conheceu intelectuais de reputação internacional, como o humanista Alvar Gómez de Castro, Andreas Schottus, jesuíta de Antuérpia, Benito Arias Montano, bibliotecário do Escorial, e mesmo o dramaturgo Lope de Véga residiu em Toledo. É neste ambiente que a pintura de El Greco atinge plena maturidade e adquire os traços originais que vimos nos capítulos anteriores. Ao menos num ponto quase todas as interpretações da obra madura de El Greco coincidem: junto com Tintoretto, ele é considerado o maior pintor do Maneirismo. Rapidamente porém a conciliação é perturbada pela polêmica. Afinal, a conceituação em torno do Maneirismo está longe 66
28 CURTIUS, Ernst Ro-
bert. European Literature and the Latin Middle Ages. Princeton University Press (Bollingen Series), p. 273 67
de conquistar unanimidade. Das geniais generalizações de Ernst Robert Curtius — para quem o termo Maneirismo serve para caracterizar “todas as tendências literárias que se opõem ao Classicismo, sejam elas anteriores, contemporâneas ou posteriores a este período”28 — às explicações mais sociológicas de Arnold Hauser, toda uma gama de interpretações procura um sentido para o tema. Deixando de lado por ora os aspectos mais abrangentes desta corrente artística, pode-se dizer que a expressão começa a ter trânsito nas observações de Vasari acerca das últimas obras de Michelangelo, de sua maniera. Em sentido quase pejorativo passou a ser usada mais recentemente para identificar os artistas que “sem entender o espírito das obras de Michelangelo” imitaram apenas o aspecto exterior de seu estilo (Gombrich). De modo geral, é possível circunscrever o Maneirismo — como foi realizado no século XVI, e não como uma noção que percorre toda a história da arte — entendendo-o como uma exponenciação radical das normas e conquistas estéticas e técnicas do Renascimento. O uso reiterado do escorço — corpos representados em perspectiva acentuada —, a complexidade estrutural e mesmo temática, um certo gosto pela demonstração do domínio dos recursos de linguagem (composições de cor
contrastantes, assimetrias abruptas, jogos com pontos de vista etc.) e o início de uma preocupação não-naturalista, tudo isto marca o Maneirismo de ponta a ponta. Em Maneirismo — A Crise da Renascença e o Surgimento da Arte Moderna, Arnold Hauser mostra que este estilo não é, a rigor, um anticlassicismo. Para ele, “só é possível obter um entendimento adequado do Maneirismo se ele for observado como o produto de uma tensão entre classicismo e anti-classicismo, naturalismo e formalismo, racionalismo e irracionalismo...”29. E essa tensão ajuda a entender o que, para Hauser, seria um princípio explicativo do estilo: a ideia de paradoxo, e a consequente atração “pelo sutil, pelo estranho, pelo rebuscado, pelo confuso...”. Basta olhar o Autorretrato diante de um Espelho Convexo, de Parmigianino (1503-1540), ou as sofisticadas construções nas deposições de Cristo pintadas por Pontormo (circa 1494-1557) e Rosso Fiorentino (1494-1540) para dar razão à leitura de Hauser. Mas a tensão com o Classicismo irá implicar também um compromisso com ele: os maneiristas querem levar às últimas consequências as formulações clássicas — de onde também o aspecto paradoxal — e para tanto prendem-se aos aspectos mais codificados de sua linguagem
29 HAUSER, Arnold.
Maneirismo — A Crise da Renascença e o Surgimento da Arte Moderna. São Paulo: Perspectiva, 2007. 68
pictórica. O confronto com o Classicismo acaba por se restringir à estruturação e composição das obras, sem falar nos rebuscamentos temáticos e jogos com o conteúdo das representações. Os traços mais decisivamente sensíveis dos quadros — a materialidade da pintura, tão presente em El Greco — acabam pouco problematizados. Os trabalhos mencionados acima possuem uma textura ainda essencialmente clássica, e o mesmo se aplica às obras de Bronzino (1503-1572), Beccafumi (circa 1486-1551), Lorenzo Lotto (1480-1556), Vasari (1511-1574) e tantos outros artistas considerados maneiristas. Neste sentido, classificar sem mais a pintura de Tintoretto e, sobretudo, a de El Greco de maneirista não esclarece muita coisa. O que os une, no embate com o Classicismo, é antes de tudo uma nova sensibilidade para a linguagem da pintura. A partir dar, tomam rumos bastante diferentes, e não se pode comparar o academicismo de Vasari com as investidas audaciosas de Rosso Fiorentino no campo das cores ou com os desenhos de Pontormo. Se por um lado, no entanto, mais do que nunca a arte olhou a própria arte — despertando para a linguagem das diversas tendências, ainda que sob o risco de torná-la uma gramática e um léxico acadêmicos —, por outro lado adquiriu uma autonomia frente a natureza 69
que será fundamental daqui para frente. No Maneirismo tudo se passa como se a arte proclamasse independência e vivesse desse regozijo. O desejo de Alberti de fazer a pintura surgir lidas raízes que penetram a natureza” soa agora como um passado longínquo — um projeto impensável para os maneiristas. A categoria esteticamente criadora torna-se a ideia (ou conceito, ou disegno interno) “... e surgiu aí, pela primeira vez, a questão de como é possível para o espírito formar uma ideia que não pode simplesmente ser derivada da natureza e, no entanto, pode originarse no homem...”30. Mas se o Maneirismo pode ser considerado uma arte do sujeito, é preciso ter claro as particularidades deste sujeito, e considerá-lo sobretudo como um problemático movimento de constituição. A oposição entre a predominância da regra no Classicismo e do capricho no Maneirismo não deve levar à conclusão de que estamos diante de um sujeito feliz e autonomamente estruturado. O sentimento de independência das linguagens artísticas é também um momento de extrema consciência da fragilidade da arte e de seu suporte, o artista. A robusta continuidade entre arte e natureza é rompida. E o sujeito da arte se vê entregue aos próprios recursos e incertezas. Ao surgimento da noção de gênio — o furor miche-
30 HAUSER, Arnold. Op. Cit.
70
31 CHASTEL, André. Op. Cit. p. 165
32 CHASTEL, André. Op. Cit. p. 169
33 AZNAR, Jose Camon. Op. Cit. p. 76 71
langesco, autêntico precursor do espirito maneirista —, portanto, haveria de corresponder, quase que necessariamente, o aparecimento de tipos saturninos, impregnados de uma melancolia sem causa. “O astro da infelicidade (Saturno) é também o astro do gênio”31. Em um de seus últimos poemas, Michelangelo afirma: “Por companheira resta-me ainda a melancolia e como distração, os meus tormentos”32. Solitário, Pontormo constrói seu ateliê no sótão de uma casa. O acesso é uma escada móvel que o pintor retira tão-logo a escale. O artista não recebe visitas. Parmigianino morre aos 37 anos. Rosso Fiorentino mata-se aos 45. Numa carta atribuída a Giulio Clovio, o miniaturista escreve que procurou Greco num dia em que “toda a cidade parecia em festa” e encontra o pintor no ateliê com as cortinas totalmente cerradas. “Greco estava sentado em uma cadeira e não trabalhava nem dormia. Não quis sair comigo por que a luz do dia perturbava sua luz interior”33. A identificação, feita por Hauser, dos tipos maneiristas com o narcisismo — desde que não vinculada imediatamente com a alienação, como pretende o autor — também comprova o caráter problemático do novo sujeito. Num ponto ao menos até autores explicitamente divergentes — como Hauser e o húngaro
Tibor Klaniczay — chegam a uma conclusão comum: o Maneirismo corresponde a um momento de crise cultural, econômica, política e religiosa da Europa renascentista. A ascensão do capitalismo moderno, os cismas religiosos, as revoltas camponesas do primeiro quarto do século XVI, as descobertas de Copérnico e a teoria política de Maquiavel abalam de modo irreversível as certezas da Renascença. Klaniczay, no ensaio A Crise do Renascimento e o Maneirismo, mostra como este momento frágil do saber humanístico irá conduzir, no século XVI, a especulações para “descobrir e desenvolver o método perfeito, a ars magna que assegurasse ao homem uma chave para reencontrar-se no interior das coisas conhecidas e desconhecidas, num mundo sempre mais complexo”. A busca ansiosa de um método perfeito é sintoma de um conhecimento que se estilhaça. Impossibilitado de sistematização real, o saber organiza-se como um labirinto — supostos caminhos em torno de um centro virtual, “uma metáfora ‘unificadora’ para tudo aquilo que o mundo apresenta de previsível e imprevisível”, diz Gustav Hocke em Maneirismo: o Mundo como Labirinto. Este momento crítico da Europa renascentista encontrou em El Greco a recepção digna de um artista de seu porte. À situação revolta do pensa72
mento ocidental, ao estatuto incerto do artista e das artes na segunda metade do século XVI Domenikos Theotokopoulos não responderá com uma pintura cada vez mais rebuscada em que a complexa sinuosidade interna das telas corresponde a uma pobreza de pensamento pictórico. Tampouco a sensibilidade à linguagem das artes descambará em demonstrações de virtuosismo plástico. A recusa ao naturalismo não implicará o realce da sintaxe dos quadros. Ao contrário — e como já vimos em passagens anteriores — El Greco produz uma obra que traz em seu cerne uma dificuldade de percepção que de certo modo é a indicação das tensões de um sujeito perplexo. A este respeito, o retrato de Frei Hortensio Félix Paravicino (circa 1609, Museu de Belas-Artes de Boston), uma das obras-primas de El Greco, é exemplar. Membro da ordem dos trinitários, professor de Retórica da Universidade de Salamanca com apenas 21 anos, famoso orador e poeta — tendo inclusive dedicado quatro sonetos a El Greco —, Paravicino possui tudo que se requer para a constituição de um tipo. A arte dos retratos de fato está ligada à caracterização de papéis. A individualização dos personagens não impede que eles encarnem determinados predicados universais. Gestos, posturas, trajes, pontos de 73
vista, cores e composição estão a serviço tanto de uma personalidade quanto da Generosidade, da Temperança, da Austeridade, da Justiça, e assim por diante. O reconhecimento da pessoa retratada deve ser tão imediato quanto a legibilidade de suas qualidades. Quase nada disso ocorre no retrato do frei. À exceção do vermelho e do azul da cruz no hábito de Paravicino, praticamente não houve o emprego de cores na tela. El Greco parece usar toda sua arte para conseguir um mínimo de definição no trabalho. Devido à textura, o quadro exibe uma espécie de pátina que o recobre por inteiro, impedindo a contemplação da obra. Não fosse a cadeira, não se saberia ao certo se o frei está de pé ou sentado. Mas o espaldar, inclinado e instável, recoloca em questão a orientação espacial do trabalho. Os únicos elementos que contribuem para que o religioso ganhe realmente uma investidura são o hábito, os livros que tem em uma das mãos e um certo gesto de acolhida nos braços estendidos. São poucos, mas se tornam excessivos. O modo como El Greco pinta os trajes do frei faz dele um verdadeiro homem de pano — desencorpados e mostrando em demasia sua trama, pela revelação intencional das marcas do pincel, eles perdem a função de veste para se transformarem em tecido. O realce 74
El Greco Portrait of Fray Hortensio Felix Paravicino Espanha, 1609 Museu de Belas Artes de Boston
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do planejamento como massa implica que ele entre em choque com a função de qualificação. Basta reparar na maneira como outros artistas da época tratam os tecidos para notar as diferenças introduzidas por El Greco. E os livros, nas delicadas mãos de Paravicino, adquirem uma maleabilidade que reduz os poderes da retórica e da oratória em forças pesadas e vagarosas. Mais interessante ainda é o tratamento dado às mãos: pontos mais próximos
do pintor, logicamente elas deveriam obter maior definição visual. Acontece o oposto. El Greco enfatiza o rosto do frei — o ponto mais distante — e deixa meio “fora de foco” as mãos, sobretudo a esquerda, a que mais avança em direção do espectador. Prensado por um observador tão próximo, Paravicino, antes de ser um tipo, assemelha-se mais a um verso do poeta austríaco Georg Trakl (18871914): “Ah, o musgoso olhar da fera”. E o “olhar da fera” é musgoso porque é um olhar que não pode ser visto: ele só vê, e não apresenta indícios de uma subjetividade que, à maneira de Sartre, possa ser dominada pelos olhos. O verso de Trakl — ainda que a análise corra o risco de exagerar na analogia e na metáfora — é realmente uma magnífica descrição do mundo de El Greco, e é curioso observar como duas poéticas distantes mais de três séculos no tempo têm traços tão parecidos. Não pertencendo mais àquela realidade transparente, não contemplando mais as coisas de dentro de um olho de cristal, Theotokopoulos irá se encontrar numa estranha posição: ele vê, de fora, um mundo que não se revela com clareza. A dificuldade de percepção inerente a seus trabalhos decorre de um momento de transição da história do pensamento e talvez a grandeza da pintura de El Greco resida principalmente na evidencia76
ção desta passagem. Na grande maioria de seus quadros o ponto de vista, bastante próximo dos motivos, deixa entrever a situação ambígua de um sujeito em constituição. Não há neles nem a intimidade proporcionada pela concepção pictórica do Classicismo — que mesmo com um ponto de vista muitas vezes exterior não produz distâncias no interior das obras — nem a exterioridade de um observador situado fora das coisas, como sucede nos trabalhos de Nicolas Poussin (1594-1665) ou Claude Lorrain (1600-1682), por exemplo, imediatamente posteriores aos de El Greco. A proximidade do ponto de vista ajuda a compreender também o caráter relativamente plano da pintura de Domenikos Theotokopoulos. Mas isso não é tudo. Antes de chegar a Veneza, por volta de 1567, El Greco estudara em Creta, sendo considerado mestre-pintor na tradição pós-bizantina. Fortemente estilizada, quase sem preocupação naturalista, usando com frequência um fundo dourado e uma organização vertical do espaço — não produzindo a ilusão de profundidade semelhante à obtida com a perspectiva central —, a pintura pós-bizantina deve realmente ter marcado a arte de El Greco. O problema é verificar de que modo a sua obra incorpora essas influências. Muitos autores destacam a impor77
tância da formação em ereta para a compreensão da pouca profundidade de suas telas. Outros, como Paul Guinard, assinalam a permanência de características inegavelmente bizantinas: a divisão da composição em dois planos, um terreno e outro celestial (o Enterro do Conde de Orgaz, por exemplo), alguma indiferença em relação à proporção entre as figuras etc. Willumsen mostra a remanescência bizantina na exaustiva reprodução de temas iguais — o São Francisco em Êxtase, por exemplo, foi realizado mais de dez vezes — ou na transposição de personagens de uma tela para outra, praticamente sem modificações. Antonina Vallentin vê no alongamento das figuras outro resquício da pintura cretense — enquanto o homem normal tem sete cabeças de altura, alguns manuais bizantinos pregavam, por razões estéticas, a feitura dos corpos humanos com nove cabeças de comprimento. Tudo isto é inegável, mas não torna El Greco, nem de longe, um pintor bizantino. A passagem de um plano a outro — da superfície hierarquizada de ereta para a recusa da perspectiva central nas obras de Toledo — envolve uma experiência que não pode ser recalcada pelo simples recurso ao apego às origens gregas ou outros argumentos do gênero. O exame dos trabalhos mais significativos de El Greco demonstra as 78
limitações desta aproximação. O fundo dourado das pinturas pós-bizantinas, além das conotações hierárquicas, pressupõe uma harmonia estática nas relações entre figura e fundo. Não há vestígios disto nas grandes obras de Toledo. As figuras de El Greco não são recortes que se encaixam na rigidez de uma superfície esquemática. Quando André Malraux escreve que os personagens aqui “conhecem o espaço e não são envolvidos por ele”, isto significa contradizer toda e qualquer permanência serena da tradição bizantina na obra de El Greco. Sem querer, é claro, transformá-lo em precursor extemporâneo do cubismo, é flagrante que o caráter plano de sua pintura advém principalmente da ruptura com uma relação pacífica entre objetos compactos e um espaço puramente virtual. Os corpos não se moldam por meio da clara delimitação entre os contornos e o espaço que os circunda. Ao contrário, as deformações e contorções são o começo do longo processo que desembocará na conquista, pelos objetos, da maleabilidade que só se reconhecia no espaço. Eles perdem a solidez linear que os caracterizava e podem ser manuseados. A verticalização tão característica de suas telas — às vezes explicada pelo tipo de organização espacial da arte que se ensinava em Creta — foi a forma que o artista encontrou para romper os padrões 79
compositivos em vigor e fazer que as figuras escorressem pela superfície do quadro. Que para isso El Greco usufruísse os ensinamentos proporcionados, por exemplo, pela figura serpentinata, não resta a menor dúvida. Mas o uso deste elemento da estética romana vai muito além da busca de movimento ou da complexidade compositiva. No Laocoonte (circa 1610-1614, Galeria Nacional de Arte, Washington), uma obra inacabada, é possível observar as soluções encontradas por El Greco para os problemas em pauta. De imediato, a proximidade do ponto de vista colabora para tornar a imagem geral mais “chapada”. Ao fundo no entanto abre-se uma paisagem — rara nos trabalhos “do pintor — que, num contraponto, dá profundidade a um primeiro plano mais superficial. Transplantados do cenário de Tróia para o de Toledo, o sacerdote de Apoio, Laocoonte, e seus filhos — mais as figuras da direita, de difícil identificação e que são as menos acabadas — vivem desse embate entre plano e profundidade. E impressionante o rigor com que El Greco encara este desafio, sem nenhuma solução de facilidade. Afinal, mesmo no primeiro plano aparecem duas figuras em escorço — modo típico da profundidade — e na extrema esquerda do trabalho a cidade de Toledo desaparece abruptamente, e com ela o 80
fundo da tela. Embora a obra não consiga resolver totalmente as questões que postula, permanecendo uma leve cisão entre as duas partes, a solução geral é brilhante. Em lugar de se plantarem, unívocos, na profundidade possibilitada pela cidade ao fundo, os personagens do primeiro plano criam cada um o próprio espaço, por meio da inter-relação entre forma e movimento. A maneira usada para desenvolver as figuras — na qual as torções dos corpos se impõem à simples convivência com o fundo — imanta tudo a seu redor e empresta à atmosfera uma densidade extraordinária. Em outra das últimas obras — O Quinto Selo do Apocalipse (circa 1608-1614, Metropolitan Museum, Nova Iorque) —, El Greco apresenta os aspectos básicos da cor em sua pintura. O uso do contraste entre grandes áreas monocromáticas e manchas de cores chapadas atinge aí o ponto culminante. Com algumas exceções, El Greco não costuma compor os coloridos das telas lançando mão do sfumato ou de passagens sutis que conduzem de uma cor a outra. Como já foi dito, Domenikos Theotokopoulos distingue seu trabalho pela associação entre cor, textura e superfície. O interessante nesta tela é o grau de abstração e ousadia do colorido e o modo que o pintor encontra para tematizar sua concepção de cor a partir da 81
própria escolha dos motivos e de sua disposição. Em meio à indefinição do fundo do quadro — que, ao que tudo indica, teria uma parte superior, cortada durante trabalhos de restauro, por volta de 1880 —, destacam-se quatro grandes áreas de cor: o azul dos trajes de São João Batista, logo no primeiro plano; a seus pés, um manto vermelho; mais ao fundo, dois grandes pedaços de tecido, um verde e outro amarelo. Jogando com três cores primárias e com o contraste entre o vermelho e o verde (complementares), o artista gera uma situação em que se torna praticamente impossível a combinação cromática e em que cada cor acaba remetendo a si mesma. Mas há ainda um particular importante: todas as extensões de cor surgem
El Greco Laocoön c. 1610/1614 National Gallery of Art (EUA)
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El Greco Opening of the fifth seal (The vision of Saint John the Divine) Espanha, c.1610 Metropolitan Museum of Art
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em tecidos, Além de permitirem um emprego mais livre das cores e, por sua trama, um trabalho do pincel que facilite a construção de diferentes texturas, os tecidos — do modo que El Greco os concebe — possibilitam uma percepção do colorido desvinculada do objeto que supostamente o contém. Ao lidar com panos coloridos, El Greco parece sugerir seu modo particular de compreendê-las e empregá-las: uma espécie de tingimento que, por sua profundidade, impregna totalmente o material envolvido, convertendo-o à cor. O Maneirismo de El Greco não é, portanto — como em boa parte dos representantes do estilo —, a elaboração de intrincados meandros e sinuosidades que, colocados em presença do espectador,
devem despertar nele a admiração pela complexidade do labor artístico, estimulando-o a refazer os caminhas intelectuais trilhados pelo artista. Longe de estabelecer uma gramática acadêmica, todos os elementos de linguagem — cor, luz e brilho, composição, ponto de vista, profundidade, textura — são uma questão e traços de sua poética. Em vez de fazer uma arte difícil — mas rapidamente assimilável, tão logo se compreenda o seu sistema —, El Greco problematiza a própria percepção. Neste sentido, a sua obra é pouco “estética”. Sem convocar imediatamente a “arte” para as telas, ele mostra antes o trabalho da arte — suas resistências, problemas, descobertas e invenções.
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capítulo 4
O místico e o itelectual
É difícil discernir com certeza o que surgiu primeiro: se o pintor místico de uma arte esquiva ou arte mística de um pintor esquivo. Ao fim, pouco importa. O misticismo de El Greco se impôs e fundiu artista e obra sob o signo da espiritualização das formas e da matéria. São tantas as camadas sobrepostas para formar o mito que uma verdadeira arqueologia seria necessária para refazer os passos dessa cruzada edificante. A afirmação do pintor espanhol Jusepe Martínez — “foi (Greco) de extravagante condição, como sua pintura”34 —, em seus Discursos de 1673, ressoa, dois séculos depois, nos comentários do poeta francês Théophile Gautier (1811-1872) — “pintor extravagante e estranho”, “louco genial”35 —, para encontrar seu paroxismo nas especulações de Gregório Marañón, O erudito espanhol, no livro Toledo e El Greco, de 1956, seguindo uma pista deixada por M.S. Cossío em sua obra pioneira, afirma que “El Greco pintava loucos, não tenho dúvidas, porque tinha intuição da proximidade do desvario e da santidade”36. E manda retratar, no Nuncio Nuevo, um asilo de Toledo, alguns doentes mentais, de modo a comparar as fotos com quadros. Não lhe faltou sequer a pecha de paranóico no diagnóstico de um certo Ricardo Jorge, professor português. A escassez de dados biográficos sobre Greco
34 COSSIO, Manuel B.
Las Casas del Greco. In LÓPEZ, Manuel Villegas (org.) Op. Cit. p. 117 35 GAUTIER, Teofilo. Extravagante y Extraño. IN LÓPEZ, Manuel Villegas (org.) Op. Cit. p. 34 36 MARAÑON, Gregorio. Los Modelos de Enaje-
nados.In LÓPEZ, Manuel Villegas (org.) Op. Cit. p. 237 86
facilitou a sedimentação de um tipo que, ao sabor das circunstâncias, passou a mover-se entre a loucura e a santidade, mas sempre seguindo as trilhas de um labirinto interior e os transes da intimidade. E como não podia deixar de ser, os mistérios desse personagem sinuoso foram transpostos para sua pintura. Para as constantes nuvens encorpadas que aparecem nas telas de Greco emprestou-se o adjetivo enigmático. Na pouca claridade dos quadros viram-se sinais de irracionalismo, metáforas da atividade interior da alma. Às deformações dos corpos haveriam de corresponder espasmos e êxtases. Aos olhos esgazeados, as indicações de vidência. Os modelos seriam loucos do Nuncio Viejo, um hospício da época, e a ausência de dados biográficos, a prova cabal da vida reclusa de um homem estranho, de quem não se sabe nem ao menos se foi ou não casado com Jerónima de las Cuevas, mãe de seu único filho. Assentada a legenda de místico, colocados os quadros como espelho de um espírito conturbado, orbitando em torno das próprias emanações, estava armada a cena para a recuperação acadêmica da pintura de El Greco. O esforço para romper com uma arte fluida e luminosa e trazer à tona a materialidade do mundo — com sua resistência, resíduos e crueza —, enfim, a tentativa de proce87
der a um começo de desespiritualização da estética foi transformada no oposto: todas as deformações e distorções das obras, as inovações formais e colorísticas passaram a ser cadastradas rio quadro da espiritualização da matéria e das formas. Paralelamente, estabelecia-se uma outra mudança de sentido muito curiosa. Do modo como foi articulado e acolhido, o misticismo de El Greco tornou-se sinônimo de antiintelectualismo. Ora, recusar — principalmente no Renascimento — o misticismo como uma atividade intelectual implicaria a rejeição de todo o pensamento da época, num momento em que praticamente não havia pensador que não se visse às voltas com a magia, a cabala, a astrologia e outras ciências mais ou menos ocultas. Dentro deste balizamento, ao receber a investidura de místico, El Greco completaria, com Santa Tereza d’Ávila (1515-1582) e San Juan de la Cruz (1542-1591), a grande trindade espiritual espanhola, fortalecendo um atavismo infenso às operações do saber. E inclusive não fica imune aos trâmites nacionalistas, que veem nele o porta-voz de traços fundamentais da Pátria: “Triste é, em geral, toda a pintura espanhola, como o caráter da raça”37, diz Cossío ao comentar o Enterro do Conde de Orgaz. Se atentarmos entretanto para os poemas de
37 COSSIO, Manuel. Op. Cit. p. 194
88
San Juan de la Cruz e para os escritos de Santa Tereza d’Ávila veremos tanto as sutilezas de um pensamento refinado quanto a enorme distância que os separa da obra de Greco. Afora o presumido misticismo que, enquanto generalidade, uniria os três, algumas particularidades são ressaltadas nos confrontos entre as obras. Viu-se no fogo e na luz tão presentes nas poesias de San Juan a longa mão do neoplatonismo, e, a partir daí, a associação com Greco foi imediata. No poema Llama de Amor Viva, por exemplo: “Oh lámparas de fuego, / en cuyos resplandores, / las profundas cavernas del sentido, / que estaba oscuro y ciego, / con extraños primores, / calor y luz dan junto a su querido!” Ou na Subida del Monte Carmelo: “En la noche dichosa, / en secreto, que nadie me veia, / ni yo miraba cosa, / sin otra luz ni guía, / sino la que en el corazón ardía.” Àqueles que interpretaram os trabalhos de Domenikos Theotokopoulos na chave do neoplatonismo nada mais coerente do que apontar sua afinidade com a poética de San Juan. Sem querer fazer uma análise literária dos versos citados, sobressai neles todavia o poder vivificador da luz, seu caráter internamente purificador, além de metáforas mais diretamente platônicas, como “las profundas cavernas del sentido”. Mas como aceitar esta aproximação quando se observa que 89
nas telas de Greco a luz é tinta, e que, em vez de purificar, coagula-se; quando para ele o mundo das sombras é a única realidade possível? As comparações com Santa Tereza d’Ávila, por sua vez, em geral partem de uma passagem da religiosa que, ao menos, tem a vantagem de conter uma menção explícita à pintura: “Vejo um branco e um vermelho de uma condição que não se encontra em parte alguma da Natureza, pois resplandecem com mais brilho e esplendor que as cores que vemos; e vejo pinturas como pintor algum jamais pintou, cujos modelos não se encontram em nenhuma parte da Natureza, mas que, não obstante, são a Natureza mesma e da forma mais acabada possível”. Retirada do contexto, a frase poderia ser assinada por El Greco. Mas também por Matisse, Klee, Rothko, Albers... Na realidade as coisas não são bem assim. Com algumas ressalvas, o pensamento místico espanhol lembra muito — ao menos em alguns aspectos — o neoplatonismo italiano. Só que o caráter poético do pensamento de um Ficino irá encontrar em Santa Tereza, por exemplo, um enfoque mais “existencial”. Ao invés de, por meio da poesia, encontrar a correspondência e a comunhão entre as coisas, o êxtase místico é essa comunhão. Afinal, “a alma que não pode discorrer, se ela persevera, chega 90
bem mais rápido à contemplação” (Santa Tereza). No relato autobiográfico Livro de sua Vida, a fundadora da ordem das carmelitas narra de maneira comovedora a sua “experiência interior”, os quatro graus de oração (mental, de quietude, de união e êxtase completo) que devem ser percorridos para se obter a completa união com Deus. Neste momento, cessa a ação das três potências da alma: memória, vontade e entendimento. Perseguindo as delícias divinas com rigor e método verdadeiramente cartesianos — sem mesmo faltar aí uma espécie de Gênio Maligno, pois “O espírito das trevas poderia, com efeito, transfigurar-se” —, esse espírito alcança a glória no exato instante de sua extinção: “O fogo do sol que iluminou a alma deve ter sido muito ardente, pois ele a liquefez”. É impossível deixar de ver na poética de Santa Tereza paralelos significativos com o neoplatonismo. Para esta corrente filosófica “atinge-se a verdade por uma visão interior que proporciona o número e o ritmo, vale dizer, a alma dos seres, esta alma que o artista descobre e transmite em suas criações, que não fazem mais que reproduzir o ato mesmo pelo qual o Artista divino criou aquilo que é” (Eugenio Garin). Nos dois pensamentos, o espírito deve realizar uma ascese que leve à integração perfeita com Deus — a fonte de 91
toda luz —, gerando assim uma relação mimética literalmente divina. As pinturas “cujos modelos não se encontram em nenhuma parte da Natureza” de que fala Santa Tereza não são uma antevisão da autonomia da arte moderna. Ao contrário, são a obra mais legítima do artista que imita os gestos do Arquiteto divino de que nos fala o neoplatonismo. Definitivamente El Greco não participa deste frenesi interior. Sua pintura não pressupõe um sujeito que aja na intimidade do ser e refaça os movimentos do Criador. Como vimos, com ele o artista está irremediavelmente separado da tela por uma distância que acabará se instalando na própria textura dos quadros. Mais recentemente, no entanto, alguns estudos, sobretudo norte-americanos, têm mostrado El Greco como uma figura eminentemente intelectual. Partindo da análise do seu círculo de amizades, do depoimento de alguns contemporâneos e do exame de seus trabalhos, concluem que o artista, longe de ser um místico, exercia atividades típicas de um erudito espanhol da época. E, em lugar da personalidade misteriosa que povoava a maior parte dos escritos, surge agora o autor de uma obra que seria o “veículo para a expressão do pensamento e da devoção da Contra-Reforma” ( Jonathan Brown). Sarah Schroth identifica na 92
adaptação dos trajes dos cavalheiros presentes no Enterro do Conde de Orgaz uma tentativa de consolidar no presente o exemplo das almas caridosas, virtude que a Reforma contestava. Susan J. Barnes observa nas obras de Greco para o Hospital de Caridade de Illescas a ilustração das virtudes cristãs caras ao Concílio de Trento: fé, esperança e caridade. Richard G. Mann, numa análise mais sofisticada, vai além de uma simples leitura temática dos quadros e busca afinidades entre os ensinamentos de Bartolomé Carranza de Miranda — arcebispo de Toledo entre 1558 e 1576 e defensor austero dos princípios da Contra-Reforma, mas que chegou a ser perseguido pelo Santo Oficio — e certos traços estilísticos de Greco. Ora, que Domenikos Theotokopoulos sofreu as influências em seus temas do ideário da Contra-Reforma é quase uma obviedade. Toledo era um dos mais importantes centros de propagação das decisões do Concílio de Trento e a Igreja local praticamente detinha o monopólio das encomendas artísticas. Em muitos casos, inclusive, as cenas representadas eram prévia e minuciosamente descritas pelas autoridades eclesiásticas. Também é claro que não interessa perpetuar a lenda de um El Greco excêntrico, espécie de mariposa de sua luz interior. Mas de místico a frio ideólogo da 93
Contra-Reforma há uma distância muito grande. É de se indagar como seria possível construir uma grande arte sem a presença de um pensamento próprio, apenas como tradução de um saber dado de antemão? Tem muito mais razão David Davies quando diz que “embora vários de seus quadros ilustrem temas da Contra- Reforma, sua interpretação estilística. especialmente depois de 1580, não está de acordo com as propostas do Concílio de Trento, posteriormente transformadas em teoria artística. A insistência tridentina na clareza da apresentação seria refletida na corrente ênfase no naturalismo e na conformidade a um conjunto de regras”. Não foi à toa que Filipe II recusou o Martírio de São Maurício. Escrevendo sobre o caso, frei José de Sigüenza — um contemporâneo do acontecimento — diz que a obra “não contentou a Sua Majestade... porque contenta a poucos”38. E prossegue a explicação afirmando que a arte destinada à admiração de todos deve “corresponder à razão e à natureza, que está impressa em todas as almas”39. Refletindo fielmente o ideal estético da Contra-Reforma, Sigüenza reivindica para a arte clareza e rápida compreensão, não tolerando que razões estilísticas se sobreponham à nitidez do conteúdo. A essas colocações, El Greco replicaria
38 SIGÜENZA, Fray Jose
de. Um Domenico Grego, que Ahora Vive… In LÓPEZ, Manuel Villegas (org.) Op. Cit. p. 15 39 SIGÜENZA, Fray Jose de. Op. Cit. p. 16
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com as palavras de Góngora: “Naturalidade — que pobreza de espírito. Clareza — que falta de pensamento”. Que El Greco era um homem atento às discussões intelectuais de seu tempo atestam, além de seus quadros, os tratados que escreveu — embora nunca tenham sido encontrados —, as anotações aos livros de Vitrúvio e Vasari e o perfil de seus principais amigos em Veneza, Roma e Toledo. Afora o convívio com os mais importantes pintores de Veneza e a elite que frequentava o Palácio Farnese em Roma, Greco teve em Toledo acesso a pessoas ilustres como, entre outras, Pedro Chacón, encarregado da reforma do calendário gregoriano, o historiador Pedro de Salazar y Mendoza, os irmãos Antonio e Diego de Covarrubias, importantes juristas e teólogos, os clérigos Luis e Diego de Castilla, o poeta e jurista Gregorio Angulo, o poeta e escritor agostiniano Luis de León, o arcebispo de Toledo, cardeal Gaspar de Quiroga, o bibliotecário do Escorial, Benito Arias Montano e seu trabalho mereceu versos de frei Paravicino e de Góngora. Cercado por gente que lidava com o pensamento mais refinado do tempo, El Greco não deixou de absorver e processar as questões que dominavam os debates. Por muito tempo, a Espanha manteve um in95
tercâmbio ativo, ao menos ao nível da elite, com o resto da Europa. Mas entre a coroação de Filipe II, em 1556, e o encerramento do Concílio de Trento, em 1563, várias medidas coercitivas frearam o desenvolvimento do Renascimento espanhol. Em 1558, é proibida a importação de livros. No mesmo ano, os textos publicados na Espanha passam a ser censurados, e no ano seguinte deixam de ser permitidas as viagens de estudo para além de suas fronteiras. Sem dúvida, a interrupção do contato com outras culturas atrofia o desenvolvimento do humanismo espanhol. Sempre aberta às influências da Itália e dos países do norte, a Espanha quinhentista assimilará naturalmente o pensamento das outras nações. Não é portanto de se espantar que o historiador J.H. Elliott, no livro Espanha Imperial 1469-1716, afirme que “a invasão erasmiana da Espanha é um dos mais notáveis eventos da história espanhola do século XVI. Em nenhum outro país da Europa os escritos de Erasmo gozaram de tanta popularidade e de uma difusão tão ampla”40. O cerceamento cultural imposto por Filipe II entretanto não chegará a ser totalmente efetivo, e membros da nobreza local continuam a buscar as universidades da Itália, de Flandres e mesmo da França para prosseguir seus estudos. Nas artes no entanto a situação é diferente.
40 ELLIOTT, J.H. Imperial Spain 1469-1716. Penguin Books, p. 109 96
Pintores e escultores espanhóis — embora de talento relativamente medíocre — são considerados simples artesãos e colocados lado a lado com ourives, marceneiros e outros trabalhadores manuais mais especializados. Enquanto na Itália os artistas haviam conquistado, desde o começo do século XVI, uma situação mais adequada ao desenvolvimento de suas atividades, na Espanha permanece o velho estatuto. É sobretudo nos confrontos com essa ordem vigente que El Greco exibe uma de suas mais importantes facetas. Acostumado com os modos de tratamento dedicados aos artistas de Veneza e Roma, ele não consente que um trabalho intelectual como o seu seja avaliado segundo normas relativas ao artesanato. Na verdade El Greco é o primeiro grande pintor espanhol. Artistas anteriores a ele, como Alonso Sanchez Coello (15311588) e Luis de Morales (circa 1520-1586), não vão muito além de uma tentativa pouco feliz de aproximar-se da arte italiana, quando não descambam num maneirismo artificial. Quando chega a Toledo, Greco encontra tanto um sistema de determinação do conteúdo das obras que lhe causará muitos problemas quanto um método de avaliação das telas contra o qual ele se baterá até os últimos dias de sua vida. Em geral, ao contratar um trabalho, o artista recebia 97
um adiantamento para o custeio dos materiais. O preço final da obra era determinado, quando de sua conclusão, por dois avaliadores (tasadores) — representando cada uma das partes. No caso de um impasse, designava-se um árbitro especial (juez árbitro) para resolver a pendenga. Na impossibilidade de conciliação, o processo era mandado para as cortes. No excelente ensaio El Greco e a Lei 41,Richard L. Kagan prova como, no fim, essa sistemática era francamente prejudicial aos artistas. Inseguros do desfecho do processo e muitas vezes sem recursos para sobreviver durante os trâmites legais, viam-se forçados a aceitar acordos aviltantes. Antecedido em Toledo por dois únicos artistas — Francisco de Villalpando e Alonso de Berruguete — que também lutaram pela dignidade da arte, El Greco levou a cabo ao menos cinco processos na busca de preços mais justos para os seus trabalhos. E contra senhores poderosos, como a Catedral de Toledo, o Hospital de Caridade de Illescas e a Igreja de São Tomé. Obteve algumas vantagens e em alguns casos, como na contenda de Illescas quase foi à ruína. Mas inquestionavelmente ajudou a mudar o estatuto das artes na Espanha, dando-lhe — com sua obra e suas lutas — uma dimensão intelectual poucas vezes alcançada.
41 KAGAN, Richard L. In
BROWN, Jonathan. Figures of thought, El Greco as interprer of history, tradition and ideas. Washington, D.C. : National Gallery of Art, 1982. 98
*** Hoje, quando um certo dandismo edificante quer se impor nas artes plásticas, pode parecer sintomática a retomada desta figura eivada de mistério que foi El Greco. Cada época constrói os seus mitos e não foi obra do acaso a redescoberta de Domenikos Theotokopoulos pelo Romantismo. Poderíamos sem dúvida sugerir nestas linhas uma figura debruçada sobre suas próprias efusões místicas, a percorrer furiosamente os labirintos de Toledo, embriagado da luz cristalina da Espanha central. Ou então, inversamente, esboçar um tipo soturno e melancólico, sempre insatisfeito, perseguindo idealidades estéticas fugidias e invejoso das habilidades únicas do Criador. Numa época tão afeita a espelhos e auto-retratos, é no mínimo intrigante ver um artista que não nos legou uma só imagem do seu próprio rosto e que tão poucas pistas deixou para a reconstrução de sua vida. E no entanto poucos pintores — a despeito da própria vontade — encarnaram tão solidamente a personalidade excêntrica do Artista. Mais um homem de paradoxos. Pode ser. A meu ver, contudo, uma figura exemplar. Uma demonstração cabal de que a vontade estetizante de fazer 99
arte é geralmente o caminho menos indicado para a realização de uma verdadeira arte. El Greco conviveu com uma corrente artística que, pela primeira vez, incorporou a história da arte ao próprio fazer e soube desvencilhar-se dos olhares codificados e realizar uma obra que reproblematizou os traços de linguagem depurados pelos maneiristas. Atualmente, quando a decadência dos movimentos construtivos parece descambar para um novo maneirismo acadêmico, com seus cansativos e burocráticos jogos de linguagem, seria interessante atentar para as soluções encontradas por El Greco. Foi o que fez Velázquez. Foi o que fizeram, cada qual a seu modo, Delacroix, Manet, Degas e Cézanne. Por certo não se trata de reinvocar as gentilezas da ingenuidade, com seus sobressaltos de donzela. Mais do que nunca a arte é a história da arte. Mas a história da arte é a história conflagrada de um pensamento, e não a crônica mundana da sucessão e cristalização dos estilos.
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Cronologia
1541
El Greco (Domenikos Theotokopoulos) nasce em Cândia, capital de Creta, então possessão veneziana.
1547
Nasce Cervantes.
1556
Filipe II é coroado rei da Espanha.
1558
Proibição da importação de livros e censura aos textos publicados na Espanha.
1559
Proibição das viagens de estudo. Morte de Carlos V.
1562
Encerramento do Concílio de Trento.
1564
Morte de Michelangelo.
15671570
El Greco vive e trabalha em Veneza.
15701577
El Greco permanece em Roma.
1576
Morte de Tiziano.
1577
El Greco chega a Toledo.
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1578
Nasce Jorge Manuel, filho de Greco e de doña Jerónima de las Cuevas. Anexação de Portugal pela Espanha.
1580
El Greco é encarregado por Filipe II para pintar o Martírio de São Maurício.
1585
El Greco aluga do marquês de Villena uma casa de 24 cômodos.
1586
Contrato para execução do Enterro do Conde de Orgaz.
1594
Morte de Tintoretto.
1598
Morte de Filipe II. Filipe III é proclamado rei da Espanha.
1599
Nascimento de Velázquez.
1605
Publicação da primeira parte do Dom Quixote.
1609
Expulsão dos mouros da Espanha por ordem de Filipe III.
1614
El Greco morre em Toledo no dia 7 de abril. Cronologia baseada no catálogo El Greco of Toledo (1982) e no livro El Greco de Paul Guinard (1956).
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Indicações para leitura
Não há praticamente nada em português sobre El Greco. Quem quiser conhecer um pouco mais sobre a vida e obra de Domenikos Theotokopoulos deverá recorrer a textos em outros idiomas. Umas das obras mais recentes e mais atualizadas sobre o cretense é o catálogo El Greco of Toledo (New York Graphic Society), publicado por ocasião da grande mostra sobre El Greco (abril de 1982 — fevereiro de 1983) organizada pelo Toledo Museum of Art (Toledo, Ohio), com a colaboração do Museu do Prado, da National Gallery of Art de Washington e do Dallas Museum of Fine Arts. O catálogo contém textos de Jonathan Brown, William B. Jordan, Richard L. Kagan e Alfonso E. Pérez Sánchez, com análises que vão da relação entre a história de Toledo e a obra de Greco à reconstituição dos retábulos projetados e realizados por ele e hoje, em muitos casos, dispersos por vários museus do mundo. O crítico e historiador Jonathan Brown é, a meu ver, o autor das melhores análises sobre Greco. Existe em espanhol. O também norte-americano David Davies tem um excelente ensaio no livro El Greco (Phaidon/E.P. Dutton), acentuando sobretudo as influências do ambiente intelectual da Itália e de Toledo na obra de Theotokopoulos. Ainda dos trabalhos mais recentes, será interessante consultar o volume 11 104
da publicação Studies in the History of Art, ligada à National Gallery of Art de Washington, intitulado Figures of Thought: El Greco as Interpreter of History, Tradition and Ideas. A revista traz vários ensaios sobre Greco, com um espectro que vai das disputas legais do cretense às suas relações com a Contra-Reforma. O livro mais completo sobre El Greco continua sendo El Greco and His School (Princeton University Press), publicado em 1962 por Harold E. Wethey. Embora estudos mais recentes revelem algumas falhas, permanece o essencial. Existe tradução espanhola (Ediciones Guadarrama, 1967). O livro de Paul Guinard publicado pela Skira, mesmo com algumas imprecisões históricas, é extremamente útil. Tem edição em francês e inglês. Por fim, é praticamente imprescindível ler a obra de Manuel B. Cossío, autor do primeiro estudo sério a respeito de El Greco, publicado em Madri em 1908. Sobre o neoplatonismo e suas relações com a arte, o livro de André Chastel Marsile Ficin et l’Art (Librairie Oroz) é fundamental. A coletânea de ensaios Moyen Age et Renaissance (Gallimard — o texto original tem como título Medioevo e Rinascimento) do italiano Eugenio Garin é preciosa para o entendimento do pensamento da época e seus vínculos com a magia, a astrologia e a arte. 105
Nos seus Essais d’Iconologie (Gallimard), Erwin Panofsky tem textos reveladores sobre a influência do neoplatonismo na arte de Florença, Roma e Veneza. O original é em inglês. A discussão sobre o Maneirismo tem no livro de Arnold Hauser A Crise da Renascença e o Surgimento da Arte Moderna (Perspectiva/Edusp) uma excelente introdução, embora às vezes o lado sociológico force um pouco as interpretações. Maneirismo: o Mundo como Labirinto (Perspectiva/Edusp), de Gustav Hocke, a despeito de sua abrangência um tanto excessiva, mostra aspectos importantes do ideário maneirista e seu prolongamento na arte moderna. Um excelente resumo do assunto pode ser lido no livro do estudioso húngaro Tibor Klaniczay. A tradução italiana intitula-se La Crisi del Rinascimento e il Manierismo (Bulzoni). O ensaio pioneiro de Max Dvorak Ueber Greco und den Manierismus (do livro Kunstgeschichte als Geistesgeschichte, Maeander Kunstverlag) é uma das melhores interpretações sobre as origens da arte de El Greco. Tem tradução em inglês. Sobre a figura serpentinata o ensaio de David Summers Maniera and Movement: the Figura Serpentinata (Art Quarterly 35, 1972) é muito instrutivo. O livro Imperial Spain, de J.H. Elliott (Meridian), oferece uma boa introdução à história espanhola. 106
Quanto aos quadros de El Greco, salvo engano, há três deles no Brasil. O Museu de Arte de São Paulo tem uma Anunciação e um São Francisco Recebendo os Estigmas. As duas telas não são reconhecidas como autênticas por Harold Wethey. No Rio de Janeiro, na coleção Von Watzdorf (particular), está o quadro Fábula, o único que Wethey reconhece como sendo verdadeiramente pintado por Greco.
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Sobre o autor
Nasci em São Paulo mas fui criado em São José dos Campos, no interior do Estado. Voltei para a capital em 1973, onde me formei em Jornalismo pela ECA-USP. Participei da formação de alguns jornais (Avesso, Beijo, A Parte do Fogo), escrevi em outros e por pouco mais de um ano (1983) editei o suplemento Folhetim da Folha de S. Paulo. Com alguma frequência escrevo sobre artes plásticas. Quase sempre ganhei a vida como revisor, coisa que faço até hoje.
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