Van Gogh: a salvação pela pintura

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Van Gogh: a salvação pela pintura Rodrigo Naves

Com muita frequência a biografia atormentada de Van Gogh se sobrepõe a sua obra. E talvez seja de fato impossível deixá-la de lado. Afinal, a profunda angústia que o acompanha por toda sua breve existência – o pintor morreu com 37 anos, tendo deixado pouco mais de 800 telas e 800 desenhos e gravuras – pode encontrar, ao menos em parte, confirmação em sua obra. Contudo, quantas vidas não experimentaram sofrimentos semelhantes, sem que conseguissem revelá-los numa produção artística tão poderosa? Sem dúvida, o pintor teve momentos de profundo sofrimento mental e o alcoolismo o rondou por toda a vida. O maior problema de se partir da constatação de uma alma perturbada para a compreensão da obra de um grande artista reside no fato de considerar os transtornos mentais uma substância indefinida que se projeta sobre telas e papéis prescindindo de todas as mediações lúcidas que um trabalho de arte pressupõe1. Desse ponto de vista, os problemas mentais – até hoje tão pouco compreendidos – serviriam como ponto de apoio 1

A notável medica Nise da Silveira, que desenvolveu trabalho revolucionário com os internos do Engenho de Dentro, substituiu tratamentos violentos – como o uso rudimentar de eletrochoques – por atividades em ateliês de arte. Ela denominava o produto do trabalho dos internos (muitos dos quais chegaram a criar obras memoráveis) de “projeções de imagens do inconsciente”. Influenciada pela psicologia junguina, via nas pinturas, desenhos e esculturas criados pelos internos material para a compreensão da psicologia humana. Não tinha, acredito, a intenção de compreender os trabalhos de arte propriamente ditos. 1


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para o esclarecimento de uma atividade que também não tem origem clara e conceitual. Como se esse aparente paralelo (o pouco conhecimento de ambos os processos) ajudasse em algo mais que não a mitificação de ambas as atividades. Muitos artistas passaram por profundos sofrimentos mentais. Quase todos mantiveram momentos de maior ou menor lucidez justamente na luta para se expressar. A desconsideração dessa via de mão dupla não apenas petrifica as perturbações psíquicas como tende a reduzir o sentido de tantos trabalhos de arte ao “mundo interior” de mulheres e homens, a uma dimensão íntima. Quando lhes é negada a lucidez como condição para a criação artística, a abertura de suas obras para o outro e para a realidade tende a perder validade como uma ampliação do campo da experiência. Antonin Artaud – um dos principais homens de teatro do século XX, além de poeta e ensaísta – procurou no estudo provocativo e instigante “Van Gogh: o suicidado da sociedade” – libertar Van Gogh da condenação de louco. Artaud aparentemente inverte a posição geralmente

atribuída

ao

pintor

holandês2.

De

um indivíduo

descontrolado, incapaz de manter relações com o mundo real passa-se à condição de “gênio incompreendido”, “iluminado”, “consciência sobrenatural”. Invertem-se os sinais, mas, romanticamente, os artistas Antonin Artaud. “Van Gogh. O suicidado da sociedade”. Lisboa: Hiena Editora. 1987. Tradução de Aníbal Fernandes. 2

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permanecem sendo espíritos diferenciadamente elevados. “Van Gogh não morreu de uma condição de delírio a sério mas de ter sido corporalmente campo de um problema em redor do qual o espírito iníquo desta humanidade se debate desde as suas origens. O da predominância da carne sobre o espírito, ou do corpo sobre a carne, ou do espírito sobre uma e outro”3 Nessa passagem o raciocínio vai mais fundo, pois realmente desde o Renascimento defendia-se necessidade de ocultar a arte com a própria arte. E, para isso ocorresse, todos os elementos materiais envolvidos na realização de uma pintura (tinta, pincel, tela e mãos), precisavam ser sublimados, tornarem-se invisíveis para que o ideal neoplatônico de transparência – extremamente influente no período – se cumprisse. Leon Battista Alberti – um dos maiores intelectuais do Renascimento florentino – dizia que os quadros eram janelas que se abriam para o mundo. Dificilmente haveria metáfora mais pertinente para a pintura da época, embora a usada por Leonardo da Vinci – paredes de vidro – não ficassem muito atrás. Com essas belas metáforas, que de fato correspondiam à pintura esplêndida do período,

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Idem. P. 15. 3


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o corpóreo e o material deviam ser escamoteados, por estarem no patamar mais baixo dos seres: o mundo terreno e vulgar. As questões levantadas por Artaud nesse ensaio – que até por ser escrito fora dos padrões tradicionais – não se limitam à mudança de uma análise psicológica para uma ação social repressiva exercida sobre o artista. Voltarei a ele no momento adequado. Não é improvável que boa parte da lenda que envolve o pintor holandês, a ponto de se tornarem quase uma verdade indiscutível, tenha origem num filme de 1956, “Sede de viver” (“Lust for life”), baseado na biografia romanceada e muito vendida de Irving Stone. O filme foi dirigido por Vincente Minnelli e George Cukor, com Kirk Douglas no papel de Van Gogh e Anthony Quinn fazendo Gauguin. Não é um filme mal-intencionado. Começa quando do apoio de Van Gogh aos mineiros em greve no Borinage, chegando até seu suposto suicídio. Nele, embora o pintor tenha alguns momentos de fúria, não é um descontrolado que precisaria de internação constante e camisa-de-força. O filme carece, sobretudo, de discussões sobre arte. Algo que certamente seria maçante numa fita feita para ser – e realmente foi – sucesso de público. A loucura – consideremos por instantes essa hipótese – raramente é um bloco compacto sem abertura para os outros. A pior e 4


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mais enganosa consequência dessa abordagem estaria em apenas confirmarmos em seus trabalhos suposições já dadas pela vida de, digamos, um artista, com o que desenharíamos um círculo, talvez coerente, mas de pouquíssima eficácia explicativa. Harold Rosenberg, um dos principais críticos do chamado expressionismo abstrato – um nome que considerava equivocado, preferindo chamá-los action painters – supunha que mesmo a pintura altamente gestual de Willem de Kooning ou Jackson Pollock era uma “pintura feita através de dificuldades” e que supunha nos gestos do artista uma forte oposição à mera gestualidade. E ironizava: "Quando um tubo de tinta é espremido pelo Absoluto, o resultado só pode ser um Sucesso. (...). Seu gesto (do pintor) completa-se sem despertar sequer um movimento de oposição dentro do mesmo (...). O resultado é um papel de parede apocalíptico."4

II

Lionello Venturi, historiador da arte italiano, escreveu sobre Van Gogh que “desencorajado por esta série de fracassos” [amorosos, artísticos, religiosos, profissionais etc.5], “faz-se vagabundo, vive na

Harold Rosenberg. “A tradição do novo”. São Paulo: Perspectiva. 1974. P. 19. Tradução de Cesar Tozzi. Meu itálico. 5 Ver cronologia ao fim do livro 4

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miséria, mas vê uma esperança de salvação na pintura”6. Meyer Schapiro, historiador da arte norte-americano, afirma algo semelhante. Para Van Gogh a arte era um "destino pessoal no mais pleno sentido”7. As duas afirmações têm alguma relação com o que foi dito anteriormente, ou seja, a relação entre arte e vida para a compreensão da arte do pintor holandês. Contudo, a análise que ambos fazem dos trabalhos de Van Gogh vai muito além da afirmação da aura tragicamente romântica que o envolve. Como encontrar salvação e destino pessoal na obra – sobretudo na pintura – de Van Gogh? Suas telas muitas vezes são realizadas com grossas camadas de tinta – o que no jargão da pintura chama-se impasto. A espessura da massa de tinta irá constituir figuras a partir de pinceladas repetidas – por vezes paralelas, por vezes pluridirecionais – que parecem lutar contra o próprio material que procura torná-la a representação de pessoas e coisas reais. Esse trabalho singular – é difícil evitar essa sensação de uma atividade árdua propiciada por muitos quadros de Vincent Willem van Gogh – é, portanto, uma condenação, algo que não se pode cumprir, sob pena de deixar de ser uma tela de Van Gogh.

Lionello Venturi, “Para compreender a pintura (simbolistas e impressionistas”). Lisboa: Estúdio Cor. 1954, p. 174 7 Meyer Schapiro. “Vincent van Gogh”. New York: Abrams, 1982, p. 11. 6

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Quando observamos um automóvel ou uma geladeira, sabemos, apenas sabemos, que eles advêm do trabalho humano. Toda vez que algo feito implica a submissão total dos materiais empregados em sua fabricação, tanto o trabalho quanto a matéria empregada desaparecem para dar lugar a algo que parece ter se engendrado por si mesmo. A pintura de Van Gogh precisa estar condenada a uma tensão permanente entre a massa informe de uma matéria colorida e a figura de uma cadeira, de um monte de trigo ou de um rosto. O destino de sua vida repousa num trabalho sem fim, uma condenação, portanto, que a alguém formado na moral calvinista seria simultaneamente esperança de salvação. Para os católicos – embora Santo Agostinho já houvesse formulado, no século IV, uma teoria da predestinação, distinta da dos calvinistas – o Reino dos Céus seria obtido pelas boas ações e pela obediência aos ensinamentos evangélicos. Para os protestantes, sobretudo nas suas versões calvinistas, essa concepção corresponderia a pôr em pé de igualdade Deus, mulheres e homens. Como se Deus fosse um contabilista divino a fazer somas e subtrações em torno da qualidade das atividades humanas. Para os protestantes, esse raciocínio seria herético. Há na verdade uma escolha autônoma de Deus – vem daí a teoria da predestinação. Aqueles que seriam salvos no dia do Juízo Final já 7


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haviam sido eleitos por Deus. Talvez (apenas talvez) houvesse sinais que evidenciassem exteriormente que um indivíduo fora escolhido: a riqueza obtida pelo trabalho incansável, a racionalização do mundo para maior glória de Deus. Sumariamente essas ideias ajudam a entender a dimensão mais dramática do trabalho para os protestantes do que para os católicos.

III

Em “Campo de trigo” de 1889, [Figura 1, ver também figuras 2 e 3], o amarelo mais estático e homogêneo do céu e do sol desencadeia, ao transpor os montes, uma magnífica dinâmica constituída por tons diversos da mesma cor. As áreas em que o trigo já foi ceifado se diferenciam das demais áreas apenas pelas mudanças dos tons de amarelo e pelo direcionamento das pinceladas.

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Figura 1 (cor)

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Figura 2 p/b

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Figura 3 p/b

Esse movimento sugere o começo de uma espiral que culmina no topo do monte de trigo. E então o predomínio das pinceladas direcionadas, que até esse momento pareciam domesticar a massa de tinta amarela, figurando-a e tornando-a trigo, cessa. O escurecimento do amarelo na parte mais alta do monte de trigo, de par com pinceladas mais difusas, põe em xeque a capacidade de formalização do trabalho do pincel. 11


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Quando voltamos à parte central da tela, torna-se difícil não a observarmos sob a influência do turvamento ocorrido com a cor e com figuração no ponto culminante da espiral. E então várias áreas de trigo cortadas se mostram mais como uma matéria luminosa do que como o pedaço de um trigal. Para que seja salvação no sentido calvinista, sua pintura precisa manter permanentemente essa tensão entre matéria e figuração. E me parece fora de dúvida que, ao menos em parte, a condenação a esse tipo de trabalho – que tem uma natureza oposta à da produção industrial – decorre da formação calvinista que recebeu desde a infância. Seu pai era pastor da Igreja Reformada da Holanda, de orientação calvinista, seu avô igualmente esteve ligado ao ideário protestante e o próprio pintor foi pastor metodista assistente, em 1879, numa região de mineração de carvão extremamente pobre no Borinage, Bélgica. Ao menos desde a clássica análise de Max Weber em “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, publicado inicialmente em duas partes em 1904 e 1905, é difícil pôr em xeque a associação entre protestantismo e inclinação para o trabalho. Quando observamos os desenhos de Van Gogh, constatamos que, neles, a ausência da dimensão material de sua pintura muda consideravelmente o significado dessas obras. 12


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Em todos os desenhos abaixo [figuras 4, 5 e 6] prevalece uma dimensão decorativa encantadora – como os pontos de uma tapeçaria – constituída pelas diferentes direções dos traços de tinta marrom e aquarela e pelo uso de padrões distintos de pontos e linhas. Retas aqui, curvas acolá, sinuosas mais além. Mas não vemos aí aquela tensão entre matéria e figuração. Nos desenhos tudo é leveza. Foram feitos para serem movidos pelo vento. É ele a sua matéria e não as espessas massas de tinta.

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Figura 4 (p/b)

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Figura 5 (p/b)

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Figura 6 (p/b)

Já na aquarela em que as linhas se sobrepõem [Figura 7], surge uma configuração levemente próxima à das telas, pois já não se tem a impressão de uma cena tão clara e imediata.

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Figura 7 (p/b)

Em algumas poucas pinturas, a massa de tinta é tão rala, que sucede algo parecido com o que se vê nos desenhos. Em “Les vassenots” [ver Figura 8], os toques mais delicados do pincel com pouca carga de tinta qualificam realisticamente as áreas de vegetação e ajudam a acentuar o espaço perspectivo, sem que a matéria colorida ponha em questão aquilo que o pincel, como instrumento de modelagem, procura realizar. 17


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Figura 8 (p/b)

IV

Outro aspecto de sua pintura ajuda a confirmar essa hipótese sobre a necessidade de um trabalho infindável para que essas telas “inacabáveis” se mostrem como salvação. Há em muitos quadros de Van Gogh um aspecto meio rústico. Um acabamento algo tosco que, não raramente, levou críticos relevantes – como Roger Fry e Clement 18


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Greenberg – a afirmar que a dificuldade de o pintor controlar seu temperamento e, assim, conseguir aperfeiçoar sua técnica, conduziu-o a limitações próximas à dos pintores naïf8. Opondo-se a essa visão, Meyer Schapiro escreve: "Em lugar de trabalhar apenas com cores puras, como fizeram muitos primitivos, ele opera com variações de pureza e assim dá à intensidade um caráter tenso, emergente e climático. Nos “Girassóis”9 [Figura 11] o amarelo mais saturado e puro é um termo final de uma série de amarelos brilhantes, alguns mais claros, outros mais escuros, alguns mais alaranjados ou esverdeados. Esse leque de saturações é o sentido especificamente moderno de sua cor.”10 O “Retrato do Père Tanguy” (1987-88) [Figura 10] é um bom exemplo da mesma questão e ajuda a ampliar a compreensão desse aspecto de suas pinturas. Ele era um comerciante de materiais artísticos que por vezes ajudava pintores em dificuldade a vender seus quadros. O fato de também ser um socialista fervoroso possivelmente ajude a explicar seu apoio aos artistas menos bem-sucedidos e o carinho que eles lhe dedicavam. Nessa segunda pintura em que Van Gogh tomou-o como modelo, o artista dá a impressão de ter trabalhado com Ver, por exemplo, de Roger Fry, “Vincent van Gogh”, em Transformations. Nova York, Brentano´s, 1926; de Clement Greenberg, “Review of exhibitions of Van Gogh and the Remarque Collection”, em Perceptions and Judgements, 1939-1944. Chicago, The University of Chicago Press, 1988. 9 O autor se refere à versão que se encontra na National Gallery de Londres, pintada em Arles em 1888. 10 Meyer Schapiro. Op. cit. P. 21 8

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instrumentos de escultor11, tal a aspereza com que a figura humana é tratada, assemelhando-se a uma escultura de madeira pintada, algo frequente na estatuária “popular”. O contraste do comerciante de tintas e telas com as leves figuras das xilogravuras do segundo plano acentua ainda mais o aspecto meio enrijecido do Père Tanguy12. “Esse leque de saturações” a que Schapiro atribui “o sentido especificamente moderno de sua cor” se opõe ao uso dos meios-tons, usado em quase toda a pintura anterior para obter o claro-escuro e, com ele, a ilusão de volume dos corpos. No retrato do Pére Tanguy, a dimensão moderna reside, entre outros aspectos, na recusa a usar uma fatura mais áspera no primeiro plano, em oposição a um tratamento mais doce dos elementos do plano de trás. A própria oposição entre a relativa rigidez do velho comerciante de materiais artísticos e as delicadas figuras femininas das xilogravuras é que irá acentuar o contraste entre os dois planos do quadro.

Julius Meier-Graefe, “Modern art”. London: William Heinemann. 1908. p. 205 e 209. Esse estilo de xilogravura japonesa era conhecido como ukiyo-e, literalmente “pinturas do mundo flutuante” – no sentido de passageiro e transitório – teve grande força no Japão, entre os séculos XVII e XIX e era muito apreciada por impressionistas e pós-impressionistas. Van Gogh possuía vários desses trabalhos, além de se interessar também pelos gravadores populares ingleses. 11 12

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Figura 10 (cor)

Como no “Par de botas” [Figura 11] – na verdade as duas botas correspondem ao pé direito de uma pessoa –, há em ambas as telas um aspecto gasto, formas que foram dadas pelo uso ou erodidas por elementos naturais. Não custa acentuar que se trata de botas de trabalho, o que lhes confere aos olhos do artista uma dignidade singular, que a base azul acentua. Ele é pintado em tons mais baixos, o 21


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que os aproxima da terra. Diante dele a sensação despertada não tem tanto a ver com o “amor universal” mencionado por Fry. Há aí um sentimento mais sereno. A fraternidade com um companheiro de trabalho.

Figura 11 (p/b)

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Figura 12 (cor)

V

Até esse ponto, poderíamos afirmar que Van Gogh representa o mundo dos fenômenos, aquilo que conhecemos por meio dos sentidos. Existem, porém, outras obras que parecem ir além dessa posição consideravelmente tradicional, na qual um sujeito representa um objeto. O historiador sueco Sven Loevgren aponta no quadro “Noite estrelada” [Figura 13] uma dimensão que superaria essa relação: 23


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“explorando o conflito latente entre o mundo fenomênico e o numênico13, ele alcança uma visão da arte nova e única”.14

Figura 13 (cor) A afirmação, além de original, torna possível ver na obra do pintor uma dimensão até então desconsiderada e repleta de novas possibilidades analíticas, mesmo porque essa tela remete a vários outros trabalhos do artista. A relação conflituosa entre o fenomênico e o numênico leva a uma convulsão da matéria. O mundo real parece Na terminologia kantiana, “numênico” diz respeito ao mundo das coisas em si, que, diferentemente do mundo das aparências, não se mostra aos sentidos. Talvez, de maneira pouco rigorosa, o mundo numênico possa ser comparado ao à esfera das essências platônicas. 14 Sven Loevgren. “The genesis of modernism”. Indiana University Press. 1971. P. 169. 13

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recusar sua aparência dada, como se a dinâmica desencadeada na metade superior do quadro pusesse em ação um jogo de forças que não pode ser contido pela aparência externa das coisas do mundo. Nesse trabalho, em que o impasto não é tão marcante, a tensão entre matéria e figuração transpõe-se para um nível cósmico. Tudo se passa como se o pintor testemunhasse o desdobramento de forças e energias que a muito custo logra representar. O que justifica a “visão da arte nova e única” a que se refere o historiador sueco. Nas palavras mais impudicas de Artaud: “Vazadas com o punção de van Gogh as paisagens mostram a sua carne hostil, o mau humor das suas pregas esventradas, a ponto de nem sabermos que força estranha se encontra, por outro lado, em processo de metamorfose.”15 A observação de Artaud – também ele considerado louco e foi internado várias vezes – até por ser poética, irá retomar a primeira citação que fiz dele.

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Antonin Artaud. Op. cit. P. 17. Por não ter acesso ao original francês, servi-me, em parte, na tradução desse trecho (e encontrada na internet) da versão de Fred Teixeira. 25


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“mas de ter sido corporalmente campo de um problema em redor do qual o espírito iníquo desta humanidade se debate desde as suas origens. O da predominância da carne sobre o espírito, ou do corpo sobre a carne, ou do espírito sobre uma e outro”16

Figura 14 (p/b) Não acredito estar exagerando meu raciocínio ao aproximar as duas passagens no pequeno livro de Artaud ao sentido geral da obra de Van Gogh. O sentimento material que o pintor tem do mundo tanto o leva a fender sua capa quanto a responder às demandas de seu corpo

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Referência já citada. 26


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(instintos?) de maneira menos convencional.

VI

No “Autorretrato com chapéu de feltro” [Figura 14], o tema se presta menos àquela expansão cosmogônica da pintura anterior. Em geral, retratos não possibilitam a revelação de forças mais amplas, limitando-se à caracterização social ou psicológica dos indivíduos por meio do ambiente que o cerca ou pelo uso de símbolos ou adereços pelo retratado. Neste caso, porém, as pinceladas mais circulares que envolvem sua

cabeça

coberta parecem catalisar forças

que,

posteriormente, emanam de seu rosto como centelhas capazes de magnetizar toda a atmosfera que o envolve. O artista se mostra um condutor de vibrações incontidas, que vão muito além de seus limites estritamente físicos. Essa solução da relação entre o figurado e seu espaço também representa uma inovação radical em relação à longa tradição dos retratos. Os traços que constituem seu rosto, predominantemente retos, como os pelos da face de um animal, diferenciam-se marcadamente da circularidade do espaço ao redor. Mas, em lugar de ambos se destacarem, os pequenos raios traçados pelas pinceladas breves cria entre eles um termo comum e os aproxima, problematicamente, é certo, 27


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como tudo que sai do pincel do artista. Em outra passagem notável, Meyer Schapiro amplia ainda mais o arco de significações dos temas e pinceladas de Van Gogh. “Durante os anos em Saint-Rémy, ele era atraído especialmente por temas que envolviam tensão; paisagens instáveis, bloqueadas e convulsas; por um mundo cataclísmico de movimentos tempestuosos e transtornados, uma natureza sofrida e perturbada; por grandes montanhas em declive, colinas e rochas tumultuosas e campos que despencam velozmente como um curso d´água; por nuvens gigantescas, tortuosas, expandindo-se incansavelmente; por espaços selvagens de espessa vegetação rasteira, ravinas e pedreiras; por chuva, por árvores agitadas, por ciprestes contorcidos, flamejantes, com as silhuetas projetadas contra o céu, árvores torcidas, inclinadas, atormentadas, com massas de folhagem agitadas e galhos partidos em forma de X (um motivo já utilizado por Delacroix em seu “A luta de Jacó com o anjo”), oliveiras com os galhos irregulares, inclinados, esticando-se; árvores gesticulando seus ramos sobre uma rua rasgada pelo calçamento e uma árvore mutilada por raio, a lembrar as palavras de Jonathan Swift, antecipando sua própria loucura: “Morrerei ao chegar ao topo.”17

17

Op. Cit. P. 23 28


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Figura 15 (cor)

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Figura 16 (p/b)

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Figura 17 (p/b)

Todas essas telas (Figuras 15, 16 e 17) confirmam a análise de Schapiro, embora não cheguem à dimensão cosmogônica de “Noite estrelada”. A representação torturada de todos as coisas retoma algo da dinâmica da tela mencionada. Talvez apenas o enquadramento mais fragmentado de setores da natureza ajude a explicar a intensidade mais limitada dessas outras obras. Mas é de reparar que desde o “Monte de trigo” (Figura 1) as 31


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cores sempre se rebelam contra seus contornos, sendo fundamentais à agitação que domina todas as paisagens. E o contraste das cores ajuda a qualificar os setores do quadro. Mais calmos na [Figura 15] e muito mais ásperos e ameaçadores na [Figura 16].

VII

Julius Meier-Graefe diz que Van Gogh procura “dar substância corpórea a sua alma artística”18. O aspecto fortemente material da fatura de Van Gogh se esforçaria desesperadamente para obter uma fusão entre a corporeidade de seu sentimento do mundo e a poderosa espiritualidade do pintor. Mas como caracterizar essa “alma artística” sem considerar a religiosidade intranquila de um homem que era leitor voraz da Bíblia – da qual traduzia trechos para o holandês, inglês e francês –; que admirava “A vida de Jesus”, de Ernest Renan, e a “Imitação de Cristo”, de Tomas Kêmpis; que durante a greve dos mineiros de carvão do Borinage – que apoiou e fez com que sua congregação o afastasse da região – cedia o pouco que possuía aos trabalhadores miseráveis, dormindo sobre palha numa cabana em ruinas? Um homem que por quase dois anos viveu em Haia com 18

Op. cit. P. 210. 32


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uma pobre mulher, Classina Maria “Sien” Hornik, que precisou se prostituir para sobreviver à miséria, antes de o pintor tomá-la com modelo e companheira, dividindo com ela e seus dois filhos o pequeno ateliê em que pintava19. Qual a “alma artística” desse homem? Roger Fry propõe uma hipótese que pode abrir um caminho interpretativo promissor. Para Fry, Van Gogh “(...) se deu conta de que seu amor era tão universal que ele não tinha necessidade de escolher temas de maneira a se expressar; ele via que sua religião podia se manifestar muito mais claramente pintando velhas botas, uma cadeira ou um bordel do que qualquer tema religioso”20. No entanto, esse amor universal, que remete à figura de Jesus – como acredito ser o caso para Van Gogh –, tem um forte acento trágico, como a própria vida do Cristo. Estava escrito que o filho de Deus viria ao mundo para nos salvar. Essa dupla natureza de Jesus – um ser humano que é filho de Deus – se manifestará com máxima intensidade quando, no Getsêmani, após a última ceia e pouco antes de sua crucificação, Jesus diz: “Pai, afasta de mim esse cálice. ” Portanto, é plausível afirmar que os objetos desse amor universal estariam sempre marcados pela mesma dilaceração presente no momento da morte de Jesus. A tentativa de conferir “substância

As informações sobre a vida do artista foram tiradas da biografia “Van Gogh: a vida”, de Steven Naifeh e Gregory White-Smith. São Paulo: Companhia das Letras. 2012. 20 Op. cit. P. 181. 19

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corpórea a sua alma artística” – como propõe Meier-Graefe – guarda simultaneamente uma profunda religiosidade e algo de herético e pecaminoso. Como converter o mundo material em espiritualidade cristã sem se arrogar poderes divinos? Afinal, não é isso que ocorre nos milagres? A ressureição de Lázaro não é a re-espiritualização de uma coisa morta? A capacidade de alterar o curso da natureza também implica uma intervenção mística em seres mortais. Pergunto-me se essa oscilação das tintas de Van Gogh entre serem uma matéria colorida capaz de sugerir a transformação, por exemplo, em plantas, também não visava, mesmo involuntariamente, uma transformação dessa mesma ordem?

XVIII

A dimensão dilacerada e tortuosa da obra de Van Gogh pode ser mais bem compreendida pelas singularidades de seu cristianismo do que por todas as doenças mentais que lhe vêm sido atribuídas. Em relação a essa questão, seria útil evitar uma possível ambiguidade. Nas primeiras linhas desse ensaio afirmei que se – na tentativa de compreendermos o significado da obra de Van Gogh – partíssemos da lenda que se criou em torno dele (loucura, alcoolismo, 34


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delírios etc.) acabaríamos encontrando nas obras apenas algo que confirmaria certas características psicológicas atribuídas ao artista. Mas então porque usar a espiritualidade calvinista do artista (também algo subjetivo) para tentar compreender a obra do pintor? Desde que concordemos que a obra é o elemento decisivo a se considerar quando buscamos entender um trabalho de arte, me parece claro que não há na pintura de Van Gogh nada de amalucado. Já sua aparência de trabalho, como mencionei antes, é um elemento crucial da estrutura das telas. E como essa noção de trabalho mantém estreito contato com sua forma de religiosidade (calvinismo), nada mais plausível do que considerá-la nas análises. Quando se leem as cartas21 de Vincent van Gogh, quase sempre admiravelmente escritas, percebe-se claramente que o pintor não está interessado em realizar uma pintura tematicamente religiosa. Como argumenta Roger Fry, não era aí que o artista identificava o espírito cristão na arte. “Eu te falo [a Theo] destas duas telas (...) para te lembrar 21

Acredito só haver no Brasil a publicação de uma seleção das cartas de Van Gogh a seu irmão Theo. Trata-se de um livro com poucas informações e notas referentes às questões mencionadas nas cartas, mas a tradução me parece fiel. “Cartas a Theo”. Porto Alegre: L&PM, 1986. Vincent van Gogh redigiu mais de 900 cartas, escritas em holandês, francês e inglês e editadas após sua morte, pela dedicação e empenho da viúva de Theo (que morreu seis meses após Vincent), Johanna Van Gogh-Bonger A maioria delas era endereça ao irmão Theo, embora também tenha escrito para Gauguin e Emile Bernard, entre outros. A mesma editora L&PM publicou “Biografia de Van Gogh, seguida de cartas de Theo a Vincent e de a Emile Bernard”, por Jo van Gogh-Bonger (a esposa de Theo). Porto Alegre. 2004.A totalidade das cartas escritas por Vincent van Gogh pode ser encontrada em http://vangoghletters.org/vg/letters.html. o site do Museu Van Gogh também contém a totalidade das cartas do pintor. Muitas vezes recorri à publicação brasileira. Em outros casos, menciono outras fontes, todas altamente confiáveis, de onde elas foram tiradas.

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de que para dar uma impressão de angústia pode-se procurar fazê-lo sem lançar mão do Getsêmani histórico; que para oferecer um tema consolador e doce não é necessário representar os personagens do Sermão da Montanha. “É sem dúvida sábio e justo comover-se com a Bíblia; mas a realidade moderna se apossou de nós de tal maneira que, mesmo procurando abstratamente reconstruir os dias antigos em nosso pensamento, os pequenos acontecimentos de nossa vida nos afastam dessas meditações e nossas aventuras nos jogam com força em nossas sensações pessoais”22. “Rembrandt e Delacroix pintam a pessoa de Jesus. Millet, seus ensinamentos”23. A pintura de Jean-François Millet atraía Van Gogh – que se baseou em pinturas do pintor francês para a realização de alguma de suas telas tardias – sobretudo por sua temática camponesa, ou seja, por um trabalho que ainda mantinha suas raízes primitivas e o estreito contato com a natureza. Millet, porém soube encontrar na própria trama de sua pintura, e não apenas na escolha dos temas, a afirmação dessa atividade rude. Como Vincent escreveu a Theo de 3 de abril de 1878: “Pois em quem constatamos da maneira mais visível um valor superior, 22 23

Apud Sven Loevgren. Op. cit. P. 191. Apud Meier-Graefe. Op. cit. p. 208. 36


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se não naqueles a quem se aplicam as palavras: ‘lavradores, vossa vida é triste, lavradores, vós sofreis na vida, lavradores, vós sois bemaventurados’, se não naqueles que carregam os estigmas de ‘toda uma vida de luta e de trabalho suportada sem jamais se curvar’? É bom se esforçar em assemelhar-se a eles”24. Como no “Par de botas”, os camponeses de Millet [Figura 18] têm uma configuração precária, pouco definida e não se destacam claramente do seu ambiente de trabalho. Por isso os tons marrons-terra e a luz baça fazem homens e mulheres revelarem nos próprios corpos curvos e cansados o peso desse trabalho árduo. Eles tendem a fundir-se entre si e para isso contribui a própria sombra do monte de feno, que momentaneamente os protege. Esse apego ao duro trabalho camponês, quando Van Gogh ainda não compreendera a cor e a luz impressionistas, irá levá-lo a um olhar compassivo, talvez até mesmo populista, nos poucos anos – sobretudo em 1884 e 1885 – em que pinta em Nuenen, cidade da província de Brabante do Norte. Foi aí que pintou o quadro mais famoso de sua fase escura, “Os comedores de batata” [Figura 19, ver também Figuras 20 e 21]. Van Gogh conviveu com a família retratada, os De Groots, e fez vários desenhos ao vivo dos membros da família de camponeses. 24

“Cartas a Theo”. Op. cit., p. 8. 37


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Tudo para ser fiel à vida da família que procurava representar em seu áspero realismo. É relativamente clara a relação com a tela de Millet, embora o fato de a representação dos De Groots se dar em um ambiente fechado torne a paleta escura de Van Gogh ainda mais eficaz na caracterização da relação opressiva que esses camponeses sofrem em sua atividade diária com o campo. E que a proximidade excessiva entre as cinco pessoas representadas sublinha ainda mais. O artista refere-se a essa tela em termos precisos. “Tentei enfatizar [em “Os comedores de batata”] que essas pessoas, comendo suas batatas à luz do lampião, cavaram a terra com as mesmas mãos que tocam a comida, e assim o quadro fala de trabalho manual, e de como eles ganharam seu alimento honestamente. Quis dar uma impressão de seu modo de vida muito diferente do nosso, seres humanos civilizados (...). Pintar camponeses é algo sério e eu me reprovaria se não tentasse pintar quadros

que despertassem

pensamentos sérios naqueles que pensam seriamente sobre arte e vida. (...). Deve-se pintar camponeses sendo um deles, com sentimento, pensando como eles pensam”25. Figura 18 (p/b)

Apud Linda Nochlin, “Abstraction and populism: Van Gogh”, em Nineteenth century art: a critical history”. London: Thames and Hudson, 1996. P. 193-4. 25

38


39

39


40

Figura 19 (p/b)

40


41

Figura 20 (p/b) Se, em relação a “Comedores de batatas”, Van Gogh produz uma identidade entre trabalho e campesinato, em outras cartas ele generaliza essa noção, aproximando-a da própria pintura: “Eu não sou um artista. É grosseiro pensarmos isso de nós próprios. Será possível não termos paciência, não aprendermos com a natureza a ter paciência, a ter paciência vendo o trigo nascer silenciosamente? Seria possível imaginar algo tão absolutamente morto quanto pensar que não podemos sequer crescer? Será que pensaríamos em contrariar 41


42

intencionalmente nosso próprio desenvolvimento? Digo isso para mostrar quanto acho estúpido falar de artistas que sejam dotados ou não”.26 E numa carta de 8 de setembro de 1888, citada por Artaud, vai além: “Desenhar o que é? Como se lá chega? É o ato de abrir passagem através de uma parede de ferro invisível colocada entre o que sentimos e podemos. Como deve atravessar-se a tal parede, pois de nada serve bater-lhe forte, a parede deve ser minada e atravessada com uma lima, lentamente e com ciência, na minha opinião. ”27

26

“Carta a Theo”. Op. cit. P. 77.

42


43

Figura 21 (p/b)

IX

Essa afeição ao trabalho tem longa tradição na pintura holandesa. E é plausível ver, em relação a isso, alguma continuidade entre a obra de Van Gogh e a pintura de Brueghel, Rembrandt, Vermeer e Anton Mauve, primo em segundo grau de Van Gogh e que chegou a lhe dar algumas orientações técnicas sobre pintura e desenho. Não estou

afirmando

que

Van

Gogh 43

tenha

procurado

manter


44

voluntariamente um vínculo com a pintura dos artistas mencionados, mesmo porque não se sabe ao certo quais desses trabalhos foram vistos por ele. A Guerra dos 80 anos (1568-1648) – uma violenta luta de independência das sete províncias neerlandesas do Norte contra o domínio espanhol – acirrou ainda mais a oposição entre católicos e protestantes. Nesse período o Império espanhol era a maior potência católica do mundo. A tentativa de manter sob seu controle um território de maioria protestante não tinha apenas objetivos econômicos e estratégicos. Para a Espanha tratava-se também de impedir o avanço da Reforma protestante em seus territórios. A radicalização do conflito entre católicos e protestantes certamente ajuda a entender a resistência dos pintores da futura Holanda a manter uma temática e um modo de pintar ligado à Europa católica. Aproximam-se assim de temas ligados ao trabalho e, muitas vezes, usando uma fatura mais espessa, próxima à de Van Gogh, como ocorre sobretudo com Rembrandt.

44


45

Figura 22 (cor) Na pintura de Pieter Brughel, o Velho [Figuras 22, além da representação de cenas de trabalho árduo, embora a ironia em relação a esses temas também esteja presente em suas telas – um tema praticamente impossível de encontrar na pintura dessa época na Europa católica –, é interessante observar a estreita identidade entre as cores e os elementos naturais. O amarelo dos trigais e o branco e o verde dos diversos estados da água. E a própria composição dos quadros acentua a força da natureza. Eles se organizam por meio de diagonais que conduzem o olhar diretamente ao mundo natural. Não conheço menção ao conhecimento de “Os ceifadores”, de Brueghel por Van Gogh, mas “Corvos sobre trigal”, um de seus últimos quadros, parece ecoá-lo. 45


46

A pintura de Jan Vermeer [Figura 24] – e de vários de seus contemporâneos –, embora tenha uma fatura bem menos acentuada que a de Rembrandt, dará à pintura de gênero28 um estatuto e uma grandeza – as mulheres representadas por Vermeer revelam uma serenidade luminosa talvez inalcançada por todos os demais pintores, embora Chardin tenha chegado a soluções próximas – que nunca se vira antes, ainda que a grandeza de sua pintura só tenha sido reconhecida tardiamente. Foi apenas em 1866 que um artigo de Théophile Thoré, importante

crítico

francês

do

século

XIX

e

apoiador

dos

impressionistas, na “Gazette des Beaux-Arts”, trouxe novamente à tona a pintura de Vermeer. “O boi esfolado”, de Rembrandt [Figura 25], mesmo não sendo um tema característico do artista, resume formidavelmente todas as novidades da pintura holandesa do século XVII. Um dos trabalhos considerados mais vis, por lidar com o retalhamento de um animal morto, o ofício de açougueiro (no sentido de quem mata, esfola e esquarteja uma rês) nunca teve prestígio social. Supunha o contato com o que haveria de mais baixo no mundo real. No entanto, nessa tela de Rembrandt, a carcaça do boi ocupa o primeiro plano do quadro. Ao fundo, apenas visível, uma A designação “pintura de gênero”, que se refere em geral a cenas de interior triviais, tem origem no neoclassicismo, quando a pintura histórica se torna a pintura por excelência. Como os demais gêneros já tinham identidade (retrato, paisagem, pintura religiosa, pintura mitológica, naturezamorta etc.), esse tipo de pintura, até então considerado menor, passou a receber simplesmente esse nome: pintura de gênero. 28

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47

figura humana – tradicionalmente o tema mais valorizado na tradição da pintura – mal se deixa identificar. Para um povo que tem o trabalho e a prosperidade como valores máximos, mesmo uma atividade “suja” tem a bênção divina. Rembrandt era filho de mãe católica e pai calvinista, embora, até onde se saiba, o pintor não se preocupasse em se definir sobre essa questão.

JanVermeer Figura 24 p/b

47


48

Figura 25 (cor) Acontece que, culturalmente, seu público tinha em alta conta o trabalho manual como fonte de prosperidade vendo também com bons olhos tanto o comércio quanto a atividade bancária. A simples representação de um boi morto e esfolado não bastaria para produzir a rude experiência proporcionada pelo tema. No período, fazia-se uma clara oposição entre a maneira rude e a maneira suave de pintar. A maneira rude supunha uma fatura mais acentuada e material, conforme a noção de perceptibilidade formulada por Samuel van Hoogstraten, pintor ex-aluno de Rembrandt e escritor. Segundo essa noção com grande influência no período, se desenhássemos nuvens 48


49

distantes sobre uma folha de papel, jamais confundiríamos a distância sugerida por elas com a maior proximidade do papel. "Porque o papel tem uma aspereza perceptível, na qual o olho esbarra, (...) o que não acontece com o azul do céu".29·. Muitas vezes Rembrandt usa a maneira rude não apenas no primeiro plano, como aconselhava Samuel van Hoogstraten, na intenção de tornar as coisas aí representadas mais visíveis. Em “O boi esfolado”, o pintor usa-a somente a carcaça da rês, mimetizando sua carne de forma notável. Caravaggio foi uma importante influência para Rembrandt, sobretudo a sua concepção de luz. Nessa pintura do holandês, no entanto, a luz não escorre como uma carícia sobre os corpos, como ocorre de maneira exemplar em “Amor vencedor” [Figura 27], de Caravaggio. Ela se entranha na matéria pictórica e acentua o aspecto corruptível – pela ação das coisas do mundo, metaforizadas pela luz corrosiva – de todas as coisas mundanas. A relação de Van Gogh com a pintura de Anton Mauve [Figura 26] é mais direta, até pelo fato de Vincent conhecer melhor seu trabalho e de ter aprendido com ele. Esse vínculo, porém, se limita muitas vezes à temática. Por vezes a pintura de Mauve também representa cenas de grande luminosidade e com temas afastados do trabalho rural. Não penso que foram esses quadros que atraíram Van “Rembrandt: the master and his mastershop”, London & New Haven: Yale Unversity Press. 1992. P. 32. 29

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50

Gogh. Quanto à relação entre pintura e cenas de trabalho, é necessário fazer uma ressalva. John Constable, pintor inglês da passagem do século XVIII para o XIX, e que teve considerável influência na França, a ponto de alguns estudiosos o colocarem como forte influência da Escola de Barbizon, também representa com frequência cenas amenas de trabalho no campo. O envolvimento de Constable com a estética pitoresca30 dará a seus quadros uma visão lírica e bucólica da natureza, justamente no momento que a Lei do Cercamento das Terras leva a uma grande concentração fundiária na Inglaterra.

30

Vertente da pintura inglesa que tende a representar a paisagem de forma acolhedora, constituída por contrastes amenos e não ameaçadores. Representa o oposto da estética do sublime, que tem em Turner seu representante mais significativo, e que põe em formas visuais acontecimentos (incêndios, tempestades marítimas, grandes deslizamentos de neve etc.) que despertariam sentimentos de pavor e pânico. 50


51

Figura 26 (pb)

Figura 27 p/b

51


52

X

O contato de Vincent van Gogh com o mundo da arte começou bem cedo. Depois de um tempo de aprendizado em Haia, em 1869, é transferido para Londres, onde fica até 1875 trabalhando na Casa Goupil – uma galeria de parentes distantes que comercializava gravuras, reproduções de obras de arte e obras originais de pouca qualidade. Muitos autores afirmam que essa foi a época mais feliz de sua vida. Em 1875 é transferido para Paris. Ao que tudo indica é demitido por falta de empenho e volta para a Holanda, passando a se interessar cada vez mais por religião. A primeira vez que esteve em Paris, o impressionismo estava ainda no começo e não despertou sua atenção. Pintura urbana por excelência, mesmo quando pinta paisagens, o impressionismo não o atrairia de imediato. E Van Gogh nunca se caracterizou por se deixar influenciar por algo que não tinha entendido existencialmente. Quando retorna à cidade em 1886, estava mais aberto a novas experiências artísticas. Na loja do Père Tanguy, conhece vários artistas próximos às novas discussões (Emile Bernard, Toulose-Lautrec e Paul Signac, entre outros) e estuda com atenção a obra de Manet a Monet, de Gauguin a Seurat. Foi Camille Pissarro o artista decisivo para aproximar Van 52


53

Gogh das novas técnicas artísticas, como fez também com Cézanne e Gauguin. Pissaro era um homem extremamente generoso e correto. Politicamente engajado, opunha-se aos valores burgueses e viu no anarquismo a melhor alternativa à sociedade capitalista, como também ocorreu com boa parte dos artistas e críticos ligados ao divisionismo, como Paul Signac e Félix Fénéon. Theo e Vincent Van Gogh aproximam-se dele quando de sua participação na I Exposição Internacional da Galeria Georges Petit, Paris, em 1887. Nesse ano, Theo se torna diretor da Galeria Boussard e Valadon e convida Pissarro a expor nesse novo espaço. Aos poucos ela se torna uma alternativa a Galeria Durand-Ruel, até então um dos poucos lugares que acolhiam a pintura impressionista31. A proximidade de Theo e Pissarro facilita o contato de Vincent e o pintor impressionista. A maior familiaridade com a nova pintura muda totalmente o trabalho de Van Gogh. A recepção dessa nova concepção pictórica não seria simples para o pintor holandês. Para o crítico e historiador da arte Giulio Carlo Argan "até aquele momento (1886), ele havia feito uma pintura ideológica, áspera em sua polêmica social; uma pintura escura, na qual a realidade era pouco mais que uma hipótese amarga, que incitava a alma à piedade e à revolta. Mas quando a realidade se dá Ralph E. Shike e Paula Harper. “Pissarro: his life and work”. Nova York: Horizon Press. 1980. Em especial “Pissarro and the brothers Van Gogh”. P. 242 e ss. 31

53


54

na violência das sensações, quando se vê como a paixão interna pode exacerbar e deformar as sensações, qual poderá ser o destino do homem, o sentido de sua existência? A resposta é trágica. Se a arte é a própria vida, e a vida é o choque impiedoso do eu com o mundo, se o mundo não pode mais ser separado de nós e o nosso esforço para possuí-lo não faz mais que nos restituir a imagem de nossa solidão e desespero, não restam outras saídas senão a loucura e o suicídio"32. Acredito que a conclusão de Argan – a loucura e o suicídio como únicas saídas para Van Gogh – seja discutível, mesmo porque ambas não estão comprovadas até hoje. Apesar disso, a passagem é notável. Van Gogh, por vários motivos, jamais poderia pintar como um impressionista. Para eles [Figuras 28 e 29], impressionistas, vida é viver, ou seja, um processo de formalização razoavelmente sereno, já que lidam com fenômenos, com a aparência do mundo, e o maior indicador dessa relação amena se mostra na importância que a luz teve para os melhores pintores do grupo. Para Van Gogh, ao contrário, a vida é dificuldade de viver, já que ele não mantém com a realidade qualquer distância, pois o mundo para ele não é fenômeno e sim a espessura, a carne das coisas. Estou convencido que foi justamente essa relação difícil com a vida que lhe proporcionou esse sentimento áspero do mundo. Do mesmo modo, ambos (Van Gogh e os impressionistas) 32

Em “As fontes da arte moderna”. Novos estudos Cebrap. São Paulo, no. 18. Setembro de 1987. P.

53. Os itálicos são meus. 54


55

trabalham com noções de sensação praticamente opostas.

Figura 28 pb

55


56

Figura 29 cor As pinceladas justapostas dos impressionistas acentuam a dimensão visível (e não tátil) da realidade. Por meio delas se rompe com a solidez da representação dos corpos compactos. A luz que unifica toda a cena pela reverberação de umas cores nas outras só pode efetivar-se se as cores não forem misturadas na paleta e sim na retina do observador. Desse modo ela deixa também de incidir apenas exteriormente sobre os corpos. A fresta entre as pinceladas certifica que a solidez da representação, corrente em toda a pintura da tradição33, 33

É claro que há exceções. Basta pensar em El Greco, no Tiziano da velhice e em Velázquez. 56


57

deixou de ter vigência aqui, embora em outros momentos da arte moderna ela volte a fazer sentido. Como na extraordinária pintura de Pissarro [Figura 29], os edifícios adquirem uma porosidade que corresponde a esse poder ativo da luz e do olhar sobre o mundo, que passam a agir como ferramentas sobre a realidade. Num ensaio extremamente esclarecedor, Roger Fry34 mostra como, mesmo pintando paisagens – um tema caro a muitos impressionistas – esses artistas partiam de uma experiência de Paris, dos grandes centros urbanos. Em meio à multidão, os indivíduos também se espelham uns nos outros. Veem e são vistos numa relação de determinação recíproca, já que não mais existe a possibilidade de um ponto de vista exterior, que permitisse ver as coisas a cavaleiro, de fora do convívio social, como nos séculos anteriores à revolução industrial. Na epígrafe do ensaio de Fry, uma anotação de Flaubert resume com perfeição o sentido do texto: Il n’y a de vrai que les rapports, c’est à dire la façon dont nous percevons les objects 35. E ainda há quem considere Roger Fry um formalista.

XI

“The philosophy of impressionism”. Em “A Roger Fry reader”. Chicago: The University of Chicago Press. 1996. Edited and with an introductory essays by Cristopher Reed. 35 Mal traduzindo: “Apenas as relações são verdadeiras, ou seja, o modo pelo qual percebemos os objetos. ” 34

57


58

Os primeiros quadros do período francês de Van Gogh (Figuras 30 e 31) já revelam a influência tanto dos impressionistas quanto dos divisionistas. A paleta se torna mais clara e os temas (paisagens, cenas de jardim) também têm a ver com vistas que encantaram os impressionistas e, em certa medida, os divisionistas. As telas não são ruins, sobretudo “Hortas em Montmartre. Em ambas as telas o pintor ainda procura incorporar as novas técnicas e por esse motivo oscila entre as pinceladas justapostas dos impressionistas e os pequenos toques de Seurat e seus companheiros. É essa insegurança que, ao menos em parte, reduz a força das duas pinturas. Se compararmos “As hortas de Montmartre” [Figura 30] com “Campos de tulipa na Holanda” [Figura 32] de Monet – que têm pontos de vista semelhantes –, fica claro como há no pintor francês um domínio das cores bem maior que na paisagem de Van Gogh. Para conquistar maior unidade para seu quadro, Vincent Van Gogh irá utilizar uma paleta de tons claros bem mais próximos, tornando a profundidade de seu quadro excessivamente leve e fluida. Já Monet, mais experimentado e seguro na nova técnica, consegue dar maior presença à luz, mesmo usando às vezes cores mais escuras, pois faz com que, pelas variações de cores e tons, seja realmente produzida uma

atmosfera

luminosa

58

que

unifique

a


59

cena. Figura 32 (p/b) Além disso, observando retrospectivamente a obra do Van Gogh já pictoricamente maduro fica claro que ele queria de fato tornar “corpórea sua alma de artista” em vez de dissolver a realidade na atmosfera de luz impressionista.

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60

Figura 30 (p/b)

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61

Figura 31 (p/b) Em outros momentos, a natureza do tema é que revela as dificuldades do pintor [Figura 32]. Não acredito que a representação pictórica de uma mulher nua reclinada sobre um divã – padrão por excelência do modo de se retratarem Vênus e outras deusas – se prestasse ao talento de Van Gogh. Não me refiro a um hipotético moralismo do pintor, que não foi feliz no amor – seja lá o que isso queira dizer – embora tivesse grande atração pelas mulheres.

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62

Figura 32 (PB)

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A própria forma ovalada da tela – diversamente da maioria dos nus femininos – torna o corpo da mulher pressionado pelo espaço, contrariando o repouso da modelo. Além disso, o uso um tanto canhestro da pincelada impressionista parece transformar o divã da modelo numa cama de faquir, com seus múltiplos espetos a importunála. As proporções do corpo e a articulação de suas partes também não são muito bem resolvidas. Há muito se diz que a “Maja desnuda”, de Goya lembra um manequim no qual se encaixou (mal) uma cabeça. Não deixa de haver semelhança entre os dois quadros.

XII

63


64

Figura 33 COR Há na passagem de Argan acima citada outro aspecto decisivo para a compreensão do significado da obra de Van Gogh. O historiador italiano lembra que, “quando se vê como a paixão interna pode exacerbar e deformar as sensações”, Van Gogh de desespera. Esse sentimento faz com que a pintura de Van Gogh adquirira uma dimensão expressiva

de

intensidade

pouco

conhecida.

Numa

carta

particularmente bela a Theo, Vincent fala do retrato que fez de seu amigo, Eugène Boch [Figura 33], também ele pintor. “Em vez de procurar reproduzir exatamente o que tenho diante dos olhos, me sirvo da cor mais arbitrariamente para me exprimir com força. (...). Eu queria fazer o retrato de um amigo artista [Eugène 64


65

Boch] que sonha grandes sonhos e que trabalha como um rouxinol canta, pois é essa a sua natureza. Esse homem será louro. Eu quero colocar no quadro o amor que sinto por ele. Eu exagero o amarelo de seus cabelos, chego a tons alaranjados, ao verde-limão claro. Atrás de sua cabeça, em lugar de pintar um muro banal, pinto o infinito, faço um fundo simples do mais rico azul, o mais intenso que possa obter, e, por essa simples combinação, a cabeça loira iluminada sobre o fundo azul obtém um efeito misterioso, como as estrelas no azul profundo. (...) Não sei se poderei pintar o carteiro [Monsieur Roulin] como o sinto; este homem enquanto revolucionário é como o Père Tanguy; provavelmente é considerado um bom republicano, pois detesta cordialmente a república que desfrutamos, e porque, afinal, duvida um pouco e está um pouco desencantado com a própria ideia republicana. Mas certo dia eu o ouvi cantar a Marselhesa, e pensei estar em 1789, não no ano que vem [1889], mas há 99 anos. Era um Delacroix, um Daumier, um velho e puro holandês”.36 A beleza do texto de Vincent van Gogh – um homem que lia incansavelmente em várias línguas e, segundo ele, não para tornar-se culto, mas para conhecer-se mais e tentar melhorar – se mostra também pelo fato de suas descrições não espelharem literalmente o retrato do amigo. O amarelo dos cabelos de Eugène Boch não tem nada de 36

Cartas a Theo. Op. cit. Pp. 188 e 189. 65


66

exagerado. E isso ajuda a mostrar a relativa autonomia das cartas que escreve a Theo e suas pinturas.37 Percebe-se aqui, mais uma vez como o “amor universal” a que se refere Roger Fry tem uma dimensão tensa e, mesmo, dilacerante. Quanto mais o pintor quer se aproximar do que ama por meio de uma qualificação expressiva dada pelas cores, mais ela se afasta, justamente pela desfiguração a que essa qualificação por meio da cor conduz.

XVI

Acredito que a intensa carga de expressividade da pintura de Van Gogh também possa encontrar explicações mais amplas, que influenciaram muitos outros artistas. Na passagem do século XVII para o século XIX, os processos industriais progressivamente ocupam o espaço da produção artesanal em parte significativa da Europa. A introdução das máquinas a vapor, a maior capacidade para a obtenção de energia da água e o uso de combustíveis fósseis mudarão a paisagem das cidades e a composição de classes engendrada pela economia.

37

Não conheço muitos especializados sobre Van Gogh. Por esse motivo nunca tive conhecimento de uma análise especificamente literária das cartas escritas por ele. Os poucos trechos citados neste ensaio acredito que provam a grandeza de seus textos, além do mais não-cativos de sua pintura. Neles, além da qualidade literária, parece haver uma serenidade que, para o bem ou para o mal, não experimentou em sua breve vida. 66


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Num ensaio revelador38, José Paulo Paes afirma que o “monstro” construído pelo Doutor Frankenstein, criado na novela de Mary Shelley publicada em 1818, possivelmente seria o único mito moderno. “Ao idear um criador perseguido, escravizado e finalmente, destruído pela sua criatura, quis Mary Shelley escrever, como se sabe, uma fábula admonitória acerca dos perigos subjacentes àquela ambição de desvendar todos os segredos da natureza que animava os Prometeus de sua época, quando a revolução científica ensaiava os primeiros passos. Neles, todavia, a jovem romancista neogótica já divisava profeticamente as ameaças do futuro tecnológico que estamos vivendo, hoje quando ganha particular ênfase a advertência do monstro ao dr. Frankenstein: “Lembra-te de que me fizeste mais poderoso do que tu”.39 Realmente a previsão vem se cumprindo. No campo da história da arte, acredito que o primeiro historiador a tirar consequências estéticas da Revolução Industrial foi Fred Licht -nascido na Holanda, mas que fez carreira na universidade americana em função da perseguição nazista aos judeus. Em seu livro “A history of

José Paulo Paes. “Frankenstein e o tigre”, em Armazém literário. São Paulo: Companhia das Letras. 2008. 39 Idem, p. 243-44 38

67


68

western sculpture: Sculpture 19th & 20th Centuries”40, ele argumenta que a crispação produzida pelas mãos de Rodin ao modelar a argila não seria apenas um expediente estético, com o intuito de dar maior autonomia à superfície das esculturas, tradicionalmente dominadas pelo volume. “A própria essência do trabalho de Rodin reside, todavia no fato de que ele não pode mais tornar-se completo no sentido tradicional. Ele existe tão-somente em razão de sua luta indecisa [com a argila], na qual as decisões finais devem permanecer ambíguas. ”41. Ainda que Van Gogh tivesse dificuldade de incorporar o trabalho industrial a sua concepção de mundo, acredito que a crescente ação violenta e transformadora da natureza não o deva ter deixado indiferente a técnicas do presente que só iriam se aprofundar. O trabalho agrícola, mesmo em grandes plantações, permite aos camponeses uma relação de menor estranheza com o resultado de seu trabalho. Por mais que a vida dos plantadores de batata seja árdua, é-lhes bem mais fácil ligar seu esforço às batatas. Dificilmente, um trabalho tão fragmentado como a produção de um automóvel permita o mesmo vínculo. Como essa questão – mostra Fred Licht – estivesse no ar, não me parece um exagero relacionar a relação traumática de Van Gogh 40 41

London: Michael Joseph. 1967. Op. cit. P. 24-5 68


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com o mundo de assustadores e rápidos desenvolvimentos tecnológicos da época, ainda que ele pareça lhes dar pouca importância. Para um homem tão atento à realidade – por mais que se queira ver nele um alienado mental – as rápidas mudanças urbanas, demográficas, industriais, comerciais e artísticas – devem tê-lo perturbado ao máximo. Justamente um homem com um equilíbrio mental frágil e uma condição financeira perto da miséria.

XIII

Convém, no entanto, não deixar de lado as posições políticas de Vincent, muito mais à esquerda das de seu querido irmão, e reduzir o drama do artista a questões estéticas, religiosas ou psíquicas. É de reparar como em várias passagens de suas cartas essa inclinação política nada sistemática volta e meia reaparece. Numa passagem premonitória, pois a julgo reveladora de nosso próprio presente, o pintor escreve para o irmão na segunda quinzena de setembro de 1884, de Nuenen, sul da Holanda, e põe-se a discutir com Theo suas divergências políticas. Aproveita-se de uma coincidência numérica (1884 e 1848) para imaginar de que lado das barricadas da Revolução de 1848 ambos se encontrariam, caso tivessem vivido aquele importante acontecimento da vida política da França: 69


70

Vincent junto aos rebeldes e Theo ao lado dos soldados do governo. Para Vincent, essa especulação em relação a 1848 se justificaria pelas divergências que tinham quanto ao presente (1884), embora não mais houvesse barricadas pelas ruas de Paris. “Mas elas ainda existem” — diz Vincent — “para os espíritos que não podem estar de acordo. Le moulin n´y est plus, mais le vent y est encore [o moinho não mais existe, mas o vento continua]”42. Talvez seja possível acrescentar às frustrações geralmente ligadas ao pintor holandês também esse desencanto político.43 O apoio à greve dos mineiros de carvão do Borinage pode ter sido um acontecimento episódico em sua vida. Seu profundo cristianismo – se talvez impossibilitasse sua filiação a alguma corrente política – com certeza sempre o aproximou dos mais fracos. Desse ponto de vista a expressividade marcante da pintura de Van Gogh poderia ser explicada para além do “amor universal” sempre frustrado, mencionado por Roger Fry. A possibilidade de esse socialismo difuso do artista ter fortes vínculos com sua profunda admiração por Jesus é algo que, a meu ver, não invalida a investigação dessa direção política.

Cartas a Theo. Op. cit. P. 89. A frase citada em francês é uma passagem de “Os miseráveis”, de Victor Hugo. 43 Sobre Van Gogh e seu interesse pela política ver o ensaio de Linda Nochlin, mencionado na nota 19. 42

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71

Figura 34 (cor) Em

“A

casa

amarela”

[Figura

34],

o

uso

consideravelmente arbitrário das intensidades de cor talvez possa ser entendido numa dimensão mais politizada, do que psicológica. É como se o desejo do artista por uma realidade mais intensa e fraterna; uma realidade cuja presença indiscutível fosse sinal de um vínculo forte de homens e mulheres com a realidade, e não algo que nos assombrasse por a experimentarmos como algo estranho, o que a tradição marxista denomina alienação. Novamente, porém, aquela expressividade ambígua que o aproximava e, simultaneamente, afastava do tão querido amigo Eugène 71


72

Boch, voltava a se intrometer entre o pintor e esse fragmento da cidade de Arles. A modesta esquina é tomada por uma vitalidade que torna o saturado azul do céu uma ameaça àquilo que escapa à normalidade do cotidiano. Talvez seja essa atitude crítica diante da realidade que leva Argan a afirmar sobre a pintura de Van Gogh: “A técnica da pintura também deve mudar, opor-se à técnica mecânica da indústria, como um fazer gerado pelas forças profundas do ser: o fazer ético contra o fazer mecânico da máquina44. ” No pensamento de Argan, a arte moderna supõe um fazer ético porque cada pincelada ou o traço de um lápis ou, ainda o golpe de um cinzel ou goiva supõe uma escolha, o que não acontece com os movimentos mecânicos de uma prensa, por exemplo. Ou seja, para Argan, ele também um homem de esquerda, um militante que chegou a ser prefeito de Roma, não é impossível ver no modo de pintar de Van Gogh um protesto contra o trabalho alienado.

XV Depois de ficar dois anos em Paris – de 1886 a 1888 –, Van Gogh parte para Arles para encontrar Gauguin, com quem 44

Giulio Carlo Argan. “A arte moderna”. São Paulo: Companhia das Letras. 1992. P. 124. 72


73

pretendia criar uma comunidade artística à maneira dos falanstérios concebidos pelo socialista francês Charles Fourier, cujas construções buscavam uma convivência mais igualitária entre seus membros A convivência entre eles dura pouco, aproximadamente nove semanas. Muitos artistas achavam Gauguin oportunista e dado a autopromoções. Antes de partir para o Taiti, convence vários artistas a doarem obras para um leilão em que levantaria o dinheiro para a viagem. O acontecimento foi um sucesso. Pissarro, por exemplo, o considerava um arrivista. E falava-se abertamente que o interesse de Gauguin ao se unir com Van Gogh era na verdade comercial: a galeria de Theo, que de fato chegou a vender trabalhos dele. Além de ambos terem personalidades muito fortes, havia diferenças quanto às concepções de pintura. Gauguin procurava uma pintura que fosse símbolo: o resultado de impressões sensoriais mais a busca de um significado da natureza não perceptível aos sentidos. Seu afastamento de Paris tinha como justificativa a busca de um relacionamento mais estreito com a natureza e com homens e mulheres. E isso não seria possível numa metrópole como Paris. Em 1886 e 1868 vai para Pont-Aven, na Bretanha – na época uma das regiões mais atrasadas da França; em1888 vai ao Panamá e à Martinica até se decidir pelo isolamento das cidades: fica no Taiti entre 1891 e 92, retorna a Paris e, em 1895 volta para a mesma região (a Polinésia francesa), 73


74

morando dessa vez em Atuona, pouco distante de Papete, onde residira no Taiti. É aí que morre em 1903. Já Van Gogh quer pintar o que via, despreocupado em encontrar alguma dimensão misteriosa entre o olhar e o mundo. Houve divergências mais prosaicas: o gasto excessivo de tinta por Van Gogh ou a escolha por pintar ou não ao ar livre. Aos poucos a discordância entre ambos torna impossível a parceria e Gauguin decide abandonar Arles. Van Gogh se desespera com a perspectiva de voltar a isolar. Numa última discussão áspera com Gauguin ele corta um pedaço de sua orelha esquerda. O sonho de uma comunidade artística igualitária durou pouco mais de dois meses. Em Arles – onde fica até setembro de 1989, – Van Gogh pinta incansavelmente. Depois vem o calvário das internações: Hospital de Saint-Paul de-Mausole (1889), Saint- Rémy (28 de dezembro de 1988) e, finalmente, Auvers-sur- Oise, onde fica aos cuidados do Dr. Gachet médico homeopata e também pintor. É aí que morre com um tiro no abdômen. Não se tem certeza se foi suicídio ou um tiro acidental disparado por um de dois irmãos, René e Gaston Secrétan, que costumavam passar as férias em Auvers-sur-Oise na mansão dos pais. Eles costumavam acompanhar as sessões de pintura ao ar livre de Van Gogh. Um deles usava uma fantasia de caubói, mas no coldre tinha uma arma de verdade. Um disparo acidental dela poderia ter matado o 74


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artista, que por bondade ocultou o crime.45

XVI No período pós-parisiense do pintor, muitas vezes suas telas apontam para direções um pouco diferentes, mantendo sempre uma alta qualidade. Nos retratos da senhora e do senhor Roulin [Figuras 35 e 36], diferentemente do que se vê em seu “Autorretrato com chapéu” [Figura 14], as representações são mais serenas. O corpo volumoso da senhora Roulin [Figura 35] está solidamente apoiado sobre a cadeira. As flores do segundo plano, as padronagens e pequenos pontilhados de amarelo formalmente desempenham um papel nada secundário, pois é na ação recíproca entre a o corpo da senhora Roulin e a leveza dos ornamentos que reside o encanto da tela.

45

Ver biografia de Van Gogh mencionada anteriormente. 75


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Figura 35 (p/b)

No busto do senhor Roulin, convivem o orgulho do carteiro politicamente engajado e a sugestão de leveza daquele que não odeia os semelhantes, obtida pela disposição e pelo aspecto aéreo das flores a suas costas. Em ambos os retratos há mais empatia – e de fato Van Gogh os queria bem – do que o amor desmedido pelo amigo Eugène Boch, que conduzirá sua representação àquela intensa expressividade.

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Figura 36 (p/b)

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Figura 37 (cor)

O “Autorretrato com bandagem na orelha” [Figura 37] é literalmente trágico pela mutilação auto infligida. De um ponto de vista pictórico, o que torna o autorretrato realmente dilacerante é a coexistência das duas faixas que o dividem irregularmente, e que lembram muitas telas de Mark Rothko, ele também um pintor trágico. O vermelho saturado da parte inferior não consegue encontrar passagem para o intenso laranja da parte de cima, embora ambas as cores façam parte de uma mesma gama de cor. No quadro, a cisão de um homem em busca de uma exigente 78


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espiritualidade cristã, a todo instante afastada pelo realismo cruel de sua realidade social, é exposta sem nenhuma concessão à auto piedade ou à descrição literária. Inegavelmente a tela tem uma expressividade tocante. E ela se obtém pelos mesmos meios que o levou, em vida, à derrota.

XVII

Apenas aos poucos os esforços de Johanna Van Gogh-Bonger Gogh obtêm alguns resultados. Ela tinha pouco menos de 30 anos quando Theo morreu – seis após o irmão Vincent – e acabara de ter um filho, também chamado Vincent. Theo a havia orientado para queimar várias das cartas que recebera do irmão, pois continham apreciações e comentários relativos a pessoas ainda vivas. Johanna tinha alguma mágoa de Vincent. Praticamente sustentado com o minguado salário de Theo. Antes de queimá-las, lê toda a correspondência entre os irmãos, embora Theo não guardasse todas as cartas recebidas de Vincent, e reúne todos seus quadros, estudos, gravuras e croquis. Aos poucos a jovem se enternece com as cartas de Vincent e decide não as destruir. Sozinha, sem recursos e com um filho pequeno para criar, resolve voltar à Holanda, onde aluga quartos para pensionistas, enquanto isso cria seu filho e consegue apoio de alguns 79


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marchands. Durand-Ruel não consegue vender nada, mas o Père Tanguy vende algumas obras. Em 1901, a Galeria Bernheim-Jeune, então dirigida por Félix Fénéon, expõe vários trabalhos do pintor em Paris. A exposição tem boa repercussão e terá importância para a formação dos fauvistas. Além disso, em 1907 saem três volumes com as cartas de Van Gogh em holandês e alemão. Outras exposições ocorrem, na Galeria Cassirrer, Berlim, e em Bremen. Quando Johanna morre em 1927, seu filho Vincent (mais conhecido como Engenheiro) assume a direção do espólio do tio. A primeira grande venda que realiza – não se queria pulverizar o conjunto da obra – foi para o casal Helene e Anton Kröller-Müller, ambos filhos de ricos industriais alemães. Também com as obras de Van Gogh, fundam o museu que leva seu sobrenome, em Oterloo, em meio a uma bela reserva florestal. Talvez por serem os primeiros a escolher a partir do conjunto de obras do pintor, acredito que essas suas telas superam em qualidade as do Museu Van Gogh, em Amsterdam. Depois de criar e educar seus filhos, o Engenheiro faz um acordo com o governo holandês e, por um preço simbólico, transfere as demais obras para o Estado. Foi com esse acervo que se criou o Museu Van Gogh. Em 1926, dá-se a consagração institucional mais importante: o MoMA de Nova York é inaugurado com a mostra “Quatro pilares da arte 80


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moderna: Cézanne, Gauguin, Seurat, Van Gogh”.46

XVIII

Se a exposição em Paris foi importante para determinar os fortes contrastes de cor dos fauvistas, as exposições na Alemanha foram decisivas para os expressionistas alemães, sobretudo para o grupo A Ponte (Die Brücke), cujas atividades têm início em Dresden, em 1905. Embora ambos os movimentos, fauvismo e expressionismo alemão, tenham tirado ensinamentos da arte de Van Gogh, foram sobretudo os expressionistas que levaram adiante o sentimento trágico do mundo do pintor holandês. Nas excelentes pinturas de Ernst Ludwig Kirchner [Figura 38] um dos melhores artistas do grupo, o intenso choque entre as cores – sem nenhum impasto, como ocorria com Van Gogh – esse sentimento é revelado por uma intensidade que as cores complementares (no caso vermelho e verde) apenas ajudam a acentuar. O verde estridente da 46

John Rewald. Studies in post-impressionism. Nova York: Abrams. 1986. Ver em particular o capítulo “The postumous fate of Vincent Van Gogh (1890-1970). P. 244 ss. 81


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jovem da Ilustração 38 não significa apenas um protesto contra a tradição das cores locais, ainda que esse propósito também faça parte da estética expressionista. O decisivo aí é revelar a inviabilidade de uma relação serena com a realidade. É justamente essa relação áspera e agressiva dos indivíduos com o mundo que é praticamente impossível encontrar em Matisse e seu círculo. A força das cores, sobretudo de Matisse, é uma afirmação do mundo sensível e da possibilidade de mantermos com ele uma relação harmônica e prazerosa.

Figura 38 (cor) 82


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Figura 39

Figura 40

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Figura 41(cor)

Figura 42 (p/b)

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Figura 43 (p/b)

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Figura 44 (cor)

XIX

Até agora pouco se falou sobre o espaço nas pinturas de Van Gogh. Em parte, isso se explica pela estranha espacialidade que Van Gogh cria em alguns de seus quadros. Em “O quarto” [Figura 40] e em “Café à noite” [Figura 42], um uso nada acadêmico da perspectiva combinado com o aspecto rudemente geométrico dos objetos conduzem a uma espacialidade que se volta sobre si mesma, em vez acolher as coisas que se situam nela. Assim, tem-se a impressão de que o espaço age sobre os objetos, deformando-os e tornando os ambientes claustrofóbicos. Em “Velhas choupanas, Chaponval” [Figura 41] esse aspecto de seu espaço se radicaliza ainda mais. Nela, o espaço adquire um aspecto corporal, meio viscoso que, aliado ao estado precário das moradias, torna-as um ser híbrido, mistura de construção civilizatória e de um enorme parasita que consome e destrói o trabalho humano. Algumas telas do final de sua trajetória, porém, [Figura 40 e 41], ganham uma horizontalidade mais acentuada – um formato tradicionalmente ligado a paisagens – que permite identificar uma espacialidade mais arejada e majestosa. Porém, como mostra Schapiro 86


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no ensaio já mencionado, diferentemente do que ocorre na perspectiva tradicional, que nos permite adentrar pela imaginação o espaço perspectivo ilusionista, as linhas das paisagens de Van Gogh parecem avançar sobre o observador, ameaçando-o. O horizonte ou o céu azul condensam uma força natural que está além da nossa capacidade de apreendê-la. Não estamos diante do fenômeno romântico do sublime – como acontece na pintura de Turner, por exemplo. As cores são claras e não há um mistério oculto na vegetação. Ela foi plantada por mãos humanas, tem a nossa escala e, no entanto, isso de pouco adianta. Diante desses quadros tem-se a impressão que também o trabalho manual investe contra nós. No final de seu ensaio sobre o artista, Meyer Schapiro conclui com uma passagem admirável. Analisando os “Corvos sobre o trigal” [Figura 41], afirma: "O imenso céu dos “Corvos” nos aparece então como uma imagem da totalidade, como que respondendo a um desejo histérico de ser absorvido e de perder o eu na vastidão. (...) Ele é retirado, através dos campos amarelos, do caos das picadas e do temor das aves que se aproximam, e é carregado para um profundo céu azul, a região da mais nuançada sensibilidade, uma essência pura e que tudo absorve, na qual por fim sujeito e objeto, parte e todo, passado e presente, perto e longe, não

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podem mais se distinguir."47

1 Meyer Schapiro. Op. cit. P.34.

Afirmei que a passagem de Schapiro é admirável. E de fato é. Resta, porém, uma questão. Van Gogh almejaria de fato, “ser absorvido e de perder o eu na vastidão”? Não seria essa cisão, o sentido mesmo de sua vida, por mais que ela o conduzisse a tantas frustrações e sofrimentos?

XX

Não são poucas as vezes que ficamos gratos a um autor pelos caminhos que nos abre para a compreensão daquilo que procuramos entender melhor. Quase todas as notas mencionadas neste ensaio têm um pouco disso. Até que deparei com a epígrafe de seis palavras em latim das anotações de Nietzsche em sua segunda estada em Gênova, usada por Julius Meier-Graefe no capítulo sobre Van Gogh, em “Modern art” e tive inveja. Nas seis palavras de um pensador, quase a totalidade do sentido da arte de Van Gogh estava ali:

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Figura 41(cor)

Lux mea crux Crux mea lux [Luz minha cruz Cruz minha luz]48

Para alguém familiarizado com a obra e a vida de Van Gogh, essas seis palavras são uma revelação, embora não sejam poucas as passagens da Bíblia em que encontramos formulações assemelhadas. Não é esse o lugar nem sou a pessoa apropriada para discutir o sentido 48

Friedrich Nietzsche. Giorgio Colli e Mazzino Montanari (org.). Friedrich Nietzsche, Werke. Kritische Gesamtausgabe, Berlin/New York, de Gruyter, 1967, vol. 9, 12 [231]. 89


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dessa breve anotação no conjunto do pensamento de Friedrich Nietzsche. Em relação à obra e à pessoa do artista holandês estou convencido de que ela sintetiza metafórica e brilhantemente o que foi argumentado até agora. Se, como sustenta Meier-Graefe, a busca de Van Gogh era “dar substância corpórea a sua alma artística”, a morte na cruz seria a condição sine qua non para que esse processo se cumprisse no próprio Jesus, com quem Van Gogh se identificava espiritual e existencialmente. A morte liberta o espírito da carne, do mundo material. As três palavras seguintes [crux mea lux] são quase um desdobramento do que foi dito acima a respeito das primeiras três palavras da epígrafe. Estou convencido de que é possível ir um pouco além dessa interpretação quase somente espiritual. Argumentei no início deste ensaio que as cores (a luz) do artista precisavam ser simultaneamente figuração e matéria luminosa. Por essa tensão insolúvel, ele não só chegava a uma pintura altamente original, como também alcançaria aquele ideal de um trabalho contínuo, culminação da noção protestante de trabalho, a sua cruz. E seria justamente a vida de grandes dificuldades que levou – tanto no Borinage quanto em Arles as crianças costumavam atirar pedras no maluco da aldeia – que para

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ele teria permitido manter firme os objetivos que havia, a muito custo, estabelecido para a sua vida.

XXI Penso que a experiência proporcionada por uma obra de arte se diferencia em alguns sentidos das demais experiências. Se coloco a mão sobre uma vela saberei por meio dos sentidos que o resultado desse gesto pode ser doloroso. Nesse caso singelo a experiência é o resultado de uma experiência. Diante de um Van Gogh (poderia usar outros exemplos que vão em direções diversas), acredito que experiência é manter-se numa situação em que qualquer escolha (simplificando: o privilégio da tinta ou da figuração) destrói a complexidade do objeto que temos diante de nós. A realidade que Van Gogh nos propõe tem a complexidade e a riqueza de um mundo distante de nossos anseios práticos. Bem ou mal, ao menos em parte, somos feitos de matéria quimicamente pouco diferente das pinturas. Ainda que tenhamos pouco conhecimento daquilo que partilhamos com a realidade, se não houvesse um termo comum entre nossos sentidos e as obras de arte seria impossível entender a possibilidade de essa relação nos proporcionar a sensação de uma ampliação de nossas possibilidades. Podemos chamá-la alegria, embora 91


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muitas vezes – talvez como no caso de Van Gogh – essa sensação seja de desânimo ou fragilidade. De todo modo, sempre será um modo de enriquecimento de nossa relação com o mundo. Os exemplos são poucos – e poderiam ser muitos. Do ponto de vista desse estudo sobre Van Gogh, o que importa aqui é acentuar que a experiência da arte nos ensina sobretudo a não nos livramos do mundo sensível na busca de uma resposta, seja ela de que ordem for. Um amigo – Duncan Lindsay – certa vez me disse que “gostar de arte é um privilégio”. Pode-se muito bem viver sem ela, mas alguma coisa definha em nós, como um braço que por acidente perdeu seus movimentos. Nesse caso – não gostar de arte – as consequências talvez sejam mais graves. O corpo considerado ou como instrumento ou como inteligência necessariamente é um corpo que mantém relações mais pobres com a natureza. A considerável desvalorização dos sentidos em muitas situações cotidianas certamente tem origens múltiplas e diversas. Acredito que, em sua maioria ligada às religiões. A excessiva valorização da alma, espírito, mente e tantos outros nomes assemelhados tem uma origem remota, que começa com certos filósofos gregos passa por quase todas religiões e só encontra alguma dignidade no empirista Hume, que recusa a eles uma capacidade de

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ordenação do mundo, o que possivelmente só se dará com MerleauPonty.

XXII

Nas artes visuais, foi Andy Warhol o primeiro artista a revelar a mudança radical por que vinha passando o modo de aparecimento da realidade. Depois dele, esse sentimento se generalizou, mas acredito que apenas uns poucos artistas, em geral fotógrafos e videomakers contemporâneos, conseguiram levar um pouco adiante suas intuições. Para Warhol, a experiência direta do mundo tornara-se um eco longínquo. O conhecimento do mundo passou a ser mediado por imagens. Afinal, quais de nós teve com Marilyn Monroe, Elizabeth Taylor ou Elvis Presley um conhecimento semelhante ao que temos de nossos parentes mais próximos ou de amigos. Mas só isso não bastaria – como aconteceu com os artistas pop ingleses, que teriam antes de Warhol justaposto elementos banais a signos da cultura erudita. O que foi decisivo na solução que Warhol encontrou para seus melhores trabalhos – os da década de 1960 – estava no modo de realizar suas telas [Figura 42]. Elas são chamadas pintura apenas por força de expressão, pois na verdade são feitas por uma 93


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técnica simples de gravura, o silk-screen49. O mesmo processo usado para imprimir rostos de astros na camiseta de jovens.

Figura 42 (cor) Se um artista toca em sua tela com um pincel entintado para registrar, digamos, um rosto, é quase impossível que seu corpo não reaja expressivamente ao motivo. O que também suporia uma certa tomada de posição diante do tema. Ao evitar esse contato direto pelo processo do silk-screen, pela compra de fotos tiradas por outras pessoas e, muitas vezes, apenas dar algumas instruções aos assistentes que realmente tiravam as cópias, 49

Um material é esticado sobre um suporte (em geral) de madeira, formando um pequeno quadro. Posteriormente, por meio de processos químicos ou manuais, traça-se a figura que será estampada sobre um suporte, digamos uma faixa de passeata. Joga-se uma tinta apropriada na parte interna desse quadro. Depois, com uma espécie de rodo, a tinta é puxada. As partes vazadas deixarão passar a tinta que será impressa sobre o tecido. Essa é uma explicação rudimentar, apenas para tornar um pouco mais compreensível o processo de trabalho de Andy Warhol. 94


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Warhol introduzia nas próprias imagens resultantes uma membrana50 muito semelhante àquelas informações que chegam a nós diariamente. Afinal, quantas pessoas viram realmente a destruição das Torres Gêmeas? Pode-se não gostar das obras de Andy Warhol, que de fato logo se tornou menos instigante, mas achá-lo um simples adorador do mercado de massa ou da indústria cultural implica não entender o mundo contemporâneo. Os operadores das bolsas de mercadorias que compram e vendem todos os dias enormes quantidades de alimentos ou outras matérias-primas possivelmente nunca experimentaram nada do que negociam. Ao trocarmos dinheiros por roupas, comida ou carros realizamos um gesto muito parecido. De fato, a complexidade da vida contemporânea pôs abaixo quase tudo que nos restava de experiência direta da realidade. Até que venham as crises, que obviamente não se resolvem num photoshop. Nos momentos em que a roda da economia capitalista emperra, mesmo que por pouco tempo, as relações ainda revelam muito das tensões que marcam a pintura de Van Gogh, ou seja, um movimento quase histérico para proteger seu capital, seja na compra de

50

Lembrar que essa indiferença, pelo menos nos anos 1960, também advinha do fato de Warhol comprar fotos (em geral stils) de filmes de que participavam as pessoas impressas nas telas. Uma foto feita por Warhol já poderia conter alguma subjetividade. 95


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bens, ouro ou outros ativos menos voláteis. Ou seja, o dinheiro, a forma mais abstrata da equivalência entre as coisas, chamado com razão pelos economistas

de

equivalente

universal,

também

perde

momentaneamente sua mais decisiva função. A violência coletiva ou individual, religiosa ou política, os suicídios, a verdadeira epidemia de depressão, ansiedades e outros transtornos mentais nos devolvem a uma instância opaca, turva, absolutamente diversa da realidade da imagem, que não se pode negar, mas tampouco universalizar. Não quero fazer da arte de Van Gogh uma panaceia

universal.

Uma

pessoa

transtornada,

porém,

oscila

permanentemente entre identidade (figura) e uma massa caótica.

XXIII O que a arte pode opor a isso? Muito pouco. Mesmo porque o acesso paciente a pinturas, esculturas, instalações etc. vem se tornando cada vez mais raro em proveito de outras modalidades artísticas que pedem cada vez mais a participação física do público. Mas sempre haverá aqueles que realmente gostam de arte, independentemente dos caminhos que virão a tomar. E é da natureza da arte – sobretudo por não ter um conceito preciso – o diálogo. Só se chega a uma boa seleção de boas obras por um consenso, por mais

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provisório que seja. E quanto mais democráticas e estimulantes forem essas discussões, melhor deverá ser esse consenso. Deve haver pouca gente mais diferente de Van Gogh do que eu, embora tenha também meus desassossegos. Enfim, por mais diferentes que sejamos, sua obra me toca, ensina e emociona como poucas outras. Tenho receio de terminar esse livro sobre um homem e artista excepcionais com um tom de autoajuda. O pintor não merecia isso. Ele não foi um talento precoce. Ao contrário, chocou-se contra todos os obstáculos possíveis até descobrir a pintura que o movia incondicionalmente. Estava no lugar certo (a Paris de 1886). Tinha 33 anos quando realmente começou a aprender a pintar. O período de Nuenen conta muito pouco. Em apenas quatro fez uma pintura que marcará a sensibilidade humana para sempre. Sofreu como um cão e certamente teve momentos de grande êxtase. Acredito sinceramente que a força do mundo sensível – apesar de todos os esforços ecológicos – tende a ser reduzida. No entanto para quem adquiriu esse “vício” – a arte – não há outra escolha a não ser usufruir o que se nos pode nos oferecer. Todos envelhecemos. E talvez o mais patético desse movimento natural seja tentar evitá-lo pela adesão histérica às últimas tendências. Mas é sempre possível continuar serenamente uma 97


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atividade que, por não ter conceito, sempre contribuirá para a ampliação do campo do sensível, por mais que ele perca relevância. Van Gogh teve momentos de fúria e desolação. Não me lembro, porém, de fazer-se de vítima. Acredito que muitos de nós estamos fadados a um destino trágico semelhante. Situações em que o que deve ser feito não deve ser justificado. Foi assim que viveu, trabalhou e morreu Van Gogh.

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