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Mêncio e Xunzi e a o conceito de autonomia moral na
ciente e sugestiva. É, por esta razão, legítimo duvidar que os estribilhos que sublinham as diferenças entre as teses de Xunzi e Mêncio sejam realmente a expressão do pensamento de Xunzi.46
Por fim, devemos considerar a questão terminológica, muitas vezes invocada para minimizar o “conflito insolúvel” entre as teses de Xunzi e de Mêncio sobre a natureza humana. Deve ser referido que, em oposição ao ocidente, o conceito de mal na China não foi compreendido nem tratado em termos “totalizantes”. Assim, parece que a noção de “mal absoluto” ou “mal radical”, como foi apresentado na nossa cultura, está absolutamente ausente da cultura chinesa. Na tradição chinesa, o mal é concebido mais como uma incapacidade, parcialidade, desvio de princípios naturais, trangressão das normas ou rebelião. Quer, muitas vezes, significar repugnante, com uma marcada caracterização estética, ou perigoso e, neste caso, corresponderia ao que temos definido como “mal natural”. Nunca é, contudo, representado como uma força cósmica ou uma entidade absoluta, em oposição à bondade, nem como uma de duas divindades opostas e incompatíveis. As forças do mal nunca aparecem figuradas como tendo força propulsiva; nunca são ocultas, nem são comparáveis às concepções nitzcheanas dos Cíclopes, os arquitectos e pioneiros da humanidade. A noção de pecado original está ausente. E mais, a própria ideia de pecado, tal como foi introduzida na China, por Confúcio, é radicalmente diferente das noções de pecado, culpa e arrependimento, conforme a tradição judaico-cristã. A palavra usada em chinês, e, que geralmente é traduzida por “mal”, não tem, certamente, a carga que “mal” e os seus derivativos e sinónimos têm nas línguas e culturas ocidentais. Nunca Xunzi seria capaz de imaginar ou teorizar a existência de um mal ontológico, ou da possibilidade de se ser atraído para o mal como um caminho para o conhecimento de si próprio, ou de uma relação subserviente ou dedicação ao mal de per si. 47 Donald Munro explicou o conceito de mal de Xunzi em termos de um xing, natureza humana inacabada. Fez um grande esforço para indicar as áreas em que Xunzi e Mêncio concordam e foi o primeiro no ocidente a expôr claramente o problema: As interpretações tradicionais envolvem, muitas vezes grandes simplificações da descrição do xing na obra, geralmente suportadas por algumas citações da primeira parte do capítulo «Sobre a Maldade da Natureza Humana» (Xing e pian [性惡篇]). O estudo detalhado do texto de Liu Xiang sobre o Xunzi, feito por Kanaya Osamu, trouxe à luz do dia argumentos interessantes a examinar, pelo menos na primeira parte daquele capítulo, conforme foi composto por discípulos mais tardios de Xunzi, trabalhando sob a influência da escola legalista de Han Fei. Mesmo nesse excerto a repetição da afirmação de que o xing é mau, é feita para, em parte, enfatizar a crítica a Mêncio. Outros factos para além do testemunho textual discutido detalhadamente por Kanaya, deram grande importância à noção de natureza humana má em qualquer estudo do pensamento de Xunzi. Primeiro, não há outras referências ao xing como mau, no resto da obra, o que seria estranho se fosse algo de tão importante no pensamento de Xunzi. Segundo, o tema com que Xunzi está preocupado é óbvio: como atingir um equilíbrio das virtudes, que são poucas, e dos desejos humanos, que são extremamente numerosos, sem exigir o ascetismo de ninguém. Finalmente, no resto do trabalho, xing aparece, claramente, não como algo de mau, mas como qualquer coisa pouco desenvolvida.48 Chad Hansen faz referência ao vazio existencial que conduz o homem a desejar a bondade, uma aspiração que não brota do mal, mas antes de um desejo de preencher um vazio interno de que o homem é prisioneiro: Faltam-nos provas de que Xunzi tenha um ponto de vista cristão de um mal positivo na natureza humana. Qualquer que tenha sido o papel da ideia (a natureza humana é má) na distinção da sua opinião da de Mêncio, nós caracterizámo-la ao dizer que a natureza humana é neutra. É neutra no que diz respeito à moral a adoptar, e naturalmente adopta uma. A interpretação coerente mais forte que podemos dar ao conceito é de que o homem viveria no caos e na desordem sem uma moral socialmente condutora. [...] Todo o ser humano tem uma tendência natural para aprender linguagens, rituais e partilhar opiniões. Somos uma espécie com uma tendência natural para a conformidade numa doutrina comum, ou seja a moralidade. Desejamos o bem porque temos aquele potencial não preenchido, um vazio natural na nossa estrutura. Não o desejamos porque somos maus, mas porque estamos ocos. Esse potencial não preenchido é tudo o que Xunzi pode querer significar por mal, se, na realidade, ele for o autor daquele conceito.49 É a esta espécie de vazio existencial a que Xunzi parece referir-se quando, numa das definições de natureza humana que ele caracteriza em termos de e «mal», ele afirma:
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Em geral, os homens querem ser bons porque a sua natureza é má. Os medíocres desejam ser excelentes, os feios desejam ser bonitos, os que vivem em espaços exíguos desejam os espaços amplos, os pobres desejam ser ricos, o inferior deseja ser superior-o que lhe falta dentro dele o homem vai procurar fora.50 Deste ponto de vista, o mal não é algo que seja por si próprio positivo e independente; é antes uma ausência, uma falta, uma lacuna estrutural dentro do homem devida à sua imperfeição natural.
Mesmo o termo chave, em debate, xing, normalmente traduzido como “natureza, natureza inata, natureza original” origina grandes problemas. Um, de natureza transcultural: suspeito que é praticamente impossível encontrar, nas línguas ocidentais, termos correpondentes que sejam tão exigentes e comprometidos como os normalmente usados. Há também, um problema dentro do próprio debate chinês. Como diferentes estudiosos referiram, Xunzi parece ter interpretado mal a posição de Mêncio sobre a natureza humana devido a um significado diferente atribuido a xing. 51 Muitos estudiosos parecem concordar neste ponto -- desde D. C. Lau, de acordo com o qual «Mêncio procurava o que é distintivo enquanto que Xunzi procurava o que é inseparável nela»,52 para A. C. Lau, de acordo com quem «Xunzi critica a doutrina da bondade inata a partir de uma definição de natureza humana que não é a de Mêncio, de tal modo que as suas objecções embora argumentadas de forma lúcida, não vão directas ao ponto. Não é fácil localizar os pontos de discórdia».53 Na base destas considerações, vamos examinar a posição assumida por Xunzi. Apoiante convicto de um modelo ideal de universo que vê o homem em perfeita unidade com o Céu e a Terra, ele enfatiza o papel da cultura e da educação e reafirmou vigorosamente a importância dos ritos e das convenções sociais (li). Para Xunzi, os ritos (ou normas tradicionais de bom comportamento, como parece ser preferível traduzir li, na maior parte dos casos) não são mais nada do que uma extensão da ordem presente na natureza: tal como o são as leis e princípios que governam naturalmente o mundo; assim o mundo dos homens é, por seu turno, governado por modelos e regras. Os sábios descobriram-nos e compreenderam-nos e traduziram-nos para um sistema orgânico de normas formais, de modo a que a harmonia entre o mundo natural e o terreno fosse assegurado: [禮者,治辦之極也,強国之本也,威行之道 也,功名之總也。王公由之,所以得天下也;不 由,所以隕社稷也。]
Os ritos e as normas tradicionais de conduta são a expressão mais elevada de ordem e discriminação, raiz da força do estado, o Caminho através do qual se cria a autoridade e o foco no mérito e na fama. Governantes e nobres que procedem de acordo com a sua condição ganharam o mundo, enquanto que aqueles que não o fizeram trouxeram ruína para os seus altares de solo e grão.54