A sua haste mais curta

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A SUA HASTE MAIS CURTA

Fabiano Viana Oliveira


A SUA HASTE MAIS CURTA (livro registrado na Biblioteca Nacional)

Fabiano Viana Oliveira


Viver é morrer 1996 O fim para uns é apenas o começo para outros; numa sofrida vida onde nada se perde além da própria noção do que a realidade apresenta como sendo a evidência de uma escolha do destino... Olhos se perdem longe de uma pequena multidão que se aglomera em lamúrias e fofocas para o final adeus de uma pessoa que estes mesmos olhos que observam de longe também conhecem muito bem sem nunca ter sido próximo: o enterro prossegue de uma jovem mulher que cometera um suicídio muito tempo depois de já ter morrido para quase todos... É um dia cinzento que recobre com a frieza dos olhares a certeza de que a mulher fizera o certo por si mesmo, queimando no inferno da vaidade, e por quem estava perto, suportando sua auto-intolerância pelo mesmo tempo em que se tornara de uma linda mulher de germânica decência em um rosto desfigurado, e alma amargurada pelas mais diversas perdas erudidas a partir da desfiguração. Há tristeza nos gestos dos presentes; lembranças de alegrias; lamento e rancor... como bem haveria de ser... mas também há a garantia da paz de quem não tinha paz, e que não mais permitia a paz a nenhum outro... Apenas para os olhos que observam de longe o enterro de Frida é que um lamento diferente corrói outras estranhas que não as da normalidade da perda.. Ninguém mais se lembra; ninguém mais quer lembrar, mas o policial que fixa o seu pensamento naquele caixão que se afunda na escuridão profunda se lembra muito bem como tudo começou... Ele observa de longe; fuma e embaça os óculos escuros em pleno dia nublado; (civil)... pensativo: “Frida chega ao carro um pouco mais aliviada. O ar frio da noite espantava o calor úmido do dia, do Pelourinho e daquele bar. Ela sente o vento por um segundo. Tentava lembrar que ainda estava viva... - Ah... Ilena... - Isso mesmo. Ilena! - A fonte da voz não pôde ser vista por Frida. Antes que ela se virasse um golpe na nuca a faz apagar. A rua deserta não apresenta testemunhas para o atacante; ele podia liberar toda sua hostilidade; com a ferocidade de sempre... - Agora você vai aprender, desgraçada... - Com Frida caída no chão o feroz atacante começa a projetar chutes em seu abdômen e costelas. Os únicos sons que ecoam são as pancadas abafadas. Ela está inconsciente; não pode agonizar com os golpes; mas ele sabe o quanto vai ser doloroso quando ela acordar. Ele pára os chutes e se agacha para dar socos no rosto da pobre vítima. A pele branca de Frida começa a enrubescer com as pancadas. Logo se tornariam terríveis hematomas. Esse pensamento o excita e aumenta a sua violência; mas ele só tem intenção de machucá-la... Ele quer aliviar o arpeio.” (ARPEJO, pág. 67) Luciano recorda daquela noite no começo do verão há dois anos atrás, e sabe que é por causa dele que Frida tirara a própria vida com um tiro de revolver na cabeça: tanta angústia, tanta tristeza, tanta culpa... mas a escolha foi dela... Luciano estava vivo, e o arpeio não toca mais em sua mente... é apenas uma memória... sem escolha. O bipar retinido soa com o mesmo despertar dos olhares ao longe que observam o desconhecido, de onde o irritante som se origina... Um homem de pele parda, cabelos castanhos cortados bem curtos, estatura média e um rosto frio sem expressão que se esconde atrás das lentes do óculos escuros. Todos observam com curiosidade e algum


aborrecimento por ter ele cortado o silêncio daquela despedida, mas ninguém o conhece; Luciano tem a certeza que os olhares o interrogam como quando ele apanha um bandido e tem de fuzilá-lo com semi-contradição para pegar em meio a muitas mentiras, e algumas pancadas, verdade da situação... mas sabe também que ninguém irá perguntar: nada sobre o estranho na distância que se distancia mais ainda sob o som de seu Bip... livre dos olhares e dúvidas dos outros, mas nunca livre de si... - “Adeus, Frida.. Diz “oi” para Carol e para Ilena..”- Esse é seu inocente pensamento, com os nomes que eternamente o povoam, e que ele sempre tenta esquecer... mas não pode... não tem escolha... Apenas lhe resta o trabalho, que é o que o chama. - Um médico?.. - Alguém dos presentes perguntou...

&

O carro cortava a avenida entre o cemitério Jardim da Saudade e as vias que alcançam o centro da cidade de Salvador. O destino deste é alcançar o Complexo de Delegacias dos Barris, mas o destino de seu passageiro/motorista repousa nos campos insondáveis de um grande mistério há muito iniciado por razões desconhecidas de um coração sem controle e uma mente que encontrou o desajuste psicótico a maneira de expressar seus desejos e emoções... Luciano tenta continuamente se auto-analisar para descobrir o que houve de errado afinal no meio do caminho de sua vida para que tudo aquilo por final acontecesse: dois anos depois, quando já podia começar a acreditar na própria mentira de que tudo havia acabado, a terceira e última vítima dos seus atos atinge o estágio final de sua decadência humana... As imagens da cidade e da vida a sua frente não respondem as questões; e nem nunca responderão... Sabe disso, somente tendo em seu coração gelado a certeza de tudo ser passado (“Estou curado.”), e de que; como sempre, desde aqueles outros momentos de morte, dor e polícia; viver é morrer... O Bip de Luciano o havia chamado de volta para o Complexo de Delegacias. Pelo número, somente aquele, sabia que tinha de retornar, apesar de ter saído de lá naquela manhã mesmo, deixando o plantão, e indo direto para o enterro de Frida, quando deveria seguir para casa; porém não tinha muita vontade de retornar para a casa vazia que o saudava com poeira, bagunça, uísque e muita solidão... Mergulhava no trabalho: assistindo a podridão da sociedade, em seu lado mais deprimente e violento, para esquecer a própria podridão do interior... Rápido, estava chegando. O rosto de detetive Oscar acolhe Luciano assustado e excitado ao mesmo tempo, antes mesmo dele apresentar a identificação na portaria. Os dois caminham rápido pelo corredor em forma de curva do complexo: Oscar tenso e Luciano, calmo e frio, ouve... - Mais uma, Doutor Luciano... Mais uma exatamente como eu havia previsto! - Pelo jeito que foi descrito a ocorrência.. sem dúvida! - E aonde foi dessa vez? ... - Eles chegam ao gabinete: na porta o símbolo do que fora alcançado por Luciano nestes últimos anos: o nome: “Delegado Luciano”... Eles entram, Luciano na frente, tirando o paletó e o Detetive Oscar atrás, fechando a porta... A conclusão do curso de direito foi o que pode ser considerado de norma, em intenção, a melhor coisa que realizara: toda a experiência na polícia e o auto incentivo para continuar presente nesse


mundo, fez do interior atormentado e paranóico de Luciano algo de regular e expositoriamente bem definida ascensão... Seu exterior frio e duro demonstrava a firme direção em algo, quando para o interior era apenas o reflexo do preenchimento de um profundo vazio. Não fora incapacitado, na estranha versão de uma suprimida e perigosa psicopatia... Mas ninguém sabe disso: só Luciano. Senta-se na cadeira que um dia fora de seu mentor, O Delegado Adroaldo, para viver e reviver os pesadelos da época do mesmo na forma de duas bizarras fotos: os dois corpos de mulheres, nuas, penduradas de “cabeça” para baixo, como foram encontradas; com a genitália estufada para fora por uma deformada violação, e o mais atordoante: sem as suas cabeças... Enquanto isso o detetive Oscar, sentado a sua frente agora, vasculha com os olhos a nova pasta, um outro relatório de ocorrência... mas muito parecido com os que o antecederam... - Ah... Está aqui! Achei... O corpo foi encontrado na segunda rótula do aeroporto... nas dunas... - Foi bem longe dessa vez. - Sem dúvida... - Qual o nome da vítima? - Não sei... Aqui só tem a ocorrência do corpo encontrado em via pública.. - O pensamento de Luciano se enche de natural revolta pelo que lhe cerca de incapacidade e incompetência. Levanta-se de sobressalto, com as mãos pressionando a mesa, e se curvando na direção do detetive, seu comandado... - A polícia técnica ainda não foi lá?... Quer dizer que o corpo continua no mesmo local??... - ...É... Nós só recebemos a informação há uma hora atrás. - Uma hora Oscar?... É tempo suficiente... Eu imagino a loucura que deve estar lá agora... Quando foi feita a ocorrência? - Deixa ver... Às sete... Diz que um comerciante estava chegando para abrir o seu estabelecimento e notou algo parecido com uma mulher pendurada de ponta cabeça... em um amendoeira... Imagina o choque do sujeito!... Logo depois chamou a polícia. - Alguém foi pá lá? - Ronaldo. - Ronaldo... Tudo bem... Só espero que ele segure a pressão... - Luciano se endireita, passa a mão no rosto e dá a volta na mesa para voltar a pegar o paletó. - Já deve estar cheio de repórteres... Droga... Vamos embora, Oscar! - O detetive se levanta depressa. Coloca a nova pasta na mesa de Luciano. E sai atrás dele. Andam rápido novamente pelo corredor. - Antes de sair, ligue para Nina e diga para mandar alguém o mais depressa possível... Não quero um corpo decepado exposto na rua o dia todo. - Certo... Esses caras... Nem par deixar as mulheres no chão... Assim a gente podia por um lençol em cima. - Não é tão simples. - Luciano sai do complexo, enquanto Oscar se desvia rapidamente para ligar para polícia técnica, no Nina, onde é a sua sede... Ele já havia feito isso mais cedo, porém no momento em que ligara lhe disseram que não havia ninguém de plantão para atender o chamado... Segundo o oficial atendeste na polícia técnica, outros corpos e


perícias tinham requisitados a presença dos mesmos profissionais; ou talvez não houvesse combustível para os veículos... Como às vezes é muito comum em uma instituição tão precária quanto a polícia civil desse país. Mas de fato, aparentemente o amanhecer na cidade de Salvador estava trazendo cada vez mais vítimas dos monstros da noite para os olhos do dia. Estranhas criaturas, de estranhos momentos de total blecaute na alma, que fazem emergir na normalidade do julgamento de todos que dormem tranqüilos à noite, a loucura de um novo dia... Luciano aguarda no carro, enquanto Oscar telefona. Logo irá assistir a mais um novo momento em sua profissão, que trará as memórias do que parece viver todos os dias... Pensa no porquê de nunca ter desistido; e talvez saiba a resposta... Crime serial nunca fora realmente novidade em Salvador: somente com outros nomes, a presença de uma loucura convulsiva no caso é também a eminência de um grande conflito interno; venderia a alma para estes crimes não estarem acontecendo... A primeira vítima fora encontrada, pendurada de cabeça para baixo numa velha mangueira, o Parque da Cidade, há quase um mês atrás. O fato chocou a todos na cidade: nua, completamente maltratada e sem cabeça. O servente do parque que a encontrou disse que ainda gotejava sangue; o que indicava que a decepção da cabeça não tinha sido há muito tempo, e talvez tivesse ocorrido na proximidades; mas nenhum sinal foi encontrado na busca que foi feita: havia somente o corpo... e ninguém viu nada durante à noite: os guardas de segurança do parque. O nome dela era Patrícia Costa Brasil; foi identificada pelas impressões digitais. Idade: 22; recém formada em nutrição; trabalhava para o pai: médico respeitado, que tem uma pequena clínica num bairro nobre da cidade... Havia desaparecido, a família pensava se tratar de seqüestro, mas não houve pedido de resgate; dois dias depois surgia pendurada naquela árvore. A natureza bizarra do homicídio trouxe Luciano para o caso... A saber: devido a sua experiência no caso do jovem assassino psicótico: Fernando Vainarde... Assumira o cargo de delegado a menos de quatro meses, e via pela frente um grande enigma... Prosseguira com a investigação normal: com as suposições e hipóteses de praxe: de certo modo conhecia o comportamento de alguém metódico o suficiente para realizar aquilo... A cabeça nunca fora encontrada, e uma família completamente chocada fez o enterro com o caixão fechado... Dentro outros fatores... Nunca querendo ignorar seu passado oculto, em prol da investigação, vivendo as lembranças de todos os dias... Aproximara-se de pessoas próximas de Patrícia: amigos, parentes, etc. Os detetives designados procuravam pistas, seguiam pessoas e perdiam tempo.. Pois tudo foi em vão... Quando surgiu a segunda vítima... Oscar chegou e eles partiram. - Conseguiu? - Perguntou Luciano quando já saia do vale dos Barris e entrava na avenida Vasco da Gama em alta velocidade, indo na direção da orla. - Positivo. A equipe que cuidou dos outros dois casos estava fora desde cedo por causa de um maluco que se matou aos pés do Cristo da Barra... - A lembrança de Luciano ia mais longe que a de qualquer policial da cidade que recordava desse lugar como sendo... onde tudo começou... - Mais um?... - Isso mesmo... Depois dos assassinos daquele psicopatia que você fechou... uma porção de outros começou a usar o pobre Cristo como palco para as suas doidejas. - Eu sei... - E ele de fato sabe, quando recorda mais além do que o corpo de Ilena Fernandes sendo lá encontrado, completamente dilacerado, há mais de dois anos... O


delegado Luciano recorda do seu próprio dilaceramento... O silêncio toma parte na conversa dentro do carro que “voava” na direção da região do aeroporto.. Depois... - O pessoal da limpeza pública já deve estar de saco cheio de limpar o sangue desses suicidas babacas.. - Não julgava corretamente os atentados dos homens contra as próprias vidas, pois atentar contra as outras é que era a grande mutilação... Na visão simplista do detetive Oscar: morte era morte, e quaisquer conseqüências sociais e psicológicas sobre ela era apenas matéria de jornal de fim de semana... Talvez ele nunca soubesse conscientemente que um dia poderia se tornar um daqueles “babacas”; qualquer um... Mas a soma das partes no comportamento humano não faz o todo: não é matemática, não é exato... Se era para a polícia, e para a sociedade civil, apenas estatística... Para Luciano era uma dor para ser vivida a cada dia de vida... Desde o caso de Fernando, há dois anos, oito pessoas decidiram se matar naquele local: o morro do Cristo da Barra. De dentro do carro os dois já podem ver a primeira rótula do aeroporto, as dunas, o amendoeira, a pequena multidão, e o corpo... Como as outras duas vítimas: decepada, nua, torturada, pendurada de cabeça para baixo. O carro estaciona. A visão do corpo é aterrorizante, mas o grande número de pessoas rodeia com mórbida curiosidade o local, mesmo já cercado pela linha da polícia civil, e com uma guarnição da polícia militar para garantir a ordem. São pessoas que surgem sempre do mesmo lugar, do nada das esquinas da cidade, para observar a decadente miséria de si mesmos com os olhos das pobres vítimas... Os ombros nus da vítima sem cabeça já pendia perto do chão de areia branca do pé da pequena duna a beira da pista; devido ao peso e a estrutura frágil da árvore da amendoeira, não suportando por tanto tempo e a uma altura razoável o corpo... não era uma mangueira como a primeira vítima: Patrícia. Luciano si do carro jorrando a ira dos que sabem carregar junto com a razão, uma imensa responsabilidade... e culpa... Grita, atravessando o povo e repórteres... - Ronaldo!... Que porra é essa?... Você é mandado para controlar a situação... E onde está o caralho do controle?! - Ele se aproxima feroz do detetive Ronaldo, de pé, próximo do corpo que pendia com um leve movimento provocado pelo vento do litoral... De imediato, observando o corpo, Luciano pôde observar uma diferença com as outras vítimas: os braços estavam amarrados, presos ao corpo, de modo a não pender livre para baixo, onde nesse caso já estariam tocando o chão... Mas não havia muito tempo para pensar agora... - Eu não tenho culpa, Doutor Luciano... É muita gente! - E os macacos da PM estão aqui pra quê? - O comandante deles disse par ninguém fazer nada com tantas câmaras aqui... Com tanta coisa rolando sobre a violência da Polícia Militar, eu não tive muito argumento... O senhor sabe como é o povo... - E os repórteres... - Isso... Luciano olha o aglomerado de pessoas atrás dos cavaletes da polícia; PMs guardam imóveis as passagens para a área da ocorrência; fotógrafos tiram diversas fotos do corpo pendurado, câmaras filmam tudo que podem e repórteres tentam colher qualquer tipo de informação... aos gritos no meio do povo. Luciano sabe que o pior de tudo aquilo não são as reações dos outros abutres da miséria alheia que ficaram em casa nessa manhã; nem também qualquer imagem já denegrida a respeito da competência da polícia: disso aprendeu a muito suportar... O que mais o faz irar-se é qual será o tipo de reação para a família da vítima: recorda o quanto dói não conseguir olhar nos olhos de pais, mães e irmãos,


enquanto diz que sua filha é aquele pedaço de carne ali encontrado em qualquer lugar, sem ter a menor idéia de quem foi, ou se um dia saberá... ou pior: sabendo quem foi sem poder dizer, pois o mesmo é ele... São todas as posições de um olhar frio que vê além daquela insensível multidão, um grupo de pessoas que não terá mais a alegria de ver sua ente sorrir, pois nem mesmo morta, rosto mais tem, para um último sorriso. Aproxima-se da cerca de cavaletes para tentar falar às pessoas. Os mais próximos o vêem se aproximar. - Por favor... Por favor.. Senhoras e Senhores: peço que se dispersem para que a polícia possa conduzir a investigação... - Um dos repórteres o questiona? - Delegado Luciano... Esse é o terceiro assassinato... Quantos mais serão necessários para a polícia se mexer? - Não fale o que você não sabe, rapaz! - Era um jovem repórter de jornal, carregando o seu bloco de anotações. - Salvador já tem um novo assassino serial, não acha? ... - Luciano olha furiosamente para o jovem; tentava não dizer uma palavra sequer para não demonstrar o quanto estava irritado... mas seu olhar já o suficiente demonstrava... Um fotógrafo, de já aparente experiência, se aproxima do rapaz. - Pare de falar besteiras, garoto!... Não vê pelo que o doutor Luciano está tendo de passar... - É notícia, não é?... A polícia não faz nada mesmo além de espancar pobres nas periferias... - O fotógrafo dá um leve e sarcástico sorriso... - Você não devia acreditar em tudo que vê na mídia, garoto... Venha...- Os dois saem pela tangente; o velho fotógrafo de reportagens policiais dá uma olhada para Luciano... Reconhece aquele olhar: uma mistura de desculpas com sacanagens: “É só um foca...”Mas ainda assim restava a raiva por ser questionado de uma maneira tão arrogante por um mísero rapaz sobre coisas tão fora do seu controle e conhecimento... Desde o caso Fernando Vainarde, Luciano vinha sendo respeitado pelo jornalismo policial: a despeito de envolvimento pessoal; ou a verdade em si, que só existe para Luciano; sua atitude fora muito bem recebida; e tornando-se delegado, seu respeito e reconhecimento por parte da mídia só fez crescer: considerando honesto e competente, até o momento... - QUE POLÍCIA É ESSA ?! ... QUEREMOS JUSTIÇA!... - E outras coisas o povo dizia, sem querer de modo algum se dispersar: a maioria dos repórteres e cinegrafistas já havia se dado por satisfeito; sabiam que logo uma resolução prática seria tomada por Luciano... E assim o fez... Virando-se de costas por um segundo apanha a arma que estava atrás da parte interna do paletó, e com outro giro se volta para os cidadãos e começa a atirar com a pistola automática para cima, gritando: - Saiam daqui!... Saiam!... Vão embora! Caralho! - E a reação imediata da multidão: correndo nas mais diversas direções, se escondendo, fugindo, atropelando-se por suas próprias mórbidas curiosidades... Limpando todo ambiente... Luciano finalmente cessa o seu método de controle da multidão. - Minha nossa... - Diz Ronaldo meio abismado; enquanto Oscar acende um cigarro com um sacana sorriso no rosto... Oscar conhece bem os métodos de seu chefe: são oportunamente pouco ortodoxos, mas evidentemente eficientes; sempre contando com o


apoio e o seu prestígio dentro dos meios de comunicação, que nunca mostrariam tal ato... ou mesmo o mencionaria... Luciano guarda a arma. - Ronaldo... Vá ver junto com os PMs se alguém se feriu na correria. - Sim, senhor. - E vai. - Muito bem, Oscar... Vamos ver o que temos dessa vez... - As marcas de tortura pelo corpo eram idênticas as das outras vítimas; a perícia iria confirmar isso, mas uma simples observação dos dois policiais podia antecipar isso. O fato diferencial era realmente o dos braços estarem amarrados ao corpo: de algum modo não podia admitir que o corpo tocasse o hão; provavelmente devido a fragilidade da árvore: único tipo presente naquela região; fosse qual a razão da escolha daquele local: nas dunas; o importante do fato era que o método se estabelecia: o ritual... - Pelo menos dessa vez teremos uma pista física para analisar... - Disse Luciano apontando com uma caneta para a corda que atava os braços da vítima ao seu tronco; somente pendia para baixo as pequenas mãos da mulher: como uma estilizada posição de bailarina... De tudo o que, ainda, mais impressionava i chocava era o estado da genitália: quase três centímetros de tecidos da vagina explodiam para fora da vulva num incômodo formato de flor; tinha, em todos os casos, uma cor acinzentada, como num estado anêmico, com pouca circulação de sangue, e extremamente arranhado... As pancadas e hematomas se repetiam por todo corpo: trazia quase de volta ao silêncio da duna os gritos de dor da pobre jovem mulher; todas as outras eram jovens, de boas famílias, começando a vida em carreiras promissoras, e segundo as famílias: muito felizes; fazendo em todas emergir a revolta, e uma frase: “Como puderam fazer isso com ela?...” E Luciano já supunha ter de ouvir isso mais uma vez; talvez mais de uma... Todas as hipóteses de padrão provavelmente seriam confirmadas pela polícia técnica; porém Luciano sabia reconhecer na obsessividade metódica daquele ritual a presença de razão que não poderiam ser entendidas pela ciência dos mortais da luz fluorescente: dentro de seus laboratórios e gabinetes procuravam uma solução na evidência física de um crime, para achar a razão e um perfil do assassino, ou assassinos, como começavam a parecer pela amplitude que as duas últimas ações haviam alcançado... Porém razão seria inviável para justificar alguém (ele sabe) que possuí em si uma razão própria, muito distante da do resto do mundo... O que torna também o perfil ineficaz; principalmente se for um grupo; porque o perfil traçado é determinado pelas evidências das ações, mas as ações são realizadas por pessoas de perfil desajustado e consciente, e se for coletivo, com uma variável muito maior de capacidade dissimulativa: a prática do ritual faz ele (ou eles) se conhecerem muito melhor; e com um propósito: o que seria mais perigoso; e um perfil traçado de sombras de atitudes não leva a um novo fato... somente quando, e se, de sua revelação.. Por isso foi tão fácil compor o perfil de Fernando Vainarde, como sendo o certo, depois que foi morto.. As evidências mostravam assim, e o ser desses evidências não mais existia; estava revelado; e era mentira... Então; excluindo a corda, que seguia um tipo diferente de evidência: física, não comportamental; Luciano sabia que continuava sem pistas... Era a determinação; com propósito ou não; que o mais preocupava: um impulso psicótico planejado... Perguntava-se porque ela não devia tocar o solo... Olhando fixamente para o corpo que pendia ao vento... - Se o pessoal da técnica não chegar logo, ela vai começar a feder... (fala Oscar, baforando a fumaça do cigarro)... Aliás; acho que já está fedendo... - Luciano olha em volta devagar, em silêncio, pensativo...


A segunda vítima surgiu para dar um nó em todas as teorias apontadas como certas por todos os especialistas envolvidos a investigação preliminar do primeiro crime Encontrada nas mesmas condições, 14 dias depois da primeira vítima: Patrícia, o corpo de Inez Rezende fez uma sombra no alvorecer da cidade baixa. Estava pendurada na mesma posição no alto de um dos grandes postes de iluminação da pista que vai do porto de Salvador até o túnel Américo Cimas, uma das passagens para a cidade alta. Apesar de todas as condições semelhantes; outros fatores de juntaram para fazer cair por terra as primeiras teorias dos peritos e psicólogos... Imaginou-se que seria a ação de um homem sozinho; depressivo e frustado, principalmente em relação às mulheres: o fato do modo, e onde, a primeira vítima fora encontrada fez-se pensar que era uma vingança contra a todas mulheres, com um retorno ao estado natural do homem: sozinho e livre... dentre outros detalhes mais absurdos. Mas logo que foi encontrado o corpo de Inez se fez pensar de como um homem sozinho poderia ter içado um corpo de quase sessenta quilos a uma altura de mais de 13 metros... A meticulosidade ainda permanecia; o que era um fato da teoria do solitário, pois manter tais níveis de suposta frieza nas atitudes levava a crer que o controle só poderia ser mantido por um homem só... Nenhuma impressão digital fora encontrada; e não havia prova que desses maiores respaldas à segunda teoria...o que seria (e é) mais assustador, pois teriase que se imaginar um grupo de pessoas agindo daquela órbita maneira, frias, cruéis e sem qualquer moral social... Porém as evidências ritualísticas se tornaram mais fortes a medida que os exames e testes foram expondo seus resultados... E agora havia mais uma interrogação: elas não podiam tocar o chão... - Oscar... Tem quantos dias que o corpo de Inez Rezende foi encontrado? - O detetive se deteve alguns segundos pensando seus cálculos no calendário das atrocidades diárias... - Tem duas semanas. - Duas semanas... De Patrícia para Inez foi exatamente isso... - Custava não lembrar também agora das faces das duas famílias: e logo teria de enfrentar uma terceira.. Inez seria uma moça de 24 anos. Seu pai era um eletricista que lutou a vida inteira para criar os 4 filhos: duas mulheres e dois rapazes. A mãe também trabalhava como uma micro empresária autônoma, no ramo de doces para festas infantis... Após anos de esforço Inez tinha conseguido se formar em Contabilidade pela Faculdade Visconde de Cairu; tendo de trabalhar enquanto estudava para ajudar a pagar a própria educação. Estava praticamente empregada numa bem requisitada firma de contabilidade de Salvador, que atende inclusive empresas de outros estados o nordeste do Brasil... Tudo estava dando certo; um carro novo com as prestações a pagar; um namorado apaixonado e igualmente promissor (foi investigado); e certo dia não chegou em casa à noite... e dois dias depois onde estava: sem cabeça, nua, pendurada num poste na cidade baixa, totalmente violada... para o desespero de uma família que derramou junta as mesma lágrimas de uma dor contínua que nunca acaba... - Espere, Oscar... Tem menos que isso... São treze dias. - Como é? - De Patrícia para Inez foram 14 dias, duas semanas... Mas de Inez para essa outra pobre coitada são 13 dias... - Vai ver o sacana não agüentou esperar mais um dia... - É... Talvez... Ou, talvez... - Oscar o interrompe repentinamente. - Olha... Eles chegaram. - Era o carro do IML, com os técnicos... e para levar o corpo.


- Já era hora.. Não esqueça de procurar saber que tipo de corda é essa. Parece linha de pesca!... - Positivo, chefe. - Luciano sai de cena, quando os peritos chegam. As características de portas que fechavam numa imagem conturbada de pequenos detalhes preenchiam os pensamentos de Luciano: 31 anos de idade e uma carreira observava há muitos de brilhante, frieza, e ascendência; o que vira os obscuros olhos de si mesmo desejando matar outro ser humano tinha fluido numa camada após outra de dedicação; porém sabia esconder-se de si mesmo e de olhos tão raivosos quanto os dele diante daquele jovem repórter... O que fazia despertar nele tal ímpeto... E fazia outros seres humanos agirem como agem: três vítimas se erguiam de diferenças extraordinárias para satisfazer o desejo comum de algum grupo cheio do forte propósito, desconhecendo os limites da carne, e chamado de loucura... Aquela tal coletiva existência e convivência de tais seres na sociedade: provavelmente os mais normais cidadãos do apartamento ao lado, e no entanto, veementes seguidores dos próprios rituais “malignos” ... Mas o que é o mal? ...: filosofa inconsciente Luciano... Três jovens, três corpos sem cabeça, uma frieza e dedicação capazes de não deixarem-se perceber no mínimo detalhe: uma matemática da psicose coletiva, que faz a promessa de vida promissoras e felizes se tornarem os símbolos de uma total falha de esperança... Novamente recorda das duas famílias; antecipando o nome da terceira... Dirige o carro sem saber direito para onde ir, vivendo as mortes de cada dia, tanto de um delegado da polícia civil (homicídios), quanto do próprio Luciano... No Complexo de Delegacias dos Barris... Sozinho em seu gabinete... “, e as trevas cobriram a face do abismo,” “..a serpente era o mais astuto de todos os animais...” “, serás maldito sobre a terra,” “O mal espírito não permanecerá para sempre no homem, porque é carne;” “, e eu os exterminarei com a terra.” “Tudo que se move e vive será vosso alimento;” “...diante do Senhor, o qual nos enviou para os exterminemos.” “Ai da terra e do mar, porque o demônio desceu a vós com grande ira, sabendo que lhe resta pouco tempo.” “Quem tem inteligência, calcule o número da besta, porque é número de homem: este número é 666.” Corta a leitura de imagens perturbadoras com a chama do isqueiro. Luciano acende o cigarro e contempla o “mapa” em sua mesa dos possíveis caminhos do crime: crescente de uma necessária pesquisa... O que se acredita e o que se calcula para alcançar os motivos de uma loucura: nunca são o suficiente, porém é a sugestão que surge dos cânones em referência para as mentes insanas construírem suas ações... Uma contagem regressiva de números que justificam o fim dos tempos: para aqueles que crêem no final do sofrimento; em comportamento que pouco revela a procura de todos por fé: em quê eles querem acreditar?... A Bíblia Sagrada está presente na mesa de Luciano; é material de pesquisa. O laudo das autópsias de Patrícia e Inez estão expondo suas diferenças e semelhanças aos olhos do policial: querendo entender as vitimações da irrealidade para localizar os criminosos, reais: A imprensa já batiza de Headhunter (caça-cabeça) para montar o espetáculo vendável do bizarro presente em Salvador: a novidade da miséria alheia; porém há mais que o circo de aberrações... Há os preliminares relatórios psiquiátricos: o que tentam revelar são os pequenos sinais, rastros, deixados nas marcas de uma profunda e temente violência, cheia de um metódico propósito... O comportamento obsessivo de um criminoso só se torna válido e útil quando se capta no seu padrão algo que antecipe o seu


próximo movimento; Luciano sabia ser isso uma faca de dois gumes (muito bem); porém caso o perfil da terceira vítima seguisse o padrão das outras duas, Luciano sabia que poderia de certo modo prever como seria a seguinte: jovem, bonita e começando uma vida/carreira... O problema é que existem milhares de garotas nesse estágio descritivo, e aparentemente não havia nenhuma outra distinção visível... É o propósito que mais preocupa e assusta o sério delegado... Novamente a pergunta do porquê de tais obscuras atitudes do interior humano: se pouco compreendia dele mesmo, do que fez, sabe ter feito, e não sabe se fará de novo; como poder confiar no que é dito de um grupo inteiro que age assim... Ou mesmo como qualquer um age nesse mundo louco... Também sobre sua mesa estão a coleção de outros oito relatórios de “homicídios”: o mais recente, requisitado por ele, tinha chegado ali nesse dia. Não é a sua real alçada, mas desde o primeiro suicídio aos pés do Cristo da Barra seu interesse tinha que ser isto e revisto naquele local: sabia da razão porque aqueles pobres infelizes (sua conclusão) tinham escolhido tal local para terminar com suas vidas: tornara-se o símbolo rígido dessa era de turbulenta insanidade em Salvador... O corpo de Ilena, o modo como fora encontrada, e as conseqüências... do arpeio... Tudo que ele conhece muito bem... Mas também não sabe porque o passado tinha de voltar constantemente para lembrar-lhe que viver e morrer... Sabe e não sabe... Compreende e não compreende.. Está sob controle, mas não tem controle de nada. Traga o fim de mais um cigarro e o enterra no cinzeiro, sem ainda ter nenhuma resposta... Apensas, talvez, as perguntas certas: “Datas, detalhes, escolhas... Não podem tocar a terra...” Oscar entra no gabinete desviando a atenção de Luciano; uma pasta está em suas mãos... - E então... Já temos uma identificação positiva? - Sim. - O detetive anda até a beira da mesa e deposita a pasta parda no meio daquela confusa bagunça organizada; seus olhos captam a Bíblia que está sobre a mesa; uma versão não muito grande, como as antigas; está aberta no Apocalipse. E então volta a olhar o delegado... que abre a pasta... e observa.. - Nome: Caroline Medeiros. Idade: 23. - E o resto.. “Caroline... Caroline.. Carol... Viver é morrer!”


Enegrecido

À margem de um mundo de discorre a falsa normalidade de todos os dias iguais a todos os dias: mortais criaturas presas à fé de que um Deus benevolente virá e os salvará de si mesmos.. E a malvada inconsciência desses que se guiam pela própria densa escuridão dentro de si mesmos: enegrecidos pelo tempo envolto na anti-crença, na anti-benevolência, no sucumbir ao diário dissimular diante de um mundo que não os conhece, mas o teme por serem diferentes; e também não os conhecem porque eles são porque eles são seus vizinhos, colegas de trabalho, e pegam os mesmos transportes coletivos: é cada olhar envolto de mistério; uma sedução advinda do desconhecido... que não mais valoriza a vida, pois não são cada um: todos são um só, são um propósito, são a crueldade sem rostos... seres pacientes que acreditam e aguardam, numa só alma maligna, que o mal maior prevalecerá, será vivo, e os terá como o seu mistério no inferno da Terra. Num prédio de fachada verde, com seis andares, no bairro da Barra; a luz da sala do apartamento no último andar pisca incansavelmente É o tom de uma lâmpada fluorescente que ilumina e desilumina o cômodo... Não se vê ninguém no apartamento; apenas a luz piscando incessantemente... Mas não há ninguém comum para notar isso... Noutro apartamento a cerca de dois quilômetros de distância, ainda no bairro da Barra; também no último andar, mas de um prédio com 10 andares; negros e frios olhos assistem a repetida atividade luminosa do primeiro apartamento: é um aviso que este e muitos outros indivíduos pertencentes à mesma alma conhecem tão bem quanto seus próprios interiores cheios da mais pura e limpa crueldade... Desumanos sem consciência diriam as almas mais simplórias que convivem os mesmos elementos na inocência de suas virtudes e morais do acidente; mas toda ela, a alma, todos eles, constituintes da alma, tem a plena consciência do que são, do que estão fazendo, do que querem, do que acreditam e do que escolheram para dedicarem suas vidas. O sinal luminoso renitente é um aviso que será alcançado por todos. A alma é formada por homens. Homens brancos, bem sucedidos social e financeiramente, nenhum passa dos trinta anos e nenhum tem menos de 24. São criaturas sem alma própria, que se fizeram o que são por suas frias crenças no absurdo da decadência do mundo em que vivem. Todos têm origem semelhante, desenvolvimento também semelhante, numa conjunta caminhada pelos passos que os fizeram escolher em algum momento entre a loucura, o fanatismo e a total falta de sentido em suas existências... este caminho. Visto em todos os dias: o ícones ascendente da sociedade dominante e dominadora, formadora de opiniões e consumidora dos melhores e mais caros produtos; sorrisos e eloqüência pré-fabricados, conhecidos e desconhecidos presentes na normalidade, as partes da alma... que seguem o sinal. A alma segue para o lugar que fora marcado desde onde terminara a cerimônia anterior. São os carros importados; carros do ano; luxuosos e espaçosos; com ar condicionado; cada um com somente um motorista; que cortam a noite escura da cidade do Salvador... Convergem dos bairros nobres, e ignoram suas outras vidas. Vestem seus verdadeiros rostos gelados para caminharem em direção dos seus verdadeiros presentes... É tudo uma coisa só, uma teia, que cobre a bela cidade somente com uma intenção: matar a esperança!... Os rostos da alma não a tem... Não mais... Nunca teve.


Chegam num velho hangar particular; cujo dono não mais usa para guardar seus aviões: ele está lá... É afastado, próximo aos limites da cidade. Os carros estacionam ao redor. A coisa mais próxima é a sede do clube de pára-quedismo, que está temporariamente fechado, e fica a quase três quilômetros. O que há muito em volta é o cheiro do mato, e da morte, com a alma próxima do seu mais novo deleite... Uma escuridão dos homens que amedronta a própria escuridão da noite, e fazem as estrelas não quererem aparecer... A alma está presente, e completa. Todos penetram no hangar. A grande porta é fechada. Todos os carros foram devidamente trancados e nenhum telefone celular está presente. Apenas a alma que são todos, muitos deles. Há escuridão fora, e dentro somente uma pequena fonte de luz: uma pequena fonte de esperança que logo se extinguirá. É 23 horas e 13 minutos de uma terça-feira.

&

Seu corpo é pequeno. Os olhos da alma observam com mórbido brilho a expressão de pavor da jovem no centro. Sua completa nudez já a enfraquece: despida diante de quase quatro dezenas de homens sem expressão, com a frieza do apetite insaciável iluminado seus rostos gelados; são semi-sorrisos torpes, ansiosos pelo tipo de crueldade que sabem que vão cometer... com prazer...e com propósito. Ela está deitada numa espécie de mesa, mas com a parte onde estão estiradas suas pernas inclinada para baixo. Não pode escorregar porque está presa: suas pernas macias e de um branco pálido estão presas em extremidades opostas da largura da mesa, deixando-as separadas, abertas; e seus braços estão estendidos para cima, cruzados na altura do pulso, amarrados e puxados para cima e para trás, com a outra extremidade dessa corda estando atada a uma forte viga de concreto. A viga está a cerca de cinco metros da mesa. Não faz parte da construção original do hangar; somente está presente para a cerimônia... Lá está ela, sob o olhar dos abutres que formam a alma: olhos que ardem frios a espera do início... Não se agitam: não conversam; somente respiram o cruel caminho que escolheram, e a observam com os olhos da morte. O tempo escorre lento, em expectação... tanto para ela quanto para a alma. “Eu me chamo Adriana. Se há realmente um Deus, espero que ouça estes meus pensamentos... Olho para um lado e para o outro, e sinto incontrolável o meu pavor quando enxergo cada um destes olhos dementes, fixos no meu corpo, no meu rosto e no meu interior... Não posso gritar porque estou amordaçada, e creio que não muito adiantaria se pudesse... Como pessoas podem se conceber realizar tal coisa: qual a razão?... Não posso me perguntar isso agora: algo tão profundo do comportamento humano coletivo... Não farei terapia para os meus carrascos!... Saí ontem à noite do consultório do Dr. Marcelo, o psiquiatra que está ajudando em minha pesquisa de mestrado em psicologia: queria saber e falar sobre psicose urbanas... E que ironia, estou no extremo extremo de um... Algo se torna evidente na final clareza de meu medo ainda intocado: não sairei daqui Ilena... E mais provavelmente, sairei morta... No ataque não vi rostos; somente sombras na noite: vozes abafadas e lacônicas que só expressão o necessário para se fazer cumprir a tarefa... Fui


presa e amarrada tão rápido que não pude lutar: foram três homens; fortes, grandes e implacáveis. Nunca gostei de me deixar sentir frágil por ser mulher: o orgulho por ter sucesso sozinha; uma mestrando do último ano, com apenas cinco anos; sempre achei superar obstáculos: meu tamanho e aparência frágil, e uma inteligência e perseverança sem tamanho. Estava protegida do mundo, não me deixei ser tocada pela sensibilidade flácida da vida para ter uma vida intelectual completa... Mas ainda assim eles vieram e me trouxeram para cá, não sei onde; sempre acordada, assistindo eles assistirem o meu medo... Nunca eles saibam que eu penso... O que eles forem fazer farão com um objeto, um símbolo do que seja que eles procuram; mas em mim só tenho a perguntar sem resposta... Se você, Deus, existe... Onde está, quando não me resta mais nenhuma esperança?... Só me resta não saber...” Da escuridão de um dos cantos vazios do hangar surge uma nova figura, fora do padrão dos constituintes da alma. Em meio ao silêncio e à agonia; desvelado das sombras, revela-se um manto negro que parece deslizar-se sozinho em direção ao centro: há um rosto que não se vê sob as sombras do capuz; é um sacerdote do medo presente nos olhos da vítima; a representação do caos ritualístico; da sobrevida do horror, na claridade feliz da cidade salvador: o enegrecido que cobre a vontade de viver e arranca o grito dos bravos... por nunca revelar totalmente o seu rosto: é a imagem do pesadelo enegrecido da alma. Ele pára ao centro; perto dela; sob os olhos de todos; e chupando o pavor dos poros e pupilas da vítima. - São todos os bem vindos da morte secreta que logo o revelará. A medida da escolha dos nossos destinos repousando em mais um corpo da cerimônia... A beleza que dá esperança à vida... E a consciência que dá esperança à existência... Domemos nossos ódios para a revelação final. Tirem do rosto da criança mais uma peça para a libertação do nosso chefe executivo: o senhor das trevas que abomina a esperança. - A prece termina e o sacerdote da escuridão recua para o seu interior; a voz suave de um homem bem educado, mais um dos daqueles que nunca se reconhecem como sendo o tal... parte da alma. Ao redor a alma começa a se movimentar. A pouca luz que existe diminui mais ainda e se concentra sobre a presa. Ela sente ao seu redor as criaturas se aproximarem; mesmo sem poder vê-las com clareza, sente seus frios rostos gelados a rasgarem na alma... antecipando o que devem fazer. Um corpo começa a ser envolto pela luz; está logo a sua frente. O rosto ainda não surge, somente o brilho dos olhos; ele está nu; seu membro está ereto. Caminha mais na direção da mesa: transforma medo e antecipação em raiva... Ela sabe o que terá de suportar; mas ainda não é tudo. - “Venha logo, desgraçado!... Faça o que...”- O pensamento é interrompido. A postura de seus predadores sempre deixou claro esta brutal intenção; a exposição do seu corpo, a posição em fora colocada e o estado do homem a sua frente... Mas nunca pensara na morte dessa sua expressão: numa eterna dúvida de esperança dentro do enegrecido... O calor de muitos homens ao seu redor, transpirando o prazer pelo horror... Ela reconhece o rosto a sua frente que se mostra a luz: - “Dr. Marcelo...” - Seus olhos muitos abertos não acreditam no que vêm. O horror sobrepõe a tolerância e a razão. Ela começa a se debater. Há muito mais nela para ser violado do que os próprios carrascos imaginam poder. A retina finalmente se umedece. A visão finalmente embaça. As lágrimas da morte da esperança escorrem para um rosto que aprende a ter fé agora, no mesmo momento em que vê que nenhuma fé a irá ajudar...


- “Deus... Não!!!” - Da escuridão ao redor uma mão surge violenta e desfere um soco; seu rosto balança para o lado oposto encontrando a dura madeira do local onde descansa. (Pow! Bam!) Outros punhos então surgem, desferindo golpes por todo corpo. E uma dessas mãos lhe arranca a mordaça: todos querem ouvir seus gritos... A alma quer possuí-la por completo. As pancadas se sucedem, com mais violência e mais empenho. As manchas de sangue começam a surgir. Os sons de sua dor ecoam pelos ouvidos da alma. E em cima dela, num instante, está o que era um seu tutor. - Não... Por favor... - Seu último clamor, entre lágrimas, pancadas e dor. Mas aquela parte da alma já a penetra com violência; fazendo, sem perceber, que sangue também flua dali... - “Sou virgem... Sou virgem...” - Mas o mal na alma já se fizera conhecer: o sexo com extrema dor e crueldade, para alguém que nunca o conheceu... Preferível morrer a viver com tal memória... E assim ela escolhe...Enegrecido... Sem esperança. Mais e mais violência naquele hangar. São todos. Toda a alma. Com o tempo correndo para trás. - AAAAHHH!!! - Desaparecendo na noite. Enegrecido: a alma vence.


Véspera mortal

A solidão é uma amiga cruel, mas é a mais fiel companheira do policial que nunca pode confiar em ninguém além de si mesmo. Normalmente um policial é parte de uma corporação que se ajuda, unida, para o pior que há no mundo para ser posto de volta no esgoto da sociedade quando a descarga de alguém jorra para o lado errado, o lado de fora, e a sujeira aparece os jornais: todos eles se juntam para limpar a porcaria alheia, e muitas vezes, pois acabam fazendo parte da merda... Mas tendo uns aos outros... Luciano não confia em ninguém; muitas vezes nem nele mesmo... O instinto do passado assombra o diadia de seu presente lhe dando nenhuma escolha senão ser o que ninguém mais é: ninguém para todos, e um só para ele próprio. Sente-se só estando em casa à noite; não tem coragem de procurar nenhuma maior amizade ou envolvimento: não pode confiar, não tem escolha, a escolha já é feita... Desde Carol não se envolve com nenhuma mulher por um período maior que duas semanas: mulheres sem futuro, com ou sem ele; seres humanos com corpos para serem satisfeitos, como o dele próprio... porém na maioria das vezes não pergunta nem os seus sobrenomes... Não quer saber; não quer conhecer; não pode confiar; não tem escolha. O que lhe ocupa é o trabalho. Nesse último mês foram as três... O apartamento de Luciano é a sombra vazia do que ele tem em sua vida; poucos móveis, poucas coisas... Na madrugada que anda lentamente ele assiste a si mesmo, sentado numa velha poltrona no meio da sala; além da luz translúcida do abajur, somente a luz da rua que entre pela janela ilumina a casa. Um homem que tem eterna insônia; consciência eternamente perturbada; passa a maior parte das noites no gabinete de delegado... Porém algumas vezes vai para casa. Anda e pensa muito, mergulhando na escuridão; bebe em algumas ocasiões, e apaga bêbado no sofá, mas isso não tem sido muito... Acende mais um cigarro nessa noite. Paira sem camisa pela sala. A fumaça às vezes sobe até o teto e se desfaz num suave tapete transparente; a casa tem o clima de seu dono. O cinzeiro está cheio. Madrugada longa demais para se suportar... Na mesa de centro estão papéis. O que ocupa a mente do policial Luciano é a sensação de estar vivendo uma lenta e arrastada antecipação. O homem Luciano sabe que está vivendo esta expectativa: sua parte que já esteve do outro lado conhece quando uma noite chama “a alma” para cometer atrocidades... A carne pede e tem saudades; e longe dele, o policial sobe, que o momento está chegando... Foram 14 dias de patrícia para Inez; e 13 dias de Inez para Caroline... Seu palpite é que seja uma degressão, uma contagem regressiva; provavelmente guardando uma outra razão numérica por trás, mas que não importa o momento... No momento o que é importante é que a madrugada que avança penetra no 12º dia desde que o corpo da Caroline foi encontrado... E tanto o homem, quanto o policial Luciano sabem que o outro lado está agindo, neste momento... Nas vísceras da quarta vítima. Nos relatórios do detetive Oscar sobre a mesa, as palavras carregam as lembranças de Luciano quando sob o comando do delegado Adroaldo, um mentor: os passos de uma investigação; um reflexo melhor e mais duro do que ele era... Muito mais frio, sem dúvida, o detetive Oscar não se envolve... é apenas policial... “Patrícia saíra às 7 horas da manhã naquele dia. Seu caminho levava a uma primeira parada numa academia de ginástica, ainda no seu bairro. Quarenta e cinco minutos depois saía de lá; após modelar mais ainda o belo corpo... como fazia todos os dias úteis da


semana. Deixa o nobre bairro onde morava, dirigindo seu carro, e segue para o bairro nobre onde trabalhava: na clínica do pai... Lá chega por volta das 8 hs e 25 min. Chefiava uma espécie de departamento de nutrição e medicina preventiva: posição criada por ela, e para ela, dentro da clínica do pai... Era uma bela jovem que acreditava que podia educar a saúde de todos... Provavelmente sorriu, se alimentou, se aborreceu, sonhou um pouco mais e passou todo aquele último dia como apenas mais um... Às seis e trinta da tarde Patrícia informou na recepção que já estava indo para casa... E nunca mais foi vista viva, e inteira. Seu carro não deixou a vaga onde estava estacionado desde de manhã, num estacionamento pago não muito distante da clínica. Perto de oito horas da noite, o pai de patrícia, dono da clínica, andou até o mesmo estacionamento; já próximo do seu carro, o telefone celular em sua mão tocou: era a sua esposa... Perguntava se Patrícia estava vindo com ele para casa. Casualmente ele disse que não... Então olhou algumas vagas depois, também de maneira casual, e viu que o carro da filha continuava lá no mesmo local... nunca mais tocado desde a manhã... Fora quando o medo começou; e não mais deixou de mostrar sua presença para aquela família.” Imaginando: houve um evidente conhecimento prévio e estudado dos hábitos da vítima; o que sustentava no começo a teoria inicial de seqüestro A zona em que fora apanhada não era movimentada, mas não de todo deserta. O elemento da captura teria agido na caminhada de Patrícia da clínica até o estacionamento: são menos de 600 metros. Provavelmente agindo num carro grande (van ou besta), a abordagem poderia ou não ter sido testemunhada... Porém não se é descartada a possibilidade de que alguém conhecido a tenha persuadido de forma a não haver nenhuma forma de coerção física visível... Mas tudo isso eram apenas teorias... Luciano acende mais um cigarro e volta a sentar na poltrona.. Eram histórias de ficção baseadas em hipóteses e possibilidades; mas não havia um caminho claro a ser seguido. Os “headhunters” estavam agindo de uma forma totalmente insuspeita: com calma e discrição... Não havia nenhum tipo de ansiedade ou desejo ardente que os fizessem agir de forma conturbada: não era como o arpeio que surgia do interior e materializava as agressividades... Eles têm um propósito. Escolhem as vítimas com muito cuidado, observam seus movimentos dia após dia... E então atacam. Alguns pontos de vigilância foram montados em locais ditos de possível atuação dos criminosos: análises psicossociais do perfil das vítimas, e dos fantasmas que as pegaram, haviam determinado alguns padrões de comportamento na escolha das vítimas: a palavra seria ascendência... Mas Luciano pensava que seria muito mais sorte, muita sorte, se algo realmente acontecesse nos locais onde os especialistas diziam ser possível... A dificuldade era deter um frio propósito, o qual se desconhece... Luciano se levanta novamente. Já começando a amanhecer... Sente com mórbida certeza que uma vítima já existe. A pedido de sua investigação, todos os desaparecidos de pessoas que se encaixavam com o perfil das vítimas seriam a ele notificados: nos últimos três dias foram registrados três... Os locais supostos para os desaparecimentos foram checados; e também as circunstâncias... Com variações leves, os três serviam para preencher essa tal lacuna... Esperando... Com olhos firmes na passagem da escuridão: o mundo ao seu redor não se tornava claro, com o acendedor do dia. Os desaparecimentos de Inez e Caroline seguiam a mesma linha. Um o quê das dúvidas não esclarecidas dentro de si mesmo, para as questões não esclarecidas dentro de si mesmo, para os quais continuam a viver em suas vidas. Pensa que os assassinos parecem ter mais sentido em suas vidas do que ele próprio, e é uma forma


deprimente de se pensar no começo de um novo dia... A análise da corda que amarrava os braços de Caroline ao seu tronco revelou que era realmente linha de pesca: um tipo bastante comum mas o fato de ter sido usada, provavelmente, de uma maneira improvisada: para não permitir que nenhuma parte do corpo tocasse o chão... Era um fator que revelava que talvez... um dos assassinos pesque... O que não é grande coisa se pensar quantas pessoas nessa cidade devem praticar a pesca... Porém, tê-la a disposição, provavelmente dentro do carro, revelava um comportamento de alguém que e pratica pesca sempre: o lazer constante de um homem “de bem”... As marcas de aprisionamento das vítimas demonstravam que fora um outro tipo de corda... E são mais as informações do delegado povoando o pensamento... E ele pára e pensa em si mesmo: são as coisas que não vê, mas imagina, que mais o assustam... O rosto das garotas que foram decapitadas; suas expressões vivas até o último instante; e o pouco sentido que faz a ciência dos seus pensamentos policiais: “Como elas foram escolhidas?” “Quem escolheu?” “Paciência! Por que?” “Não parece ter sido a vida a coisa mais importante que eles queriam tirar delas... O que, então?” - “Acho-me cansado... E pensando demais...”- Luciano volta a sentar na poltrona. Apaga o último cigarro no cinzeiro. Coloca o papel do laudo pericial da corda de nylon sobre a mesa, junto com tantos outros papéis... As foros dos rostos esperançosos de três jovens repousam junto das fotos de seus corpos decapitados: numa mediana composição do horror de várias noites sem dormir do delegado Luciano... Adormece. Seu corpo se exauriu; sua mente quer descansar... Mas o terror nunca dorme... Da madrugada à luz de uma véspera mortal..


Um

À noite o rosto do ser humano se torna diferente. Quando está sozinho na presença da escuridão; muito vê de si mesmo; e é o que pode haver de perigo nos outros seres humanos... São os dias desses dias em que o ser humano vive. Há medo e angústia em sua expressão. As sombras se tornam monstros: a lembrança que surge é de um tempo frágil da infância, quando tudo em redor parecia ser tão estranho... como agora... A madrugada tende a ser fria. A noite cortou lenta o corpo do homem que espera sozinho a luz do dia para salvar-lhe de mais um inferno astral de escuridão na cidade grande e cruel dessa Salvador. Ele veste roupas simples. O olhar triste, sóbrio e cansado lhe condena os pensamentos... Por qualquer razão está ali: esperou um ônibus que nunca passou; não sabe o caminho para onde que ir; não que ir para ligar algum; está completamente; esqueceu quem é e foi esquecido por todos; nunca realmente existiu, mas naquela noite apareceu de pé embaixo de um abrigo para pedestres num ponto de ônibus do Vale de Nazaré, início da Avenida Bonocô, mais um ponto da cidade, da cruel Salvador desses dias... Está abraçado consigo mesmo para espantar o leve frio da madrugada: as roupas simples e a deserta solidão da avenida vazia intensifica o frio... Nessa noite, talvez, o ser humano teria pensado que gostaria muito de um abraço; que o calor de outra pessoa seria a coisa mais valiosa de toda a sua existência: algo de inconcebível, ao pensar-se em abraçar-se com outro ser humano... Completamente desconhecido... Talvez já tivesse andado muito naquela noite e por isso resolveu parar naquele abrigo para descansar enquanto o dia surge e o calor do sol logo retorne, trazendo novamente o brilho e a alegria de viver nessa cidade, e nesse planeta; outros rostos olhariam para ele, e ele olharia para outros rostos... e não mais a escuridão os travestiria de medo, sem razão e com sentido, pois seus rostos teriam faces de seres humanos e não sombras de monstros... Apenas um ser humano. Desde muito antes já se podia ouvir o som do carro se aproximando; o silêncio da alta madrugada permitia isso. Ele veio, foi tomando sua forma, enquanto sua aproximação era constante. Não era um barulho, era um ruído. A cor escura transmutava entre o azul e o preto. Sua velocidade não passava dos oitenta quilômetros por hora na pista da avenida completamente vazia: madrugada calma de meio de semana... É um tipo de van. Sua velocidade diminui. Está a uns 50 metros do outro lado da pista, onde há um abrigo de ônibus, e ode está um ser humano de pé encolhido junto à pilastra de sustentação da mesma construção pública, imóvel, quase invisível. A van estaciona do outro lado da pista da avenida. Debaixo de uma das grandes árvores que ainda existem ao longo do Vale de Nazaré e parte da Avenida Bonocô. Uma árvore de caule grosso, raízes poderosas que arrebentam o limite do chão e muitos galhos também grossos e fortes; folhas verdes e algum fruto... O carro está a pouco mais de trinta metros de distância do homem... Algo do seu interior o faz prestar muita atenção ao palco que se constrói: talvez por não ter mais nada o que olhar; talvez porque seja um sinal de que a noite já está terminando e o medo da escuridão vai finalmente dar lugar à esperança do dia; ou talvez não seja nada de bom... O ser humano se esquiva da possível visão de quem quer que esteja na van. Permanece atrás da pilastra, consumido por ela, e com os olhos presos os acontecimentos...


As duas portas do lado direito do carro se abrem. Dando para a calçada e para a árvore. Um homem surge na extremidade. Olha os arredores por longos segundos. Não vê ninguém... Sua forma humana é apenas uma sombra. Voltando para o lado oculto do veículo, alguns sons são produzidos e quatro manchas negras surgem carregando algo na direção da árvore... O objeto não passa de um metro e meio; não parece ser muito pesado; porém os homens que o carregam são devidamente fortes. Está enrolado em alguma coisa, o objeto. Eles chegam o pé da árvore. Três deles ficam em volta do objeto, fazendo algo; enquanto o quarto sobre habilmente na árvore. No carro algo se move. Há um quinto elemento dentro do veículo. Mesmo em meio à escuridão pode-se distinguir alguém sentado no banco do motorista: era o que vigiava... Voltando aos três: põem-se de pé e lançam algo para o outro na árvore. Esse, faz movimentos trepado a um dos galhos da grande árvore. O objeto está aos pés dos três elementos no chão... Então, o sujeito na árvore começa a puxar o objeto. Vai se formando finalmente o encenamento da final compreensão daquela noite de um só homem sozinho naquela noite.. Pés, em seguida as pernas, depois o tronco, logo após os braços que se estendiam para baixo... e... e não havia uma cabeça. O corpo decapitado fora completamente hasteada no ar... até encontrar os pés com o galho onde o quarto homem estava esperando para prendê-lo à árvore. O objeto era um ser humano. Era o corpo de um ser humano; como a testemunha do outro lado da rua... Estava nu, o corpo; mas não consegue identificar se é um homem ou mulher, até que ao vento fazer balançar... Toma a frente a imagem do terror noturno de Salvador: o corpo pequeno de uma mulher. Seus dedos se agarram à pilastra do brigo. O frio é tão intenso quanto o pavor que lhe recobre a pele. O homem olha intensamente para o pequeno corpo que balança inerte e sente suas vísceras saltarem de espanto: o que havia de um temor do desconhecido, atravessada toda aquela noite sozinho na estrada de um mundo inóspito, se tornou o horror cru de outros seres humanos... que mataram, e arrancaram de si a fé de qualquer coisa... O corpo continua lá. O quarto homem começa a descer da árvore, enquanto os outros três recolhem os seus vestígios; parecem se corromper de nenhuma tensão enquanto içavam o corpo, ou enquanto ensaiam suas partidas: numa parte final de uma peça recém representada... onde o homem oculto do outro lado da rua apenas entrou por engano no teatro do horror, e pegou o final do drama ... sem entender nada... apenas apavorado com o tanto que o ser humano pode alcançar para causar dor a outro... Pois são pessoas que partem em seu carro caro de transporte: uma van preta importada, placa: ABI 1997. E foram pessoas que mataram aquela mulher lá pendurada do outro lado da rua, numa árvore, de cabeça para baixo, sem cabeça, chegando no fim de uma noite de terror sem mais existir: também uma pessoa; um ser uma no como ele... A van se vai. Mesmo na tomada da distância o homem permanece grudado à pilastra: há um frio tão grande em seu corpo, que se sente quase petrificado, observando o corpo balançar... flutuando ao vento como um pedaço de carne branco, inerte... Pensa na expressão que aquela pessoa teria quando fora decapitada; o horror dela se torna seu horror: desmontada toda esperança que ainda resta no simplório... Sem saber o que fazer com sua vida após assistir aqueles atos de demônios... Sem a clareza da razão pela qual a vida lhe pôs ali, naquele momento: nenhuma, provavelmente... Mas alguma, por ele próprio, com certeza... Precisava sumir dali. &


“Só o que vejo são pessoas mortas. Pessoas mortas que giram ao meu redor... e eu as matei a todas. O sangue ressecado que marca os buracos de balas em seus peitos e em seus crânios escrevem os nomes de suas infelizes identidades... Aquelas sem cabeça fazem brotar de suas decapitações rostos sorridentes de pessoas que já conheci; exageradamente desproporcionais aos seus corpos originais... Dizem meu nome porque me conhecem. Suportam a normalidade de suas vidas, felizes, até que eu os matei... Só o que tenho vontade de fazer é matá-las de novo, para assim se calarem. Vejo sobre o corpo decapitado de Patrícia a cabeça quase gigante de Ilena: ela olha para mim, dizendo não; enquanto o braço do corpo aponta para o meu lado... Está de pé ao meu lado um jovem que me lembro reconhecer: é Carlos, irmão de Ilena. Ele olha para mim sorridente e faz um gesto com a cabeça apontando para o centro; eu olho. Vejo no corpo de Inez a cabeça de Frida: está desfigurada... da maneira que a deixei naquela noite. E logo ao seu lado está o rosto de Carol; a minha Carol: seus olhos estão tristes... Eu também a matei... Ela é ela própria, mas a consumição é a pior... Pessoas retalhadas passam; mais mulheres decapitadas andam nuas ao meu redor... Mas eu só tenho Carol para olhar... Todas as pessoas que vejo estão mortas. ‘Você fez um bom trabalho!’ - Diz Carlos ainda ao meu lado. Eu vejo ele novamente... Só há pessoas mortas em todo lugar.” O telefone toca na sala da casa de Luciano um e duas vezes. Ele acorda de seu sono perturbador com o espanto no olhar de muitos sonhos como estes... Muitos outros, e muitos os mesmos, que o fazem despertar com tanta dor nas entranhas, que novamente prefere não continuar a dormir; sempre na vigília de si mesmo... Deve ter dormido apenas umas três horas até este momento em que desperta com o toque do telefone: o susto já passou. E se levanta, do jeito como se encostou na poltrona, para atender ao insistente chamado... Sua mente já deduz o que deve ser a mensagem que vem ao presente, para compor mais um pedaço de sua tragédia: a vida desta cidade... já muito sem a alegria de antes... e por sua causa até o telefone; no seu sonho, povoando a realidade: é sempre o único personagem a ainda estar vivo... Porém agora, ele sabe... Atende ao telefone... há mais uma vítima... Só o que vê são pessoas mortas.

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Não existe mais nenhum momento para o qual não haja uma mancha de sangue na cidade de Salvador o futuro do provedor de tantas coisas, as quais se teme por se repetirem... com mais e mais freqüência. A dor, o horror, o prazer da similaridade com o dia anterior na página policial dos grandes jornais: “Mulher encontrada morta dentro de uma lata de lixo num bairro da periferia de Salvador.” “Dezoito adolescentes são chacinados em favela do Rio.” “Policial morto por traficantes.” “Cinco bandidos morrem em tiroteio com a polícia.” (Executados.) “Padre estupra fiel depois se mata de culpa.” “Loteria da morte nas penitenciárias.” “Headhunters ainda a solta...”


Ronaldo toca no ombro de Oscar. Os olhos do detetive se desviam da mórbida atenção para as notícias do jornal e se dirigem inexpressivos para o rosto do colega... O lugar é a sombra daquela árvore no Vale de Nazaré. O carro está parado em frente à bela e frondosa árvore; no acostamento da avenida; bem próximo ao cordão de isolamento da polícia. Detetive Oscar está encostado no carro, lendo o jornal... Ronaldo é um homem de meia idade que ainda se assusta quando vê o corpo de uma bela moça pendurado de cabeça para baixo, e sem cabeça, bem no meio da rua, nua, e à vista de todos os transeuntes: gostaria ele, com todo respeito que acha impor com sua cabeleira grisalha, de fazer o mesmo com sua esposa, e ao mesmo tempo levar uma daquelas garotas para o escuro, e arrebentar-lhe mais ainda as vergonhas já tão dilaceradas: é o monstro que cada um tem de carregar com a ironia da profissão que conseguiu arranjar... O detetive Ronaldo faz apenas o que lhe mandam, e se pudesse apenas interrogaria os bandidos, sem nunca ter de deixar a delegacia... onde não seria, como é, tentado a expor a ridícula inutilidade de sua vida: um masturbador compulsivo, que tem de suportar um colega como Oscar (que é mais jovem)... - Notícias do chefe? - Dobrando o jornal. - Falou para você seguir com as investigações! - Ele não vem ver o local? - Acho que não... Disse que iria ver um lance pessoal. - Lance pessoal?!... O sacana não tem ninguém... - Oscar pensa na intensa introspecção do delegado Luciano; na sua capacidade de dedução; no seu empenho de pesquisa; na sua quase psicótico dedicação ao trabalho... Era um assistente quando Luciano resolveu o caso do Fernando Vainarde. Bastante diferentes de seu antecessor, delegado Adroaldo, agora Deputado Estadual, Luciano assumiu a homicídios com empenho, e com uma cega, e também anormal, vontade de pegar os assassinos desses crimes estranhos... Sem dúvida algo de curioso ocorria no comportamento do seu delegado... - É ... E você é muito íntimo dele, não é? - Ronaldo despertou a criatura para sua própria desgraça... - Vá se foder, Ronald... Pelo menos o IML recolheu o presunto logo. Só vi uns dois fotógrafos... - Por minha causa... Fui eu quem estava no plantão. - Deixe de ser filho da puta, Ronaldo... Você só dá plantão para não ter que encarar aquela coisa em sua casa. - O rosto de Ronaldo se contorce entre o desanimo da verdade e a ofensa também da verdade... Certa vez sua esposa “invadira” a delegacia alegando que o marido não aparecia em casa há mais de dois dias; acontecimento este, ainda na gestão do delegado Adroaldo: a mulher assombrava tanto pelo cacarejo quanto pela feiura, e o pobre do detetive Ronaldo teve de suportar a humilhação calado... pedindo uma confirmação do delegado Adroaldo de sua real presença nos dois referidos dias como de plantão... e não farra. No final a verdadeira vítima foi um ladrão miserável, que caiu nas mãos de Ronaldo naquele mesmo dia: saindo carregado do “interrogatório”... O qual ninguém filmou. Pelo menos eu tenho uma coisa... E você que... - Não diga não; nem ouse... Você faz o mesmo, tendo uma mulher em casa... E deve ser até mais... - Esquece!... (frustração) Você já sabe quem é a vítima?


- Só vou poder confirmar depois da identificação das digitais... Mas se as desaparecidas baterem realmente com estes doidos... Deve ser uma tal de Adriana não se o quê. - Como pode saber? - Pelo tamanho, otário... Era a única baixinha... E quanto a ligação? - Nada... Pensei que o sujeito fosse ligar de novo. - Ele ainda vai nos procurar... É a primeira testemunha que temos. - Mas ele só disse que viu um corpo... - Às quatro da madrugada, Ronald... Acorda... O sujeito deve tá morrendo de medo... Ele deve ter visto o corpo da garota ser içado lá par cima... - Oscar aponta o galho da árvore onde o corpo estava. O cenário do fruto agora entra de volta no carro, e Ronaldo entra de volta na viatura onde veio desde o Complexo... Ambos partem. Somente alguns policiais militares parecem no local... onde o sangue jorrou, onde muito do que é escuro no interior humano se tornou claro... nos olhos de um homem: o ser humano... Oscar viaja... Apontam-lhe nas próprias deduções as coisas dessa violência que lhe vem: mais uma vítima que consome a imaginação e apaga-se em nada na mente dos simplórios que ainda acreditam na inocência do homem para as ações contra seus semelhantes... Quanto mais ser humano vê o outro sofrer, melhor para ele que tem um sofrimento menor; risível ao comparado à miséria alheia.. tão visada e divulgada quanto a mentira da felicidade do dia-dia. Segundo o que seriam a confirmação das descrições das garotas desaparecidas, dentro do perfil, essa seria mais uma cuja a jovem e promissora existência tinha sido cortada bruscamente nos pedaços da inclemente vitória da intolerância: sobre a prosperidade do outro... O extremo era ter de notar que as peças do quebra-cabeça da violência humana só se encaixavam na base do martelo: nunca o crime considerado isolado, quando não se revelava como tal, se revelava completado em sua plenitude e realização; pois o único com a capacidade de enxergá-lo dessa maneira era o próprio criminoso, quando consciente de seu mórbido propósito... A introspecção de Luciano diante da obscura situação tinha esse intento; algo que para Oscar se transformava em mais um tipo de anti-loucura: uma tentativa de ser o monstro para poder então pegálo... No caso real, em Luciano, as motivações do aprofundamento era um buraco muito mais profundo, o qual Oscar não teria acesso em consciência... Porém o método se tornava correto, se a imaginasse ser um só elemento: o que tudo indicava era que uma absurda coletividade tinha decidido por dar sentido à existência através dessas tais atrocidades: o mundo, então, das manchetes de jornal o impressionava mais inda... No pseudo-heroismo dos bandidos sendo mortos em nomes da segurança do cidadão; o certo e errado se tornavam obsoletos pois no fundo do seu coração não dava a mínima para as vítimas... Oscar nunca vomitou ao ver um corpo; muito diferente de Ronaldo, que quando presenciou o hasteamento do corpo da lª vítima, Patrícia, caiu de quatro num canto qualquer e pôs todo seu café-da-manhã para fora... Dirige em direção ao Complexo. Mais tarde teria de verificar o laudo pericial preliminar do corpo da vítima; provavelmente com a confirmação da vítima como sendo a tal da Adriana... Mesma coisa: saiu de manhã para o trabalho, local onde prosperava em algo muito promissor; no final do dia deixou o tal local de trabalho... e nunca mais foi vista... O que realmente provocava o delírio no detetive Oscar era a investigação, o caso conseguir ver no final toda a obra de arte da violência humana estampada em fotos preto-e-


brancas do vermelho sangue que foi a resolução do crime... Sua admiração por Luciano atingia seu ponto máximo nessa descrita situação: depois de ter acabado com o Fernando Vainarde, quando no seu relatório constam todos os detalhes, nuances e deduções; os suspeitos, as vítimas, o modo operandi; a arma, as dilacerações, o estupro necrofílico... todo cenário típico do seu novo dia... Porém Oscar está preocupado com Luciano: seu delegado parecia estar fora do mundo; era aquele cego empenho em encontrar o propósito nas atrocidades... as palavras, a leitura, os artifícios da teoria o comportamento violento. Ele parece querer entender mais do que qualquer um; além mesmo da real intenção que seria pegá-los; entender as tais razões do que um dia Oscar ouvira falar como sendo... psico-patologia da criminalidade; psicopatia sociológica; e outras coisas que nada mais são do que a tentativa normatizante de querer normatizar o que não é normal... e não tem razão. Ronaldo disse que Luciano tinha ido resolver problemas pessoais; e Oscar sabe, como todos na força que conhecem o episódio Fernando Vainarde, que o último sinal de vida particular do delegado Luciano tinha sido justamente a última vítima do assassino: a tal da Carolina... Porém para ele não ter ido no local onde a moça fora encontrada, deveria haver alguma outra forte razão... Nem mesmo o fato de ter havido um telefonema anônimo, o qual estava sujeito a se repetir, o havia levado a se interessar. Eram saltos muito grandes no que surgia na mente Luciano para Oscar conseguir perceber: sua arte ainda era a atividade... A introspecção o deixava com dor de cabeça... Chega ao Complexo. Estaciona o carro. Sai, acender um cigarro. Ajeita a arma na cintura... Imagina-se arrebentando a cabeça dos safados que vêm pendurando as garotas: seu maior prazer seria pegar os caras sem nenhum medo de ser o que é... Todos com um fantasma na consciência, desejando algo que não pode ter; Oscar vê pessoas vivas que gostaria de matar para ver o caso resolvido... A sombra do interior do prédio e engloba, com a fumaça fluindo por suas narinas: um homem cheio de dúvidas e agitação na mente. Chega ao gabinete de Luciano. Está vazio. Paira, a sala vazia, numa das muitas interrogações: todo aquele material; logo chegaria mais um... A figura de Oscar parada na entrada... Um som corta o seu pensamento: um fax está chegando... (ATENÇÃO)

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É o campus da Universidade Católica de Salvador: cenário cultural de muitas entre muitas coisas para o delegado Luciano que agora aqui está... Foi na faculdade de Direito onde se formou, e agora, por isso, é delegado; mas a visita não é por saudades do lugar... pois há outras recordações por aqui que não são tão construtivas... Anda por pátios e corredores, onde quase todos o reconhecem... por diversas razões: um presente em seu nome, de um lugar que só fez para sua vida o mal para o bem, e o bem para o pior... Nesta manhã resolveu vir aqui para visitar um “amigo”. Estão sentados num dos bancos do pátio principal. Professores que passam cumprimentam o homem de terno, e se prendem à surpresa por verem-no falar com um garoto. O policial não se prende à polícia que teria de fazer no meio jurídico: são poucas as amizades que mantém; e nesse meio... menos ainda... Grande parte dos profissionais que


foram seus professores aqui, hoje são as pessoas com que tem de lidar no dia-dia... E se lamenta muito às vezes por isso, pois vê que, como sempre, o pior é resolvido na rua; longe das leis; fazendo das mesmas uma grande fantasia do normal... Ele próprio é evidência... da fantasia. ... Ainda não entendo porque você escolheu direito... Depois de tudo que viu... - Foi justamente por tudo isso... que vi... - O irmão de Ilena Fernandes, Carlos está no primeiro ano do curso. Luciano sempre manteve contato com o rapaz; na estreita manutenção da sanidade, culpa e tentativa de benevolência; algo que sua consciência escolheu logo depois de ver a gratidão nos olhos do rapaz... por uma grande mentira... Nesse dia Luciano sentiu a necessidade de ver a única pessoa que realmente permanecia viva para ele; quase um fã... mesmo que seja tudo irreal. - E como está? - Legal! - E o latim? - Carlos sorriu... - Já estou começando a pegar... - É tudo pompa - Começo a reparar isso. - Ainda quer entrar na promotoria e pegar todos bandidos do mundo? - Já sei... Bastidores... Você já me disse isso antes. - Exato. - Eles conversam... Luciano gostaria de poupar-lhe mais de coisas como a verdade do mundo das leis... Mas nem ele mesmo sabe direito o que isso seria: poucas palavras de verdade ali, e aquele rapaz provavelmente voaria no seu pescoço e arrancaria a pele de seu rosto com os dentes... ter esse “garoto” como “amigos”... Eles continuam a conversar. O corredor vazio o leva para a saída do campus. A visita carrega a ambigüidade das sensações: Carlos e sua admiração; Luciano... o homicida da irmã do garoto... Quanto um insano paradoxo pode ser um seu único vínculo com o sabor do mundo normal: amizade...? Não sabe, o homem policial... Andando pelo corredor, pega um cigarro; lembranças de dias aqui percorrem sua mente... Sentia-se uma sombra deslocada em meio à juventude do lugar; queria apenas concluir o curso e chegar a delegado: só tinha (tem) na vida sua carreira... Mas sua face inexpressiva esteve por muito tempo nos jornais, e a fama pela “falsa” verdade foi uma escolha que não fez, mas uma carga que teve de carregar nesse mundo aqui dentro, protegido, do que ele realmente era (é)... Acende o cigarro. Guarda o isqueiro. Saindo à luz, uma mão em forma de arma o toca nas costas... desavisadamente... - Parado aí, Xerife! - A voz feminina não alcança tanto os ouvidos de Luciano, pois quase antes, entre o depois... sua adrenalina correu quilômetros de veias para por em si a atitude de reflexo. Gira rapidamente; enquanto a mão esquerda agarra a suposta ameaça, a direita pega com agilidade a pistola que carrega na cintura, num coltre, do lado esquerdo... Logo, num rápido relance, ele está segurando firmemente uma mão desarmada, com força; e apontando sua pistola 9mm para o rosto de... - Andréa! - Treme por alguns segundos antes de abaixar a arma, ainda segura a mão da jovem: alta e elegante; de finos cabelos negros; e uma pálida expressão de surpresa...


- Meu Deus... Você devia relaxar um pouco, Luciano... - Respira profundamente o policial; finalmente larga o braço da moça e põe a pistola no seu devido lugar... Pega o cigarro da boca, tragando-o, tenso... - Droga, Andréa... Não brinque desse jeito de novo com alguém que você sabe que anda armado... Sua cabeça podia ser uma mancha vermelha na parede agora. - Sorridente, a moça parece não ter passado por nada além de uma manhã de quarta-feira... normal. - Que nada... Você tem péssima pontaria. - Luciano não contem o sorriso. Desde os tempos de academia de polícia, tudo em que ele apontou... acertou... nas mais diversas situações: sua primeira batida fora um exemplo: fechando o viciado que atirara em Cristiano, seu amigo... E àquela distância, com suas balas de ponta oca, a cabeça da amiga teria realmente desaparecido... Amiga é um termo confuso... Ela o abraça. Meio surpreso, Luciano retribui o abraço. - Como vai você, advogada? - Bem... E você, delegado? - Luciano sorri de novo. Andréa fora sua colega em três disciplinas. Como tinha o curso inteiro ainda por concluir, ela só se formou em semestre depois de Luciano... A intimidade dos dois vinha de algo muito mais simples, que o próprio Luciano não queria lembrar... E muito mais complicado, que a jovem não queria esquecer... mesmo não tendo alterado sua vida por isso... Considerava, ele, Andréa Bernardo: jovem de família de tradição no meio jurídico de Salvador; linda e inteligente; uma coisa além de sua compreensão... Na época, apenas sugeriu que ficasse amigos; afastando-se logo depois... Sentir o corpo dela contra o seu trazia memórias doentias demais para querer se lembrar de novo da sensação... E ela simplesmente compreendeu, mas ainda sente a atração... Quando conversavam, ela o chamava de delegado, e Luciano, conhecendo a tradição familiar e a escolha dela, a chamava de advogada... A ambigüidade de sensações permanecia, mesmo não sendo no mesmo elemento (Carlos... essa Andréa). Pois tudo que Luciano era quando recordava do arpejo... Só, um. - E a velha rocha do seu pai? - O mesmo!... Estou trabalhando com ele. - Meu deus... - Não entendi... - Suas alegrias se degladiavam, pois em certos momentos estão em lados opostos da mesma instituição: a justiça. - Não falemos disso. - Você ainda é o charme em matéria de sair fora dos embates. - Por isso eu não fui para promotoria. - Curioso, Luciano... Seu silêncio às vezes é mais difícil de derrubar que um discurso inteiro. - Pode ser, mas não é isso que conta num tribunal. - Sem dúvida... Mas... - O que você faz aqui? - Andréa se admite ser interrompida por Luciano... Sempre fora da maneira dele: somente o outro é que fala... - Eu vim trazer alguns papéis para papai... Só ficaram prontos agora no meio da manhã, e ele terá de ir ao tribunal logo depois da aula. - Ele está ensinando o que agora? - Criminal... como sempre... - Ela vaga o olhar para o pátio de saída à frente. Conhece os seus sentimentos, e ainda deseja manter aquele momento; Luciano não seria um bom


amigo, se se considerar a presença física nos compromissos, pois nem em sua formatura ele fora... Mas uma grande sinceridade residia, para os desavisados, no seu afastamento: nunca tinha muito tempo perto de ninguém... Um desconhecido para o lado que mais se negava, nele, em querer aparecer... Luciano pensa num fracasso em sua vida: o relacionamento com Carol; a agressividade correndo-lhe nas veias junto com o desejo... Andréa é uma linda mulher a sua frente, com a qual não consegue imaginar nenhuma coisa além de sexo... Porém foi assim que tudo começou; e o fim nunca é esquecido... Os rostos no silêncio: e o medo no interior daquele que sabe ser erroneamente julgado por todos... suportando o pior dos julgamentos: o próprio. Andréa não encontrou mais nada o que falar: - ... Eu ouvi que outra vítima dos headhunters foi encontrada hoje de madrugada. É verdade, advogada... - Ela sente satisfação na naturalidade do “amigo” ao lhe chamar pelo apelido/profissão. Luciano falou sem sentir; ainda pesando em seu julgamento: Andréa também seria uma pessoa morta, e isso o apavorava, pois sentir a imensa felicidade em vê-la como vítima... do mundo como qual convivia. Dá uma tragada no cigarro para forjar a normalidade... - Ainda sem suspeitos? - Não! - E pistas? - Não! - Olhava para ela com tamanha profundidade, dizendo coisas que não queria dizer, que também ela se perdeu nas palavras que dizia... - Quer sair comigo? - O olhar no silêncio permaneceu o mesmo, em os minutos da eternidade... Luciano sentia a vaidade. E a Andréa refletia no que não mais podia consertar: ascendente, dedicada ao trabalho, realmente linda e apaixonante... Que mais um homem poderia querer?... Não posso, advogada... (hesitou) Estou trabalhando tempo integral no caso. - Não era isso... Luciano é aquele prisioneiro do desconhecido dentro dele: o que tem de esconder de todos para que não surja de novo... Sombras despertas por paixões, que transformam a falsa felicidade na verdadeira violência de todos os dias que lhe correm as veias. Para a Andréa era a misteriosa pedra de gelo de sempre... - Bom... Eu tentei... de novo... delegado. - Droga, Andréa... Você não muda... - Os dois riem novamente. Luciano pensa de novo no julgamento dos mortos em seu mundo... E diz... - Vamos ver o que acontece... (pausa) Eu preciso ir... Dê lembranças ao seu pai por mim. - Claro que dou... Ele até falou de você outro dia, quando você apareceu na televisão... - Que lástima... - Ela ri. - Disse que iria te procurar... - Não imagino para quê?... - Nem eu, delegado... - Luciano a beija no e sai andando. Ela: - Largue esse cigarro! - E ele já distante: - Hã... “Há coisas piores com as quais tenho de conviver... advogada.”- Luciano quase sente um suave gosto de felicidade...


Mas hĂĄ mais um corpo para ver; outro corpo morto; outra pessoa morta: e nunca serĂŁo apenas... um.


Colhedor de tristeza

O fax dizia: “Segue informações de série de crimes ocorridos na cidade do Rio de Janeiro, no período entre 1990 e 1992. Descrição: assassinatos com mesmo modos operandi. As vítimas foram encontradas com as gargantas dilaceradas por poderoso instrumento cortante. Total de seis garotas. Idades entre 20 e 25 anos. Nenhuma ligação explícita entre elas, além da idade; e classe social: média. Nomes: Patrícia... Inez... Caroline... Adrina... Débora... Andréa... Não foi encontrado nenhum suspeito. Informação sobre períodos que separaram um crime do outro não foi possível encontrar devido a contradições entre: momento da morte e quando corpo foi encontrado... Em todos os casos. Atenciosamente,...” A coincidência ou relação poderia ser o material para um melhor trabalho do policial, e será, porém o policial Oscar começa a se perguntar o quão longe deveria realmente se ir, quando o que começa aparecer no horizonte é qualquer coisa maior que a compreensão de outro ser humano que não o próprio conceptor daquela tragédia do massacre... Oscar está sentado no velho sofá que fica no gabinete de Luciano. Há aquele conhecido som de muitas pessoas ao redor, e uma cidade inteira em volta, tudo encobrindo um silêncio que sai de sua modesta imaginação: é mais como um zumbido que incomoda quando olha e percebe aquelas informações no papel de fax; e sabe que se lembra daquelas coisas... vagamente: algo do tipo “há muito tempo atrás”, ainda nos seus 20 ou 21 anos, pensava no que faria da vida; entre um emprego e outro, preso à pobre família... ainda não podendo gerar nada do que é a miséria que tem de consumir como um bom policial, que é agora.. Já distante o suficiente da família para querer de vez em quando visitar a todos... Nesse tempo aqueles crimes aconteceram, e do mesmo jeito, de repente, pararam: uma coisa tão longe, na violenta Rio de Janeiro... Agora é a violenta Salvador que faz alvorecer da escuridão de noites invisíveis quatro daqueles seis nomes: não desejando crer, mas já esperando, que os outros dois irão sem dúvida aparecer... O círculo de quem nunca sabe o que é nada além do próprio desejo; impulso; doença... Luciano parecia ter visto isso de uma maneira mais longe, de um outro ponto de vista mais interior, mais envolvido, o qual parecia poder enxergar que a escolha não era por acaso... Mas Oscar ainda não sabe o que era... O detetive olha o relógio. E preguiçosamente dá um bocejo. Levanta-se e põe a mensagem de fax na mesa de Luciano... Dá uma última e curiosa olhada nos nomes de vítimas listados na mesma; fica impressionado ao ponto de um sorriso, por realmente ser verdade uma coisa tão misteriosa, pouco convencional, mórbida e certa...


- Só pode ser o mesmo grupo!... - Pensa, ainda meio descrente... Mas o tal propósito que Luciano tanto falava lhe fugia mais ainda... Tenta se refazer. Acende um cigarro. E ensaia sua saída...Tinha que ir ver o corpo no IML; continuar vivendo no meio dessa loucas constatações das atitudes de gente muito doente... Ao seu ver... Sua expressão se torna cínica sobre ele próprio; como normalmente é a respeito de tudo: - “Nunca vou ser delegado... Droga...” - E sai da sala sorrindo, sem lamentar por nada. No estacionamento do Complexo de Delegacias se encontravam três carros parados e um estava chegando à vaga dos delegados de plantão: Luciano saiu do carro e avistou Oscar na entrada do prédio. Enquanto era observado por este seu detetive; de um dos carros no estacionamento, uma viatura de serviço, desembarcou o detetive Ronaldo, pouco notando as presenças de Luciano e Oscar ali perto... Andou de seu carro e foi até a outro que estava lá estacionado: falava com o sujeito ao volante com alguma desconcentração... quando os dois também olham para Luciano e Oscar que se encontram em frente à entrada do Complexo... Nem Luciano nem Oscar se importam com a presença de Ronaldo e seu amigo no cenário, conversam: - Está indo assistir a autópsia? - Isso mesmo... Chegou um fax do Rio para você. - Você o viu. - Oscar hesitou por um instante. Não sabia até que ponto todo aquele lado obscuro da introspecção de Luciano poderia afetar seu comportamento e confiança nos seus comandos... mas tinha de arriscar... - Sim, eu li. - Luciano estuda o detetive e sabe reconhecer os desvios do raciocínio policial, quando as determinações de tudo que venha a ser aferido acabar por recair num lugar bastante comum: o de pessoas que agem “de tal maneira” com pessoas... e nesse momento a única coisa que resta é a boa fé de colegas policiais; a despeito do que a verdade seja ao se revelar para o homem que conhece a mente psicótica como conhece a própria, que em determinado momento não deixa de ser o ser, principalmente se confirmadas as suspeitas de Luciano... - E o que você achou? - Oscar pensa tragando o cigarro e voltando a olhar o estacionamento, onde Ronaldo e seu conhecido estão juntos começando a se encaminharem para a entrada. Lembra que já vira aquele sujeito antes, provavelmente ali mesmo no Complexo, mas ele não era policial... E imagina como Ronaldo vai aproveitar o delegado Luciano ali na entrada para uma gloriosa puxação de saco... Sorri... - Eu... Eu acho ‘q que a gente tem de pegar esses sacanas logo, antes que as outras duas vítimas virem presunto. - pensamento dedutivo em parte correto; mas ainda se encontrava num patamar bi-dimensional para os padrões de Luciano: Oscar pegou as informações que tinha e as fez fazer sentido junto às novas, quando as novas tinham um sentido independente, único, e muito mais nocivo... - Os nomes bateram, não foi? - Perfeitamente! - Luciano raciocina de forma que penetra na mente do mentor da história: a polícia nunca se estabelece contra o crime, enquanto se mantiver a margem dele... Os melhores policiais são aqueles de comportamento quase criminoso... Todo palco montado nessa fantástica cidade do sol não era apenas algum tipo de fanático culto de propósito sangrento: o arquiteto da história representou seu prólogo no bom e velho Rio de Janeiro, onde o crime vivia até descobrir que terra maravilhosa era a cidade de Salvador e seu “serial killer” Fernando Vainarde... Sim, morreu; foi pego; mas


todo o espetáculo fez da passionalidade uma arte: uma arte muito copiada... Luciano colhe a tristeza que plantou com as sementes do arpejo: e sabe que é a sua função... Fala: - Imagino que você já sabe o nome da vítima dessa manhã, não sabe? - É o que vou confirmar no Nina, também... - Também bate, não é? - É sim, delegado. - E quais são os outros dois nomes? - Ronaldo chega. E o conhecido: um homem de aparência distinta; um terno alinhado; cabelo e modos muito bem tratados ao longo de seus trinta e poucos anos; e uma simpatia no seu rosto que chagava a incomodar os dois policiais acostumados aos maus elementos do dia-dia... Ronaldo o introduz: - Marcos Abrantes, advogado... Detetive Oscar e Delegado Luciano, da homicídios. (os devidos cumprimentos) Marcos e eu fomos colegas de colégio... - O homem observava Luciano com certa, e desconcertante, admiração. Fala: - Eu sempre quis conhecer o senhor, delegado. - É mesmo?? - É sim... Eu também adoraria ter defendido o Fernando Vainarde. - Pois é... Nem todo mundo pode ter o que quer... - Luciano se virava para Oscar... Mas o advogado: - Com certeza, mas alguns conseguem... tudo. - Luciano olha atravessado a expressão do homem; algo como “ainda vamos nos encontrar” saltava pela face e fazia o delegado perder - se naquela pequena construção que lhe ausentava a razão: “Quem é esse cara, afinal”... Se dirige para Oscar: - Assim que terminar, volte com as novas. - Tudo bem... Até... - Oscar se vai, está indo para o IML. No momento em que Luciano se vira, o advogado, conhecido de Ronaldo, está também se despedindo e entrando pela porta do prédio do Complexo... Luciano se volta para Ronaldo: - O que seu amigo veio fazer aqui? - Ver um cliente... Foi o que disse. - Cliente... - É... Eu quero falar com você sobre o telefonema... - Eles entram lentamente, conversando sobre o ser anônimo que ligara na madrugada para avisar do corpo encontrado nessa manhã, a qual já anuncia seu fim com o calor do meio-dia... Luciano ainda conseguia lembrar do seu encontro com a Andréa, naquele campus de universidade: suas vísceras que contavam o tempo para não ter que se preocupar com mais nada, além... do trabalho... Mas não pode... O cinza manchado do prédio circular do Complexo de Delegacias brilha om essa intensa luz do sol, que torra boa parte da população de Salvador nesse horário... A tensão do cenário que se desfaz com a saída dos personagens em seus vagos pensamentos; não podendo antecipar nada além do próximo passo que têm de dar... Detetive Oscar foi para o IML a pé. Não longe do Complexo.

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- A porra já tá ligada! - O doutor Emanuel Pedral se volta para o ajudante ao seu lado. O jovem, meio assustado, olha as cabeças escuras que flutuam atrás da fonte de luz da sala de necropsias; dois especialistas envolvidos no caso e o detetive Oscar estão ali presente... Os dois homens comentam sobre quando quem chefiava aquele trabalho era o velho, bom e educado doutor Manoel Azevedo; aposentado e meio fora da realidade desde que a filha fora estuprada e morta em sua frente; o homem que assumira o cargo tinha também uma grande habilidade na área da patologia criminal... mas nunca a elegância e os modos do velho doutor... A filha era médica. Numa noite, voltando de um jantar juntos... Ele é viúvo; só tinha a filha como parente próximo... Os dois foram bordados quando estavam entrando no carro da moça; eram dois homens... Aparentemente tudo começara como um assalto, mas o impulso surgira no interior violento de um dos elementos, e ele resolveu violentá-la... Após anos tendo de dissecar corpos dilacerados pela loucura humana: inclusive o corpo de Ilena Fernandes; quando mais chocado ficou, e quando começou a pensar na aposentadoria... O velho doutor teve de suportar os gritos de agonia da filha enquanto era penetrada com violência pelo doentio monstro de mais um dia em Salvador... Não satisfeito, no momento do término de sua mórbida violação do corpo da jovem, atirou em seu rosto; e ainda suspendendo as calças vira com prazer o desespero do pai, ao cair de joelhos, ainda sob a mira do seu comparsa, chorando as irônicas lágrimas de quem sempre viu o pior no final de um corredor de horror que começa nas ruas, e termina no necrotério... Nessa “mesa de trabalho”, onde agora trabalha o açougueiro Pedral, como é chamado pelos colegas, que adora seu trabalho e se orgulha do sorriso e do apetite que tem no final de cada “sessão”... O doutor Azevedo nunca mais foi o mesmo após o episódio. Foi também espancado e largado ao relento junto ao corpo da filha... Os bandidos nunca foram pegos... pelo menos por esse crime, pois o velho doutor nunca foi capaz de reconhecê-los... Talvez estejam mortos: um dia predadores, noutro dia presas... - “GRAVAÇÃO”... Estou cortando agora a região pélvica frontal. O estado exteriorizado da genitália da vítima já revelam um grande número de lacerações devido a um grande número de penetrações.. Como nas outras vítimas, se revelará uma quantidade tal de sêmen que se tornará impossível uma identificação positiva do tipo sanguíneo dos inoculadores... Inoculadores... Eu gosto dessa palavra... - Ele faz um corte do umbigo até a vagina do corpo. Algum sangue se faz corrente. Vísceras se expõem. Junto com a abertura da caixa torácica, feita pouco antes, revelando os pulmões ainda avermelhados e o pequeno coração imóvel; e a abertura na parte superior do abdômen , expondo estômago, fígado e intestino;... a jovem sem cabeça, começava a se transformar num composto de pedaços de carne escuro; o vermelho forte do sangue coagulando; com pernas e braços muito brancos... Continua o açougueiro: - Jorge, meu jovem aprendiz... Você tem “inoculado” satisfatoriamente nesses últimos dias?... - O sorriso do homem de meia idade, considerando charmoso com seu cabelo sempre bem arrumado, preto ficando grisalho,, e rosto de muita presença e alguma simpatia... se realizava diante do encabulamento do rapaz... Assistia ao serviço e auxiliava o doutor; passando instrumentos e contando as mudanças com uma prancheta para o trabalho de embalsamamento do corpo após a autópsia: deve achar, o jovem, especialmente desconcertante ver a descontração do Pedral diante do corpo de uma mulher decapitada... Talvez a forma impessoal com que trata os corpos normalmente se torne algo mais


acentuado ainda quando não existe nenhuma expressão “morta” para “observá-lo”... Ele apenas continua o trabalho, ainda rindo da brincadeira que fez com o rapaz... Do lugar lá de cima... Oscar pode ver também o desconforto dos dois homens com as atitudes do doutor Pedral durante o trabalho; ele próprio não se importa... Liga-se em algo curioso a respeito de que expressão a vítima teria em seu último momento: em todos os casos foi constatado que a causa da morte foi a decapitação, e que pelo tonos muscular, estava consciente: seja como for, ela devia ter visto a própria decapitação com a expressão inimaginável do horror, o qual Oscar tenta imaginar agora... Já pode chamá-la pelo nome: Adriana; confirmada... E parte daquela lista... O açougue Pedral apenas fazia o seu trabalho... - ... Epa, Epa... Parem tudo... (atenção de todos)... O hímen da figura não se encontra em estado local comum... Ele foi rompido na primeira penetração... Temos aqui uma heroína: Fodeu a primeira vez mais que uma prostituta na carreira inteira... - E de lá de cima veio a exaltação: - Seu comportamento é lamentável doutor Pedral. Que tipo de lição o seu ajudante poderá ter trabalhando com um indivíduo assim... - Assim como? - O trabalho está parado, e toda a discussão está sendo gravada... - Sua irreverência e falta de respeito não condizem com a posição que ocupa nessa instituição! - Não leva a mal não, mas se eu tenho de lidar com gente morto 16 horas por dia, é melhor que eu mantenha minha falta de respeito, se não os vivos é que vão perder a importância para mim... - Não diga tolices... Seu trabalho tem... - Tem o quê, meu irmão?... Tem um cacete de um mal cheiro para todos, mas eu o adoro... Faço ele muito bem. Não me importa ser chamado de açougueiro... Você acha que meu respeito por essa pobre coitada vai ajudar em alguma coisa: duvido que o que quer que vocês inventem seja mais útil que o que eu faço aqui... Nesse monte de carne! E a discussão permaneceu; antes que a autópsia terminasse... E as conclusões que Oscar já esperava pudesse ser postas novamente no papel: um novo laudo, uma nova perícia, e as mesmas situações... Quem teria realmente ficado louco?: presenciar no seu mundo tudo que acontecera com o doutor Azevedo: a vida que leva o doutor Emanuel Pedral... Criminalistas e Psicólogos que pensam e repensam o crime: muitos homens que se deleitam com a destruição de uma mulher... Não quer se importar, mas como Luciano... também colhe muito da tristeza e horror dessa vida em que vive... O detetive Oscar. Deixa o IML, com o laudo na mão; ainda a pé. Está no meio da tarde e o sol queima o raciocínio desse detetive... Quanto desse tempo pode se passar com a resposta velada por uma violenta ausência: o que seria feito com as cabeças dessas vítimas fugira de seu pensamento por um bom tempo, antes que notasse que as ditas deviam ser guardadas como troféus... Ícones do horror e do medo; a fonte da imaginação levava a se pensar como na margem da decência deve se estar para agir de tal maneira, por isso são chamados de marginais: o estereótipo de pobreza e crime não funcionaria nesse caso... até que o indivíduo ou indivíduos mostrassem o seu comportamento psicótico e obsessivo. Confiava, o Oscar, na imagem do horror nos rostos das vítimas... gravado para sempre na última expressão de olhos aterrorizados com a capacidade humana em ser... cruel.


Terminava de atravessar uma das pistas do Vale dos Barris, indo no sentido IML Complexo, quando ouviu a batida. Voltou os olhos para onde viera o barulho; os pensamentos foram cortados; um cruzamento entre a pista que vinha da saída do NINA e a que dava na Avenida Vasco da Gama. De onde via não parecia sério: dois carros, um motorista em cada carro, danos pequenos... Os guardas de trânsito se ocupariam... Mas um momento se passou e o homem do carro que vinha do Nina deixou seu veículo, e Oscar viu que o sujeito era conhecido: era um dos especialistas em criminologia do Instituto, e que estivera naquele lugar lá em cima, com o detetive, durante a autópsia de Adriana... Oscar pensou: - “Que droga. Estou armado... Tenho pressa. Que droga, mas vou lá.” No cruzamento... O pequeno caos estava instalado. Os dois carros batidos cercados de curiosos. O engarrafamento que ensaiava suas primeiras buzinadas. Três guardas de trânsito presentes: dois, verificavam os dois veículos batidos; e o terceiro tentava coordenar o tráfego em volta do acidente. E os dois motoristas que discutiam: - Você precisa é trocar de óculos. - Não fale o que não sabe, meu senhor. Estou bem ciente de estar no meu direito da pista preferencial... Mas ninguém dessa cidade é suficientemente educado para saber obedecer qualquer Lei. - Eu obedeço a Lei, meu velho... Pago a porra dos meus impostos e dou de comer para minha família... E eu nem terminei de pagar a porcaria do carro ainda... Vem você e faz essa porra... - Contenha seus modos, senhor... Sua agressividade não vai desamassar seu carro, e nem o meu... - Que se foda... A culpa foi sua! - Nada disso... - Enquanto isso os dois policiais estão alheios à discussão, tentando preencher o papel da ocorrência: - Você já fez um desses antes? - Ainda não. - Porra. Que negócio complicado... - Esses dois podiam calar a boca... - Atira neles, otário. - Eu até pensei nisso, mas pode ter alguém filmando. - Os dois riem no meio da confusão. O educado criminalista, mas já perdendo a paciência, diz aos guardas: - Vocês poderiam se apressar com isso. Eu tenho o que fazer. - E o doutor acha que nós não?!... - Tenho certeza que sim: rindo da desgraça alheia... - Acho melhor o senhor ficar calado. - De modo algum... Não existe mais ordem ou respeito para nada nessa cidade... nem transitar pelo tráfego livremente se pode sem uma mula velha vir e atravessar sua carroça em minha frente. - Mula é o cacete... (fala o outro motorista)... E eu dei duro para comprar meu carro. Se você acha carroça é porque teve sua porcaria importada de maneira duvidosa... Não teve de suar por ele. - O que o senhor está sugerindo?? - Eu sugiro que você cale essa porra de boca!


- Ora, seu... - Os policiais intervêm rapidamente na modesta investida do criminalista bem arrumado contra o homem de roupas simples e suadas pela tarde quente de trabalho, o que quer que ele fosse... Oscar está bastante próximo quando pode testemunhar isso: os dois policiais segurando o homem o qual ele conhecia (vagamente) do Nina, criminalista que está ajudando na investigação do caso; e um homem com a agitação e a revolta de um cidadão que se sente insultado e ameaçado... Ele está bem próximo, mas ainda não chegou lá... Lá: - Seu filho da puta arrogante. Que merda é você?!... - Sou alguém muito acima de você, seu porco. - Nesse, esse, momento, o homem se dirigiu para a porta do carona do seu modesto carro; e fora num relance inesperado que uma arma surgiu em suas mãos após emergi do interior do veículo... Seu rápido gesto não fora percebido por nenhum dos guardas; ele apontava para o criminalista, e iria atirar... Meio da tarde de um dia no qual quer coisa poderia ter acontecido a qualquer um; e aquele homem suado pelo seu trabalho, ou simplesmente pelo calor da tarde, possuía uma arma dentro de seu carro: Nunca deveria ter imaginado atirar em ninguém, ou talvez o tenha; comprou uma arma, legal ou ilegalmente, para se defender de marginais na noite ou no dia da Salvador de agora; ou talvez estivesse planejando matar alguém naquela tarde tão quente, e saiu com a arma que sempre manteve em casa; ou a estava levando para limpar; ou talvez só estivesse esperando aquele momento para não ter mais nada em sua consciência além de um monte de vísceras de um desconhecido expostas pela bala de seu revolver... Não se sabe... Mas o detetive Oscar pode ver tudo que iria acontecer... E já estava bastante próximo... Pegou a sua arma. Alguém disse: - Ele está armado! - Os dois policiais se voltam para o homem tardiamente. O criminalista olhava direto para o rosto do homem. O terceiro guarda de trânsito colocava a mão em sua arma e estava para sacá-la, mas sua visão era limitada. O povo todo começou a correr. Carros buzinavam e se desviavam: o terceiro policial quase fora atropelado. Outra batida quase aconteceu... E o tiro se ouviu em meio a já armada confusão no centro do Vale dos Barris... O corpo do homem caiu. Ficou deitado ao lado do carro ainda vivo por alguns minutos, mas o tiro que Oscar deu não deixou possibilidade de sobreviver. Morreu... Detetive Oscar correu na direção do criminalista. Os dois policiais o deixaram e sacaram suas armas, apontando-as na direção de Oscar, que logo se identificou. Ele chega; coloca a arma de volta na cintura; coloca a pasta do laudo sobre o carro importado do criminalista; e fala: - Tudo bem com o senhor? - Obrigado, detetive... Aquele animal teria me matado. - Não duvide disso... - E Oscar sabia que seria a mais pura verdade, em mais um dia louco na Salvador dos seus dias: olha para o corpo do homem; tenta não lamentar, mas o faz um pouco... Mas mais ainda quando se lembra que conseqüências isso terá para o seu trabalho no caso... Nem sabia quem era o homem; teria de relatar tudo, dar explicações; se houvesse família: pior ainda... Sentiu-se um herói durante um longo minuto e meio, mas agora tudo acabou... Acende um cigarro; olha em volta; olha o corpo; vê o criminalista enxugar a testa de suor: quase foi morto; pega a pasta novamente... e pensa: - Que droga!”- Era a colheita de violência de mais um dia.


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Mais cedo, algo, algo mais deveria vir a acontecer com esses poucos trágicos personagens da vida em Salvador... Dentre muitos estes são: o delegado Luciano, o detetive Oscar e o detetive Ronaldo. Este último tomara um bom tempo de Luciano, confiante em uma sua inovadora idéia: algo mais na ação policial de investigação para se poder encontrar os maus elementos... Caminharam juntos pelo corredor circular; ao mesmo tempo ouvindo, e ao mesmo tempo já querendo ceder, pelas medidas de sua tolerância: pouco gostaria de ouvir nesse dia para lhe estragar os pequenos prazeres da manhã, mas nenhum ser humano está livre dos obstáculos de um dia vivo e livre nessa terra sem destino. Ronaldo lhe entregara a transcrição da conversa dele com o anônimo pela manhã, e dizia ele saber onde era aquele local, o telefone público, pelos sons, e pelo onde, onde o corpo fora encontrado de manhã cedo... e algo mais. E Luciano disse: - Vá em frente, Ronaldo... Pode fazer. - “Que pode haver de mal em dar confiança a ele?... Que absurdo.” - E Ronaldo se foi, com sua teoria; no mesmo momento em que Luciano entrara em seu gabinete, tirara o paletó olhando para sua mesa, curioso; e lá estava o fax que Oscar mencionara, aquele o qual estava esperando: os nome... Porém havia uma coisa a mais, que antes não deveria estar... Naquele mesmo dia o detetive o detetive Oscar fora afastado do caso. Sua surpresa teria de ser maior, mas o que era construído a sua volta não mais o surpreendia tanto... Olhava Luciano com algum forçado descaso: não queria ter de explicar algo de tão inexplicável como um dia nas ruas de Salvador desses dias... O inquérito sobre a morte do tal homem o arrastaria por muito tempo entre relatórios e depoimentos... Apenas um incidente do acaso, poderia ser afirmado entre os dois policiais que se olhavam, mas no final da passagem por aquele gabinete, e na entrega de sua arma para a promotoria, como prova, e até o seu desvelamento diante de um tal “incidente” tão pouco oportuno... seria um desfalque num time feito basicamente por um homem só... E Luciano ficaria mais só ainda... - Foi mal, doutor Luciano... - Uma lástima... Oscar... Que porra! - Você ainda tem Ronaldo... Luciano sorri divertidamente... - Não brinque, seu porra... A última foi que ele decidiu carregar um pessoal da Técnica para tirar impressões digitais dos telefones públicos da região: para ver se acha o anônimo da madrugada... - Oscar repete o sorriso que foi de Luciano. - Quem sabe dá certo... No máximo ele encontra umas duzentas pessoas para interrogar. Só! - Saia logo daqui, Oscar... Já que você não vai poder ajudar, não atrapalhe também. - Claro!... Aqui está o laudo. - O nome bateu, não foi? - Foi. - O açougueiro descobriu alguma coisa, além do “normal”? - Na verdade sim... Descobriu que a moça era virgem! - Os dois policiais se olham com estranheza e cumplicidade... No momento em que entrara, Oscar sabia que algo já


estava completamente errado, mudado, desde o último instante em que ali estivera... A notícia do tiroteio e morte no meio do Vale dos Barris já tinha corrido meio mundo; só se passou meia hora; Luciano ficou sabendo ao mesmo tempo que liberava Ronaldo para fazer o tal infeliz serviço, depois de muito ter agüentado as teorias do detetive... Entusiasmara-se com a possibilidade de ir mais fundo; seu pequeno debate com Oscar pela manhã o fizera querer tomar um atitude, uma iniciativa... mesmo que pouco “inteligente”... Luciano deixou-se levar. Seria algo muito mais sério o ar do gabinete impregnado pelo cheiro de nicotina e mofo... Luciano vira o fax deixado por Oscar, e o guardara: já conhecia o valor daquelas coincidências: dois nomes são apenas dois nomes até que uma mente como a tal qual vinha a aparecer pudesse erigir suas lembranças do passado na transformação das fantasias psicóticas do presente: numa escolha que se torna o pesadelo de seis mulheres, seis nomes, seis famílias... Porque seis?... Mas também ainda não era isso: o que Oscar vira nos olhos de Luciano quando entrou meio acanhado no seu pequeno mundo da lei e da bagunça era o mais próximo que aquele rosto frio e inexpressivo podia chegar... do medo. Oscar nunca saberia as razões dessa loucura, mesmo que antes voltasse ao serviço externo... Pelo que viu e fingiu que não viu naqueles olhos escuros, o detetive quase havia esquecido que tinha acabado de matar alguém... Porém, logo que foi visto, ouviu: - Que porra você pensa que é, Oscar... Dirty Harry?! - Não mais havendo outro teor senão os percalços de uma lei humana e contingente, que não entende o ser de sua própria criação e atuação... Oscar se despediu e foi seguir mais um caminho... Mas Luciano... Foi o momento em que o seu interior estava sendo invadido. Por curiosidade em ele mesmo... pois esconde de si mesmo o que mais teme no seu interior: o impulso era um segredo, da grave culpa que carrega por ter feito o que fez; por ser o que é, sem conseguir realmente se reconhecer, sob controle... até que alguém de fora o reconhece, e o chama pelo nome: O bilhete dizia: “Sei o que você é. Deixe-nos terminar nosso trabalho.” Os olhos do delegado se encheram de algo que há muito não mais falava de ressentimento por ter no interior o que faz... A expressão do que realmente era o ser do homem/policial desvirtuado de qualquer coisa aprendida como sendo o certo ou o errado: quando o valor da vida humana não parece interessar tanto quanto o prazer de destruí-la; e ele sentiu prazer... sabe disso com a extrema clareza da dura conseqüência que tem de carregar na consciência... sempre. Luciano se via no pouco espaço físico de seu gabinete, de onde muito ocorrera em seu aprendizado e amadurecimento como policial, fantasmas o rodearam com berros de vingança, rasgando-lhe o peito e as vísceras com a corrosão do aço derretido... apenas pela presença de algumas poucas palavras, sem o seu total significado, talvez: um palpite por seu comportamento tão obsessivo e obstinado... Criou-se a fama; um estranho mundo lá fora o aguarda com a alma do assassino estando presente; e o seu forte interesse o trouxe a isso... A selva nessa cidade que não faz sentido... Luciano é o colhedor da tristeza que recolhe o pior de todos do seu mundo para ver o que há de pior dentro de si. Levanta o pequeno bilhete no ar e acende seu isqueiro por debaixo da folha de papel branco. A chama rapidamente toma conta da frágil folha de celulose; tomando o aspecto negro das cinzas que logo ele deposita dentro do cinzeiro... Aproveita para acender um


cigarro...Observa ambas as fumaças do cigarro e do papel queimando tomando conta da sala... Sua voz no interior, quase um arpejo, reconhece que tem problemas: causas sem solução de propósitos sem sentido... A contradição em sua vida; a morte em cada esquina; o impulso violento que controla os nervos de repente e mais um corpo amanhece trazendo o cheiro da podridão da noite, do homem, do ser humano, para os olhos amedrontados de mais um dia... - “Devo estar realmente perto... Que vida louca que não escolhi... Nem mais sei o que sou... Um policial?...”


O olho do observador

Mais dois dias que se foram. A investigação se encontra no melhor ponto do termo: estagnação. Luciano se recobria de uma inexplicável ausência de interesse no que se tratava do que devia ser feito e aferido... Delegara dois novos detetives a continuarem as investigações: a situação constrangedora que afastaria Oscar do caso, não o afastaria por completo dos procedimentos internos... porém algo continuava a não mudar... Os dois ovos detetives e ele, resolveram pesquisar por garotas chamadas Déboras e pertencentes às características das vítimas: a possibilidade do nome seguinte da lista de algum ser humano doente era o melhor caminho para tentar fugir além dos fúteis procedimentos comuns da investigação... Luciano simplesmente dissera: “vão em frente...” Oscar ficou impressionado, e surpreso. Apenas indicou dois homens... para se fazer o que todos fazem. Enquanto isso Ronaldo estava passando a maior parte do tempo na sede da Polícia Técnica, no Nina. Sua idéia de coletar impressões digitais nos telefones públicos tinha alcançado o fim de sua primeira fase: a coleta... Foram cerca de 35 impressões claras, em quatro telefones, ao todo... Agora seria o trabalho de averiguar as identificações e em seguida, talvez, surgir com algum nome para ser investigado... do possível anônimo que ligou naquela madrugada. E o delegado Luciano... É como o impulso de todo maldito animal que recobre a Terra viva e mata uns aos outros quando o primeiro se sente acuado. Nesses anteriores dois dias Luciano ouvira as vozes acusadoras dos piores elementos de toda sua pouca existência: as vozes de um interior que ainda ressoava a estranhos sons que lhe relembravam a todo momento o que ele era... Seria a sua parte da alma que domina a noite do homem que surgia para lhe dizer que alguém mais sabia de seus crimes, seus pecados de mórbido prazer esquecido pela culpa... por ter... há muito tempo... matado...pessoas. Não são os bandidos, maus elementos, que de vez em quando tem de apagar: isso já é parte de seu trabalho, de sua rotina... Pensou em um desses momentos, desses dias, sentado em seu gabinete, que já faz até algum tempo que não o faz... Porém ainda tinha medo, de si mesmo no primeiro momento; e do eco das palavras no bilhete logo a seguir... O telefone toca, nesse momento, hoje, em seu gabinete, ainda: - Delegado... É uma advogada chamada Andréa Gouveia. - Eu atendo!... Advogada... - Delegado... Como vai... esse belo som de sua voz? - Andréa, você às vezes me surpreende... O que posso fazer por você? - Se lembra que eu disse que papai queria vê-lo?... - Oh, sim... - Pois bem, como você não ligou... ele pediu que eu ligasse e marcasse com você um encontro... - Você vai marcar um encontro comigo, advogada?... - Não se faça de besta, delegado Luciano... Um encontro de vocês dois. - Luciano percebia-se sentindo uma estranha tranqüilidade ao falar com aquela voz amiga do passado ressente: uma boa mistura, como ele poderia dizer... de novidade... com um bom tempo. Pensa o que o doutor Gouveia poderia querer com ele; mas diante das circunstâncias pouco


aprazíveis dentro da própria delegacia... por razão dele próprio, e ele sabendo bem disso... e a razão porque... Não via mal algum... - É só dizer quando e onde. - Muito bem, delegado. Ficou marcado um almoço no dia seguinte.

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No dia seguinte... Luciano apareceu pela manhã no Complexo com o seu melhor terno: uma postura sempre tão desleixada com relação à estética, e a sisuda aparência de quem sempre tem na “mira” o assassino mais cruel de toda Salvador, estava tudo em nome de algo não visto. Como é, uma suave fuga para o outro lado da lei... Ao passar pelo corredor circular, notado por todos, e dizendo “bom dia” a alguns, seu caminhar tinha passos firmes, mas com algo de hesitação... somente percebido por ele: sentia-se meio perdido fora do seu traje para sempre conhecido do policial sério e obstinado... Eram os pensamentos confusos, que queriam ser esquecidos por algum tempo, até que a solução pudesse transparecer... e talvez não...Aproximando-se da entrada de seu gabinete viu um dos detetives (novos) o caso Headhunter sair de dentro do mesmo ambiente; sua expressão, ainda muito séria, atingiu o rosto do outro policial... Também ficou surpreso com o traje do delegado... - ... Boa dia, doutor Luciano... Eu vim procurar o senhor para mostrar o que a gente conseguiu a respeito do nome que Oscar nos deu: Débora... Foram... - O detetive dirigia o papel na direção de Luciano e ao mesmo tempo já revelava o total de seu conteúdo... Luciano logo rejeitou o papel... - ...mais de cem... - Luciano o olhava com aquela estranha mistura entre desinteresse, desprezo e impaciência. Esforçava-se para não se manter no verdadeiro teor do trabalho para realmente se importar com as informações que lhe chegavam... Primeiro sabia que em menos de nove dias outra vítima iria aparecer cheirando à carne morta no amanhecer; e seu nome seria Débora... Não sabe porque e tem de resistir a si mesmo para não continuar perguntando: o propósito, a razão. Porém, segundo, tem absoluta certeza de que alguém ali de dentro o está coagindo, ou querendo coagir... desde o bilhete em sua mesa... Por isso... - Imagino que vocês já tem um brilhante plano para vigiar e proteger todas essas mocinhas antes que os monstros do mal venham e lhes tirem a alegria... e a cabeça. - Não, senhor... Na verdade achávamos que poderia nos ajudar com alguma idéia do que fazer. - O delegado Luciano respira com alguma profundidade dando um meio sorriso impaciente; passa a mão direita pelo rosto de barba bem feita e rugas precoces; olha atentamente o detetive... Distantes sons são ouvidos pelo corredor do Complexo. Diz: - Acho melhor vocês aprenderem a se virar.. Pesquisem mais. - E o delegado entrou em seu gabinete. O detetive se observava meio perdido antes de decidir que deveria apenas seguir a ordem do chefe. Saiu dali andando lentamente... No papel havia uma lista de 174 mulheres entre 23 e 25 anos, residentes em Salvador a maior parte da vida, com registros de boas moradias, carreiras notórias em várias áreas, etc... Porém ainda poderia se considerar


nada se imaginar que o critério para escolha da vítima pelos assassinos pode ser qualquer coisa entre essas todas 174 possibilidades...até mesmo nada. Quando detetive Oscar soube da reação de Luciano sabia que alguma coisa estava faltando... E talvez o delegado soubesse, mas não queria dizer... Por que?... Foram os momentos de desânimo que tomaram cont dos dois novos detetives do caso, antes que Oscar lhes dissesse que o que quer que tivesse de ser feito, teria de ser feito o mais rápido possível... Pois então os dois logo voltaram a pesquisa: a meta era diminuir as probabilidade de 1 em 174, para 1 em 20... no máximo... em, no mínimo, cinco dias. Quase meio-dia desse mais um dia de sol na terra da alegria: Salvador, Bahia... É da tênue semi-escuridão do gabinete do delegado Luciano que surge a ausência de razão pela alegria: Salvador está ao redor daquela pequena sala, mas a sua escuridão noturna, a roupagem das criaturas da noite de toda a doce cidade ilusória, o verdadeiro caos de tempos como agora... está em um: está nele assumir o papel de policial correto e vigilante da lei; como também está nele as dúvidas e contradições de um homicida oculto, que desconhece o seu opositor... Controlar a cidade louca lá parece tão fácil quando é a violência a principal linguagem de todos com quem tem de lidar normalmente; ou mesmo os inocentes...como Fernando Veinarde, cujo o único crime fora ter se apaixonado pela mulher errada... duas vezes... “Pobre miserável... Está melhor morto. “Porém agora teria de lidar com criaturas, literalmente, como ele: jogadores, artifícios de verdade... e eles já possuem um dom mais: o conhecem, e ele não a eles... “Será que não?” Já a hora do almoço se faz, e Luciano tem um compromisso. Veste o paletó, e olha ao redor o horrendo pequeno gabinete, parecendo cada vez pior a medida que mais tem de conviver consigo mesmo... Sem a luz fluorescente fica mais escuro ainda... Vai. Novamente no corredor, sabia Luciano que estava por caminhar em novos lugares além da sua curiosidade, desejos e segredos. Por estranha ironia do seu obscuro interior, após o bilhete, o pensamento de rever a “advogada” Andréa lhe agradava muito mais que o próprio mistério que envolvia o convite do pai... Pelo tom do encontro marcado com o renomado advogado da cidade de Salvador, não sabia se a intermediária iria ou não estar lá... mas sem dúvida gostaria que sim. Andando um pouco mais pelo corredor circular, Luciano é abordado por um entusiasmado detetive Ronaldo, que diz: - Doutor Luciano, o pessoal da técnica conseguiu doze impressões positivas... E já foram todas identificadas. - Que bom, Ronaldo... Continue com o bom trabalho. - Luciano tentava seguir em frente, mas ainda era retido por Ronaldo... - São só doze: vou verificar cada um... e descobrir a nossa testemunha. - Tenho certeza, Ronaldo... Mas agora eu preciso ir. - Sabia, com absoluta certeza, que Ronaldo deveria ter tomado conhecimento do que ocorrera da outra pesquisa... dos nomes... Parecendo sempre existir uma competição entre Ronaldo e Oscar; porém isso não mais interessava Luciano, que via apenas o agir dos dois, mas sem demonstrar o possível, e coerente, interesse nos acontecimentos e descobertas... Há a preocupação a mais... que surgia de outro lugar. - Ah... Tudo bem... - E mesmo Ronaldo consegue perceber o comportamento alienado do seu delegado: imaginaria ser as complicadas políticas internas que corroem a instituição


para que trabalha, mas sabe que Luciano não é o tipo de se submeter... se assemelhando muito mais ser uma insistente dúvida interna. Luciano se vai; deixando Ronaldo e seus doze nomes para investigar: teve muita sorte. Faz-se saber, Luciano, que um fato mais lhe vem corroendo os pensamentos já tão atormentados por ele próprio na voz do acusador: é o que faz dele um investigador, e que conhece a beleza e o horror das coincidências da vida... Sai ao sol de meio dia da cidade de Salvador: causticante como o próprio inferno em que parece se tornar a cada dia para o policial; coloca os óculos escuros e acende um cigarro... O último nome da lista de vítimas do assassino do Rio de Janeiro: Andréa. Mais do que nunca, Luciano se sente sendo observado.

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O restaurante de luxo; totalmente acarpetado. Que ironia um lugar onde sempre pode cair sujeira no chão ostentar o luxo com algo tão inútil quanto carpete... vinho... Não mencionando a poeira que deve acumular e se tornar bastante anti-higiênico comer nesse lugar... com mais ácaros que o normal. Luciano pisava nesse chão com seus modestos mocacins de policial experimentando a sensação de ter atravessado os portões de outro mundo: talvez até o inferno... pois a cor predominante no local é o vinho. Um ambiente meio escuro; projetado para ser aconchegante e reservado, mas para o pouco avisado sobre estas coisas do mundo dos ricos, Luciano... era apenas um local não muito convidativo às refeições, e sim à politicagens muito bem arquitetadas. Falando com o maitre, e dizendo seu nome e com quem deveria se encontrar, conseguira avistar rostos conhecidos dos jornais e das telas de TV: deputados, vereadores, secretários do estado e do Município, jornalistas, artistas, talvez um contraventista , porém ele não quis ter certeza... e um dos advogados mais conhecidos da cidade, com quem estava por se encontrar, “A pedra”... doutor Gouveia. - Doutor Gouveia... Foi uma honra o seu convite... - O homem se levanta para cumprimentá-lo. Gordo, rosado, muito bem vestido, a caminho de se tornar totalmente calvo: um símbolo de “bem sucedido”; pouco mais baixo que Luciano... O advogado (famoso) pai de Andréa era o ser da simpatia... - Deixe esse negócio de doutor... Você só não é meu genro porque não quer. Luciano se senta. De frente para o seu interlocutor. A colocação o deixara infinitamente deslocado, mas tinha conhecimento daquela verdade: só não imaginava que o pai de Andréa fazia tanto gosto daquele “relacionamento”... Delegado e advogada?... Não parece exatamente o par perfeito aos olhos do delegado; já a advogada, e, aparentemente seu pai... não pareciam se importar... Porém Luciano logo se tranqüilizou: além de conhecer A pedra dos meios jurídicos, também fora aluno dele durante um ano, na faculdade; e sabia do espírito de poucas medidas do doutor... quando fora do tribunal... Vira-o atuar numa audiência pouco antes de assumir o cargo de delegado; e como todos, ficara impressionado com o poder do homem, da Pedra, de carregar um mundo de mentiras para se tornar a verdade mais absoluta: e era, pois o réu fora absolvido no final do julgamento... inocente...


mesmo que não fosse. Um homem admirável... Esse a sua frente. Que já comia sua salada... antes dele chegar. Continuam... - Você me super-estima, Gouveia. - Você é que se sub-estima seu otário... Ela tem andado com um sujeito antipático... Um escritor, que acha que tem uma carreira e que a está começando. O debiloide nem ata nem desata; vive lá em casa... e não tem dinheiro nem para pagar um motel decente para minha Déa... - Por falar nela... Ela vem ou não? - Mais tarde, meu caro delegado Luciano... preciso falar com você a sós antes. - Eu estou até curioso sobre isso, Gouveia... A razão do encontro... - O garçom aparece e ambos fazem seus pedidos. - Vou falar claro com você, meu amigo... O pessoal tem um grupo que faz umas reuniões de vez em quando... e gostaríamos que você pertencesse ao grupo... - Que pessoal, Gouveia? - O advogado termina sua salada e limpa os lábios, enquanto Luciano toma lentamente a água que estava na mesa. - Bom, somos um grupo de homens muito bem relacionados, com atuação em várias áreas de grande importância da sociedade... - Como assim? - Advogados, juizes, médicos, políticos, jornalistas, professores, universitários, economistas, publicitários, empresários... Assim, esse tipo... - Não entendo... O que vocês fazem afinal? - É como um clube de elite, Luciano... Pessoas de renome na sociedade que gostam de ter um lugar onde possam ser elas mesmas sem o julgamento dos outros... Se você me desculpa o termo... Inferiores ao nosso nível. - À quanto tempo isso existe? - Tem uns sete anos, eu acho... Quase oito, na verdade. - E como é que eu nunca ouvi falar disso? - Se liga, meu amigo... Não é um Country Club... Nós pesquisamos e prospectamos nossos associados. - Que loucura... Eu nunca imaginei algo assim... - Não é loucura as pessoas querem encontrar um grupo ao qual se ajustem. De modo algum. - Luciano pensou um pouco nas palavras do advogado. - É... Talvez... Mas mesmo assim...não é o tipo de “clube” que se vê todo dia. - E nem nós queremos que seja assim. - Tudo bem... Mas por que eu? - Nesse momento o garçom retorna com o carrinho com os pratos escolhidos pelos dois em cima. E começa a servir. - Eu já te respondo... - E faz um gesto com a mão. Coloca o guardanapo no colo enquanto o garçom continua a preparar o seu prato. Luciano faz o mesmo enquanto aguarda para ser também servido... Normalmente não teria cerimônia em “invadir”o carrinho e preparar seu próprio prato de refeição, mas toda aquela conversa sobre elite, e todo pacientemente pelo serviço do garçom... Mais tarde o maitre viria para perguntar se estavam sendo bem servidos e tal... Luciano conhecia os procedimentos desses locais caros e luxuosos, mas na verdade os detestava... principalmente porque a comida nunca era das melhores: tudo era só ostentação para seus “inocentes” olhos policiais... Pensa como Andréa não se encaixa de modo algum nesse cenário: sempre simples e alegre no tempo da


faculdade, ia a todos os lugares e com todo mundo sem a menor aparente restrição... Na verdade era ele, Luciano, quem nunca ia em lugar algum: além de estudar e trabalhar... não se permitia relacionar-se com ninguém, e os eventos sociais apenas o faziam querer se afastar mais... lembra de Carol e seus amigos de faculdade: todos sempre unidos... exceto pelo pobre Fernando... A lembrança do enterro de Carol invade a sua mente: nunca houve nem um dia mais infeliz em sua vida antes... e desde então os dias só tem se revezado entre o mesmo e o pior... Sua expressão está completamente alterada e distante: uma profunda e fria angústia parece engolir seus olhos, e sua visão vai mais longe que qualquer um conseguiria imaginar... O garçom termina de pôr seu prato... - Luciano... - Ele retorna. O garçom se vai. - Sim... Então...? - Bom, respondendo à sua pergunta... Nós o consideramos... honesto. - Como assim... honesto??? - É honesto... Você é o único policial conhecido pelo público como um herói... e não um espancador de “inocentes”, ou chacinador de famílias de menores delinqüentes, ou exterminador de bandidos... Além do mais: temos conhecimento que você nunca aceitou suborno, e nem nunca fez nenhuma concessão a bandido algum... - Certo... É verdade; mas isso não faz de mim nenhuma elite... - Agora você está se sub-estimando ao extremo meu caro. Você não é ingênuo, nem burro... Espero que não... Você não vê?... Hoje em dia as pessoas que mais se diferenciam são as honestas. São até taxadas de desjustadas, de ineficazes para a sociedade de consumo e competitiva... Pessoas como você são raras: ícones... Admirado por ser o que mais ninguém que ser: honesto... - Suas palavras são realmente entusiasmadas, Gouveia... Mas ainda não explicam o convite... Se você tivesse me convidado para ser candidato a alguma porra, eu até entendia esses argumentos sobre honestidade... Mas para entrar nesse clube que você falou, você não precisa de alguém com boa imagem pública. - Você é muito esperto, delegado Luciano... Não admira estar na posição em que está com tão “pouca” idade. - Obrigado pelo... pouca idade. - Em parte o que você diz é verdade, mas um outro lado você parece que ainda não captou... - Que lado? - Somos um grupo de pessoas influentes, mas que quer privacidade... Lembra dessa parte?... Você deve saber muito bem o que é carregar as responsabilidades por tantos atos...influentes... Não sabe? - É, sei sim... Sei muito... - Façamos assim: eu vou te levar a uma de nossas reuniões abertas... As do grupo mesmo são fechadas... E ai você me diz o que acha... Tudo bem? - O doutor Gouveia desvia os olhos por um instante do rosto de Luciano. Este percebe a repentina mudança de atenção. Responde... - Tudo bem... Não tenho nada a perder... - E se volta para a entrada do restaurante, para onde Gouveia havia olhado, e vê o que ele tinha visto: Andréa estava entrando, e já estava


vindo a caminho dos dois. Estava linda. Sorria, e olhava para Luciano da maneira mais apaixonada possível: de entusiasmo estampado numa face perfeita... - É isso mesmo, meu amigo... Não terá mesmo... - A pedra percebe a hipnose do policial pela sua filha, e a felicidade nos olhos dela... Estava realmente linda e radiante: uma maravilha de juventude e esperança. Vê que não tem mais função nesse tão magnífico cenário que ele próprio montou; e afinal sua função, ele já cumpriu... - Bom, Luciano... Eu tenho que ir... Déa lhe fará companhia pelo resto do almoço... E se o almoço se estender pela tarde... (o doutor coloca a mão no bolso e a retira em seguida)... aqui estão as chaves do meu apart: é todo seu... - Luciano o olha com desconfiança e ironia. O velho Gouveia dá um leve e subentendido sorriso de cumplicidade com os pensamentos que pairam nas cabeças de ambos... Luciano sabe que a Pedra é viúvo há algum tempo, e imagina quantas “mocinhas” aquele velho gordo escroto e simpático já não deve ter traçado naquele mesmo quarto de apart-hotel, o qual a chave lhe era oferecida... na intenção da própria e adorável filha do dono da mesma chave: Andréa, que acaba de chegar... - Rapazes... - E Luciano mais uma vez pensa: - “O que tenho mais a perder?...” - Pensamento que se repetirá... A pedra vai embora logo após os cumprimentos, e ficam só os dois.

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Aquela tarde se tornaria a última melhor lembrança na vida desse Luciano... Muita coisa além do seu controle viera e viria pela frente e bem antes dele encontrar as respostas que não queria mais perguntar, porque invariavelmente tratavam dele próprio: todas as questões. Viver teria sido o mosáico das tristezas e decepções de um ser humano que por força das próprias escolhas... era um policial. Após aquele almoço realmente foram para o apart-hotel onde o velho e esperto doutor Gouveia tinha uma confortável suíte... Andréa, em parte, conhecia a natureza e os planos do pai: por isso não foi difícil concordarem, pai e filha, delegado e advogada, em estarem mais tarde lá, naquele local... fazemos amor... Pobre do escritor que não tomara uma decisão... Andréa estava nos braços de Luciano agora. Como há muito tempo ele não sentia, o sexo tão fantasticamente permeado de velhos sentimentos e sensações, e mesclado com as novas descobertas, se tornava o ritmo que seu coração não encontrava desde quendo estivera com Carol pela última vez... O corpo de Andréa se encontrava com o dele de uma maneira que já imaginava impossível conceber dentro de uma relação sexual: flutuavam os dois um sobre o outro com vontades e desejos que não precisavam ser expressos com palavras... como nunca foram... ações e “barulhos” que se verbalizados se tornam sem o menor sentido para os amantes... Coisas que com um beijo na boca tão prolongado quanto a angústia de uma lágrima perdida na chuva, interminável calor... se tornam tão claras quanto o aroma que exala do fogo que queima no interior da Terra: óleo de subsolo e suor da pele; e lava quente que jorra trazendo o enxofre que vem do inferno... o cheiro de esperma...


...Ações constantes e contínuas que lembram o medo da morte, com intenso louvor a mesma: desprezando-a em nome do prazer que os corpos geram... E Andréa e Luciano se tornam um só. Durou mais a tarde do que qualquer um os dois poderia imaginar. Talvez Luciano já previsse o que viria pela frente. Talvez, também, Andréa quisesse se dispor a conquistar Luciano, com quem sempre se imaginou estar como está... Estavam enlaçados um ao outro no centro da cama; quando a noite escura começava a invadir o ambiente... Do lado de fora, muito distante, soavam os sons paranóicos da hora do rush em Salvador... O fim de mais um dia, o qual Luciano, nem Andréa, queriam terminar.

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Uma noite realmente escura que parece separar o mal do bem. Não há lua. Ela também se esconde no breu total que engole toda Salvador dos loucos e vadios: criaturas revestidas de sombras que atravessam o caminho dos mortais que se aventuram na cidade desses dias... O bairro se chama Pituba. Há horas da madrugada tarde trás figuras que antes não existiam senão quando após foram descritas pelo personagem que as vê... Parte integrante da escuridão... De uma avenida que se prolonga além da visão uma rua se faz após uma curva. O asfalto escuro reflete umidamente as luzes tristes de postes solitários; longe uns dos outros; poucos ainda funcionam: sobreviventes de outras noites escuras como esta... Ao longe sons se fazem presentes; vidros que se quebram; medos irreconhecíveis que assombram como o véu negro que recobre o rosto da morte... Gritos agudos mais longe; gritos estridentes mais perto; familiar presença de um louco que procura a sua verdadeira e real identidade com a realidade... Esse ser, esse personagem, caminha por esta noite pela primeira vez, e se sente em casa. Seus olhos captam o horror do desconhecido e seu faro pressente a revelação: o “o que” dessa vida sem sentido... Perdeu-se um pouco do que o considerado o normal, mas se lembra do que tinha em mente quando para cá veio. Não parece ser novidade ter em mente uma vida que se desfaz em sua frente: alguém nasce, alguém morre... qual a diferença?... é apenas quem mata e fica vivo é que sabe... O cheiro da morte em seu ar que respira... O perfume doce de um sangue novo, que não é o seu: viu e reviu esse sangue jorrar em sua imaginação; planejou sem medo e sem perdão... Por tudo aquilo que resta nos pulmões de um último ar da sanidade daquele a quem ele observa numa fantasia, o sonho que vê na realidade... para esperar o momento certo de se vingar contra si mesmo por não ter feito isso antes... com qualquer um, qualquer um outro... Mas que será este. Outro grito na noite, na rua, em qualquer lugar: o personagem vira a esquina da avenida no bairro da Pituba... e espera... Seus olhos conseguem captar a displicente de sua presa. Já vem estudando seus hábitos há dias... desde o momento que a onipotência dessa mesma vítima tomou a forma de um tão grande desprezo pelas qualidades do predador que lhe aguarda... Consegue se lembrar com a perfeição daquele sujeito que agora deixa o pequeno prédio, o mesmo local onde o ocorrido aconteceu, e caminha sem pressa na direção do seu carro: tudo é novo e bem arrumado: o carro, o terno, a pasta de trabalho, os sapatos lustrados, o penteado de


executivo... Um perfeito espécime da qualidade total de Salvador do novo mundo... Recorda do sujeito olhando-o de cima para baixo, superior, estudando-o, querendo julgar toda sua capacidade através de um mínimo olhar. Também fizera algumas perguntas sem sentido; situações hipotéticas devotadas ao consumo exarcebado. Era uma sala branca; aquele sujeito de pé, com toda sua impecabilidade no vestir e no agir, aguardando para toma-lo pelos erros do nervosismo, da espera cansativa que foi aguardar pelo momento da entrevista... E aquele olhar arrogante, presunçoso, tornando e fazendo-se sentir, o personagem, num incapaz... com a revolta pela intolerância dos novos tempos correndo-lhe as veias... e fazendo-o desde aquele momento planejar os atos de agora... Observa... A história de um predador como este não importa, quando o ato que dará sentido a sua vida se torna a apresentação de toda justificativa necessária para a total falta de sentido que fora tudo mais antes: se tornará a notícia, o centro, a criatura da noite que salta aos olhos inocentes do dia... então não precisa realmente de um passado, pois a razão já se deu o suficiente, durante a vida toda, não agindo como vai agir sobre esse outro ser... E é nos pensamentos finais, que escoam tudo mais para o final sem sentido; quando o homem se aproxima de seu automóvel, talvez pensando em chegar em casa e não pensar em mais nada, pois o dia de trabalho foi longo (são 2 da madrugada) e extenuante; ou talvez pensando com desprezo na pessoa que ele humilhou hoje; talvez nada além do fato de ir embora... É que o personagem quer atacar e o salto do coração se torna o ato violento que vem de seus punhos e vibram a vingança: esqueceu de tudo...

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O cheiro do amor que fora feito pelo sonolento casal recobre a luxuosa suite com um amanhecer suave, cheio das despedidas que logo virão para usurpar-lhe do templo do prazer e trazer Luciano tocando insistente, como que sabendo que o casal não quer realmente acordar e ser o que realmente são: seres humanos, diferentes, não um dentro do outro se tornando um só... apenas criaturas das circunstâncias e ilusões da vida, desse mundo e dessa cidade... São cinco da manhã (mais ou menos). E Salvador morre mais um pouco, de homicídio... E o delegado de homicídios precisa ver o defunto! - Que porra de beep filho da puta... Devia ter desligado... (Luciano se levanta, e sentado na cama pega o telefone da mesinha, e disca.)... Que horas é essa?... (Pega o relógio.)... Mas que merda é essa?... Alô... É Luciano... O que foi?... - Esta nu sob os olhos semi-cerrados de Andréa: a gostosa exaustão de sexo bom da tarde e da noite passada... Sente-se tão bem que tem medo, a advogada: nunca pensou que pudesse ser assim; como se fosse o carinho da última vez de um condenado; cada segundo daquela maravilhosa atenção de um homem por ela: a mulher que vibra às lembranças, e sente uma mistura de medo e êxtase no interior de suas entranhas; com o coração disparado; e o sexo parecendo sonhar em querer mais... Luciano desliga o telefone, fica de pé e se veste rapidamente... sob o olhar doce e ardente de Andréa, que pergunta... ainda semi-descoberta do lençol, sem pudor de se mostrar ao amante... nunca... ama-o. - O que foi?... Por que você está indo?... - E para Luciano, que temia despertar algo distante; sentia-se perto de algo muito melhor, que parecia ter esquecido... Olhava e via


algo semelhante ao sentido de uma vida velada para ele, e que, naqueles momentos, mostrou cruelmente sua face... para depois nunca mais reaparecer. O policial, novamente um policial, se curva para a mulher que lhe presenteava a visão com uma nudez perfeita, se ajoelha na cama como numa última prece... e a beija, num beijo quente... morno... do amanhecer sem culpa totalmente fora do mundo real e monstruoso que espera do lado de fora... Ergue-se de novo. - É uma emergência... na Pituba. Preciso ir... Parece que minha presença foi... exigida.

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A violência aparece na cidade no mesmo momento que a luz do sol começa a brilhar com força saindo do fim da madrugada para o novo dia que conta mais, e menos, um na contagem regressiva de todos que aqui vivem... Salvador abre olhos cheios de remela, e no embaçado da neblina do sono mal dormido encontra mais um corpo estendido na rua... As pessoas que surgem na rua se aglomeram diante da crescente aglomeração; não se pode saber quem foi a primeira pessoa que parou, viu o corpo, e ficou parado lá... A polícia também surgiu... Passos de sangue atravessavam o que fora a calma rua na direção do prédio logo em frente do local onde ainda jaz o corpo, agora coberto por um lençol “branco” já totalmente ensopado do vermelho vivo do sangue quente que esfria ao invadir da morte naquele corpo: as marcas da violência se lançam em jorros por toda parte: no carro que era do indivíduo, na calçada, no asfalto... Em todo lugar não há melhor símbolo dos extremos da violência do que as manchas de sangue... A polícia isolou o local onde descansa o morto, e também já cercou o prédio para onde os passos ensangüentados se dirigem... mais cedo quando a primeira viatura chegou, logo o caos se instaurou institucionalmente, descobriu-se que o possível causador daquele pesadelo personificado de sangue e carne num terno alinhado caído morto lá no chão de uma rua da Pituba, perto do seu carro... Que este tal, estava com um refém dentro do prédio para onde as pegadas de sangue se dirigiam: era a sede de um conhecido estabelecimento de ensino de línguas estrangeiras... Mais tarde, conhecendo-se a identidade do defunto, descobriu-se que também era ali, naquele prédio, para aquela conhecida escola de línguas estrangeiras, que ele trabalhava... como chefe de departamento pessoal do departamento de marketing... O refém era o vigia noturno. O nome do falecido era Alex Botelho de Castro. O suspeito estava armado, pois disparara dois tiros de aviso quando se dirigiu à polícia e disse que estava com o guarda noturno como refém, o qual fez som de ser verdade... Porém a causa da morte do Alex não ora por nenhum tiro; nenhum disparo foi feito da arma do suspeito na vítima já morta... E a única exigência do elemento era a presença do delegado Luciano lá, já... para lhe falar... ou mataria o vigia... E todo mundo teria uma história mais interessante ainda para contar sobre esse dia de hoje: um corpo ensangüentado e morto, um refém, a polícia, um assassino... e muito mais... Luciano chegou por volta de sete horas da manhã, e atravessou o cordão da polícia... Seus olhos viam a visão de muitos dias semelhantes, porém uma semelhança diferença lhe aguardava dentro do prédio... Mais que o público de curiosos, que os jornalistas loucos pela


carnificina, mais que a patética face da normalidade diante da loucura sem explicação de um ser... Esse seu semelhante, em profundidade, estava escondido lá dentro; sua face ainda era um mistério, mas seus atos (o corpo do Alex jazia ensangüentado debaixo do lençol, Luciano deu uma olhada no “pedaço de carne vermelha”) no mundo exterior revelavam parte do seu mórbido propósito. Sabia, Luciano, que estar ali fazia parte de uma requisição desse novo propósito erguido da noite dos caçadores em Salvador... Ainda pensava em Andréa com ternura e paixão, mas era o seu verdadeiro EU que penetrava agora no interior do prédio; seguido e ao mesmo tempo se desviando das pegadas vermelhas que tomavam a entrada e porta a dentro do cenário do seu mais novo advento... da cidade de hoje. - Aqui é o delegado Luciano... Estou entrando para lhe falar... Eu não estou armado. - Pode entrar, delegado... Siga a trilha. - Veio a voz lá de dentro. A primeira sala onde Luciano entrou, era a recepção do estabelecimento, todo seu interior estava meio escurecido: naquela manhã as janelas não foram abertas e as luzes fluorescentes não tinha, sido ligadas; o local guardava um odor carregado de sangue apodrecido (dos sapatos do elemento) misturado com o cheiro deixado pelos dois disparos de revolver que dera mais cedo... Não estavam longe dali; na verdade não parecia realmente estar escondido; os passos avermelhados de sangue se dirigiam para a entrada do que parecia ser um corredor, que estava completamente escuro de onde Luciano olhava, a uns sete metros de distância, no outro estremo da sala que era a recepção... Luciano começou a andar em direção do corredor. Faltando uns três metros a voz veio-lhe novamente para advertir: - Até ai está bom... - De mais perto Luciano passou a notar um tom semelhante a outra pessoa; um timbre e arrogância de irritante semelhança com uma voz que não há muito tempo... o que também já deveria ser uma voz morta... Luciano parou pensando na semelhança daquela voz: coisas que deviam perseguir-lhe desde muito tempo, quando encontrou aquela mesma suposta voz e a fez rapidamente calar, uma assombrosa coincidência que fez parar ali... olhando as sombras e esperando por mais daquela voz... que veio: - O senhor já esteve aqui antes, não esteve, delegado?... - Não entendi... Eu nunca... - É um açougue, não é?... O cheiro de entranhas expostas; o que é a vida na verdade... - Quem é você, afinal?... Porque você me chamou aqui? Eu sou o tipo de policial que nunca dá concessão a marginal. - É... Eu sei disso muito bem... (ouve-se um suspiro)... Sua primeira pergunta será respondida devidamente mais cedo ou mais tarde; agora saber quem eu sou não é tão importante quanto saber o que fiz. - Eu vi seu “artesanato” lá fora. - Aquilo é somente o fio que faz a trama, delegado... Eu o chamei aqui porque você será o único capaz de perceber a minha história depois que tudo houver terminado. - Tudo bem... Eu vou entender... Então você primeiro solta o servente, e depois me conta a história... - Não faça isso delegado. Você me conhece e sabe que não sou nenhum idiota ... Só saiu daqui morto. - E isso quer dizer que...? - Uma pequena pausa se fez, e Luciano pode perceber, apreensivo, algum movimento vindo das sombras do corredor. A semelhança na voz ainda


o perturbava, mas algo que fugia diante da estranha dinâmica daquele diálogo: aguardava alguma coisa certamente óbvia, pelas palavras do sujeito, mas seu interesse estava indo além... por conta do que aquele homem realmente era... ou queria ser. - Foi naquela sala ali a sua esquerda, delegado... onde sentado nessa recepção por umas seis horas até aquele escroto filho da puta finalmente me atender... E na entrevista foi então que pude ver o que seria o sentido de minha vida... - Você matou o cara porque foi rejeitado para um trabalho? - Não... Você ainda não entendeu o que o sacana do Alex realmente era: ele era um demônio... A missão dele era enfraquecer a todos nós; tentar fazer de nós as criaturas submetidas que todos já são... Menos eu... Eu me recusei a aceitar a humilhação; me libertei do sistema desses executivos veados, cheios de merda “non stop”... - “Puta merda... que pirado!...”- Pensou Luciano antes do sujeito prosseguiu. - Só houve outra pessoa nessa cidade que soube se impor... Um artista notável, que se recusou a se submeter aos caprichos e vaidades das mulheres... (Luciano já pode reconhecer a semelhança; e também o engano.)... E você o matou, delegado Luciano... - Não sabe o quanto está errado... - Estive errado por muito tempo, delegado... Agora vejo que na verdade é o mundo que está errado... Mas ontem à noite eu comecei a concertar... (outra pausa)... Senti meus passos silenciosos. Corri veloz como um leopardo. O sacana estava abrindo a porta do carro. Quando me percebeu e se virou eu já estava sobre ele... Flutuei para cima do desgraçado... Quando o crânio dele bateu contra o vidro do carro aposto que ele se arrependeu por não ter feito aquele curso de defesa pessoal para executivos que a empresa ofereceu: quando se sente no topo do mundo... nada o parece ameaçar... até surgir alguém como eu... Agarrei a cabeça dele e arrebentei a nuca do veado contra o asfalto... Depois... (ouve-se uma rouca risada)...Depois. (pausa)... Reconhece isso, delegado?... - Arremessado das sombras, arrastando-se pelo chão até próximo aos pés de Luciano, surge uma adaga; pontiaguda, nova e completamente ensangüentada... - ... Depois eu fiz tantos furos no sacana que parecia uma melancia depois de atacada por cem pássaros... O sangue do filho da puta esguichou para todo lado... Tudo com as mesmas armas que um dia Fernando Vainarde usou nessa cidade. - Luciano observa a faca aos seus pés: era realmente semelhante a arma usada por ele (Luciano/Fernando) quando matou Ilena... porém Luciano ainda pensava no erro: a voz do sujeito começava a oscilar entre duas semelhanças: cruzava entre a voz de Fernando, desde o começo; e outra, que mais parecia ele próprio quando pensa no que fez, e começa a sentir prazer... E essa era a voz que mais lhe incomodava, pois fazia recordar dele próprio... como sendo o que aquele sujeito é... apenas excluindo as partes pseudo-messiânicas. Luciano já adivinhava o desfecho daquilo com muita nitidez; faltando apenas um rosto que deveria surgir da escuridão, mostrando não ser ele próprio... e nem Fernando... e nem ninguém somente mais um louco na cidade da loucura. - É bom que saiba, delegado... que está trabalhando para o lado errado.. (Luciano quase acha graça.)... Mas quanto a mim, já fiz a minha escolha... Espero que você, e todos os outros se fodam... E também espero que aprendam... de mim. - Das sombras emergem dois rostos. A frente, enlaçado por um braço ensangüentado, a face apavorada do vigia noturno daquele lugar: sua boca está amordaçada, seus olhos estão inchados e suas calças


molhadas... Talvez aquela não seja profissão para homem, afinal... Treme sob a mira da arma na têmpora. E o outro rosto... havia sangue em todo corpo do elemento. Seu ataque fora de uma total visceralidade, indiscutivelmente... Um rosto pálido, de olhos fundos, escuros, expressivos: expressão de agressividade. Luciano conhece essa expressão de quando está sozinho em sua casa e é surpreendido por sua imagem no espelho... E era como começava a se sentir: olhando um espelho... A figura guardava as marcas de toda uma vida sem sentido até a noite passada: sua realização... Um homem jovem, mas de uma evidente carga nos ombros por muito tempo: dores e frustrações incontáveis de todos os dias na vida de todos... Até quando todos suportariam?... Pois este não mais suportou... Olhou para Luciano durante longos segundos, antes de empurrar o guarda para frente, fazendo-o cair no chão... e apontar a arma para a própria cabeça e atirar sem em nenhum momento piscar os olhos ou respirar diferente... Seu corpo logo tombou. A mancha de um novo sangue escorreu pela parece; o mesmo sangue que se misturou ao sangue já ressecado do Alex sobre o corpo do sujeito... Na verdade tudo um mesmo sangue... Luciano observou o vigia aos seus pés. Estava agonizando. Estava amarrado com as mãos para trás. Abaixou-se e tirou a mordaça do homem. Que logo vomitou tudo que tinha no estômago; sua agonia: estava quase sufocando com o vômito... assim que o sujeito se matou. Luciano se ergueu depressa escapando da porcaria do vigia. Meio segundo depois a sala é invadida por vários policiais, que se surpreendem com a cena... O show há havia encerrado, e ninguém havia matado ninguém... Somente o assassino havia... “se divertido”... E as coisas iriam caminhar. Não era caso de Luciano. E ele não o queria. Saiu daquele local sem triunfo, sem nada mais que a incômoda sensação de estar sendo novamente observado; frágil; exposto... como as vísceras do corpo ainda estendido na rua... ou como o cérebro do rapaz caído lá dentro do prédio. Sabia Luciano... que o olho do observador estava dentro de si... E sempre estaria. E sempre haveria alguém como aquele rapaz... para lembrar-lhe... que está sendo observado.

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Enquanto isso no Complexo de Delegacias... Ronaldo, após uma breve pesquisa telefônica, resolve procurar o possível anônimo que tanto anseia encontrar: tinha um provável endereço e muita vontade... Deixa o edifício circular do Complexo no mesmo momento que o telefone de sua mesa toca, e como não estando... a ligação é transferida para Oscar, que está em outra sala... mexendo com papéis... meio aborrecido. - Sim,... O que foi?...


O Pavor no Fim da Loucura

Está num bairro pobre de Salvador; um entre muitos outros, dentro dessa cidade tão pobre quanto brilhante... para olhos externos. Os turistas que chegam na cidade da alegria não chegam, seus luxuosos ônibus de turismo não alcançam (e talvez os motoristas dos mesmos até vivam aqui), esses bairros pobres: sub-sub-urbanizados; que é onde, num deles de nomes estranhos e impronunciáveis, o detetive Ronaldo se encontra. Sua presença logo se torna um destaque. A polícia não costuma vir aqui durante o dia; e quando vem, usualmente à noite, corpos surgem nos terrenos inóspitos das proximidades... e ninguém quer saber quem foi, por que foi, ou se realmente foi. Ronaldo nunca esteve por aqui. A rua em que o detetive estaciona a viatura da polícia civil está repleta de rostos escuros, amedrontados e desconfiados. Bate a porta do carro não muito novo e olha ao seu redor. Pela escuridão das janelas semi-abertas sente os olhos dos moradores; à sua frente existe um pequeno armazém, onde dois homens estão parados, um em cada uma das duas portas... Ronaldo se aproxima deles... - Bom dia... Algum de vocês poderia me informar onde fica esse endereço/ - Mostra um pedaço de papel aos homens... A hesitação dos dois parece ser o extremo do que ocorre com todos na rua... no bairro. Os homens olham o pedaço de papel talvez já imaginando que aquele é o endereço de alguém que logo vai estar morto: alguém que rouba carros e usa o dinheiro para comprar drogas, para daí revender para jovens ricos. Ou talvez um pedreiro que ficou tentado pela mulher que tem o vizinho errado: ele... Porém, muito mais que isto nos olhos desconfiados das pessoas... atingem-se os extremos desse novo tempo em Salvador, de modo e terror... quando não se pode confiar em ninguém... Ronaldo espera sua resposta. - É o sobrado duas casas à frente. - Um dos homens aponta a direção. - Obrigado. É uma casa de dois andares que funciona como pensão. Uma tinta esverdeada velha e descascada cobre a fachada do horrendo lugar, onde seres humanos vivem pagando o preço de um pão por noite... O detetive Ronaldo entra no lugar e logo é envolvido pelo nauseante odor de coisa velha; que também é o que precede a chegada da dona do estabelecimento: uma velha muito velha. A velha abre a porta do quarto onde supostamente morava o sujeito que Ronaldo procura. Ela resmungou alguns palavrões bastante lascivos antes de dizer que o sujeito havia partido há mais ou menos uma semana: nunca atrasou o pagamento, chegava tarde às vezes, trabalhava em algum sub-emprego no centro, era de algum interior; Ronaldo se lembrara de um sotaque... E desde alguns dias antes de se ir, de volta para terra dele (quem sabe?), ele parecia assustado... A velha achou que estava metido em confusão... mas ele continuou a pagar... O quarto estava arrumado, e “limpo”. Ronaldo olhou o antigo guarda-roupa de compensado, vazio. O cheiro de coisa velha permanecia... Olhou debaixo do colchão, nada. Na mesinha do canto também não havia nada... Só isso?...Também havia um pequeno criado-mudo, e dentro da gaveta do mesmo havia uma pasta-de-dente seca e torcida, e um pedaço de papel... onde estava escrito: “ABI 1997”.


- “Placa de carro!”

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Em um dos cubículos do Complexo; já é quase meio-dia. Oscar está sendo à mesa... - Débora, Débora, Débora... Qual de vocês?... Aparece, mulher... Eu só quero salvar sua cabeça... - O detetive ri de si próprio, de cabeça baixa observando os papéis. A voz de Ronaldo alcança seus ouvidos e pensamentos: - Oscar... Finalmente consegui uma pista para a gente investigar... - Os olhos de Oscar hesitam em demonstrar o que estão demonstrando. Ronaldo pode ver aquele natural desprezo: o policial de trás da mesa estava indo às ruas, enquanto ele, o detetive da ação estava atrás da mesa... Mas Oscar sente que pode ir além do parceiro mais velho... mesmo tendo ficado dentro do gabinete, enquanto Ronaldo estava na terra selvagem que é a Salvador por trás das portas do sol brilhante... - Por acaso é uma placa de carro?... - Ronaldo faz sua típica expressão de abismado, quando todo mundo mais parece saber há muito tempo o que ele acabou de descobrir: os olhos diretos para o rosto de Oscar... num óbvio silêncio afirmativo... - Vejo que sim... Seria... (Oscar dá uma rápida olhada em sua mesa)... ABI 1997?... Ronaldo fica mais abismado ainda. - Como você com... - Ele ligou, Ronaldo... Eu disse que ele iria ligar de novo... Mas não precisa fazer essa cara... Sua idéia também deu certo, não deu? - É... - Oscar se levanta. - Escuta... Luciano quer falar com a gente... Eu vou te falando no caminho... No caminho para o gabinete de Luciano, Oscar contou que o anônimo ligou logo depois que Ronaldo saíra pela manhã. Disse que o carro é uma van importada, preta, e com a placa tal... O homem também admitiu ter testemunhado o içamento da garota na árvore, e que eram provavelmente cinco homens... Percebera que o pobre coitado estava em lágrimas, apavorado; o sotaque de interior se intensificara e o tremor revelava que o sujeito, acima de tudo, não era nem capaz de imaginar tal atrocidade... Provavelmente não vai muito ao cinema, e só deve assistir programas de auditório interativos na TV: um ser humano que sonhava estar vivo, e que naquela noite, por um acidente de percurso, acordara no pesadelo do que realmente viver é: monstros humanos e corpos pendurados como num açougue... Já perto do gabinete de Luciano... Oscar: - E agora estamos esperando a identificação do proprietário do carro do Departamento de Trânsito. - E quanto às Déboras? - Você vai saber!... - Eles chegam. Luciano está a espera deles. Quando dois desses três homens vêem tanto quanto pode se suportar não enxergar o lado obscuro do terceiro: o difuso interesse dessa terceira incógnita sendo o delegado em quem devem confiar... Mais


pressão que qualquer um dos dois, Oscar e Ronaldo, poderão um dia imaginar ter um homem naquela posição. Luciano: - Muito bem... - Oscar se adianta, sentando: - Eu soube de hoje de manhã... Que droga, não é? - É isso mesmo, Oscar... A manhã dos campeões... Escroto. Ronaldo apresenta sua audiência: - Que foi que rolou de manhã, afinal? - Oscar sorri. - Esquece, Ronaldo... (Se cala, mas fica irritado)... Quero saber o que já temos... Oscar?!... - Eu e os outros dois detetives conseguimos diminuir o número para 18... - E como foi essa mágica em menos de dois dias?... - Oscar hesita sua resposta diante de uma dura expressão de cobrança de seu delegado encarregado do caso; há muito tempo ele já reconhece o que é o olhar de Luciano quando ele já espera algum tipo de absurdo: um descrente da maioria das teorias... por isso um ansioso por respostas como essa: - Palpites! - Baseados em?... - ...Em padrões anteriores de como as vítimas estavam sozinhas, e mais importante, pareciam conhecer, ou pelo menos confiar, naqueles que as capturaram. - Luciano, se desfazendo da expressão, e se recostando na poltrona: - Sei... - Ronaldo percebe a estranha interatividade entre o detetive Oscar e o delegado Luciano; é mais velho que Luciano, e é seu subordinado... ainda sente suas considerações sendo desprezadas... Rapidamente se refere à placa de carro encontrada na antiga moradia do anônimo, sobre a qual informações já estavam sendo esperadas por fax... Mas ainda faltavam as Déboras: - E então Oscar... O que você pretende fazer?... Aliás; eu esqueci... você está fora das ruas por um tempo. - É, mas... - Nada de mas... Vocês vão usar os dois caminhos... - Luciano tenta se fazer mais claro. - Ronaldo... Você vai achar essa van e segui-la... Enquanto isso vamos tentar manter essas Déboras sob vigilância...Oscar; providencie isso você! - Mas eu... - Porra! Nenhuma... Somente daqui de dentro! - Um fax anuncia sua chegada. - Pronto... As informações estão chegando... (Luciano apanha o papel)... Deixe-me ver... - finalmente a sua última e penosa expressão se ergue num arco de horror tal que as lembranças e deduções se fazem vivas... Entre o que o homem Luciano conhece como sendo ele próprio e tudo que fez, e o que sabem como sendo uma coincidência larga demais para se tornar apenas a tal... o fax do Departamento de Trânsito dizia que o automóvel pertence a uma grande firma de advocacia do Rio de janeiro... Uma que também tem representantes aqui: o segundo nome é Gouveia. Oscar percebe o terror nos olhos do delegado, olhando o papel; é a mesma que vira naquele outro dia, quando o episódio no meio do Vale dos Barris, o tiroteio que o afastou... - Luciano... Você tá legal?... - Ele olha para os dois detetives. E tem absoluta certeza de que os dois nunca saberiam do que aquilo se tratava... realmente. Pensa: - “Meu Deus... A Pedra...”


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“Eu me apaixonei pelo homem errado... Devia te dizer isso, Doutor?... Não!... Não há com que se preocupar. Eu sempre o desejei... Mas agora que eu o tive... Não se posso permanecer longe... E talvez eu fique perto demais: algumas vezes ele disse que ficava longe das pessoas, por se considerar muito perigoso o seu modo de levar a vida... E realmente ele pode ser considerado um total inconseqüente por si mesmo, mas com excesso de cuidados com estes outros que ele tanto teme machucar... A culpa que carrega parece ser realmente gigantesca... Mesmo considerando o sucesso que conseguira. Luciano... Você faz eu pensar demais... E mentir para o meu analista!” - Está tudo sob controle... - Andréa repousa seu corpo no sofá do consultório de um renomado analista... Conta, em sua sessão semanal, como foi o seu “encontro” com o policial que sempre admitiu ter uma grande atração: sentia-se realizada pela metade, porque sabia que as coisas não iriam mudar somente por causa daquela ardente tarde de amor... Comentava que o pai a havia advertido dos perigos de se envolver com um policial, mas que ela contrastara o conselho dizendo saber o que fazia: como um leve gosto de um antigo desejo... Mas que... - Está tudo sob controle... - E seu rosto se enchia de uma estranha esperança... admitindo a paixão para si própria; e ao mesmo tempo se esvaziando diante da realidade... O doutor: - Parece que você está repetindo isso para si próprio. Não deixe seus pensamentos eróticos te enganarem novamente... Já passamos por isso antes. - Tudo bem, doutor Marcelo... “Mas tempo que passa longe e distante; mais do horror em meus olhos; não existindo Deus que possa explicar o terrível vazio... Não tenho nome ou identidade; perdido entre rostos que se contraem em expressões ameaçadoras... Imagino-me matando pessoas: meu gélido ambiente de atrocidades... Como alguém poderia gostar de mim?... Registro o meu desprezo; afasto-me de todos os nomes por muito amá-los... mas que por tempo demais desejo os seus sofrimentos.” Andréa pensa, após lembrar esta passagem de um dos textos de Luciano na Faculdade de Direito: - “Eu te entendo mais ainda, Luciano... Agora!”

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Luciano, em seu gabinete, ao telefone: - Resolvi aceitar o seu convite. - (Isso é muito bom, Luciano... Sempre soube que você se tornaria um profissional de primeira linha; e agora você poderá entrar para a elite da lei.) - É bom se sentir ajustado... de novo... Parte de alguma coisa... importante.


- (Sinto que você ainda está hesitante em suas certezas, meu amigo. Mas não se preocupe: enquanto você não descobrir você mesmo... as dúvidas ainda existirão.) - ... Sabia que naquele momento estava falando com um completo megalomaníaco; pelo menos parecia sentir desse modo as estranhas palavras ocultas no diálogo entre ele e o doutor Gouveia... A Pedra, para Luciano, um seu estimado professor, parecia se apresentar agora como sendo aquela eterna face de si mesmo de si mesmo dentro da noite de Salvador: um predador feroz, um homem que esquece de sua humanidade em nome de coisas tão estranhas para os olhos do dia, quanto também deliciosamente tentadoras para a mente do psicótico que se emerge... Porém ainda é difícil acreditar no que os fatos mostraram: A Pedra viveu com a família o Rio de Janeiro durante um bom período do início da década; e isso o deixava apto a estar no local daqueles crimes... Porém não havia motivo, como sempre deve ser temido o propósito de uma mente criminosa... Não parecia haver... O último nome da lista era o mesmo nome de sua adorada filha... E recente amante desse delegado... Imagina, Luciano, ao ouvir aquela paciente voz do experiente advogado, que talvez algo de mais sórdido tenha acontecido àquela família enquanto passava parte da vida vivendo longe dessa terra natal... O que faz aflorar o instinto nesse homem de meia idade... com uma vida toda organizada... para planejar e executar esse armagedon particular, onde cabeças são cortadas fora... e esperanças de jovens são destruídas com a noite que engole o fim do dia... Luciano ainda duvida... - (...mas não se preocupe... logo vai se sentir melhor... Nos vemos lá, então...) - Até lá... - Desliga. E pensa... - “Eu nunca vou me sentir melhor!”

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Na noite sem lua o policial guarda as ruas do território desconhecido... Pois o detetive Ronaldo sabe que não é um policial de rua, mas sente ter alguma coisa a provar. A van preta está parada em frente de uma casa de dois andares num bairro de classe média não muito afastado do centro. Nos últimos dois dias em que vem seguindo o mesmo carro, sempre os mesmos dois indivíduos têm saído, rodado a cidade e voltado a este mesmo ponto de origem. Somente as luzes do andar de baixo ficam acesas, a noite toda... Em sua viatura não oficial Ronaldo observa com tédio a mesma paisagem de todas as noites... Segundo os cálculos decrescentes de Luciano o seqüestro da nova garota deve ser de hoje para o dia seguinte. A relevância do tempo e do propósito para o detetive são um tanto obscuras. Apenas sente ter sido deixado de lado, enquanto Oscar designa pessoal para a proteção das possíveis vítimas: 18 garotas de hábitos normais... Saem de casa; trabalham; algumas ainda estudam; visitam amigos; encontram namorados... Porém, pelo menos, não são apenas um cenário eternamente igual cheio de entrelinhas e sombras dentro da noite. Ele fala no rádio: - É isso mesmo, Oscar... A coisa aqui tá muito lenta.


- (Pois aqui está muito pior... Pelo menos você tá na rua, pode ver alguma coisa... Aqui no Complexo à noite é ainda pior: ou não acontece absolutamente nada, ou então aparece algum doido gritando que foi roubado e que a esposa foi estuprada...) - Quem é que está de plantão hoje?... - (Seria Luciano... Mas ele saiu.) - Saiu do plantão?!... Que estranho. - (Sem dúvida...) - Às vezes eu acho que... - As luzes da casa se apagam. Nunca haviam se apagado antes, durante a noite, nesses dias de vigília de Ronaldo. Sua atenção se volta para a casa... totalmente... - (Acha o que, Ronaldo, seu porra...) - Depois... - Desliga o rádio. Os dois elementos saem do interior da casa, e logo em seguida entram no carro. E partem... Para onde Ronaldo já começa a seguí-lo. Eles nunca tinham saído tão tarde, e a cabeça de Ronaldo já começa a viajar pelos meandros da ação policial noturna... Ele reporta a saída dos dois elementos e segue em frente para onde a van preta caminha: primeiro, mais no interior da cidade... em mais outras terras desconhecidas...

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Mostra-se o que mais assusta e corrompe os pensamentos do homem bom que este policial é, se não fosse o que realmente ele é para os seus próprios olhos: barreiras com o mundo desse ser angustiado que assiste algo como uma reunião dos Alcoólicos Anônimos, sabendo, ou querendo saber, se na verdade uma fantasia do homem sentado ao seu lado: “A Pedra”; o doutor Gouveia; o pai de Andréa... que o apresentou formalmente para este distinto grupo de rostos conhecidos e não conhecidos: doutores, senhores, caros colegas de um mundo que não é o seu pata todos... Mas Luciano se imagina ser o cúmplice de todas na mesma loucura, e por isto pensar estar aqui... ter sido aqui chamado. É com certeza um local pouco suspeito: uma sala de estar do luxuoso apartamento de um desses que aqui estão... Luciano olha, observa, questiona e não acredita; não vê razão para tal fome de morte nestes senhores de respeito... Sente-se como na sala de recepção de um local novo: um clube seleto que só aceita gente como elas próprias... A chantagem também parecia uma arma pouco provável; era mais um ardil, um atrativo, um aviso de que ELES estavam próximos... e por isso o convite do doutor Gouveia... Mas ainda hesita em acreditar, o delegado Luciano, e o “homem-cida” Luciano... pois o que aqueles homens de respeito falavam era sobre... - ...da última vez foi aquela secretária cheia de traumas de infância. A idiota vivia chorando pelos cantos... No dia em que resolvi investir nela... tentou processar a firma. - E você conseguiu provar a insanidade, então... (risos) - Exatamente... Que coisa fantástica é a capacidade dessas pessoas de culpar a todos por um acidente... Não admira também ela ter se tornado crente. - Crentes... (mais risos) ... Pode-se crer em qualquer coisa bem vestida, não é?... - Que tal nós?... (muitos risos) - Não falemos mais disso. - Gouveia se levanta para se dirigir ao grupo:


- Quem quer mostrar ao nosso novo amigo que tipo de atividades recreativas nós temos aqui? - Todos calados esperam o próprio Gouveia se pronunciar... - Eu sabia... Vamos começar os estágios mais simples de integração, meus amigos... Os rostos se tornam um tanto mais inexpressivos antes que a Pedra resgate um controle remoto na mesa de centro e aperte um botão... As luzes se apagam por um minuto... Luciano se imagina no pleno circo do divertimento dos ricos... O que mais seria, senão... - Mulheres! - Três garotas entram na sala e começam a fazer o mais exótico dos streapteases... A surpresa de Luciano se confunde com o alívio e a desconfiança: eles estariam com todo aquele aparato erótico exclusivo para homens bem sucedidos, somente na sua presença, se fosse pela terminologia do doutor Gouveia: “estágios mais simples”. O contexto então revigorava o corpo e o coração desses homens, mas ainda faltava alguma coisa... Luciano apenas assistia; e os rostos permaneciam imóveis: quase hipnotizados... As três garotas atuaram e inter-atuaram entre luzes e escuridão durante quase uma hora. Luciano se permitiu o prazer da excitação; pensou em Andréa; mas não se desfez da apreensão dos fatos do momento... A Pedra virava para ele com permanente atenção disfarçada... Era o único que sorria e se deleitava com as bundas, coxas, seios e bucetas das garotas... Seriam mais um sinal de sua liderança; porém em certo momento se tornava a constrangedora sensação de descaso por parte do delegado... Pois aquele fora seu professor; aqueles eram “homens de respeito”; e todos eram suspeitos... cortejados além das próprias consciências; vítimas talvez... Mas não... Para Luciano havia algo mais que aquela simples confraternização... Pois os rostos continuavam os mesmos; menos a Pedra.

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Dois carros cortam essa noite da escura Salvador. A na negra risca o asfalto com cuidado penetrando nas ruas do centro da cidade. Atrás, a uma distância segura, Ronaldo despensa curiosidade e desbrava o momento, seguindo o automóvel suspeito. As luzes da rua que ainda funcionam iluminam as voltas dos dois veículos... A tensão toma um confortável lugar no rosto de Ronaldo, que sendo iluminado e ocultado através do párabrisa da viatura, antecipa qualquer coisa que possa ser um grande e inesperado sucesso. Pensa: - “Para onde esses sujeitos estão indo, afinal?... Não posso esperar que as coisas caminhem tão rapidamente; quando tudo se trata de um crime...” - O detetive apanha o papel que está entre as coisas da pasta no painel do carro: é uma pasta oficial. No papel está a lista de nomes e locais que estão sendo vigiados: as 18 Déboras... Sabem que os elementos não atacariam nas casas das vítimas, nunca o fizeram, porém Ronaldo tenta se conectar com as possibilidades de onde aqueles dois homens podem estar indo... Na lista, muito mais que os palpites e probabilidades dos policiais, estão 18 vidas... 18 esperanças que podem, qualquer uma, morrer nessa noite mesmo, ou mesmo nos próximos dois dias... Mesmo os palpites e cálculos estando errados; o que já transformaria a vida dessas garotas num só caos; ainda haveria uma vítima a ser raptada hoje, pois a alma que se esconde na noite de Salvador, e no lado escuro de cada ser humano, pede por mais uma cabeça... E


Ronaldo se sente responsável por esta.... porque é ele quem está sozinho na cola desses sujeitos... E não faz idéia de para onde eles estão indo. Os dois veículos sobem uma ladeira e estão num bairro conhecido como Garcia. Depois de rodar mais poucas ruas dentro do centro da cidade, eles estão no campo Grande: é uma grande praça central, bem no coração da escura Salvador... Existe aqui uma magnífica construção, destacada do resto, é um grande edifício de formato irregular, e que abriga um dos últimos bastiões de arte nessa cidade: é o grandioso Teatro Castro Alves (poeta baiano do séc. 19)... É próximo a um dos portões do teatro que a van preta estaciona; o portão oeste, que dá na sala de coro do teatro; Ronaldo pára a sua viatura logo em seguida, porém longe o bastante, ainda dentro da praça: o Campo Grande... As árvores são gigantescas elevações que assombram as sombras da praça deserta. O vento sopra e revela dentro do silêncio da noite o quanto a escuridão tomou parte e totalidade do coração dessa cidade... Em outros tempos, nessa mesma praça, ainda por essa hora da noite, luzes e cores traziam as pessoas que deixavam seus rastros de vida e alegria: crianças brincavam em um ocasional parque de diversões, casais se agarravam sem pudores e idosos passeavam entre vendedores ambulantes de gordurosas e saborosas guloseimas... Porém agora só resta a escuridão, o vento frio, os mendigos e loucos que se amontoam se escondendo do frio e do medo, e o solitário policial. Ronaldo observa o carro. Uma das portas se abre. Ele usa o rádio e fala com Oscar: - ...Talvez eu vá precisar de reforço. - Tá todo mundo nas vigílias, cara... E Luciano continua fora. - E você?... - Você sabe que eu não posso... - Me diga... Todas as vigílias reportaram normalidade? - Positivo... Ou os filhos da puta passaram a perna na gente, ou Luciano errou nas contas, e não vai ser hoje... - Pois eu acho que Luciano não errou não... - O que está acontecendo? - Eles estão saindo da van... Vou segui-los... - Espere... Para onde eles estão indo? - Estão descendo a rampa oeste... Preciso ir... - Ronal... - Já estavam desconectados. Seria o primeiro momento de uma estúpida impulsividade nas ações do detetive Ronaldo, mas parecia ainda ter algo para provar... Dessa vez o detetive Oscar é quem estava atrás da escrivaninha no Complexo de Delegacias... Mesmo que nunca morresse, esse cheiro de coragem em seu coração no meio da noite dos horrores fazia o detetive Ronaldo ser o que nunca foi... O verdadeiro policial que é, que sempre foi, e que desejaria estar ali com o colega Oscar... no momento em que tudo ocorresse... Realmente desejaria!... A descida da rampa contorna toda construção. O teatro fora construído numa depressão, e na descida dessa rampa oeste se alcança a parte de trás do teatro, equivalente a um prédio de 15 andares. Indo-se até o fim da pista se chaga ao estacionamento inferior, mas lá não há nenhum movimento; apenas alguns carros parados.. . o que já seria uma razão para se suspeitar, porque nenhuma peça está sendo encenada no teatro... nesse momento... Ronaldo continua a jornada; do ponto onde está já pode enxergar um pouco além do previsto estacionamento o edifício circular do Complexo; quase esquecera que estava


realmente perto de lá; bem no centro da cidade; nos arredores do vale dos Barris, onde o Complexo ali está... Ele olha com cuidado qualquer movimento e presença, que não há; e pensa na ironia que estar aqui, tão perto do Complexo, enquanto as tocaias esperam a ação nos distantes bairros nobres da cidades... E imagina também do porque dele estar aqui; e porque aqueles homens para aqui vieram... Prossegue descendo a rampa; o estacionamento e a visão do prédio circular desaparecem. Pensa se Oscar não está vindo para cá, ou se talvez não esteja chamado reforço... E pensa, afinal, ao ver que a porta de acesso para a sala do coro está aberta: - “Entraram aqui!”- Apanha sua arma e com ela em punha penetra na escuridão. Armadilha!... Sua mente diria se não fosse a indócil bidimensionalidade febril desses homens que pensam normalmente a anormalidade das ruas do mundo... Luciano assim pensaria ao ver essa porta aberta no meio dessa óbvia escuridão deserta.

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Não haveria mais vida nos olhos de um homem como Oscar se ele estivesse prestes a fazer sexo com a mais bela das mulheres, pois não é esse o momento que na verdade se revela dentro dele a ansiedade por querer sair do Complexo de arma na cintura e um mundo inteiro para ser apanhado em flagrante, e por isso receber um tiro pelo meio da cara... Um exagero não seria: está impedido de sair; não há mais ninguém disponível no Complexo; o bip de Luciano não responde... e Ronaldo está sozinho desbravando o novo território desconhecido das ruas escuras de Salvador... tão próximo daqui; não evita de pensar... Estaria menos imobilizado se estivesse baleado, como nunca fora... pois a imobilidade surge da ordem: a ordem que combate o caos... Não lhe resta muito tempo para pensar então, pois sabe também que Ronaldo não possui aquela que é a sua total compreensão e interatividade com as ruas dessa Salvador da noite, que torce de medo todos e muitos... mas para outros é o lar. Oscar não pára de pensar no que pode estar acontecendo; Ronaldo se afastou do carro; não conseguiu restabelecer contato; as vigílias estão distantes do centro, nos bairros nobres... e ele está tão perto... Se o detetive sair pela porta do Complexo poderá ver a sombra grandiosa do teatro no alto de uma das saídas do vale... Mas também se sente tão inerte... Oscar acende um cigarro; está sentado a uma mesa; não há sons na noite de Complexo de Delegacias; nesta noite; marca pensativo a contagem de um tempo que pouco menos tem do que quer admitir poder usar... Precisa decidir.

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Uma linha se faz da pequena lanterna do detetive Ronaldo até o balcão da fina lanchonete que antecede a entrada da sala de apresentação da sala do coro do teatro... A fraca luz azulada de lá de fora ainda penetra pela porta, mas o que existe a frente é apenas


escuridão... O balcão deserto antecipa o presente silêncio, que é a sala do coro... Sala do coro é um teatro pequeno; uma sala de apresentação alternativa. Ronaldo passa pelo balcão de vidro e segue em frente; há também uma sala ante-sala e dois banheiros... porém seu caminho é pela porta dupla de acesso ao palco; é a porta que está aberta. O palco também está às escuras; com sua lanterna iluminando a área de apresentação, pode ver que não há nenhum cenário montado... Já faz algum tempo que nada é apresentado ali... mas algo se constitui na estranha sensação; quando pessoas estão reunidas no mesmo lugar... Nenhum sinal dos dois homens, e nenhum som além da existência de si próprio nesse local de comédias e tragédias sem fim... Finalmente dirige sua pequena fonte de luz para a platéia; um par de olhos sem expressão congelam a luz do policial no meio daquela viva escuridão. Ele reage: - Parado! - O elemento já estava parado. - Quem é você? - A resposta era mais inexpressividade. - Responda!... - Alguns segundos dolorosos atravessaram o corpo do detetive Ronaldo como uma forte rajada de vento. - Respostas do seu mundo não têm lugar nesse palco, detetive. - As palavras de uma voz forte e estranha; uma monstruosidade rouca, arfante, segura e desconhecida; fizeram todos os membros de Ronaldo balançarem. O feixe de luz da lanterna viajou de um lado para o outro, a procura de um rosto para a voz... mas sua surpresa era muito maior ao ver que eram muitos os rostos... Muitos os rostos tão inexpressivos quanto o primeiro; congelados num horror que crescia no coração do detetive; a casa estava cheia, uma platéia quase lotada; e o espetáculo era ele: sua tragédia... e a comédia para eles... para aquelas faces sem expressão. - Quem falou?... Quem disse isso?... - As luzes se acenderam, e o verdadeiro cenário estava revelando aos olhos do detetive... Muitos daqueles rostos o observavam, e ao fundo uma criatura sem rosto que tinha, mesmo com o rosto obscurecido por capuzes, a única expressão presente na platéia: o prazer, a satisfação mórbida do predador que acuou sua presa numa inexpugnável armadilha... A voz sem rosto da criatura ao fundo fala: - Largue a arma, detetive! - Ronaldo se lembrou que ainda estava armado. Apontou para a pessoa de capuz. Não vira ninguém armado. - De jeito nenhum!... Vocês... - Antes do policial conseguir terminar de dizer a ridícula frase: “...estão presos!” um tiro surge não sabe de onde, e logo sua arma no chão, bastante longe, e sua mão direita é uma tocha vermelha de sangue que jorra e borbulha quente... sob o horror dos seus próprios olhos, que nunca gostaram de ver sangue, especialmente o seu... o qual nunca fora derramado em serviço. Ele grita de dor... A voz: - O senhor agora entrará para história, detetive... O senhor fará uma imensa contribuição para a nova ordem... O senhor cederá sua vida em sacrifício, por uma lição muito merecida... ao seu delegado... Luciano. - O horror se tornava agora maior ainda; segurava sua própria mão que sangrava, ardia e pulsava; não conseguia encontrar forças para tentar fugir; o frio e o choque tomavam conta do seu corpo; aquelas faces sem expressão pareciam penetrar-lhe a mente; a criatura de capuz lhe parecia ser a própria morte com a foice apontada para seu pescoço... a vida lhe discorria suas últimas imagens, pois querendo desmaiar... e eram de um horror tamanho, que sua única reação foi cair de joelhos e chorar por sua vida.


De trás de Ronaldo surgem os dois sujeitos da van. Ambos estão armados de porretes... E mais um homem, que logo que Ronaldo se torna capaz novamente, reconhece como sendo mais um instante de um interminável horror: é seu amigo advogado, Marcos Abrantes... Porém sua vista não permanece por mais tempo... As primeiras e segundas pancadas dos dois homens o fazem se curvar e se contorcer de dor: o palco era o lugar dos espetáculos... Gritava, grunhia e gemia o detetive... Porém nem a morte nem a inconsciência o abençoavam com a paz. Os dois elementos sabiam bater onde provocava dor, mas nunca onde possa fazer o horror acabar... Um vislumbre entre o sofrimento e Ronaldo é capaz de ver que Marcos tem algo alongado em suas mãos. As pancadas param. Ronaldo sente seu corpo como sendo uma grande hematoma vibrante; não consegue perceber uma parte em seu corpo que esteja dolorida, pois todas as partes doem ao extremo...Volta-se lentamente para Marcos, e agora já pode perceber o que há em suas mãos: é uma espécie de machado; totalmente de metal, como em gigantesco e brilhante instrumento cirúrgico... Talvez agora saiba o que vai acontecer... A voz: - Coloquem o detetive na posição! - Os dois sujeitos seguram Ronaldo deitado de barriga para ima, porém já não era mais um trabalho árduo... já se sentia morto... Vê seu amigo Marcos se aproximar com olhos sem vida, sem remorso; ergue o instrumento acima da cabeça; Ronaldo se desfaz do controle de suas funções vitais; a dor em seu corpo vai terminar... Vê a trajetória dos braços de Marcos e do instrumento virem em sua direção; sente uma fresca brisa, do movimento da lâmina; não consegue nem mais ensaiar um grito... A cabeça de Ronaldo rola para trás; sangue espalha por todo palco; seu corpo reage durante poucos segundos... Estava tudo resolvido... A voz: - Vamos embora, meus amigos... Esse espetáculo já terminou... E foi um sucesso... Não esqueça de deixar a mensagem! - Isso último, falando com Marcos. Todos saem; todos se vão. A criatura lá do fundo ainda olha por alguns instantes na direção do palco, e também se vai. É o fim.

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- Por favor, Ronaldo, seu filho da puta... esteja bem... - O detetive Oscar desce a passos rápidos a rampa circular do lado oeste do teatro. Deixara a viatura ao lado da van preta; não vira ninguém; a aparente paz do local o fizera pressentir o pior; empunhara sua arma e já estava no mesmo caminho que fez Ronaldo... Prezava o o colega, apesar das diferenças. Temia pelos fatos que ocorriam: deixara seu posto, e sentia ter sido em vão... Porém as perdas iriam permanecer, como na vida de todos... Oscar se imobiliza por um instante já na porta da sala do coro; no ar residia o aroma de gasolina queimada... como a partida de muitos carros ao mesmo tempo... Ao seu redor só há a escuridão da cidade; a imponente grandiosidade do teatro também assombra seus pensamentos; um outro odor lento e desconhecido recobria a noite sem luz de Salvador... O detetive liga sua pequena lanterna e repete os passos de Ronaldo para o interior do local onde a cultura dera palco para o pavor no fim da loucura de mais um dia nessa cidade; inacreditável a cada momento, Oscar podia prever... e quem não mais... escuridão após


escuridão... até encontrar naquele palco mais um pequeno ato desse mosaico interminável de violência e horror... - Eles sabiam... Eles sabiam, droga... E fizeram uma armadilha... DROGA!!! - Grita Oscar para o vazio e silêncio da sala de apresentações da sala do coro... Não mais pareciam importar autoridade ou lei. Porém algo de mais pessoal e questionável a respeito de tudo conhecido pelo detetive como confiança: algo que nessas ruas não existe; somente o lado escuro de cada alma; uma alma muito escrota... que fez isso com Ronaldo... Isso!... Oscar percebe que há algo escrito no palco... com o sangue de seu colega... De onde está, na beira do mesmo, não consegue ler... sobe alguns degraus entre as cadeiras da platéia. Apenas as luzes que iluminam o palco estão acesas; foram assim propositalmente deixadas, pois a mensagem havia. Oscar consegue imaginar cada momento daquela carnificina, e também pode quase perceber o calor da presença de uma hipnotizada platéia durante o mesmo drama: de prazer mórbido por tudo mais que é deixado aqui para trás para os homens poderem ler nas entrelinhas... principalmente um: Ele olha para o palco; as marcas de um cenário cada vez mais comum: o que eles tentam fazer... E o próprio policial já sente que tudo quase se torna realmente causal... como eles querem... até ver esse outro policial, detetive Ronaldo, seu colega, pai e marido, nunca perfeito... decapitado; pela primeira vez pode ver a expressão da vítima: sua cabeça fora deixada; é um aviso... assim como a mensagem: Feita com sangue, em mais de uma maneira dessa representação, dizia: “Nós avisamos. Fique longe, delegado!” Somente para Luciano. Oscar também consegue sentir o pavor no fim da loucura.


A Sua Haste Mais Curta

Menciona-se o que se quer de mais claro ao se fazer uma simples pergunta; o alívio de um homem sem escolhas parece parecer tão distante quanto as memórias do passado... O policial que vira seu colega e comandado estar morto com um nome estampado nas marcas deixadas por uma lâmina de perversão. Quando vira o corpo de Ronaldo e a mensagem no chão... a noite ainda não havia acabado... Os homens chegaram; o ambiente se agitou; amostras foram tiradas; exames foram feitos... Oscar olhava de longe mais um momento desse mundo; mais um como outros que virão... Luciano sentou ao seu lado, na platéia da sala do coro; o ambiente movimento dos técnicos ignorava a verdadeira tragédia desses outros dois, que ainda estão vivos... Oscar assistia ao palco, vazio na face... Luciano se interpreta em frases: - Eu estou me afastando, Oscar. (um olhar franco)... Houve o desaparecimento de uma garota... Não foi nenhuma das vigiadas... - Eles sabiam, Luciano... Eles sabem. - Também cheguei a essa conclusão. Estamos lidando com algo muito além do nosso controle. - Tenho certeza que você sabe disso... (um olhar desconfiado)... E o que vai acontecer comigo?... - Você será suspenso. - Sabia... - Você abandonou o seu posto, e estava restrito... - São eles, delegado... Eles estão em todo lugar... Posso sentir. (um suspiro de lamento) - Alguém do teatro falou?... (Oscar sorri ironicamente.) - Claro que não... Não tinha ninguém. Ninguém viu. Não havia ninguém aqui... Tudo estava normal... Ronaldo surgiu do nada e teve sua cabeça decepada por magia!!! (está irritado) - Não vai adiantar, Oscar... Temos de lidar como sendo isso uma nova linguagem. (um olhar de dúvida) - O que agora, Luciano?... - Agora... Mais um corpo vai aparecer... Amanhã!... E vamos enterrar, Ronaldo... Isso. Agora...

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Não chove nesse dia. Parecia mais um momento igual parado no tempo desses novos tempos de Salvador vítima da escuridão... A alma emergira sólida e a contagem de corpos fazia preencher mais os espaços do cemitério com a impenetrável tristeza das perdas desses que por aqui ainda caminham vivos. Os policiais usavam o colete da polícia civil; o preto dessas suas vestes era intensificado por muitos óculos escuros e ombreiras em luto. Olhos que não devem sofrer, mas sempre fazer vingar a justiça... Houve a salva de tiros. O caixão com os dois pedaços


de Ronaldo baixou lentamente para o interior da terra; nada dele fora exposto... somente poucos souberam do real estado do corpo. Alguém da família tornou em pratos os momentos sofridos da vida; a vida de alguém não parecia mais existir... Pois os olhos do delegado (afastado) Luciano também estavam presentes. E os do detetive (suspenso) Oscar, também... Os fatos: a van preta fora dada como roubada; havia uma queixa registrada na delegacia de roubos de carro da cidade do Rio de Janeiro... Inegável acomodação e conveniência, pois um homem importante se mostrou bom e compreensivo, apesar do aborrecimento e insinuação, a Rocha... Doutor Gouveia não parecia ser nada do que era, ou do que não era. Não foi encontrada nenhuma pista que valesse grande esforço da polícia técnica, na cena do crime: o assassinato do detetive Ronaldo. Em algumas horas outra vítima despertaria para a cidade, emergida da escuridão da alma... O raciocínio de Luciano se espantava com o vazio: talvez o tal propósito haveria se revelado... no momento em que eles se revelaram: o bilhete, a mensagem, a morte de Ronaldo. A dúvida era tão grande na mente do policial, sobre no que deveria acreditar, ou não; ou se deveria acreditar em alguma coisa... sendo ele como é... conhecendo ele o que conhece... A alma parecia superar a humanidade, e se desencavar da escuridão para extinguir a luz, através dos gritos de pavor e da dizimação da esperança. História triste, desse delegado Luciano: pois pouco se revelou desde então... Somente sente a falta de escolha.

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Imagina-se um dilacerante infortúnio da sorte, mas não é, é a vida dentro da podre escuridão: essa organização que se desfaz de qualquer noção de ética para se sobrepor a todos os outros que são contrários aos seus propósitos: só há um propósito afinal... Não seria a surpresa por toda cidade do Salvador (salvador de quem?), e também por todo país que toma o mesmo aspecto mórbido das semelhanças entre a alma e o que é considerado normal... Quando a população assiste a um corpo que fora decapitado durante a refeição da noite, e as crianças estão fazendo birra para não comerem as verduras ou o arroz feitos pela empregada pobre e evangélica: primeiro esta mulher está em seu cubículo rezando enquanto ouve o seu pastor pelo rádio AM, clamando para que o demônio deixe o corpo do homem e vá habitar as profundezas do inferno... Mas ao mesmo tempo, enquanto isso, o inferno se revela ser a imagem que é exibida na tela da TV da sala, enquanto um casal e três ou quatro filhos estão comendo o que quer que aquela mulher no quartinho tenha feito... O corpo da Débora fora encontrado, no mesmo estado e condições das outras... E ninguém liga, pois o inferno já é aqui! Luciano também está vendo televisão. Sentado, sozinho, em casa, baforando fumaça e absorvendo nicotina, de calça jeans, sem camisa... e com a identidade de um feto: nenhuma. O corpo da moça fora deixado, pendurado de cabeça para baixo e sem a cabeça e com o sexo exposto para fora da vulva, no arco de entrada do Parque de Pituaçu, em Patamares, na bela orla reformada de Salvador... Luciano se afastara oficialmente no dia seguinte à morte de Ronaldo; seus olhos perdiam qualquer brilho de quando tudo começou: seus cálculos ainda eram os mais certos... Mas não era o seu intelecto que incomodava; era a sua parte da


alma pertencente àquela escuridão... Nada do que fizera, a não ser dormir com Andréa, o tirara do poder da angústia, da culpa, da cumplicidade para com todo esse cenário de morbidez que parece engolir a cidade e o mundo... Uma parcela de culpa que era admitida por todos os seus semelhantes, pois todos, de uma maneira ou de outra, faziam parte do mesmo caminho... Porém dele surgia a pergunta sobre si mesmo, que mais o incomodava: se negligenciara as disposições corretas da investigação por conta da “chantagem”?... Ou se havia realmente procurado se infiltrar num grupo, quando na verdade gostaria de se unir a eles?... Pois sente (vê) que são eles quem vão vencer no final. A família lá-lá-lá que assiste ao noticiário enquanto janta não mais será o modelo normal de vida; os filhos lá-lá-lá terão de matar gente para sobreviver, ou então serão mortos... Luciano pensa na pequena família que Ronaldo deixou sob os cuidados da ridícula pensão que o governo paga às famílias de policiais mortos... Talvez devessem pressentir o futuro negro ao chorar a morte do homem, pois no fundo gastariam de estar descendo aquela cova, e indo para um lugar muito mais tranqüilo: o interior da terra... Onde o sangue não jorra em nome de jogos, caprichos, dinheiro ou até mesmo na crença viva da vinda do anti-cristo... E é diante dos seus apáticos e perdidos pensamentos que o cálculo se completa na mente de Luciano... Levanta-se da poltrona num pequeno salto; nela ficou a marca de horas que o policial ficaria ali, vendo TV, fumando e pensando. Vai até sua mesa de trabalho, que é a mesma onde comeria as refeições se tivesse hábitos alimentares regulares. Encontra uma folha de papel em branco e pega sua caneta no paletó, que se encontrava descansado na cadeira. Senta-se nessa última; deposita o cigarro no cinzeiro e começa a rabiscar números no papel: Foram seis vítimas no Rio de janeiro. Seis garotas deixadas aparentemente de maneira casual, mas que na verdade fora o aprendizado de um sistema... Após a morte da esposa, a Rocha e Andréa foram morar um tempo no Rio de Janeiro: Andréa lhe contara isso... Disse que o pai passava por terríveis depressões; e que os sócios até queriam que ele se aposentasse... porém com ajuda dela, ele conseguiu se recuperar, e voltar a ser a Rocha... Mas talvez essa recuperação não fosse por causa da filha afinal... e sim por razão da descoberta da psicose dentro dele: dando nomes e números às coisas; aprendendo e inventando ao mesmo tempo como trazer para a existência miserável da Terra o Diabo em pessoa... Transformada sua doença: prazer em matar, que Luciano conhece muito bem... em o místico mal maior de todo homem: o demônio. Então eles voltam para Salvador. A Rocha escolhe cuidadosamente e vagarosamente o seu grupo de seguidores: pessoas importantes que no decorrer da vida expuseram suas almas escuras e deram vazão a diversos tipos de Arpejos, como o próprio Luciano, que assim deduz; e assim consegue permanecer influente e crescentemente poderoso durante muito tempo... Sabe de coisas, conhece o sistema, conhece a lei, controla as informações, tem acesso: tentáculos que tocam a tudo e a todos... inclusive a ele próprio: Luciano... E finalmente esse estranho grupo começa a pôr em prática seu plano... Mais cálculos: Já se foram cinco vítimas. Cinco garotas de nomes idênticos aos das garotas mortas no Rio de Janeiro. Todas mortas numa disposição, agora, claramente metódica; e seguindo uma progressão numérica cuja o cálculo soma: 14 + 13 + 12 + 11 + 10 (falta a última): 60... Seis, seis e seis (x 10)... E Andréa é o último nome. A Rocha irá matar a filha em nove dias. Fechará o círculo da trindade do Demônio com o sangue da própria filha: a celebração da


perversão; a vitória do horror sobre a esperança... E Luciano não tem idéia de como detêlos... Pois sabem sobre ele... Não tem escolha... Sua escolha já foi feita. O telefone toca, e Luciano se assusta... saindo das suas tão horríveis deduções. Atende: - Pronto... - Na verdade era a própria Andréa que se identificava do outro lado da linha; uma voz que drenava de todas as forças do confuso e cansado Luciano a vontade para querer entender as coisas; queira simplesmente salvar o que poderia considerar de pessoa amada... Há muito tempo não sentia tanta tensão na cabeça por ouvir uma voz, e falar com alguém... Como explicar que tinha quase certeza absoluta que o pai dessa figura tão doce e apaixonante quanto Andréa era... não só um assassino doentio, como também o lider de um ritual mórbido e fanático... que acreditava na evocação e vinda do anti-cristo para o inferno vivo da Terra (mas é o nosso inferno). Por isso quase sorri... mas sabe que o assunto é mais sério, pois o envolvimento pessoal voltava a existir; e dessa vez o próprio Luciano estava envolto em si mesmo pelo que fizera, perseguido por todos, sem escolha e apaixonado pela “próxima vítima”... Andréa pedira para vê-lo. - É claro... - Ela soube do afastamento, da nova vítima, do detetive Ronaldo... e queria ser solidária... Mas uma parte da razão do homem não compreendia a atenção daquela pessoa... Luciano e sua tensa performance se guiavam para dentro de uma relação que começava a assustá-lo mais do que tudo: dessa vez não era o monstro da escuridão; era apenas a peça do jogo (e não era ele o jogador), assim como essa mulher... Cercados pela trama de tecidos desconhecido, ele e Andréa, eram os dois últimos ícones do que consideraria a normalidade. A linda mulher queria vê-lo... Ver-se-ão . O pai dessa mesma linda mulher planejava o seu revoltante assassinato num espetáculo de tortura e perversão. E Luciano apenas concorda, sem poder fazer haver maiores provas ou relações entre o que ele pensa como certo... e a verdade das viscerais ações da alma. Também quer ver Andréa.

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Luciano vira quando o carro de Andréa despontara pelo começo da rua. Vinha apanhálo. Lentamente ela parou o automóvel e seus olhos penetraram um desiludido Luciano; com relação a tudo que o cercava e com relação a ele próprio: segredos demais de um coração que nunca foi puro, mas que sofre do mesmo modo que outros... ao lembrar de velhas paixões mortas (detalhe: por ele), e também ao ver a nova e ardente paixão desses dias... Entrou no carro. Beijaram-se levemente; seus olhos abertos davam o tom da dúvida a respeito de um com o outro, e ambos como uma história... Margem ao tempo: não se viram, ou mesmo se falaram, desde aquela tarde... juntos até a manhã seguinte... Juntos, em silêncio, no início dessa viagem, quem estava mais presente era a apreensão: Luciano exauria-se em perdidas deduções, especulações e pensamentos; como não tendo assunto para a mulher ao lado... Não algo de confortante. Acreditava na própria teoria sobre a Rocha; e não queria, não poderia de modo algum se deixar envolver por ela... Andréa... A incógnita calada que dirigia para algum lugar desconhecido. Seu rosto tinha a atenção na estrada; mas muito dela naquele instante pertencia à situação dentro do cenário... Sua beleza


resplandecia em pequenas coisas e pequenos movimentos: o vento que soprava o cabelo negro; as pálpebras que se fechavam lentamente sob o olhar do policial; a expressão do calor e da inocência num rosto branco, pálido... calmo: um mistério apaixonante... Ela quebrou o gelo: - Que horrível o que aconteceu com o detetive, delegado. - E de súbito o rosto de Luciano mudara já tendo assunto para falar.. Horas e horas deveriam ter passado desde o momento em que entrara naquele veículo, e começara a admirar a beleza de Andréa, sem perceber... Estava fugindo o tempo todo das frustrações, da desilusão e da culpa... não vendo o óbvio... Sua expressão enfim mudara. Acordara. Não tinha idéia de para onde estava sendo levado. Somente o mundo foi por algum tempo a paixão por aquela mulher, e mais nada, e foi bom... Pois Luciano já sente como sendo uma lembrança... mais uma que tem de suportar... Na expressão de Luciano. No que viu, e no que vê. Luciano se mostra completamente desiludido... Responde gravemente: - Não sou mais delegado, advogada... - É verdade... (tenta sorrir)... Eu sinto muito por tudo isso, Luciano... Talvez meu pai possa fazer alguma coisa... - O olhar dele para ela é de extrema atenção. O que é tecido dali é muito mais do que poderia se imaginar... pois o policial continua a pensar no que deduziu... Continua a olhar: - Quem sabe... - Andréa o observa de relance; seu olhar é penetrante agora, e não apenas admirado e apaixonado. Está jogando... - Você parece cansado... - Em silêncio, Luciano apanha a carteira de cigarros... Não precisa responder. Coloca um cigarro na boca e aperta o isqueiro do carro... Nesse momento recebe o olhar de desaprovação de Andréa: - Você não vai fumar em meu carro! - Vou sim... - Seus olhares novamente se encontram, e dessa vez são cúmplices de pensamentos muito pouco morais, pois pensam um no outro e na mesma coisa... Porém o embate tem um propósito para Luciano... Click!... O isqueiro alerta estar pronto. Luciano guia a mão lentamente, enquanto Andréa o observa... Ele apanha o isqueiro e acende o cigarro. Pela primeira vez ela olha com algum desgosto... mas não diz mais nada. Luciano sentia já ter sua resposta: vencido o jogo... Fuma prazerosamente dentro do carro de Andréa. Põe o isqueiro de volta. Mais senhor de si, porém permanecendo na expressa desilusão, fala: - Aonde estamos indo afinal?

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Olhos abertos do egoísmo ao reconhecer pela angústia das verdades apresentadas o novo mundo que emerge sem ninguém ver o que há em frente de outros olhos. Luciano penetra triste numa anti-sala de algum lugar... Andréa o tinha deixado em frente de uma espécie de construção semi-nova sem janelas; já escurecido, de formas tenebrosas por tão regulares que eram: uma caixa no meio do vazio... Tinha viajado durante quase uma hora, mas o tempo fora mais uma razão da companhia: alternando, também, entre angústia e


ironia, Andréa demonstrava insegurança, por sua paixão, mas também uma forte expressão de propósito... Ao deixá-lo em frente do local seus olhos deixavam-se ver pelos de Luciano o quanto da profundidade da alma já tomava conta deles dois, e tudo ao redor... Dias tristes de vidas tristes, e que só os filhos do horror estavam realmente ajustados... E eram todos aqueles homens bem vestidos e pouco expressivos que estavam na antisala, muito mais que da última vez (naquele apartamento luxuoso), os verdadeiros adoradores do horror, criadores do medo, tentáculos da alma escura... A Rocha, o pai de Andréa, veio recebê-lo; com honras, mas sem a “alegria” do outro dia: outra pessoa muito relevante do mundo dos normais, e que compunha sua obra de arte de sangue para os olhos angustiados de Luciano... que já previa a catástrofe moral final daquele dia... com o horror se revelando enfim.. e deixando-o sem nenhuma escolha, pois inegavelmente era uma daquele mesma espécie: recorda dos gritos de horror de Ilena; da figura destruída de Frida na cama de hospital sendo um prenúncio da suicida; e a face da decepção de Carolina: a face de sua derrota ao permanecer vivo e dar espaço para que nessa cidade surjam tais monstruosas criaturas... de terno. A Rocha: - Esse é o grande momento, Luciano... Foi para isso que todos nós viemos, e finalmente você também. - Eu... - Não fale nada agora... Nós todos nos conhecemos muito bem... e poucas palavras usamos. - Era a justificativa da inexpressividade. Porém Luciano tem sua própria inexpressividade e frieza... Que marca maior da angústia e perda interior não são estes rostos sem vida. Luciano lembra que a Rocha tinha perdido a esposa antes de viajar para o Rio de Janeiro; mas também sabia ele que para tal idade as coisas já não são tão selvagens e viscerais: tal psicopatia não se gera tão rápido, a não ser por um choque realmente muito traumático do indivíduo... Pois logo... outro, e mais um, pensamento assombra Luciano... Inexoravelmente já se via como aqueles homens: “ajustado”... Mas num diferente patamar de insanidade, pois nele não há só uma representação de fanatismo... “O que eles poderiam querer comigo, além da cumplicidade da omissão?...” Todos começam a se mover na direção de uma porta dupla. A Rocha: - Vamos indo... - Luciano seguia. Tinha absoluta certeza que não testemunharia um crime; conhecia bem os metódicos cálculos da alma (Quem?)... Porém seu interior era revolvido pela apreensão: um novo tipo de angústia pela incerteza, pela falta de informação... pela culpa de ser permitido estar ali... Atravessando-se a porta dupla se revela um grande salão. Cadeiras estão dispostas regularmente em três dos quatro lados que divisão o local; na quarta parede existe uma outra entrada, com uma cortina ocultando o seu interior. Há também algum espaço vazio no centro dessas quatro paredes. Os homens, muitos deles, semelhantes em aparência e em gestos, se espalham com absoluta regularidade pelos acentos do carismático ambiente. Luciano calculara cerca de 50 homens: todos homens... Achou este fato curioso... Todo lugar tinha um aroma abafado; as cores eram predominantemente escuras: marrom, preto e algum vinho. O teto muito alto se perdia na escuridão atrás das luzes; todo local era iluminado por luzes fluorescentes indiretas: nada brilhava em toda sala: elas apenas produziam aquela fria iluminação que ressaltava a opressão confortável do ambiente... O


som de muitas pessoas era mínimo. Eles pareciam ter uma natural organização e calma, ou melhor, frieza... Luciano se familiarizou com o local por todo esse interior frio, sem enfeites; forte e cheio de segredos... como ele próprio... Sentou-se ao lado da Rocha, entre outros. O que lhe seria introduzido agora teria semelhanças e discrepâncias com a sua realidade, mas acima de tudo lhe pronunciaria a abertura de um mundo completamente novo: algo próximo ao seu obscuro interior, talvez, mas nem por isso menos assustador... Uma figura de capuz, com o rosto totalmente ocultado pela fantástica manta negra, penetra no salão através daquela entrada (a com cortina)... Logo o policial ficara curioso, desde antes, pelo conteúdo logo após aquela cortina... Esse elemento desconhecido e sobrenatural de capuz caminha até o centro, à vista de todos, e pára. Está ele aguardando um homem que se levanta de um dos acentos da platéia, e trazendo sua cadeira, senta-se novamente perto de onde a figura está... Algo de semelhante, agora irá acontecer, em Luciano, para reconhecer e recordar... Observa atentamente os dois personagens no centro, e todo resto ao redor: apenas rostos mortos; e ele é a apreensão de uma mórbida identificação... Via que... Este fora aquele um que de semelhante juventude àquele outro no caso da Rua das Acácias, na Pituba... Contavam com orgulho que o homem, agora com quase trinta anos, fora acompanhado por longo tempo em um sua atitude de elaborada, planejada e cuidadosa... cruelmente... Estes apreciadores desse novo mundo se entreolhavam sem rancor, quando se debatiam sobre suas perdurosas atuações: - Estamos nas mentes de todos eles, pois somos um só. - Falava com sonora imponência o mestre de cerimônia. Sempre de capuz; era considerado o idealizador daquela nova, porém antiga, convergência das dores da existência humana em pura carnificina... Diziam eles, que os normais deixariam de sê-lo, pois logo eles é que seriam a maioria: e estes outros primeiros seriam o sacrifício do deleite daquele que logo chega da longa jornada... Pseudo-loucura dos que vêem com clareza o que são, e o que querem continuar a ser... O “sacerdote” sem rosto contava do mais novo: - Aquele outro não pudera ser alcançado a tempo: sozinho todos terminamos por sucumbir ao desespero de não querermos reconhecer o que nós somos de mais importantes... Aquele jovem se fora, por suas próprias mãos, como deve ser: uma perda para o novo mundo que nos surge, e que nós ajudamos a construir... Porém, existe este (o sujeito continua sentado numa cadeira no centro do grupo); este que, como muitos de nós, foi consumido por uma paixão que não conheceu os limites da vontade, da realização, do sexo e da vida... Deixe-lhes contar, para aqueles que não sabem: foi num dia frio; as pessoas que regularmente estavam em sua companhia estavam reunidas: amigos tratados como tal, mas sempre indiferente ao que realmente se passava... Ela estava lá... E mais nove pessoas ao todo. Era a comemoração do dia de nascimento de uma delas. O segredo lhe ocupara a razão por tanto tempo o quanto podia se lembrar de lembrar quem era: a paixão, a dor e o sofrimento que libertam nossa consciência do que é considerado o comportamento desses pobres mortais. Ele sentara, observara e esperara... Seu grato presente ao aniversariante fora o entorpecente da razão de todos. Os sorrisos do ambiente o forçavam a ser o que não era... É um de nós. E então vinha a rajada do fogo que gera nosso poder, e o senhor dono dos nossos corações se tornou vivo dentro do camarada... Horas se passaram e aquela roda de amigos, naquela casa cheia da falsa alegria dos mortais, se fez


completamente bêbada e incapaz: o presente, a garrafa, estava completamente consumido; menos por ele que nunca o consome: líquido que nos tira do nosso verdadeiro momento de contemplação da violência... Estavam todos na sala; normais... - Luciano ouvia com certo horror e hesitação o que poderia ser facilmente reconhecido como uma fantasia, mas sabia que os rostos ao redor estão sérios de plena e convicta crença no que era dito... O total ápice da insanidade nessa vida de eterna e complexa escuridão: a alma que vive no coração de todos esses homens, e guiados por uma mente como a tal que falava: ou o ser de capuz, ou o homem sentado... ou a verdadeira Rocha que era o homem ao seu lado... Luciano não tinha outra opção além de ouvir com atenção a conclusão do fato em discurso... Lembrava do outro fato narrado, e como estava muito perto, realmente, quando aquele jovem estourou a própria cabeça. Pensa que no final das relevâncias: talvez ele mereça estar ali, pois sempre estivera onde o horror está... (De maneira inconsciente, quem aquele jovem que se matara idolatrava era ele: Luciano... e não Fernando Vainarde. E Luciano sabia disso.) -... E finalmente deixando a casa, com o gás se espalhando, e com todos já inconscientes, olhou para trás e aguardou a contemplação de sua obra de arte... A chama preparada para o momento certo; por uma mente brilhante e prodigiosa nas nossas artes; trouxe enfim o brilho da explosão... e seu rosto foi coberto pela luz do batismo com fogo e sangue o nosso ser supremo... trazendo-o para nós... Onde sempre terá o abrigo e a compreensão de seus iguais, de seus irmãos... na paciente espera do mestre... - E Luciano sabia e que mestre aquela criatura falava; e também não conseguia acreditar... estar ali: por que?... Seus pensamentos mais obscuros reafloraram ao ser capaz de conceber como fato os fatos ali descritos: verdade das mórbidas fantasias e loucuras desses homens considerados tão normais, tão influentes, presentes no dia-dia de todos, em todo lugar... A Rocha, ao seu lado, mais do que nunca, era a Rocha... e seu, agora visível, desespero importava nenhum pouco para ninguém ali: angústia solitária do homem sem escolha... Quando seu nome é pronunciado... - ... Ele nos foi trazido aqui hoje para uma devida e formal apresentação. Seu conhecimento de nós mesmos vem de um interior oposto; pois na pior das torturas tentava combater o que tinha de mais puro do seu ser... Um herói representado por um nome errado; um mártir; uma descoberta de pouco tempo que está aqui como conhecendo seu último refúgio... Nós te acolhemos, delegado Luciano... E sabemos que será grato por nossa confiança... - Era um momento de perplexidade quando Luciano olhava profundamente para aquele rosto sem face e reconhecia mil expressões do vazio; seu pasmo entendimento do que estava fazendo ali, e pertencendo a um jogo. Seu primeiro impulso fora de pular naquele centro e revelar aquele rosto à luz; desmistificar o horror com uma face humana; mas sabia realmente não ter saída para tanto nesse momento: qualquer ação sua o arruinaria, mais ainda; e considerando a influência desses sujeitos presentes (e a falta de evidências), tudo não passaria de um evento ridicularizado, passado pelas mãos de alguém sem nenhum respaldo ou razão... E se mostrasse a sua razão estaria se entregando aos mesmos chacais da lei; muitos dos quais estavam ali presentes... como a Rocha, por exemplo, ao seu lado, observando-o com atenção... assistindo na transparência de suas expressões tudo que poderia estar acontecendo até o momento final da aceitação (que é esperado ou não)... “Se é para afundar, afundarei junto com eles, e com provas!”- Reconhecia... E via se formar nele, como um perfeito alívio, um plano para ser executado mais tarde: tinha ainda oito dias.


O homem sentado no centro voltou ao seu local de origem, e o sacerdote prosseguiu a cerimônia. Pouco mais tarde ela terminou; o sacerdote desapareceu atrás da cortina; o que deu tempo a Luciano para se perceber ignorado ali... percebendo ter sido jogado no centro clímax do jogo daquelas criaturas, pois só esperavam as suas reações... e por isso o explícito desdém por sua “nova” presença... Não era como se houvesse sido admitido no grupo, mas sim admitido na manutenção de um propósito sangrento... Não era por acaso! Todos partiam. O Dr. Gouveia, a Rocha, ainda lhe falou algo; ofereceu-lhe carona, e não estranhou a recusa... Começara a caminhar para longe, enquanto os muitos outros veículos também se iam distantes... Queria voltar...

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Mais tarde estava Luciano de volta àquele local de origem. A escuridão deixava todo contorno do prédio num tom sombrio tal que a própria morte em pessoa parecia percorrer as frestas da anti-cor daquele inóspito local... Como se fosse um portal para a anti-vida do mundo sem esperanças; o inferno de viver sem razão sob o julgo das criaturas que dali de dentro tramavam e executavam suas torpes perversões contra a carne inocente da vida... Luciano entrara sem maiores reveses físicos na escuridão interior daquela escuridão exterior que era o prédio... A porta estava aberta... E por isso o policial estranhou desde o primeiro momento. Pensava também no que tinha observado daquela despreocupada ignorância de todos sobre sua presença ali antes. Talvez não fosse algo anormal, mas sem dúvida era de se desconfiar que tais criaturas tão metódicas e cuidadosos não haviam tomado nenhuma medida de segurança sobre si, presente... Pois conhecia bem os fatores e anti-regras do jogo: a alma, seu lado escuro que tem o prazer do envolvimento e da perda da inocência, em nome do desespero... sabia bem disso. Chegou ao salão onde se realizara a cerimônia. Estava frio. Cheirava a terra e madeira abafados. Ocultava-se na escuridão e no silêncio, e penetrava na direção da entrada da cortina... Seus pensamentos e imaginação não se inibiam em provocar-lhe arrepios (o ambiente era propício também): pensava em Andréa e em seu pai... O que tornava a vida daquele jurista numa tal demonstração de aversão ao que era considerado normal (imagina também sobre todos os outros)?... A vida fora boa para ele. Perdera a esposa, mas não seria razão para tanto em tal homem (a Rocha!)... Semelhante muito mais a algo do mundo inteiro que se sobrecarrega de tantas idéias sem realmente apresentar as razões para a existência... Talvez nele, e também nos outros, fosse algo de anos, da vida inteira, como o Arpejo do próprio Luciano, mas que aflorado agora... na época propícia, e com a alma convergente adequada... Luciano enxerga o sacerdote em sua frente, logo atrás da cortina, a própria figura do horror condensando toda aquela insanidade na forma do seu próprio pesadelo pessoal... seu fetiche... seu capricho... sua loucura... Luciano tem medo de pensar o que está pensando; e pensa no último nome da lista: Andréa... Em quem está pensando. Atrás da cortina outros horrores se revelam pela falta de visibilidade do que é visto; a densa escuridão domina o que parece ser uma pequena sala. Luciano puxa o isqueiro do bolso e o acende para ver melhor o que aquele cenário lhe apresenta... Existe uma pequena mesa com objetos estranhos sobre a mesma; duas cadeiras se dispõem ao redor da mesa; e


uma espécie de armário se mostra com suas duas portas ao fundo. Luciano observa as paredes e o chão e nada vê de diferente. Dentro os objetos na mesa estão papéis em branco e um copo com canetas... Luciano imagina que tipo de textos não devem ser produzidos ali naquela mesma fonte de tanto temor para o estranho que se move sob a luz da chama... da incerteza. O isqueiro se apaga. Tenta repetidamente acendê-lo novamente. A chama não vêm. Uma inesperada apreensão surge “nas costas” do policial; vê-se perdidamente assustado, e tenso, por não conseguir produzir luz naquela mórbida escuridão... E isso o rasga por dentro durante intermináveis segundos... Uma presença além da dele parecia se desgrudar da escuridão e impedir que a luz voltasse a existir... quando então... - Estava esperando você. - O isqueiro acendeu no mesmo momento da pronúncia, e o sobressalto de Luciano foi imediato para se afastar defensivamente da fonte da voz ao mesmo tempo que a iluminava no canto oposto da sala... surgida do nada... da escuridão... Olhava com pavor aquele contorno do horror do desconhecido... - Não precisa se assustar, delegado Luciano... O único verdadeiro mal que pode ser feito a você somente você mesmo pode fazer... Ficando contra nós... Um rosto escuro sem rosto, e que eram os muitos rostos do horror. Aquela criatura e aquela voz rouca e arrastada (abafada também) possuía a face, a verdadeira expressão, uma mancha negra, que era o medo em si; completamente puro; o fim, sem esperança... Luciano viu ali muitas pessoas; seu passado; sua vida; a morte viva de um mundo lá fora considerado... normal... Hesitante, falou: - O que vocês querem de mim?... - Apenas o que trás com você. - O que isso quer dizer?... - Permaneciam de pé, de frente, rosto contra escuridão viva. - Em alguns dias você saberá. - O último nome da lista... - Não há mais nada para você aqui hoje... E saiba que estamos sempre perto de você... - É... Eu sei... - O isqueiro novamente se apaga; passagens de um pesadelo entre luz e escuridão; pois o “sacerdote” se vai... voltando a fazer parte de toda aquela escuridão como antes de aparecer: um elemento dela... Acende novamente o isqueiro somente para ter certeza: foi-se... Realmente, não resta mais nada para ele aqui... Novamente caminhando pela estrada. Distante está de qualquer lugar. Nem suas roupas o protegem do frio que sente, e que vem de dentro. Uma pouca sensação do que sente completamente perdido deslizando em seus pensamentos dessa noite tão absurda quanto conseguiria conceber que seria encontrar aquela “pessoa” daquele jeito: sombras da vida, da existência tão perdida quanto os seus pensamentos nessa noite: “Sinto cometer o pior dos erros, que é o mesmo erro de toda a minha vida; a revolta dos desejos não atendidos na reflexão de uma morte quase anunciada. Tal pessoal falta de sentidos ou de respostas felizes, por pessoas comuns; aquilo de ordinário e desejável que nunca tive... mesmo por tão próximo que quisesse estar do amor, do abraço, do carinho de outra pessoa... que não essa face da morte que assombra e comanda meu caminho para o próprio holocausto da razão...” Luciano é o criminoso; é o assassino... E a alma tem razão: será dele, a haste mais curta... A escolha vital.


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As luzes se acendem naquela sala. O personagem de capuz observa o silêncio em volta, e consegue se certificar da total ausência do anterior visitante de antes. Quieto, o personagem apanha alguns dos papéis que estavam sobre a mesa; estavam escritos, porém Luciano não os percebeu: talvez o epitáfio do mundo ou do policial, mas sem importância agora... A criatura dirigi-se para o armário de duas portas... Na verdade o armário é uma porta em si, e se abre para revelar a ninguém além do dono de seu interior, uma câmara oculta. Penetra nesse outro cenário e a porta se fecha. Internamente; em tamanho se assemelha a anterior; porém não em utilidade... de ambiente... Enquanto a outra é apenas um local de espera para as reuniões... Essa... O personagem de capuz acende uma luz que ilumina amareladamente do chão para cima... Essa é a sala onde cinco pedestais se mostram sobre um longa mesa. São cinco representações da morbidez do mundo dentro dessa criatura. São cinco expressões de horror e pavor solidificadas para sempre... São As Cinco Cabeças que nunca foram encontradas; das cinco vítimas; das cinco mortes da esperanças; das cinco portas para o inferno que já foram destrancadas... Cinco rostos mortos. Cinco vidas que não mais existem. A personagem contempla as cinco monumentais representações dela própria: o horror. E são apenas cinco...


... E Justiça para todos

Cada dia é o avanço do mundo que eles constroem. Tão poucos a se considerar, mas de tantas influências sobre o ordinário que acorda pela manhã e vai trabalhar feliz... e chama o monstro de chefe, enquanto este imagina o pobre coitado em chamas infernais, com a pele descamada, com rubras chagas de dor, e ardendo em gritos de horror... ao acordar em mais uma nova manhã e se descobrir estar no verdadeiro inferno... onde sempre esteve. Faltam apenas três dias para a justiça da alma se estabelecer em seus acordes finais... Luciano se declina preso em seu lar, na certeza de ser uma peça importante no jogo das cabeças que rolam na noite escura de Salvador... Ele escreve em sua mesa; mesmo lugar das absolutas e assustadoras deduções daquela noite... Muito mais surgira naquele crepúsculo mesmo, da fé e da esperança que tinha de uma vida normal... Não tem saído de casa desde então; sente a gravidade de olhos desconhecidos recaírem sobre seus atos: o rosto negro do sacerdote lhe assombra a contemplação de qualquer rosto negro do sacerdote lhe assombra a contemplação de qualquer rosto, pois desconfia de todos... Escreve e fuma... Estaria seu telefone grampeado? Estaria realmente sendo vigiado, ou era apenas uma sugestão, inocentemente aceita, do sacerdote?... Dúvida e muito mais dos seus pensamentos sobre o futuro estavam lhe preenchendo a angústia e a solidão daqueles dias de espera.. O que Luciano escrevia a longos momentos de reflexão e silêncio era o que ele próprio poderia considerar como tudo... A necessidade de pôr para fora o mundo aterrorizante que carregava dentro de si desde o primeiro instante que o Arpejo tomou-lhe as ações e ele concedeu a morte de Ilena... há tanto tempo atrás quanto podia se lembrar que era um homem, e um policial, e um homicida... porém não sentia como uma comissão: não era essa a razão do forçado alívio de sua consciência atormentada... Como aquele jogo onde hastes são retidas por um elemento, e os outros retiram uma cada um, e o que pegar a haste mais curta é o escolhido para se sacrificar... seja em que for... Luciano não retirara a haste mais curta... Mas ela sim fora tirada para ele; escolhida e entregue em suas mãos: sem escolha... para ele... apenas o sacrifício. E assim Luciano escrevia: tudo... até chegar a noite da cerimônia e o seu encontro om o sacerdote... Revelação...

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Alguém toca na casa de Luciano. Nesses últimos dias sem sair de casa, um rapaz, sempre o mesmo, tem feito a entrega de suas comprar. O jovem chega, deixa a encomenda e segue seu caminho... Assim tem feito nos últimos três dias. O policial assiste o rapaz partir e se distanciar. Observava os arredores do seu lar nesse mais crepúsculo na direção da hora fatal... A fumaça do cigarro é carregada pelo vento que o corta janela a fora; tem estado nessa vigília há muito tempo: fazendo-se atento a tudo, mas nunca vendo coisa alguma, pois é o policial; o que Luciano é e faz procura dentro das incógnitas das escuridão a luz para elucidar o horror... Porém nesse exato momento se sente como se sempre fosse o alvo de toda a investigação; a instituição policial se assemelha a


algo longínquo em sua memória, pois sabendo que por detrás das glórias humanas haviam aquelas criaturas... e são elas que comandam essa cidade... e também o mundo... Está preso à terrível sensação de que sua vida inteira esteve exposta a este grupo, pois a identificação fora imediata... Estando tentado a se submeter ao mesmo fanatismo e loucura... por apenas uma longa fração de segundos, mas o tempo suficiente para se achar novamente perdido; peça do jogo; aquele cuja conversão seria a heróica vitória dos monstros contra a humanidade... Que humanidade?... É o que pensa Luciano, assistindo sua última esperança dobrar a esquina... com uma carta para o detetive Oscar (o que escrevia).

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Um novo crepúsculo cobre a cidade de Salvador. O momento em que rostos alegres se tornam envolvidos pela escuridão, e as expressões se deformam; pois sendo a alegria do dia queimada pelo vermelho do anoitecer, ou mesmo a preguiça dos notívagos se transformando em boemia; em ambos os momentos as deformações surgem, e é o momento quando a alma se ergue do desconhecido do ser humano e invade as mentes ou de medo... ou de prazer... Luciano se vestiu com cuidado e atenção. Carregou a pistola após limpá-la com bastante carinho; quase um ritual, pois sabia, sentia, ter de ir armado... para onde quer que fosse... Fumava novamente na janela a espera do começo... do começo do fim... A recordação que lhe vem àquela mesma janela é a espera que teve de enfrentar antes dos seus primeiros momentos de sonora loucura: o Arpejo lhe soava leve com o desejo de Ilena, e depois da chegada dela em sua casa, subjugada por ele, o barulho ensurdecedor de uma alma destruidora o fez revelar-se para si mesmo... Ilena morrera, e um pouco do Luciano de agora também morre junto com ela e com Frida... e com Carol... E talvez agora, bem próximo da realidade, com Andréa... Um carro preto estaciona em frente a sua casa... É a Rocha, sozinho. O veículo e seu interior se movem em silêncio já dentro da noite. Poucos olhares foram trocados entre os dois viajantes; as dúvidas se faziam presentes pela ausência de palavras... Cortaram muitas regiões da cidade, mas para onde estavam indo não era realmente longe; parecia ser um desígnio do jogo provocar a expectativa... Deslizavam em direção da cidade baixa, pela avenida Contorno: uma avenida que contorna a falha geológica que separa Salvador em cidade alta e cidade baixa... O rosto que Luciano observava ao seu lado no carro não parecia mais ser uma pessoa, ou a pessoa que conhecera, que lhe ensinara na Faculdade de Direito, que brincava com destreza com a lei e era a Pedra fundamental de qualquer defesa inteligente... Em que se tornaria o crime, se o representante da lei se tornava um dos seus mentores... Luciano pensa no que era ele próprio afinal nesse contexto; e por que está indo, junto com aquele senhor de respeito, também como ele próprio, para... (Luciano vê o destino)... o Mercado Modelo?... A construção é quase um vestígio dos tempos da colonização desse país. Passavam por Salvador, a entrada do Litoral, todo tipo de mercadoria e pessoas. Junto ao mar; próximo ao porto; o cheiro do oceano sempre toma todo esse local... Hoje de tão poluída que é a baia e o mar, o cheiro da água salgada se confunde com o odor do esgoto que se tornou tudo que


aqui existe... Uma representação olfativa do que realmente se transformava: as formas de vida inteligente que aqui habitam e produzem o inferno... Nessa noite sombria a cidade baixa já se faz deserta; pela sensação que causa todo esse silêncio e escuridão azulada, toda cidade parece estar deserta, vazia de seres humanos por que vala a pena lutar, e se sacrificar... Mas Luciano não quer pensar assim... E sabe que o homem ao seu lado, que sai do carro com a sombria expressão da frieza, pensa assim... Ambos contemplam a construção... Reformado várias vezes até o tempo presente, o Mercado Modelo é nesse momento um centro de comércio para turistas, onde se vendem todo tipo de coisas típicas da terra... No passado armazenava escravos negros trazidos da África para servirem de mão de obra barata para a colonização... Pensaria quão o horror também não estaria presente nos rostos desses outros seres humanos do passado, tratados como animais... E que talvez essas criaturas sempre existam no seio de onde o homem está, pois é ele próprio... estão apenas mais sofisticados, e têm o nome de “serial killers”... ao invés de escravizadores... Pois o que se faz ao se matar uma pessoa é apropriar-se da vida dela: e o que era escravidão então?... Ser humano dono de outro ser humano... Luciano duvida novamente de que seja humanidade; pensando em si próprio a cada instante. O doutor Gouveia se volta para ele: - Chegou a hora. Eles entram. As portas não estavam trancadas. Luciano observara que o posto da Polícia Militar também estava deserto; na entrada do próprio Mercado Modelo; “24 horas”; para atender ao público... E para o propósito do que quer que venha acontecer aqui nessa noite: nenhum sinal de nenhum homem de azul... Até onde iria a influência dessas criaturas?... No interior se encaminharam para a escada que dá acesso ao subsolo do prédio centenário: são as colunas de sustentação da estrutura original; descoberto há bem pouco tempo, durante a última reforma, esse subsolo, esse porão com minadouros de água do mar, era mais um espetáculo da tortuosa história do Brasil para turistas do mundo inteiro... Porém agora... Agora era o cenário de uma estranha obra de alma... Ela resiste sozinha, em cada face sem expressão... Luciano desceu os degraus para o que poderia facilmente conceber como sendo o hall de entrada do inferno: um porão centenário com cheiro de oceano e que guarda em suas paredes os gritos de dor e tristeza dos milhares de escravos que aqui estiveram nessa construção: mais um ponto para o fim da esperança: o passado do palco escolhido para o ato final dessas nomeadas criaturas do horror... Todos estavam lá. Aqueles todos rostos da outra noite... Alguns tinham os pés em água. Alguns eram iluminados, e outros eram sombras. Eram uma coisa só: a alma... Todos usavam preto. A Rocha também. E por pura coincidência, Luciano também... O sacerdote estava no centro; o rosto ocultado pelo capuz não lhe escondia a percepção da recente entrada de Luciano no ambiente... havia próximo ao sacerdote uma grande caixa de madeira; o que Luciano, ao perceber, julgava ser o conteúdo da perversão daquela noite... Apenas especulava sobre o que já imaginava... O personagem de capuz falou: - Podem trancar tudo! - Sons se sucederam, e informavam que o mundo lá fora se tornava ainda mais distante: quase um sonho... mas na verdade... aqui é que era o pesadelo... Luciano começava a temer algo: muito mais que ele próprio, a alma, e aquelas pessoas... O sacerdote fala novamente:


- Aproximem-se... Você também, delegado... - Aquela voz; aquele cenário; o que a loucura da vida se tornara para um simples policial; as perguntas... Luciano se aproxima do centro; pensa em duas coisas... e se apavora com os dois pensamentos... - Hoje... do calor desse porão... fechamos o círculo para a vinda do nosso mestre... A sexta vida extraída dos moldes da normalidade e transformada no desespero sem esperança que nos faz dominar está por ser revelada... - A personagem coloca uma das mãos sobre a caixa. O olhar fixo de Luciano lhe recai logo a sua frente; pode ver por dentro daquela monstruosa massa enegrecida as faces do horror... “Loucura...”- Pensa, porém se reconhece... E reconhece no que é assistido por aquelas faces mortas de vida e confiáveis aos olhos de todos os dias... O mundo é delas. É desse demônio... É da subvida gerada após a violência: as dores, as lágrimas, os gritos sem razão, os filhos sem pais, os pais sem filhos, o sangue que faz delirar a família durante o jantar assistindo o jornal da TV... “O mundo não pode ser assim... Não é... Eu posso pensar... Eu posso ver... E posso destruí-los também...” - E dos pensamentos velozes à ação, Luciano saca sua pistola e aponta para o sacerdote... Ninguém faz nenhum movimento... - Muito bem, delegado... - A voz começa a mudar em seus ouvidos. Luciano olha para aquela sombra e ouve a voz que vem do seu interior. Havia mudado... Sente o tremor nos seus músculos: confronta certezas e incertezas no jogo que foi feito com ele... Vive a tensão em cada segundo, e em cada nervo do corpo... O sacerdote ergue as mãos e começa a desvelar da escuridão para a luz sua verdadeira face, sua pessoal identidade, seu rosto produzido e moldado pelo horror... À medida do desvelamento Luciano enxerga o rosto de Ilena se revelando, e depois sendo o de Frida, depois o de Carol... o de Fernando Vainarde em sua eterna tristeza: o inocente cuja vida foi destruída por ele: Luciano... E finalmente o rosto do seu verdadeiro terror: o rosto de Andréa... Quem o era... A mão de Luciano hesita. Seu corpo treme. Sua percepção não o prepara tão bem aquilo... O rosto de Andréa reluzia, enquanto todos na sala se curvam para a revelação de seu rosto... Era ela afinal... Quando perdera a mãe, e foi morar no Rio de Janeiro com seu pai... Foi ela quem tudo começou por lá: matando aquelas outras seis moças. Criara tudo isso aqui então; seu pai a acompanhara; a palavra incesto surge; a quantidade de perdas em uma vida; sem razões; guiar-se por um propósito vago: destruição da esperança... Seu rosto era realmente satisfeito do que fez com a própria vida; no que acreditava (falso ou não); até onde chagara, e até onde imagina alcançar num devaneio sem proporções... Seus olhos se vêem e são um só: - Vamos lá, delegado... Faça o que veio fazer... Posso quase ouvir os pensamentos em sua cabeça de policial, mas não lhe darei mais nenhuma resposta... O policial Luciano é um sujeito inútil e rejeitado; não tem propósito... Quero o homicida... Quero o verdadeiro você que só pensa em matar, ter prazer, se vingar... - Me vingar de que, Andréa?... Que direito tenho eu nessa loucura?... No tanto que tenho já sido conivente... ao me permitir continuar... depois de tudo que fiz... - Você fez o que a alma pede, delegado... Apenas o que você mesmo deseja... Então, vingue-se! Andréa abre a tampa da caixa de madeira em um só movimento de braço, e revela o seu conteúdo para uma expressão há muito perdida; o Luciano... O que ele vê é o fim de toda


esperança que tinha em que alguém ali aparecia para acabar com aquele pesadelo: é o corpo de Oscar... morto. Luciano volta os olhos para Andréa novamente; ela segura um envelope com a mão; um envelope que Luciano conhece: - Não se preocupe... Sua carta chegou... O Ministério Público vai adorar receber uma confissão assinada do delegado homicida Luciano. - O policial abaixa a arma. Tem a sua expressão de um profundo desespero; a amargura e a angústia de uma vida inteira perdida; jogada de um lado para o outro por um mundo que se torna a sua cara: sem fontes de esperança, apenas de dor... Acha talvez ser justo: a justiça deles que aqui estão. Justiça para ele... Olha novamente para o corpo do detetive Oscar. Observa os monstros curvados em obediência a uma total demente... E olha para ela; pensa: - “Não perco mais nada... que já não perdi no momento em que matei minha primeira vítima...” - Seus olhos encontram novamente os de Andréa. Dá mais um passo a frente na direção dela. Aponta-lhe a arma, e atira no rosto da mulher que por alguns momentos lhe foi uma esperança, e agora era nada: mais um símbolo de decadência, o fim... O corpo cai para trás. Seu crânio se tornara uma bola vermelha de sangue: as pontas ocas explodem ao contato; até mesmo no corpo de Oscar suas manchas respingaram... Luciano continua a atirar no corpo de Andréa: não está matando mais uma pessoa... está consumando tudo que a alma previra... Andréa fizera um círculo a sua volta e o fechara com ela própria: acreditando no que queria acreditar... como todos esses outros que assistiram essa consumação; sem um gesto, nenhum movimento, pois seu domínio está para sempre garantido... Porém Luciano não mais se importa com coisa algum, e se volta na direção do doutor Gouveia, e também o alveja com tiros de sua pistola... Há inexpressividade em seu olhar; a angústia tão profunda do seu mundo interior, que o deixa a ponto de não se importar com mais nada, mais ninguém... Pensando: “... E justiça para todos... Filhos da mãe!..” A Rocha e outros também são mortos antes que Luciano seja agarrado e nocauteado pelos integrantes daquele cenário: para o policial: aquela história estava terminada... As portas do inferno estavam definitivamente abertas, e os ministros do demônio eram aqueles homens ali presentes: psicóticos loucos e bem vestidos, que podem fazer o que quiserem...

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O dia seguinte veio e se foi. Corpos amanheceram na cidade do Sol; muitos e muitos corpos... O detetive Oscar fora esquecido, assim como fora o detetive Ronaldo... Mais dias se foram... Junto àquelas cinco cabeças repousa o corpo de Andréa; envolto na própria escuridão que criou... e para seus seguidores... está na viva presença do Demônio... Porém o inferno ainda é aqui... Mais dias que se vão. Os homens que dominam continuam a dominar: o mundo é lar dos fortes... E eles são fortes... Outros dias se passam. Processos são reabertos. Investigações são feitas. Mais horror surge nas televisões dos lares do mundo... A verdade está em silêncio. Os donos da justiça são os homens; os homens que matam homens por prazer... Sem palavras: um delegado é condenado à prisão por homicídios qualificados em série, e com agravantes de crueldade... O sistema correcional o


irá receber... A pena é de 65 anos, mas não importa, pois o que terá Luciano de carregar para a eternidade é muito mais que simples culpa... (seus olhos ainda vêem no que o mundo está se tornando)... É a completa falta de esperança... Completa falta de esperança!

FIM


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