FenĂ´menos
Fabiano Oliveira
Fabiano V. Oliveira FenĂ´menos (livro registrado na Biblioteca Nacional)
OLIVEIRA, Fabiano Viana. Fenômenos. Salvador: Edição do Autor, 2017. 226 p. ISBN: 978-85-914103-0-9 1. Romance brasileiro. 2. Ficção Paranormal.
I A primeira vez que vi um fenômeno paranormal foi na casa de minha família em Boston, em 1970. Foi na TV. Estávamos todos sentados ao redor da TV, como sempre; vendo o noticiário sobre a guerra, como sempre; mas uma coisa nos fazia ficar mais tristes que o normal... Naquele dia havíamos recebido um telegrama do Pentágono: O carteiro que todos os dias há vinte anos nos trazia correspondência vinha andando desde o começo da rua. Suas mãos, tão profissionais, estavam suadas. Ele nos conhecia bem; nós sempre o convidávamos para Natal e Ação-de-Graças. Ele sempre recusou mas sempre teve prazer em nos atender e nos trazer as notícias de nossos parentes... Mas uma coisa o carteiro, o Sr. Langue, também conhecia bem: os telegramas oficiais do Pentágono, que se tornaram regulares na vida dos carteiros da América durante aqueles anos de Guerra do Vietnã. Entristecia o Sr.
Langue ter de levar tal notícia sobre um jovem que ele viu crescer, para sua família sempre tão gentil com ele. Os passos dele iam ficando mais pesados à medida que se aproximavam de nossa casa. O nobre carteiro não podia ler o que havia no telegrama, mas ele sabia muito bem o que havia nele... Meu irmão mais velho tinha morrido em combate, numa província vietnamita, perto do Laos, longe de todos nós... Minha mãe e minha irmã estavam abraçadas no sofá, enquanto meu pai se mantinha de pé, olhava a TV, tentando manter a imagem de forte e não chorar. Ele era um homem de cinqüenta anos que havia sido criado numa época onde a disciplina era a palavra de ordem e onde homens não choram. E eu acho que ele era quem mais sentia a perda do meu irmão Donny, Donald Tammerson Júnior. Foi o primeiro filho de meu pai, aquele que foi criado para ser um sucesso. Quando Donny se formou na academia militar como tenente e foi para o Vietnã, foi uma das poucas vezes que vi meu pai realmente feliz. Isso nunca me incomodou muito, pois papai nunca me negou atenção, mas eram
uns cinco anos a mais de convivência e somados aos outros dezesseis, eram vinte e um anos de amor que estavam pesando no rosto sempre tão firme do meu pai; e eu... Eu tinha dezesseis anos e o conceito de morte e perda ainda era muito vago para mim. Não que eu fosse alienado ou algo assim, mas eu ainda me considerava um garoto, com interesses em garotas, em meu cabelo e no Boston Celtics; pelo menos até aquele dia... Eu estava sentado na poltrona em frente da TV e mantinha um olho nela e outro na minha família, era curioso o jeito que eles reagiam a cada palavra do repórter: “soldado” - mamãe e Anne, essa é minha irmã, dezenove anos; elas aumentavam o choro; “infantaria” - meu pai dava um leve soco na mesa, quando estava perto dela; e outras reações que pareciam tanto acobertar quanto demonstrar sentimentos. Foi então, num momento em que eu olhava a TV que aconteceu... O repórter falava à frente e soldados passavam por trás dele, e foi quando eu reparei: um dos soldados parou e ficou acenando para 6
a câmera. Eu não liguei muito, mas aí eu comecei a olhar com atenção para o rapaz e então me veio... era o Donny, meu irmão. Eu me levantei como um raio e falei, apontando para tela:
- Pai, mãe... o Donny! - E a reação deles:
- Eu sei querido... Mas ele estará sempre conosco. - Não, mamãe, você não está vendo... Ele está na TV. - Cala a boca, garoto. Já há dor suficiente nessa casa. Seu irmão não é motivo para notícia. - Mas pai, não é isso. Ele está acenando. - Papai veio até mim, me empurrou de volta à poltrona e disse:
- Cale-se moleque. Não é hora de piadas.
- Mas pai... 7
- Calado! - Eu me calei; não achei que seria o momento para discussão. Na verdade eu acho que meu pai precisava “empurrar” alguém, explodir um pouco, e antes comigo do que com mamãe... Ela continuava chorando. Já minha irmã, olhava para mim com interesse: ela sabia que eu não faria aquela cena de graça. Eu; eu voltei a olhar a TV e Donny ainda estava lá, “me olhando”, não parava de acenar; então, discretamente, observando bem a minha família ao redor, eu acenei de volta para ele e finalmente, aparentemente em resposta ao meu aceno, ele parou... deu um leve sorriso e saiu da visão da TV; foi como mágica, até aquele momento eu não tinha sentido a perda de meu irmão de verdade, pois ele estava se despedindo de mim e só então ele realmente foi embora. Mas eu sei disso agora, mais de vinte anos depois, pois a partir daquele dia eu passei a perseguir e estudar cada fenômeno paranormal que conseguia achar... A visão do meu irmão havia me despertado... 8
Tarde da noite minha irmã veio ao meu quarto.
Eu ainda estava acordado e já imaginava o que ela queria... - Não precisa nem dizer. As universitárias nunca saem com colegiais... Não se preocupe, aquilo de ontem foi só um tiro no escuro. Eu nunca mais vou aparecer no seu campus, pelo menos até eu entrar lá, como aluno... - Ela olhou para mim com um sorriso cínico. Como eu estava errado... - Eu quero saber sobre o que você viu na TV. Você é meio tonto, mas não burro ou mentiroso. Nunca iria falar aquilo na frente do papai se não fosse sério. Acho que tinha sido a primeira coisa que tinha feito a sério em minha casa e minha irmã já sabia diferenciar. Imagino se ela realmente sabia o que estava falando... - Vamos lá, me conte tudo... - E eu contei... Não sei se ela acreditou ou não, que eu realmente tinha visto o Donny, mas levou a sério o fato de eu ter dito aquilo, sendo imaginação, sonho ou mentira. Eu também contei que pretendia, agora, cursar 9
parapsicologia na universidade e o espanto dela foi memorável... - HA! HA! - Ela saiu do meu quarto logo depois, dizendo que talvez me ajudasse já que agora eu tinha algum direcionamento na vida. E também outra coisa: - Você pode ir lá no campus quando quiser. Muitas das garotas de lá ficaram perguntando quem era esse diamante não lapidado, que tinha aparecido lá sem mais nem menos e depois foi embora... - Eu olhei para ela sem engolir muito aquilo mas o que tinha a perder? Eu iria para lá de qualquer jeito mesmo. E agora com um interesse a mais...
10
II
Era o dia de minha formatura. Uma bela tarde de junho nos havia abençoado, a turma de 1972. Minha família estava lá e eu sabia que meu irmão também estava. A maioria dos meus amigos gozava de mim sobre a história do Donny na tela da TV, há dois anos atrás, mas eu não ligava, eu sabia o que tinha visto e mesmo que tal fenômeno não tenha se repetido; eu sabia a direção que ia tomar na vida, coisa que meus amigos não tinham mesmo, direção na vida. De qualquer jeito, desde aquele dia em frente da TV, nenhum fenômeno havia me afetado, até agora... Eles estavam chamando os nomes para entregar os diplomas. Estava na letra “c” de Angelo Carmine, filho do dono de um açougue e que parecia que deveria estar lá, nos ganchos do pai de tanta carne que tinha. O meu é com “t”, de Tammerson, e eu sabia que iria demorar. Eu observava o público; minha mãe 11
não parava de sorrir... depois da morte de Donny, eu era o seu único filho homem, por isso... Meu pai me olhava com um pouco mais de respeito: um garoto menos garoto. E minha irmã dividia atenção entre mim e o noivo sentado ao lado; boa gente para alguém formado em direito... Até o Sr. Langue, o carteiro, estava lá; não por mim especificamente, pois ele conhecia todos aqueles rostos, de tanto tempo levando correspondências para suas casas. Eu também olhava ao redor, os meus amigos, a escola que eu estava deixando, algumas das garotas com quem havia saído nos últimos quatro anos, na verdade foram só três e uma delas era minha prima de terceiro grau. Olhava para o céu e para as árvores que nos rodeavam e pareciam nos congratular por nossa formatura... E foi então que vi: a uns trinta metros de nossa cerimônia, outra bancada de formandos e acima dela, uma faixa dizia: “Turma de 23”. Eu fiquei meio confuso; olhei para as outras pessoas e ninguém mais parecia ver aquilo. Então, um pouco mais perto, eu vi outra bancada, e nessa dizia ser a turma de 29. E depois outra, de 32 e assim surgiram diversas bancadas 12
com diversas turmas, de diversos anos, sendo a mais recente, a de 1943 e essa estava bem cheia. Eu olhei para minha irmã e ela notou a estranheza em meu olhar. Ela procurava buscar o que estava em meu olhar, mas não via nada, só a paisagem. Ela sabia que estava acontecendo de novo. Nesses dois anos ela notou o quanto eu estava interessado em assuntos paranormais e pela segunda vez ala testemunhava a minha reação diante de um fenômeno... Eu continuei olhando em todas as bancadas, à medida que a minha seguia no alfabeto, as pessoas nelas iam se levantando e sumindo; eu fiquei fascinado. Na época eu só fiquei impressionado com aquilo, mas com o tempo eu descobri que aquilo era a celebração dos momentos mais felizes dos espíritos e do mesmo modo que para nós, aquele momento era tão especial, recebendo o diploma, deixando a escola, partindo entusiasmado para vida; os espíritos também gostavam de apreciar aquilo de novo e por isso voltavam para reviver e apreciar tais momentos de felicidade e “vida”.
13
- Joseph Tammerson! - Eu fui despertado pela pronúncia de meu nome e pelo empurrão do cara atrás de mim, que agora eu não lembro quem era. Mas... era minha vez de pegar o diploma e assim que o peguei, me voltei para as outras bancadas e elas não estavam mais lá, aparentemente, no momento que eu fiz o que eles estavam fazendo, a minha visão deles tinha sumido, do mesmo modo como cada um sumia à medida que levantava. Eu imaginava se alguém mais os havia visto, mas me custava perguntar, pois eu estava a caminho da universidade e lá é que as perguntas são respondidas, pelo menos é o que eu achava. Meus amigos e minha família tinham me cumprimentado, todos se dispersavam, minha irmã ainda me olhava com curiosidade e já saindo do pátio da escola não resisti e dei uma última olhada para trás e para minha feliz surpresa... lá estavam todas as turmas, fazendo o mesmo que nós, se cumprimentando, abraçando familiares, revivendo as felicidades. Nessa mesma noite após contar a Anne sobre o que eu tinha 14
visto... dessa vez ela parecia ter acreditado em minha visão. No quarto, já na cama, olhando meu diploma, eu imaginava se um dia Donny, meu irmão, não estaria lá, naquele pátio, revivendo sua formatura e minha irmã, e até... eu...
15
III Universidade de Harvard. Eu já tinha estado naquele campus umas cem vezes desde os meus doze anos. Meu pai tinha estudado lá e dava aulas de Economia duas vezes por semana. Ele trabalhava para o estado de Providence, como Conselheiro do Tesouro, mas vivia em Boston. Ele era mais uma espécie de expert em Economia e sempre fazia trabalhos para estados, empresas e sempre dava aulas em universidades. Acho que sua rigidez como pessoa combinava com sua profissão. Minha mãe nunca fez faculdade mas sempre participava de eventos no campus universitário. Festas, feiras comunitárias ou coquetéis acompanhando papai. E Anne, minha irmã... desde que ela entrou lá há dois anos eu tenho ido sempre visitar a universidade. No começo era só para incomodá-la tentando dar em cima das amigas dela; mas depois do incidente com o Donny na TV eu passei a visitar 16
o campus com outro interesse, o departamento de parapsicologia, um dos únicos do país. Era estranho um garoto de dezessete anos freqüentando sempre um departamento de universidade tão desconhecido e até assombroso, muitos de meus amigos achavam que eu queria procurar fantasmas... Além de minha irmã, eu tive o apoio de um amigo do colégio, Ronald Freeben, infelizmente ele entrou para a faculdade de Illinois e com o tempo eu perdi o contato com ele. E também tive ajuda de um dos alunos do curso de parapsicologia, Eddie Morris. Ele me apresentou a alguns professores, alunos e a muita leitura, as quais eu absolvi inteiramente, como nunca tinha feito com nenhum outro livro. Ele ainda tinha uns dois anos para cursar e eu esperava que ele continuasse a me ajudar. Eu entrei na secretária comercial da universidade. Havia umas trinta pessoas nos guichês de reclamações, mas graças a Deus eu não tinha nenhuma. Eu me encaminhei para o gabinete de matrícula especial, onde o Sr. Jonh Maveckam me 17
esperava para os acertos finais da minha entrada na faculdade. Eu me sentei à sua frente:
- E seu pai, como vai?
- Bem, senhor.
- Bom... vejamos. Eu estou com as três cartas de recomendação e com seu currículo. Além de sua própria carta... Você tem um interesse bem específico, não é?
- Sim senhor. Parapsicologia.
- É isso. A carta do seu pai é exaltante, claro. A dos professores do curso praticamente exigem que você entre lá. E a do seu professor de física do colégio... o Sr. Duaite, é elogiosa, mas também ambígua: fala de distração até os dezesseis e super dedicação até os dezoito; coisa que seu currículo corrobora: sua média subiu de 6,5 para 9,0 nesse período. A única coisa que quero ouvir de você é o que está na sua carta, se for verdade. 18
- É claro que é, senhor. Eu admito que até os 16 eu não tinha interesse em nada importante, mas depois do que eu lhe descrevi na carta, meu interesse em fenômenos paranormais foi notório. Eu estudei muito o assunto e me ajustei aos requerimentos de Harvard... - Tudo bem, Joseph. Mas antes de oficializarmos tudo, você tem de concordar com dois dos termos da sua matrícula - o que diz respeito à bolsa, ela é total, mas você está comprometido com a universidade por cinco anos após a graduação, para serviços de pesquisa na área...
- Eu contava com isso, senhor!
- Muito bom. O outro é sobre a complementação do currículo universitário: você tem de cursar o equivalente a um semestre com matérias de outras áreas à sua escolha, já que vamos te admitir para um curso específico, temos o dever como instituição de ensino de lhe apresentar novos caminhos e idéias. 19
- Tudo bem, senhor. Não me parece má idéia. Eu agradeço a sua ajuda e confiança. - Ótimo. Agora você assina aqui... - Eu assinei o papel, apertei a mão do homem e me retirei. Desde o dia de minha formatura eu não me sentia tão bem. Eu tinha sido aceito na mais importante universidade do país e ia estudar o que queria. Eu tinha tido muita ajuda: papai, Anne, Eddie, os professores e até o Sr. Maveckam; mas agora eu estava realmente dentro da instituição, não só fisicamente... Eu passei novamente pelos guichês e eles continuavam cheios. Eu saí do prédio e vi aquele lindo céu azul de agosto, não sei porque, sentia uma imensa vontade de agradecer ao meu irmão por aquele dia, afinal se ele não tivesse aparecido na tela da TV há dois anos, eu nunca teria entrado para Harvard, talvez para nenhuma universidade... Naquele mesmo dia eu decidi ir no cemitério dos veteranos, para ver o Donny...
20
IV Ainda faltavam uns dois quilômetros para eu chegar lá, mas mesmo de tão longe eu podia ver o tapete verde e branco do Oales Park. Era o cemitério dos veteranos que recebia soldados desde os tempos da revolução, mas parecia que só agora tinha ficado tão lotado com os americanos mortos no Vietnã. Entre eles meu irmão. Eu estacionei meu carro. Até onde a minha vista alcançava eu podia ver aquelas pequenas cruzes brancas, muitas delas sem nome, mas todas cheias de orgulho e honra. Eu caminhava por entre aquelas cruzes, pisando naquela grama verdinha, que brilhava na luz do sol. Não havia muita gente naquele dia, mas sempre tinha alguém, era uma lei de proporção: tantos mortos, tantos vivos para lamentar... Eu resolvi tirar o sapato para sentir a grama sob meus pés. 21
Andei devagar até chegar ao túmulo de meu irmão. Desde sua morte não fui lá muitas vezes, pois sabia que ele sempre estava perto, mas naquele lugar eu podia contar com certa paz para pensar nele... - Oi, Donny... Eu entrei para Harvard... A tradição da família foi mantida...mas eu acredito que você já saiba disso... - Eu fiquei falando besteiras lá, “sozinho”, por uns cinco minutos. Agradeci a ele umas vinte vezes por ter aberto o caminho sobre o que eu deveria fazer da vida. Falei para ele sobre o pau que a gente estava levando dos “comunistas” lá no Vietnã, dizendo que se ele ainda estivesse lá estaríamos vencendo. Contei novamente sobre o casamento de Anne, que seria no próximo verão, quando o Wayne estivesse estabelecido como advogado e ela estivesse mais próxima da formatura. E contei pela décima vez, mais para mim do que para ele, que o que fez ele aparecer na tela da TV há dois anos foi uma reação psíquica sofrida por pessoas que morrem longe de entes muito chegados, nós. Ele, ou melhor, 22
seu espírito consciente tinha necessidade de expressar saudades a alguém próximo, no caso, eu. Nos livros que eu li não se explicava porque ele escolheu a mim ao invés de qualquer outra pessoa da família, havia muitas referências religiosas e poucas científicas, mas parece que eu fui o único com tal capacidade. E com respeito a ter sido na TV, há referências com relação a impulsos elétricos gerados por espectros extra dimensionais, mas tudo muito acadêmico... E nesse posto colóquio de minha parte, que num dado momento de silêncio eu ouvi alguém gritando... Eu me virei e não vi ninguém. Então eu ouvi outro grito, esse mais próximo... E novamente não vi ninguém. De repente muitos gritos juntos começaram a entrar pelo meu ouvido. Eram tristes, revezados entre agudos e graves; a melancolia dos gritos parecia começar a me afetar, me deixando também triste. Eu não iria suportar aquilo por muito tempo... Eu peguei meus sapatos e dei uma olhada para o túmulo de Donny, me despedindo. Comecei a andar em direção ao carro, mas o caminho parecia mais longo na volta. 23
Os gritos de lamento vinham em ondas, era como num jogo dos Celtics, só que muito tristes. Eu cheguei ao carro; estava ofegante, os gritos estavam parando, mas eu ainda os sentia. Calcei meus sapatos e me encostei no carro alguns minutos para descansar. Com o tempo os gritos diminuíram até desaparecerem, mas uma sensação parecia com a que eu tive após acenar para meu irmão na TV, uma sensação de perda, havia me tomado... Eu tinha acabado de passar por outro fenômeno paranormal e esse tinha sido violento para minha mente, pois era muita infelicidade sendo partilhada por uma pessoa só. Hoje eu sei que todas aquelas vozes eram de almas tristes querendo alguém que as ouvisse. Vidas perdidas fora do tempo, como é comum em guerras, que precisavam, como meu irmão tinha precisado, se despedir da vida de uma maneira mais suave. Infelizmente eram almas tristes demais para um rapaz de 18 anos dar conta; o resto daquela semana eu passei muito triste e sozinho, só contei o que tinha acontecido à minha irmã. Mas o meu interesse por parapsicologia só fez aumentar com o ocorrido e agora eu tinha o mundo acadêmico 24
ao meu lado para estudar e ajudar esse mundo tรฃo desconhecido, e que na verdade estรก dentro de cada um de nรณs...
25
V Eu levantei de manha com o coração acelerado. Não tinha realmente dormido direito, mas ao despertador tocar eu pulei da cama como se ela tivesse pregos. Eu vesti uma roupa a qual eu já tinha escolhido há um mês atrás. Tomei à mão um caderno todo especial com o nome de Harvard gravado nele, eu o tinha comprado no próprio campus. Dei uma última olhada no espelho e saí do quarto. Chegando à cozinha:
- Bom dia, Joe.
- Oi, mãe.
- Quer comer?
- Eu acho que não... - Realmente, naquela manha eu não conseguiria engolir nada. Meu pai entrou: 26
- Bom dia. Joseph, você já decidiu que disciplinas extras vai pegar? - Não, pai. Acho que ainda tenho muito tempo para decidir. O que eu quero agora e começar logo o meu curso... Cadê Anne? - Ah... Você estava esperando ela? Ela só tem aulas de manha em 3 dias da semana. Ela vai acordar mais tarde e encontrar Wayne. - E ela nem pra me dizer... Eu já estou indo então. - Eu me levantei e me despedi dos dois, mas antes de sair:
- Joseph.
- Sim, pai. - Ele olhou diretamente para mim, era raro ele fazer isso de manha quando sempre estava lendo o jornal...
- Boa sorte! - Mamãe olhou para mim sorrindo. 27
Eu agradeci e saí. Eu nunca admitiria isso para ele, mas aquilo me deu uma profunda tranqüilidade naquele início de dia tão importante, era o meu primeiro dia de aula em Harvard... Estava sentado na primeira fila da aula de Física Elementar 101. Era engraçado, todos os meus amigos de colégio que entraram para universidade fugiram de matérias como física ou matemática no começo de seus cursos; mas minha curiosidade por fenômenos paranormais me fazia querer saber o mais depressa possível os fundamentos da vida material, para poder depois entender com mais clareza coisas simples, como o aparecimento de Donny na tela da TV, coisa que hoje me parece tão clara. Eu observava o tipo de pessoas que iam entrando na sala. Imaginava quantos daqueles realmente sabiam o que estavam fazendo naquela sala, talvez dois. Não pude deixar de notar que a turma era um pouco pobre de garotas bonitas, mas eu tentei manter esse pensamento longe de minha mente, pelo menos 28
por enquanto. Essa disciplina servia para muitas e diferentes áreas, por isso eu estava esperando uma classe bem cheia, mas no final não foi tanta gente quanto eu imaginava. Parecia que na universidade, também, as pessoas fugiam de física... Uma mão tocou no meu ombro. Eu me virei rápido e para minha alegria era o Eddie... Finalmente dentro, não é Sr. Tammerson? - Eu sorri. - Oi Eddie. É bom ver uma cara conhecida. Todo mundo aqui é tão estranho pra mim. Olha aquele cara ali. - Eu apontei para um sujeito no fundo da sala. - Ele chegou antes de mim e está daquele jeito até agora. - O sujeito estava dormindo profundamente. - Aquele é o Robert Trigger. É a terceira vez que ele repete a 101.... Na minha opinião ele tá é esperando pra ver que carreira ele quer mesmo seguir. - Ambos rimos... 29
- Eu vim aqui te desejar boa sorte. O professor disso é desconhecido pra você mais é gente boa. Ele deve perguntar qual é o seu curso e provavelmente, se você disser parapsicologia, ele vai te perguntar: “Você já viu um fantasma?” Então, você decide o que vai dizer pra ele.
- O que você disse?
- Que não tinha decidido ainda.
- E ele?
- Ele?! Ele disse: “A aula das boazudas é a de poesia!” - Eu olhei meio desconcertado para ele e imaginei que, a falta de garotas bonitas naquela matéria era um padrão permanente... Ele: - Relaxe... eu só tava brincando. - Nós rimos novamente, dessa vez por mais tempo.
30
- Escuta, eu tenho que ir pra minha aula. Mais tarde eu encontro você. Eu estou com a lista de palestrantes desse mês, e eu quero te passar... Têm dois parapsicólogos alemães que dizem que conseguiram registrar um fenômeno...
- De que tipo?
- Eu não sei. Só tem o nome dos caras e a data, o resto é conversa de corredor. - Certo. Tudo bem. Depois eu vejo com você. - Eddie se despediu e saiu, antes ele ainda deu uma cutucada no tal do Robert Trigger, que mal se abalou. Eu me virei e me sentei de novo. O relógio da parede já marcava oito horas, o professor já devia estar chegando.... Mas a visita de Eddie havia posto outro pensamento em minha mente: registrar fenômenos paranormais, isso era uma coisa que realmente me interessava. Como eu havia previsto, a universidade podia ser a porta que eu precisava para entender aqueles fenômenos, aos quais eu presenciava. A visita 31
de Eddie tinha me relaxado, também. Eu sabia que tinha amigos me apoiando... e agora eu tinha pela frente o Sr.... - Sr. Horácio Hennamar. Física Elementar 101. Sejam bem vindos ao mundo maravilhoso do eletrochoque e da gravidade, dentre outras belezas da natureza. Alguém acorde o Sr. Trigger, esse semestre ele passa ou eu me demito. - Era um homem de presença e bom humor. De certo não seria uma tortura o semestre com ele. Eddie estava certo. - Vamos começar com o mais simples: Cinética. Por que as coisas se mexem? - Eu mal podia esperar pelos outros cinco...
32
VI Eu andava pelo campus. Conhecia-o muito bem. Já tinha tido quatro das minhas seis aulas e estava a caminho do refeitório central. Não comia nada desde as nove, da noite anterior e após o nervosismo passar a fome vinha com força. Queria almoçar, mas também torcia encontrar Eddie novamente, só tinha falado com estranhos o dia inteiro... O campus da Universidade de Harvard é uma verdadeira cidade dentro da cidade, com administração e policia próprios. E o refeitório central fazia jus a essa grandiosidade. Minhas esperanças de achar Eddie naquele mundo de gente eram poucas. Eu dei uma longa volta por todo refeitório para ver se o encontrava, mas sem sorte e a minha fome começava a aumentar. Resolvi comer então... Comprei a comida no self-service: parecia tão horrível quanto a do colégio mas com a fome que estava comeria 33
qualquer coisa. Com a bandeja na mão procurava um lugar para sentar. No colégio eu tinha de escolher com quais amigos sentar para comer, aqui eu rezava para achar qualquer um que parecesse amigável, mas infelizmente todos pareciam iguais, eu me senti um pouco só... Sentei-me no primeiro lugar vazio que achei. Todos estavam comendo e lendo ao mesmo tempo; parecia que a lenda de que em Harvard todo mundo só faz estudar era verdade. Eu não tinha nada para ler e não tive coragem de puxar assunto com ninguém, então me reservei a comer e pensar... Das aulas que tinha tido naquele dia a que eu gostei mais foi a de História da Parapsicologia. Basicamente dizia que apesar do nome semelhante a Psicologia, a ligação não era muito forte. A parapsicologia é uma herança das continuas tentativas humanas de se racionalizar o que não é explicável. Daí vem até uma das evoluções da psicologia com a descoberta de doenças como a esquizofrenia, histeria 34
e paranóia. Era tudo meio vago. Tentar ligar uma coisa considerada superstição ou religião à ciência acadêmica parecia uma tarefa quase impossível. Para mim que tive a sorte de presenciar tais fenômenos na ausência de superstição, era algo de elementar, parte natural da vida, como a economia era para meu pai. Mas eu ainda tinha um longo caminho para pecorrer. Terminei minha refeição. Boa parte das pessoas que estavam na minha mesa já tinham saído. Eu ainda tinha meia hora antes da minha próxima aula, às 14 horas. Olhei para os lados para ver se Eddie havia aparecido, mas não havia sinal dele. Comecei a rever o que tinha anotado nas aulas, mas era um tanto inútil, tudo estava em minha cabeça ainda. E então:
- Você é o irmão de Anne Tammerson, não é?
- O quê?... Sim sou.
- Oi. Eu sou Betsy Monroe. Eu fui colega de sua irmã no ano passado em Teoria de Comunicação. 35
- Oi. Desculpe, nós fomos apresentados? É que eu não me lembro de você. - Ah, não. Eu me lembro de você porque... Eu posso me sentar?
- Claro!
- ... bom, porque sua irmã disse que você tinha interesse em fenômenos paranormais e eu...
- Você já viu algum?!
- Eu não sei... Nunca contei isso para ninguém... Mas de onde eu vim, da Georgia... Eu vi na fazenda de minha família, quando eu tinha 15 anos, uma tempestade luminosa onde eu juro que podia ver rostos sendo desenhados no céu. Eu fiquei morta de medo e hoje ainda me arrepio quando lembro das expressões do céu. - Eu olhei com curiosidade para aquela simpática moça que me salvou de um resto de hora de almoço muito tedioso, e pensava se o que ela me 36
contava era realmente um fenômeno ou a imaginação de uma moça do interior; do jeito que ela contava, pelo menos, parecia ser verdade. Eu continuei a ouvir a história. Não pude deixar de notar que ela era bonita e sua atenção me fazia sentir bem... - Bom, Betsy, eu não sou um especialista... ainda. Mas antes de entrar aqui eu li muito sobre o assunto e esse fenômeno parece um, descrito como “Tempestade das Almas”. Seria onde forças selvagens da natureza, no caso relâmpagos, se cruzam com forças inquietas do mundo espiritual; como se fosse uma porta para a manifestação. - Ela me olhava de cima a baixo o tempo todo, muito séria. Ela parecia aquele tipo de pessoa inquieta que está sempre pensando em várias coisas ao mesmo tempo. Eu admito que fiquei até assustado com as abordagens dela sobre qualquer coisa... - E então... você quer sair na sexta pra discutir mais sobre isso? - A comida parecia ter se virado no meu estômago após aquela pergunta tão direta. 37
- Eu... - Uma mão salvadora toca no meu ombro. Era o Eddie...
- Oi, Joe. Desculpe eu não aparecer antes.
- Tudo bem. Você chegou na hora. - Ele não sabia de como...
- Essa é Betsy Monroe... Esse é Eddie Morris.
- Prazer... Se quiser eu te procuro mais tarde...
- Que isso! O Joseph aqui só tem que me dizer uma coisa... Não é? - Eu olhei para ela. Eddie olhava para mim, eu sentia que ele estava louco para fazer uma piada. mas eu não tive como escapar... - Sim, é claro. Ligue pra minha casa para acertar tudo. 38
- Certo. Tchauzinho... Tchau, Eddie.
- Tchau. - Ela saiu sob o nosso olhar... Eddie se virou e...
- Joe... No primeiro dia!
- Deus! Ela é amiga de minha irmã. Isso tá me cheirando a trote...
- Sei...
- Esquece. Cadê a lista dos palestrantes que você tinha dito? - Ah... Tá aqui. - Ele me deu uma lista de oito palestrante que iam se apresentar no departamento de parapsicologia, naquele mês. A maioria era os próprios professores de lá querendo promover seus livros, mas os dois alemães que Eddie tinha mencionado de manha me despertaram muito interesse. Eram os doutores Hauptmann e Handrevem, ambos da universidade de Frankfurt. A idéia de registrar um 39
fenômeno paranormal me atraia muito. Se eu pudesse ter mostrado aos meus pais, o meu irmão acenando na tela da TV, eles teriam ficado muito felizes de saber que ele estava em paz...
- E então... O que você achou de suas aulas?
- Ah... foram boas. Você tinha razão, o professor de física é mesmo boa gente. - Nós conversamos alguns minutos ainda no refeitório, depois fomos andando para nossas próximas aulas. Eddie era um cara falante e muito prestativo. Ele me ajudou muito nas primeiras semanas de universidade. Mas naquele dia ele não agüentou e curtiu com a minha cara umas duas vezes mais por causa daquela maluca da Betsy. E afinal, não foi trote. Eu sai com ela, falamos sobre fenômenos e no fim ficamos amigos. Foi interessante... para uma primeira semana em Harvard.
40
VII Jantar de sexta-feira. Após duas semanas de aula. Papai tinha chegado de uma viagem de 3 dias a New Haven. Ele foi dar uma palestra em Yale. Era uma das poucas vezes que tínhamos a oportunidade de comer todos juntos. Mamãe, como sempre, deixava um lugar vago em homenagem a Donny. Algumas vezes eu olhava fixamente para cadeira esperando que talvez ele aparecesse de novo, mas isso nunca aconteceu... Minha irmã foi a última a sentar à mesa: - E aí garanhão... Com quem vai sair hoje? Eu parei meu garfo no meio do caminho para a boca. Olhei para papai mas ele parecia não ter ouvido a pergunta.
- O que você quer dizer?
- Eu soube que você saiu com Betsy Monroe sexta passada, então eu achei que talvez você já 41
tenha outra companhia para hoje. - Papai continuava a parecer que não ouvia nada... O tom de ironia de Anne me deixava nervoso, mas tentei ser político...
- Ela me convidou porque estava interessada
em saber sobre fenômenos paranormais. - Papai deu uma olhada para mamãe...
- E você já é algum especialista por acaso?
- Não, mas sou muito interessado. - Papai
e mamãe ainda comiam calados, enquanto Anne começava a fazer seu prato:
- Mas você vai sair hoje. Eu vi a roupa em cima
de sua cama. - Papai olhou para mim.
- Deus!... Eu vou a um palestra na faculdade. O
Eddie me chamou. - Finalmente:
- Sobre o que é a palestra, Joseph? - Mesmo tendo calado o escárnio de Anne, eu preferia que papai não tivesse feito essa pergunta: 42
- Bom pai... É sobre paranormalidade.
- Isso não diz muito. - E eu não queria dizer nada mesmo. Como explicar a um cético como meu pai que eu ia ver dois alemães falarem que podiam fotografar almas do além... - Eu não sei direito pai. Eu estou indo para descobrir. Eddie disse que os palestrantes têm livros publicados mas são em alemão. - Ah, certo. Espero que goste. - Papai nunca interferiu nas escolhas de nenhum de nós. Ele apoiou o Donny, ao entrar na academia militar. A Anne, ao escolher Serviço Social na universidade. E a mim, mas no meu caso eu sentia que ele tinha uma pergunta entalada na garganta: “Para que serve parapsicologia? “. Minha resposta não seria muito clara ou mesmo lúcida na visão dele, mas eu sabia que ele nunca iria perguntar; só iria me apoiar até o fim... Ficamos em silêncio a maior parte do resto do jantar e depois da sobremesa, na verdade durante, Wayne chegou para 43
pegar Anne. Era engraçado como aquele sujeito mudava o estado da casa. Enquanto eu me vestia para sair ouvia ele e papai conversando: eram duas máquinas de falar de política e economia. Eu não tinha ciúmes, meu pai merecia ter alguém por perto que se interessasse pelas mesmas coisas que ele. Anne parecia se incomodar um pouco pois sempre demoravam de sair quando eles começavam a conversar. Mas apesar de tudo, eu acho que Wayne preenchia um vazio, deixado pela ausência de Donny... Eu me despedi de todos... Anne não resistiu à piada: - Palestra chique essa, não? - Eu olhei para ela antes de sair e disse: - Eu espero que eles comecem a falar sobre Nixon! - Nixon! - Papai falou e Anne virou para mim com cara de quem não estava tão irônica quanto antes... E eu: 44
- Tenha uma boa noite, irmã. - Eu saí. Sabia que ela ia ter de agüentar mais uns vinte minutos de conversa agora e isso era o suficiente para ela aprender a manter os comentários desdenhosos para os outros... Entrei no carro com um largo sorriso de satisfação e um pouco de pena... Mas logo voltei minha mente para o assunto da palestra. Era verdade que os dois palestrantes só tinham publicado livros em alemão, mas Eddie me conseguiu alguns resumos traduzidos de um dos professores dele. O método que os dois cientistas sugeriam para se fotografar um espectro era semelhante a fotografia normal; se diferenciava no modo como o filme captava uma freqüência de luz diferente da usada para matéria normal, era milhares de vezes mais rápida. Era uma coisa meio difícil de entender mas eu acho que é uma coisa semelhante ao que ocorreu na TV quando Donny apareceu: uma corrente elétrica gerada pela passagem extra dimensional. Ou como os relâmpagos na fazenda da Betsy. Eu mal podia esperar para ouvir o que aqueles homens tinham a dizer...
45
O auditório do departamento de física estava lotado. O interesse em parapsicologia não era muito grande, mas todos os interessados pareciam estar lá naquela noite. Da porta eu localizei Eddie, que acenou para mim. Ele estava rodeado de amigos. Como era um sujeito alegre e falante vivia rodeado de gente, mas nunca negava atenção a um amigo. Ambos driblamos um monte de gente para nos encontrarmos no meio do auditório: - Oi, Joe. Eu estava esperando você chegar. Eu tenho uma ótima pra você.
- O que é? - Não tinha idéia do que esperar.
- Eles vão distribuir prospectos para um teste que vai levar seis alunos daqui para um curso de férias em Frankfurt, no fim desse ano. - Meus olhos brilharam. Era uma chance de conhecer o lugar onde o filósofo alemão Hegel teve a experiência paranormal que mudou sua vida, assim como aconteceu comigo...
46
- E o que vai haver nesses testes?
- Sei lá. Conhecimentos gerais do outro mundo!
- Eddie... É sério. Eu gostaria muito de ir pra lá.
- Eu sei. Por isso eu estou te contando. O pessoal não tem muita consideração com calouros. Provavelmente você só saberia disso no dia do teste. - Ele estava certo...
- Eu agradeço. E você não vai tentar?
- Acho que não. Alemanha não é muito meu ponto. E de qualquer jeito eu sempre acabo pendurado em alguma coisa no final do semestre. - Eu sorri diante da maneira que ele encarava as coisas... - Vem. Vamos nos sentar. Quando eles distribuírem os prospectos eu pego um pra você.
- Certo. - Nós caminhamos até os assentos... 47
- Ei, Joe. Olha só quem tá aqui. - Eu me virei e era Betsy. Eu acenei para ela e ela de volta para mim. Ficamos amigos, mas Eddie era como Anne: não deixava passar uma. Nós nos sentamos e esperamos que a palestra começasse. Eu e Eddie estávamos bem na frente, na terceira fila, junto com outros alunos mais adiantados. Os poucos alunos de turmas minhas que eu vi na frente, também estavam com veteranos. Imagino que o resto estava lá no fundo. Pobres de nós calouros. A primeira fila estava totalmente ocupada pelos professores dos departamentos de parapsicologia, psicologia e física. Eles provavelmente queriam mostrar o quanto eram interessados e inteirados com o assunto, mas que eu sabia, nenhum deles tinha presenciado qualquer fenômeno como eu e hoje eu acredito que é a única coisa que realmente tira as dúvidas de qualquer acadêmico. Como os físicos do mundo inteiro quando foi detonada a primeira bomba atômica. Nada melhor para comprovar uma teoria do que o testemunho de sua confirmação. 48
Os dois cientistas alemães finalmente chegaram e começaram a palestra. Nós tivemos que usar tradutores porque eles falaram em alemão. De certo modo foi frustrante para mim; eles deram um curso completo de fotografia e exibiram alguns “slides” de algumas manchas brancas, que, tentavam convencer que eram espectros. Se eram ou não eu não sei, mas muita gente saiu de lá sem engolir a história de registrar fenômenos paranormais. Para mim a parte técnica era super elementar, mas acho que os próprios cientistas não sabiam direito o que estavam fazendo. Mas de qualquer jeito foi material para se pensar no futuro. No final eles deram os prospectos do teste para os alunos acima do quarto semestre, como Eddie e ele me deu o dele. Aquilo foi o melhor ganho da noite. Eu agora tinha que me preparar, pois o teste seria em dois meses e eu iria concorrer até com formandos... Eu agradeci de novo a Eddie enquanto nós saiamos. Na entrada do auditório, cumprimentei alguns dos professores que tinham me ajudado a entrar na universidade e em seguida fui para casa; esse tempo todo eu não podia parar de pensar de como tudo aquilo 49
dito e estudado por aquelas pessoas tão estudadas e rígidas era tão familiar para mim, um garoto de 18 anos. O que eles tratavam como teoria eu via como prática. Imagino quantas pessoas no mundo têm esse poder. Eu nunca me atrevi a me sentir superior a nenhuma dessas pessoas, mas a verdade é que com o despertar da visão do meu irmão, muita coisa estava por vir...
50
VIII Eu estava sentado num banco, num dos pátios do campus da universidade. Nas três semanas anteriores eu só tinha me ocupado em estudar para o teste da escola de Frankfurt. A quantidade de assuntos referidos para o teste era incrível, imaginava se tudo aquilo seria realmente cobrado. Sentia-me um pouco só. Fazia dias que não via Eddie; ele me disse que estaria muito ocupado por algumas semanas... Acho que ele tinha razão em não querer fazer o teste, não teria tempo algum para estudar... Nesses quase três meses, não tinha feito nenhuma grande amizade. Somente a Betsy, que raramente eu via e alguns colegas de algumas aulas. Realmente Harvard fazia as pessoas se dedicarem muito aos estudos... Mesmo eu, neste tempo que fiquei estudando, só comecei a sentir alguma solidão após um mês e meio de estudo contínuo, revezando entre o teste e os assuntos da própria faculdade. Imagino 51
que todos se sentiam daquele jeito de vez em quando. Mas agora que tudo estava tão fixo em minha mente, sem ter mais o que ler, eu realmente sentia um peso no coração. Acho que era algo semelhante ao que os espíritos em Oales Park estavam sentindo no dia que fui visitar meu irmão: Solidão, a necessidade de se dividir o que se está sentindo. Graças a Deus eu tive escolha: - Joseph! - Eu tinha olhado para ela algumas vezes na sala. Ela era linda: tinha cabelos negros longos e um rosto incrível e único. Só tinha trocado umas poucas palavras com ela em sala... Eu nunca imaginaria que um dia ela iria falar comigo...
- Sou eu, Ranhe. De sua clas...
- Ah... eu sei. Desculpe. Eu estava com o pensamento distante. - Imagino. Eu vinha andando pelo gramado e reparei como você estava distraído. Ou melhor, concentrado. 52
- É. Eu estava pensando no teste que vou fazer nesse fim-de-semana. - Teste? É para algum emprego? - Eddie estava completamente certo: os calouros nem sonhavam com a existência desse teste...
- Não. É para um curso de férias na Alemanha.
- Nossa, que legal... - Ela se senta no banco, ao meu lado... - Com certeza você vai passar. - Minha vaidade começava a inflar...
- Por que você diz isso?
- Você tá brincando! Todos com quem eu fala chamam você de o aluno cátedra... já quase um professor. - Não fazia idéia de que era tão famoso.
53
- Deus! Eu só tenho interesse pelo assunto. Não sou melhor que ninguém... - Não foi o que eu soube. Me disseram que você conquistou uma veterana no primeiro dia de aula. - “Eddie. Seu desgraçado “. Foi o que me veio a cabeça quando ela disse aquilo. Mas já que o serviço sujo tinha sido feito, o melhor que eu podia fazer era completá-lo... - Bom. Eu espero ter esse mesmo efeito sobre calouras... - Ela me olhou e deu um sorriso. Eu segui e fiz o mesmo. Nunca fui um grande conquistador, mas seria bom ter alguém como Ranhe por perto... Nós conversamos mais um pouco. Ela disse que não tinha muita certeza do que queria fazer na universidade, mas que ainda tinha tempo para decidir. Insistiu para que eu contasse o motivo do meu interesse em parapsicologia, mas eu estava hesitante. Alguém que estuda muito em Harvard é normal, já alguém com experiências paranormais podia ser considerado estranho. Ela era totalmente diferente da Betsy: tinha 54
uma conversa pausada, prestava atenção ao que eu dizia e se inteirava sobre o que estava conversando. Na verdade eu estava a uns bons quatro meses sem tocar em nenhuma garota que me atraísse e Ranhe estava começando a me atrair, muito... - E então Joseph... você vai me contar ou não qual o motivo do seu interesse em fenômenos paranormais? - Eu pensei em pedir a ela para me chamar de Joe como todo mundo, menos papai; mas o jeito que ela falava Joseph; era com um sotaque novaiorquino magnífico; me deixava muito afetado, então eu deixei... - Joseph? - Eu não conseguia parar de olhar para ela... - Vamos fazer o seguinte... Se você confiar o suficiente em mim para sair comigo, eu confio o suficiente em você para contar. - Ela me deu o mesmo olhar de antes:
55
- Barganha esperta a sua, não?
- Se a gente não tenta, não consegue.
- Tudo bem. Eu vou olhar meus horários e hoje a noite eu te ligo para responder... Escreva aqui o número. - Eu escrevi o número na última folha do caderno dela e disse ao devolver: - Eu só não posso sexta, porque o teste é sábado de manha. - Certo. Eu já vou. E não se preocupe, aposto que você vai ser o primeiro colocado. - Eu olhei para ela com um sorriso lascivo e ela entendeu: - No teste, bobalhão! - Ela me beijou o rosto e foi embora. Eu observei ela se afastar. Não tinha muita fé naquilo, mas se eu conseguisse uma amiga como aquela já seria uma conquista. Na verdade eu acho que já tinha conseguido... Peguei meus livros, um a um, eu lembrava o que havia estudado neles só em vê-los. Caminhava em direção do carro e sentia 56
uma leveza no espírito. Comecei a imaginar se os espíritos no Oales Park se sentiriam assim se tivessem alguém que os desse atenção e afeto... Fiquei tentado a voltar lá, mas a idéia de sentir aquela tristeza tão profunda de novo me dava até medo, talvez algum dia eu pudesse ajudá-los, mas não agora... Dirigia o carro de volta para casa; era umas cinco da tarde. O crepúsculo do fim de verão era o mais bonito da costa leste, é quando o calor do verão começa a ceder ao frio do outono. Lembrava do fenômeno que Betsy havia descrito em sua fazenda, a “Tempestade de Almas”. Talvez aquele crepúsculo também fosse um fenômeno “paranormal”, só que ao ser tão facilmente visto, e transmitindo tanta paz, as pessoas o ignorem; talvez fosse a “Calmaria das Almas”, mas paz e calma não têm interesse para homens comuns; quem sabe um dia... todas as almas se acalmem... A noite, durante o jantar, eu não conseguia evitar de pensar na hora em que Ranhe iria ligar. Papai 57
e mamãe se detiam em alguns assuntos caseiros, e Anne... ela estava esperando a deixa para a ferroada: - Com quem você conversou hoje a tarde, grande J.? - De repente eu era o farol da família. Todos me olhavam... - Sabe Anne, você deveria criar o serviço de fofocas de Harvard... - Papai deu um olhar fervoroso para ela. Ele detestava fofoca e Anne sabia disso. - Desculpa. Foi só pra puxar assunto. Se não quiser não fala...
- Era só uma garota. Nada de mais..
- Viu só, não doeu. - Qualquer coisa pessoal na frente de papai doía... - Isso não vai te atrapalhar nos estudos, Joseph? - Viram o que eu disse.
58
- Não, papai. Eu só estou fazendo algumas amizades... - Minha resposta foi para papai, mas meu olho estava em Anne... Graças a Deus, depois disso ela se calou. Mais tarde o telefone toca. Anne atende, como sempre. Um segundo, e: - “Joseph”... é para você. Parece que é “nada de mais”. - Eu andei até o telefone. Papai e mamãe viam TV e não notaram o tom de Anne... - Obrigado! - Eu peguei o fone, mas antes dela sair...
- Nova-iorquina, não é? Está progredindo!
- Sai daqui baranga. Vai procurar seu noivo pra encher. - E finalmente ela sai. - Alô... - A conversa foi demorada e muito diversa, mas no final ficamos de sair no dia seguinte. Ela disse que queria que eu mostrasse a cidade para 59
ela, já que ela era de Nova Iorque. E também disse que eu teria de me abrir. Então no dia seguinte, depois do almoço no campus, nós saímos... A cidade de Boston tem a mesma idade da própria América. Mostrar o que há de interessante e bonito numa cidade como essa é como revisar toda a história dos Estados Unidos vista no colégio... Eu mostrei o porto de Boston para ela, onde tinha havido o incidente do chá, durante a Independência. Mostrei o Instituto Pasteur. Mostrei todos os monumentos que pude lembrar que existiam em Boston. Ranhe dava atenção a tudo que eu dizia e me dava uma incrível confiança falar com ela. Seria muito fácil eu me apaixonar por ela... Eu passei em frente ao Oales Park, meio receoso, mas fazia parte da história também, talvez mais até que os outros monumentos, pois ali estavam todos que lutaram pela América em 300 anos de história; pelo menos os nascidos em Boston... Ao entardecer eu a levei para um parque perto de minha casa. Não era nenhum lugar histórico mas 60
eu queria mostrar o lugar onde eu tinha crescido jogando basquete, andando de bicicleta e dando o meu primeiro beijo... O crepúsculo começava a nos cobrir e nós sentamos para conversar. - E então Joseph, eu confiei em você para mim mostrar essa cidade inteira; você vai confiar em mim? - Com aquele sorriso ela podia me pedir para pular de um pé só que eu o faria. - Claro... Você se lembra do meu irmão que está no Oales Park?
- Sim, claro.
- Bom, o caso é que... - Eu contei a ela sobre o ocorrido; de Donny na tela da TV. Ela parecia acreditar e até partilhar de meu sentimento. As vezes ela tocava minha mão e eu não conseguia conter a emoção, como eu disse... seria muito fácil me apaixonar por ela... eu 61
também contei sobre o fenômeno ocorrido durante a minha formatura e por último o que aconteceu no cemitério dos veteranos logo após eu entrar em Harvard. Ela: - Nossa. Agora eu me lembro que quando nós passamos lá, você fez uma expressão tão triste. Era mais que saudades de seu irmão. Você sentia todos aqueles espíritos não é.? - Mais ou menos. Eu só me lembrava da sensação de quando aconteceu. - Nossa, Joseph... - Ela passou a mão em meu rosto e olhou muito séria, diretamente para meus olhos. Eu devia estar derretendo na mão dela. E então a gente se beijou... A eternidade de um minuto tinha se passado de contato com aqueles lábios incríveis. O parque estava vazio, era hora das crianças estarem em casa tomando banho e se preparando para o jantar. E os 62
idosos apareciam lá só durante a manha. Mas então, começou... Eu comecei a sentir pessoas a nossa volta. Queria não largar, mas tive de soltar aqueles lábios para poder olhar em volta. Eu não via ninguém. Ranhe perguntou: - Qual foi o problema, Joseph? - Eu continuava a olhar em volta. - Eu não sei. Uma sensação esquisita. De extremo prazer.
- Obrigada... - Eu olhei sorrindo para ela...
- Bom, não é só isso, eu... - Foi então que eu vi... - Havia outro casal num banco próximo. Eles usavam roupas antigas, estilo do início do século. Eu me virei para Ranhe e falei: - Você vê alguém naquele banco ali? - Ela olhou e a resposta me confirmou...
63
- Não. Ninguém. - Era outro fenômeno. O casal parecia incrivelmente feliz. Eu quis ir até lá, mas não sabia como agir. Lembrei dos dois cientistas alemães. Será que algum dia eles teriam uma clareza tão grande quanto a minha visão? Ranhe olhava confusa para mim, eu estava olhando fixamente para um banco “vazio”. Eu olhei no banco ao lado e vi outro casal. As roupas eram diferentes, mas a felicidade era a mesma. E então apareceram diversos casais de namorados em todos os bancos do parque. Eu fiquei fascinado com aquilo. Eu sentia que a sensação de felicidade e prazer que eu e Ranhe sentimos ao nos beijarmos tinha atraído casais de espíritos conjugados para reviverem seus momentos felizes na Terra, como os grupos de formandos durante a minha formatura... Ranhe novamente me chamou a atenção: - Você está vendo algo, Joseph? - Eu queria contar a ela, mas acho que ela podia ficar mais confusa ainda.... Eu resolvi fazer o mais simples: Participar daquele momento junto com os outros casais; já que eu os tinha atraído, eu podia prolongar os seus momentos... 64
- Não Ranhe... Nesse momento eu só vejo, você. - Ela sorriu e nós voltamos a nos beijar. Ocasionalmente eu abria os olhos para ver os outros casais, acho que eles também nos viam... O anoitecer nos cobriu completamente, e como eu tinha imaginado no dia anterior, o crepúsculo parecia ser a “Calmaria das Almas” , pois cercado por elas, eu podia sentir uma paz incrível... até transcendental. A partir daquele dia eu passei a descrever por escrito os fenômenos que eu presenciava e ao mesmo tempo tentava relacioná-los com as emoções emanadas no momento... Era só uma impressão, mas parecia que os estados emocionais humanos eram a maior ligação entre os “vivos” e os “mortos”. Sempre que eu sentia os fenômenos, eles me transmitiam emoções semelhantes às minhas no momento, como se fosse a chave que abria a porta entre os dois mundos... Quanto a Ranhe, eu namorei ela por um longo tempo e aquele primeiro beijo foi inesquecível...
65
IX Inverno de 1972. O saguão do aeroporto internacional de Boston recebia uma corrente contínua de 10 mil pessoas por dia, com a aproximação do Natal, essa freqüência tendia a aumentar. Dentre aquelas pessoas que passavam ali naquele dia, sete aguardavam com pesar e alegria, ao mesmo tempo, a hora da partida do vôo para Frankfurt, na Alemanha. Eu, mamãe, papai, Anne, o noivo Wayne, Eddie e Ranhe. Eu sentia o orgulho nos olhos de papai e de mamãe, mas também sentia suas dores ao me verem partir... Seria o meu primeiro Natal longe de casa, num país estrangeiro e que nem minha língua falava. Era também a primeira vez que um de seus filhos viajava para longe desde a ida de Donny para o Vietnã... Eu não estava indo para uma guerra mas a idéia de distância ainda deveria os estar impressionando.
66
Anne não conseguia engolir direito a idéia de eu conhecer a Europa antes dela, mas sentia certa felicidade. Ela me fez uma lista quilométrica de coisas para eu comprar para ela; eu não tinha intenção de comprar nenhuma. Se tem uma coisa que sempre detestei foram essas encomendas quando se viaja... Wayne, muito político tentava dizer coisas que não demonstrassem o quanto ele era ignorante em relação a outras culturas. Eu acho que para ele Alemão e Russo eram a mesma coisa. Eddie não parava de sorrir. Por causa dele eu tive a oportunidade de fazer aquela viagem, ele sabia disso. E também havia outra razão: Ele estava saindo com Ranhe há umas duas semanas e ela estava causando o mesmo efeito nele que tinha causado em mim. Como eu já disse, se apaixonar por aquela garota era muito fácil... É ela. Nós já havíamos terminado há pouco mais de um mês. Não brigamos, só não queríamos ficar presos. Até hoje me lembro dela como uma 67
paixão realmente inesquecível. Acho que o mesmo tinha acontecido com Eddie; ele deve ter gostado dela desde o dia em que eu os apresentei, e eu não o culpo, mas esperou até nós terminarmos e até falou comigo sobre o que sentia antes de falar com ela. Eles pareciam estar felizes juntos. E eu estava feliz pelos dois... - “Vôo para Frankfurt no portão quinze”. - Os altos falantes anunciavam. - Não envergonhe o seu país, Joseph. - Disse papai apertando a minha mão. Foi o mesmo que ele fez e disse quando Donny partiu. Abraços não eram o forte de papai, na verdade eu nunca vi ele abraçar nem a mamãe... - Não esqueça dos agasalhos, filho. Eu ouvi dizer que lá é mais frio que aqui...- Um conselho de mãe, o que mais pode ser dito? Ela me abraçou com muita força.
68
- Se cuida grande J. Não vá engravidar nenhuma alemã viu.... - Anne sempre conseguia dizer o que não devia. Papai tentou evitar o olhar de severidade, que diria a mesma coisa que Anne disse. E eu vi a reação de Ranhe: Ela abaixou levemente a cabeça com um sorriso tímido no rosto.
- Obrigado pelo conselho...
- Boa sorte Joe.- O Wayne parecia que se despedia de um senador. Ele me deu um aperto de mão que parecia até ensaiado. - “Alfidesenm “. Volta logo, cara! - Uma tentativa muito nobre de Eddie de dizer adeus em alemão, mas valeu a intenção. Ele me abraçou meio acanhado, acho que pela presença de minha família. - Eu não disse que você seria o primeiro colocado, Joseph! - Aquilo tinha duplo significado e só nós dois entendíamos. Ela me beijou, deixou o Eddie um pouco inquieto, mas ele entendia. Anne não 69
resistiu ao sorriso lascivo, e papai e mamãe tentaram ignorar aquele ato pessoal em público. Eu desviei meu olhar de todos por um segundo e depois: - Bom gente... Até fevereiro. Eu vou telefonar e escrever para todos. - Peguei minha bagagem e me afastei de costas por uns metros olhando aquelas seis pessoas de quem gostava tanto, pensei em Donny que também poderia estar ali, e então me virei e fui para o portão de embarque. Aposto que minha mãe chorou depois que eu fui embora. Sentado na poltrona do avião, peguei um livro de anotações. Despedidas e saudades são sentimentos muito fortes no ser humano, e apesar de estarem ligados a ausência e ao distanciamento, tem uma forte ligação com o amor e a importância que se dá a entes queridos. Diante de toda aquela atmosfera da minha despedida, imaginava se ao ficar mais tempo no saguão do aeroporto, espíritos não apareceriam para compartilhar o momento, talvez eles preferissem a alegria do reencontro... o tempo me responderia. 70
Ao começar a registrar minhas experiências paranormais notei que havia muito mais nelas que as imagens que tinha visto: Havia um significado profundo e extremamente simples que as ligava e à toda humanidade. Aguardava com ansiedade o contato com outras experiências, outra cultura e talvez uma outra visão do mundo que me ajudasse a decifrar esse mistério. Com o caderno na mão anotando coisas, também não conseguia evitar de lembrar o que Ranhe havia dito ao se despedir: como ela tinha dito no dia em que nos encontramos no pátio do campus, eu realmente fui o primeiro colocado no teste para o curso na Alemanha; mas havia outro significado naquela expressão: Pouco antes de nós terminarmos, fizemos amor. Foi a primeira vez para nós dois, e foi o que ela quis dizer com o primeiro colocado... Hoje me recordo do dia com satisfação e saudades. Poucas pessoas têm sorte de conhecer o amor na companhia de quem realmente se goste muito, e que também goste da gente. Acho que o nervosismo e a apreensão 71
de ambos, fez tudo muito mais prazeroso, pois havia uma busca de ambos por uma coisa que se desejava muito e que não se conhecia na prática. Ranhe foi uma pessoa muito importante em minha vida; se a visão do meu irmão tinha sido a abertura da transição para a vida adulta, ela foi a entrada definitiva na minha maturidade, como homem, como ser humano e até como cientista. O vôo estava demorando. Eu sentia cansaço, mas minha cabeça não me deixava dormir. Eu me esmiuçava em descrever minhas sensações durante o fenômeno das vozes em Oales Park. Diferente dos outros que eu já tinha tido, esse foi o que mais me afetou emocionalmente, toda aquela tristeza vinha a minha memória em ondas que me provocavam arrepios. Talvez a razão disso fosse que esse fenômeno tinha sido o único até aquele momento com o qual eu não pude lidar, eu fugi, não suportei a consternação de tantas almas infelizes. Esperava encontrar alguém na Alemanha que pudesse me auxiliar nesse problema em especial. Nesse ponto a minha curiosidade e interesse 72
se tornavam uma obstinação em saber porque haviam espíritos tão calmos, em paz, como os do parque onde eu e Ranhe nos beijamos pela primeira vez. E em contrapartida, outros tão tristes e fervorosos, como no Oales Park e também os descritos por Betsy, em sua fazenda na Geórgia. Receava que num assunto tão obscuro não houvesse uma resposta, já que fazia parte de um outro mundo, com leis diferentes, totalmente desconhecidas por nós, os vivos... O avião taxiava em solo alemão. Estava chegando uma semana antes que os outros cinco alunos de Harvard. Todos eles eram de turmas adiantadas e por isso estavam ainda ocupados com seus cursos na faculdade. Foi sorte minha, pois queria me inteirar com tudo que conseguisse antes que o curso começasse. No aeroporto havia um carro da universidade de Frankfurt a minha espera. Não que eu fosse alguém importante, eles mandavam o carro para pegar estudantes estrangeiros que não conheciam o 73
país. Na verdade, naquele mesmo dia o carro estava esperando outra pessoa... Era um bolsista vindo do Brasil. Nós esperamos mais alguns minutos até o vôo dele chegar. Graças a Deus todos com quem entrei em contato falavam minha língua... - Oi. Eu sou Joseph Tammerson. Sou dos Estados Unidos.- O carro iniciava a viagem para a Universidade. - Meu nome é Antônio Gastaretto. Brasil. Engraçado que o nome dele era de origem italiana. - Você também é médium? - Já tinha ouvido aquela expressão antes, mas nunca de maneira tão natural. Os estudiosos em parapsicologia consideravam a mediunidade, assim como a religião espírita, como simples religião ou superstição. Era o lado não racional do que os parapsicólogos tentavam racionalizar. Por sorte eu sempre me senti imparcial, para assim poder conhecer e analisar os dois lados...
74
- Na verdade, eu não sei. Eu estudo parapsicologia e já presenciei alguns fenômenos.
- Parapsicólogo, não é?
- Não. Ainda não. Eu estudo somente... E você? - Você já ouviu falar em pintura mediúnica?
- Já, sim. Você faz isso é?
- Quando os espíritos querem!
- Você parece um conhecedor. O que você veio estudar aqui? - Na verdade eu vim mais para ser estudado, do que para estudar. Eles me deram a bolsa mais por compensação. Eles querem é provar se eu sou um charlatão ou não. Dois dos cientistas daqui foram lá no Brasil me ver e tentaram tirar uma tal de fotografia espectral, mas eu só vi umas luzes brancas ao meu redor; aí eles decidiram me trazer aqui, e para eu não 75
parecer somente uma cobaia, eles deram essa bolsa de seis meses. Eu não tinha nada a perder mesmo... Fiquei fascinado pelo modo como aquele jovem, devia ter uns vinte e três anos, o modo como ele encarava aquele “poder”, de maneira tão natural. Ele me descreveu que sentia uma presença que guiava seus membros e a certo ponto ele não mais controlava seu corpo ou mente. Era como se ele se torna-se um espectador de seus próprios atos, ou melhor de seu corpo emprestado a alguém que mesmo depois de morto sentia a necessidade de continuar criando. Eu perguntei se aquilo gerava algum tipo de satisfação emocional e ele me confirmou: tanto ele quanto o pintor presente sentiam uma imensa paz ao completarem o trabalho. Aparentemente não era só de mim que vinha a ligação entre as emoções de vivos e mortos. O jovem médium parecia estar convivendo com aquilo há muito tempo: eu pude reparar os calos nos seus dedos, provavelmente ocasionados por longas 76
horas de contato com telas e tintas. Foi um encontro fascinante. Esperava ter a oportunidade de vê-lo em ação. Nós chegamos à Universidade de Frankfurt; era um campus grande, mas não tão grande quanto Harvard. As construções eram muito mais antigas. Ficava imaginando em que lugar ali Hegel teve sua “visão reveladora”. Lamentei ao passar pelos portões não poder ter apreciado a bela cidade, fiquei tão entretido com a conversa do jovem Antônio que me esqueci de aplicar minha tão costumeira curiosidade e poder de observação. Mas haveria tempo para um “tour” depois.... Ao sair do carro me despedi do meu companheiro de carona:
- Espero vê-lo novamente.
- Eu também, Joe. E eu quero ouvir sobre os fenômenos que você mencionou. 77
- Claro... AtĂŠ. - Eu agradeci ao motorista e me voltei para o antigo prĂŠdio a minha frente. Um senhor me aguardava para me guiar ao meu quarto. A medida que ia vendo aquele lugar, pensava: o que, aquele lugar, poderia me trazer de conhecimento, experiĂŞncia e vida....
78
X Os dias em Frankfurt foram realmente especiais. Na primeira semana visitei alguns pontos turísticos... inclusive fui na casa onde Hegel havia nascido. Vi muitos dos seus trabalhos originais e um até que comentava o famoso jantar onde ele teve uma visão que o fez redirecionar muitos dos seus valores filosóficos até então expostos. A cidade era super bonita; muito antiga e com muita história contida em cada construção. Infelizmente o tempo para turismo era curto e o frio era de rachar. Eu que conhecia o inverno do nordeste dos Estados Unidos, não imaginava que o centro Europeu pudesse ser tão frio. As noites, mais frias ainda, eu lia o máximo que conseguia sobre os assuntos abordados no curso que eu iria fazer. Sorte que o material de leitura estava também em inglês. Tentei entender um pouco de alemão, mas o tempo era muito curto para se aprender uma língua que nunca havia estudado.
79
No tempo que passava no campus, conversava com alguns alunos e professores. No final dessa semana eu estava quase totalmente inteirado com aquele lugar que de início me pareceu tão estranho. Eram pessoas, como eu; de outra cultura é verdade, mas com o mesmo tipo de problemas e pensamentos. Pensava se o choque de Donny ao chegar no Vietnã no fim de 69 tinha sido parecido, provavelmente bem pior... Durante o curso me encontrei algumas vezes com o estudante brasileiro, o Antônio. A maior parte das vezes ele não falava no que estava fazendo, ou no que estava sendo feito com ele. Acho que não queria ser tratado como uma espécie de aberração que incorporava almas de pintores mortos, talvez fosse também por isso que falava com tanta naturalidade sobre mediunidade e fenômenos paranormais. De qualquer jeito, ele me convidou para ver a sessão aberta que iria haver depois do Ano Novo, eu mal podia esperar para ver tal espetáculo de paranormalidade, apesar de não demonstrar tal entusiasmo; tenho quase 80
certeza de que ele se ofenderia com isso, achando que eu o considerava alguma espécie de “show”, o que não era verdade mas seria mais fácil não atrair o problema. Eu assistia as aulas, sempre com o tradutor. Muito do que era abordado era semelhante ao que eu via em Harvard, só que de uma maneira menos supersticiosa. A minha cultura, a americana, parece cultuar os fenômenos paranormais e a própria morte de uma maneira mais fantástica, acho que é a influência do nosso cinema. Os cientistas alemães viam as coisas de modo mais natural, mais profissional e de qualquer maneira eram meio pioneiros no assunto, pelo menos no ocidente; mais tarde descobri que os orientais já tinham uma ligação milenar com a paranormalidade... Meus colegas americanos vindos de Harvard tentavam mostrar sua experiência acadêmica, mas tudo que eles diziam ou perguntavam me parecia superficial ou decorado, como se todos eles tentassem “não envergonhar o país “, como havia dito meu pai. Eu não falava muito, a maior parte do tempo 81
eu só observava. Me impressionei muito com uma parapsicóloga suíça, que falava com muita segurança de teorias como a geração da áurea espectral que supostamente iluminava os vivos e que se mantinha a mesma nas almas após a morte. A certo ponto notei que havia ligação com a fotografia espectral dos doutores Hauptmann e Handrevem; ela não fotografava o espectro na verdade, somente a áurea emanada pelo mesmo. Mais tarde surgiu a fotografia da áurea de pessoas que se diz revelar a personalidade das mesmas e que como impressões digitais, não existem idênticas. Mas a doutora, o seu nome era Vânia Iomnh. Ela fazia as afirmações com muita segurança; eu sabia que a segurança era importante para a construção de uma carreira acadêmica, mas me perguntava se ela não estava se comprometendo demais com todas aquelas teorias que exploravam um mundo tão vago. Sorte, para ela! Os meus horários vagos eu passava mais sozinho. Falava ocasionalmente com os outros cinco alunos de Harvard, mas não havia grande intimidade. 82
Stan Reggis, Claire Hollens, Francis Hiorld, Walter Spants e Lorei Valoure. Todos eram do último ano e além da presença do desdém natural para com calouros, mesmo tão longe de Harvard... Havia também o problema do teste, acho que eles as não aceitavam tão bem a idéia de um calouro passar em primeiro lugar num teste que requeria conhecimentos do curso inteiro. Mas de qualquer modo o tempo que eu passava sozinho eu usava para escrever, tanto as minhas anotações quanto cartas para aquele batalhão de pessoas que se despediram de mim no dia da partida. Uma das que eu tinha mais prazer de escrever era para Anne; eu sempre começava dizendo: “Querida Anne, a Europa é linda. Você deveria estar aqui...” Imagino o tipo de expressão que ela fazia quando lia isso... Muito do meu tempo em Frankfurt eu ficava imaginando se algum fenômeno ocorreria. Eu sentia expectativa e apreensão ao mesmo tempo. A medida que se aproximava o Natal e o Ano Novo outros dois sentimentos começavam a me tomar também: as saudades de casa e a curiosidade para ver o meu colega 83
brasileiro em ação. Imaginava que se era verdade que os espíritos dos pintores vinham e se sentiam em paz, talvez eu fosse capaz de vê-los e de sentir a mesma paz... Eu tentava livrar minha mente de dúvidas e de sentimentos depressivos, afinal longe de casa, sozinho e ainda triste... eu não ia conseguir me agüentar. Na hora do aperto na noite de Natal, quer dizer, ainda durante o dia na véspera, pois a noite chegou para mim primeiro por causa da diferença de horário; eu liguei para todo mundo. Eu aposto que minha mãe chorou de novo quando falou comigo. Ranhe foi quem me transmitiu mais confiança e alegria; só ouvir a voz dela dizendo meu nome mesmo de tão longe, fazia tudo alegre de novo... Na mesma noite eu participei de uma ceia com os alunos estrangeiros. Antônio estava lá e nós conversamos bastante, me segurei para não puxar o assunto da sessão que se aproximava. A comida não era como a da minha mãe, mas dava para engolir. Um estudante judeu tentou se abster em respeito ao Hanaka, mas acabou comendo uma coisinha. Foi divertido apesar da distância e a falta que a família e os amigos faziam, eu consegui 84
sobreviver ao primeiro Natal longe de casa, o primeiro de muitos... O Ano Novo se passou do mesmo modo que o Natal. Eu esperava com ansiedade o dia da sessão, onde finalmente eu veria Antônio fazer o que os cientistas da universidade estavam tão empenhados em estudar. As aulas do curso não tinham mais o mesmo atrativo de antes. Eu cheguei a pegar uma aula com os dois que tinham ido em Harvard, foi uma cópia exata da palestra. Imaginava se algum dia eles iriam sair daquilo e evoluir o processo. Eles tinham voltado para a Alemanha justamente para registrar a sessão do Antônio Gastaretto, e eu também fiquei curioso para ver aqueles dois agindo. Em alguns momentos eu os achava cômicos, quando eles apontavam para aquelas manchas brancas e diziam que era uma alma... Difícil. Se eles vissem o que eu via... E finalmente tinha chegado o dia. Eu me sentei no meio da platéia. A frente estava dominada pelos professores e cientistas da universidade. Os alunos 85
e curiosos só puderam ficar mais ao fundo, acredito que eles temiam por algum tipo de adversidade que prejudicasse o projeto: principalmente porque eles planejavam documentar todo o processo. Na frente, Antônio parecia calmo. Ele disse que sempre fazia sessões em público no Brasil, por isso o motivo de sua familiaridade com o mesmo. Acenou para mim ao me ver antes de tudo começar. Os dois “fotógrafos” estavam a postos. Tinham preparado umas oito câmeras de todos os cantos do recinto. A Dra. Iomnh estava com dois blocos de papel, pronta para anotar tudo. Eu, pessoalmente, também levei meu caderno. Nunca tinha tido a oportunidade de ver um fenômeno com marcação prévia, todos aconteceram, simplesmente; não podia deixar de querer anotar tudo, e com detalhes... O diretor da escola: - Senhoras e senhores. Vocês vão hoje testemunhar uma coisa chamada pintura mediúnica. O jovem rapaz aqui, Antônio Gastaretto, veio do Brasil para nos dar a oportunidade de observar esse fenômeno tão incomum. Peço a todos que permaneçam em silêncio durante a sessão e que colaborem com 86
os fotógrafos que irão registrar o evento, não ficando à frente dos que estão postados no fundo do salão; por isso o mais simples é todos ficarem sentados. Perguntas serão respondidas no final a medida que o tempo nos permita. Obrigado. Todos se calaram. Antônio ficou sentado a uma mesa com diversos materiais de pintura a sua disposição. Uma espécie de monitor ficou ao seu lado e todos estavam aguardando... Eu observava a expectativa em todos os rostos a minha volta, só via calma no rosto de Antônio. Ele não fazia nada, só aguardava. Eu devo ter sido o primeiro, e único, além de Antônio, é claro; comecei a sentir um peso no ambiente; a apreensão de todos e a espera de Antônio pareciam começar a penetrar em mim, mas eu sabia que não era só isso. Instintivamente comecei a escrever o que sentia... E aí surgiu o elemento. Era uma visão nítida, como uma pessoa normal parada de pé ao lado de Antônio. Nunca fui conhecedor de arte, mas dei uma olhada em enciclopédias para saber mais sobre os pintores que Antônio havia me 87
dito que “incorporava”... Digo isso agora pois o pintor não entrava no corpo dele e sim ficava em pé ao seu lado, eu podia ver que ele guiava as mãos de Antônio; como um ima que ficava sobre o metal e fazia o mesmo movimento... Era um homem de meia idade com roupas obviamente de outra época. Eu demorei um pouco, mas conheci não o rosto, por um desenho visto: Era Dégard... Antônio começou a pintar. Era impressionante. Com as mãos livres e os olhos fechados, ele, em poucos minutos completava uma pintura. Sempre com uma incrível nitidez. Mesmo o que começava como um borrão na tela, no final se tornava uma bela obra de arte. O monitor ocasionalmente falava com Antônio e ele respondia, com a maior naturalidade, em francês, nesse caso; dizendo quem era e às vezes dizia o que estava fazendo. Eu olhava para o espírito e não via nenhuma reação à pergunta, ele só continuava a guiar as mãos de Antônio. Aparentemente a dificuldade humana de concentração diante à distrações era sobrepujada pelos espíritos. Ele conseguia “falar”, sem desviar a atenção do que estava fazendo. Foi fascinante. Ao 88
final de cada obra Antônio a assinava com o nome do artista e todos se fascinavam com a fidelidade, pelo menos os conhecedores. Pouco antes de terminar a quinta e última pintura de Dégard, eu já podia sentir a paz no ambiente, o que Antônio tinha dito era verdade, o artista liberava sua força criativa e adquiria uma imensa paz, que era transmitida para Antônio e graças a Deus, sentida por mim. Ele assinou a quinta pintura. Dégard permaneceu de pé por alguns minutos antes de desaparecer, acho que era o tempo de desvinculação com Antônio. Eu olhei diretamente para o rosto de Dégard. Ele não tinha nenhuma expressão específica, não sabia se aquilo era a personalidade dele normal ou se era algum padrão; além de Donny, era a primeira vez que olhava diretamente para o rosto de um espírito. Talvez fosse a concentração normal de um artista, mesmo não estando mais vivo... Antônio abria devagar os olhos. Não parecia estar diferente, somente com as mãos sujas e um pouco suado, afinal foi seu corpo que fez todo esforço físico. Os fotógrafos continuaram a trabalhar mesmo um pouco depois de Antônio ter terminado; diferentes de mim, eles não 89
sabiam que Dégard já havia partido. Ao final da sessão não consegui falar com Antônio, só o fiz dias depois; não alterou muita coisa em nossa relação... Eu saí de lá com cinco páginas de anotações e, apesar de dúvidas que persistiam, me senti feliz por ter tido a oportunidade de presenciar tal fenômeno, e senti-lo também, de modo a poder fazer tantas observações e tirar algumas conclusões. Aquela experiência foi o que mais valeu a pena em todo aquele curso na Alemanha. Foi o que me deu respaldo para começar a escrever o meu primeiro livro, seria mais pessoal que científico, mas eu tinha que expor tudo aquilo que eu já tinha visto e descoberto, pelo menos até aquele momento. Seria forte, sensível, emocional. Quanto as fotos espectrais, elas captaram o de sempre. Na exposição que houve na semana seguinte, eu e Antônio vimos as fotos e como ele havia descrito, eram um monte de luzes ao redor dele. Não contei a ele que tinha visto Dégard, mais ao olhar as fotos e lembrar onde ele estava eu via que a tal da áurea espectral realmente existia, e que apesar de mais 90
abrangente que o próprio Dégard, as luzes indicavam uma presença espectral mais ou menos no lugar onde ele tinha estado. Os conceitos e teorias explodiam em minha mente e eu não tinha escolha senão seguir meu caminho. Ao final do curso, me despedi de algumas pessoas que havia conhecido. Tinha adquirido muita experiência e muitos livros; infelizmente não me permitiram levar nenhuma das fotos. Me despedi de Antônio; não ficamos realmente amigos, mas de certo modo companheiros; ambos com capacidade além do entendimento humano e mesmo assim humanos; tínhamos uma percepção diferente da vida, já que sentíamos e víamos, no meu caso; coisas que a maioria das outras pessoas não podiam... Trocamos endereços de contato: não tinha certeza do que seria meu futuro ou ele o dele, mas tanto eu quanto eu quanto ele sentíamos a necessidade de nos reencontrarmos no futuro, para saber em que pontos chegamos... Agora só restava voltar para casa. Na bagagem: aprendizado e dúvidas. Nas mãos minhas anotações, agora sempre inseparáveis. E nas minhas malas, nada 91
do que Anne havia me pedido. Apenas um presente de natal para mamĂŁe e outra para Ranhe... Eu mal podia esperar para rever todo mundo...
92
XI A minha volta para casa foi interessante. Eu tive a oportunidade de observar como os diferentes tipos de personalidade, que formavam minha família e amigos; como eles reagiam à alegria do reencontro, inclusive eu. Mamãe me abraçou logo na saída do portão, seu contentamento estava estampado no rosto. O total contrário era papai: foi tão fechado quanto no dia que eu parti. Anne me deu um beijo e sorria muito, não vi Wayne, mas a aparente calma dela devia ter algo haver com aquele promissor advogado; mais tarde descobri o que tinha acontecido. Eddie e Ranhe me deram um abraço em conjunto. Aqueles dois meses juntos pareciam ter feito bem a ambos. E eu... sentia a alegria em meu peito, era uma sensação semelhante as que eu sentia na presença dos espíritos; era um tanto mais física e meio difícil de ser descrita. Acho que o véu político que nos cobre, os seres humanos; nos tira um pouco da plenitude dos sentimentos mais naturais. Nos fenômenos a plenitude 93
dos sentimentos eram sempre fortes, acho que era por isso que as vozes em Oales Park eram tão tristes, a tristeza também se apresentava plena... Ao sair com eles do aeroporto me lembrei no que havia pensado ao partir: se espíritos não apareceriam para partilhar o momento feliz do reencontro; mas não ocorreu, acho que pela constância com que ocorre, essa sensação se torna fugaz, principalmente para criaturas que sentem tudo com tanta força, como os espíritos... No caminho para casa eu tentava não falar muito, me entretia demais pensando; mas perguntas eram inevitáveis e eu não queria alienar ninguém com meu silêncio: - Joseph. Nenhum Europeu insultou a América enquanto você estava lá? - Papai... Os europeus são pessoas educadas. Por que eles nos insultariam? - Anne estava certa, mas papai notou que eu evitei a pergunta. Ele sempre foi um conhecedor de outras culturas, apesar de só 94
ter ido ao Canadá durante toda vida. E ele, como eu, sabia que culturas diferentes sempre têm diferenças que às vezes se tornam críticas, não tanto por insulto, mais por ignorância, como muitos americanos em relação a outros países do mundo, até eu. Ao lembrar de Antônio... sua inteligência e instrução eram incríveis: Ele sabia falar inglês, francês e alemão, além de sua própria língua, o português. No colégio eu tinha aprendido que do Brasil vinha o nosso café e que lá existia a maior floresta equatorial do mundo, a Amazônia. Imagino que tipo de imagem Anne tinha da Europa para dizer aquilo... - A Europa é maravilhosa... - Papai se deteve a qualquer outro comentário. Acho que ele queria que Anne aprendesse por si mesma, como eu aprendi e papai sabia disso. - ... e eles também têm coisas lindas em suas lojas... O que você trouxe da minha lista? - Eu fiquei receoso pela reação dela mas....
95
- Bom... nada:
- Nada?! - Acho que ela não acreditou de início.
- É. Eram coisas demais e eu teria que pagar imposto de importação. - É brincadeira, não é? - Eu não consegui conter o risco... - É... - Eu vi a raiva nos olhos dela. Antigamente ela começaria a brigar comigo ali no carro mesmo, mas acho que não combinava mais com sua imagem de mulher séria e com casamento marcado. Mas uma coisa ela não se segurou em dizer: - Seu palerma sem graça... - Mamãe interferiu: - Anne, seu irmão não podia trazer tanta coisa da Europa. Depois do casamento você irá pra lá e poderá comprar tudo que quiser... - Meio emburrada ela disse:
96
- Tá bem... - Ela fez uma cara fechada para mim nos dois dias seguintes, mas eu sabia que não ia durar. Nós chegamos em casa. Estava cansado, mas antes de tomar um banho e dormir um pouco, eu entreguei o presente que havia trazido para mamãe. Era um porta jóias com uma paisagem de Frankfurt; não era grande coisa, mas se eu desse uma caneta, não faria diferença... Minha mãe sempre foi muito emotiva e ligada aos filhos. Era fácil para ela ficar feliz com nossa felicidade e ficar triste com nossa tristeza. Eu sabia que ela pensava muito em Donny, o quanto sentia sua falta, eu só queria mantê-la feliz... Era difícil saber o que papai sentia, mas ele parecia ter ficado feliz com a lembrança... Anne parecia tocada, mas acho que ela não conseguia esquecer que eu não tinha trazido nada para ela. Eu tomei meu banho e estava quase me arrastando para cama. Eram seis da tarde, mas eu me sentia morto. Tinha combinado de sair com Eddie e 97
Ranhe no dia seguinte e queria estar bem. Durante meu tempo na Alemanha nunca consegui dormir direito, além do frio, depois da sessão com Antônio, minha cabeça não parava de gerar dúvidas e idéias. Agora em casa, ainda pensava muito no que já havia aprendido sobre fenômenos paranormais... Eu já estava com páginas e páginas de anotações que mais tarde se tornariam o meu primeiro livro, eu só precisava organizar tudo. Ia me deitando e rapidamente apagando. Os meus pensamentos e lembranças se cruzavam; antes, tal turbilhão de coisas em minha mente me atrapalhava o sono, mas agora e até hoje eu convivo com isso, talvez a convivência com almas e fenômenos paranormais fez a minha mente mais concentrada, só me preocupava o que aquilo poderia fazer com o meu futuro como pessoa; se eu conseguisse chegar a idade de Antônio com a mesma lucidez dele diante das coisas já seria um alívio... “Caminhava pelo campus. Ele estava totalmente vazio. Era dia, mas um dia extremamente claro. A luminosidade era tanta que eu mesma me sentia iluminado... Andei até o refeitório central, acho que sentia fome. Peguei um 98
prato feito, de comida e em seguida estava na mesa. Eu olhei para o prato e não havia nada. De repente eu comecei a ouvir vozes conversando como quando o refeitório está cheio, me virei e não havia ninguém; quando me virei de volta as vozes tinham parado e eu não estava mais no refeitório; era o Oales Park. Olhei em volta e não havia ninguém e então eu ouvi uma voz dizendo: “Joseph “! Era nitidamente a voz de Ranhe. Eu a procurei, mas continuava sozinho. Então olhei a minha frente e lá estava: era o túmulo de Donny e tinha um homem recostado nele, como que descansando. Eu dei dois passos e vi: era o próprio. Eu me senti confuso... Ele olhou para mim e disse: “Será que você vai até o fim Joe?” E a essa pergunta milhares de vozes começaram a gritar. Eram os gritos de tristeza e angústia do Oales Park, só que ainda mais fortes. Eu não agüentei... comecei a gritar por socorro. Foi quando eu comecei a ouvir a voz de Ranhe novamente: “Joseph... Joseph”. - Joseph! - Era papai. Eu tinha sonhado tudo aquilo. Estava assustado. Não sabia que horas eram. 99
Tinha até esquecido aonde estava. Quando reconheci papai em definitivo, não agüentei, eu o abracei. Não ligava para sua reação eu só queria me livrar do eco daquelas vozes. Até hoje não sei se aquilo foi um sonho mesmo, ou outro tipo de fenômeno. Até hoje não se sabe o que os sonhos são na realidade. Mas após aquilo eu passei a levar mais a sério o meu poder. Nos dias que se seguiram me deti em acertar coisas da minha vida, sem tentar pensar nos estudos por algum tempo. Eu me sentia um pouco amedrontado, pela primeira vez... Quanto a papai... Ele não reagiu tão mal ao meu abraço. Acho que ele precisava daquilo para compensar sua sobriedade, pelo menos uma vez a cada vinte anos ou mais... - São nove da manhã, filho. Quer dizer, Joseph... Seu amigo Eddie ligou e pediu para você ligar quando acordasse. - Papai enxugou o suor na minha testa e deu um leve sorriso. Meio acanhado, ele disse: - Que pesadelo, não? - Ele se levantou. Disse que mamãe havia deixado o meu café da manha na 100
mesa da cozinha e que ela e Anne tinham saído. Era sábado. Logo depois ele voltou para sala... Eu não consegui falar nada. Ainda estava impressionado com o sonho e também com a atuação de meu pai: “filho”, mas Graças a Deus as vozes tinham se calado. Eu me levantei. Estava meio “cansado”. Tinha dormido por quinze horas seguidas. Meu corpo já devia estar cansado de descansar. E além disso parecia que aquele sonho tão forte tinha me afetado fisicamente também e não só a minha cabeça... Me lavei. Tomei o café. Dei uma olhada em papai na sala, ele estava trabalhando. Fiquei tentado a dar uma olhada em minhas anotações mas preferi deixar para outro dia; naquele momento o meu livro podia esperar. As imagens do sonho ainda estavam em minha cabeça. A pergunta de Donny: “Será que você vai até o fim, Joe?” A voz de Ranhe; essa tinha sido a melhor parte. E principalmente as vozes do Oales Park... O que era tudo aquilo?
101
Liguei para Eddie e marcamos de almoçar e passar a tarde juntos. Nós três: eu, ele e Ranhe. Por Deus como eu precisava daquilo... Amigos.
A tarde:
- E então, Joe... Como são os alemães? - Eddie, mesmo com sua descontração, ao me perguntar aquilo, me fazia lembrar de pequenos detalhes da minha viagem que colocavam a prova a capacidade humana de viver em sociedade. Nós somos animais sociais, como muitos outros; mas somos os únicos políticos e também somos os únicos que matamos uns aos outros, mesmo sendo racionais. Se um tubarão é ferido no meio de um cardume, os outros tubarões o devoram; isso pode parecer cruel, mas me parece mais piedoso do que matar um semelhante por dinheiro ou por uma conquista territorial insignificante, como na maioria das guerras, afinal todos morrerão e a Terra permanecerá por milhões de anos; nós não somos donos da Terra, ela é dona da gente...
102
- Bom, Eddie... As pessoas eram boas, principalmente individualmente. Eu me lembro bem da atitude dos professores Todos falavam inglês, mas só uma professora Suíça dava aulas em inglês; os outros davam em alemão mesmo em classes só com estrangeiros. Eu não entendia direito esse comportamento. Acho que é algo de cultura. Até aqueles dois que estiveram aqui, apesar de tanta inconsistência, falavam várias línguas, mas sempre se detinham no alemão, como foi aqui... - É verdade... Quando eu morava em Nova Iorque, muitos dos imigrantes apesar de saberem inglês, preferiam usar sua língua. Sempre achei que fosse algum tipo de esnobação, mas agora que Joseph mencionou isso, eu estou começando a entender. Era uma coisa cultural. - Como nós. Tão poderosos e apanhando de um país ridículo lá no fim do mundo. - Eddie sempre conseguia tirar seriedade de qualquer conversa.
103
- Eu não acho que eles seja tão ridículos... A situação era difícil. Como antes... Americanos e Vietnamitas se matavam. Europeus nos esnobavam. E nós esnobávamos a todo mundo. Eu lembrava da dor dos soldados em Oales Park; será que aquela tristeza toda não era também por culpa? Sempre os considerei heróis que morreram sozinhos e por isso tristes, mas aquela reflexão me dava mais dúvidas que antes... Eddie e Ranhe não continham o desconforto por eu estar tão sério, mesmo que somente comigo mesmo. Ranhe segurava minha mão, eu sentia o calor dela e Eddie mantinha a alegria, mas tudo aquilo; o sonho da noite passada.. Com o tempo passando eu relaxei mais. No resto da tarde nós nos divertimos; fomos ao cinema e ao parque diversões, e apesar de não estar com companhia, em nenhum momento eu me senti constrangido por estar com Eddie e Ranhe, acho que sempre amarei os dois... Mas a pergunta de Donny no sonho começava a fazer sentido: Eu agüentaria toda aquela pressão de informações e reflexões? Talvez a clarividência de ver “vida” após a morte colocava a prova minha própria capacidade de ver a vida... 104
Pela primeira e única vez eu temi o meu poder. Eu só precisava de um pouco de paz. Ver a vida como um garoto de novo, pelo menos até eu por as idéias em ordem. Devagar...
105
XII Ainda me restavam nove dias de férias da faculdade. Dei uma última organizada nas minhas anotações. Não queria me envolver ainda, por isso deixei o trabalho final para depois. Muitos acontecimentos após minha volta para casa tinham afetado minha concentração. Eu estava sentindo uma espécie de “estresse” acumulado por tanta informação, reflexão e dúvidas em minha cabeça. Aquele sonho que tive na minha primeira noite de volta em casa ainda me tirava a paz. Mas eu tentava relaxar... Estava sentado na varanda de casa. O bairro onde morava não era luxuoso, mas eu sempre achei muito bonito. Com boas famílias vivendo lá; casinhas de madeira envernizada para deter o frio, que durante o outono ficavam com os telhados cobertos de folhas secas. Ainda hoje ele é assim. Se tivesse tido filhos são escolheria outro lugar para cria-los... Eu olhava a rua; havia algumas crianças, mas acho que outra geração 106
teria de nascer ainda para ela ser como era antes, na minha época. Muitas das crianças com quem brincava e eventualmente eram meus amigos de escola tinham ido embora, para universidades em outros estados do país, pelo menos os que eu tinha maior intimidade. Eu sentia falta de alguém com quem recordar a infância, alguém que tivesse feito parte da mesma... Apesar da clama e da solidão, eu não conseguia ficar realmente em paz. Mas veio a salvação... - Bom dia, Joe. - Era o senhor Langue, o carteiro. Sua figura sempre tão amiga estava ali, como todos os dias, como sempre esteve... Ali estava alguém que tinha compartilhado de minha infância; da de todo mundo, eu acho.
- Bom dia senhor Langue. Como o senhor está?
- Bem, Joe. E seus pais?
- Os de sempre. Mesmo crescido eu os vejo do mesmo jeito, que os via quando garoto. - Ele ri com satisfação... 107
- Eu me lembro. Você e seu irmão eram os que mais aprontavam nessa vizinhança, mas atendiam ao menor chamado de seu pai. - É. Papai nunca foi autoritário, mas sempre impôs a sua autoridade. - A figura dele já é uma autoridade, Joe. Todas as vezes que ele me convidou para a Ação de Graças, quando eu recusava, eu me sentia como se estivesse desobedecendo uma ordem, mesmo não sendo.
- Por que o senhor nunca aceitou, afinal?
- É uma festa de família. Eu só tenho a minha esposa mas gosta de ficar com ela, e além disso... - Por que o senhor não a trazia? Meus pais que me perdoem, mas o senhor conheceu os dois antes de Donny. O senhor sempre foi como da família, acho que da família de todo mundo aqui. 108
- Eu sei, Joe. Eu sinto o mesmo com relação a todos. E eu acho que é até outra razão para eu sempre recusar: outras famílias também me convidam, todo ano. - O senhor podia cear cada ano com uma família diferente. Afinal Ação de Graças é para dar graças a união de todos os Americanos... - Ele pensou por um segundo. Franziu algumas de suas muitas rugas do rosto, e disse:
- Vamos ver, Joe... E sua irmã, como vai?
- Ela... O senhor não quer sentar um pouco. Essa sacola parece tão pesada. - Ele agradeceu e se sentou na outra extremidade do banco. - Ela está de casamento marcado. E em junho.
- Que bom. Espero que ela seja feliz.!
- Acho que isso só depende da paciência do noivo, o Wayne. - O Sr. Langue dá uma risada leve e: 109
- Que é isso, Joe. Sua irmã é uma ótima moça. Ela sempre foi. Eu me lembro de uma vez quando você tinha uns sete anos... Você, Donny e aquele garoto da casa 93.
- Fred. Fred Wilson.
- Isso mesmo. Vocês empurraram ela naquele balanço de pneu na casa dele até ela cair na lama. Eu tive de separar ela de vocês dois. Ela puxava seus cabelos que parecia que suas cabeças iam sair do pescoço. - Eu me lembro disso. Donny era mais forte que ela e conseguiu fugir. Meu Deus... eu não sei quem foi mais perverso, nós ou ela... - Nós rimos muito com aquela lembrança. A mãe de Fred deu uma surra nele e o coitado já estava com a cabeça dolorida do puxão de cabelo de Anne. O senhor Langue nos trouxe para casa; Anne toda suja de lama e eu chorando, com lama no cabelo e a cabeça dolorida. Acho que mamãe nunca contou aquilo para papai. Com certeza teria deixado 110
nós três de castigo. Mas eu acho que preferia o castigo à dor que senti por dias... Toda vez que penteava o cabelo eu não conseguia evitar de lacrimejar... - Vocês eram terríveis. Eu sinto falta daquele tempo. Quando todos vocês eram guris. Eu trazia correspondência para os seus pais mas adorava ver essas ruas cheias de crianças. Na grande maioria eu levei as propostas de universidades. A cada uma de um estado distante era como se eu perdesse um filho, talvez porque eu nunca tive nenhum. - Nós somos todos seus filhos. Não tenha dúvida... - Ele olhava um pouco melancólico para a rua. Um homem tão simples. Ele via tudo de um modo simples, sem análises, sem estudos; era natural;. Era alguém que se podia admirar por ser comum. O carteiro que passou a vida nos trazendo notícias, boas ou ruins, não importa, mas participando de nossa vida... O Sr. Langue se aposentou dois anos depois, e infelizmente morreu logo após, com 65 anos. Foi a única vez que vi sua esposa, no enterro seu nome era 111
Martha Langue, e estava muito triste... Felizmente, pelo menos um dia de Ação de Graças ele foi lá em casa. Não levou a esposa. Ele foi bem cedo, comeu um pouco e depois foi passar o resto do dia com a esposa. Acho que valeu a pena... - Bom, Joe, eu vou indo. Ainda tenho o que fazer.
- Eu entendo. Desculpe ter tirado o seu tempo.
- Que nada! É sempre bom relembrar os velhos tempos. Você vai sentir mais isso quando estiver mais velho... Dê lembranças minhas à sua família. Ah... e aqui está a correspondência. Quase que esqueci. - Ele já estava de pé e saindo... - Obrigado. Foi bom relembrar os velhos tempos pra mim também senhor Langue. - Até, Joe... - Ele foi embora. Ele não podia fazer idéia de quanto tinha sido boa aquela conversa. 112
Eu sentia uma leveza em todo meu corpo que nem lembrava da última vez que tinha estado assim. Era daquilo que eu estava sentindo falta: de alguém com uma visão simples e pura do mundo para poder lembrar das coisas boas de nossas vidas. Acho que o peso que sentia era semelhante a de algumas almas infelizes... eu só precisava de alguém para partilhar a alegria de estar vivo... Depois daquele dia eu me senti muito mais seguro para continuar: voltar para a faculdade, concluir meu livro e continuar a aprender sobre fenômenos paranormais... “Até o fim”; mas sem nunca esquecer que a vida também é uma coisa simples que precisa ser apreciada... vivida.
113
XIII A universidade se tornara um centro de onde eu gerava meu trabalho. Ela não me apresentava mais a amplitude que eu precisava e queria para o meu interesse. Terminei o meu livro em novembro de 1973. Eu já tinha todos os dados e anotações, eu só levei o tempo de organizar tudo e fazer minhas conclusões. O casamento de Anne, em junho, me deu as informações finais. Não ele em si, mas tudo que girava em torno do momento: Havia o casamento... a união de duas pessoas trazia uma certa amenidade a desunião do mundo. Fui padrinho de Anne e pude ver e sentir de perto o quanto aquilo, aquele gesto simples e tão político, era importante para os dois. Apesar dos gastos, dos problemas, da vida difícil; duas pessoas paravam suas vidas para se juntarem e dependerem um do outro. Não posso dizer que houve um fenômeno paranormal naquele momento, mas o “sim” de alguém que se ama 114
parecia ser algo de grande prazer para ambos. Wayne não parou de sorrir... Mas outro assunto rondava a festa e os convidados. A consternação estava no ar. Nossa derrota no Vietnã estava consumada; nosso presidente estava com a corda no pescoço (mais tarde ele viria a renunciar); e uma crise começava a se formar. A derrota no Vietnã e a retirada das tropas depois de tanto tempo. A consumação de quase 50.000 americanos mortos dentro daquelas selvas. Tudo isso parecia não entrar na cabeça de nós, americanos. Tive a curiosidade de saber o que os espíritos de Oales Park poderiam sentir diante de uma derrota do país que eles também defenderam; talvez tenha diminuído a dor da culpa, mas eu ainda me sentia intimidado por aquelas vozes para poder voltar lá. Isso fez parte de minhas conclusões.
Eu ouvi papai falar:
115
- Parece uma revolução. Nada mais no lugar. - Eu imagino que ele não sabia o que estava realmente mudando. Um bom pedaço de comunidade acadêmica estava lá e nem por isso amenizava a falta de clarividência de todos a respeito de tudo. Meu maior declínio pelas teorias acadêmicas veio disso. Como as pessoas não conseguiam ver as coisas simples que estavam à sua frente. Toda aquela junção de tantos momentos alegres, tristes, sérios, nervosos e também estúpidos me foram a comparação final com os sentimentos emanados das almas vistas nos fenômenos. No resto da festa eu fiquei com Eddie e Ranhe. Era incrível ver como eles estavam juntos e bem. Senti um pouco de inveja pois estava sozinho, mas a minha mente estava concentrada no livro; e eu conseguia viver os momentos passo a passo... sempre me lembrando do Sr. Langue e do sonho. Apesar de estar mais sério e todos notarem isso, eu me sentia feliz... Com minha percepção aumentando eu podia conciliar o que via, com o que sentia e daí com o que concluía. Muitas pessoas acharam que eu tinha ficado muito mecânico, mas era só uma forma de agir. 116
Na noite de lançamento do livro eu estava nervoso. Muito mais pelo momento que pelo conteúdo. A maioria dos professores que me auxiliaram, notaram o tom extremamente pessoal que havia em todo conteúdo, mas eu sentia que havia também um tom de incerteza nas críticas deles. Eles não tinham respaldo prático para desmerecer ninguém, principalmente porque algumas de suas teorias eram apoiadas pela descrição de minhas experiências. Um dos que mais concordou com a publicação foi o professor de “Aplicação e Neurô”, o Dr. Martin. Eu fiz muitas referências as partes obscuras do cérebro humano que escondem muitas capacidades extrasensoriais e todo curso dele era baseado nisso. O que para ele era uma teoria tirada a partir de testes neurológicos, eu estava supondo simplesmente por ser algo elementar. Do mesmo modo que o apêndice e a hipófise, em algum lugar de nossa evolução há a existência de ligação com um mundo espectral. Nós simplesmente encobrimos isso com o racionalização... Psicólogos chama de liberação do “Id” e alguns estudiosos chamam de a provável fonte dos sonhos. Um religioso diria que é a 117
presença de Deus em nós... Eu diria que é o que somos, mas a vida nos faz esquecer e quando morremos só nos resta isso, e quando não houve sua satisfação em vida, gera algo como a angústia e a infelicidade dos soldados do Oales Park, que precisam de alguém para ouvir e eles dizerem: “Eu gosto de você!” Eram conclusões baseadas em simples sentimentos humanos, mas para alguns pareciam ser grandes revelações, isso só fez aumentar a minha curiosidade... Eu andava pelo salão da biblioteca e olhava todos aqueles rostos. Todos tão familiares. Papai conversava com alguns outros professores, ele se sentia meio deslocado porque a maioria das pessoas que estavam ali eram pertencentes ao departamento de Parapsicologia e ele sendo do de Economia não tinha muito que discutir, mas os assuntos políticos do momento eram dominados por todos. O caso Watergate havia atingido até mamãe que nunca tinha se interessado por política. Anne não parava de comer, ela estava grávida de dois meses e achava que tinha de comer por dois; foi sorte dela não ter virado uma 118
baleia. O Wayne ficava entre ela e papai, falando de política. A não ser por Anne, todos de minha família só compraram livro porque eu tinha escrito, nenhum tinha interesse e eu acho que nem entendiam do que se tratava. Era um pouco constrangedor ver estudiosos na área me elogiando, enquanto meus pais nem sabiam do que aquilo se tratava... Ranhe e Eddie estavam lá. Como sempre meus maiores apoiadores. Eu olhava para Ranhe e sorriamos um para o outro, consumando nossas lembranças juntos, mas tanto eu como ela sabíamos que algo estava diferente; não só o fato de ela estar com Eddie e ambos muito felizes juntos. Todos dois, que me conheciam tão bem, notavam que eu estava a frente daquilo tudo. Ela lia as passagens do livro e se recordava dos momentos de minha vida. Todas aquelas imagens e revelações. Poucos podiam avaliar como ela o quanto tudo aquilo era real e forte. Os espíritos se ligavam a consciência dos vivos pelos caminhos mais simples: o amor, a dor, a solidão e a alegria. Coisas que se tende a ignorar quando se está 119
engajado numa parafernália de teorias e tecnologias, que muito além do seu nobre mérito científico, ao qual eu sou muito grato; está a procura de nós mesmo... Acho que por isso era tão difícil para os presentes aceitar as idéias de um jovem de dezanove anos. Mas eu tinha tempo... haveria muito a frente ainda. O coquetel já estava no final. Eu não assinei muitos dos livros, só para as pessoas mais próximas. Eu cheguei a ouvir comentários terríveis sobre o mesmo; algumas pessoas pareciam se sentir lesadas por uma obra de tão abrangente intenção tendo como base experiências pessoais e alguns fatos alternados entre subjetividade e objetividade. Em uma parte eu digo: “... nos desenvolvemos tanto que perdemos nosso sentido da simples percepção. Nós somos ignorantes por aceitar as verdades como verdades; a verdade é o que nós somos e por isso ao morrermos temos o desejo de retratação, com nós mesmos. A alma em paz é aquela que realmente viveu... “Acho que ser chamado de ignorante não é muito prazeroso, mas é isso que todos nós somos; como crianças que 120
têm de ser guiadas, mas ninguém guia corretamente pois também não se tem sido guiado dessa maneira. É um círculo de ignorância... As pessoas que pediram o autógrafo não tinham idéia do porquê faziam aquilo, mas faziam; e a vaidade em mim também pedia gratificação e mais que simples assinaturas; ela veio no final, em dois envelopes: O primeiro foi uma carta de felicitações e desculpas de Antônio Gastaretto, do Brasil. Eu o tinha convidado, mas ele não pôde ir. Eu acho que ele seria uma das poucas pessoas no mundo que poderia entender o que eu estava sentindo. Eu mandei uma cópia para ele e tenho certeza que entendeu o que eu quis dizer. Nunca mais tive contato com ele, mas sei que ele me acompanhou durante muito tempo. O companheiro tinha virado um cúmplice a distância. A nossa percepção nos unia. O outro envelope continha uma proposta da casta de parapsicologia da universidade de Colúmbia para que junto ao mesmo departamento em Harvard, eu fosse até a Austrália, para fazer pesquisas... Eu não sabia do que se tratava, mas a oportunidade de ir para 121
outro ambiente, longe de tudo, era muito atraente. Minha curiosidade atingia um ponto de procura de razoes tão grande que, como eu disse, Harvard tinha se tornado pequeno. Eu fiquei excitado com a idéia, mas o modo como eu tinha aprendido a me manter em paz e concentração fez da proposta somente uma oportunidade e não como o curso em Frankfurt, que no começo parecia a chance de uma vida e acabou sendo só uma porta para um contato, importante, mas que poderia ter sido posterior. O salão se esvaziou totalmente. Lá, ainda ficaram eu, papai e mamãe, e Ranhe e Eddie. Anne e Wayne já tinham ido embora...
- Eu acho que foi um sucesso, Joe...
- Para mim, pode ter sido, Eddie. Mas o departamento de parapsicologia está cambaleando. Nosso nobre curso está sentido que precisa de uma reformulação... - Ranhe se aproxima, enquanto eu arrumo as cópias restantes...
122
- Não, Joseph. Pelo seu livro, toda humanidade precisa ser reformulada. - Talvez! - Os dois se admiram com a minha seriedade... - Joseph... Nós adoramos você, mas a verdade não está em suas mãos... - Tem razão, Ranhe. Ela está nas mãos de todo mundo, só que ninguém vê. - Eu vi que papai ouvia o que eu dizia. Mesmo ele que parecia ter a verdade sempre na ponta da língua, não sabia como reagir as minhas afirmações, principalmente àquelas... - Joe, você devia relaxar mais. Faz um bom tempo que eu não vejo você rindo de verdade. - Ranhe olha para ele e em seguida para mim. - Acredite Eddie.... Eu nunca estive mais relaxado. A paz não é coisa fácil de se alcançar mas eu estou com ela. Quanto a verdade: cada um deve 123
encontrar a própria, sendo seu próprio guia... - Todos estavam calados. Eu quase podia ouvir suas mentes tentando interpretar aquilo. Eu gosto muito de minha família e de meus amigo, mas naquele momento eu tinha de procurar a minha verdade. E a Austrália era o próximo passo dessa estrada. Eu me despedi de Ranhe e Eddie. Olhava o carro se afastar e sentia que tinha, de um modo muito brusco, me afastado deles. Tudo aquilo que vivemos juntos, principalmente eu e Ranhe, parecia estar ficando longe, do mesmo modo que eu via as luzes do carro sumirem na noite. Era meio triste, mas eu sempre os teria na memória, com muito amor e carinho... Papai:
- Você não vem, Joseph? - Eu me virei:
- Não, pai. Eu estou com o meu carro. A gente se vê em casa.
124
- Tchau, filho. - Disse mamãe. Ambos entraram no carro e partiram. Eu também sentia que meus pais estavam se afastando. De um modo diferente: Mamãe sempre seria mamãe, mas eu tinha de seguir em frente. Quanto a papai, desde aquele abraço que lhe dei, ele nunca mais foi o mesmo comigo. Era como se a simplicidade daquele ato tivesse fechado nosso relacionamento entre pai e filho. Nós agora éramos dois homens. Mas minhas melhores memórias dele são e sempre serão a do pai sério e de autoridade natural. Aquele que sem dizer nada me fazia calar a boca... Eu olhava o campus em volta e me sentia um pouco só. Minha cabeça estava calma, mas cheia de idéias. Eu revia o livro e a minha vida... Pensava: A verdade... No carro dirigindo para casa o pensamento me vinha muitas vezes. Eu sentia que uma nova fase estava começando em minha vida. A medida que as ruas iam passando na minha frente, eu sentia como 125
se estivesse ultrapassando um portal: A publicação do livro; tantas dúvidas; tantas certezas e tantas despedidas. Eu não temia o que viria a minha frente agora, mas temia como eu iria reagir. Eu me lembrava das vozes do Oales Park; como se fossem um aviso... Eu suportaria?
126
XIV “ Eu voava por entre as nuvens. Me sentia leve. A cidade estava abaixo de mim. Parecia Boston, mas não era. Estava calma, toda perfeita e harmoniosa. Acima de mim estava o firmamento azul profundo, enchendo meus olhos, penetrando em minha visão. Eu podia sentir ele me chamando; eu ouvia meu nome ser chamado com suavidade como um coro celestial: “Joseph...” Eu tentei subir para alcancá-lo, mas não conseguia... Algo em baixo me mantinha no meio, podendo observar os dois lados. Eu tentei subir novamente e dessa vez eu fui puxado para baixo. Eu senti que caia e então estava novamente no Oales Park, de imediato meu medo veio à tona... Então a voz suave começou a aumentar; ela continuava a dizer meu nome, só que agora forte, em gritos. Nunca senti tanto pavor ao ouvir meu próprio nome. Era um chamado de dor que penetrava minha alma... “Eu abri os olhos. Era um sonho. Estava de volta à poltrona do avião. Estava a caminho de Sidney, na Austrália. 127
O próprio sonho havia me despertado, como se eu tivesse atingido o seu limite. Eu me sentia bem o suficiente para ir até o fim. Naquele momento me lembrei novamente do que Donny me disse naquele meu último sonho: se eu iria até o fim? Parece que sim... A viagem já durava oito horas. Dizem que a Austrália está do outro lado do mundo, o que me parece uma incoerência, já que a Terra é redonda, mas a sensação que eu tinha era de que estava realmente atravessando o mundo e eu nem sabia direito para que... A universidade de Colúmbia havia me chamado para ir estudar, avaliar e apresentar um parecer a respeito de um fenômeno paranormal que estava acontecendo numa região da Austrália. O departamento de parapsicologia de Harvard havia me recomendado e pelo acordo com a universidade de servi-la quando fosse necessário, eu não tive muita escolha. Eu podia ter recusado; mas a universidade me olharia diferente, não mais um estudante brilhante e sim um refratário. Mas de qualquer jeito eu não iria recusar tal proposta. 128
Eles disseram que esse projeto equivaleria a três semestre do meu curso, mas o relatório teria de ter mais fatores científicos, concomitando os estudos da Universidade de Colúmbia, Harvard e a Universidade de Melbourne. Lugar de onde eu deveria partir para a pesquisa, junto com um grupo de cientistas de lá. Confesso que me senti envaidecido com a convocação, mas eu imagino que eles ao me chamarem para chefiar aquela pesquisa não sabiam realmente o que estavam fazendo era como um teste. Muitos sabiam do meu poder, mediunidade segundo os espíritas, mas eles não sabiam o quanto aquilo podia afetar o meu julgamento científico. Era uma oportunidade de eu me afastar de Harvard por um tempo; de eu ver até onde eu podia ir com o meu poder, e uma oportunidade de fazer a universidade notar que eu não estava de brincadeira. Desde o lançamento do meu livro os rumos foram alterados e agora vinha a primeira encruzilhada... Eu cheguei no aeroporto de Sidney. Ainda tinha de aguardar uma hora para fazer uma conexão com o vôo para Melbourne. Me sentei no salão de 129
embarque para esperar. Estava muito cansado, mas em certo momento me toquei que eu estava num país estranho e distante. Eu olhava os rostos das pessoas e não via muita diferença, talvez pelas mesmas origens Anglo-saxônicas, mas podia ser aquilo que nos faz querer ficar juntos... era a sociedade; não a política da qual fazíamos parte, mas aquela amena que nos unia. Me lembrei da minha despedida. Foi diferente de quando eu fui para a Alemanha. Eram as mesmas seis pessoas, todos estavam iguais, a não ser por Anne que ficava mais gorda a cada dia. Mas todos os outros estavam iguais: Mamãe me abraçou. Papai me deu um aperto de mão, Eddie também me deu um aperto de mão e disse: - Eu sabia que você ia longe, Joe. Mas não tanto assim. - Todos riram, eu os acompanhei, mas não achava mais graça nas piadas dele. Eu me sentia até mal com isso. Ranhe me beijou no rosto; queria dizer algo mas viu uma certa dureza em meu rosto que a retraiu... Wayne apertou minha mão e falou algo com cangurus. Eu não me lembro direito. Acho que 130
a ignorância dele já me irritava. E Anne me abraçou. A imagem dela de futura mãe a deteve de qualquer comentário maldoso; o que foi melhor. Mas o problema era eu. Eu não conseguia mais ficar tocado. Ao ter contato com tantos sentimentos fortes, até sólidos, emanados dos espíritos, minha capacidade de ser tocado pelos vivos havia se alterado. Era como se a pureza tivesse filtrado tudo. Eu tentei me analisar. Ali, sentado, naquele aeroporto cheio de desconhecidos, eu parei e pensei: “Eu sinto falta de alguém?” Não vi resposta para aquilo. Eu fiquei um pouco triste. Eu sentia que tinha mudado e não podia esperar que as pessoas que amava me acompanhassem. Eu não queria voltar, eu tinha de ir em frente; até o fim. Eu só esperava que todos aqueles que deixei para trás entendessem que eu ainda os amava, mas precisava achar o meu caminho, sozinho... - “Vôo para Melbourne no portão dois!” Talvez a estrada comece aqui...
131
XV Sobrevoava a Austrália. Era uma visão fascinante. Era um constante contraste entre terrenos áridos e desertos, e cidades modernas com construções arrojadas. Talvez por isso esse país fascine tanto os imigrantes do mundo inteiro que aqui chegam. A viagem durou apenas duas horas. Um relâmpago comparado às 14 horas de viagem de Boston para cá. Taxiando no aeroporto notava que não havia muita diferença com o de Sidney. Era como se aquele país fosse planejado para ser daquele jeito. O novíssimo mundo!... No saguão me aguardavam o Professor Art Mandisen e uma estudante da universidade de Melbourne Karla Franren. Eu fui recebido pelos dois como uma celebridade. Não tinha certeza, mas acho que eles não sabiam que eu era só um estudante. 132
- Seja bem vindo, Senhor Tammerson. - Era um
homem alto, de gestos nervosos. Tentava imaginar uma aula dele... - Joseph. Por favor. É um prazer estar aqui... - Ele me apertou a mão com um sorriso meio sem graça. - Essa é uma das minhas mais brilhantes alunas, Karla... - ...Franrem. - Ela era loira e tinha o rosto queimado daquele sol quente. Eu definiria como uma beleza californiana. É o mais próximo que eu já tinha chegado da Austrália... - É isso mesmo. Como você sabia? Também lê mentes? - Eu mantive a seriedade. - Não. Eu li muito a seu respeito. Você é a garota que viu a transposição dos pais. - Ela ficou meio triste com o mencionado... Quando ela tinha treze anos, seus pais sofreram um acidente de carro e ela alegou ver duas luzes saírem de seus corpos enquanto eles 133
estavam na emergência do hospital. Há dois anos; já na universidade, estudando parapsicologia; escreveu um artigo descrevendo o fenômeno. Eu me interessei porque, como eu, tal acontecimento mudou o caminho da vida dela; no caso a visão de Donny na tela da TV e o interesse por fenômenos paranormais. Acho que para ela tinha sido pior. Ela não se despediu dos pais como eu fiz com Donny...
- Desculpe. Eu não queria...
- Tudo bem. É bom conhecer alguém que compreenda o que eu senti.
- É. Eu entendo mesmo... - O professor:
- Bem. Vamos indo. Vocês terão tempo de falar no campus e depois na expedição. Todos na universidade querem te conhecer. - Mesmo?! - Nós saímos andando em direção do carro. Minha estranheza ia além do fato de como 134
me tratavam... O que ele quis dizer com “expedição”? Logo eu saberia. Mas durante a viagem outra coisa surgiu em minha mente: A bela Karla estava de “short” e eu não conseguia tirar os olhos das pernas dela, e pior: ela não parava de olhar para mim. O que mais viria pelo meu caminho?... Chegando ao campus eu notei a primeira diferença com o mundo de onde eu vinha. Ele era novinho em folha, como um brinquedo de montar; bem diferente dos prédios antigos da universidade de Frankfurt. E em compensação seu tamanho era diminuto comparado a grandiosidade de Harvard. Eu fui instalado e em seguida fui apresentado aos outros membros da equipe. Eles não me deixaram descansar até de noite e a mudança de fuso horário estava me matando. Em Boston devia ser de madrugada, eu estaria dormindo... mas pelo menos eu pude comer enquanto eles me conheciam... - No seu livro você faz muita referência a ligação dos sentimentos humanos com o dos espectros. Você 135
acha realmente que eles se mantêm? - Pela pergunta dava para notar que era um dos que se ligam mais com o lado físico da parapsicologia... - Absolutamente. Eu não tenho como afirmar sobre outras coisas, apenas supor. Mas a nossa consciência, aquela que vivos nos faz sentir culpados ou aliviados; ela permanece e é até mais forte, pois ela fica livre das intervenções externas. Eu me refiro a convivência social e as nossas personalidades diante da mesma. - Você fala de sentimentos mas parece tão concentrado. Sério. Não seria um paradoxo? - Essa era ligada em psicologia. Tava na cara. - Não sei. Talvez. Eu não falo nada pra ser a verdade suprema. Quem leu o livro sabe pelo que eu passei. As vezes eu realmente acho que tudo isso afetou meus sentimentos e comportamentos, ditos normais. Mas eu ainda sei ser humano. - Eles riem e eu aproveito para continuar a comer. Eu me sentia como 136
um jogador dos Celtics quando dava entrevistas. Um herói. Somente a Karla não me perguntava nada. Acho que por ter presenciado um fenômeno, ela sabia dar valor a observação. Eu comia e eles perguntavam. Era um refeitório, estava vazio e só eu estava comendo. Eles estavam em volta. Todos pareciam ter menos de 25, mas eu me sentia uns dez anos mais maduro que eles. Era como se eles tivessem estudado meu livro para poder me receber... - Você condena a ignorância do homem a respeito dele mesmo. Você não acha que merecemos um crédito por querer aprender? - Esse parecia um padre falando. - Por querer aprender; sim. Mas não por procurar por tanto tempo no lugar errado.
- Como assim?
- As respostas estão dentro de cada um. Mas todos são guiados para fora do caminho por teorias que fogem ao centro da questão, o próprio homem. 137
- Aquelas perguntas já estavam me enchendo o saco quando a salvação veio... Era o professor Mandisen, ele vinha para explicar do que se tratava a pesquisa que íamos fazer. E eu já tinha acabado de comer. - Bom dia a todos... - Apesar da aparência frágil, todos pareciam respeitá-lo muito. Eu resolvi seguir o exemplo. Éramos em oito e eu sentia que era quem sabia menos ali sobre o que seria pesquisado... - Como alguns de vocês sabem, há sete meses atrás um de nossos antropólogos estava convivendo com uma tribo aborígene do Território do Norte e por acidente testemunhou um ritual chamado de Ameraníja. Pelo que os aborígenes contaram seria apenas uma transposição, como espectro do morto sendo liberado para o “além “. Mas o nosso antropólogo viu um fenômeno muito maior; ele fala de círculos de fogo se abrindo no espaço e relâmpagos direcionados. Foi constatado também que ele não tem nenhum tipo de poder paranormal como Karla aqui e nosso amigo da América, Joseph. - Minha curiosidade começava 138
a ser ligada. Parecia ser realmente uma oportunidade especial para todos, já que até as pessoas normais podiam ver esse suposto fenômeno. - Nos foi permitido enviar oito pessoas para observar o fenômeno e tentar documentá-lo. Vocês oito. Foi exigido que todos fossem jovens, por isso eu não posso acompanhá-los.
- Por quê, professor?
- Eu não sei. Foram exigências dos chefes da tribo. O nosso antropólogo tinha somente 22 anos. A equipe terá dois líderes: Jonh Abbot, ele é formando e está totalmente inteirado com o ocorrido. E também conhece bem a região a ser visitada. O outro vai ser Joseph Tammerson. Ele foi recomendado como o melhor parapsicólogo dos Estados Unidos e tem o poder de ver espíritos. Você é a chave da nossa pesquisa, Joseph. Você e Karla serão os que poderão confirmar a presença espectral durante o fenômeno... - Ela olha para mim sorrindo. Eu não mudei a minha 139
feição em nenhum momento, a não ser quando ele disse melhor parapsicólogo da América. Ninguém me disse que eu o era. Eu tive de viajar meio mundo para saber o que pensavam de mim em “casa “... Ele continuou a explicar. Eu estava muito cansado mas mantinha a atenção... - ... e então, infelizmente, vocês terão de ficar lá com a tribo até que alguém morra. - Ele não contém um riso tímido... - Para tanto, todos receberão o relatório da antropólogo que estava lá, para poderem não fazer nada que insulte seus costumes. Na verdade eu aconselho a todos que façam seus próprios relatórios antropológicos para conviverem melhor com eles e também para passarem o tempo. A observação é tudo. - Nisso ele tinha razão e eu tinha observado uma coisa e precisava perguntar: - O que aconteceu com o seu antropólogo? Ele deveria estar aqui pra contar o que viu. - O professor Mandisen olhou o tal formando que seria líder da 140
equipe, o Jonh Abbot. Os dois ficaram sérios. Acho que nenhum dos dois esperava a pergunta... - Ele está internado no sanatório universitário. - Todos se entreolham. O olhar de Karla vinha para mim novamente, só que agora estava com temor. Eu fiquei preocupado, mas não mudei minha expressão.
- Ele ficou louco? - Perguntou um dos alunos.
- Não exatamente. Parece que o fenômeno foi demais para ele. Após apresentar os relatórios, ele ficou meio desequilibrado. Tendo pesadelos e alucinações... - Respondeu o professor. E eu: - Isso é ficar maluco! - Todos olharam para mim, achando que era piada, mas ao verem a seriedade no meu rosto, viram que não era. - Nem todos suportam tais fenômenos tão facilmente quanto você, Joseph. - Falou o Jonh Abbot, contrapondo minha seriedade.
141
- Eu sei disso. Por isso sugiro visitarmos esse Antropólogo antes de partirmos. Eu detestaria ver qualquer um de nós sofrer o mesmo tipo de reação. - Eu concordo! - Disse Karla. - Está bem. Ele não está na área de segurança máxima e pode ser visitado. Eu marcarei um horário. - Todos olham em silêncio para o professor em sinal de acordo. - Por enquanto voltem ao seus afazeres. E Joseph... durma um pouco. Sua cara está péssima. Graças a Deus alguém notou... - Pra mim ela continua ótima. - Até hoje eu não acredito que a Karla disse aquilo na frente de todo mundo. Eu fiquei vermelho como a muito tempo não ficava... Todos riram até o professor... - Relaxa, Joe. Ela é assim com todo mundo. Me disse o Jonh Abbot. Apesar de certa arrogância, ele tinha a maturidade certa para ser líder. E eu: 142
- Joseph, por favor. - Eu queria mudar externamente assim como tinha mudado no meu interior, por isso eu passei a preferir a forma completa do meu nome: Joseph. - Tudo bem. - Todos se dispersaram. Eu fui para o meu quarto. Mal sentia as minhas pernas de tão cansado que estava. Mas minha mente não parava de pensar naquele fenômeno descrito pelo professor Mandisen e na reação que o mesmo causou no pobre antropólogo. Eu estava ansioso para ver o fenômeno mas sabia que a chave dele estava no homem que o viu antes. Pois nele foi natural. Se todos pudessem compartilhar tais fenômenos, a convivência humana seria muito mais amena e pacífica. Eu me lembrava da naturalidade de Antônio diante de tais coisas e a mim mesmo. Eu imaginava o quão longe poderíamos ir... Finalmente o quarto. Eu iria tirar umas dez horas de sono atrasado. Dois dias se passaram. Eu estudei com a equipe a respeito da tribo com quem íamos conviver. O relatório não era muito claro. O antropólogo já devia 143
estar doido quando escreveu. Ele fala de costumes de caça e pesca. Divisão do trabalho. Relacionamento entre os homens e as mulheres. Os rituais festivos. A influência da civilização e a ligação deles com o sobrenatural, não como no fenômeno descrito no final, mas a ligação que todas as culturas primitivas tem com deuses, a natureza e a morte. Ele não fazia referência a isso, mas eu acreditava nessa ligação como sendo a chave para a naturalidade deles diante de fenômenos paranormais. O que eles consideravam superstição eu via como uma espécie de “natural paranormalidade “. Enquanto estudávamos passei a conhecer aquele grupo tão distinto. Já havia notado que a hospitalidade deles era com todas as pessoas e não só comigo. Bem diferente da Alemanha, havia uma certa familiaridade entre eles e nós, americanos. Jonh Abbot parecia ter a liderança no sangue. Ele não era autoritário ou rígido, mas todos o respeitavam e ele se esforçava muito para ser e saber o que precisasse para auxiliar o grupo. Eu discuti várias vezes com 144
ele, mas nunca tiramos a autoridade um do outro. O choque entre a minha experiência e a liderança natural dele foi frutífero para todos, pois aprendíamos e localizávamos mais facilmente os obstáculos para assim poder transpô-los. A Karla Franrem parecia uma criança. Ela brincava o tempo todo. Tinha uma capacidade incrível de absorver informações e de tirar informações durante observações de eventos. Mas todo esse talento e vivacidade não conseguiam esconder a falta que ela sentia dos pais. Já faziam oito anos desde que eles tinham morrido e ela teve que viver com os tios, mas todo momento que o assunto “família” era mencionado sua alegria era engolida por uma discreta mas notada tristeza. Eu tinha vontade de conhecê-la melhor, mas confesso que o desprendimento dela para comigo me assustava. Eu teria de descobrir sozinho... Os outros cinco membros da equipe não eram mais que auxiliares para o nosso intento. Um técnico em fotografia espectral, uma Psicóloga, um Físico, um técnico em sismologia, já que o relatório do 145
Antropólogo mencionava que a Terra tremia durante o evento e uma médica que estudava Psicologia, para qualquer eventualidade. Todos tinham suas funções e talentos, mas todos seriam guiados por mim e por Karla, na hora do evento; e por Jonh durante todo o percurso e estadia. Ao fim dos dois dias estávamos inteirados sobre o assunto, curiosos e de certo modo entrosados para a convivência; isto seria intensificado durante a expedição. Mas o que queríamos mesmo era falar com o Antropólogo. Tirar dele a possível razão da sua insanidade e assim poder partir com toda a bagagem e conhecimento necessários para aquela tão misteriosa aventura... O professor Mandisen veio até nós na biblioteca numa tarde de quarta feira: - Boa tarde a todos! - O que eu disse sobre hospitalidade...
146
- Desculpe tê-los feito esperar, mas eu tive problemas para marcar a visita com o nosso Antropólogo. Na verdade... eu não marquei.
- Por quê, professor? - perguntou Jonh.
- Bom... É que há quatros dias ele...
- Ele tentou se matar! - Todos olham para mim com seriedade e em seguida para o professor: - Isso mesmo. Como você sabia? A informação era restrita. - Foi uma dedução elementar. Ele descreve que sentiu uma grande paz interior durante o evento. E como aquilo estava acontecendo com um morto, ele achou que morrendo poderia alcançar aquela sensação de novo. Como Jonh já disse, nem todos estão preparados para tais fenômenos. Foi por isso que ele só enlouqueceu quando voltou para a civilização. Ele não conseguia admitir viver numa sociedade 147
desordenada enquanto existia tanta harmonia e paz num outro mundo, tão próximo, ele só precisava morrer. - Todos me olhavam sérios com uma certa dose de pavor nos olhos. - Quando você deduziu isso tudo? - Quando passou o primeiro dia e o senhor não deu notícias. - Ele parece estar certo, professor. É a velha questão ética de revelar ou não a existência e tais coisas no mundo, tirando a vontade de viver das pessoas. - Esse foi o Jonh. - E tem outra coisa... A alma só encontra conforto quando teve contato com as coisas boas da vida. É a ligação da qual eu me refiro no meu livro: Os sentimentos permanecem sempre. Ele estava se enganando, de duas maneiras: ele nunca encontraria a paz que procurava. E se lamentaria para sempre. - Todos me olhavam com certa admiração e algum medo. Karla parecia a mais preocupada... 148
- Eu acredito que não vai haver mais visita, certo professor? - Ele responde meio desconfortável com minha desenvoltura: - É verdade. Ele agora está sedado e vai ter de começar um novo tratamento.
- E nós? - Perguntou a psicóloga.
- Eu não posso recomendar que vocês partam de imediato. Eu pediria que vocês revissem seus objetivos e decidam se querem mesmo ir. Nenhuma desistência será retaliada. Joseph, eu falei com Harvard. Eles disseram que você não desistiria. O que você diz? - Eles estão certos. Eu não vou desistir. Mas não condeno ninguém que o faça. - Todos se olham um pouco confusos. - Vocês não precisam decidir agora. Eu marquei a partida de vocês para daqui a uma semana. Até lá, 149
pensem bem. Agora, com licença. - Ele sai e ficamos nós... Karla e Jonh olhavam para mim. Eles pareciam ser os únicos que tinham certeza de que queriam ir em frente. - Bom, eu acho que chega de estudar. Eu vou comer algo. - Acho que todos precisavam desse corte na tensão. E Jonh: - Joseph está certo. Vamos mudar de ambiente um pouco. Teremos a semana inteira para pensar. Eu estou a fim de uma pizza; quem vem? - A decisão foi unanime. Nós saímos para comer, mas a minha cabeça não parava de pensar no pobre homem no hospício. Talvez algumas coisas devam ser deixadas longe dos olhos do homem até que ele amadureça... Afinal, até eu poderia ser atingido. Naquela noite uma visita bastante desejada, porém inconveniente veio ao meu quarto. Karla... - O que você faz aqui a essa hora? - Ela já entrava e fechava a porta. 150
- Eu precisava de alguém para conversar e sabia que só podia ser você. - Imaginava o assunto. Ela estava com um “robe” branco curto que revelava os seus metro e vinte de pernas grossas e bronzeadas. Não parecia ser roupa para um simpósio: - Do que se trata? - Eu perguntei, tentando manter a seriedade; mas estava difícil. - É sobre o que você disse. Que as almas só ficam confortadas quando viveram suas vidas plenamente.
- É verdade. Pelo menos foi o que eu senti.
- Então, você acha que meus pais estão em paz? - Quando eu ouvi a pergunta, um alívio me veio à cabeça... - Ah, certamente. A transposição que você descreveu é notada de almas em paz. Com uma passagem suave, em tempo; nada de brusco. E além disso eles tiveram tempo de criar uma filha linda... E eu aposto que eles sorriam para você no momento da 151
passagem. Eu teria visto... - Até hoje eu não sei se me arrependo ou não por ter dito aquilo... - Oh, Joseph... - Ela me beijou tão rápido que eu não tive tempo de dizer mais nada, apenas ceder. O resto a natureza cuidou de fazer e fez muito bem. Uma semana se passou e estávamos reunidos de novo na biblioteca. A partida seria na manha seguinte e os membros da equipe tinham que se decidir. Aquela altura todo mundo já sabia sobre eu e Karla. E uma coisa era certa: nós dois e Jonh iríamos, só os outros cinco tinham de dar suas respostas. O professor Mandisen chega: - Bom dia a todos. Espero que tenham chegado a uma solução. - Os cinco se olham como se esperando e temendo a resposta do outro. - Eu vou! - Disse a Psicóloga, com uma certeza admirável e até certo ponto estúpida, pois se ela estava tentando se auto-afirmar, aquele não era o evento 152
certo; mas eu não iria censurar ninguém, só esperava que ela tivesse sorte em sua escolha... - Muito bem, minha cara Angela. E quanto a vocês outros? - Eles se observaram por um segundo e disseram em coro: - Nós vamos! - O sorriso no rosto da professor demonstrava seu orgulho. Mas eu não podia deixar de ficar preocupado com todos eles. Como cada um reagiria? E se eu e Jonh seríamos capazes de auxiliálos se a situação ficasse grave. Karla via minha seriedade e começava a absorvê-la, mas acho que ela ainda não tinha experiência suficiente para entender o porquê daquilo. Eu só podia torcer para que tudo desse certo... - Muito bem. Então se preparem. Amanha às oito da manha vocês partem e eu tenho muita confiança em vocês. Boa sorte. Eu vejo Vocês amanha na hora da partida. - O professor sai. Todos sorriem meio amarelo e eu permaneço sério. Karla olha para mim e me beija o resto. Eu sentia que tinha arranjado 153
uma filha adotiva e não uma namorada. Apesar da inteligência e do conhecimento, ela parecia estar no colegial. Me peguei pensando em Ranhe. Me sentia meio culpado e até um pouco cafajeste, mas não pude evitar. Como era diferente... Acho que Karla combinaria muito mais com a alegria e as piadas de Eddie, mas no momento, o que eu tinha a perder?... - Muito bem pessoal. Preparem as malas. O Território do Norte nos aguarda e temos que estar preparados. Eu lhes garanto que será uma grande aventura. - Jonh falava como se fôssemos caçar zebras na África; eu não quis tirar o seu momento e de qualquer jeito, todos precisavam relaxar...Eu não via a hora de ver o tal fenômeno. Não sabia direito o que esperar, mas a expectativa estava no ar...
154
XVI Novamente sobrevoando a Austrália. Cada vez mais me fascinava com aquele país. Tanto sua beleza urbana como a sua beleza natural eram de uma magnitude e exuberância indescritíveis. Nós oito embarcamos no aeroporto de Melbourne. Estávamos a caminho da cidade de Augusta, no meio da Austrália Meridional, era o lugar mais próximo que podíamos chegar de avião comercial. A medida que se entra na Austrália, as paisagens urbanas vão sumido, com a proporção contrária para as paisagens naturais, no sentido sulnorte. Todos estavam excitados com o evento e com toda emoção daquela expedição, mas eu me sentia mais emocionado que todos. Aquele país tinha me deixado encantado; além da excitação pelo fenômeno, causa de minha viagem. 155
Karla tinha sentado ao meu lado. Como eu disse antes, sentia como se tivesse arranjado uma filha... Ela não largava a minha mão, acho que tinha medo de voar. E minha imagem séria e adulta a havia atraído. Seu corpo espetacular de 21 anos escondia uma menina de 13 que tinha perdido os pais. Algumas vezes me sentia mal com a nossa relação, mas a nossa pesquisa fez a situação ficar mais amena, pelo menos até voltarmos... Todos estavam sentados calmos em suas poltronas. A apreensão do trabalho a ser feito podia ser vista em seus rostos, principalmente em Jonh, que se sentia responsável por todos. Mas mesmo assim todos tentavam manter uma aparente calma que eu não sei se relaxava ou se piorava mais ainda os outros. Eu os observava com cuidado. Eles eram a minha equipe. Eu iria depender deles e eles de mim. Afinal eu era o líder técnico do time; não podia deixar que o nervosismo e a inexperiência da maioria prejudicassem o projeto ou eles mesmos, como aconteceu com o Antropólogo.
156
Pela janela eu ainda via a extensão da cidade de Melbourne começar a se afastar. Ela era regular. A maioria das cidades vistas do alto são calmas, parecendo brinquedos, até a louca Nova Iorque; mas essa cidade era como se fosse um desenho, totalmente regular, as construções mais suntuosas eram facilmente avistadas mesmo de longe, era uma cidade muito bonita, até hoje tenho essa bela lembrança da cidade de Melbourne, lá do alto, calma, perfeita... Enquanto nos afastávamos via a aridez do interior australiano começar a voltar a dominar a paisagem. Karla disse que tinha nascido em Augusta. E que ela mantinha o mesmo tipo de regularidade de Melbourne, só que bem menor; mal podia esperar para ver novamente aquela transformação de interior desolado para cidade moderna, era como cruzar dois mundos diferentes. E à medida que íamos para o Norte a aridez aumentava. Imaginava que tipo de lugar era esse tal de Território do Norte... Mais eu conhecia, mais fascinado ficava. - O que você tanto olha pela janela, Joseph? - Acho que Karla estava se sentindo meio ignorada, 157
pois tínhamos uns quinze minutos de viagem, todos estavam tentando dormir e só eu e ela estávamos de olhos abertos e os meus não saiam da bela paisagem. Acho que se tem de ser de fora para apreciar as coisas mais simples de um lugar e por isso:
- Joseph, por favor!
- Desculpa, Karla. Seu país deixa-me fascinado com tanta beleza.
- Se você acha desertos bonitos...
- Você não sabe o quanto... Mas tem outra coisa que eu acho muito bonita... - Ela começou a sorrir de novo. Era como uma criança. Você dá um doce e o emburramento desaparece.
- E o que é? - Eu me senti um cafajeste:
- Você... Minha linda loura da Austrália. - Eu nunca tinha dito uma frase tão horrível... 158
- Oh, Joseph. - O restante foi bom, mas irrelevante. Folgava em saber que só sua personalidade era tão imatura, sua eficiência profissional compensava tudo, eu acho... Finalmente, Augusta. Era exatamente como Karla disse: regular, mas menor que Melbourne, bem menor; o avião iniciou o pouso. Karla apertou minha mão muito forte. Eu dei uma última olhada para Jonh, que estava na fileira vizinha. Ele me fez um sinal de tudo OK com a cabeça. Os outros cinco estavam normais. O avião pousou. Só havia mais dois aviões no aeroporto naquele momento. Imaginava se um deles era o nosso, que tinha sido fretado para o resto da viagem pela Universidade. Andamos até o saguão onde alguém nos esperaria para nos levar a ele. Ao chegarmos lá não vimos ninguém a nossa espera. Sentamos um pouco para esperar. Não pude deixar de notar que Karla se incomodava de ficar mais tempo que o planejado na cidade onde ela nascera onde seus pais morreram... 159
- Calma Karla. Logo vão aparecer e nós vamos partir. - Não precisa se preocupar Joseph; eu estou bem. É que às vezes as lembranças voltam à mente e incomodam. - Você não tem nenhuma boa lembrança daqui? Só ruins? - Não. Eu fui uma criança feliz aqui. Mas as lembranças más sempre parecem prevalecer... - Eu me calei. Ela estava certa. De um modo mais intenso era o que eu sentia em relação às vozes do Oales Park. A memória de tanta dor e tristeza me faziam evitar aquele lugar, do mesmo modo que Karla se sentia consternada por estar em Augusta. Depois da morte dos pais ela foi para Melbourne, viver com os tios e essa era a primeira vez que ela voltava ali. Acho que Jonh também sabia disso:
160
- Tudo bem, Karla?! Logo a gente vai embora! - Ele deu uma olhada para mim e eu soube o que fazer; eu a abracei. Nunca tive certeza, mas acho que Jonh gostava de Karla e apesar de grande líder sua timidez se revelava no momento de se expressar sobre ele mesmo. Era um sujeito interessante, merece ser mencionado aqui. Vinte minutos se passaram e apareceu o encarregado do avião fretado pela Universidade. Era um senhor vestido de mecânico, acho que era um... Muito gentil mas meio atrapalhado... - Olá. Vocês são o pessoal da escola, não? John olhou para mim e eu sorri, pensando: “Escola” Eu acho que o homem pensava que era uma excursão de ginásio. Jonh: - Sim, senhor. Já podemos partir? - Claro. O avião está terminando de ser reabastecido. Eu vou levar vocês até o hangar. Venham. 161
Nós pegamos as nossas coisas e seguimos o homem até o hangar. Como eu estava errado sobre o avião... - Aí está ele. O Silver Doom. - Um nome nunca se encaixou tão bem numa coisa. Era prata, realmente. E também era o fim... Era uma relíquia da Segunda Guerra e praticamente pedia para se aposentar. Jonh não resistiu à pergunta:
- Esse avião é seguro, senhor?
- Oh, sim. Nunca caiu em trinta anos de uso. - Eu imaginava até quando a sorte iria durar... Jonh virou para gente e... - O professor Mandisen disse que os recursos estavam poucos. Eu só não imaginava que tanto. O que Vocês acham?- Todos se entreolharam. Eu me propus a abrir caminho para os outros:
162
- Por mim, tudo bem. Eu não quero voltar depois de ter começado a jornada. - Karla: - Eu estou com Joseph! - Os outros cinco como sempre hesitaram por alguns segundos e depois: - Nós vamos! - O medo de ser considerado covarde era maior que o medo de morrer. Era nobre e estúpido. Apesar da minha preocupação com o grupo não podia deixar de gostar cada vez mais deles. - Tudo bem. Todos a bordo. - Nós entramos no avião. Havia dez lugares para passageiros e o resto para carga. Apesar de velho ele era limpo e mesmo com certo receio, nós éramos jovens, não podíamos deixar de ver naquilo uma aventura, como em filmes... O avião decolou. A trepidação inicial e a falta de pressurização foram os primeiros sinais de que a civilização estava ficando para trás, e de certo modo nossos passados. A medida que a cidade sumia e o deserto se tornava a paisagem dominante, um medo 163
repentino me veio. Era mais uma expectativa. Acho que todos sentiam o mesmo. Estávamos indo fazer uma pesquisa científica de nível acadêmico, mas em certo ponto eu comecei a concordar com o senhor que nos atendeu em Augusta: nós éramos estudantes em excursão, só que sem “adultos” para supervisionar. Nós tínhamos de cuidar de nós mesmos... Amadurecer.
164
XVII Deserto, montanha, rio quase seco. Essa seqüência de acidente geográficos se revezavam à medida que nos aproximávamos do centro do Território Norte. Tínhamos que viajar até uma cidade às margens do Lago Eyre e de lá ir de carro até a vila dos aborígenes que era às margens do Rio Eyre, perto da nascente do mesmo, bem no centro do Território Norte. Apesar de deslumbrante para um visitante como eu, ficar olhando para aquilo por três horas seguidas tinha me cansado. Os outros dormiram toda viagem, até mesmo Karla. Eu queria conversar com alguém... Fui acordar Jonh.
- Jonh! Jonh!
- O quê? Joseph. Já chegamos?
165
- Não. Eu queria lhe falar. - Ele esfregava os olhos.
- Sobre o quê?
- Sobre esse território. Você é daqui, não é?
- É, sim. Eu nasci e cresci em Nearyere, a cidade onde vamos pousar.
- O que você sabe sobre os aborígenes?
- Eu nunca tive muito contato com eles. Os poucos que vivem na cidade ficam em comunidades só deles. Eles parecem normais, sei lá. Eles têm seus costumes, suas crenças. Quando a igreja protestante chegou aqui tentou catequizá-los, mas não conseguiu. Alguns pastores diziam que eles eram bruxos, feiticeiros com poderes telepáticos, mas ninguém nunca provou nada. Eles também são muito fechados na cultura deles. Eu não os culpo... Quando nós, brancos, chegamos aqui; nós os maltratamos muito... 166
- É. Eu conheço bem essa história. Só que em outro cenário. - Fala dos índios americanos?! - Eu fiz um gesto com a cabeça. Como toda geração mais jovem que vai surgindo no mundo, nós nos sentíamos culpados pelos erros dos nossos antepassados e sempre achamos que a mudança só depende de uma atitude contrária. Pena que a maioria das pessoas envelhece e acha que a responsabilidade é da próxima geração... Acaba sendo um ciclo vicioso que nunca acaba e que nunca muda. - Escuta, Jonh, o carro que a gente vai pegar não é da Segunda Guerra também, é? - Ambos rimos. - Não. Eu falei para minha família providenciar tudo em nome da Universidade. Eles não vão me deixar na mão. - Tudo bem. - Nesse momento o piloto avisa pelo rádio que vai começar o pouso. Eu voltei para minha poltrona e apertei o cinto. Uma coisa ainda 167
estava na minha cabeça em relação à conversa com Jonh: Se os aborígenes eram realmente telepatas... A telepatia é uma percepção extrasensorial comprovada, mas será que uma raça inteira seria capaz de possuíla; talvez pela genética. Eu ficava curioso, mas certas coisas ainda me amedrontavam... E se eles realmente tivessem esse poder. Tudo que o antropólogo disse que viu poderia ter sido uma ilusão colocada em sua mente pelos aborígenes. Eu não via motivo para isso... As perguntas apareciam em minha cabeça à medida que o avião descia. Até que ele toca o chão e eu olho pela janela... Bem diferente das cidades do sul do país, aquele “vilarejo” empoeirado só parecia ser salvo pela presença do lago. Jonh, quando viu meu olhar, veio ao resgate da imagem de sua cidade natal: - Ela sempre fica assim na época de baixa. Quando o rio sobe e o vento para de soprar dá para se ver os prédios e as construções maiores lá na frente, não é uma metrópole, mas se vive bem. - Não sabia se me aliviava com aquilo ou não. Na verdade eu não estava ligando muito. Era só uma escada para o nosso 168
objetivo. De qualquer jeito eu exagerei no termo vilarejo... O pai de Jonh nos esperava com uma perua. Nós iríamos passar a noite na cidade para no dia seguinte partir novamente em direção da tribo aborígene. Jonh disse que um dos aborígenes da cidade iria conosco. Seria a apresentação e ele precisava de carona. Mas antes, nós teríamos um jantar com a família de Jonh e de certo modo observar o comportamento de uma família é sempre interessante. Nós chegamos à casa da família de Jonh, os Abbot. Acho que pode se chamar de classe média australiana. O carro que iríamos usar estava lá e Jonh estava certo. Era um carro novo e bom. Nós decidimos arrumar logo tudo antes de descansar. Dois irmãos pequenos de Jonh ajudaram. Parecia um ambiente familiar normal. Todos estávamos com fome e cansados. Até o eterno sorriso no rosto de Karla estava meio apagado. Essa tinha sido a parte mais amena de nossa jornada e estávamos mortos. 169
Tentava não pensar no resto dela. Só uma coisa me animava: a união da família Abbot, não pude deixar de pensar na minha; só tinha mandado uma carta com o nome de todos... E esperava que estivessem bem. O jantar transcorreu normalmente. Foram postas duas mesas, uma junto da outra para caber todo mundo. O pai de Jonh, Francis Abbot, estava na cabeceira da mesa. A esposa Marlene, calada e muito educada. Uma irmã de 16 anos, Anette, que não tirava os olhos do Bob, nosso físico. Os dois irmãos pequenos, Harold e Francis Jr, que não paravam de brigar um com outro e claro, nós oito. Todos estávamos cansados, mas cumprimos aquele ato de protocolo com muita boa vontade. - Pai, o Kanega ligou para confirmar a partida? - Ligou sim. Hoje de manha. Ele disse que vai estar esperando na entrada da barca amanha às sete. - Certo. - Ele dá uma olhada rápida para mim, indicando que tudo estava no caminho certo.
170
- Como está a voz dele, pai? - O Sr. Abbot não contém o sorriso. - Melhorando... eu acho! - Jonh, então se dirige a todos: - É que ele veio pra cá com 14 anos e seu inglês tem um sotaque engraçado. Joseph, você que é dos Estados Unidos vai notar uma diferença incrível do nosso para o dele. - Todos sorriem levemente. O Sr. Abbot falou em seguida: - As coisas não devem estar nada fáceis em seu país, não é garoto? - Dessa pergunta somente o termo garoto me incomodava. Eu me detive a uma resposta curta: - A gente sobrevive... - Notei que durante o jantar ninguém falou sobre o nosso trabalho. Eu não tinha certeza se eles estavam ignorando o assunto, como eu fazia em casa ou se simplesmente eles não queriam falar naquele momento. Notei uma concentração 171
incrível naquela família, uma união; mesmo Jonh estando tão longe, se encaixava perfeitamente no contexto. Acho que por isso o conflito profissional que há na maioria das famílias não havia naquela. Sua união sobrepujava todos os caminhos diferentes. Terminamos o jantar e fomos para uma sala de visitas. Karla estava derretendo em meus braços de tão cansada. Eram dez da noite, todos queriam dormir, mas mesmo assim acompanhamos os Abbot no café. Os outros “batiam papo” enquanto Jonh e o pai ainda falavam sobre os preparativos para o dia seguinte...
- E o combustível, pai? Tem suficiente?
- Não se preocupe, filho. Kanega fez os cálculos e deu a distância a ser percorrida. Tem galões de reserva no carro e o tanque está cheio. Vai dar tudo certo. - O modo como eles conversavam me deixava com um pouco de inveja; nunca tive tanta proximidade assim com papai; tentava ficar feliz por Jonh... Karla dormia em meus braços e eu então falei: 172
- Desculpe, mas onde são os quartos? - Todos olharam para mim. Jonh ficou completamente vermelho. Só depois de alguns segundos eu notei o que tinha feito. Eu tinha de tentar consertar: - É para Karla. Ela não está se agüentando de pé. - Ainda meio sem graça o Sr. Abbot disse para a esposa mostrar o quarto das garotas. E eu: - Ângela, leve ela por favor. - Eu não queria piorar a situação indo até o quarto com elas. Dei uma olhada para Jonh, ele estava entre querendo rir e envergonhado. Eu ainda de pé, disse: - Eu vou tomar outra xícara de café. - Eu não queria, mas tinha que me livrar de toda aquela atenção. Afinal, tinha uma coisa que os Abbot realmente ignoravam e eles eram unidos até nisso... Era sexo. Daí me veio a explicação da timidez de Jonh em assuntos pessoais. Toda sua família era ajustada, mas não era muito emotiva... a não ser a irmã de Jonh que continuava se derretendo por Bob. Foi um sufoco, mas 173
ao me lembrar disso eu acho muito engraçado. Agora eu só queria era dormir e de manha partir para a nossa “aventura “, este encontro com a família Abbot foi agradável. Era o nosso último e real contato com a civilização e acho que precisávamos daquilo... Na manha seguinte estávamos na estrada. Atravessamos a cidade, para poder atravessar o lago de barco. Era mais prático que dar a volta nele e depois seguir para o Norte. Não era tão grande quanto os Grandes Lagos, mas chegava perto; era o maior da Austrália e levamos uma boa meia hora para atravessá-lo. Antes de pegar o barco, nós encontramos o aborígene Kanega, que iríamos acompanhar na viagem, voltando para sua tribo, a mesma que íamos estudar. Ele parecia normal. Seu sotaque era realmente curioso; era como se ele tivesse aprendido inglês com um chinês. As contrações eram todas sem a entonação apropriada. É uma coisa difícil de descrever. Kanega vestia roupas normais e conversava sobre qualquer coisa. Eu não conhecia muito sobre 174
os aborígenes. Eu não sabia se a civilização tinha afetado sua vida como nós afetamos os nossos índios. Admito que estava curioso em ver um “primitivo “, para poder comparar. A observação daquele povo seria a abertura para a compreensão do fenômeno que iríamos estudar. Até aquele momento eu só tinha tido contato com espíritos ocidentais, queria saber até que ponto a cultura afetava a alma humana depois da morte do corpo. O contato com o mundo espiritual deveria se ligar à vida de uma maneira tão simples que escapava aos nossos olhos; o que eu tinha certeza era sobre os nossos sentimentos, mas havia mais a ser desvendado. Atravessamos o lago e pegamos a estrada de novo. Jonh disse que era asfalto por um bom pedaço antes de termos de nos embrenhar pela aridez daquela terra; por sorte todo caminho era margeado pelo Rio Eyre e assim teríamos água mesmo estando em algumas partes, seco, quase tocando o leito. Apesar das dificuldades, a beleza desértica daquela região continuava a me encantar. Somente Kanega parecia 175
ver o mesmo que eu. Era à apreciação de uma beleza familiar no caso dele, pois ele estava voltando para casa e era uma coisa que nenhum dos outros tinha, acho que em nenhum lugar do mundo. Era triste pensar que se precisava ir longe para se apreciar o que sempre esteve perto. Eu pensava em minha rua... Finalmente terminamos a estrada de asfalto. Ela seguia até o litoral Norte, mas nós estávamos virando um pouco para o Leste, para poder chegar à nascente do rio, onde estava a tribo aborígene. Durante todo o caminho, que ao todo durou um dia e meio, com Jonh e Bob revezando na direção, nós paramos somente quatro vezes para reabastecer de gasolina e de suprimentos. Havia algumas cidades pequenas que sobreviviam unicamente da cheia do rio e quando passamos só continham a imagem da desolação. Não sei se era uma visão bonita ou não, mas parecia normal a todos os meus companheiros de viagem. Eu acho que eu não estava acostumado àquela visão... Nós paramos um pouco para esticar o corpo perto de um riacho quase totalmente seco, com algumas árvores 176
desfolhadas ao redor. Todos demonstravam seu tédio diante da viagem tão estafante, menos Kanega. Estava calmo. Olhava sempre ao redor como que prestando atenção no silêncio... Eu o observava e não podia parar de pensar se aquilo era um sinal de telepatia ou apenas saudades da tribo. Eu queria perguntar a ele, mas não o fiz... Afinal a civilização tinha afetado aquele povo, pelo menos aquele homem, só que de um modo diferente: quanto mais longe ele ficava de suas origens, mais sentia falta... Eu quase podia ver a satisfação em seus olhos por estar de volta a toda aquela natureza agreste que os outros teimavam em desprezar. Mal podia esperar para ver aquele homem reencontrando o seu povo. Provavelmente seria magnífico. Um traço de fumaça já estava visível no horizonte. Era a tribo. Os olhos de Kanega lacrimejavam discretamente. Bob estava ao volante naquela última fase da viagem. Ele cutucou Jonh que estava na frente com ele naquele momento, dormindo...
177
- Jonh! Acorda! Chegamos a última fronteira. - A piada com relação a Jornada nas Estrelas parecia diminuir o mérito de um futuro físico; limitadora. Mas eu entendia o que ele queria dizer.... Jonh meio sonolento, olhou para o horizonte. Sorrindo, ele virou para trás e disse: É. Chegamos aqui inteiros. Não foi tão difícil, foi? - Todos riram. Acredito que eu era o único que estava muito afetado por aquele calor. Afinal eu era de uma região temperada. Mas eu nunca fui de reclamar, participei do entusiasmo de todos ao chegarmos ao nosso objetivo... O primeiro a sair do carro foi Kanega. Agora, liberando seu choro, ele corria para os braços de sua família. Na verdade era a tribo inteira, pois todos se aglomeraram ao seu redor. Ainda dentro do carro eu olhei para os lados, eu pensei que podia haver algum espírito ali no momento para partilhar aquilo, mas não havia. Hoje eu entendo porque; eles tinha uma vida muito plena, com toda ela sendo aproveitada, aproveitar um simples momento não parecia necessário, pois eles tinham aproveitado a todos. Vendo aquela aglomeração de pessoas em 178
volta de um filho que retorna, eu via que eles estavam certos. As outras culturas valorizam o que é de fora em detrimento dos seus. Mas eles não.... A felicidade de ter um membro de volta não era ultrapassada pela hospitalidade que nós oito estávamos acostumados. Nós assistimos àquela recepção a Kanega, em silêncio, por uns dez minutos. Acho que todos entenderam o que eu tinha sentido. Era um bom sinal, pois a compreensão mútua era uma necessidade básica para a nossa tão próxima, e provavelmente tão longa convivência. Não cheguei perto o suficiente, mas acho que todos da tribo choraram ao reencontrar Kanega... A noite estávamos instalados. Após o reencontro com Kanega eles nos ajudaram com a bagagem e nos instalaram numa cabana na periferia da tribo. Acho que eles entendiam a necessidade de uma separação entre as culturas. Alguns que falavam inglês nos explicavam rapidamente de alguns costumes, para não ficarmos muito perdidos nesses primeiros dias. Haveria uma apresentação formal naquela noite e nós nos preparávamos para ir após termos nos instalados... 179
- Sem divisão de quartos! - Essa era Angela. Para uma futura Psicóloga, ela tinha uma mente bem fechada. - Não se preocupe, Angela. Com o tempo tudo se resolve. - Jonh mantinha o tom de liderança. - Eu não me importo de dormir com os rapazes! - Karla. Quem mais... Fazendo, eu e Jonh ficarmos envergonhados, por motivos diferentes, e todos rirem. - É melhor nós irmos. O chefe deve estar nos esperando. E advirto: não esperem nenhum banquete, os aborígenes também sofrem muito com a baixa do rio. - A dureza de Jonh vinha sempre em ondas. Acho que ele ficava mais duro na hora da insegurança, justamente para não demonstrá-la. Nós fomos... Nós sentamos à direita do chefe. Kanega estava lá e já em trajes nativos. Parecia se sentir muito melhor daquele jeito. De certo modo eu entendia porque, estava um calor de matar... A comida era simples mas boa. Eu não quis perguntar o que era, para não 180
cometer nenhuma “gafe” intercultural, mas acho que era carne de canguru. A bebida eu não faço idéia do que possa ter sido. As garotas pareciam muito mais afetadas por aquilo que nós homens. Após a comida eles realizaram uma dança no centro da tribo, ao redor do fogo. Kanega disse que era as boas vindas oficiais aos nobres feiticeiros brancos. Cientistas. Ao fim das comemorações estávamos todos mortos de cansados. Era interessante começar um relacionamento com uma cultura tão diferente. Eu estava cansado, mas excitado. Não quis começar o assunto logo, mas queria muito perguntar sobre o evento com o Antropólogo. A curiosidade rondava todo grupo, mas a praticidade também rondava a mente de Jonh: - Ei, Joseph!. O que a gente vai fazer em relação à cabana? Agora que vamos dormir a coisa me veio a cabeça... - Eu queria dizer a ele para deixar a natureza seguir seu curso, mas eu não queria ser irônico diante da apreensão dele. Acho, na verdade, que ele era virgem.
181
- A gente bota um lençol no meio da cama. Igual àquele filme com o Clark Gamble... - Ele me olhou estranho. Não sei se ele achava a idéia idiota ou se nunca tinha visto o filme, mas...
- É sério, Joseph.
- Jonh. Todo mundo tá morto. Você acha que alguém vai pensar nisso agora. - Ele ficou novamente envergonhado. - Tudo bem. Mas amanha a gente vai ter que resolver isso.- A preocupação dele com uma coisa tal banal chegava a me irritar. No final, dormimos todos juntos, nos sacos de dormir, sem ninguém ligar para nada. Acho que todos já estavam dormindo quando deitaram pois nem tiraram roupa ou disseram boa noite. Talvez tenha sido aquela bebida... Aquela estranha cultura agora nos rodeava. Nós tínhamos uma missão a cumprir. E um mundo novo nos aguardava pelos próximos cinco meses... Veremos.
182
XVIII Os dias se passavam tranqüilos. Nós ficávamos cada vez mais amigos dos aborígenes e de nós mesmos. A maior parte dos dias passávamos acompanhando os batedores. As caminhadas pelas pradarias eram as melhores oportunidades para fazer eles se abrirem; tirava o tédio inicial das caçadas. A não ser por Karla que sempre vinha com a gente, as duas outras mulheres do grupo ficavam na aldeia. Elas não gostavam muito daquele ambiente selvagem. Se ocupavam mais com as observações da vida social da tribo. Angela, a Psicóloga, fazia entrevistas com os mais velhos e com as mulheres. Eles não falavam muito, mas na medida do possível ela conseguia informações que serviam para nós todos... A relação que a paranormalidade tinha em suas vidas. De um modo geral era encarada como “normal “. Laura, a Médica, tentava ajudar no que podia os doentes que surgiam na tribo. Eles não lhe permitiam ir muito longe, tinham sua própria medicina e só a deixavam 183
interferir quando não encontrava outro jeito. Era difícil. A todo momento podíamos perder a confiança deles. Sua hospitalidade podia ser desperdiçada, principalmente, por uma sombra que nos perseguia: Eles sabiam que nós queríamos observar o Ameraníja, como o Antropólogo; e era impossível esquecer que algum deles teria de morrer para se fazer um e do jeito que eles eram apegados uns com os outros, imaginava o quanto era difícil conviver com um grupo de pessoas que estava ali esperando por esse tão triste acontecimento. Acho que era um motivo a mais para eles repudiarem a ajuda de Laura... Durante uma das caçadas, onde estavam dois batedores, Kanega, eu, Jonh, Bob e Karla; foi um dos dias mais proveitosos para a nossa futura observação. Talvez pela presença de Kanega no grupo, os homens tiveram mais liberdade para falar: - Joseph. Você não sente saudades de casa? A América fica tão longe. - O interesse de Kanega era por causa da forte ligação que eles tinham. Acho que 184
era difícil entender porque alguém se afasta tanto dos seus entes queridos para poder observar um “funeral “... - Eu sinto, Kanega. Eu não espero que entenda, mas eu sinto que tenho que conhecer tudo que está ao meu redor, antes de ter de me voltar para o que está próximo. Quando me chamaram para essa viagem eu achei que seria uma oportunidade para eu fazer esse reconhecimento. - Os dois batedores estavam à frente. Bob caminhava meio distraído, mas Jonh e Karla nos ouviam atentos. - Mas por que você tem de ir tão longe? Não bastava você olhar ao seu redor. Ver o que tinha. - A frase me soou meio infantil, mas fazia sentido. - Eu não sei, Kanega. Talvez você esteja certo... - Karla me olhou meio triste... -Kanega, você pode falar sobre o Ameraníja. - Um dos batedores mudou o passo. Acho que ele nos entendia... 185
- Eu não sei muito, Jonh. Eu nunca assisti nenhum. Quando eu era pequeno houve um, o do chefe anterior, mas crianças não podiam participar. Eu fiquei na cabana e ouvi os sons... - Bob se adiantou em perguntar: - Que tipo de sons? - Trovões eu acho. Além das canções de chamado. - Karla então perguntou: - Como são essas canções? - Os dois batedores começaram a falar entre si. - São do mesmo tipo que cantavam para fazerem as crianças dormirem. - A resposta dele me intrigou por um segundo, mas fez sentido no final. Era o encontro com a paz... Notando o interesse dos dois homens à nossa frente eu participei: - Algum de vocês viu o último Ameraníja? Eles se viraram. Olharam para Kanega e não viram nenhuma restrição... 186
- Nós ver, sim. - O outro só balançava a cabeça positivamente. - Você consegue dizer o que sentiu? - A pergunta estranhou até Kanega. - Sentir casa!- Só eu fiquei satisfeito com a resposta. Mas Jonh: - Como assim, casa?! - Karla também demonstrava curiosidade:
- Você diz sua casa?
- Todo mundo! - A resposta fez mais sentido ainda. Todos estavam confusos. Bob não fazia idéia do que o aborígene estava dizendo...
- Mas e... - Jonh queria mais, mas:
- Calma. Com o tempo você vai entender. - Ele não ficou muito satisfeito, mas se calou. Continuamos 187
a caminhar. A beleza da pradaria e o silêncio reinavam novamente. A minha mente já formulava o que seria a base de todo o meu relatório. Ter contato com aquelas pessoas tão simples elevava minhas teorias num ponto de tal confluência que nem eu. àquela altura, podia imaginar o quanto as respostas do aborígene estavam certas. Era fascinante ver as peças se encaixando. Naquela noite fizemos a nossa reunião semanal. Jonh a presidia e Karla tomava nota de tudo que era decidido... - O pessoal que ficou na aldeia hoje... O que fizeram? - Nós marcamos o lugar onde o equipamento vai ficar no dia do evento. Quando acontecer! - Angela parecia perder o entusiasmo.
- Você entrevistou a esposa do morto?
- Sim. Deu pena da mulher. Parecia sentir falta do marido até hoje. - A fidelidade deles era memorável. 188
- Eu vou fazer um resumo de como ela se sentiu no dia do Ameraníja do marido: “Eu via o rosto dele iluminado pela lua e pela fogueira. A tristeza estava no rosto de todos enquanto se aguardava o momento. O vento começou a soprar forte e as estrelas foram encobertas pelas nuvens dos espíritos. Nós começamos os cânticos. Estávamos dizendo adeus a Onala. Dançamos ao redor do corpo e os espíritos começaram a nos acompanhar. Nós nos despedíamos e eles davam as boas vindas. A dor das lembranças e a alegria do momento se misturaram e então a luz de Onala flutuou para os relâmpagos. E uma paz dominou a todos, vivos e mortos. Só restava a saudade.” - Todos se entreolharam. A antipatia de Angela com aquela vida selvagem não parecia afetar sua eficiência. Ela leu aquilo de um modo frio, mas totalmente claro... E Jonh:
- Joseph, o que você acha?
- Eu acho... que de lados diferentes, as histórias se ligam. O Antropólogo, essa mulher, os dois homens 189
hoje de manha e o chefe com aquela história que ele nos contou sobre o dia dos mortos. Não parece haver contradições que indiquem uma possível fraude ou ilusão... - Karla aumenta: - É verdade. A descrição da esposa sobre “a luz do marido” é perfeita. Igual aos meus pais. - Todos pareciam convencidos e intrigados. Bob, o Físico, era o menos satisfeito pois a parte de sua ciência só podia ser avaliada no momento. O sismologista também, mas menos. - Acho que todos temos material suficiente para iniciar nossos relatórios, pelo menos a parte humana da coisa. Infelizmente só nos resta esperar um falecimento... Nossa, eu me sinto um urubu! Todos riem da piada de Jonh ao terminar a reunião. Era engraçado, mas era o que nós estávamos sendo... Esperávamos que alguém morresse para cumprir o nosso intuito... Estávamos próximos do fim agora. Tudo que aprendemos. Tudo com o que convivemos. Até o modo como eles eram piedosos durante as caçadas. 190
Hospitaleiros durante as refeições. Atenciosos durante os questionamentos, mesmo tendo medo de responder algumas vezes. Era fascinante estar com um povo tão gentil, que não nos pedia nada em troca além do respeito e graças a Deus nós conseguimos dar... Nós oito vivíamos nossos dias com os aborígenes de um modo brando. No calor daquele sol, no aprendizado de cada dia. Era a nossa superação final entre as culturas. De certo modo eu já sentia falta daqueles homens e mulheres seminus, que com uma visão tão simples do mundo, seu mundo, conseguiam viver mais felizes que todos nós... Agora era só esperar...
191
XIX Dia do Ameraníja. Depois de mais de quatro meses desde a nossa chegada iríamos testemunhar o evento no qual os aborígenes se despedem de seu ente morto, o entregando para os espíritos. Um dos anciãos da tribo havia morrido no dia anterior. Laura não pôde fazer muito por ele. Era somente velhice. Uma morte natural. Coisa que de certo modo nos aliviava do pesar de estar ali esperando alguém morrer. O velho fazia parte do conselho da tribo e tinha deixando uma mulher, também muito velha e oito filhos, sendo que três destes viviam em Nearyere, na mesma comunidade que Kanega. A tristeza rondava toda a tribo, apesar da morte ter sido esperada. Eles realmente sentiam muito a perda de um de seus membros. Nós só podíamos tentar confraternizar com a consternação deles enquanto nos preparávamos para a observação do evento. 192
Eles prepararam uma espécie de altar onde o
corpo ficaria. Nós colocamos câmeras de fotografia espectral e normal ao redor do local, mantendo uma distância mínima para não atrapalhar o evento. Eles separaram a melhor lenha para a fogueira do cerimonial; tudo ficaria no centro de uma área reservada para a Ameraníja, um pouco ao lado da aldeia. Instalamos dois sismógrafos em lugares estratégicos para verificar se haveria atividade geológica. Ambos os lados se preparavam para o evento da noite. Para eles era uma operação normal que a todo momento lembrava perda e renascimento. Para nós era a chance de observar uma coisa única no mundo. Eram pontos de vistas diferentes sobre a mesma coisa. Eles não entendiam muito o nosso ponto de vista, mas colaboravam. Quando houve o incidente com o Antropólogo, eles não sabiam que tal coisa era tão especial para nós. Eles se surpreenderam com a surpresa do homem ao ver o fenômeno. Mesmo com toda expectativa do dia, não houve questionamento ou pronunciamento de dúvidas. A ansiedade do nosso grupo era evidente em cada ação, mesmo em sua eficiência diante do trabalho. Eram os dois lados de 193
uma mesma procura. Uma vida inteira de trabalho e dedicação. Nos preparávamos para ver a vida... Jonh abria nossa última reunião: - Finalmente hoje, nós vamos chegar ao fim da nossa tão árdua missão. Tivemos sol. Terra seca. Animais selvagens e muito trabalho... - Eu não queria ter de ouvir um discurso sobre o nosso tempo lá. Eu sabia o que tinha acontecido. - Jonh. Não se tem o que dizer. Nós nos preparamos. Nós estudamos. Iremos até o fim. Eu só pediria uma coisa a todos; que fiquem de olho uns nos outros. Eu sei que todos aqui são bastantes profissionais, mas o que iremos ver pode ser um grande choque para alguns, como foi para o Antropólogo. Nossa missão está no final e tenho certeza que todos querem que dê tudo certo... - Eu dei uma olhada para Jonh e ele: - Tudo bem, então?! Mais uma coisa... sempre mantenham a distância estabelecida. Eu não quero ver 194
nenhum espírito afugentado...- Como sempre, Jonh conseguia dar humor ao final das reuniões... Eu sentia ansiedade como todos, mas minhas preocupações tinham sumido com o tempo. Durante todos os meses que ficamos juntos, descobrindo nossos defeitos, qualidades, manias, talentos e anseios; formou-se uma ligação. Talvez por todos estarem longe de casa, tenhamos encontrado nossas casas em cada um, na companhia. Os aborígenes eram assim por costume, nós estávamos aprendendo. A convivência com eles também nos deu isso. Eu confiava no grupo. Eu os guiaria. Seria o momento do fenômeno. Estávamos todos conduzidos e firmes. Era o momento de nossa compreensão final. A noite tudo estava pronto. Ficamos ao redor do local em grupos de dois. Karla ficou comigo para comparar visões e guiar os outros. O corpo estava no altar envolto com ornamentos simples. Lembranças de sua vida. A fogueira era acendida ao cair da noite, sua lenha deveria durar até o nascer do sol. O céu estava claro, como sempre, cheio de estrelas e a lua 195
era crescente.. A esposa do morto e os cinco filhos presentes ficaram próximos ao corpo enquanto toda a tribo ia se aproximando e se posicionando ao redor. Logo iria começar... - Joseph. No que você está pensando? - Não sei direito, Karla. Um monte de coisas está em minha cabeça agora. A minha vida. O futuro. Como os outros vão reagir... Porquê? No que você está pensando? - Ela estava muito séria. - Em papai e mamãe. - Eu olhei para ela. Novamente eu via a menina de treze anos sem os pais. Eu pensei um pouco em Donny, mas não sabia direito o que dizer. Há muito tempo eu já tinha superado aquele tipo de problema. Eu toquei no ombro dela e disse: - Calma... Vai dar tudo certo. - Eu tentei usar um tom paterno encobrindo a minha seriedade e falta de tato. Imaginava no que os outros poderiam estar pensando... Eles começaram a cantar. Era uma 196
música leve e relaxante, como Kanega havia descrito. Começaram a dançar em volta do corpo. A esposa e os filhos só cantavam, enquanto os outros dançavam. Por um bom tempo nada aconteceu além disso, então começou a ventar: não era o vento forte que empoeirava tudo, vindo do deserto, era suave e frio. Eu notei que eles mudaram o passo da dança. Fiz um sinal para Jonh: todos deveriam ficar atentos. Nuvens começaram a se formar no céu, vagarosamente, como que seguindo a música. O sismógrafo que estava ao meu lado começou a acusar algo. Eu não sabia ler aquilo direito, mas alguma coisa estava acontecendo. Então Karla disse: - Joseph, olha o corpo!- Eu olhei e ele estava iluminado. Não só refletindo o fogo. Ele mesmo parecia gerar luz. Eu indiquei ao Jonh que começasse a fotografar. O ritmo da dança mudou de novo e logo o céu já estava todo encoberto. Karla olhava fixamente para o corpo, ele continuava iluminado. Um trovão rugiu no céu. Eu olhei para cima. Não podia deixar de me assustar com todo aquele clima. Quando eu voltei 197
meus olhos para a dança, lá estavam... Eram dezenas de espíritos dançando junto aos outros. Todos eram aborígenes. Suas imagens eram normais, mas eu sabia o que eram.. Eu me virei para Karla: - Você está vendo um segundo círculo dentro do deles?- Ela deu uma olhada na dança, estava prestando atenção no corpo e não reparou, mas em seguida disse: - Eu vejo uma luminosidade diferente ao redor deles. Parece o fogo mas vem de dentro. - É isso mesmo. São eles. Continue olhando o corpo.- Ela via minha satisfação. Naquele momento eu estava compartilhando com alguém a minha visão. Todos continuaram dançando. Relâmpagos cortavam o céu seguidos de trovões raivosos. Eu olhava para Jonh e ele fazia sinal de tudo OK. Eu não sei o que ele via, mas eu estava maravilhado. Era alegre, vivo. Os mortos e os vivos da mesma tribo, juntos comemorando. A luminosidade do corpo aumentou. 198
Karla via aquilo e chorava de emoção. Ele estava subindo, como aquela mulher tinha dito. Aquela luz branca estava indo ao encontro de seus antepassados e eles estavam lá para lhe recepcionar. Foi um momento sublime de paz e alegria... Eles continuaram dançando e cantando por algum tempo, antes que os espíritos começassem a sumir e em seguida o céu voltar a ficar limpo. Eu me sentia exausto. Feliz, mas exausto. Tudo aquilo havia me tirado muita energia. Eu tinha sido consumido pelo contato e pela excitação do momento. Eu não vi os outros, mas eu dormi ali mesmo. Estava morto... No dia seguinte eu acordei com a visão de Karla. Ela e todos os outros estavam ao meu redor, dentro de nossa cabana... - Bom dia, Joseph. Dormiu bem? - Eu estava ainda meio sonolento. Não lembrava muito bem o que tinha acontecido.
- Acho que sim. Como eu vim parar aqui? 199
- Nós te carregamos. Do que você se lembra? Jonh me perguntava enquanto Karla colocava minha cabeça no colo. - Eu... Eu me lembro... Eu me lembro da luz subindo para o céu... - Karla sorri para mim e para os outros em seguida. - Eu nunca pensei que de todos, você fosse desmaiar... - Todos riem com certa leveza. - Eu não desmaiei. Eu peguei no sono. Foi como um êxtase. Eu me sentia tão confortável diante daquilo que dormi.- Jonh se abaixa e toca em meu ombro. - Tudo bem, Joseph. Agora você está de volta. Com certeza você foi quem viu mais coisas e isso deve te afetar muito. - Eu não entendia muito o tom dele. 200
- Mas e vocês? - Ele se levantou.
- A maioria de nós parece ter visto somente o brilho ao redor do corpo do homem. Karla viu mais... Não se preocupe teremos o registro de tudo com os filmes revelados e com nossos relatórios.
- Eu me refiro a como vocês se sentem, Jonh...
- Acho que bem. A avaliação Psicológica será feita em Melbourne. - Eu olhava aqueles rostos e os via normais. Não havia mais a tensão de antes, mas acho que o fenômeno não os havia atingido como a mim. Eu olhei para Karla e perguntei: - E você Karla, como se sente? - O rosto dela era o único que parecia diferente. - Eu estou bem. Acho que nunca me senti melhor... - Esse era o segundo fenômeno da sua vida. Eu diria que ele fechou um círculo para Karla. Revisitar a transposição para o mundo espiritual fez ela finalmente sair da garotinha de 13 anos que viu os pais “irem embora “. Eu fiquei feliz por ela. 201
- Relaxe, Joseph. Nós vamos arrumar as coisas para a partida amanha de manha. Hoje à noite vai haver uma celebração de despedida. Eu sugiro a você que adiante um relatório preliminar pra ficar em Melbourne. O pessoal em seu país, provavelmente vai querer que você retorne logo com o seu relatório principal. - Era verdade e Karla também sabia disso. Ela não falou nada, mas saiu séria, junto com os outros. Ela sabia que não ficaríamos juntos, mas acho que daquele momento em diante ela saberia se virar sozinha. Eu continuei deitado por alguns minutos. Algumas coisas pareciam extremamente claras para mim, mas outras se tornaram uma grande obscuridade. De certo modo eu me sentia renovado, distante. A minha missão ali estava cumprida. Eu precisava seguir meu caminho... O jantar de despedida foi alegre, apesar do momento... Tínhamos feito amigos para sempre ali. Mesmo que nunca mais víssemos aqueles homens e mulheres de vida tão simples, sabíamos que eles sempre se lembrariam da gente e nós deles. Não 202
houve muita conversa, apenas uma confraternização de todos através da música e da dança. Era o adeus... Na manha seguinte nós partimos. Eu olhava para trás e via aquele aglomerado de pessoas acenando... Eu me sentia bem; acredito que eles também. Estávamos carregando mais do que informações para as nossas pesquisas, estávamos levando um pedaço da alma de um povo conosco, especialmente eu... Sentia que havia mudado de novo. Nós nos afastávamos da aldeia. Via aquela paisagem ao redor, mais verde agora com o início da cheia, e me sentia como Kanega no dia em que chegamos. Não há nada melhor para apreciar que o nosso lar. Eu comecei a pensar em casa. Em papai, mamãe e Anne; e no sobrinho, que a essa altura já devia ter nascido... Eu via os aborígenes acenando e pensava em Donny... Os momento que tinha na vida se encaixavam. Não eram espalhados. Tudo aquilo queria formar uma “figura “, eu só não sabia o que seria... Fizemos nosso caminho de volta para Melbourne. Passamos em Nearyere e nos despedimos da família de Jonh ao pegarmos o Silver Doom de 203
volta para Augusta; graças a Deus ele agüentou a viagem. No caminho eu escrevia o relatório que iria deixar na Universidade de Melbourne. Eu esperava que ajudasse os outros componentes. Em Augusta fizemos a nossa conexão para Melbourne. Karla não parecia mais se perturbar por estar naquela cidade. Ela realmente tinha amadurecido. Durante a viagem ela evitou falar comigo. Ela sabia que a nossa despedida estava próxima e eu também. Acho que era melhor assim. Mas eu ainda olhava para ela com certo pesar. Eu sabia que tinha sido bom para ela e ela para mim, mas a distância física e de mundos não deixava escolha. Tenho boas lembranças de Karla Franrem. Talvez se tivéssemos nos sacrificado de algum jeito para ficarmos juntos, com o tempo descobriríamos que não era o que queríamos; pelo menos boas lembranças não provocam arrependimentos. Acho que ela sentia o mesmo... Nós pousamos em Melbourne e fomos recebidos pelo professor Mandisen. Sua feição nervosa parecia estar intensificada com a nossa chegada. Ele estava ansioso pelos nossos resultados. Nós voltamos para a Universidade de Melbourne. 204
Eu não tinha muito tempo, pois Harvard tinha feito minha reserva para voltar aos Estados Unidos para dali a dois dias. Eu tinha que passar pela avaliação psicológica e terminar de redigir meu relatório antes de ir; por sorte tudo foi a seu tempo. Eu mal havia pisado de volta em Melbourne e já sentia o cheiro de outra despedida. Eu tinha de ir para Sidney e depois voltar para Boston. Nosso grupo, sempre tão unido, se sentia meio perdido ao voltar para a “civilização “... E logo eu iria embora. Eu passei pela avaliação psicológica. Não cheguei a ver o outros fazerem, mas tenho certeza de que passaram, eles estavam preparados e firmes. O pobre Antropólogo não estava preparado para tal revelação... Tirei cópias do meu relatório e dei uma para o Professor Mandisen e uma para cada membro da equipe. Eu queria que todos ficassem a par de todos os lados do fenômenos... Eu arrumava minhas malas de noite quando todos vieram ao meu quarto...
205
- Foi uma honra ter você aqui, Joseph. Espero que nos honre de novo. - O professor Mandisen ainda me tratava como uma celebridade. Jonh não disse nada. Parecia bem triste. Ele somente me abraçou. Os outros disseram frases gentis de despedida que não convêm serem mencionadas aqui e por fim Karla veio a mim: - O que há para se dizer?- Ela aprendeu comigo a ser irônica em horas difíceis. - Normalmente eu espero pra ver o que a outra pessoa vai dizer!- E eu... - Eu não vou esquecer você, Joseph! Não importa o que acontecer daqui por diante! - Ela olhou para mim e me abraçou. Estava séria. Em seguida saiu do quarto. Depois de ir embora eu só vi Karla Franrem uma vez, quando ela foi em Nova Iorque, em 1983. Ela dava uma palestra sobre parapsicologia e eu não deixei passar a oportunidade de vê-la... com um marido e dois filhos. Eu também nunca me 206
esqueci dela... Na manha seguinte estavam todos reunidos novamente, junto ao carro que me levaria ao aeroporto. Eles tiraram algumas fotografias do grupo e me deram lembranças. Eu olhava todos aqueles rostos e sentia a afeição e o interesse que nos uniam. De dentro do carro, me afastando, novamente eu sentia a dor e a alegria da despedida. Sair de perto de quem se gosta, mas também saber que gostam de nós. A ambigüidade do momento me fazia pensar novamente nós aborígenes que deixamos para trás. Em tudo que passamos juntos. Em nós. Também me fazia pensar em Donny, no Oales Park, e em casa. Eu estava voltando para lá. E desta vez, além de aprendizado, material de estudo e com certeza informações para um novo livro, eu também levava um maior conhecimento de mim mesmo, um aprendizado para o resto da vida, talvez para todas as vidas... O avião decolava em Sidney. Eu via as últimas imagens da Austrália. Eu comparava em minha mente as imagens de Melbourne, tão regular. As imagens do Território Norte, tão agrestes. E Sidney, tão moderna. 207
O mar começava a ser a única imagem que eu via. Aquele lindo país que me recebeu tão bem estava ficando para trás. Só as lembranças povoavam minha mente agora. Eu me sentia em paz e queria mais. Tudo aquilo me conduzia para um lugar desconhecido... Eu queria ir até o fim. Eu queria ver... O meu tempo na Austrália foi inesquecível. Parecia haver um sentido naquilo, afinal. As vezes me arrependo de nunca ter voltado lá, talvez ainda o faça. Com o tempo as cartas diminuíram até sumirem e as notícias só vinham de vez em quando. Assim como o avião ia se afastando da Grande Ilha, o tempo afastou ainda mais aquelas pessoas que me “ensinaram” tanto e que nunca deixei que a memória as apagasse... Eu durmo...
208
XX “Eu voava por entre as nuvens. Eu sentia todo meu corpo livre, solto no espaço. Eu olhava para baixo e via uma cidade. Não conseguia reconhecê-la. Eu começo a descer. A medida que vou descendo a cidade vai se transformando numa paisagem bastante conhecida; era o Oales Park. Chego ao chão e sinto a grama sob os meus pés... Estava tudo calmo. Eu começo a andar. Instintivamente me preocupava com os gritos que poderiam aparecer... Então eu começo a ouvir uma música. Era familiar, leve, calma. Eram as canções do Ameraníja. Eu continuo andando, procurando a música. Eu passo por uma pequena colina e então vejo-o tão familiar evento aborígene. Eu me aproximo. Chegando perto eu noto que não são eles que estão lá, mas soldados americanos, com diversos tipos de fardamento, de diversas épocas. Era o Ameraníja do Oales Park. Eu me dirijo até o altar e olho o corpo que está lá e para a minha surpresa, sou eu. Então, estou novamente voando no céu. Subindo. 209
Cada vez mais alto e sem parar e é uma sensação ótima...” - Senhor, acorde. Aperte o cinto que já vamos pousar - Eu olhei e era a aeromoça. Estava de pé na minha frente, me chamando. Eu disse:
- Meu nome é Joe... - Ela sorriu e:
- Tudo bem, Joe. Aperte o cinto. - Eu apertei o meu cinto de segurança. Estava pronto para chegar em casa. Me sentia estranho. Fiquei quase seis meses fora de casa. Perdi o Dia de Graças e o Natal. Só mandei uma carta para casa e só dei um telefonema, antes de partir. Mas só agora chegando em casa, eu sentia falta deles. Começava a lembrar como eles eram. Papai, mamãe, Anne, e meu sobrinho que eu nem sabia qual era o nome ainda e até o Wayne, meu cunhado. Todos pareciam fazer parte de um mundo que eu não conhecia mais. Um lugar distante, do qual, eu me lembrava muito pouco... 210
O avião pousa e taxeia no aeroporto de Boston.
Eu me preparava para sair. Cada ato meu era livre. Eu me sentia mais ou menos como no sonho. Minha cabeça ainda tinha muitas dúvidas. Mas também havia a certeza de que elas seriam respondidas com o tempo. Eu desci do avião e atravessei a alfândega. Estava no portão de desembarque e vi: Eram quatros pessoas conhecidas que o tempo e as mudanças faziam se apresentarem diferentes para mim agora. Era papai, que sorria discretamente para mim. Mamãe que me via como um filho há muito longe que agora retornava; uma lágrima discreta percorria seu rosto. Era Anne, com um sorriso largo no rosto e tendo nos braços a quarta pessoa, meu sobrinho, Joseph... Eu não podia acreditar no quanto eu me sentia bem por rever aquelas pessoas. Era um prazer simples e imenso... - Oh, Joe... Que bom que você voltou! Eu senti tanto a sua falta! - Eu também, mãe. É bom estar de volta. - Ela me abraçava com muita força. 211
- Seja bem-vindo, Joseph. - Papai não tinha mudado. Ele apertou a minha mão como sempre.
- Olá pai. É bom ver o senhor também.
- Sentimos sua falta Grande J. Eu quero que conheça o Pequeno J. - Eu olhei para aquele bebezinho e me sentia renovado...
- Você deu a ele o nome de Joseph?
- Dei. Não achei outro melhor... - O desdém de Anne era naturalmente falso. Ela me deu um beijo e me deu o menino para eu segurar. Era maravilhoso sentir aquele corpinho quente nos meus braços... - E o Wayne?
212
- Ele está trabalhando.
- Ele não ligou para o nome?
- Que nada. Ele gosta de “Joseph“! Ambos rimos. Papai veio a nós: - É melhor nós irmos. Em casa vocês conversam. - Nós pegamos as minhas malas Anne pegou o bebê de volta. Estávamos caminhando para a saída... - Eddie e Ranhe telefonaram. Eles disseram que não podiam vir. - A informação de Anne continha um certo pesar mas eu sentia que era desnecessária. Eu sabia que aquelas duas pessoas tão especiais ainda fariam parte de minha vida, mas seria diferente... Desde o dia do lançamento do meu livro, meses atrás, eu soube que estávamos indo para caminhos diferentes... Mas naquela momento, juntos à minha família, eu sentia que estava, finalmente, em casa. Eu me sentia bem, ao lado deles, como há muito tempo eu não me sentia. Meu caminho desse dia em diante foi trilhado por uma sucessão de momentos simples; realizações pessoais e profissionais, que sempre tinham ao lado o 213
apoio e presença daquelas pessoas que tanto amava e admirava. Como os aborígenes eu aprendi a dar valor ao que eu tenho perto de mim. Com uma sorte que poucos têm, eu podia rever tudo que aprendia e sentir os meus momentos, um de cada vez. Uma espécie de maturidade transcendental havia tomado conta de meus atos. Daqui em diante eu sabia que, realmente, iria até o fim.
214
XXI Junho de 1974. Eu estava me formando em Harvard. O relatório sobre a expedição na Austrália e o lançamento de um livro sobre a mesma pesquisa haviam me adiantado a formatura. Diferente do meu primeiro livro, esse foi considerado com maior valor científico, com informações extraídas dos instrumentos levados na expedição, inclusive fotos espectrais, mandadas pela Universidade de Melbourne após o término do trabalho. E por isso valeu a antecipação de minha graduação. Muito da vida acadêmica era obsoleto diante da magnitude de sentir um fenômeno paranormal, mas o mérito científico era necessário para se manter uma margem razoável com a realidade. Afinal a maturidade havia me alcançado também nesse ponto. Eu tentava não me sentir superior a nenhum outro aluno, todos possuem seus méritos e limitações, inclusive eu... Mas a percepção que eu tinha diante 215
dos fenômenos paranormais dava uma vantagem que poucos no mundo têm, de ver aquilo que é real objeto de seu estudo; como um físico, se ele pudesse ver, realmente, as partículas subatômicas que formam a matéria. Era material para se pensar... Em muitos aspectos foi diferente da minha formatura no colégio. Não era apenas o fato de ser na universidade, ou mesmo em Harvard. Havia uma frieza presente no ambiente. O salão estava cheio de gente e todos aplaudiram a cada nome, mas não havia o mesmo calor e amizade que no colégio. Minha família estava lá, eram os que eu tinha mais prazer de ver. Havia alguns poucos amigos. Eddie e Ranhe também estavam lá. Eles não estavam mais juntos, mas ainda eram muito amigos. Eddie havia se formado no ano anterior e Ranhe ainda estava no terceiro de Serviço Social; afinal ela parecia ter achado seu caminho... como todos nós. Talvez a frieza que eu sentia na cerimônia pudesse ser causada por eu estar ali com um grupo de pessoas que mal conhecia. Eram todos mais adiantados que eu, anteriormente. Eu sentia, que 216
apesar de todos terem tido de ler meu segundo livro, pois o mesmo passou a fazer parte do currículo do curso de parapsicologia... Eu sentia que eles ainda me viam como um calouro. Eu não me importava muito com isso. A admiração não era uma coisa que eu ansiava, somente o respeito e esse eu tinha; dos alunos, dos professores e de toda comunidade acadêmica. Era estranho ser tão jovem e ter tanto para ensinar. Nunca deixei de lembrar que isso perturbava as pessoas. A inocência da juventude parecia ser um atrativo para a dispersão e o desprendimento. Talvez por isso uma formatura na universidade não atraía os espíritos com necessidade de compartilhar momentos felizes. Havia, em cada diploma que era entregue, uma pressão; que estampava no rosto de cada um a preocupação com o futuro. Era uma coisa inevitável que com o tempo se nota que não se pode planejar uma vida, apenas guiá-la numa direção intencional. Lembro disso agora e faço um feliz paralelo com a exigência dos aborígenes quando concordaram em receber uma equipe de pesquisa: todos tinham que ter menos de vinte e dois anos. A alegria dos momentos 217
simples e inocentes da juventude parecia ser, um atrativo para a visita dos espíritos ao nosso mundo. E os aborígenes sabiam disso. Eu me sentia feliz por me formar. Minha família me cumprimentou, meus amigos também. Boa parte da comunidade acadêmica presente fez questão de vir até mim. Eu nunca me acostumei com tal coisa. Era um poder que vinha a partir do meu poder. É estranho ser uma “celebridade “. Foi, quando eu era jovem e é hoje. Boa parte de minha vida eu convivi com aquelas mesmas pessoas: família, amigos e comunidade acadêmica; principalmente está última, da qual hoje eu faço parte. Eu ensino em Harvard e dou cursos em várias partes do mundo. Eu ainda tenho um grande prazer em viajar e conhecer novas culturas, diferentes estilos de vida. Uma das poucas coisas que me ressinto hoje é a falta que os fenômenos paranormais me fazem. A medida que envelheci eles foram diminuído de freqüência e de intensidade. Eu me lembro com clareza de todos. Eu posso fechar os olhos que eu consigo sentir cada emoção presente neles... Mas 218
parece que a maior percepção da juventude diante de coisas fora do padrão material era uma verdade. Eu havia posto isso em um dos meus muitos livros já publicados se sentia a cada ano que passava... Desde o dia de minha formatura em Harvard minha vida foi sempre uma sucessão de realizações. Eu tinha e tenho o poder e o conhecimento. Como a vida de todas as pessoas do mundo, são altos e baixos... Mas, apesar de parecer, eu não cheguei ao fim... Eu não sei o que é esse fim Até hoje eu me lembro daquele sonho onde Donny me disse essas palavras. Talvez, na verdade, eu sinta falta dos fenômenos... Hoje, eu decidi fazer algo que não faço há uns vinte anos... Olhando o passado, eu sinto que, apesar de tudo que eu já atingi na vida: a casa ao meu redor, os livros, a fama no meio e até mesmo a bênção de ainda ter minha família toda viva, mesmo que distante. Apesar de tudo isso, eu tenho a necessidade de rever o único momento de minha vida que eu não soube “controlar”. É uma palavra forte, porque nada na vida está realmente sob controle. Mas de todos os momentos; trabalhando, estudando, vivendo... eu preciso ir ao Oales Park. Eu não sei se 219
“o fim” está lá afinal era lá que Donny estava quando me falou... Mas eu preciso dessa reflexão final.
220
XXII Oales Park Paro o carro na pista no meio do gramado. Como há tempos atrás, tiro os sapatos para sentir a grama sob os meus pés. Eu caminho com apreensão na direção do túmulo de Donny. Não estou aqui para visitá-lo, mas queria “vê-lo “. As lembranças relampejam em minha mente a cada passo que dou. Eu vejo Donny na TV me acenando. Vejo papai nos chamando da porta de casa. Vejo os aborígenes dançarem ao redor de seu companheiro morto. Lembro de Karla chorando ao ver a luz subir ao céu e se misturar aos relâmpagos. Vejo os rostos felizes de minha formatura no colégio e todos os espíritos que ali estiveram naquele dia. Eu olho para o céu e a sua imensidão azul me faz lembrar da beleza dos meus sonhos e da beleza de tudo que eu tinha visto... O crepúsculo, que eu chamava de “Calmaria das Almas “. Eu lembro do primeiro beijo que dei em Ranhe e de como aquela sensação de prazer e desejo havia trazido espíritos para nos acompanhar. 221
Eu ando por esse cemitério e penso em cada história que há em cada um desses nomes. Vilões. Culpados. Inocentes. Todos desperdiçados pela Guerra... Eu já vejo o túmulo de Donny. Tudo que eu me lembro dele vem à memória de novo, agora. Onde ele estará nesse momento? Eu olho ao redor antes de parar em frente a seu túmulo. Não há palavras em minha mente, apenas pensamentos... Eu estou com quase quarenta anos e me lembro com nitidez dos gritos que um dia me fizeram sair daqui sem fôlego, de tanta dor e angústia. Onde estão eles agora? Não sei se quero realmente enfrentá-los... Eu lembro da minha rua. Do senhor Langue, o nosso carteiro. Imagino se ele e Donny não estão juntos agora, me observando... Eu volto a andar. Quero chegar na colina de onde se pode ver todo o campo. Não vejo ninguém aqui hoje. Acho que é um dia bonito demais para ser desperdiçado com mortos. Pena que não se aproveite ele com os vivos também, somente com uma procura de um falso poder. Algo que se faz sem se saber porque... Eu chego no topo da colina e vejo o horizonte misturar o verde das árvores e do campo com o azul de céu. Como eu poderia não 222
me sentir feliz nesse dia? Parece até um insulto a Deus... Mas será que alguém mais poderia? A minha vida tem sido uma eterna tempestade de pensamentos e dúvidas. Eu buscava a compreensão de fenômenos paranormais. Eu olho em volta e sinto a paz e o silêncio me penetrarem. A minha busca parecia no final Eu passei a vida estudando e aprendendo. Ensinando aos outros sobre o que eu aprendia. Eu vejo que os gritos do Oales Park tinham achado sua paz, não por mim; mas a seu tempo, toda alma descansa, em suas realizações... Eu sempre quis ajudar essas almas que gritavam dentro da minha. Eu sempre me lembro delas como as dores de todos. São as dores de todos. Mas tudo é uma simples parte do mundo, de nossas vidas; de minha vida. Eu vejo o silêncio do Oales Park e vejo as minhas lembranças... Havia afinal um sentido para tudo. As peças estão encaixadas e formam uma figura clara... A cada passo de nossas vidas. Nossos erros e acertos. Amores e ódios. Cada momento deveria simplesmente ser vivido, como agora... Eu caminho de volta para o carro, sentindo a grama sob meus pés, o vento no meu rosto e a luz do sol na minha 223
pele; me sentindo em “casa”. A minha mente está livre. O silêncio que a natureza me apresenta nesse momento me dá uma certeza, a única para qual tudo se encaminhou até hoje e que será sempre um guia; o maior fenômeno que eu já presenciei e senti, e é o que eu vou continuar a sentir sempre. O fenômeno da vida... FIM
224
225
226