Vidas, em redes

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VIDAS, EM REDES

Fabiano Viana Oliveira


VIDAS, EM REDES (conto registrado na Biblioteca Nacional)

Fabiano Viana Oliveira


As portas do novo milênio se abriram lentamente quando eles entravam já vigorosamente no ano de 1998. As criaturas do planeta Terra sempre foram fascinadas por si próprias; uma coisa curiosa sobre a suposição de elas serem a imagem e semelhança de um outro ser por aí do universo, ao qual eles batizaram de Deus. A intenção das palavras lhe dizem: criação deles próprios, pois duvidavam da existência do criador... Existiam sem saber porque, mas queriam continuar: fascinantes! O propósito desse preâmbulo não é fácil, pois aqui se estabelece a única coisa que restou dessas criaturas: a dúvida, pois o episódio narrado começa e se constitui pela razão da fraqueza desses huns: seres humanos... A cidade de Salvador vivia os gracejos das vésperas de seu carnaval; não festejo de coisa alguma, além do próprio prazer reprimido: álcool, sexo e música se misturavam numa coisa só para se livrarem das dúvidas desses também seres sem razão... Mas não é essa a principal questão; o que se fazia em qualquer carnaval seria sempre o mesmo: diversão... Porém outra coisa estava presente, antes, durante e depois... Como não poderia deixar de ser, aquela questão sobre o Deus criador tinha um portavoz: era a chamada Religião. Fator cultural permanente na existência dessas criaturas, vários nomes e doutrinas designavam a chamada palavra de Deus. Nesse contexto social da cidade de Salvador, duas forças religiosas diferentes se encontravam em antagonismo ético e moral; mesmo apesar de ambas dizerem representar a linguagem viva do criador... Em certo momento o leitor pode pensar o porquê dessa rivalidade, já que todos queriam ser os embaixadores da fé no Deus criador... Porém deve ser esclarecido, antes de tudo, que estas criaturas eram, basicamente, antagônicas por si só: aquela questão da dúvida referida anteriormente. No final de contas a religião não era mais nada que política... baseada na fé: a necessidade de Ter fé é mais um dos elementos que compõe o perfil da criação dos seres humanos: tinham de acreditar no que criavam para superar a angústia da dúvida... Tinham fé. As duas correntes possuíam denominações bastantes específicas, porém não usuais agora... Então outras apresentações serão feitas: Religião Parazônica: com quase dois mil anos de tradição histórica e maior influência no contexto populacional da Terra; com todas as bases culturais e doutrinárias que comandavam boa parte do comportamento dos seres humanos... Em Salvador tinha uma poderosa e influente sede, com muitos fiéis. E a Religião Equinocial, cuja tradição era descendente da primeira... Porém, com apenas 20 anos de existência, tornara-se a religião de maior desenvolvimento do mundo... Muito dos fiéis da Parazônica migraram para a fé Equinocial, por muitas e diferentes razões; no entanto as motivações políticas da fé permaneciam basicamente as mesmas... Apenas as doutrinas e métodos se opunham reflexivamente. Porém os méritos e defeitos das duas religiões não estão em julgamento aqui: eram práticas dos seres humanos, e por isso, ambas, invenções dos mesmos... O episódio aqui é outro, nessa época referida... Também nesse período da história humana meios de comunicação eram considerados representações de poder; coisas como jornais, rádios, revistas e principalmente televisões... Carregavam as ideologias de quem produzia seus proventos e se adequavam comercialmente para os vários propósitos dos seus dominadores... para dominar os dominados... Essa informação tem um propósito, mas é melhor explicar: nesse momento da história humana o pensamento próprio era amplamente submetido ao que eram as


ideologias dominantes, não necessárias de serem consideradas nessa narração; e que com perigo anestesiavam as mentes dos seres humanos com menos acesso ao poder (?), para assim ser mantida a dominação de uns aos outros (uns poucos aos outros muitos)... E a televisão era o mais poderoso dos meios, pois “dava” imagem, som e movimento para uma massa de criaturas que tinha preguiça de pensar: eram pensamentos prontos, saídos do forno, e consumidos com prazer... A relevância aqui vai mostrar o seu propósito: a Religião Equinocial já possuía vários desses meios de comunicação; principalmente televisões (uma rede); e desse fato o fato de ela crescer tão rapidamente na fé da massa humana... E a Religião Parazônica ainda não tinha sua Rede de Televisão: mais uma rede para a fé Parazônica, rede de salvação, assim como a outra... Rede para as vidas terem suas almas salvas: sonhos e imagens (prontos) da fé. O particular começa com uma campanha publicitária: “Ajude Salvador a Ter sua Rede Vida, a televisão da fé Parazônica”. Era institucional e comercial ao mesmo tempo. Pretendia a venda em massa de um pequeno broche de ouro, metal valioso, que auxiliaria no acúmulo do capital necessário para a instalação da Rede de televisão, batizada de Rede Vida. A agência que fizera esta campanha se encontrava completamente envolvida com o tema. Articulações múltiplas dos seres humanos; era mais uma profissão: publicitário; porém de um valor proparoxítono, pois se dava pela capacidade de influenciar toda uma massa em favor de uma simples idéia... muitas vezes não muito benéfica para o próprio povo ao final das avaliações. Nessa agência em questão havia um profissional em crise de consciência por algumas das razões supra citadas. Seu nome era Valdo Nery... O que dá identidade a um ser humano (criatura pensante), torna-o pessoa, é o nome que o identifica; de fato, cada ser humano na Terra possuía um nome... O que o ser humano, profissional de publicidade, fazia nessa agência não é tão relevante para a narração. O que há de se saber para os fatos é que ele trabalhou na campanha desde o seu começo, e fora uma peça chave para o sucesso da mesma... Ao final dessa época, toda produção dos pequenos broches de ouro moldados num dos símbolos parazônicos havia sido consumida pelos fiéis; e logo, mais estava sendo produzido. Tudo começa a se alterar quando Valdo Nery pesava em pouco de sua consciência num final de dia de trabalho. Para seres humanos as respostas nunca respondidas muitas vezes são procuradas no olhar vislumbrado do fundo de um copo; algo chamado de álcool: um entorpecente permitido pelas autoridades da época. Mais um anestésico para o pouco sentido das coisas que se fazia durante o dia, e eram destituídas de razão na solidão da noite. Nery havia deixado a agência naquela noite e começara a beber o tal líquido entorpecente... Estava só num estabelecimento com esse propósito; a verdade é que tinha de voltar naquela noite mesmo para a agência, mas pouco de estímulo lhe restava, por causa das crescentes razões que serão descritas... Já estava por encontrar o fundo do sétimo copo vazio; o nome do produto não vem ao caso, pois eram muitos os que se serviam nesse tempo para tal intento. A mesa e o local vazio o fazia admirar seu interior ainda espantado com o que tinha pensado nos últimos meses: todas as coisas feitas para que todo mundo, como por exemplo o dono daquele estabelecimento, que o servia a oitava dose, adquirisse o dito broche de ouro... O homem simplório lhe veio com a expressão cansada de quem nem mais se importa com quem se torna zumbi a sua frente


pelo uso dos produtos que ele serve. Nery o olhou com curiosidade, e logo percebeu o broche preso na sua roupa, próximo ao coração... Perguntou: − O senhor acredita em Deus? – O homem, meio assustado e meio apático respondeu: − Claro que sim, chefe. - Não sou seu chefe... E foi por acreditar em deus que você comprou esse broche? – Refletindo por instantes suficientes para que o publicitário exercitasse o braço mais uma vez com mais um gole; fez uma expressão confusa e respondeu: - Acho que sim. - Pois eu sei que não, meu caro senhor... Você comprou essa porcaria por que EU quis... – Ainda mais confuso e incrédulo o homem o olhou em silêncio. - Então por essa razão... Eu sou Deus, correto?! – O homem deu dois passos para trás. Disse: - O senhor está bêbado... Não quero ouvir blasfêmias aqui. Peço que saia... – Nery observava os olhos vidrados do homem à espera de sua reação; ao seu estado, o broche parecia brilhar com a mesma intensidade que os olhos... O dono do bar parecia realmente estar pronto para atacá-lo por causa do que ele havia dito. Não se sentia em posição de argumentar com tamanha fé, mas muito longe em sua consciência perdida e entorpecida pensava: “O que fiz?” Com muito pouco equilíbrio Valdo se levantou. Pegou dinheiro suficiente para pagar o que consumira e atirou um pequeno maço na mesa; partiu em seguida com a companhia somente das suas torturas pessoais. O homem fechara as portas do bar. O que poderia medir a consciência desse homem que se achava tão atormentado?... Não era muito mais velho que a idade do filho do criador; aquele de cuja procedência para-humana se dizia ser por fatos históricos e muita fé como sendo o espírito do criador, Deus, encarnado. Escolhera sua profissão com toda a lógica e razão que é possível ter um jovem de dezoito anos do planeta Terra... Admirava os profissionais conhecidos em sua época; fascinava-se com o poder de convencer, de persuadir, de fazer agir por um desejo as pessoas que ficavam por tanto tempo presas a si mesmos e de repente eram invadidas pelas idéias originadas dele, e as faziam agir, consumir, viverem o que ele queria... Seria esse então o ponto de partida do seu incômodo quando do sucesso dessa campanha do broche? Valdo sentia como se tivesse invadido as outras pessoas em nome da fé parazônica, para comprarem o tal adorno inútil; e na verdade nem ele próprio tinha fé alguma... “Como pude?” Pessoas com quem cruzava na rua; tantas pessoas; e todas tinham a mesma expressão, e por mais absurdo que seja: todas usavam o broche de ouro. “Compram por que querem!” E seria a última coisa que pensou antes de apagar na escuridão de seu quarto perto de 3 horas da manhã... Porém havia chegado em casa a uma. Só voltaria na agência na tarde seguinte. Simultâneo à queda de Valdo Nery em suas crises de dúvidas, o dono o bar fechando o mesmo e as pessoas que andavam na rua estarem usando os broches (muitas pessoas até, para uma noite...), estava num dos muitos templos da Religião Equinocial um número considerável de fiéis. Chamam-se entre si de irmãos, e têm em seus ritos extravagantes um dos maiores atrativos para criaturas humanas ávidas por atividades que respondam suas perguntas. Erguer as mãos aos céus e pedir por uma graça divina parece realmente ser mais construtivo que beber até apagar como o senhor da publicidade que deixamos...


Os encontros com seres humanos terminam por ser sempre flamejantes de um fascínio que este que fala sempre tenta admitir... Eis pouco do que os irmãos faziam naquela noite... Pela hora, cerca de 200 pessoas estavam no templo. Uma canção havia sido cantada em coro pela massa fervorosa de fé; olhos fechados e lágrimas que escorriam: pessoas que viam Deus na escuridão do seu interior iluminada pela luz do Senhor através da música e da pregação... O pastor dizia ao final da canção: - Erguei-vos suas mãos, irmãos... Recebam a luz de Deus e regozijem sua infinita misericórdia dentro de suas almas. Façam os demônios saírem de seus corpos e se purifiquem com a palavra de Deus... Hoje a face do demônio tem uma expressão nova e brilhante, mas que logo se tornará negra como tudo que concerne ao nefasto Lúcifer... Seu brilho hoje vem de um pequenino broche dourado, e quem o compra está vendendo sua alma ao inferno mais ardente. Não se deixe tentar pelo Dêmo. Não comprem o broche, pois ele será a marca daqueles que não serão recebidos no reino do céu... Aos olhos do verdadeiro Deus Nosso Senhor, o seu brilho é a marca da escuridão... E quando o dia chegar, somente os iluminados de coração é que terão a felicidade eterna... Aleluia. – E todos gritaram Aleluia em louvor as palavras do pastor, que ipsi litteris eram as palavras do criador. Aqui devo esclarecer algumas terminologias usadas pelo pastor: Demônios seriam a referência para os agentes do mal que representam as tentações à carne do homem; o seu comandante seria o demônio em si, de vários nomes e denominações, dentre elas: Diabo, Lúcifer e mais. Segundo a mitologia de ambas as fés, parazônica e equinopcial, Lúcifer teria sido o anjo favorito do criador, que ao se tornar muito vaidoso e ciumento em relação às almas humanas fora expulso do céu, morada do senhor, e agora vive nas profundezas da escuridão humana esperando pela sua vingança. A simbologia para o local onde vive o demônio se chama de Inferno: um lugar cheio de fogo e dor, onde as almas sofrem para toda eternidade, em contraposição ao paraíso prometido pelo criador, onde só há paz para toda eternidade. O dia ao qual o pastor se refere é o dia que seria o dia do juízo final, quando todas as almas dos seres humanos seriam julgadas e levadas ao paraíso ou jogadas nas profundezas do inferno. Pode-se imaginar com que ouvidos temerosos esses seres humanos tão capazes de criar para si mesmos tais situações de pavor e fé... podiam eles receber e vivenciar tais informações de dois lados tão antagônicos e ao mesmo tempo tão semelhantes... Onde o que contava na fé não eram as realizações em vida, mas sim uma possibilidade de redenção no desconhecido que é a inexistência. A salvação, porém de si próprios... até onde posso ver. No final, apenas política. Outro compromisso era a premissa da noite, pois a essa altura Nery já estaria cambaleando bem perto de seu lar... Antes porém, em outro local qualquer, uma singular normalidade acontecia na noite dessa cidade. Uma das razões desta história é o fato curioso da dependência, se bem se recordam, destas criaturas pelo que elas próprias criam... Três jovens de pouca fé em qualquer coisa, mas que durante a luz do dia exibem orgulhosos os seus broches dourados, ou mesmo seus louvores de irmãos, estiveram a andar pelas ruas habitadas por indigentes semi-vivos; na verdade o horror maior dessa época de tanta necessidade de fé dos humanos era que um contingente muito grande desses mesmos indigentes


marginalizados e esquecidos ou ignorados por todos estava por ascender nas ruas de muitas cidades como esta. Esses jovens sentem-se desconfortáveis e ao mesmo tempo no seus plenos direitos de repudiar essa sub-massa aqui referida... Se eles eram os certos e tinham o lugar garantido no paraíso, então não seria crime algum enviar alguns subhumanos para as profundezas do inferno um pouco antes do previsto, pois assim purificavam uma Terra que na verdade não pertencia a ninguém, porém sentiam como sendo deles... Testemunhem esses três, como representantes de muitos, invadindo a vida dos indigentes e os agredindo com o verdadeiro ódio dos demônios previstos por eles em seus templos e lares “corretos”. Eles espancavam, matavam e queimavam pessoas com as quais ninguém se preocupava realmente... Os mais ardentes necessitados de fé que se poderia imaginar, mas distantes das regras de si mesmo, criaturas humanas... então, apenas seres dispensáveis. Não podiam, nem precisavam, comprar o broche... Quem são? Nem Nery poderia convencê-los da salvação pela fé No novo dia na agência alguém superior em posto a Valdo Nery vem a lhe perguntar com autoridade; mas ele tinha pesadelos com que se preocupar... - Por que o senhor só apareceu agora a tarde?... Sabe que a nova campanha sai na próxima semana e... - Vai se danar, chefe... – Assustado com a rispidez inexpressiva de Nery, o homem se refaz e coloca sua autoridade na linha da ordem: - Cuidado como fala, Nery... Acho bom você descer na produção rápido e começar a se mexer. Ressaca não é desculpa! O olhar perdido de Nery se dirige, agora com fúria, para o homem. Existem coisas elementares no espírito humano, de cujas naturezas cheias de dúvidas e poder façam com que vivenciem momentos de pura selvajaria... sem o menor sentido aparente. Eles costumam chamar de mal-humor, porém os aspectos peculiares de suas ânsias por sobreviver dizem que são apenas animais, como tantos outros, e que em algum momento disseram não... Porém agora, Valdo Nery diz sim. Levanta-se e agarra o assustado homem pelo colarinho, trazendo-o com violência para muito perto do seu rosto, completamente enfurecido: - Sabe o que você faz para viver, idiota?... Sabe?... Você mente!... Nossa vida é uma grande mentira... Por causa desse maldito broche. Trêmulo, fala o homem: - Você está louco... – Valdo lança o homem contra a parede. Ele cai no chão totalmente abalado. - Não!... Vocês estão loucos. Todos vocês. (Gritava.) Não fazem idéia do que estão fazendo. Atormentado e agitado, Nery deixa a agência sob os olhares espantados dos colegas e clientes presentes... Caracterizado o abandono de trabalho. Atitudes que não respondem o que deveria ser: tanto tormento seria o momento de lucidez para criaturas inteligentes; um micro segundo de clarividência para enxergar o que não conseguem ver numa vida inteira de vigília... Na madrugada anterior visitara um Valdo Nery prestes a adormecer e esquecer todas as dúvidas que teve, para então ir adiante com sua vida: milhões de broches seriam vendidos, as duas religiões continuariam a disputar a fé dos seres humanos nessa terra, e tudo continuaria adormecido como sempre esteve... No entanto... “Nery acendeu a luz da sala, mas não me vira. Seu entorpecimento já ia longe do fato de eu estar ali, sentado em seu sofá, olhando para sua extravagante chagada no lar. Mora


sozinho em um apartamento de dois quartos. Bem sucedido até aquele dia, quase se casou no ano anterior, mas infelizmente não deu certo... As criaturas humanas têm muita necessidade de estar com seu semelhante: são como seres incompletos que procuram um complemento no outro, também incompleto (realmente fascinantes). Dirigindo-se diretamente ao banheiro; sua visão completamente nublada; demorou pouco lá. Deixando luzes acesas, foi então para cozinha... Novamente não me notara no sofá da sala. Abriu a geladeira e pegou algo; um tipo de garrafa; voltava para sala bebendo pelo gargalo o conteúdo da vasilha, quando finalmente chamei a atenção dele. Viu-me deslumbrado através do vidro da garrafa; era água; meio de viés, com o entorpecimento atingindo picos... e o horror que logo surgiu... Sua mão largou a garrafa que se quebrou no chão, porém o barulho não o tirou da expressão surpresa e pavor por me ver ali. A casa estava bem iluminada. O que poderia ser uma alucinação não desaparecia por mais que ele continuasse olhando. E eu olhava diretamente para ele. Nery ensaiou dar um passo, para frente ou para trás, e de mim veio a advertência: - Cuidado com o vidro, Valdo... – Sua expressão de horror tomou uma proporção indescritível; boca aberta, olhos arregalados, quase cômico; apenas um pavor fora das dimensões humanas. Gritou horrorizado e correu para o quarto... Chegando lá não podia mudar a sensação de que perdera algo do meio do caminho que parece ir entre a realidade e a total perda de sanidade. Seus pensamentos, quase ouvidos por mim, tão óbvios e confusos, o faziam querer fugir e ao mesmo tempo perguntar o que era que se encontrava... - Estou bem aqui, Nery... – Voltou-se para trás mais assombrado que antes, estava a um passo dele, sentado em sua cama. Pelo que ele podia reconhecer: uma expressão de total e completa calma... Deixando ele mais assustado ainda... sobre o desconhecido que é encontrar uma criatura totalmente desconhecida dele, falando com ele, estando com ele, tirando dele qualquer dúvida sobre o que ele realmente era: um mero ser humano... criatura sem sentido: entrou em profundo desespero nos instantes que se seguiram. Queria estar mais embriagado de que nunca. Queria não ter nada a frente dos olhos. Queria ganhar o prêmio da inconsciência pelo medo, e quase conseguiu... Não deixei. Tinha que fazê-lo ver... muito mais do que a mim, muito do que podia imaginar da sua importância para o propósito do futuro...” Ver o desconhecido para a criatura humana é como confrontar seu maior medo de não se conhecer realmente. Ver que algo não pode ser explicado... ainda... assustada sua modesta linguagem de poucos milhares de anos; sua infrutífera arrogância de querer ser o centro de tudo que há... Talvez por isso tenham eles criado um ser superior, o criador, com sua imagem e semelhança: não poderiam conceber como sendo o centro de tudo o imenso vazio do acaso inexplicável... Então sua dor da descoberta depende da inexorável necessidade de fé... Valdo Nery teve de Ter fé em mim naquela ocasião, mesmo sem ter a menor razão para isso. E pela fé constrói, tanto quanto se perde na simplicidade do que é evidente: o acaso. Nesse momento, após deixar a agência, Nery se deixa na batalha mental que é duvidar. Da mentira, o propósito se faz, já que precisa de fé para acreditar, e as palavras lhe vêm: - “Por que ele me escolheu? Que posso eu fazer, de estranho que é descobrir que faço apenas o mal...”


Tive que oferecer-lhe conceitos básicos. - “Nunca imaginei que realmente existisse. Queria crer que estava realmente bêbado, mas...” O que ele acredita de tão “fácil” é a dor dos que morrem sem saber de nada e acham que um dia irão voltar. - “... recordo das imagens, e seu rosto tão absoluto. Como pode não ser tal, se sabe tanto.” A visão se limita ao que despertei em sua visão, pobre criatura humana. - “Que confusão causei... Trabalhava para o lado errado!” Não há lado errado - “Mas que dia lindo...”- Faz Valdo Nery olhar ao seu redor depois de muito tempo e perceber a beleza de sua cidade; tão pouco tempo tinha para si no empenho de sua função. Ver no horror e glória do dia-dia a maravilha do que é Ter fé em algo novamente... Ele precisa. - “Oh, Deus, perdoe-me...” Eu te perdoou. Mas esta história não trata da redenção de um só homem em nome da verdade. Não há verdade a ser defendida, apenas o fascínio de momentos perdidos na memória... Entreguei-lhe uma dura missão e verei o que acontece... Numa porta Nery bateu naquela tarde. Helena era uma amiga de alguns anos, do tipo que, inevitavelmente, é deixada para trás pela diversidade de sucessos; até este ponto, o dele, e a ausência... para ela... “Há quanto tempo”... E aquelas coisas todas... “Precisava conversar com alguém...” E aquilo tudo mais... Algumas horas se passaram e eles estavam na cama. Já tinham feito isso antes, e por isso o momento os aproximou. Uma menção devo fazer aqui do quanto isto é prazeroso para o ser humano, então facilmente podia saber que o que Nery tentava fazer era esquecer... Mas não podia fugir de si mesmo. Pensei em aparecer novamente, mas não foi necessário... No começo da noite, os amigos amantes estavam de pé. A amiga Helena prepara alguma coisa para Valdo comer, enquanto isso ela se vestia para eles poderem ir a algum lugar divertido. Pouco depois ela surge ao personagem para perguntar como estava sua aparência. O tempo exerce seu poder antes que Nery perceba o pequeno detalhe dourado na blusa da amiga. Quando ele podia pensar que algo mudava na anormalidade do dia passado, vê que é a normalidade que assusta... Até onde fora com aquela mentira, para fazer sua amiga também transportar-se ao vazio de ter de adquirir o adorno parazônico, e assim estar presente no pesadelo pessoal no qual Nery se encontrava até eu existir em sua vida para lhe dizer que não estava sonhando... Seu olhar denunciador tinha uma interpretação diferente para a amiga Helena: “Não estou bem?” Nery não teve resposta para aquilo... Apenas sorriu tranqüilo e morreu um pouco ao ver que ainda era outra pessoa lá... por trás da coisa que ele a fez comprar. “Mas quanto?” Saíram. No local escolhido, algo de peculiar, todos são estranhos e se supõem estar reunidos para se conhecerem, mas nunca se falam de verdade... Nery e Helena se sentaram em um lugar. Pessoas ao redor. Sons no ambiente. Alguém servindo o casal. Tudo normal... Mas os olhos de um criador via outra coisa ao seu redor. E não era o seu Deus, que falo. Valdo Nery guiava a visão para os corações adornados pelo broche parazônico que povoava


todo ambiente. Não conseguiu encontrar ninguém que não usasse o pequeno apetrecho dourado. De Helena que já tinha visto, ao garçom que os servia, os outros clientes presentes, adolescentes e até o barman que preparava os entorpecentes. A amiga Helena percebera o desconforto do homem e se pronunciava: - O que há de errado, Valdo? Hesitante, meu homem falou: - Bem... deixe-me contar sobre uma coisa. - O que? - Sobre... Nesse momento o jovem que estava sentado a sua frente, logo atrás de Helena, lhe chama a atenção por estar olhando-o diretamente nos olhos. A estranheza no olhar parece, como sempre, combinar com o estranho brilho do pequeno broche no peito do rapaz. Nery tem pensamentos confusos sobre mim e sobre minha mensagem; pensa que talvez seja um sinal para que não compartilhe nada com a amiga, pois, afinal, também ela é uma usuária do adorno dourado. Após poucos segundos, atrás dele, um inidentificável som surge pausadamente em seus ouvidos. Valdo se vira na direção do bar, onde o barman está preparando um drink qualquer, mas o que lhe chama a atenção é o fato dos olhos do homem estarem também fixados nele, diretamente, sem uma leve piscadela que seja... Ainda na menção de falar, Nery retorna ao rosto de Helena e percebe a sincera perplexidade da amiga... Ela toca-lhe a mão e diz: - O que foi, Valdo?... O que está te atormentando tanto? Sua face assustada recua um pouco diante do suave toque das mãos da amiga; seus lábios começam a se mexer novamente... - Acho que estou enlouquecendo, Lena... Eu... – Sua sentença é novamente interferida por uma outra percepção: seus olhos se fixam no broche da amiga, que parece brilhar muito, quase iluminando cegamente sua visão, ofuscando completamente seus pensamentos ainda lúcidos... Descontrolado com toda essa fragmentação de imagens que aborda sua mente impiedosamente para um estágio de paranóia e psicose latentes, Nery se levanta cambaleando e se retira do recinto, deixando, a olhos assustados, sua amiga Helena e todo elenco daquele ambiente aproximadamente surreal para o meu atormentado guerreiro da noite eterna: eram 23 horas de um dia de semana... Valdo Nery sozinho, caminhando para casa: “Esse maldito mundo se move em câmara lenta para mim. Posso ver os malditos olhos me penetrando e retorcendo-me de dentro para fora, distorcendo tudo que eu vejo. Todos estão usando o meu broche e estão me vigiando... Isso é um delírio?... Nunca fui de usar droga nenhuma. Por que isso agora?... Esses rostos de defunto me perseguem, olham para mim, julgam os meus pensamentos... Estou gritando meus pensamentos, mas nem eu mesmo consigo ouví-los: não fui só eu!... Foram todos. Ele está fazendo isso comigo... Ele... E ele está certo...” Claro que estou, Nery. Vá para casa dormir. Você tem um trabalho amanhã, não tem? “tenho sim.” Fácil... Muito fácil, meu rapaz. Foi tudo idéia sua, então, pode ficar orgulhoso e fazê-lo bem... - Sim... – Fala sozinho no meio da noite.


Na manhã dos seres humanos a esperança se ergue junto com aquela bela estrelinha que surge a leste e não respeita nem mesmo a escuridão dos quartos daqueles cuja ressaca da vida é maior que a própria vontade de viver. Quando um homem acorda pela manhã tem nas suas imagens do sono a verdade mais pura de sua existência, mas sua consciência, após acordar o impede de lembrar desses desvelamentos do seu córtex cerebral... Nessa manhã, Valdo Nery pôde enxergar o que realmente sou por um milésimo de segundo antes de abrir os olhos para o novo dia, e talvez aí, nesse instante, restasse alguma esperança... mas ele esqueceu... chorou no segundo seguinte, lembrando o que tinha de fazer na mesma manhã, desse dia que começou. Duas horas depois já estava em frente ao templo sede da religião Parazônica, observando. Pessoas passavam e faziam um sinal com as mãos característico da mesma fé, que representava o respeito pelos seus símbolos: no caso, o templo grandioso que tocava as nuvens do céu e se tornava muito maior em significado que as pedras que tão alto faziam-no chegar... Valdo atravessa a rua e penetra nas sombras de seu interior. Todos na rua usavam o broche... O templo estava aberto aos visitantes normais, na grande maioria os fiéis da Religião Parazônica, como é sempre proposto em sua doutrina: atender a todos os poucos afortunados... Sua entrada foi discreta, apenas mais um; logo no nártex (hall de entrada) da grandiosa construção muito antiga, de séculos antes daquele período de turbulência, em outro período de turbulência que não convém ser desenvolvido aqui, Nery viu o posto de vendas do pequeno e inocente broche. Os recuos da memória lhe permitiam sentir o quanto de sua influência permanecia ali: todos que entravam, ou compravam o broche ou já o tinham cravado à lapela da roupa. A primeira reação foi o estranho “eco silencioso” que fluía do templo como uma presença viva e grandiosa em todo ambiente. A sua lembrança de mim também lhe vinha com força e o fazia penetrar com mais ímpeto na igreja... Passos lentos e desconfiados de cada rosto que passava por ele com a expressão da fé cega que tudo aquilo representava: meio que apático, meio que irado... como em sonhos sonhados na vigília. Nery era o único ali que não usava o broche, e isso começava a ser estranhamente percebido por todos... especialmente por ele mesmo, que vê nos rostos a acusação de sua fantasia (eu?) que ele estava sendo o único errado, ou o único certo, e que a missão dele aqui era outra. Prossegue, então, com o tormento em sua cabeça... Tinha ido procurar o chefe regional da Religião Parazônica para uma conversa. O eminente senhor estava lá e o recebeu... Numa saleta especial: - O que posso fazer por você, meu filho? - Bom, senhor, eu sei que algo de muito errado está sendo feito com essas pessoas que estão comprando os broches... e quero que o senhor ordene o fim da campanha. Alguns segundos silenciosos se seguiram. A surpresa era presente nos dois interlocutores. Nery não podia acreditar no que acabara de dizer com tanta facilidade... Que maravilha não faz uma simples sugestão na mente de um pobre ser humano... - Acho que não entendi o que você está querendo dizer, meu filho. - Não sou seu filho... E o senhor deve saber muito bem do que estou falando... A agência fez uma campanha publicitária que convenceu todo mundo a comprar aquela porcariazinha... E agora todo mundo está com a cabeça lavada, vazia... (mudando de tom)... E o que me dói mais é que eu ajudei vocês a fazerem essa lavagem cerebral em todo esse povo...


- Vejo culpa em sua alma, meu filho, e tormento também... Mas não pode sair por aí acusando as pessoas de tal absurdo. - É... Parece realmente um absurdo, não é?... E por isso vocês têm tanta certeza de conseguirem... Mas não comigo por aqui... (levanta-se) Não vou deixar isso continuar. - Acho que o senhor está com sérios problemas mentais, Senhor Valdo... Por que não vai descansar por uns tempos?... Agora que o senhor está sem trabalho mesmo... - Você está enganado, meu velho... Estive dormindo a vida toda, e é agora que tenho muito trabalho pela frente. Nery deixa a saleta cheio de confiança e com alguma grosseria. O olhar assustado do senhor não sabia como interpretar aquele comportamento de um jovem profissional, que há bem pouco tempo era de tanta confiança para a campanha do broche, a agência, e no final das contas, para a Religião Parazônica. Ele pega o telefone à mesa e liga para alguém... - Presidência?... Ele não está usando o broche. Nery volta à grande agência de comunicação onde tudo tinha começado. Logo na recepção ele fora abordado por um dos seguranças. Estava barrado... - Você me conhece! – Ele disse. - Fale com a recepcionista e diga com quem quer falar, Sr. Nery... O senhor não trabalha mais aqui, se lembra? - Claro... – Nery olha na lapela do paletó do truculento segurança e vê o velho broche lá... Dá um sorriso meio angustiado... e se dirige à recepcionista: - Quero ver o chefão! - Do que se trata, Sr. Valdo? Nery pensou um pouco: - Sobre os meus direitos... Afinal foram sete anos de servidão... - Sente-se e espere um pouco, que eu vou falar com ele... Tempo... Na sala de seu ex-patrão, de frente para o mesmo: - Pelo que entendi bem, você quer seus direitos pelos seus sete anos de serviço, não é isso, meu caro Valdo?... Pois eu tenho tristes notícias: sua saída já foi registrada como abandono de emprego e por isso você não tem direito a coisa alguma... - Eu quero que você e seu dinheiro, e sua agência, vão para o mais profundo dos infernos... Ficou abismado, o homem... - Então?... - Quero que você pare com a campanha do broche. - O que?... Enlouqueceu?... (pensa e sorri) É claro. Já tinha esquecido do seu ataque ao seu diretor... Você ficou doido mesmo. - Eu sei que você só se importa com o dinheiro que a campanha está gerando para agência, mas pense um pouco no que fizemos: toda essa maldita cidade está usando o broche e agindo mais apaticamente que o normal... Eles estão controlando a todos com a FÉ... O presidente da agência pigarra um pouco e recosta na poltrona com um sorriso irônico... Ele abre o paletó de leve e deixa a mostra o seu broche.


- Oh, droga... Esqueça... Pelo menos eu sei que os irmãos da Religião Equinocial jamais comprarão essa droga inútil. - É o que você pensa... Nossa próxima fase da campanha é justamente conquistar nosso principal concorrente... Lembre-se?... Está em seu planejamento de campanha... Nery dá um suspiro angustiado... quase conformado... O homem o olha com certo desprezo, mas também com compaixão. Fala: - Se quiser, pode pegar suas coisas em sua antiga sala... Um segurança irá te acompanhar só para garantir a segurança dos outros. Nery se ofende, mas não só pela ofensa... - Você sabe muito bem onde enfiar minhas coisas. – Levanta-se. - Não precisa ser rude. - Vai se ferrar! – Já saindo da sala. - Não vá fazer nenhuma besteira, Nery... Ainda pode ter uma carreira... Valdo fica paralisado por alguns segundos antes de se voltar para o ex-chefe com um olhar fuzilante e dizer: - Desprezo nossa profissão, senhor... E espero que você morra logo. – Sai da sala batendo a porta. O presidente interfona para a recepção e ordena que seja assegurada a saída do seu ex-funcionário renegado. Logo em seguida, pega o seu telefone celular e faz uma ligação: - Alô, presidente... No fim do dia Nery chegava ao prédio sede da maior rede de televisão comercial da cidade. Era uma rede aliada da Religião Parazônica... Principalmente porque uma das principais redes de televisão comercial do país, e que era uma das suas maiores concorrentes, pertencia a Religião Equinocial. Valdo esperava encontrar ajuda ali de um velho amigo de faculdade, mas àquela altura uma angústia solitária já o havia invadido de tal maneira, que já esperava sentar a frente do colega e enxergar o tal broche em seu peito... e o completo descrédito pela sua sanidade, na qual, nem mesmo o meu pobre Nery estava mais confiando plenamente... Foi prontamente recebido pelo amigo: - Quanto tempo, Valdo... Como está lá na... - Me demiti. – O sujeito ficou assustado... - Mas por que? - Quer dizer que você não está sabendo de nada?... – Nery vasculhou com os olhos toda vestimenta do rapaz a procura do broche dourado e não teve nem um sinal do mesmo... Começava a ter esperanças. - Saber o que? - Bom, não importa muito o resto... O que tenho para contar é muito mais sério que o simples fato de eu ter desistido de minha carreira de prostituta... - Prostitu... - Você sabe o que quero dizer... Há algumas noites atrás... E lá vai ele, meu Valdo Nery, me descrever fisicamente para o amigo. No meio da narração ouviu-se muitas vezes as expressões: “Não uso drogas!” e “Não estou louco!” Mas no fim das coisas: era o que ele é, para o amigo, e para todos. Nery deixou o lugar um pouco mais aliviado, com a promessa do amigo de que iria fazer alguma coisa, mas foi só Valdo sair que o sujeito abriu a gaveta e pegou seu broche dourado e o pôs na lapela da camisa. Depois ele pegou o telefone e discou...


- Senhor, presidente: ele acabou de sair, tinha razão: ele está completamente desvairado... Não se pode confiar mais em ninguém nesse mundo... Mas esse era o mundo dos seres humanos, e sempre será um lugar fascinante para se jogar esse jogo. Naquela noite, fiz mais uma visita a Nery... - Sinceramente, eu acho que não está dando em nada... Já estou bastante queimado no mercado e das pessoas conhecidas minhas, somente um parece ser de confiança: era o único sem o boche. - Você está completamente enganado sobre as duas coisas, Nery... Nenhum esforço é inútil na luta pela verdade. E seu amigo tinha um broche, sim. Ele fora advertido de sua visita sob ordens... justamente para descobrir o que você pretende. Estávamos na sala da casa dele, sentados, e eu via a expressão do desânimo em minha frente... Nem mesmo minha presença o incomodava mais do que aquela sensação de total impotência... Até mesmo o amigo de sua confiança fazia parte daquela trama, e ele mal podia crer que tudo aquilo que tinha tido era verdade, pois o nível de influência daquela situação estava indo muito além do que ele podia conceber sozinho... - Então é tudo verdade mesmo... A agência, a religião Parazônica, a Rede... Tudo interligado para dominar nossas mentes... (mais desânimo) É, não tem jeito mesmo... Não há mais a quem procurar... - Claro que há, Nery... Você está procurando aliados do lado errado... - O que quer dizer? - As pessoas do mundo que você conhece já fazem parte da “Rede de Vidas”, se é que você me entende... Você tem de procurar aliados onde ainda existe gente que não use o broche. Ele pensa um pouco. - Equinocial? - Os irmãos! – Hora de ir... Mas nessa noite outra visita veio visitar meu Valdo Nery... Na madrugada, ele não dormia, as dúvidas e perguntas o assombravam como uma repetitiva música de comercial de TV... Uma tortura para um ex-publicitário “regenerado”... Sentava em frente da TV e assistia qualquer coisa que persistia na madrugada... Do lado de fora e chegando... As três sombras chegaram devagar e se aproximaram. Na escuridão, o que brilhava eram os broches, um curioso contraste entre o que o adorno representa (luz e fé) e o que aqueles que estão ali por representar para um homem conhecido, Nery... A vigília em sua vida está agora permanente e colhem-se os frutos das dúvidas expostas neste último dia... Batem a sua porta os três homens e a inocência do rapaz se expõe ao abrir às agressões. Que ele nunca imaginaria o quão longe já teria ido naquela cruzada, “estaria apenas louco”, se não fosse o ataque... e por isso, só assim percebendo, deixei acontecer... A porta mal se abrira e um chute fê-lo cair no chão com a pancada da própria porta. Os três vultos invadiram sua turva visão e começaram a pancadaria. Suas dores e gritos foram incontidos e a velocidade do ataque não deixava dúvida quanto o grau de profissionalismo daquele trio... Desapareceram por onde vieram em seguida. Valdo apagou ali mesmo, no chão.


A dor da verdade felizmente o fez agir com mais vigor quando chegou ao dia seguinte. Talvez o que doesse mais fosse o fato de uma consciência ter sido traída por todo um contexto falsamente amistoso... Amistoso, até o momento em que ele decidiu, pela minha supervisão, mudar de opinião, sair da apatia, questionar as aparências... E por isso estava sendo condenado. E agora enxergava que a missão era verdadeira, tinha valor e tinha uma luta por que lutar... Seu coração, primeiro, nesse novo dia, queria encontrar alguém a quem devia desculpas... achava. A nova visita a Helena seria uma batalha preliminar para algo maior que estaria por vir. Pensava que se conseguisse convencer uma verdadeira amiga daquela conspiração, talvez todo resto fosse algo pelo qual valesse a pena o sacrifício pessoal. Nessa história de seres humanos é importante parar para pensar em sacrifício, pois no final será tudo que peço para essa realização. Sua mitologia humana revela a mesma necessidade e fato, do sacrifício, ao longo de toda existência... Sempre pareceu algo pelo qual fora atribuído o valor. Helena olha para o lastimável estado de Valdo Nery. Tenta ele explicar-se, mas algo além da compreensão dos dois acontecia de um lado e de outro... Tanto Nery tinha a fé dele em mim e na conspiração, quanto Helena tinha fé no seu criador supremo, o qual o broche parazônio simbolizava... Friamente: quem estava certo? Quem tinha a mente manipulada? E quem não tinha?... Após uma leve discussão, Helena disse: - Foi só um assalto, Nery. - Mas eles não levaram nada, Lena... - Talvez não tiveram mais tempo depois dessa brutalidade que te fizeram. - Sei... E quanto ao fato dos três estarem usando o broche?! - Coincidência... Afinal, você fez uma campanha e tanto... Todo mundo comprou... Aquelas palavras o machucaram mais ainda. Sabia de fato ser verdade, mas nem tanto para não lembrar o que lembrou: - Nem todo mundo, Lena... Os fiéis da Religião Equinocial ainda não foram... “atingidos” (escolheu a palavra). Talvez haja possibilidades. Valdo pensa um pouco e fala: - Pode ser... Mas ainda sim... Foram os únicos que restaram... Nery parte da casa de Helena. Um beijo suave e um pedido para tomar cuidado preenchem um pouco do amplo vazio de esperança que começava a dominá-lo... Sentira não tê-la convencido de nada, mas também podia sentir, ainda, a fidelidade de uma amizade... Porém... Helena faz uma ligação telefônica logo após a partida de Nery... - Sr. Presidente... Ele vai procurar “os irmãos”. Esse é o seu próximo passo... Aparentemente o corretivo não surtiu o efeito desejado, e sua determinação está intacta. (Silêncio.) - Sim, senhor... Ele falou sobre isso... Valdo chega discretamente no gigantesco auditório do templo da Religião Equinocial. Do que Nery vê, começa a pensar:


“Por que explorar tanto a nossa fé? Será essa a necessidade tanta, que atormenta a nós, que te faz vibrar e continuar existindo...? Não consigo entender porque estes se entregam tão facilmente, e porque os outros se deixam manipular tão docilmente, também... Será que, por eu ter sua informação a mais, tenho o direito de julgar estes ou aqueles?... Minha maior obra ainda é a campanha que eu ajudei a ser um sucesso... Mas agora estou aqui, e sei de algo mais, e devo agir logo... e esperar o melhor... o que provavelmente não será muito bom...” Estes pensamentos de Valdo são a franca demonstração da dúvida humana em presença do que deveria ser a certeza absoluta. A pergunta sobre mim que Nery se faz não é nada mais do que as perguntas que as criaturas humanas vêm fazendo desde seu início, e que, com raras exceções, têm gerado as respostas mais absurdas... mas... como eles mesmos dizem... seja o que Deus quiser. E eu quero que Nery vá até o palco, de onde um pastor realiza a sua pregação, para dar o mais desesperado dos depoimentos sobre a “verdade” do broche do “diabo”... O pastor: - ... Parece que temos alguém querendo nos falar, irmãos. Não tema, meu jovem... Somente a luz divina liberta do medo... O que você tem para nos dizer? Dê seu depoimento... Mostre como Deus entrou em sua alma... Nery, deslocado... - Na verdade... Ele entrou... em minha casa... - Nosso Senhor está em todas as casas. Irmão... Aleluia! E todos gritam a palavra aleluia. Nery prossegue: - Tudo bem... É o seguinte... Sabem os broches que... – E ele contou tudo. Inclusive sobre o ataque a sua casa na noite passada. Enfim... Por um momento esta imagem permaneceu: um rosto único formado em todo aquele público que expressava um intenso vazio entorpecido... Não era bastante a revelação sobre o objeto que suas mãos traziam, broches; seria necessário um choque muito mais profundo para acordar aqueles “sonâmbulos” de um sono de fé e consumo. Nery ainda mantinha os braços erguidos no ar com uma pretensa vontade de ignorar toda aquela apatia que recebia em troca, mas a minha imagem ainda lhe guiava as ações, e muito pouco haveria para se resistir os desejos referentes à uma criatura como eu. Sua memória estava sendo invadida por uma noção de verdade que fugia a tudo de mais caro para a fé daquela multidão... Seus rostos absorvidos pelo poder da palavra os impedia de pensar; imagino que não pelo poder da própria, um tanto exaurido pelos momentos sem palavras do pastor, mas por uma força muito maior que vinha da fé... Nery lembra do quanto se esforçou para pôr nas mentes de tantas outras pessoas a necessidade de adquirir o broche... Seria ele tão diferente do pastor?... Agora, seu rosto (um desconhecido), queria desacreditar tudo que havia de mais puro na fé de outros... E qual era a sua fé? Eu... sua fonte de luz, sua razão para existir... Para todos... Tornaria o vazio preenchido. Precisa de ajuda, esse crédulo ser humano, Valdo Nery... O pastor, falando baixo... - Tirem esse maluco daqui!


Três homens truculentos, de terno e gravata, se aproximam de Nery e começam removê-lo do palco. Ele não demonstra resistência, mas o desânimo e a humilhação estavam em seu rosto como eternas cicatrizes de fogo... Uma voz, a minha, soa: - Soltem o meu mensageiro, homens de pouca fé... Todos se assustam com a imponência da voz e assistem de um lado ao outro a dúvida e o medo surgirem em seus rostos. As luzes começam a se apagar em todo auditório. O pastor: - Quem mandou apagar as luzes? - Eu sou a única luz, pastor Vanderlei... - Quem é você?.. Como sabe o meu nome?... - Quem você acha que é?... Nery observava fascinado a reação daquelas pessoas que estavam tão firmes em sua fé há um minuto atrás, e agora duvidavam da minha revelação... Pensa como foi mais simples convencer um descrente como ele próprio, do que é se revelar para uma pessoa de fé sobre a verdadeira natureza da própria crença... Talvez o que faça sentido na fé é justamente nunca ter certeza, apenas... acreditar... Faço surgir uma luz sobrenatural no centro do templo e ofusco a todos com a maior luz que eles podem conceber em sua tosca fé e ciência: a luz divina, mas na verdade uma lâmpada de 1 milhão de watts (medida de potência e energia). Gritos desesperados. Gente de joelhos. Todo tipo de coisa que demonstra a submissão dessas criaturas a algo que elas simplesmente não têm um nome para dar, e por isso: sou Deus. Mas, pelo menos, Nery saiu de lá feliz, realizado, com a missão cumprida... livre. Nos dias que se seguiram à minha aparição tudo começou restrito ao mundo da comunicação... Como era de se prever nessa batalha de redes, as vidas passaram a ser pouco quando relacionados os lucros a respeito da revelação de minha existência em plena era tecnológica. De um lado, as afirmações dos verdadeiros escolhidos do Senhor: a Religião Equinocial. E do outro, a religião Parazônica tentando provar “a fraude” de minha aparição, e ao mesmo tempo deixando completamente de lado a continuação da campanha do broche. A agência onde Nery trabalhava entrou numa rápida e vertiginosa decadência e fechou suas portas em novembro de 1998. A princípio ninguém lembrou dele... As diversas instituições sociais que compõem este pequeno sistema de criaturas humanas começou a ruir em seguidas representações de insatisfação do público, que clamava pelo seu Deus vivo, que deveria aparecer novamente muito em breve... Palavras dos irmãos Equinociais; eu não disse nada naquele dia. Estes, por sinal, tomaram boa parte da população de assalto com suas imagens exclusivas, transmitidas via satélite para todo mundo, de... mim. É claro que eles tinham câmaras no templo! Bom... E até aqui houve muito caos por toda parte... Valdo Nery estava vivendo tranquilamente, com sua consciência plenamente limpa do dever cumprido em nome da verdade, justiça e fé... E acredito... Feliz por ter se livrado de minha imagem perturbadora.


Tentou viver algum tempo com sua amiga amante Helena, mas ela o expulsou de sua vida quando soube que, indiretamente, era pelas ações dele que o mundo havia mergulhado no caos em que se encontrava... Valdo argumentara com Helena que era justamente na falsa aparência de paz em que viviam antes que estava o perigo da apatia, do não desenvolvimento, da fé cega sem o questionamento e etc... toda aquela coisa sobre dúvida..., mas fora inútil, pois para ela... Nery havia revelado o criador para o lado errado... e isso era imperdoável. Helena era uma das pessoas que continuou usando o adorno de metal mesmo depois do fracasso da campanha Parazônica. Quando começou a peregrinar solitário pelo interior do seu país, tão atormentado pelos conflitos, já era gosto de 1999. Uma grande revolta dentro da religião Equinocial se deu em meados de outubro de 99. Não só cansados de esperar a minha volta triunfal como salvador de suas almas, incitados pelas provocações dos Parazônicos e no meio de intermináveis conflitos sociais, religiosos, políticos e econômicos... os irmãos decidiram colocar seus líderes contra a parede e cobrar a verdade (sobre mim), mas a esta altura já era tarde demais para se alcançar as lideranças religiosas: todos, líderes Equinociais e Parazônicos, se encontravam em locais desconhecidos, escondidos por causa dos conflitos e amedrontados pelas iminentes revoltas desse tipo que poderiam surgir... De fato, era a dúvida fomentada pela minha aparição que havia gerado tudo aquilo... E era fascinante ver os pobrezinhos se digladiando para provar quem tinha mais fé em mim... Em um dos esconderijos de líderes Parazônicos; algo do tipo abrigo nuclear super luxuoso debaixo da terra; alguém fala: - O presidente nunca mais deu sinal. Deve estar muito bem escondido. E em um dos locais similares dos Equinociais: - Será que ele vem mesmo?... Em fins de janeiro de 2000, Valdo Nery está sentado numa lanchonete extremamente desagradável de beira de estrada, em algum lugar perdido entre aqui e lá, esquecido até pelos conflitos mundiais, e pede ao barman-garçon-cozinheiro-proprietário alguma coisa para beber enquanto descansa de sua interminável caminhada pelo mundo. - Obrigado. – Diz o ex-publicitário de sucesso. O homem parece que nem conhece essa palavra. Com a expressão mais amargurada do mundo e com gestos completamente apáticos, o sujeito se dirige ao velho aparelho de TV que se encontrava num móvel alto atrás do balcão. Nery prevê os acontecimentos e ensaia sua retirada do estabelecimento; não quer ver ou ouvir TV de maneira alguma; porém uma voz no aparelho chama sua atenção: - ... Claro que viemos em paz. Trazemos a esperança para todos os homens... Somos a resposta para todos os seus problemas... Ouvimos suas preces... – E o repórter: - Essas foram as palavras do líder da delegação alienígena... Finalmente as perguntas sobre as angústias humanas terão respostas... Uma resposta que veio dos cosmos... E como falam bem todos os nossos idiomas... A expressão no rosto do meu migo Valdo Nery diz tudo: era eu quem estava lá, tinha acabado de chegar, a nave estava repousando suavemente no meio do oceano Atlântico. Quis fazer minha chegada triunfal aqui em Salvador, para poder pegar o carnaval, que naquele ano teve como tema: A Esperança das Estrelas... A cada ano a festa tinha um


tema... Nunca identificaram a minha voz como sendo nem a do presidente da Religião Parazônica e nem como sendo a da luz divina dos Equinociais... E o resto, minhas crianças, vocês já sabem: temos um planeta farto de comida e todo nosso, e as criaturas humanas que restam ainda rezam em nosso nome... Realmente fascinantes!


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