Aprendizados alter-nativos: a intuição antropofágica Sebastião Vargas* Se comemos tantas coisas, é porque quase tudo nos dá apetite, desde as sinfonias até as epopeias, sistemas filosóficos e teorias científicas, contanto que essas coisas sejam saborosas, porque nosso paladar é mais delicado que o dos caetés. Não temos nenhum medo de com isso comprometer nossa identidade, primeiro porque identidade é coisa de antropólogo, e costumamos comer todos os antropólogos, e segundo porque nossa identidade, na medida em que existe, é constituída precisamente pelo que não é nosso, pelo que vem de fora, pelo que recebemos. Há muitas e muitas luas, eu escrevi assim: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”. Está certo. Mas hoje eu completo: só me interessa o que não sou eu. “Je est un autre”. Assim falou um tupinambá honorário, Rimbaud, quando foi estudar antropofagia na África. Somos o Outro. O que somos é alimentado pelo que não somos. Por isso nossa identidade (tupinambá) é sempre negativa. Aberta, nômade, inacabada, provisória. Manifesto Antropofágico II Oswald de Andrade Psicografado por Sergio Paulo Rouanet Ano 499 do encontro de Montaigne com os tupinambás Em 1928, Oswald de Andrade publicou o célebre Manifesto Antropófago iniciando uma influente, polêmica e divertida discussão sobre o mecanismo do funcionamento da cultura brasileira (e também latinoamericana), deslocando transgressivamente a noção de identidade que a partir daí se construiria metaforicamente no ato de devoração do outro: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”. “Lei do antropólogo”, agregaria Eduardo Viveiros de Castro (2007, p. 118), formulador do perspectivismo indígena que considera “um conceito da mesma família política e poética que a antropofagia de Oswald de Andrade, isto é, uma arma de combate contra a sujeição cultural da América Latina, índios e não índios confundidos, aos paradigmas europeus e cristãos. O perspectivismo é a retomada da antropofagia oswaldiana em novos termos”. Alguns modernistas brasileiros da década de 1920, apesar do limitado conhecimento antropológico de então e numa enigmática e chocante intuição, que as pesquisas da melhor antropologia atual estão complexificando, fizeram do motivo da antropofagia ritual indígena (um tema tabu ainda hoje no Chile) a base de uma filosofia e estética insurgente. Assim como os índios tupinambás devoravam seus inimigos para se apropriar de sua força, os modernistas insistiam que a missão do intelectual no Brasil seria a de capturar, cozinhar e digerir os vários tipos de produtos culturais importados (técnicas, filosofias, artes, políticas, etc.) para, metabolizando sua positividade e expelindo suas fraquezas, os transformarem permanentemente em novas sínteses. Estas, corretamente exploradas, teriam a missão de voltar a cultura imposta, agora devidamente transformada, contra o colonizador. A perspectiva antropofágica busca realizar sínteses que operem efetivamente críticas radicais - não num ingênuo cenário de “encontro de culturas”, mas sim num cenário
de constante confrontos culturais de poder desiguais (VARGAS, 2014). Obviamente, os antropófagos exigiam uma “desvespucização” das Américas e uma “descabralização” do Brasil. Na segunda “dentição” da Revista de Antropofagia de 24 de abril de 1929, Oswald de Andrade lamentava, com o curioso pseudônimo de Marxillar (Marx + maxilar), que os brasileiros continuassem a ser escravos de uma cultura europeia decadente e denunciava a “mentalidade colonial” ainda imperante, ameaçando: “Então chegou a vez da descida antropofágica. Vamos comer tudo de novo”. Podemos sugerir que as intuições antropofágicas de Oswald afirmam a simultaneidade dos diferentes lugares na conformação do mundo: abrem espaço para que múltiplas epistemes dialoguem. A recente entrada em cena no mundo acadêmico de pensadores e intelectuais indígenas enriquece o debate sobre a necessidade de impulsionarmos a pluralidade epistemológica que permita a emergência de saberes em que a ciência possa dialogar e articular-se com outras formas de saber, evitando a desqualificação mútua e procurando novas configurações de conhecimentos. O que os pensadores indígenas estão questionando é o caráter monolítico do cânone epistemológico “ocidental” (e da dimensão epistemológica do colonialismo) e afirmando a relevância epistemológica, sociológica, histórica e política da diversidade interna das práticas científicas, dos diferentes modos de fazer ciência e da necessidade de estabelecer relações profícuas entre a chamada “ciência” e outros conhecimentos. Uma espécie de “devoração ecológica de saberes”. As potencialidades desses diálogos são extraordinariamente fecundas e nos oferecem todo um novo roteiro de estudos e interrogações. Pensemos, por exemplo, nas “reflexões deslocadas” que frutificaram da colaboração entre o sábio qom Timoteo Francia e a antropóloga argentina Florencia Tola (2011); nas contundentes palavras do yanomami David, que Bruce Albert (2002) chamou de “crítica xamânica da economia política da natureza”; nas sofisticadas e inovadoras reflexões do intelectual e músico zapoteco Jaime Martínez Luna (2010) sobre os múltiplos sentidos da “comunalidad”; nos diálogos do subcomandante insurgente Marcos com o viejo Antonio; ou na apropriação do arsenal teórico anticolonial africano atualmente realizada por intelectuais mapuche (VARGAS, 2017). O antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro formula uma interrogação inquietante: “o que acontece quando se leva a sério o pensamento nativo?” Este é o desafio que os pensadores indígenas lançam para toda América Latina. Por que isso deve parecer, nas próprias palavras do antropólogo, tão “impossível”? “Levar a sério é, para começar, não neutralizar”, avança Viveiros de Castro (2015, p. 227). Já é mais que tempo do pensamento latino-americano encarar com seriedade e respeito as múltiplas potencialidades desse pensamento indígena tão obliterado, tão neutralizado, tão ignorado. Se queremos multiplicar as possibilidades do nosso mundo (e de outros mundos possíveis) abrindo caminhos para democratizar a democracia, por que não aceitar o desafio lançado por esses indígenas pensadores e experimentar os efeitos que esse pensamento pode produzir no nosso? Sobretudo e verdadeiramente, por que não aprender com eles? Caminhamos... ________________
* Pós-doutor pelo IDEA-USACH e professor de História da América na UFRN. Brasil.
Referências: ALBERT, B. 2002. O ouro canibal e a queda do céu: uma crítica xamânica da economia política da natureza (Yanomami). In: ALBERT, B; RAMOS, A. Pacificando o branco: cosmologias do contato no norte-amazônico. São Paulo: Editora da UNESP, p. 239-277. FRANCIA, T.; TOLA, F. 2011. Pensamientos políticos y filosóficos qom. Buenos Aires, Rumbo Sur/UBA/IWGIA. MARTÍNEZ LUNA, Jaime. 2010. Eso que llaman comunalidad. Oaxaca, CAMPO. VARGAS, Sebastião. 2014. Antropofagia cultural: momento do pensamento crítico latinoamericano. Revista Eletrônica da ANPHLAC, 17:282-303. _________________ 2017. História, historiografia e historiadores mapuche: colonialismo e anticolonialismo em Wallmapu. História Unisinos, (no prelo). VIVEIROS DE CASTRO, E. 2007. Encontros. Rio de Janeiro, Azougue Editorial. _________________ 2015. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pósestrutural. São Paulo, Cosac Naif.