Livro Perspectivas

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REALIZAÇÃO dayane vanderlei muniz de souza josicleide araújo de oliveira PRODUÇÃO EXECUTIVA E ORGANIZAÇÃO herbert de andrade oliveira CORRETORAS josicleide araújo de oliveira luciana de oliveira barbosa ARTE E DIAGRAMAÇÃO igor dantas

Perspectivas : educação, política, gênero e outros escritos -- / Herbert de Andrade Oliveira, (org.). -- Campina Grande, PB : Editora Gráfica Marcone, 2018. Vários autores. “SINTAB Sindicato dos Trabalhadores Públicos Municipais do Agreste da Borborema” ISBN 978-85-98198-20-0 1. Educação 2. Educação rural 3. Escolas do campo 4. Ginásio Agrícola Assis Chateaubriand (Lagoa Seca, PB) - História 5. Identidade de gênero 6. Memórias 7. Movimentos sociais 8. Moradias 9. Mulheres Condições sociais 10. Políticas públicas I. Oliveira, Herbert de Andrade. 18-17937 CDD-361.25


ana thamiris batista de farias dayane vanderlei muniz de souza gildenha alencar medeiros jadson pereira vieira josicleide araújo de oliveira rafael dos Santos Campos herbert de andrade oliveira (org)

catalogação elaborada pela câmara brasileira do livro

editora gráfica marcone


ÍNDICE



APRESENTAÇÃO O SINTAB (Sindicato dos Trabalhadores Públicos Municipais do Agreste da Borborema) é uma entidade classista, autônoma e democrática, constituída para a defesa e representação legal dos trabalhadores do serviço público das regiões Agreste e Borborema da Paraíba. Além de cumprir as funções primordiais de um sindicato, como a luta pela melhoria nas condições de vida e de trabalho de seus representados, também faz parte dos objetivos da entidade a promoção de projetos culturais, de aperfeiçoamento profissional, recreativos, entre outros. No município de Lagoa Seca, uma das bases de atuação deste sindicato, há um seleiro de profissionais que, além de desenvolverem suas atividades laborais cotidianas, se dedicam também a autoformação, busca de conhecimentos e pesquisa. Como forma de reconhecer essa vocação local, o Sintab - Lagoa Seca lançou, no primeiro semestre de 2017, edital para seleção de artigos que pudessem compor um livro a ser publicado pela entidade. O objetivo do projeto é reunir textos inéditos produzidos pelos funcionários públicos de Lagoa Seca, com temáticas variadas como: educação, direitos trabalhistas, assistência social, cidades, agricultura e questões agrárias, ecologia e meio ambiente, geografia e história de Lagoa Seca, saúde, movimentos sociais e sindicalismo, administração pública, literatura regional, entre outros. 8


Ao todo, foram selecionados seis textos, que agora fazem parte do livro PERSPECTIVAS. No primeiro capítulo, a proposta é relatar a trajetória da busca por moradia social no Brasil e os principais avanços neste setor que foram alcançados através da luta dos movimentos sociais. Trazemos à tona, através da temática habitação, a questão da participação social e o direito à cidade. A reflexão consiste no (auto) reconhecimento da importância do ser humano como sujeito coletivo que luta, participa e reivindica. No capítulo seguinte, temos uma reflexão sobre a educação do campo, a educação popular e as políticas públicas voltadas para a população do campo. São apresentadas algumas problemáticas no trato com a questão, mas também são destacados pontos chaves para a abordagem do tema, como a necessidade da educação popular e do campo estarem voltadas para a compreensão da realidade local e o respeito aos saberes populares. Já no capítulo terceiro, o destaque é para o Ginásio Agrícola Assis Chateaubriand, situado no município de Lagoa Seca. O autor fez um estudo da gênese desse centro educacional, abordando aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais das décadas que marcaram seu surgimento. É uma narrativa consistente, mas que também traz diversas curiosidades, inclusive sobre personalidades da época.

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Nos últimos três capítulos, aborda-se a temática do feminino sob diferentes aspectos. Primeiramente são narradas as memórias individuais e coletivas da líder camponesa Josefa Ermina Cobé “Nêm Cobé”, que teve sua vida marcada por uma trajetória de lutas e resistências em plena ditadura militar no interior paraibano. Em seguida, é tratado o tema dos estereótipos femininos nos livros didáticos: a autora comprova a importância da aproximação do conteúdo a ser transmitido com a realidade sociocultural do educando, como também a necessidade da discussão sobre gênero no espaço escolar, sendo este um ambiente no qual se disseminam muitos preconceitos e discriminações. Por fim, temos uma análise da matéria veiculada pela revista Veja em 18 de abril de 2016, com o título Bela, recatada e do lar, e as posteriores reações da imprensa em geral e da população nas mídias sociais. Discutir política, participação social, gênero e educação é o que impulsiona nosso sindicato no momento atual. Esperamos que o leitor sinta o entusiasmo com que foi produzido este livro, e que ele sirva de inspiração para futuras produções.

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CAPÍTULO 01 Tu sabes, conheces melhor do que eu a velha história. Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na Segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada. Eduardo Alves da Costa

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PARTICIPAÇÃO SOCIAL E O DIREITO À CIDADE1 Para um melhor entendimento da expressão “O Direito à Cidade”, parece apropriado recorrer ao filosofo David Harvey (2012) que, em seu livro REBEL CITIES From the Righttothe City to the Urban Revolution, relata suas impressões sobre o surgimento e o desenvolvimento do termo. Para o autor, na década de 1960 em Paris, o novo passava a sobressair-se sobre o velho, a conjuntura estava mudando e o que estava surgindo não parecia muito agradável. Para Harvey, o filosofo Henri Lefebvre, precursor da terminologia e autor do livro Le droit à La Ville (1967), escrevia sobre um cotidiano próximo a si e havia nele uma sensibilidade peculiar. Lefebvre trouxe em sua obra uma demanda, uma necessidade de enfrentamento à crise que estavam vivendo os parisienses. Com as modificações de ordem econômica, passou a fazer parte do cotidiano de Paris a imigração, a marginalização, o desemprego, entre outros. E é dentro desta conjuntura que se viu formada a discussão do direito à cidade. Lefebvre aponta a crescente industrialização e a urbanização como o motor das transformações societárias. Na medida em que tratamos sobre a industrialização, urbanização e suas implicações, cresce a necessidade de destrincharmos ainda mais a terminologia “o direito à cidade”. Não fazer essa análise mais profunda seria uma justificativa para não buscar os caminhos para a concretização deste direito, e poderíamos continuar apenas divagando comodamente sobre os problemas do mundo capitalista. Assim sendo, nos dias de hoje, como podemos refletir sobre esse direito? Parafraseando Carlos (2005 apud BUONFIGLIO, 2007), “[...] que direito é este que surge na contramão da História senão uma necessidade humana radical?”

Dayane Vanderlei Muniz de Souza, assistente social, militante dos movimentos sociais e diretora do SINTAB-LAGOA SECA. Texto extraído do trabalho de conclusão de curso em Serviço Social pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB (2012) 1

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Harvey (2012), de forma prática, nem por isso deixando de ser complexo, afirma que o direito à cidade está em aberto. Seu significado depende de quem e como será construído. Este autor se baseia no pensamento do sociólogo Robert Park e reafirma que nós, seres humanos, criamos a cidade, então nela deveremos viver. Paira sobre o homem uma responsabilidade histórica: ao passo em que nos enxergamos como criadores da cidade, somos os responsáveis por sua transformação. Olhando para nossa realidade nacional, no texto “O direito à cidade apropriado: da utopia dos sem-teto ao modelo de gestão do Estado”, a autora Buonfiglio (2007) aponta como este tema tem sido discutido e mostra, claramente, dois modos de enfrentamento da questão: o primeiro se refere a como o Estado apropria-se do discurso do direito à cidade a partir de um modelo de gestão democrática; o segundo modo de enfrentamento, vindo de outra direção, é observado na forma como os semteto encaram o paradigma do direito à cidade na luta pela real efetivação desse direito. A autora traz, assim, o dualismo em que pode ser discutido este direito. Por um lado, os modelos atuais das políticas sociais, especificamente as políticas urbanas e habitacionais, buscam o exercício da gestão democrática – sem entrarmos no mérito da efetividade da participação popular –, o que só foi possível através de grandes lutas do movimento pela reforma urbana. Por outro lado, quando falamos do paradigma da luta, temos em vista a combatividade dos movimentos sociais que é o que lhes forja. Vemos assim, em ambas as perspectivas, o coletivo como responsável pelo que foi e está sendo construído de positivo até o momento. Mais que isso, é exigido desse coletivo um processo de consciência que supere a alienação individual, na qual é aceitável como natural tudo o que nos é estabelecido: o que sempre foi, deverá ser eternamente. A superação dessa alienação se dá a partir do momento em que reconhecemos no outro a mesma injustiça da qual padecemos. A questão da moradia nos mostra muito bem isso. Ao passo em que uma 13


necessidade individual e imediata, que é o morar, é percebida como uma questão comum a outras pessoas e que a dificuldade de se alcançar esta demanda é mais latente nas camadas sociais pauperizadas, constrói-se então um olhar coletivo. Assim, é possível a superação do sentimento de impotência e submissão e passar a ser construído um espírito de luta e reivindicação, em que se constituem coletivamente alternativas e estratégias para superar a problemática. Entretanto, não estamos tratando apenas de uma problemática focalizada como o direito à habitação. O direito à cidade está em aberto, e o que se necessita está muito além de um teto. Necessitamos, na realidade, da superação dos fatores que nos fazem reivindicar! Assim como Engels pregava que a problemática da habitação será superada apenas com a mudança de sistema, Maricato, um dos expoentes do movimento de reforma urbana, acredita que o que se construiu até o momento em termos de reformas urbanas não foi suficiente para modificar a lógica da cidade, porque não se superou as leis de mercado. Deixamos de falar, nesse momento, de reivindicações coletivas para sanar lacunas individuais, e passamos a falar da necessidade de mudança de um sistema de exploração. Ou seja, mais que uma luta pela efetivação da gestão democrática, mais que a reivindicação dos movimentos sociais, o direito à cidade está além de questões individuais ou de pequenos grupos. É uma questão histórica, econômica e classista. Como mostra Mauro Iase (2007), um pesquisador do processo de consciência de classe, para sabermos como transformar a sociedade é necessário que saibamos como ela funciona. Se o direito à cidade está em aberto, ele deve ser preenchido de significado pela atuação política da classe trabalhadora e pauperizada, mas também através de uma leitura crítica da história das cidades.

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QUESTÃO DA MORADIA E A PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA CONSTRUÇÃO DAS POLÍTICAS HABITACIONAIS Ao mesmo tempo em que a existência de espaços adequados para viver é uma condição da própria sobrevivência humana, sabemos que grande parte dos indivíduos não tem garantido esse efetivo direito à cidade. Não lhes sendo isto assegurado, o cidadão irá providenciar, mesmo que de forma irregular ou desprovido de qualquer segurança. Partimos do pressuposto que habitação é muito mais que um teto, é o espaço em que se vive. A moradia deve ser vista além do espaço físico de uma casa, abarcando vários equipamentos e serviços como água, energia, esgotamento sanitário, transporte, comunicação, escolas, saúde e outros. Esta concepção traz uma quebra de paradigma, entrelaçando todas as demandas que uma vida em comunidade exige, porque o morar não é apenas habitar uma casa, mas se relaciona com toda uma infraestrutura necessária para viver. São todas estas características que compõem o valor de uso da habitação. No que diz respeito ao envolvimento das pessoas com o local em que vivem, com a comunidade e com a luta por melhorias, esta percepção a respeito da moradia é fundamental. Entendemos que uma vida em comunidade é, sobretudo, participar das decisões da localidade, é buscar o direito àquele espaço e, consequentemente, ter acesso aos serviços fundamentais que garantam uma vida digna. Como destaca Lehfeld (1983), a moradia é compreendida de forma diferente em cada camada social. Para os trabalhadores de forma geral, a habitação tem um significado simples, prático e objetivo, pois, além de protegê-lo e dar condições de subsistência, o imóvel adquire a função de abrigar o cidadão e sua família assumindo características de um lar, um local de segurança e 15


aproximação com os familiares. Ou seja, diferentemente das classes mais abastadas que tem o imóvel como um valor de troca acumulativo, o trabalhador geralmente limita-se ao valor de uso. É exatamente por esse motivo que a demanda do trabalhador por moradia é transformada em objeto de barganha pelas classes detentoras do poder. Caracterizando esta questão no Brasil, visualizamos a forte intenção mercadológica das políticas habitacionais a partir do aceleramento do processo de industrialização e urbanização do país na década de 1960. No governo de Castelo Branco (primeiro presidente da ditadura militar, 1964- 1967), teve início um plano de ação econômica com destaque para o Sistema Federal de Habitação - SFH, que teve como gestor e coordenador o Banco Nacional de Habitação - BNH . Segundo a lei 4.380, de 21 de agosto de 1964, este banco foi criado com o objetivo de “[...] promover a construção e a aquisição” das casas próprias pelas “classes de menor renda.” (DIAS, 1992, p. 31). No entanto, estes objetivos tão diretos e compromissados são questionados pela forma de atuação do banco. Segundo Bonduki (2008), a política do BNH era de financiamento do setor da construção civil habitacional. Silva (1987) reafirma que os reais objetivos eram impulsionar a industrialização através da construção civil com programas habitacionais intensivos. Segundo estes autores, este plano tinha um forte apelo para com a classe trabalhadora, de forma a combater as ideias comunistas que eram fomentadas no país, além de buscar a legitimação deste novo governo junto à população. Podemos perceber que esta política apresentava um modelo empresarial com a intenção de manobras ideológicas e econômicas. Destacando-se também a forma autoritária desde a concepção até sua gestão. Essa característica de transformar as políticas sociais em mercadoria é bastante discutida pelos autores que caracterizam a questão habitacional neste e nos outros períodos subsequentes. 16


Podemos considerar isso como uma problemática do capitalismo, no qual tudo passa a ter um valor de troca, submetendo as pessoas em geral às regras do sistema que têm como prioridade o lucro. Quem detém os meios de produção e a propriedade é quem determina, juntamente com o poder político (que atua na perspectiva liberal), os rumos que serão dados para as cidades. Outro fator a ser considerado é a ausência da participação da sociedade civil nas decisões políticas. Na época em que até mesmo o ato de votar não fazia parte das obrigações e direitos dos cidadãos brasileiros, o Estado manobrava a participação popular dando um caráter conservador e autoritário às políticas habitacionais. Segundo Godinho (1980), o poder público necessitava da validação de suas ações pela população: ora apenas informava as forças sociais sobre suas ações, não deixando margem para questionamentos, ora nomeava colegiados formados por grupos sociais já cooptados. Nesse Sistema Federal de Habitação, os programas foram sempre impostos, com destaque para uma característica que não contemplava as necessidades da população como um todo, a centralização. Num país tão heterogêneo, ter políticas sociais unificadas é um equívoco, pois o país é dividido em muitas regiões com características próprias e peculiaridades a serem respeitadas. Essa forma de gestão da política habitacional perdurou no Brasil por mais de duas décadas. Na realidade, a política habitacional era gerida com mãos de ferro, pois era apenas um reflexo do modelo autoritário e conservador instaurado no país. Com o fim do regime militar em 1985, o país encerrou um capítulo marcante da sua história, momento em que houve também grandes mobilizações populares, inclusive contra o Banco Nacional de Habitação. Vejamos o que Bonduki (2008, p. 75) expõe sobre a questão deste banco no período de transição democrática: 17


Neste contexto, organizou-se, por um lado, o movimento de moradia e dos sem-terra (urbano), que reunia os que não conseguiam ter acesso a um financiamento da casa própria e, por outro, o Movimento Nacional dos Mutuários que agregava mutuários de baixa renda e classe média, incapacitados de pagar a prestação da sonhada casa própria.

Em meio a tantas dificuldades para estabelecer um programa democrático de acesso à moradia, o BNH encerra suas atividades e é extinto no ano de 1986. Esse período em que vigorou a política habitacional gerida pelo BNH, apesar de equivocada, foi a primeira vez em que houve no Brasil uma política habitacional a nível federal. E, embora tenha saído de cena como uma das “instituições mais odiadas do país”, esta deixou alguns dados relevantes, como: o financiamento de “4,3 milhões de unidades prontas”, sendo “1,9 milhões com recursos do SBPE2, para o mercado de habitação para a classe média” e “2,4 com recursos do FGTS, para o setor popular” (BONDUKI, 2008, p. 73). Por outro lado, a questão arquitetônica e urbanística não foi tratada da forma adequada, além de não atingir parcelas mais pobres da população por utilizar apenas recursos na forma de empréstimo (retornáveis), sem colocar a disposição qualquer fonte de subsídios, e adotando critérios de financiamentos bancários. O fim do BNH, na década de 1980, entretanto, não significou o término do Sistema Federal de Habitação e das problemáticas desta política; num primeiro momento, poucas coisas se modificaram. A Caixa Econômica Federal assumiu o lugar do BNH como agente financeiro e surgiu, então, o Conselho Monetário Nacional que passou a controlar o crédito de forma rígida, restringindo a produção de habitações. Neste momento da política de habitação, podemos destacar ainda uma contenção de recursos destinados à população mais pobre e alguns projetos habitacionais pontuais como o Programa Nacional de Mutirões Habitacionais. 18

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Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo - SBPE


Passou a fazer parte do cenário político do país grandes incertezas, e neste momento de transição da ditadura militar para a democratização cabiam dúvidas, questionamentos sobre o passado e o porvir, sobre o que continuaria e o que seria modificado. Ainda assim, temos a retomada dos movimentos sociais. Organizações já existentes desde a década de 1970, mas que, nesse período de abertura democrática, se articularam com outras forças da sociedade civil, como universidades e sindicatos, para fazer desta fase de redemocratização um momento propício para a articulação dos movimentos sociais. Assim, a ampliação do movimento de luta por moradia com organizações nacionais, como a União Nacional de Movimentos de Moradia (UNMM), o Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLN) e a Confederação Nacional de Associações de Moradores (CONAM), teve uma grande importância para a articulação e constituição do Fórum de Reforma Urbana (FNRU). Este surgiu no momento em que os movimentos empenhavamse em propor emendas para a Constituição Federal de 1988 sobre reformas para o espaço urbano. O fórum teve como referencial a utopia do “direito à cidade” e seu foco de luta foi na atuação em espaços políticos institucionalizados, ações diversas de mobilizações, além de processos de formação de base. Este movimento se mostrou muito atuante neste início do processo de redemocratização do Brasil e de construção da Constituição Federal até a atualidade (FERREIRA, 2012 e CYMBALISTA, 2005). Dentre as necessidades de mudança neste novo período da história do país, a participação popular e o direito das pessoas lutarem dignamente por melhores condições de vida certamente foi fundamental. O Fórum de Reforma Urbana é um exemplo de organização e resistência. Já nos primeiros anos de redemocratização, foram alcançadas algumas conquistas: emendas populares através de abaixo assinados, a questão da reforma urbana ser incluída de alguma forma na Constituição 19


Federal de 1988, descentralização das competências nas três esferas governamentais, etc. Estes movimentos sociais experimentavam uma nova fase na conjuntura política brasileira. Entretanto, a produção de leis para compor a Constituição Federal não significava uma mudança automática na estrutura política e econômica do país. A política urbana, já fazendo parte da Constituição Federal, não foi regulamentada de imediato; as organizações sociais precisariam centrar suas lutas em prol de sua efetivação. Mais ainda, era necessário que estes movimentos ampliassem as demandas em torno da questão habitacional. Assim, foi sendo construída, em 1990, a proposta de um sistema nacional de política habitacional e urbana. Dentro deste projeto destacam-se os seguintes tópicos: a criação de um fundo nacional de moradia popular e a participação da população em todas as etapas do processo (CYMBALISTA, 2005; SILVA, 2010). Paralelamente aos esforços da sociedade civil organizada, o governo federal seguia atuando modestamente na busca por minimizar a demanda habitacional. No governo de Fernando Collor de Melo (1990–1992), destacamos dentre seus projetos o Plano de Ação Imediata para a Habitação (PAIH), que tinha como meta o financiamento de 245 mil habitações em apenas 180 dias, objetivo este que não foi alcançado (MOTTA, 2013). Em seguida, temos o governo de Itamar Franco (1992–1994) que, dentre alguns projetos problemáticos em relação à burocracia, alcançou dois pontos positivos em sua gestão: incentivo à criação de fundos para habitação e formação de conselhos; e a constituição do Fórum Nacional de Habitação, com participação da sociedade civil, setores do Estado e a iniciativa privada (empresários da construção civil) (MOTTA, 2013).

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No governo de Fernando Henrique Cardoso (1995–2002) entra em cena outro elemento com grandes repercussões nas políticas sociais. O governo sente a necessidade de “liberar a economia para uma nova etapa de crescimento” (SILVA, 2008) e, assim, passa a reformar o Estado. Estas modificações estruturais vêm sendo discutidas desde a década de 1980, porém, apenas no governo de FHC esta política reformista foi efetivada, sendo criado até mesmo um Ministério específico para essas mudanças, o Ministério da Administração e Reforma do Estado – MARE. A intenção era liberar o mercado para que o Brasil passasse por um novo processo de crescimento, que podemos chamar de modelo neoliberal. É destaque nessa gestão: as privatizações, a terceirização e focalização das políticas sociais e o racionamento dos gastos (SILVA, 2008). Com a reforma estatal na pauta principal deste governo, a política habitacional é minimizada e transformada em uma questão financeira e de mercado. As câmaras sociais foram extintas, a participação popular foi posta em cheque e não foram apresentadas novas formas de participação (MARICATO, 1998). No ano de 2002, com a chegada de Lula na presidência da república, a classe trabalhadora organizada se sentiu representada e depositou em sua gestão grandes esperanças de mudanças, até mesmo estruturais. No que tange às questões habitacionais, a era Lula trouxe alguns avanços e precisa ser assinalado que se teve novamente uma abertura à participação popular nos espaços de gestão. Podemos destacar, então, a criação do Ministério das Cidades, cuja composição se deu “por pessoas comprometidas com o ideário da Reforma Urbana”, a construção do Conselho Nacional das Cidades “como espaço de participação e controle social da política urbana”, e a constituição da Conferência Nacional das Cidades “com a mobilização de 3.457 municípios” (BONDUKI, 2008, p. 96 e 97).

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No entanto, sua principal iniciativa foi o Programa Minha Casa Minha Vida - PMCMV. Como exposto em seu endereço eletrônico, a Caixa Econômica Federal operacionaliza o trabalho em cima de produção e venda das habitações, sendo, porém, um programa do Governo Federal em parceria com Estados e Municípios, gerido pelo Ministério das Cidades. O PMCMV teve como princípio reagir contra a crise econômica de 2009, atendendo também a demandas de empresários da construção civil, já que a iniciativa privada é posta como principal produtora das habitações. A maior parte dos recursos foi destinada à produção de casas para famílias com renda de três a dez salários mínimos, todavia, a maior demanda por habitações era encontrada em famílias com renda de zero a três salários. Novamente constatamos a contínua transformação da habitação em mercadoria, em que a obrigação do Estado e o direito das pessoas é visto como uma questão mercadológica (MOTTA, 2013). A trajetória das políticas habitacionais, seja em momentos de forte pressão conservadora, como na ditadura militar, ou em momentos conjunturais mais propícios, como no governo Lula, é um fator importantíssimo na história da luta da classe trabalhadora. As questões que foram postas até o momento são questões classistas. Não há outra maneira de tratálas se não como implicações de uma sociedade capitalista. Logo, é importante reconhecer que em nossa sociedade [...] a crise de moradia não é um acaso, é uma instituição necessária: ela não pode ser eliminada, bem como suas repercussões sobre a saúde, etc. A não ser que a ordem social por inteiro, de onde ela decorre, transforme-se completamente” (ENGELS apud SILVA, 1987, p.15).

Apesar de alguns avanços no trato da questão da moradia, o que podemos destacar é que ainda há grandes esforços por parte do movimento de Reforma Urbana por uma gestão democrática, 22


por sua efetivação e por ampliação das políticas públicas. Entretanto, todos os esforços da sociedade civil não substituem a responsabilidade do Estado em gerir as políticas sociais. É competência do poder público efetivá-las e tarefa dos movimentos sociais reivindicá-las. Os movimentos de reforma urbana não podem substituir o Estado no sentido de execução e gerência das políticas. O ponto fundamental é que vivemos em um modelo estatal liberal, em que os interesses de mercado sempre serão maiores que os esforços em proporcionar políticas públicas de qualidade. E, por mais que tenha havido um avanço no sentido de legislação e de gestão democrática, o Estado sempre encontra formas de priorizar o capital em detrimento dos direitos sociais.

A participação social e sua (não) efetivação no Município de Campina Grande A partir da redemocratização do Brasil, foram desenvolvidas novas estratégias na busca por políticas públicas que viabilizassem o enfrentamento das desigualdades sociais na cidade. Assim, devido à luta dos movimentos por reforma urbana, podemos contar hoje em dia, além da Constituição Federal, com o Ministério das Cidades, o Estatuto da Cidade, e com um Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social - SNHIS. Mecanismos estes que foram pensados coletivamente e que abarcam normas e planos que devem ser constituídos também coletivamente nas demais esferas governamentais (Estados e Municípios), seguindo o princípio da descentralização. Destacamos também o Plano Diretor, pois é um instrumento importantíssimo em âmbito municipal, de modo a organizar as políticas de funcionamento da cidade, tais como: saneamento ambiental, transporte, desenvolvimento econômico-social, cultural e de habitação e acesso à terra urbanizada. Este plano é uma ferramenta de planejamento e gestão das cidades. 23


Em Campina Grande, o Plano Diretor foi implementado em 1996 e revisado no ano de 2006. Neste, alguns princípios são postos como fundamentais para a gestão urbana do Município: a função social da cidade, a função social da propriedade urbana e rural, a sustentabilidade e a gestão democrática. Este último princípio é fundamental para a construção do direito à cidade em todas as suas nuances. Neste município podemos contar em seu Plano Diretor com diretrizes para várias demandas urbanas, inclusive para a política habitacional. No plano estão previstos objetivos e prioridades para o tratamento da questão da moradia, que é a universalização do acesso à habitação com condições dignas e com prioridade para os segmentos sociais vulneráveis. Todavia, em uma pesquisa realizada sobre os programas da política habitacional de Campina Grande (PB) a partir de seu Plano Diretor, Alves (2007, p. 54) constata: […] houve deficiência do município de Campina Grande em relação à estruturação de uma efetiva política habitacional e na destinação de investimentos nesta área, o que de uma forma ou de outra acabou prejudicando o desenvolvimento da cidade, além de agravar ainda mais o seu déficit habitacional, vista como expressão da questão social, o que não foge à realidade nacional.

Além dessas falhas, podemos afirmar que não existe uma gestão participativa da política habitacional no município, inclusive percebemos que o poder público, através dos seus representantes, dificulta o acesso às informações dos projetos em andamento. As informações repassadas geralmente são desencontradas. De fato, a organização da política municipal de habitação não nos parece muito clara, não existe uma forma objetiva de acompanhar as ações da Secretaria de Planejamento, 24


competente para gerir esta política. Enquanto uma média de 16 mil famílias está carente de domicílios e outros milhares de infraestrutura básica, é perceptível a inoperância do governo local. O censo realizado pelo IBGE no ano de 2010 demonstra o alto índice de pessoas sem renda alguma ou com apenas um salário mínimo. Nestes dados, as demandas habitacionais são alarmantes: 12.580 domicílios ainda não possuíam esgotamento sanitário adequado e outras deficiências em infraestrutura, que são predominantes, evidentemente, na classe trabalhadora com baixa renda. O sistema não inverteu sua lógica de exploração. Continuamos convivendo nessa localidade com as mesmas problemáticas vivenciadas três décadas passadas. Se no início da década de 1980 se desenvolveram neste município 17 áreas de favelas, hoje em dia os assentamentos precários são em número muito maior que isso. A cidade ainda não está sendo pensada para se tornar mais humana. Ainda há muito o que fazer pela questão da moradia neste município. Não podemos naturalizar o fato de encontrarmos, dia após dia, seres humanos sobrevivendo nas ruas e tendo como abrigo viadutos, fachadas de casas e comércios, praças e outros, além de ver no noticiário o grande número de famílias que vivem em locais de risco, sendo atingidas por enchentes, por exemplo. Todas as conquistas dos movimentos de Reforma Urbana e pró-moradia não podem ser ignoradas, ao contrário, devese lutar pela efetiva participação da sociedade civil na gestão das políticas sociais. Mais ainda, acreditamos que se deve explorar ao máximo o princípio da descentralização, para se construir uma política urbana e habitacional que realmente reflita as demandas e anseios da localidade. Todas as conquistas históricas do Movimento Nacional de Reforma Urbana são de grande valia para a população de modo geral. Mas também devemos refletir sobre qual a contribuição que temos dado em 25


âmbito local no sentido de modificar a nossa estrutura urbana. Não é interessante que os Municípios apenas sigam as exigências federais com o único intuito de receber os repasses do governo federal para obras locais. O que necessitamos é que se tenha, nos Municípios, uma discussão séria com a sociedade civil sobre a cidade que queremos construir. As leis federais relativas à habitação são diretrizes nacionais, mas não impedem que estabeleçamos nossas demandas e prioridades locais. Utilizando o pensamento do filósofo David Harvey (2012), o direito à cidade está em construção.

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REFERÊNCIAS ALVES, Juliana Samyles de Medeiros. Uma análise dos programas da política habitacional de Campina Grande – PB a partir de seu plano diretor. Trabalho de Conclusão do Curso de Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba. Campina Grande, 2007. BONDUKI, Nabil. Política habitacional e inclusão social no Brasil: revisão histórica e novas perspectivas no governo Lula. Revista eletrônica de arquitetura e urbanismo, N 01. Universidade de São Judas Tadeu. 2008. BUONFIGLIO, Leda Velloso. O ‘direito à cidade’ apropriado: da utopia dos sem-teto ao modelo de gestão do Estado. Artigo apresentado no “II Seminário Nacional Movimentos Sociais, Participação e Democracia” – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007. CYMBALISTA, Renato. Refundar o não fundado: desafios da gestão democrática das políticas urbanas e habitacional no Brasil. Disponível em: www.fag.edu.br/.../política%20urbana%20 e%20habitacional.doc. Acessado em: 14 fev. 2013, 12:26. DIAS, Maria Esther B. A dialética do cotidiano. São Paulo: Editora Cortez, 1982. FERREIRA, Regina Fátima Cordeiro Fonseca. Movimento de moradia, autogestão e política habitacional no Brasil: do acesso à moradia ao direito à cidade. Artigo apresentado no II Fórum de Sociologia “Justiça Social e democratização” – Comitê de Pesquisa sobre Habitação e Meio Ambiente Construído da International Sociological Association (ISA), Buenos Aires, 2012. GODINHO, Marta Therezinha. Política habitacional. Revista Serviço Social e Sociedade, Ano I, Nº 2. Editora Cortez, março de 1980. 27


HARVEY, David. Rebel cities, fron the right to the city to the urban revolution. New York: Verso Books, 2012. IASE, Mauro Luiz. Ensaios sobre a consciência e a emancipação. 1ª edição. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2007. LEFEBVRE, Henri. O edição. São Paulo:

direito Centauro

à

cidade. 5ª Editora, 2008.

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SILVA, Pedro Henrique Carinhato e. As políticas sociais no contexto da reforma do Estado no Brasil. Artigo apresentado no III Simpósio Internacional Lutas Sociais na América Latina. Grupo de estudos de política da América Latina da Universidade Estadual de Londrina. 2008. SILVA, Iranise Alves da. A crise da moradia. Rio de Janeiro: Editora Agir, 1987. Vídeos: Vídeos: KOHARA, Luiz. A questão da moradia em São Paulo. (VideoPalestra). Produção Canal Jamac, nov. 2011. Disponível em: http://www.youtube.com/. Acesso em: 22 set. 2012, 11:36 h. Sites consultados: www.ibge.gov.br (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) www.caixa.gov.br (Caixa Econômica Federal)

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CAPÍTULO 02 Naquela roça grande não tem chuva é o suor do meu rosto que rega as plantações; Naquela roça grande tem café maduro e aquele vermelho-cereja são gotas do meu sangue feitas seiva. O café vai ser torrado, pisado, torturado, vai ficar negro, negro da cor do contratado Negro da cor do contratado! Perguntem às aves que cantam, aos regatos de alegre serpentear e ao vento forte do sertão: Quem se levanta cedo? quem vai à tonga? Quem traz pela estrada longa a tipoia ou o cacho de dendém? Quem capina e em paga recebe desdém fuba podre, peixe podre, panos ruins, cinquenta angolares “porrada de refilares”? António Jacinto 30


EDUCAÇÃO DO CAMPO NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO POPULAR3 O presente estudo expõe uma breve reflexão acerca da relação entre a Educação do Campo e a Educação Popular, apresentando historicamente a Educação Popular e sua concepção pedagógica. Para que possamos compreender os laços desta relação, faz-se necessário, a princípio, identificar o surgimento da Educação do Campo, suas mudanças ao longo dos anos e suas ligações com a Educação Popular. A Educação do Campo, numa proposta humanizadora, está ligada diretamente às propostas da Educação Popular por meio do processo de valorização dos saberes dos camponeses e de sua cultura. Esse processo de valorização faz parte dos movimentos sociais que, através de suas lutas, buscam condições igualitárias de direitos. Destacamos ainda as marcas das lutas dos sujeitos envolvidos na Educação do Campo, que objetivam o reconhecimento e a criação de escolas voltadas para sua realidade, valorizando seus modos de vida e sua cultura. As políticas públicas para esta população, que está na margem social, são marcadas historicamente pela negação de seus direitos e exclusão de sua cultura. Mesmo com as recentes políticas públicas que objetivam a garantia destes direitos de igualdade e valorização, sabemos que, na prática, ainda são negadas tais condições de igualdade. Ana Thamiris Batista de Farias, pedagoga, psicopedagoga, especialista em educação especial, integrante do GESPAUF (Grupo de Estudos e Pesquisas Paulo Freire), possui experiência na educação básica e de jovens e adultos. Ministra cursos e oficinas para formação de professores e atualmente é professora da educação básica do campo e coordenadora de turmas de jovens e adultos pelo programa Brasil alfabetizado. 3

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a educação do campo e a educação popular A Educação do Campo, anteriormente denominada educação rural, era vista como uma formação mercadológica que submetia o homem rural ao capital. Até os dias atuais, convivemos com esta realidade, que oprime os valores e saberes do homem do campo em favorecimento do urbano, que deseja imprimir seus conhecimentos científicos e valores. Na busca por uma pedagogia que compreenda o sujeito do campo com um ser de cultura própria, ao longo dos anos, inúmeras lutas e movimentos sociais foram fortalecidos na perspectiva de mudança, com vistas à superação da educação rural até a concepção de educação do campo. A mudança deste conceito implica muito mais que uma simples nomenclatura: carrega consigo a luta pela igualdade e direitos sociais que buscam afrontar a realidade e atender as necessidades das populações do campo. Sendo assim, essas ações pressionam lideranças governamentais para a criação e organização de políticas públicas para os trabalhadores e trabalhadoras do campo. A educação rural, como era chamada anteriormente, possuía correntes mais conservadoras, com visão exterior que ignorava a própria realidade que se propunha trabalhar. Na Educação do Campo, ocorre o pensamento em sua gente, em seu modo de vida, de trabalho e sua cultura. Para que possamos compreender toda esta luta do homem do campo, é preciso voltar historicamente no tempo, aos primeiros movimentos de educação que englobavam o homem do campo. Na década de 1940, iniciavam-se as primeiras campanhas de alfabetização no contexto urbano e rural do Brasil, fato este devido ao desenvolvimento nacional aliado à política populista, que visava o voto como direito. No entanto, este estava ligado à alfabetização. 32


Na década de 1960, através do Decreto n. 50.370, criou-se o Movimento de Educação de Base (MEB), de responsabilidade da Igreja Católica, dirigido pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Segundo Saviani (2013, p. 317), Logo se distanciaram dos objetivos catequéticos, imprimindo ao movimento um caráter de conscientização e politização do povo. É essa característica que irá marcar os vários movimentos surgidos no início da década de 1960 para os quais o conceito de “educação popular” assumirá uma nova conotação, diversa daquela que prevalecera nas décadas precedentes.

O termo “educação popular” esteve ligado à implementação das escolas primárias e coincidia com o conceito de instrução pública, que mobilizou tanto a criação e ampliação das escolas primárias como as campanhas de alfabetização de adultos. Com o tempo, essa mobilização tomou outras dimensões, surgindo a preocupação com a participação política dos sujeitos diante da realidade brasileira, passando a assumir o sentido de uma educação do povo, pelo povo e para o povo. Já em fins do século XX, uma das principais bandeiras do “Movimento por uma Educação do Campo” originou-se dentro do MST (Movimento Sem Terra). Essa luta por uma educação do e no campo, e não apenas para o campo, teve abrangência nacional, originando o que Munarim (2016, p. 59) nomeou de Movimento Nacional de Educação do Campo. Para o autor, A experiência acumulada pelo Movimento Sem Terra (MST) com as escolas de assentamentos e acampamentos, bem como a própria existência do MST como movimento pela terra e por direitos correlatos, pode ser entendida

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como um processo histórico mais amplo de onde deriva o nascente Movimento de Educação do Campo.

A mobilização pelo direito à educação, nos movimentos sociais sobre Educação do Campo, elevou-se no ano de 1998 a partir do I ENERA (Encontro Nacional de Educação da Reforma Agrária), tendo o Governo Federal instituído o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA). Na ocasião do ENERA, os principais estudiosos questionavam a utilização do termo “meio rural” e explicavam que este não era mais usual, objetivando a reflexão sobre o sentido do atual trabalho do camponês, de suas lutas e modos de vida. Conforme explicam os principais intelectuais do movimento, desde o ENERA, Utilizar-se-á a expressão campo, e não a mais usual, meio rural, com o objetivo de incluir no processo da conferência uma reflexão sobre o sentido atual do trabalho camponês e das lutas sociais e culturais dos grupos que hoje tentam garantir a sobrevivência desse trabalho. Mas, quando se discutir a educação do campo, se estará tratando da educação que se volta ao conjunto dos trabalhadores e das trabalhadoras do campo, sejam os camponeses, incluindo os quilombolas, sejam as nações indígenas, sejam os diversos tipos de assalariados vinculados à vida e ao trabalho no meio rural (KOLLING; NERY; MOLINA, 1999, p. 26).

Dentro desse contexto, a população do campo estava classificada como aquela que da terra tirava diretamente sua sobrevivência, englobando diversos povos e culturas que buscavam o reconhecimento de suas origens e a valorização de sua cultura dentro do processo educativo, e não somente a impressão de conhecimentos que não condiziam com suas realidades. 34


A Portaria n. 86, de 1º de fevereiro de 2013, que instituiu o “Programa Nacional de Educação do Campo”, deliberou as ações para a implantação da política de Educação do Campo, já antevista no Decreto n. 7.352, de 4 de novembro de 2010. Este decreto presidencial previa que a Educação do Campo seria destinada à ampliação da oferta de Educação Básica e Superior para as populações do campo, bem como sua qualificação constante, devendo ser desenvolvida em regime de colaboração com os estados, municípios e o Distrito Federal. Segundo o mesmo decreto, são consideradas populações do campo: [...] os agricultores familiares, os extrativistas, os pescadores artesanais, os ribeirinhos, os assentados e acampados da reforma agrária, os trabalhadores assalariados rurais, os quilombolas, os caiçaras, os povos da floresta, os caboclos e outros que produzam suas condições materiais de existência a partir do trabalho no meio rural (BRASIL, 2010, p. 5).

Conforme exposto, as populações do campo e suas conquistas foram marcadas pelas lutas através dos movimentos sociais que buscavam e buscam, até os dias atuais, a igualdade de direitos, o respeito a suas culturas e modos de vida. Assim, esses movimentos e a luta por uma pedagogia de valorização de saberes e conhecimentos populares fazem parte de uma educação que busca em sua proposta uma educação do povo e voltada para ele. Esta concepção de Educação Popular faz ligação direta com as propostas do educador brasileiro Paulo Freire, que trouxe relevantes reflexões acerca dos sujeitos postos à beira da sociedade do capital. Por compreender as classes populares como detentoras de saberes não valorizados, tradicionalmente excluídos do espaço escolar, sabemos da importância de se construir uma educação a partir do conhecimento do povo, para o povo e com o povo, despertando a criticidade da realidade na ótica do oprimido. 35


Para Freire (2014, p. 39), [...] o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os “argumentos de autoridade” já não valem. Em que, para ser-se, funcionalmente, autoridade, se necessita de estar sendo com as liberdades e não contra elas. Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo. Mediatizados pelos objetos cognoscíveis que, na prática “bancária”, são possuídos pelo educador que os descreve ou os deposita nos educandos passivos.

Segundo o próprio pensamento Freireano, o despertar do oprimido se dá a partir da tomada de consciência da realidade e, consequentemente, sua mudança de atitude sobre ela, na busca pela transformação social de um povo excluído da tomada de decisões. Com essa modificação de atitude por parte do oprimido, procura-se valorizar seus próprios saberes e sua cultura. Segundo Gadotti (2012, p. 14), Um dos princípios originários da educação popular tem sido a criação de uma nova epistemologia, baseada no profundo respeito pelo senso comum que trazem os setores populares em sua prática cotidiana, problematizando-o, tratando de descobrir a teoria presente na prática popular, teoria ainda não conhecida pelo povo, problematizando-a também, incorporandolhe um raciocínio mais rigoroso, científico e unitário.

Através da educação, tida como ferramenta de conscientização e, consequentemente, libertação de um povo, o oprimido passa a encontrar uma ressignificação para sua vida e a buscar, por meio de seus movimentos e 36


novas

possibilidades,

tornar-se

protagonista

da

História.

Em acordo com as colocações acima, Batista (2006, p. 03) afirma que A Educação Popular (EP), especialmente aquela realizada no âmbito dos movimentos sociais populares, incorpora princípios filosóficos, políticos, sociológicos, culturais, entre os quais destacamos: a origem e finalidade nos interesses das classes populares, dos setores oprimidos organizados nos movimentos sociais; o respeito às suas culturas; os conhecimentos voltados para compreensão crítica da realidade social, econômica e política; o respeito às visões de mundo que são resultantes das experiências vividas por esses segmentos como ponto de partida para uma reflexão crítica da realidade, que se dá através do diálogo.

Historicamente, os movimentos sociais populares que englobam o campo têm-se constituído como espaços cada vez mais distintos de luta. A luta pela terra, por exemplo, tem englobado em suas reivindicações o direito à educação e tantos outros direitos essenciais aos seres humanos na busca pelo processo de igualdade. Desse modo, a luta dos que vivem do campo não é somente pela ampliação e garantia de seus direitos fundamentais, mas para que também sejam valorizados culturalmente, assumindo, assim, seu atrelo cogente com a Educação Popular. No ano de 2002, foram instituídas as Diretrizes Operacionais da Educação Básica nas Escolas do Campo após a aprovação, pelo Conselho Nacional de Educação, da Resolução n. 1, de 3 de abril de 2002, que representou uma importante conquista política para o Movimento Nacional de Educação do Campo. Essa resolução apresenta, com clareza, a visão de escola do campo defendida pelos sujeitos sociais que pertencem a ela. Em seu artigo 2º, parágrafo único, o documento descreve que 37


[...] a identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às questões inerentes à sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva no país (BRASIL, 2002, art. 2).

Em consonância com estas definições contidas nas Diretrizes Operacionais para Educação do Campo, a LDBEN 9.394/96 aponta, no artigo 28, que Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente: I - conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural; II - organização escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas; III - adequação à natureza do trabalho na zona rural. Parágrafo único. O fechamento de escolas do campo, indígenas e quilombolas será precedido de manifestação do órgão normativo do respectivo sistema de ensino, que considerará a justificativa apresentada pela Secretaria de Educação, a análise do diagnóstico do impacto da ação e a manifestação da comunidade escolar (BRASIL, 1996, art. 28).

A definição de Educação do Campo é entendida pelos movimentos sociais como uma educação própria do campo, que respeita as singularidades produzidas pelo povo a quem se destina; o direito que o povo tem de ser educado no ambiente onde vive. A Resolução n. 2, de 28 de abril de 2008, que estabelece 38


diretrizes complementares, normas e princípios para o desenvolvimento de políticas públicas para a Educação Básica do Campo, também especifica a quem se destina a educação do campo. Compreendemos, por meio deste documento, que a Educação Básica também é um direito dos assentados e acampados da Reforma Agrária. No artigo terceiro, encontramos a determinação que a “Educação Infantil e os anos iniciais do Ensino Fundamental serão sempre oferecidos nas próprias comunidades rurais, evitando-se os processos de nucleação de escolas e de deslocamento das crianças” (BRASIL, 2008). Desse modo, esse documento condiz com os objetivos das lutas dos movimentos sociais do campo, que almejam escolas do e no campo, e que estes não sejam deslocados para outras escolas, de modo a serem excluídos dentro do próprio sistema escolar por ensinamentos não condizentes com a sua cultura. Assim, a Educação do Campo está atrelada à Educação Popular, já que ambas objetivam o mesmo propósito de uma educação voltada para a realidade e que respeita os saberes e culturas de um povo.

considerações finais Conforme podemos analisar, ao longo dos anos, diversos paradigmas em relação à Educação do Campo foram sendo construídos, na perspectiva de tornar esta educação cada vez mais justa e igualitária, numa proposta humanizadora do processo de ensino-aprendizagem. Nesse sentido, humanização está vinculada à superação da opressão, que discrimina e exclui os sujeitos e suas condições culturais e individuais. A Educação do Campo, através de seu processo pedagógico, aponta como tornar os sujeitos envolvidos protagonistas de uma nova história, da sua própria história, por meio da valorização da sua cultura e dos seus modos de vida, na 39


busca incessante por um processo educativo justo e em condições igualitárias de diretos. Nessa perspectiva, a Educação do Campo não se dá apenas pela inclusão de escolas no campo, mas por uma pedagogia que valorize os sujeitos envolvidos em sua totalidade, respeitando sua cultura, condições de vida e modos de atuação. Diante desta proposta, podemos destacar a Educação do Campo como parte do processo da Educação Popular, uma vez que esta é vista como processo de transformação através da conscientização e do desejo de mudança das condições que oprimem os envolvidos, tornando-os construtores de uma sociedade justa e igualitária. Destacamos ainda que todo este processo de humanização e tomada de consciência só é possível se buscarmos, através do processo educativo, despertar nos sujeitos a conscientização e, consequentemente, o desejo de atuar ativamente sobre a realidade que os cerca. A Educação do Campo é parte da Educação Popular, que vem ao longo dos anos se reconstruindo a fim de que os camponeses, que retiram da terra seu sustento, sejam respeitados e valorizados em sua totalidade.

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Por fim, para que de fato as políticas públicas para a Educação do Campo sejam efetivadas, inúmeros obstáculos precisam ser urgentemente encarados e resolvidos, tais como: a formação dos educadores que atuam na Educação do Campo, que nem sempre é condizente com a realidade dos que ali buscam a escola, comprometendo, desse modo, sua prática pedagógica; a distância das escolas em relação às casas dos educandos, e suas dificuldades de acessibilidade; a falta dos recursos necessários para a Educação no Campo, onde muitas escolas funcionam em locais improvisados com precariedade.


REFERÊNCIAS BATISTA, M. do S. X. Os movimentos sociais cultivando uma educação popular do campo. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 29. Caxambu, 2006. BRASIL, Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Lei nº 9.394/96, de 20 de dezembro de 1996. _______. CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Diretrizes complementares, normas e princípios para o desenvolvimento de políticas públicas de atendimento da Educação Básica do Campo. Resolução Complementar CNE/CEB Nº 2, de 2008. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/resolucao_2.pdf> Acesso em: 28.11.16 ________. CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo. Resolução CNE/CEB Nº 1, de 3 abr. 2002. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/CEB012002.pdf> Acesso em: 28.11.16 ________Decreto nº 7.352 de 4 de novembro de 2010. Dispõe sobre a política de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária - PRONERA. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/ decreto/d7352.htm Acesso em: 26.11.16 ________ Portaria nº 86 de 1º de fevereiro de 2013. Institui o Programa Nacional de Educação do Campo - PRONACAMPO, e define suas diretrizes gerais. Disponível em: < http://pronacampo. mec.gov.br/arquivos/port_86_01022013.pdf >. Acesso em: 26.11.16 41


FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2014.

GADOTTI, M. Educação Popular, Educação Social, Educação Comunitária: conceitos e práticas diversas, cimentadas por uma causa comum, p. 10-32. In: Revista Diálogos: pesquisa em extensão universitária. IV Congresso Internacional de Pedagogia Social: domínio epistemológico. Brasília, v.18, n.1, dez, 2012 KOLLING, E. J; NÉRY, I.; MOLINA, M. C. Por uma Educação Básica do Campo. Vol. 1. Fundação Universidade de Brasília: Gráfica e Editora Peres Ltda. 1999. MUNARIM, A. Trajetória do movimento nacional de educação do campo no Brasil. In: MEURER, A. C. (Org.) Dossiê: Educação no Campo. Revista do Centro de Educação. Santa Maria, UFSM, 2008. Vol. 33, n°1. Disponível em: http://coralx.ufsm.br/revce/ Acesso em: 22.11.2016. SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2013.

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CAPÍTULO 03 Memória Amar o perdido deixa confundido este coração. Nada pode o olvido contra o sem sentido apelo do Não. As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as coisas findas muito mais que lindas, essas ficarão.

Carlos Drummond de Andrade

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SURGIMENTO DO GINÁSIO AGRÍCOLA ASSIS CHATEAUBRIAND DE CAMPINA GRANDE4 O texto tem como escopo investigar fragmentos da cultura escolar do Ginásio Agrícola Assis Chateaubriand - GAAC (1962 a 1971), buscando compreender como se desenvolveram práticas educativas e culturais que deram forma à história da escola. Pretende analisar em quais condições de possibilidades esta instituição emergiu no cenário campinense, refletindo sobre os processos que tornaram possível sua existência. Utilizamos a pesquisa empírica como método de constituição das fontes documentais, inventariando, reunindo e ordenando as fontes impressas e também a metodologia da história oral como técnica de constituição de fontes e ferramenta de pesquisa. Desse modo, abordamos a(s) memória(s) da escola pelos vieses dos vestígios empíricos e pelas marcas do tempo impressas nas memórias individuais/coletivas dos entrevistados. Realizamos uma incursão no cenário de emergência da escola, discorrendo sobre as condições contextuais de sua criação no município de Campina Grande e de sua posterior transferência para o município de Lagoa Seca, analisando as condições de existência da escola quando de sua criação até sua transferência para esta cidade em 1967. O trabalho não visa a questionar como o GAAC emerge no cenário histórico campinense de maneira fundacional5 Rafael dos Santos Campos, Graduado em História pela UEPB e mestre em História pela UFCG. 5 Veiga-Neto (2009) aponta que o caráter não fundacional de um texto consiste na assertiva de que um objeto de pesquisa só existe enquanto tal diante do tipo de abordagem que se faça dele, a partir de métodos que permitam sua exploração semântica. Nesse panorama, qualquer método utilizado é uma escolha do pesquisador e, portanto, arbitrária. A partir do método escolhido e da teoria utilizada para instrumentalizar o objeto é que haverá certos resultados. Conclui-se que não pode haver texto historiográfico definitivo sobre qualquer objeto pesquisado, pois, para cada teoria, metodologia e problematização, haverá resultados diferentes. 4

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A partir disso, o texto foi organizado buscando responder a algumas questões norteadoras: quais as condições de possibilidade para o surgimento da escola? A que público ela estava destinada? De quem foi a ideia de criar uma escola técnica agrícola em Campina Grande? Como era a cidade de Lagoa Seca do período da criação à transferência da escola? Para que finalidade ou para quem serviria a criação de uma escola técnica agrícola em Campina Grande? Ou, como coloca Saviani (2007, p. 25): “a quem se destina a instituição que estou me propondo a reconstruir e que resultados ela pretende atingir com a ação empreendida?”. antecedentes históricos da criação do ginásio agrícola assis chateaubriand de campina grande Nossa investigação narrativa ou nossa “viagem ao outro” inicia-se partindo de reflexões sobre os antecedentes históricos e o contexto geral no qual a escola se insere. Qualquer instituição não está isenta dos ruídos do mundo exterior, ou seja, do contexto que a circunda. Assim, nossa análise da trajetória escolar caminha conforme elucidado por Miguel (2007, p. 34): “o historiador não pode contentar-se com uma visão fragmentária e superficial, ele deve procurar um saber mais longo, que vá além daquele do período ou do fato estudado; ou inserido num contexto mais amplo”. Nesse sentido, na avidez de compreender o perfil e a historicidade do GAAC em sua emergência, não se pode perder de vista quais instâncias e aspectos do próprio contexto e especificidades locais terminam por serem revelados em meio às investigações. A pesquisa é sobre uma instituição escolar, mas este fato por si só não afunila, de modo excludente, particularidades e especificidades sociais. É necessário ter esta correlação sempre presente do âmbito institucional, porquanto a escola é envolta pela dinâmica do lugar. Dito isso, apontamos, em nível de Brasil, que, em julho de 1942, realizou-se em Goiás o VIII Congresso de Educação, que reuniu 45


vários educadores brasileiros. Em discurso oficial, várias autoridades expressaram seu anseio de criar no país escolas técnicas para o serviço rural profissional, a fim de servir ao “engrandecimento” das atividades ligadas ao campo, à lavoura e à pecuária, preparando trabalhadores para a “benesse” do capital nacional: [...] Nós do Congresso de Educação viemos representando um anseio e uma homenagem [...] O anseio é criar [...] no Brasil uma escola do trabalho e de atividade, rural ou profissional que não seja apenas um aparelho de alfabetização das massas. Uma escola que desperte a forme na criança do Brasil, uma consciência cívica e trabalhista e que seja o alicerce de nossa produção; [...] capaz de satisfazer nossas necessidades e de outros povos; que faça desaparecer o ferrete da humilhação e do desprestígio impresso no trabalho rural ou artesanal desde o tempo da escravidão; que extinga os resquícios doentios de uma aristocracia falida e inoperante [...]; que nobilize e engrandeça as atividades do campo e da lavoura, da pecuária e da oficina, que enfim faça do trabalho organizado e produtivo o código oficial do Estado Novo (O POPULAR, 23 jun. 1942, p. 3 apud ISSA, 2014, p. 44).

É possível perceber o interesse geral em se criar escolas agrícolas em todo o território nacional para o “aprimoramento” da mão de obra. Esse tipo de instituição era visto como sendo capaz de trazer o melhor do domínio técnico, ou seja, os meios mais “modernos” para a melhoria da produção agropecuária a partir de uma “agricultura racional”, com vistas a proporcionar maiores produções nesses setores para competição no mercado capitalista internacional. A função da educação para esse modelo de educação agrícola seria “modernizar” as práticas de trabalho, a agricultura e a pecuária brasileiras (ISSA, 2014). De acordo com esta autora: 46


[…] na medida em que a industrialização avançava, tornava-se evidente a necessidade de melhorias na área rural. Equidistante ao desenvolvimento industrial, diferentes medidas foram adotadas pelos estados brasileiros, a fim de desenvolverem o setor agrícola e pecuário, dentre as quais a criação de órgãos governamentais para assistir aos produtores rurais. Ao lado dessas estratégias para diminuir o distanciamento entre o setor primário e o industrial, surgiram projetos de criação das escolas profissionalizantes voltadas para área agrícola. Estas atuaram diretamente no processo de recuperação do setor agrícola, instruindo o trabalhador rural e incutindo neles a importância de seu papel na sociedade (ISSA, 2014, p. 44).

Para a autora, a necessidade de melhorias na área agrícola não estava distante da questão política nacional, tendo em vista o interesse da gestão política do governo de Getúlio Vargas e o desenvolvimento econômico no setor primário. Nesse processo, interessava a capacitação em níveis cada vez mais elevados, indicando, desse modo, a que tipo de política educacional serviria, ou seja, erigia-se uma educação dirigida pelo ensino técnico e que seria também “moralizante”, aos moldes do entendimento e dos interesses do governo. Ao longo desse mesmo período, foi-se constituindo uma rede de escolas agrícolas – escolas agrotécnicas federais, com base no modelo escola-fazenda e vinculadas ao Ministério da Agricultura. Em 1967, essas escolas-fazendas passam para o então Ministério da Educação e Cultura tornando-se, a partir desse acontecimento, escolas agrícolas. Engajadas na política de “capacitação” de mão de obra através do ensino técnico, aconteceram no Brasil reformas educacionais que previram mudanças significantes na história da educação nacional: 47


[…] no período do Estado Novo e durante o início do Governo provisório, o país vivenciava o crescimento interno da indústria e precisava de mão de obra qualificada, porém, devido à economia de guerra, este enfrentava dificuldade de importar técnicos para o trabalho. Nesse contexto, acontece outra reforma da educação, conhecida como a Reforma Capanema ou Leis Orgânicas do Ensino. Essa reforma foi muito significante na história do ensino profissional; pela primeira vez, devido a demanda do desenvolvimento nacional, o governo se engajou na questão da profissionalização em nível técnico (GOMES apud ISSA, 2014, p. 67).

Assim, é possível traçar pontes de diálogo, relacionando o interesse em se criar, anos mais tarde, uma escola agrícola em Campina Grande por esta ser considerada a quarta maior cidade do Nordeste e a sétima maior cidade do Brasil em termos econômicos. Como um centro urbano em expansão, Campina Grande necessitava aumentar, segundo Luiz (2010), a produção de alimentos para atender a uma população em constante crescimento. Investir em uma escola agrícola seria um caminho que proporcionaria o aprimoramento das técnicas agrícolas para a produção de alimentos. De acordo com o autor: […] a cidade [de Campina Grande] necessitava urgentemente de uma série de conhecimentos que ajudasse tanto a manter como a ampliar o seu progresso, visando a conservar, assim, sua influência regional e evitar um possível “estrangulamento” econômico por falta de recursos humanos capacitados (LUIZ, 2010, p. 21).

O cenário econômico da cidade que era conhecida como a “capital do Nordeste”, um município em constante expansão, atravessado pelo comércio intenso com municípios circunvizinhos, exigia maior produção de alimentos no setor agrícola. Segundo esse autor, o “progresso” da cidade necessitava também da capacitação humana no que diz respeito à mão de obra para as diversas modalidades de trabalho emergente. 48


Desse modo, notamos que a “forma escolar” (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001) do GAAC em sua emergência, nos anos 1960, é regulada por ideais sociais e pela continuidade de interesses advindos desde os tempos da criação das escolas agrícolas no Brasil e também pelo interesse das elites rurais – representadas pelos membros da Associação Rural de Campina Grande6 – pelos fatores acima mencionados. Em outras palavras, a forma escolar da instituição lócus mantém relações com a política brasileira e também com as especificidades econômicas locais e regionais, que influenciaram a necessidade de se criar uma escola agrícola. É nessa rede de significados que o surgimento desta instituição escolar se inscreve. Havia o desejo de crescimento econômico, embalado pelo projeto de industrialização trazido pela política desenvolvimentista nacional. O “otimismo nordestino”, herdado do governo de Juscelino Kubistchek, alimentava esse surto de “desenvolvimento”, mas o plano educacional não acompanhava este salto dito “progressista”, marca do governo Kubistchek. Havia, então, a necessidade da instalação de escolas que “capacitassem” a mão de obra para um mercado mais competitivo. Porém, no plano do ensino superior, a cidade de Campina Grande, referência econômica no Nordeste, era deficiente em relação a escolas técnicas. Nesse cenário, a partir de tais necessidades, surge a Universidade Regional do Nordeste (URNE), criada em 1966 pela Lei Municipal n. 23 (LUIZ, 2010). Nos anos 1960, proprietários rurais de Campina Grande se ocuparam em criar, antes do Ginásio Agrícola, instituições com perfil agrícola, tais como: a Cooperativa Banco Agrícola de Campina Grande e a Instalação dos Postos Agrícolas Municipais, esta última localizada nos distritos de Galante e Queimadas7. Doravante, utilizaremos a sigla ARCG. Devido à ausência de fontes, não foi possível obter mais informações a respeito dessas instituições. 6 7

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Nesse sentido, podemos perceber que os mesmos proprietários rurais, no contexto dos anos de 1950 e 1960, eram participativos no tocante às políticas que se destinavam aos interesses dos setores agrícola e agropecuário na região de Campina Grande. A Associação Rural de Campina Grande8, órgão responsável pela criação do GAAC, por exemplo, foi criada pelos ruralistas de Campina Grande, mas não era uma associação existente apenas nesta cidade. Campina Grande, na década de 1960, devido à política de emancipação de municípios que havia começado desde a década anterior, perdeu muito de sua área. A fragmentação do que fora seu território, reduzindo-o consideravelmente, criou condições para que o desenvolvimento da agropecuária se tornasse não muito expressivo. Já a pecuária campinense, na década de 1960, tinha importante participação na economia do município. Porém, a produção agrícola era inexpressiva quando comparada aos setores comercial e industrial do município (CARDOSO, 1963). Esse desenvolvimento econômico favoreceu aos pecuaristas, criando um ambiente de relações pautado na troca, venda e comércio de produtos em comum. Consequentemente, exigiam-se cada vez mais produtos advindos do campo em menor período de tempo, ou seja, tratava-se de uma produção acelerada que, por sua vez, exigia melhor tratamento técnico. Nesse momento, as técnicas mais “avançadas”, como o melhoramento genético do gado, possuíam importância para as elites no que tange às relações comerciais pelo devido aumento da produção de leite e carne, elevando a produção. Havia, então, a expectativa de criação de escolas técnicas, a fim de proporcionar maior “capacitação” de jovens para atuar 8

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A qual doravante chamaremos ARCG.


nos setores relativos à pecuária de forma mais produtiva, o que resultaria numa maior produtividade comercial para os pecuaristas e grandes agricultores. Estes teriam mais condições de expandir suas atividades e relações comerciais, criando oportunidades de circulação de dinheiro e de ampliação das atividades lucrativas. A promessa de criação de uma escola agrícola no município de Campina Grande vinculava o discurso de que ela cumpriria o papel de incentivadora da educação técnica. Os municípios da região circunvizinha de Campina Grande eram predominantemente rurais, e tinham como fator econômico principal as atividades agrícolas. Outra consequência advinda desse panorama seria a manutenção de mão de obra para o trabalho rural, evitando, assim, o êxodo rural das regiões propícias à agricultura e fomentando o “aprimoramento” da técnica do trabalhador rural. O “aperfeiçoamento” profissional, o aumento na produtividade e uma técnica aprimorada pelo ensino de qualidade eram as maiores promessas com a criação da escola. Com isso, haveria a “superação” das técnicas ditas mais arcaicas em prol da produtividade e benefício dos interesses capitalistas. Assim, entendemos que era interesse das elites agrárias de Campina Grande a criação de uma Escola Técnica Agrícola, que preparasse filhos de agricultores para o mercado de trabalho voltado para o campo, viabilizando um ensino que se entende por “prático”, de modo a obter “melhoramentos” nas técnicas agrícolas: eis os objetivos essenciais das escolas agrícolas. Destarte, a constituição da escola aparece, portanto, como algo fundamentalmente inserido em um quadro de especificidades locais relacionadas a um conjunto de determinações políticas contextuais e de interesse da classe dos chamados ruralistas.

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Até o ano de 1962, havia apenas quatro escolas agrícolas na região Nordeste: o Colégio de Economia Doméstica Rural de Iguatu-CE, o Colégio de Economia Doméstica de Souza-PB, o Colégio Agrícola João Coimbra-PE e o Colégio Agrícola Vidal de Negreiros-PB, ou seja, dos quatro, dois estavam na Paraíba. Todas essas instituições estavam subordinadas à Superintendência do Ensino Agrícola e Veterinário (SEAV)9, órgão vinculado ao Ministério da Educação, e se ocupavam em formar jovens para o trabalho técnico agrícola na região Nordeste. Percebe-se, então, certa emergência para a criação de uma escola técnica na mesorregião de Campina Grande que, pelos fatores acima listados e além de exercer um papel importante na economia da região, não possuía uma instituição que pautasse suas práticas de ensino na formação científico-técnico-agrícola. Não há como determinar com precisão, para além da Ata de Fundação do GAAC, quais entidades, além da ARCG, estiveram envolvidas com a criação da escola, mas é possível supor que alguns órgãos contribuíram ou participaram, direta ou indiretamente, de sua criação, devido ao seu envolvimento direto com questões agrícolas, a saber: o Centro Nacional de Ensino e Pesquisa Agrícola (CENEPA), criado em 1938 para organizar e coordenar as atividades de ensino, pesquisa e extensão agrícola do país e a Fundação para o Desenvolvimento da Ciência e da Técnica (FUNDACT), “órgão criado em 1957 pelo Poder Público Municipal [campinense]” (LUIZ, 2010, p. 21). No quadro geral das relações sociais e da estrutura econômica do município, a ARCG10, composta pelos chamados ruralistas de Campina Grande, articulou, através de “várias reuniões informais e trabalhos preliminares da Diretoria da Associação Rural”, a criação do GAAC a partir dos interesses de sua própria classe e de seus anseios (ATA DE FUNDAÇÃO, 1962, p. 01). 9

Ao nos referirmos a este órgão, utilizaremos sua sigla. Associação Rural de Campina Grande.

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Pensamos que a criação do GAAC buscou atender aos anseios da classe ruralista da região, sendo legitimada por sua composição interna, corpo docente e amparo jurídico, e pelo corpo profissional presente na sua fundação, que viria posteriormente a ocupar espaços na escola, nela atuando profissionalmente. Interessados na legitimação da escola, os membros da ARCG cuidaram rigorosamente de todos os detalhes burocráticos necessários para que sua criação ganhasse força no território de Campina Grande. Firmaram convênio com a SEAV (do Ministério da Agricultura), concedendo ao GAAC sólidas bases legais que garantiram seu funcionamento, que foi legalmente reconhecido pelo Conselho Estadual de Educação e depois pela SEAV e pelo Conselho de Serviço Social do MEC, apto, portanto, pelo registro feito neste último órgão a receber verbas do Governo Federal. Na noite de 20 de outubro de 1962, membros da ARCG, demais interessados e algumas autoridades constituídas, como Plínio Lemos, ex-prefeito de Campina Grande11, reuniram-se em caráter oficial na sede da Diretoria desta Associação, situada na Rua João Tavares Cavalvanti, n. 171. Nessa noite, foi criado o Ginásio Agrícola “Assis Chateaubriand” de Campina Grande, nome dado por Salvino de Oliveira Filho – Presidente da Associação Rural – e por aclamação dos presentes. A assembleia de criação do Ginásio contou com a participação de diversas personalidades: Edvaldo de Souza do Ó, Geraldo Miranda Leite, Fernando Silveira, Dr. Manoel Tavares, Dr. Severino de Souza Gomes, Dr. José Cavalcanti de Figueiredo, Dr. João Paulino de Morais, Alzir Aguiar, Joel Gonçalves, Ivo Leal, Prof. Átila de Almeida, Drª Ruth Trindade de Almeida, José Jordão de Vasconcelos, Dr. Patrício Leal, Dr. João de Sousa Barbosa, Dr. Amaury Vasconcelos, Prof. José Lopes de Andrade, Foi prefeito de Campina Grande no período de 1951 a 1954; à época, Deputado Federal pela UDN, eleito com 2.904 votos, ficando em terceiro lugar, na suplência, mas depois assumindo o cargo. 11

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Esaú Catão, Dr. Salvino de Oliveira Filho e Raymilson Monteiro Viana (ATA DE FUNDAÇÃO, 1962, p. 01).

Dentre os presentes na referida assembleia, destacamos a participação do economista Edvaldo de Souza do Ó12. É possível que ele tenha colaborado para a criação do GAAC e da transferência da escola para a FURNE. Seu olhar enquanto economista talvez tenha percebido que a criação de uma escola técnica agrícola na cidade de Campina Grande ou em seus arredores contribuísse para a formação de mão de obra especializada nos saberes e práticas agrícolas. Isto certamente contribuiria com a fomentação e melhor desempenho nos negócios de agricultores e pecuaristas campinenses. Outro intelectual de destaque na cena paraibana participou da reunião solene de criação da escola: o folclorista Átila de Almeida, filho do historiador paraibano Horácio de Almeida. Átila foi professor de física no Campus II da UFPB e era jornalista. Como escritor, lançou livros na área de folclore, além de ensaios e artigos de revistas e jornais. Os intelectuais acima figuram aquilo que Gramsci (1978) chamou de intelectuais orgânicos, ou seja, indivíduos que, pertencendo ao mesmo grupo social, possuem a mesma consciência de suas funções no meio social, político e econômico e, desse modo, são responsáveis por legitimar

Na bibliografia consultada, este homem sempre é representado como notável intelectual, trazendo grandes benefícios para a cidade de Campina Grande. Algumas instituições creditam sua existência na referida cidade a Edvaldo de Souza do Ó, dentre as quais: a SANESA – concessionária de água da Paraíba, a antiga CELB – Energia Elétrica da Borborema, a TELINGRA – Telefonia de Campina Grande, e também os Postos de Classificação do Algodão e de Sisal que funcionaram anexos à Biblioteca Municipal. Ele também teve atuação como futuro indicado para o cargo de vice-reitor da Universidade Regional do Nordeste, mas que seria, na verdade, seu primeiro reitor oficial, tendo atuado até 1969, ano da intervenção militar na URNE, que acabou somente em abril de 1973. Luiz (2010) aponta Edvaldo de Souza do Ó como um dos maiores idealizadores do ensino superior campinense, elevando, desse modo, sua posição enquanto intelectual de importância para a cidade. 12

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práticas, atitudes e valores assumidos pelo seu grupo. Esses intelectuais, enquanto grupo social com interesses concretos no conjunto de suas relações, representados pelos membros da ARGC, pelos professores listados na ata de fundação e pelos membros presentes na reunião, buscaram, a partir da união e de várias ações em conjunto, os diversos modos de realizar seu projeto de criação e legitimação da escola agrícola (GRAMSCI, 1978). O deputado Plínio Lemos teve grande e efetiva atuação na criação da escola e no seu posterior desenvolvimento. Foi responsável por conseguir para a escola verbas provenientes do Governo Federal, otimizando o funcionamento da instituição em seus primeiros anos de existência. Seu envolvimento foi de fundamental importância no sentido de conseguir os recursos necessários para o seu funcionamento e também para a construção das instalações da escola no município de Lagoa Seca. A denominação “Ginásio Agrícola” Assis Chateaubriand obedecia ao que previa a Lei Federal n. 4.024/61, a LDB vigente à época. A lei fixava as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Entre seus artigos, observamos o de número 49, segundo o qual: “os cursos industrial, agrícola e comercial serão ministrados em dois ciclos: o ginasial, com a duração de quatro anos, e o colegial, no mínimo de três anos” (BRASIL, 1961, art. 49). O GAAC, até o ano de 1971, oferecia o curso ginasial, estando, portanto, enquadrado na nomenclatura. O GAAC de Campina Grande foi criado a partir de um convênio entre a ARCG e o Ministério da Agricultura e autorizado pelo Conselho Estadual de Educação. Ficou situado na Rua João Tavares Cavalcanti, n. 171, quando de sua criação, provavelmente no edifício da FUNDACT, sede da Associação Rural. A escola foi fundada sob prescrições legais-institucionais, com apoio de parlamentares e com expressiva representação. Ela obteve reconhecimento da SEAV possivelmente por volta de 1966, ano de formação da primeira turma. De acordo com a legislação vigente, uma escola técnica agrícola no Brasil só poderia funcionar com a supervisão deste órgão.

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Embora o GAAC não fizesse parte da rede federal, foi uma instituição criada por verbas provenientes do Governo Federal. O GAAC também deveria estar de acordo com as normas do Ministério da Educação, conforme regia a legislação vigente, pois os municípios também deveriam atender às diretrizes previstas em leis. entre percalços, cenários e trajetórias: de campina grande a lagoa seca Desde sua fundação, o GAAC não teve local fixo para se instalar e promover suas atividades. Durante seus cinco primeiros anos de funcionamento, ele migrou por locais provisórios, tomados de empréstimo. Os espaços escolares eram espaços enquanto lugares praticados, para usar a expressão de Certeau (2008, p. 202), ou seja, os locais onde a escola se instalava provisoriamente e exercia suas práticas pedagógicas e ofícios cotidianamente. Para este autor, a ênfase consiste não necessariamente na circunscrição geográfica, mas talvez principalmente nas operações do cotidiano ligadas ao(s) espaço(s). Ela funcionou, primeiramente, na sede da ARCG, localizada na Rua João Tavares Cavalcanti, no centro da cidade, no prédio do Edifício da FUNDACT. Depois, no Colégio Anita Cabral. Posteriormente, mudou-se para o Colégio Integração da FURNE e, então, para o Teatro Municipal Severino Cabral de Campina Grande (CAMPOS, 2013). A escola, desde antes da sua fundação, já estava prevista para ser construída na região do chamado “posto agropecuário” de Lagoa Seca, até então distrito de Campina Grande, e só funcionaria nesta cidade até a construção do prédio sede no distrito. A construção de uma escola técnico-agrícola na localidade seria, antes de mais nada, novidade para a localidade, um contraste com um município com poucas instituições escolares de nível fundamental, apenas uma de nível médio e nenhuma de nível técnico.

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O contexto educacional do município de Lagoa Seca era marcado pelas poucas instituições escolares e alguns casos isolados de surgimentos de pequenas escolas nas casas de moradores das zonas rurais organizadas por eles próprios. No início da década de 1930, no Sítio Floriano, na zona rural da cidade, foi criada uma escola pública por intervenção do prefeito de Campina Grande, Lafaiete Cavalcante. Era uma escola simples, que se mantinha com verbas desta cidade e funcionava na casa de João Jerônimo da Costa13. Esta pequena escola durou até 1934 e fechou devido à falta de recursos da prefeitura (SANTOS, 2007). A área destinada à construção da escola, no ano de 1964, era uma faixa de terra no Sítio Imbaúba de 25.000m2, situada próximo à instituição, que abrigava menores infratores, o Lar do Garoto Padre Otávio dos Santos, no distrito de Lagoa Seca. Era uma terra muito propícia ao cultivo das mais variadas espécies de frutas e hortifrutigranjeiros. O GAAC, enfim, foi transferido para o Sítio Imbaúba, localizado em Lagoa Seca, atual sede, somente em 22 de outubro de 1967, tendo lá se fixado até os dias atuais.

Segundo prefeito eleito de Lagoa Seca. Seu mandato compreendeu o período de 31/01/1969 a 31/01/ 1973. 13

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REFERÊNCIAS CAMPOS, Rafael dos Santos. Nos entrelaços da memória, nas tramas da história: representações da Escola Agrícola Assis Chateaubriand UEPB de Lagoa Seca-PB (1962 – 1992). 2013. 94 f. Monografia (Graduação em História) - Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande-PB, 2013. CARDOSO, Maria Thereza. Campina Grande e sua função como capital regional. Separata da Revista Brasileira de Geografia, ano XXV, n. 4, IBGE, 1963. CERTEAU, Michel de. A escrita da História. 2. ed. Rio de Janeiro: Foriense Universitária, 2010. ISSA, Silvia Aparecida Caixeta. A escola agrícola de Urutaí (19531963): singularidades da cultura escolar agrícola. 2014. 113f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Goiás, Regional Catalão, Departamento de Educação. LUIZ, Janailson Macêdo. Luz para sua gente e para sua terra: Notas sobre a história da UEPB. Campina Grande, PB, EDUEPB, 2010. MIGUEL, Maria Elisabeth Blanck. Os arquivos e fontes como conhecimento da história das instituições escolares. In: NASCIMENTO, Maria Isabel Moura et al. (Orgs.). Instituições escolares no Brasil: conceito e reconstrução histórica. Campinas, SP: Autores Associados, 2007. p. 31 - 38. SANTOS, Elisângela Jerônimo dos Santos. Tarimba: Aspectos Históricos e culturais de Lagoa Seca (1929 – 1969). Bauru: Canal6, 2007.

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SAVIANI, Dermeval. Instituições escolares no Brasil: conceito e reconstrução histórica. In: NASCIMENTO, Maria Isabel Moura et al. (Orgs.). Instituições escolares no Brasil: conceito e reconstrução histórica. Campinas, SP: Autores Associados, 2007. p. 31 - 38. VINCENT, Guy; LAHIRE, Bernard; THIN, Daniel. Sobre a história e a teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, n. 33, p. 7-47, 2001.

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CAPÍTULO 04 Essa lembrança que nos vem às vezes... folha súbita que tomba abrindo na memória a flor silenciosa de mil e uma pétalas concêntricas... Essa lembrança... mas de onde? de quem? Essa lembrança talvez nem seja nossa, mas de alguém que, pensando em nós, só possa mandar um eco do seu pensamento nessa mensagem pelos céus perdida... Ai! Tão perdida que nem se possa saber mais de quem! Mario Quintana

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ENTRE FÉ E LIDERANÇA: ESCRITAS DE SI DA LÍDER CAMPONESA JOSEFA ERMINA COBÉ (1975 - 1984)1 Este artigo problematiza a história de vida e as escritas de si2 da camponesa Josefa Ermina Cobé, líder do movimento de reforma agrária acontecido na comunidade rural Engenho Geraldo, Alagoa Nova – PB (1975 a 1984). Busco narrar sua atuação e as articulações políticas dentro do referido movimento, como elementos para uma história possível da luta e da resistência de mulheres camponesas à ditadura militar no estado da Paraíba. Esta líder foi protagonista de um dos movimentos de resistência camponesa ao regime militar e aos grandes latifundiários, acontecidos na Paraíba no período citado. Em sua atuação política, expressa sobretudo na liderança comunitária/religiosa e nos discursos eloquentes proferidos em público, ela se apresenta como protagonista de uma escrita de si. Nêm Cobé, como prefere ser chamada, é um exemplo para as lutas das mulheres camponesas e por isso trago um pouco de suas narrativas nos escritos que se seguem. nêm cobé: uma apresentação! A alegria de viver e a luta por uma causa são qualidades que acompanham Josefa Ermina Cobé (Nêm Cobé)3 por toda sua vida. Professor Mestre Jadson Pereira Vieira, Graduado em História, Universidade Estadual da Paraíba – UEPB. Especialista em Educação para as Relações Étnico-raciais, Universidade Federal de Campina Grande - UFCG. Mestre em História, Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal da Paraíba, PPGH/UFPB e Professor da rede básica de ensino em Lagoa Seca-PB. 2 Compartilho o entendimento do conceito “escritas de si” com Michel Foucault e seus comentadores, quando afirma que as produções feitas pelos sujeitos históricos são elaboradas de maneira a possibilitar a construção de um “corpo” para os sujeitos, este, sendo antes de qualquer coisa, uma narrativa discursiva. Cf. FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: ______. O que é um autor? Lisboa: Passagens, 1992. p. 05. 3 Josefa Ermina Cobé (Nêm Cobé), hoje com mais de 90 anos, é católica, usou muito de sua religiosidade e conhecimento político dentro dos movimentos sociais, como mecanismo de atuação junto aos trabalhadores do Engenho Geraldo. 1

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A simplicidade e jeito autêntico de encarar os desafios diários foram marcas que a acompanharam por vários momentos de sua trajetória. Sempre sorridente e com muita força na fé, ela alcançara prestígio e respeito entre os membros da comunidade Engenho Geraldo . Ela assume papel de liderança entre os que participaram do movimento, mesmo entre aqueles que, junto com ela, também foram lideranças. O consenso existente entre os que a acompanharam, é que sua subjetividade sempre foi preenchida por sentimentos de alegria e de amizade. Ela foi, neste sentido, o sustentáculo de uma força que todos necessitavam para consolidar seus objetivos durante os anos de luta na comunidade Engenho Geraldo4. Sua experiência e sua relação com o mundo serviram de inspiração e de confiança para muitos que se envolveram na causa e que, junto com ela, protagonizaram um dos grandes movimentos de reforma agrária acontecidos na Paraíba nas décadas de 1970 e 1980. É neste sentido que trago aqui um pouco da história desta mulher que se escreve para o mundo a partir de sua atuação como agricultora e líder camponesa. Nêm Cobé começa sua interação política nos movimentos do campo ainda criança, quando nos ensinamentos de seu pai se preparava para as primeiras letras. Afirma nunca ter frequentado a escola, fato que trouxe para suas lembranças uma carga de valores atrelados a uma formação familiar rígida e patriarcal, típica de famílias de camponesas tradicionais da Paraíba a época. Os valores do âmbito familiar e a vida em comunidade irão moldar uma imagem de si criada por Nêm Cobé. Paulilo (2004) afirma que a vida em grupos, em perspectiva

O Engenho Geraldo foi uma propriedade rural de 2.500 hectares aproximados, pertencentes a família Tavares De Melo Cavalcante, no município de Alagoa Nova-PB que em 1984 passou por reforma agrária promovida pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Nestas terras 555 famílias foram beneficiadas com lotes. Dados obtidos na Gerencia regional do INCRA, João Pessoa-PB, em 15 de maio de 2014. 4

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comunitária, é pautada na vivência de aspectos relacionados a partilha, a integração e ao afeto; a comunidade seria neste sentido o ambiente onde os valores coletivos se edificam e contribuem para a formação dos sujeitos históricos. Assim, muito do que ela apresenta como valores são sequências de subjetividade que foram construídos na primeira infância. A noção de comunidade como definindo um lugar de igualdade, integração, tradição e afeto, muito mais do que de hierarquias, conflitos, mudanças e escolhas racionais, firmou-se na Sociologia através dos estudos de comunidades inspirados na corrente funcionalista. A ênfase dessa vertente em pequenos grupamentos fez do campesinato um de seus principais objetos de estudo e, assim, ele passou a ser identificado com os valores que compunham a ideia de vida em comunidade e, portanto, como pouco afeito ao comportamento racional. (PAULILO, 2004, p.230)

Na vida de Nêm Cobé, as práticas e as relações com a comunidade foram importantes para que ela pudesse moldar uma escrita de si, que perpassasse a construção subjetiva, da líder que tinha uma fala fácil e enorme capacidade de elaborar discursos. “O povo gostava do jeito que eu falava nos encontros, porque eu animava mesmo.”5 Assim, ela constrói para si uma escrita que se projeta em imagens lidas pelos companheiros, mas também nas narrativas que a todo momento proferia dentro do movimento. Exploro os relatos autobiográficos produzidos por ativistas, considerando as narrativas nas quais reconstroem o próprio passado, avaliam as experiências vividas e dão sentido ao presente. Parto da concepção de que a linguagem e o discurso são instrumentos fundamentais por meio dos quais as representações sociais são formuladas, veiculadas, assinaladas e de que o realsocial é construído discursivamente. (RAGO, 2013, p.30) 5

Entrevista concedida por Nêm Cobé, 09/06/2011.

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Sobre a infância, alguns recortes de memória devem ser pensados para poder melhor entender como se deu sua formação política. O primeiro aspecto é que Nêm Cobé veio morar em Alagoa Nova ainda muito criança, sua família era originária do município de Soledade-PB, onde seus pais foram morar após o casamento. Mas, devido às ligações com parentes paternos e o direito de seu pai a heranças de terras no Brejo, foram morar no Sítio Camará, no atual município de Matinhas-PB, a época então distrito de Alagoa Nova. Nós viemos morar em Alagoa Nova, porque meu pai era daqui e trabalhava aqui também. Mesmo a gente morando lá em Soledade. Ele resolveu vir para cá, minha mãe veio para ver se dava certo para nossa família, depois disto nós viemos pra cá, morar aqui no Brejo, ai, terminou a minha mãe vendendo as terras de lá e comprando aqui uma terra. [...] a gente veio morar então no município de Matinhas, mas na época Matinhas não era município era pertencente a Alagoa Nova.6

Fato importante de suas lembranças, a vinda da família para Alagoa Nova ajudou a marcar uma mudança na vida de Nêm. Aqui, ela irá traçar sua vida a partir de novos valores. Chega aos oito anos de idade e aos poucos começa a criar relações de amizade com a comunidade e com os parentes próximos. Ao mesmo tempo, aprofunda a relação de amor e segurança que encontra no pai, seu grande mentor intelectual, que lhe repassava os poucos conhecimentos das letras que tivera. Neste sentido, sua primeira infância será fortemente marcada pela presença constante do pai, que lhe ajuda a construir uma subjetividade forte pautada na defesa de seus direitos e dos que com ela conviveram. Pensando o quanto ela se constrói a partir dos laços de memória que tem de sua família, nos amores que constrói com a mesma 6

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Entrevista concedida por Nem Cobé, 09/06/2011.


e nas experiências vividas, acabamos refletindo que “[...] na modernidade, o núcleo social em que, paradigmaticamente se concretizou a assunção da herança como norma, ou melhor, como dívida, foi a família (a memória do eu é sempre em primeira instância, uma memória da família)” (CATROGA, 2001, p.27). A busca de melhorias para os seus surge na infância e perdura por toda vida, ganhando força a partir de novos encontros que a vida lhe proporcionou. No caso de Nêm Cobé, seus primeiros prazeres com a leitura foram proporcionados por um presente de uma amiga da família, que lhe deu um livro que relatava a História do 8 de Março.7 Estas histórias de mulheres que lutavam pelos direitos das trabalhadoras foram lhe dando inspiração para entrar nas lutas em defesa dos camponeses. Eu lia muito a bíblia, e a primeira história diferente que li foi sobre a luta. Li sobre as mulheres, aquelas mulheres que morreram queimadas numa fábrica porque lutavam pelos seus direitos! Então pronto, foi a primeira história que eu vi e fiquei emocionada com a força da luta dos trabalhadores.8

Esta senhora cria para sua vida, um desenho de atuação dentro dos movimentos de luta pelos direitos dos trabalhadores do campo. A forma como ela se projeta para o mundo é por si só uma maneira de ser vista como diferenciada dos/as demais.

Dezenas mulheres operárias foram queimadas em uma fábrica têxtil nos EUA em meados do século XIX. No século XX, com as lutas dos movimentos feministas a data ficou conhecida como dia internacional de luta pelos direitos das mulheres. 8 Entrevista concedida por Nem Cobé, 09/06/2011. 7

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a “escrita de si” e a promoção de valores coletivos na comunidade engenho geraldo A escrita de si que Nêm Cobé desenvolve, não é aquela dos letrados, ou as que foram deixadas em produções livrescas e bibliográficas, nem muito menos as das cartas e correspondências trocadas por intelectuais. Falo de uma escrita deixada na oralidade, construída pelos conhecimentos que são revelados nas suas memórias e que nos enchem de prazer em sua escuta. Este é o texto lançado por ela, que mesmo com mais de 90 anos, ainda tece memórias de maneira perspicaz e límpida. A escrita de si é entendida como um cuidado de si, é também como abertura para o outro, como trabalho sobre o próprio eu em um contexto relacional, tendo em vista reconstruir uma ética do eu. Portanto, mostra até a “escrita de si” dos antigos opõe-se à confissão, modo discursivo-coercitivo de relação com a verdade que se define desde o cristianismo e que se acentua na modernidade (RAGO, 2013 p.50)

A forma como encara o mundo e o cuidado que tem consigo e com os seus companheiros de luta, faz com que a “ética do cuidado” seja sempre buscada para promover uma relação de companheirismo com os outros. Desde sua infância e perdurando-se por cada experiência vivenciada, ela vai criando um modelo de ser que lhe acompanha e que ajuda a construir várias relações dentro de sua comunidade. A imagem que constrói de si, é uma junção de momentos que viveu de maneira aparentemente dispersa e os momentos de profundo engajamento político que se revelam de maneira autobiográfica em seus relatos, criando de certo modo uma linearidade na escrita sobre sua vida. Percebe-se em Nêm Cobé uma alegria, 66


em sua história de vida e de lutas, que transcende a escala do individual e contagia aos que dela se aproximam. Estar diante de seus relatos, seria como diz Gonçalves (2007, p.113), pensar na “[...] escolha e junção de aspectos e momentos dispersos da vida, a autobiografia organiza o quebra-cabeças da história individual e procura oferecer um relato coeso e harmônico na projeção da imagem que o sujeito busca construir sobre si mesmo”. Na comunidade Engenho Geraldo em início dos anos 1970, Nêm Cobé a cada dia ganhava mais respeito; mesmo sem ter nascido naquelas terras9, na sua influência construiu muitos enlaces, pois cultivava amizades e experiências de grupo com os moradores. No Engenho Geraldo, tinha festa dos santos, que a gente participava muito, e depois que eu aprendia ler com meu pai não parei de ensinar ao pessoal que não sabia ler. Nossa amizade aumentou ainda mais. Eu tirava uma hora no meio dia para ir lá ensinar a eles. Tenho tantas criaturas que já morreu e outras tantas que estão vivas que mim agradecem pois aprenderam a ler comigo, porque eu chamava eles para estudar e eles iam lá para casa e eu, moça nova, ensinava o alfabeto a eles.10

A relação de proximidade com a comunidade era cultivada, seu perfil de liderança pouco a pouco era moldado. Em cada contato vivenciado, Nêm Cobé galgava para si uma imagem de liderança que se perdurou como algo “naturalizado” entre os seus, tudo isso alimentado por indignação ao ver o sofrimento de muitos que com ela compartilharam vivências e memórias desde a infância. Sua escrita de si, que ganha força pela oralidade dos discursos proferidos nas reuniões, aulas e reforços escolares que

A família de Nêm Cobé possui até hoje um pequeno lote de terras no sitio Camará, do município de Matinhas-PB, localidade próxima ao Engenho Geraldo. 10 Entrevista concedida por Nêm Cobé, 09/06/2011. 9

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dava aos jovens da comunidade, suas falas, assemelhamse a algo que disse Foucault (1992), ao definir que a escrita epistolar seria um treino de si, que se faz constante nos vários momentos da vida. Através das experiências partilhadas com os outros, ela daria força as formas de saber que se constroem em torno da personalidade de Nêm Cobé. O contexto de formação de Nêm Cobé é coincidente com toda uma conjuntura que a Paraíba e o Brasil estavam passando: períodos de instabilidades da democracia brasileira nas décadas de 1950 e 1960, bem como a época de repressão ocasionada pela ditatura civil-militar, foram vivenciados e contribuíram para sua formação política. Mesmo que esta não tenha tido acesso a uma instrução escolarizada maior, estes períodos históricos, em grande parte, influenciaram a construção de sua personalidade. A partir da década de 1970 uma série de movimentos de contestação ao poder vigente (de caráter ditatorial, direitista e repressor) começam a surgir e/ou ganhar visibilidade nas várias regiões do Brasil, e na Paraíba, não sendo diferente, passam haver influências destes movimentos. Basta lembrar que nos arquivos do DOPS–PB (Departamento de Ordem Política e Social da Paraíba)11 , são encontrados documentos e alusões a pessoas que em algum momento lutaram pela defesa dos seus direitos políticos tão duramente perseguidos naquela época. Mesmo antes do golpe, como afirma Nunes (2009), o clima de disputas entre setores oligárquicos na Paraíba e os camponeses já se instalava. Muito fortemente a partir da década de 1960. Tais fatores fazem com que vários movimentos organizados passem a surgir com o objetivo de defender os direitos destes trabalhadores: se num primeiro momento temos a presença das Ligas camponesas, após o Golpe temos a presença de entidades que atuavam junto aos camponeses como a JAC (Juventude Agrária Católica). 68

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Arquivos disponíveis no núcleo de cidadania e direitos humanos da UFPB.


A “paz agrária” no campo paraibano era garantida pelo jogo entre o Grupo da Várzea, composto, principalmente, pelas famílias Ribeiro Coutinho e Veloso Borges, e pelo Estado, e fundamentava-se na exploração máxima do campesinato. Era possível detectar a relação entre dono da terra e o Estado, este, representado na zona de latifúndio pela força policial sob o comando do delegado. A autoridade, civil ou militar, embora juridicamente designada para garantir a ordem pública, estava a serviço de um dos grupos oligárquicos no poder. (NUNES, 2009, p.4)

O contexto de repressão política faz deste momento histórico um ambiente onde vários movimentos surgem com intuito de articulação política de esquerda. No caso de Nêm Cobé, quem irá influenciála fortemente serão os pensamentos difundidos pela JAC, grupo da Igreja Católica que terá grande influência entre camponeses no estado da Paraíba e que, no caso do Engenho Geraldo, atuará fortemente junto a luta da comunidade. Neste sentido, se já tínhamos nessa protagonista uma forte influência da fé católica e dos sentimentos de revolta contra os maus-tratos cometidos aos trabalhadores, agora com a influência destes pensamentos, ela escreverá novos protagonismos para sua trajetória de lutas. Serão dez anos atuando diretamente na comunidade Engenho Geraldo, desde os primeiros encontros acontecidos em meados do ano de 1970 até a obtenção da posse definitiva das terras em 1984. Neste período, as lutas encabeçadas por Nêm Cobé e as outras lideranças da comunidade foram cruciais para a obtenção do direito à terra. Se não fosse assim, a tentativa dos donos Tavares Cavalcante12, então “donos do terreno”, teriam se concretizado, e neste sentido, as 555 famílias que ali habitavam seriam expulsas sem nenhum direito.

Herdeiros do Engenho Geraldo que encabeçaram um processo de expulsão das famílias de posseiros residentes no local. 12

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as amizades e o poder político das “novenas” Ao desenhar uma imagem para sua trajetória, ela busca demostrar o respeito que os companheiros construíram sobre si. Nêm Cobé torna-se a líder que melhor puxava os cânticos e as palavras nas novenas da comunidade, se apresentava como porta-voz das angústias e das insatisfações do seu povo; eram estas características descritas por ela para falar de sua atuação dentro do movimento. “Minha voz chamava atenção mesmo e eu tinha facilidade de convencer minha gente com a palavra de Deus, isso era um dom do Espírito Santo”. 13 Cria para si a “potência da reza”14 como elemento fundante da articulação política. Pensa sua imagem como a que melhor representa a expressão pública da amizade comum às lideranças do movimento. Ela proferia falas conduzidas com a liberdade de quem, no contexto social no qual estava inserida, tinha um respeito único pelo outro. Ela institui sua vida de modo que “[...] a amizade é vista como uma prática de liberdade que propicia a autoestima, a auto elaboração ética”. (IONTA, 2007, p.136). A maneira como projeta para o mundo suas amizades, faz de suas atitudes transgressões. Nêm foge ao padrão normativo que impõe a mulher a proibição do uso do espaço público como lugar de expressão. Nas rezas que participara, nos encontros interpessoais e nas relações diárias com os seus, a expressão do companheirismo era preponderante, neste sentido, é pertinente a lembrança destes dois fatores (o ato de “rezar” e as amizades construídas no movimento) quando estamos a pensar suas trajetórias. Entrevista concedida por Nêm Cobé, 09/06/2011. Em vários relatos, Nêm Cobé aponta que muitas de suas conquistas junto à comunidade Engenho Geraldo se davam graças ao poder divino de suas rezas e novenas. 13 14

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Eu sempre fui muito rezadeira, e o pessoal daqui foram me chamando para rezar ainda mais. Aqui no Engenho Geraldo, e eu comecei a rezar o terço e ler o evangelho com o povo nas casas, com isso bem rapidamente todo mundo ficou me conhecendo e me chamando ainda mais. As pessoas daqui sempre me consideravam muito.15

Sobre as amizades construídas faço, aqui, um exercício de rememoração para ver que na Filosofia Ocidental a amizade foi barrada às mulheres, sendo apresentada como uma prática exclusivamente masculina. É pertinente para se fazer um comparativo das maneiras de encarar o mundo criadas por Nêm, diante das formas tidas “tradicionais” de amizade. Rosa (2013) traz a temática das relações de amizade como práticas que começam e ser impostas como categorias de poder restritas aos homens desde a antiguidade clássica, quando a PhiliaAmicítia16 era uma exposição pública das relações entre eles. A relevância política da amizade foi ressaltada em diferentes momentos da tradição filosófica ocidental. Contudo, a amizade considerada ideal era a amizade entre homens. Tanto que a ideia de incapacidade da mulher para a amizade percorre os textos de Platão, Aristóteles, Cícero, Montaigner, Michelet, Kant, Hegel e muitos outros. A fraternidade conferida às mulheres por estes autores afasta-se da nobreza que empunham existir na verdadeira amizade (ROSA, 2013, p. 78).

Para a história da filosofia no ocidente, as mulheres foram gradativamente reclusas ao ambiente do lar, espaço este D Entrevista concedida por Nêm Cobé, 09/06/2011. Diferentes conceitos referentes as relações de amizade desde a antiguidade clássica: Na Grécia antiga, temos os homens que se unem para expressar suas relações amistosas que eram também políticas e que se chamavam de Philia. Em Roma, com a projeção de uma relação política sustentada na Amicítia. Com o advento do cristianismo e propagação do amor absoluto pelo divido, amor este representado na propagação do Ágape que se perdura pela relação fraterna-caritas. Com a modernidade, a ascensão do privado como esfera explicativa do “ser” faz a amizade passar por um acentuado processo de despolitização e privatização das ações. 15 16

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dominado pelo poder do homem que se apresenta como chefe da família e porta-voz da mesma para a sociedade. A mulher seria em certo sentido a “guardiã do lar”, cabendo-lhe atribuições impostas pela “superioridade masculina”. Nesta perspectiva, as únicas formas de amizades permitidas às mulheres seriam amizades superficiais, sem uma estrutura profunda que pudesse ser exposta a sociedade. Portanto, o espaço de diálogo que se constrói nas novenas e encontros comunitários/religiosos, foram palcos para o fortalecimento de laços e para a construção de uma demanda coletiva, que posteriormente se torna uma pauta de reivindicações de todos no Engenho Geraldo, sendo assim, vejo nestes ambientes uma tensão, no que se refere construção de um discurso político de empoderamento dos camponeses.

CONSIDERAÇÕES FINAIS As memórias da líder Camponesa Nem Cobé são suportes para a construção de uma história de resistência dos que junto com ela lutaram com o intuito de conseguir direitos cerceados de posse da terra. Os conflitos do Engenho Geraldo são elementos que nos mostram a carga de subjetividade dos sujeitos históricos quando se propõem a lutar por um direito . A história da comunidade contada a partir de Nêm, torna-se uma narrativa possível no momento em que a personagem histórica toma para si o papel de liderança do movimento. Ela constrói uma escrita de si, elaborada a partir das atitudes e ações que efetuou nos dez anos de luta por reforma agrária na localidade. A escrita de si de Nêm é sustentada, sobretudo, nas relações de amizade que elabora nos espaços públicos de luta. A amizade torna-se então elemento base para a obtenção de uma unidade política de reivindicação de direitos relacionados a posse da terra. 72


REFERÊNCIAS CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. Coimbra/Portugal: Quarteto, 2001. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: edições Graal, 2014. __________________. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa: Passagens, 1992. p.1-11. Disponível em < http://eps.otics.org/ material/entrada-outras-ofertas/livros/a-escrita-de-si-michelfoucault/at_download/file> Acessado em 18 de Maio de 2015. _________________. O anti-Édipo: uma introdução à vida não fascista. Cadernos de Subjetividade / Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos PósGraduados em Psicologia Clínica da PUC-SP. Vol. 1, nº1. São Paulo: 1993. p.197-200. Disponível em <http://www.adrieldutra. com.br/wp-content/uploads/2013/12/foucault-prefacio-avida-nao-facista.pdf> Acessado em12 de outubro de 2014. GONÇALVES, Margareth de Almeida. Viagem e escrita de si em Maria Graham. Rev. Seropédica/RJ. Vol.29, nº1. Rio de Janeiro: EDUR-Editora da Universidade Rural do Rio de Janeiro: Jan-Jun/2007. p. 110-122. HALBWACHS, Maurice. A Memória coletiva. 1º Ed. São Paulo: Centauro, 2006. IONTA, Marilda. As cores da Amizade: cartas de Anita Malfatti, Oneyda Alvarenga, Henriqueta Lisboa e Mario de Andrade. São Paulo: Annablume, FAPESP, 2007. MEIHY, Jose Carlos Sebe Bom; HOLANDA, Fabíola. História Oral: como Fazer, como pensar. São Paulo: Contexto, 2007. 73


NUNES, Paulo Giovani Antonino. Os movimentos sociais, o governo Pedro Gondim e o golpe civil-militar na paraíba. Anais ANPUH – XXV Simpósio Nacional De História – Fortaleza, 2009. Disponível em <http://anpuh.org/anais/wp-content/uploads/mp/pdf/ ANPUH.S25.0210.pdf> Acessado em 18 de Maio de 2015. ORTEGA, Francisco. Genealogia da Amizade. São Paulo: Iluminuras, 2002. PAULILO, Maria Ignez S. Trabalho familiar: uma categoria esquecida de análise. Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC, Estudos Feministas, Florianópolis: Jan-Abr/2004. p. 229-156. RAGO, Margareth. A aventura de contar-se: feminismo, escrita de si e invenções de subjetividades. Campinas/SP: Editora Unicamp, 2013. ROSA, Susel Oliveira da. Mulheres, Ditaduras e Memorias: “não imagine que precise ser triste para se militante”. São Paulo: FAPESP, 2013. SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil da análise histórica. Vol, 20, nº2. Porto Alegre: Educação e Realidade, JunDez/1995. p.77-99.

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CAPÍTULO 05 Eu Eu sou a que no mundo anda perdida, Eu sou a que na vida não tem norte, Sou a irmã do Sonho, e desta sorte Sou a crucificada ... a dolorida ... Sombra de névoa ténue e esvaecida, E que o destino amargo, triste e forte, Impele brutalmente para a morte! Alma de luto sempre incompreendida! ... Sou aquela que passa e ninguém vê ... Sou a que chamam triste sem o ser ... Sou a que chora sem saber porquê ... Sou talvez a visão que Alguém sonhou, Alguém que veio ao mundo pra me ver E que nunca na vida me encontrou! Florbela Espanca

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OS ESTEREÓTIPOS FEMININOS NO MODERNISMO E NA CONTEMPORANEIDADE : UMA PROPÓSTA DIDÁTICA PARA O ENSINO DA LITERATURA17 O presente texto é resultado da experiência vivenciada do Estágio Supervisionado IV, ofertado pelo curso de Letras - Língua Portuguesa, da Universidade Estadual da Paraíba. O estágio enfocou o ensino de literatura em uma turma de 3º ano, nível médio, da Escola Estadual de Ensino Médio Dr. Elpídio de Almeida, mais conhecida como Estadual da Prata, situado na cidade de Campina Grande/ PB. A intervenção didática ocorreu no período de 15 de abril a 10 de junho de 2014, consistindo em uma aula semanal, no turno da noite (terças-feiras). A turma na qual os encontros ocorreram tinha, em média, 17 alunos, sendo que 15 deles frequentavam regularmente e a maioria era do sexo feminino: 10 alunas e 5 alunos. A faixa etária variava entre 17 e 25 anos, com exceção de duas alunas que tinham mais de 35 anos de idade. A proposta desenvolvida em sala de aula para o ensino de Literatura foi fundamentada nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio - OCEM (2006), no que tange à dimensão “humanizadora” da Literatura, capaz de possibilitar a formação de leitores críticos através do letramento literário. Por letramento Literário podemos entender a construção de sentidos obtidos mediante apreciação de textos literários. Conforme afirma Paulino e Cosson (2009, p.68) “trata-se de uma apropriação da literatura não apenas como um conjunto de textos, consagrados ou não, mas também como uma forma singular - literária - de construção de sentidos”. Sendo assim, baseada nas fundamentações teóricas supracitadas, houve uma motivação de idealizar uma a um tema Josicleide Araújo de Oliveira, professora, militante dos movimentos sociais e diretora do SINTAB-LAGOA SECA. Texto extraído do trabalho de conclusão de curso em Letras – Língua Portuguesa – pela Universidade Estadual da Paraíba –Campus I 17

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que propiciasse discussões e contribuísse para a formação cidadã dos alunos. Dessa forma, pensamos em elaborar uma proposta de intervenção, cujo tema envolvesse questões relacionadas à “mulher” pois, na ocasião, estava sendo muito discutido em todo o país uma pesquisa divulgada no dia 27 de março de 2014 pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada) que trazia o seguinte título: “Tolerância social à violência contra as mulheres”. Essa pesquisa causou polêmica e indignação uma vez que o IPEA divulgou que 65% dos brasileiros concordaram com a afirmação de que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Posteriormente, no dia 4 de abril do mesmo ano, depois de já ter causado inúmeras reações e discussões nas redes sociais, esse índice foi corrigido para 26%; o IPEA alegou que houve um equívoco na divulgação dos percentuais da pesquisa. Diante desse fato, resolvemos incluir um tema na sequência didática para o ensino de literatura que contemplasse a discussão de gêneros e que estivesse em conformidade com o que preconiza as Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Optamos então por trabalhar com a temática “Os estereótipos femininos no Modernismo e na contemporaneidade” por acreditarmos que discussões originadas de temas como esses, desenvolvem no aluno a capacidade de ler criticamente, além de provocar emoções e reflexões humanizadoras, como afirma Cândido (1995, p.204): Entendo aqui por humanização [...] o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota da humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.

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O trabalho possuiu traços de pesquisa-ação por ser realizado dentro de uma instituição escolar e possibilitar a intervenção dentro de uma problemática social, analisando-a e anunciando seu objetivo de forma e mobilizar os participantes, construindo novos saberes. Os resultados nos fizeram compreender a importância de se trabalhar as relações de gênero na sala de aula a partir de um enfoque interdisciplinar e de inclusão dessa temática em vários campos da Educação. Dessa forma, esperamos contribuir para os estudos que estão sendo desenvolvidos nesse âmbito e, principalmente, para a formação do aluno cidadão e crítico enquanto sujeito de uma sociedade que luta cada vez mais por uma equiparação de gênero. Além de subsidiar docentes do Ensino Fundamental e Médio a modificarem suas práticas escolares em prol de uma igualdade social. estereótipos femininos: preconceito e discriminação

motivadores

de

Segundo o dicionário Aurélio (2018), estereótipo significa “comportamento ou discurso caracterizado pela repetição automática de um modelo anterior, anônimo ou impessoal, e desprovidas de originalidade e da adaptação à situação presente”. Para o Caldas Aulete (2004), estereótipo seria: “1. Compreensão (de algo ou alguém) muito generalizada, preconcebida, e empobrecida de algo. 2. Padrão, formado a partir de uma imagem alimentada mais por conceitos fixos e preconcebidos do que pela própria realidade”. Já para o dicionário Michaelis (1998), estereótipo vem a ser a “Imagem mental padronizada, tida coletivamente por um grupo, refletindo uma opinião demasiadamente simplificada, atitude afetiva ou juízo incriterioso a respeito de uma situação, acontecimento, pessoa, raça, classe ou grupo social”.

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As definições feitas pelos dicionários supracitados relacionados à palavra “estereótipo” talvez não sejam conhecidas por todos, porém as situações que envolvem o seu uso no dia a dia, sim. Não é preciso ter conhecimento das teorias sobre a questão de gênero para entender que julgamentos feitos a partir de uma imagem ou de um conceito preconcebido não pode ser algo positivo. A história tem nos mostrado que a circulação dessas ideias generalizadas referentes à mulher é algo que acontece há séculos, e são evidências de uma sociedade patriarcal que coloca o homem em uma posição sempre superior a da mulher. Assim, ao longo de séculos, as mulheres foram submetidas a tarefas pouco valorizadas socialmente, a exemplo do trabalho doméstico e outras atividades afins. Conforme Gomes (2006, p. 37): Essa estrutura social naturalizada induz a uma enormidade de ações e decisões inquestionáveis. Assim, cabe à mulher o cuidado dos filhos, do marido, e todas as atividades por vezes invisíveis realizadas no âmbito privado, já ao homem são atribuídas àquelas tarefas perigosas ou espetaculares do espaço público. Dessa forma, o espaço de lutas vai muito além do âmbito doméstico, há sempre uma mão direita e uma mão esquerda no Estado [...]. Outra face da divisão sexual do trabalho refere-se ao fato de que uma mesma tarefa pode conferir grande prestígio quando executada por homem, e se considerada elementar ou fútil quando executada por mulher.

Por conseguinte, a estereotipação relativa às mulheres não se esgota com a imagem padronizada da “dona de casa”, pois são muitos os estereótipos referentes ao gênero feminino, tais como: “mulher - sexo frágil”, “loira burra”, “os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor”, “mulher no volante, perigo constante”, “toda mulher sonha em casar”, “toda mulher sonha em ser mãe”, “isso não é serviço de mulher”, “mulher como objeto sexual”, “a mulher brasileira é sensual”, entre outros. De fato, a mídia tem tido um papel preponderante na disseminação dessas ideias preconceituosas, pois 79


Existe uma violência simbólica de gênero nos meios de comunicação que precisa ser tão discutida quanto a violência de gênero mais evidente, “concreta” – até porque muitas vezes uma legitima a outra. Quando uma mulher apanha dentro de casa muitas violências simbólicas anteriores já ocorreram (VIEIRA, 2012, p. 05).

É fácil encontrar nos programas de televisão, dançarinas com corpos à mostra, dançando de forma sensual, nas novelas são comuns personagens de mulheres bonitas, mas ignorantes, ou bonitas e ordinárias, e, quase sempre, as personagens femininas da TV são magras, raramente se vê personagens gordas e, quando essas existem, sempre estão relacionadas a personagens cômicos. Com efeito, boa parte dos programas de televisão e propagandas publicitárias utilizam de um padrão de beleza quase inatingível para a maioria das mulheres, com o objetivo de vender seus produtos como uma “forma milagrosa” capaz de melhorar a estética feminina e/ou proporcionar a beleza semelhante ao “padrão midiático do feminino”. Assim, [...] o corpo que é apresentado é o corpo-persona, mascarado, intuído a partir de certos elementos [...] corpo-persona é a manifestação de um corpo idealizado, que desperta desejo e paixão, um corpo esteticamente perfeito dentro dos padrões de perfeição de cada época, que emerge por meio de uma imagem erotizada (SCHAUN; SCHWARTZ, 2012, p. 11).

Essas ideias genéricas e preconcebidas referentes à mulher têm sido motivadoras de preconceitos e discriminações, pois colocam o gênero feminino sempre em uma posição secundária. Além disso, as generalizações impostas por esses “tais padrões” são sempre negativas e remetem à inferioridade da mulher em relação ao homem, pois em seus discursos estão implícitas as ideias de fraqueza, ignorância, incompetência, etc. Nesse sentido, se há um elemento paradoxal no preconceito é que ele nos impede de “ver” o que “não vemos” e “o que é que não vemos”, ou 80


seja, ele atua ocultando razões que justificam determinadas formas de inferiorizações históricas, naturalizadas por seus mecanismos. Em outras palavras, o preconceito nos impede de identificar os limites de nossa própria percepção da realidade. [...] É neste jogo entre hierarquizações e inferiorizações que mecanismos importantes como o preconceito social atuam. Eles são utilizados para a conservação e a extensão dos processos de dominação social, o que significa tomar então o preconceito como um regulador das interações entre os atores e grupos sociais, mas com uma finalidade própria: não permitir que relações subordinadas se transformem em política (PRADO; MACHADO, 2008, p. 70).

Diante dessas questões, faz-se necessário a inclusão de discussões como essas no ambiente escolar, pois é sabido que a escola é um ambiente onde culturalmente são disseminados muitos preconceitos e discriminações, a exemplo do bullying. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997) reforçam a importância de tratar essas questões como tema transversal, além do respeito à [...] diversidade de valores, crenças e comportamentos existentes e relativos à sexualidade, desde que seja garantida a dignidade do ser humano [...] reconhecer como determinações culturais as características socialmente atribuídas ao masculino e ao feminino, posicionando-se contra discriminações a elas associadas (BRASIL, 1997, p. 133).

Porquanto, o papel da escola é crucial para reduzir essa desigualdade existente entre os gêneros, pois é através da educação que se extingue o preconceito. É fundamental que projetos e iniciativas que promovam a discussão da igualdade de gênero façam parte das práticas pedagógicas, pois só o conhecimento pode libertar uma mente do jugo do preconceito ou, como disse Freire (1997, p.31): “A educação não muda o mundo. A educação só muda as pessoas. As pessoas é que mudam o mundo”. 81


uma

breve

análise

da

sequência

didática

Por entendermos a função social da literatura e por acreditarmos que “a literatura possui a função de humanizar o ser” (CÂNDIDO, 1995, p. 204), decidimos, na nossa experiência docente, elaborar uma sequência didática temática acerca dos estereótipos femininos no Modernismo e na contemporaneidade, que fosse além do propósito da escolarização da literatura, e pudesse fomentar também a discussão das relações de gênero na sala de aula, possibilitando a reflexão de como esses estereótipos femininos são reprodutores de preconceitos e discriminações. Porquanto, o ensino de literatura possibilita o trabalho crítico-reflexivo e a formação cidadã, pois: [...] em certo sentido, a leitura de textos se coloca como uma “janela para o mundo”. Por isso mesmo, é importante que essa janela fique sempre aberta, possibilitando desafios cada vez maiores para a compreensão e decisão do leitor. A leitura literária deveria ser trabalhada na escola como essa “janela para o mundo” (SILVA, 1998, p. 56).

Ademais, acreditamos que discussões como essa aproximamse do contexto social dos alunos, assim como os gêneros textuais utilizados (músicas, poemas, anúncios publicitários, etc) que estão presentes no cotidiano de nossa sociedade e foram escolhidos de modo a atrair a atenção dos alunos para aspectos abordados nos textos literários. Tanto os poemas quanto os demais gêneros textuais possuíam o mesmo eixo temático, auxiliando, dessa forma, a compreensão acerca do conteúdo literário e a participação dos alunos durante as aulas, haja vista o processo de identificação com o assunto discutido. Com efeito, Cosson (2009) defende a pertinência da pluralidade de gêneros e autores como forma de constituir, na escola, um trâmite de textos diferenciados e, assim, realçar no aluno a percepção sobre o discurso literário. Essa percepção do discurso 82


literário é resultante do processo ensino-aprendizagem e pauta-se, em parte, nos conhecimentos prévios dos estudantes. A probabilidade de alcance de um resultado satisfatório ao término do processo é ampliado, pois uma vez que os educandos se identificam com os conteúdos em sala de aula, o interesse em aprender aumenta e isso contribui para que o ensino de literatura seja mais produtivo e faça sentido para eles. Nesta proposta de intervenção, o conhecimento é construído conjuntamente, visto que o docente não é o único detentor do saber, mas mediador do conhecimento e deve buscar valorizar a interação entre si e seus alunos. A proposta elaborada foi desenvolvida em 8 encontros, num total de 16 aulas, com duração média de 40 minutos. O nosso objetivo específico foi contemplar o Modernismo no Brasil, através de análises comparativas entre os gêneros textuais (música, artigo de opinião e anúncio publicitário) que mostram implícita e/ou explicitamente aspectos que remetem aos estereótipos femininos. A seguir, fizemos uma descrição de todas as aulas, para só então fazer uma breve análise do impacto que o conjunto delas gerou: no 1º Encontro, inicialmente, distribuímos cópias das letras das músicas “Safada, Cachorra, Bandida” (Guilherme e Santiago) e “Mulher é igual a lata” (Black Style). Em seguida, executamos o áudio e pedimos para que os alunos fizessem uma leitura silenciosa das letras das músicas, enquanto estas estavam sendo reproduzidas. Propiciamos a discussão sobre a desvalorização da mulher e, em seguida, distribuímos cópias das letras das músicas “Você é Linda” (Caetano Veloso) e “Rosa” (Pixinguinha). Reproduzimos o áudio e solicitamos que os alunos fizessem uma leitura silenciosa das letras e, na sequência, propiciamos uma discussão sobre a valorização da mulher. 83


no 2º Encontro, convidamos os alunos a lerem conosco o poema do autor Vinicius de Moraes “Soneto de Devoção”. A partir da leitura dos textos, letras das músicas e do poema, fomentamos um debate crítico, com o objetivo de propor uma reflexão sobre os estereótipos femininos presentes na nossa sociedade e como esses são propagadores de preconceitos e discriminações. Também discutimos aspectos que relacionam esta temática com o Modernismo brasileiro. Distribuímos cópias do artigo de opinião “Mulher: Respeito e Dignidade” e solicitamos que os alunos fizessem uma leitura silenciosa e, em seguida, uma leitura compartilhada do artigo. Discutimos os seguintes aspectos abordados no texto: a imagem da mulher na mídia, a supervalorização da estética, entre outros assuntos relacionados à temática. no 3º Encontro, distribuímos cópias de uma seleção de imagens publicitárias que faz uso da imagem estereotipada da mulher para que fosse confrontada com os aspectos observados no artigo de opinião da aula anterior. Propiciamos uma discussão detalhada das imagens publicitárias apresentadas, correlacionando-as com os aspectos suscitados no artigo de opinião. Entregamos cópias dos poemas “Moça Linda Bem Tratada”, de Mário de Andrade e “Resumo”, de Adélia Prado. Propomos uma análise reflexiva sobre os seguintes estereótipos femininos: “mulher burra”, “objeto sexual” e o da “dona de casa”. no 4º Encontro, realizamos um questionário oral contendo as seguintes questões: Cite exemplo de uma mulher admirável para você! Por que ela é admirável para você? Se essa pessoa não apresentasse uma boa aparência, isso faria diferença para você? Em sua opinião, qual a importância da beleza física? E quais as vantagens ou desvantagens que ela proporciona? Escolha um (a) colega de classe e diga uma qualidade nele (a) que mais lhe chama a atenção. A partir dessas questões promovemos uma reflexão acerca da supervalorização da beleza 84


em nossa sociedade em detrimento das outras qualidades. Distribuímos cópias dos poemas “Receita de Mulher”, de Vinicius de Moraes e “Mulher ao Espelho”, de Cecília Meireles. Em seguida, solicitamos uma leitura silenciosa seguida de uma leitura compartilhada dos poemas. Fomentamos um debate crítico objetivando a produção de sentidos relacionados à interpretação dos poemas, de modo que os alunos pudessem perceber os aspectos implícitos que constituem cada um dos textos trabalhados, e os seus consequentes questionamentos, como a questão da cobrança da sociedade em relação à beleza feminina. no 5º Encontro, distribuímos cópias de uma seleção de imagens pictóricas de autoria de mulheres modernistas, cuja expressão representa características femininas através de uma linguagem visual. Realizamos uma análise de cada pintura ressaltando o seu contexto de produção e os respectivos traços modernistas. Distribuímos cópias de um texto sobre as principais características do Modernismo, cujos traços contemplaram aspectos relacionados às pintoras modernistas e às influências dessas no contexto sociocultural brasileiro. Solicitamos uma leitura compartilhada e, em seguida, propiciamos uma discussão sobre as características do texto não verbal, analisando a linguagem pictórica e relacionando-a ao contexto de produção. no 6º Encontro, distribuímos cópias da letra da música “Pagu”, de Rita Lee e, em seguida, reproduzimos o áudio. Solicitamos que os alunos acompanhassem a letra através de uma leitura silenciosa e depois propiciamos uma discussão sobre a mesma, na qual foram levantados os seguintes questionamentos: Vocês conhecem esta música? Do que trata a letra da música? Quem é Pagu? Já ouviram falar sobre ela? Distribuímos então cópias de um texto sobre a vida e a obra da artista modernista Patrícia Rehder Galvão (Pagu) e sua respectiva contribuição para o movimento feminista no Brasil. Com o texto, retomamos 85


a discussão sobre Pagu, enfatizando que, apesar dessa artista modernista não ser tão conhecida, tampouco contemplada nos livros didáticos, ela teve uma grande importância para o Modernismo e para o movimento feminista. Distribuímos cópias do poema de Pagu intitulado “Natureza Morta”, que ela escreveu com o pseudônimo de Solange Sohl. Solicitamos uma leitura compartilhada e propiciamos uma discussão sobre o poema, enfatizando as características existentes, como a questão da “fuga” do eu lírico - aspecto muito comum nos textos literários. no 7º Encontro, distribuímos cópias das letras das músicas “Mulher de Malandro” (Francisco Alves) e “Tigrão Gostoso” (Banda Abrakadabra). Reproduzimos o áudio das músicas citadas e solicitamos aos alunos que fosse feita uma leitura silenciosa das letras. Propiciamos uma discussão sobre a violência contra a mulher, sendo que, na primeira música, foi enfatizada a violência física e, na segunda, foi abordada a questão do estupro, que está implícita na letra. Distribuímos cópias do artigo “Violência Contra as Mulheres: A Situação” e convidamos os alunos a lerem conosco. Na sequência, promovemos uma discussão geral, confrontando os aspectos apresentados nas letras das músicas com os do artigo, com o objetivo de fomentar uma reflexão sobre a violência sofrida pela mulher. no 8º Encontro, propiciamos uma revisão geral de todo conteúdo trabalhado nos encontros anteriores, revisitando os textos utilizados nas aulas e presentes nos módulos entregues aos alunos. A partir da prática da leitura dos textos, mostramos as características e a relevância dos diversos gêneros textuais e literários trabalhados em sala de aula e que estão presentes no nosso cotidiano. Distribuímos cópias de um anúncio publicitário da cerveja “Schin” e cópias do poema “Receita de Mulher”, de Vinicius de Moraes, e então propomos aos alunos a produção de um texto que analisasse os estereótipos femininos implícitos nos dois gêneros, com base nos conhecimentos construídos ao longo 86


dos nossos encontros. Como este foi o nosso último encontro com os alunos, prometemos que corrigiríamos as produções textuais feitas por eles, e as entregaríamos à professora da turma. Aproveitamos o ensejo para nos despedirmos e solicitamos aos alunos que fosse feita uma avaliação sobre os nossos encontros. Nas discussões em sala, percebemos o quanto os estereótipos acerca da mulher estavam arraigados na fala dos alunos. Os mesmos ainda estavam com uma visão diminuída sobre o papel da mulher na sociedade, trazendo em seus discursos a reprodução do patriarcalismo, ainda predominante em nossa sociedade, o qual designa a mulher para o papel de filha, esposa e mãe mantenedora do lar. Diante disso, sentimos a necessidade de abrir um diálogo acerca dessas construções culturais e históricas sobre a mulher e passamos a apresentar para os alunos o que era ser homem e mulher de acordo com os estudos acerca dessa temática. Sendo assim: Pretende-se, dessa forma, recolocar o debate no campo do social, pois é nele que se constroem e se reproduzem as relações (desiguais) entre os sujeitos. As justificativas para as desigualdades precisariam ser buscadas não nas diferenças biológicas (se é que mesmo essas podem ser compreendidas fora de sua constituição social), mas sim nos arranjos sociais, na história, nas condições de acesso aos recursos da sociedade, nas formas de representação (LOURO, 1997, p. 26).

Percebemos que a discussão sobre as relações de gênero é pouco vista nas aulas de Literatura, sendo, por vezes, apenas mencionada em algumas datas comemorativas, a exemplo do dia internacional da mulher. O que nos fez questionar a falta de interdisciplinaridade no ensino de Língua Portuguesa, uma disciplina que pode fazer essa relação entre os textos literários 87


que são trabalhados em sala de aula com a discussão para outras temáticas, como o caso da condição da mulher na sociedade atual, sem perder o foco no letramento literário. É importante ressaltar que ao longo dos anos, as mulheres têm conseguido, através de muita luta, garantir os seus direitos na sociedade, e a educação tem sido um dos meios para isso. Tentamos enveredar a discussão para a importância que a escola tem na formação desses alunos, formando cidadãos críticos, conscientes e autônomos na realidade em que vivem. A escola é o lugar por excelência onde ocorre o processo de ensinoaprendizagem, devendo tratar das mais diferentes questões sociais, incluindo as questões das relações de gênero. Assim, saímos do campo somente da decodificação enquanto leitores e passamos a ter uma visão crítica acerca dos fatos históricos, culturais e sociais expostos nas mais diferentes disciplinas. Dessa forma, entra novamente em cena o papel do professor, ao qual cabe ter uma formação baseada em uma inclusão de classes, gênero, etnia, etc. Por conseguinte, compreendemos que o ensino de literatura é um poderoso instrumento de educação e formação do aluno, e que não pode ficar engessado a metodologias mecanicistas e historicistas que pautam sua prática pedagógica, tão somente, em leitura de textos fragmentados de livros didáticos e estudos das escolas literárias, pois o que ocorre [...] nos livros didáticos é uma ênfase muito grande na leitura informativa. Mesmo quando o aluno é estimulado a perceber as marcas discursivas do texto, o excesso de perguntas e exercícios que forçam uma interpretação predeterminada retiram do leitor a oportunidade de “sentir” e “compreender” o texto (FERNANDES, 2001, p. 173).

Ademais, os livros didáticos não estimulam o aluno para a leitura literária, uma vez que geralmente privilegiam as obras 88


canônicas em detrimento dos gêneros literários e dos autores contemporâneos. Essa realidade do ensino literário, norteado por conteúdos exclusivos do livro didático, não tem contribuído para a formação do aluno enquanto leitor, tampouco para que esse reconheça o caráter social da literatura. Desse modo, é necessário que o professor adote estratégias de ensino que estimulem o gosto pela leitura, visto que a leitura não pode ser dissociada do ensino literário, mas também que as estratégias de ensino possam dialogar com outros gêneros e artes, pois A convivência com a música, a pintura, a fotografia, o cinema, com outras formas de utilização do som e com a imagem, assim como a convivência com as linguagens artificiais poderiam nos apontar para uma inserção no universo simbólico que não é a que temos estabelecidas na escola, essas linguagens todas não são alternativas. Elas se articulam. E é essa articulação que deveria ser explorada no ensino da leitura, quando temos como objetivo trabalhar a capacidade de compreensão do aluno (ORLANDI, 1999, p. 40).

Assim, a promoção do diálogo da literatura com outros gêneros textuais possibilita uma melhor compreensão do mundo, através do que Cândido (1972) chama de função “humanizadora” da literatura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Através da intervenção propiciada pelo estágio supervisionado IV no ensino de literatura, nível médio da educação básica, acreditamos que conseguimos cumprir com as recomendações dos documentos oficiais OCEM e PCN, destacadas por nós ao longo deste texto. Mesmo as eventuais falhas oriundas da inexperiência do exercício docente contribuíram para nossa formação, pois

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(...) ninguém começa a ser educador numa certa terçafeira às quatro da tarde. Ninguém nasce educador ou marcado para ser educador. A gente se faz educador, a gente se forma, como educador, permanentemente, na prática e na reflexão sobre a prática. (FREIRE, 1991, p. 58).

Em conclusão, percebemos que as melhores orientações teóricometodológicas para o ensino de literatura são aquelas que aproximam o conteúdo literário da realidade sociocultural do aluno. Essas perspectivas juntas formam o melhor meio de se chegar a um trabalho docente eficaz, posto que propiciam a formação de leitores conscientes da sua realidade devido aos estudos com textos literários abordarem temáticas e gêneros textuais que fazem parte do cotidiano do aluno, tornando assim o processo de ensino-aprendizagem mais dinâmico e significativo. Outrossim, salientamos que o trabalho com a temática dos estereótipos femininos foi importante, pois essa propiciou a discussão sobre a questão de gênero no ambiente escolar, que historicamente é um ambiente onde se dissemina muitos preconceitos e discriminações (bullying). Acreditamos que ainda há muito a ser feito em relação à questão da identidade de gênero no âmbito escolar, sabemos que são necessárias políticas públicas na educação voltadas para essa questão para que melhoras efetivas possam acontecer. Enquanto isso não acontece, pesquisas e trabalhos docentes que proporcionem discussões são muito importantes e contribuem para a construção de uma sociedade mais consciente e menos preconceituosa.

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CAPÍTULO 06 Que nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância. Simone de Beauvoir

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“BELA, RECATADA E DO LAR”

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As exigências sociais sobre a mulher perpassam todas as áreas da sua vida. No cenário brasileiro de luta contra o machismo e conquistas legais, presenciamos ainda o viés patriarcal e conservador tanto no cotidiano profissional, familiar e social da mulher, como nos meios de comunicação e redes sociais. Faremos uma análise acerca da matéria veiculada pela Revista Veja em 18 de abril de 2016, na qual se descreve a primeira dama do Brasil, Marcela Temer, como “Bela, Recatada e do Lar”, sugerindo um modelo ideal de mulher. Nossa análise irá percorrer desde a história de lutas e conquistas sociais da mulher em nossa sociedade, até as reações expressadas nas redes sociais, jornais e revistas virtuais com relação a essa matéria. uma breve contextualização acerca da história da mulher A expressão de Simone de Beauvoir “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher,” indica que o modo de ser da mulher é resultado de uma construção, que seu comportamento e preferências são ensinados conforme normas e valores culturais. Instituições como família, escola, igreja, fazem o papel de reforçar cotidianamente este comportamento “ideal”, somos controladas pelos mecanismos sociais que influenciam no nosso vestir, no nosso andar e a maneira de se relacionar com o outro. O papel social imposto à mulher sempre foi o de procriadora, cuidadora e “protetora” da família, proteção esta, feita por meio da moral e do “bom comportamento”. A submissão ao marido, e o amor incondicional aos filhos seriam motivos suficientes para que o único ambiente ocupado por elas fosse o lar, Gildenha Alencar Medeiros, Assistente Social pela UEPB, Especialista em Políticas Públicas pela FURNE. 1

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impedindo assim por muito tempo que as mulheres ocupassem uma posição profissional de destaque ou uma vida pública. Outrossim, mesmo as mulheres que ao longo dos séculos tenham se destacado nas artes, ciências ou política, suas histórias não são contadas, ou muito dificilmente encontradas nos registros de época, deixando assim que a sociedade acredite que a história da humanidade tenha sido trilhada apenas pelos homens, tidos como heróis. No Brasil Colônia, as mulheres eram tidas como propriedade, primeiro dos pais que arranjavam seus casamentos como se fosse uma transação comercial, depois do marido que esperava que ela fosse boa dona de casa e boa parideira; era dispensável o conhecimento, a aparência também ficaria em segundo plano. As mulheres que não gerassem filhos podiam ser devolvidas aos seus pais. Em geral, as mulheres dependiam do pai ou do marido, suas ações se restringiam ao âmbito da casa e os casamentos eram arranjados. Quando viúvas, seus bens ficavam aos cuidados do parente mais próximo, que também podia tomá-las como esposas. Nessa época, assim como nos dias atuais, a igreja agia como reguladora do comportamento das mulheres. A conduta da mulher era seu passaporte para ser aceita, ou não, na sociedade; instituiuse aí a sociedade patriarcal. É importante ressaltar que o único lugar que as mulheres podiam falar dos seus sonhos e anseios, era nos confessionários, onde tudo se resolveria com meia dúzia de rezas. Durante a segunda fase da Revolução Industrial no século XIX, se registrou um número significativo de mulheres empregadas, no mesmo momento em que se consolidavam as ideologias socialistas, de modo que o feminismo se fortificou como aliado do movimento operário. E foi neste contexto que se realizou a 96


primeira convenção dos direitos da mulher em 1848, no Estado de Nova York, Estados Unidos. Foi na cidade de Nova York que, anos mais tarde, se deu o movimento grevista que resultou em um incêndio vitimando mulheres operárias, fato que teria inspirado a homenagem às mulheres no dia “8 de março”.2 Uma conquista importante, sem dúvida, foi o direito ao voto que se instituiu aqui no Brasil em 1932, mas neste primeiro momento apenas podiam votar as mulheres casadas com autorização dos maridos, ou solteiras e viúvas que tivessem renda própria. Somente em 1934 essas restrições ao voto das mulheres foram extintas. A conquista do voto também representou a conquista da participação na vida pública, haja vista que neste momento elas também podiam ser votadas. Outro marco na vida das mulheres foi a criação da pílula anticoncepcional, lançada nos Estados Unidos em 1960. Os pesquisadores usaram o pretexto de criar um medicamento que aliviasse os sintomas da menstruação, já que o uso de anticonceptivos era ilegal na época. Apesar de muita relutância, tanto da igreja como da sociedade, a pílula foi legalizada. A polêmica em torno da pílula anticoncepcional deu-se porque a mesma significou uma reviravolta no conceito de sexualidade, pois o casal podia passar a manter relações sexuais apenas por prazer, numa época em que o sexo era tratado como meio de reprodução, especialmente para as mulheres; mas principalmente porque o uso do anticoncepcional está diretamente ligado à sexualidade da mulher “E diferentemente do que muitos pensam, a maternidade é uma escolha e não uma consequência de ser/nascer mulher”3. Existem divergências sobre o evento histórico que teria inspirado a criação do “Dia da Mulher” (8 de março). 3 http://blogueirasfeministas.com/2013/04/o-que-o-seu-anticoncepcional-tem-a-vercom-o-meu-feminismo/. 2

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A pílula anticoncepcional está muito além de ser um mero avanço científico, ela representa a conquista da mulher sobre seu corpo, sobre a maternidade, sobre a família que ela deseja constituir, e vai de encontro às imposições do patriarcado porque ela influencia diretamente na liberdade sexual da mulher. Sendo assim, a sexualidade é objeto de vigilância e controle social, é algo normatizado assim como o gênero, que ao longo da história tem sido pretexto para o controle e a repressão. Outra conquista importante foi o divórcio, aprovado oficialmente no Brasil em 1977, que foi objeto de muitas polêmicas principalmente por conta das influências religiosas no âmbito do Estado. A extinção do casamento também permitia que a pessoa se casasse novamente, e isso foi muito positivo, haja vista que as mulheres viviam atreladas a um matrimônio fracassado, muito embora existisse um preconceito notório em relação às mulheres divorciadas. Ao longo da história, fica claro o tratamento diferenciado da sociedade para com as mulheres, a repressão sexual e também profissional, a diferenciação no que tange a liberdade de viver e o direito de fazer o que se tem vontade. As cobranças sociais englobam todas as áreas: reprodutiva, profissional, sexual, e até a aparência das mulheres é imposta socialmente numa espécie de “padrão estético”. Segundo Mary Del Priore (2004) a segunda metade do século XIX, foi marcada pela Literatura Romântica contribuindo para que se criasse também uma imagem romântica associada às mulheres. O interessante é que não faltavam receitas de beleza para dar realidade a tais representações. “Uma cosmética a base de óleos de cacau, sangue de galinha, urina de criança ou excrementos agilizavam a obtenção da palidez cantada em prosa e verso” (Priore, 2004, p.260). 98


No final do século XIX começou um movimento de inserção de exercícios físicos no cotidiano feminino. O estímulo à atividade física estava relacionado à saúde e também as vantagens estéticas trazidas pelos exercícios, mas este novo estilo de vida também sofreu críticas. Houve aqueles que taxaram a novidade de imoral. Perseguia-se tudo que fosse de encontro com a imagem da mulher como uma mãe dedicada ao lar. (Priore, 2004) Com a inserção da mulher no mundo dos exercícios físicos no final do século, deu-se início a busca por corpos esbeltos. Aos poucos os espartilhos eram deixados de lado e foram substituídos pela musculação e dietas, instrumentos usados na busca de corpos longilíneos. Este movimento que se iniciou na Europa promoveu uma mudança na norma estética da mulher. Seguindo o padrão capitalista, o corpo passou a ter função de consumo, surgindo assim produtos para cada área do corpo, que aos poucos ia se mostrando e tendo obrigação de parecer perfeito. O binômio da época era saúde-beleza, e nestes moldes a mulher continuava desempenhando o seu papel de dependência dos produtos de embelezamento, e do modo de vida difundido pela publicidade. Tudo isso causava nelas, assim como tem causado até hoje, a ideia de que só seriam bonitas se seguissem os padrões impostos pela sociedade bem como pelo capitalismo. Diante do exposto, o que se pode concluir é que os desafios enfrentados pelas mulheres no decorrer da história foram muitos. Cada direito conquistado sempre enfrenta novas lutas por sua legitimação. O papel da mulher até os dias atuais gira em torno da submissão e do servir ao homem. As liberdades sexuais desagradam a sociedade patriarcal, as conquistas profissionais são mal remuneradas, o direito sobre seu próprio corpo é encarado como promiscuidade. Em um mundo de modernidade a única coisa que não muda é o papel da mulher, as exigências sobre o feminino 99


de serem “donas” de casa, de serem submissas aos maridos e serem lindas de acordo com o padrão exigido em sua época.4 Para ser completa a cobrança pelo “modelo” de mulher, a mídia, a publicidade, as revistas estão cheias de manuais para ensinar as mulheres a se encaixarem nos moldes exigidos. Mary Del Priore enfatiza que: As mulheres continuam submissas! De nada adiantou a revolução sexual, a queima de sutiens, a difusão da pílula. É como se quiséssemos continuar como as eternas representantes do “sexo frágil”, a quem tudo se impõe. Trocamos a dominação de pais, maridos e patrões por outra, invisível e, por isso mesmo, mais perigosa. A dominação da mídia e da publicidade. É ruim, e até pior, pois diariamente enfrentamos a tarefa de ter que ser eternamente jovens, belas e sadias. Não há prisão mais violenta do que aquela que não nos permite mudar (Priore, 2004, p.265).

“belas, recatadas e do lar” Em 18 de Abril de 2016 a revista Veja.com5 veiculou uma matéria sobre a então Vice-Primeira Dama Marcela Temer, afirmando que “Marcela Temer é uma mulher de sorte” (Veja. com, 2016) porque seu marido, o então Vice-Presidente Michel Temer com quem é casada há treze anos, continua a lhe dar provas de paixão, oferecendo-lhe jantares caros. A matéria segue descrevendo os ambientes que o mesmo leva a esposa, a idade que Marcela começou a se relacionar com seu marido, 42 anos mais velho que ela, e fala do filho do casal.

Pelo que podemos perceber, a beleza está mais ligada ao padrão que é exigido socialmente em cada época da história do que com uma aparência feliz e saudável. 5 Nos referimos aqui a versão virtual da Revista Veja. 4

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A revista usa termos muito polidos para descrever o relacionamento dos dois, deixa claro o cuidado que o Vice- Presidente tem em proteger sua esposa, fala do curto currículo profissional de Marcela, mas também fala do seu currículo em concursos de beleza, descreve o dia a dia dela como “do lar” e seu papel de mãe dedicada. A matéria reproduz as falas da irmã e da tia de Marcela, mas também ouviram seu cabeleireiro que a descreve como educadíssima e muito simples, e a irmã de Marcela que a descreve como recatada. Para a revista, Marcela é “o braço digital” de Michel Temer, acompanha as redes sociais e o mantém informado sobre as temperaturas, fala-se ainda que eles passam a semana longe um do outro e que ele faz poemas para ela. Ao final da matéria podemos ler que “Michel é um homem de sorte” (Veja.com, 2016). Não há dúvida de que a revista Veja.com colocou a mulher do então Vice -Presidente como um modelo, sendo “bela, recatada e do Lar”. É notório o viés político da matéria, tendo em vista que a jovem é o oposto da então Presidenta Dilma Rousseff, que há tempos vinha sendo vítima de comentários e campanhas machistas, misóginas e preconceituosas. Outro motivo claro desta comparação é o contexto de abertura do processo de impeachment que tiraria o mandato da Presidenta, deixando este lugar ao Vice Michel Temer que, posteriormente, veio assumir Presidência do país. Toda polêmica girou em torno do modelo social imposto, quando a matéria, apesar de descrevê-la como uma mulher a sombra do seu marido, afirma que Marcela é uma mulher de sorte. Ao descrevê-la como “bela, recatada e do lar”, a revista mostra seu cunho machista e deixa visível que para eles este é o modelo ideal de mulher. Em torno de tudo isso se gerou uma polêmica em nível nacional e também internacional. O resultado foi um grande protesto virtual sobre o estereótipo “bela, recatada e do lar”.

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O jornal virtual ElPaís noticiou o caso com o título: “A fúria cômica das redes contra o bela, recatada e do lar”. O mesmo diz que a República Brasileira está em chamas e o motivo está longe de ser a crise política. O jornal fala da matéria da Veja e da enxurrada de memes6 em que as mulheres interpretam, das mais variadas maneiras, serem belas, recatadas e do lar. Diz que “tudo parece ser uma resposta ao bom comportamento atribuído a Marcela” (ElPaís, 2016). A revista virtual Donna pediu a opinião de algumas mulheres sobre a matéria da revista Veja. Donna perguntou sobre o porquê da frase “bela, recatada e do lar” ter gerado tanta polêmica nas redes sociais. A psicanalista Diana Corso disse que as reações ao que ela chama de “trapalhada mal intencionada” é uma grande brincadeira, que é uma reação feminista das mulheres que acabam fazendo bullying com a Marcela. Diana afirma também que não queremos ser recatadas, que não queremos ser tomadas como objeto de consumo muito menos ficarmos prisioneiras do nosso lar sem poder ter vida pública. Queremos ter um lar, mas não ser do lar. Queremos ser recatadas quando bem entendermos e assim desejarmos. E caso não sejamos recatadas, queremos o direito de não sermos estupradas. Queremos ser belas, sim, mas do nosso jeito, não como uma boneca inflável (Donna, 2016).

Estela Rocha, fundadora do projeto “Empoderamento da Mulher”, coloca que dentro da atual conjuntura social, nós, mulheres, não estamos mais dispostas a aceitar modelos impostos socialmente. Ela diz que:

A expressão “memes” é usada para caracterizar ideias, conceitos, notícias, “brincadeiras”, que se reproduzem e se difundem rapidamente pela internet (com destaque para as redes sociais). 6

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Quando postamos essa hashtag, não estamos criticando a Marcela ou a mulher que quer ser dona do lar, o que criticamos é o padrão que eles querem que seja estabelecido como o de uma mulher perfeita. A gente consegue hoje, dentro da internet, ter uma liberdade, mas a mídia tradicional supervaloriza coisas relacionadas à mulher de 1950 (Donna, 2016).

A publicação da Carta Capital sobre a matéria da Veja, afirma que é clara a intenção da revista de fazer oposição ao que Dilma representa, e que “a intenção é enaltecer Marcela como a mulher que todas deveriam ser, à sombra, nunca à frente” (Carta Capital, 2016), como se dissessem que mulher boa é a que está por trás de um grande homem. A Carta Capital fala da misoginia da qual Dilma Rousseff foi alvo, e aponta que o mais nocivo nesta matéria é a imposição de um modelo a ser seguido, da mulher submissa e sempre a sombra do marido, desprezando assim a mulher como ser humano capaz de liderar sem que isso ponha em dúvida a sua moral. Afirma também que tal matéria “lembra as revistas “femininas” da década de 50, que criavam estereótipos da dona de casa feliz, mas sempre arrumada” (Carta Capital, 2016). Mas o lado bom, segundo a revista Carta Capital, é que tudo isso gerou uma campanha virtual espontânea, durante a qual as mulheres postaram fotos de situações que a sociedade não julga ser adequadas para uma mulher “bela, recatada e do lar”. A BBC.com escreve sobre o assunto com o título: “Crítica a ‘bela, recatada e do lar’ é intolerante com Brasil ‘invisível’, diz historiadora”. A BBC entrevistou a historiadora Mary Del Priore, que diz serem as críticas à matéria da Veja intolerantes com uma parcela significativa da população. “Mary Del Priore diz que Marcela Temer representa parte de um Brasil que muitos preferem deixar invisível” (BBC.com, 2016). 103


Perguntada pela BBC se este modelo colocado pela revista Veja. com reflete o modelo ideal de mulher no Brasil ou se reflete o machismo presente na sociedade, a historiadora afirma que até 1930 a mulher devia ser recatada e do lar e que a beleza veio a ser determinante apenas nos séculos XX e XXI. Este modelo sofreu rupturas especialmente na década de 70 com a chegada da pílula anticoncepcional e com a inserção da mulher no mercado de trabalho, mas no interior do país tais adjetivos ainda são características importantes para a escolha do cônjuge. Perguntada sobre as reações que a matéria da Veja provocou nas redes sociais, a historiadora disse que as redes fazem parte do nosso cotidiano e ressalta que a mulher brasileira não é uma, ela é complexa com formações diversas. A BBC então questionou se os adjetivos “bela, recatada e do lar” representam a mulher brasileira: Del Priore acredita que sim, que essas mulheres não estão nas redes sociais, não estão vinculadas ao movimento feminista, e que isso é parte do nosso país. Ela afirma ainda que existem, sim, mulheres que desejam ser “do lar”, que desejam orbitar em volta do marido, e que isso deve ser respeitado. “As mulheres gostam mesmo de representar todos os papéis possíveis quando elas têm oportunidade” (BBC.com, 2016). A historiadora observa como intolerante a crítica às mulheres que escolheram seguir este caminho. Perguntada sobre sua reação pessoal em relação à matéria veiculada pela Veja, a historiadora afirma que, em um país democrático, os meios de comunicação representam grupos diversos, “o que eu acho importante é a diversidade” (BBC.com, 2016).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS O fato é que a tríade “bela, recatada e do lar” representa um modelo de mulher que ainda existe, mas que também já foi superado por grande parte delas. O que acreditamos é que o lugar da mulher é onde ele deseja estar. Matérias como a da Veja tem seu público alvo, mas as reações que foram geradas foram importantes para que fique claro que cabe a mulher decidir o papel que quer desempenhar na sociedade. Além disso, uma consciência social tem que ser criada para que todos respeitem esse posicionamento da mulher, e isso não acontece da noite para o dia. Valores impostos socialmente, jamais devem prevalecer em detrimento das liberdades individuais do ser humano. A luta contra o machismo é uma luta diária, seja ela motivada pelo feminismo, seja ela motiva por um interesse pessoal de libertação. O fato é que não se deve concordar com distinções que segregam ou limitam, sejam por sexo, raça ou crença. A liberdade deve ser sempre a essência das ações humanas. Se temos algum direito ou alguma liberdade foi devido a luta daquelas que vieram antes de nós. O feminismo é uma bandeira de luta que une as mulheres na busca por igualdade de direitos sem distinção de gênero. Embora o movimento feminista tenha muitas nuances, é uma alternativa de união de forças. Segundo Andrade e Santos (2016), o movimento feminista “Travestido por múltiplas identidades, é um movimento de muitos nomes e tantas lutas, de vozes polissêmicas, por vezes dissonantes, mas em geral, de mãos unidas e mentes abertas”.

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REFERÊNCIAS ANDRADE, Andreza de O.; SANTOS, Luana. P. M. Feminismos, gênero e seus (des)caminhos: nuances de uma epistemologia sócio histórica. In: Andreza de Oliveira Andrade; Josiane Maria de Castro Ribeiro; Maria Ilidiana Diniz; Fernanda Marques de Queiroz; Luana Paulo Moreira Santos. (Org.). Feminismo, gênero e sexualidade: diálogos contemporâneos. 1ed. Mosoró/RN: Edições Uern, 2016. LOURO, Guacira L.; NECKEL, Jane Felipe; GOEELNER, Silvana Vilodre (Orgs.). Corpo, Gênero e Sexualidade. Um debate contemporâneo na educação. Petrópolis/RJ: Vozes, 2004. PRIORI, Mary Del. (org.). BASSANEZI, Carla (coord.). História das mulheres no Brasil. 7ª ED. Contexto: São Paulo/SP, 2004. STREY, Marlene N. CABEDA, Sonia T. Lisboa. (Orgs.) Corpos e subjetividades em exercício interdisciplinar. Porto Alegre/RS: EDIPUCRS, 2004. https://veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-edo-lar/ .Publicada: 16 de abril de 2016 http://jornalggn.com.br/noticia/a-conquista-do-voto-femininoem-1932 .Publicada: 26 de fevereiro de 2014 https://ibdfam.jusbrasil.com.br/noticias/2273698/a-trajetoriado-divorcio-no-brasil-a-consolidacao-do-estado-democraticode-direito .Acesso: 16 de fevereiro de 2017 http://www.dw.com/pt-br/1960-primeira-p%C3%ADlulaanticoncepcional-chega-ao-mercado/a-611248 Acesso: 17 de fevereiro de 2017 106


http://blogueirasfeministas.com/2013/04/o-que-o-seuanticoncepcional-tem-a-ver-com-o-meu-feminismo/ Publicada: 11 de abril de 2013 http://historianovest.blogspot.com.br/2011/02/o-papel-damulher-na-sociedade.html Publicada: 12 de fevereiro de 2011 http://www.vermelho.org.br/noticia/14032-1 Publicada: 14 de marรงo de 2007 http://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/20/ politica/1461175399_885009.html .Publicada: 22 de abril de 2016 https://www.cartacapital.com.br/politica/bela-recatada-e-dolar-materia-da-veja-e-tao-1792 .Publicada: 20 de abril de 2016 http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/04/160418_ marydelpriore_entrevista_marcella_temer_np Publicada: 21 de abril de 2016 http://revistadonna.clicrbs.com.br/comportamento-2/belarecatada-e-do-lar-por-que-a-expressao-gerou-tanta-polemicanas-redes-sociais/ .Publicada: 20 de abril de 2016

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Compõem este livro textos produzidos por servidores públicos do município de Lagoa Seca/Paraíba, sócios do Sindicato dos Trabalhadores Públicos Municipais do Agreste da Borborema – SINTAB. Nosso sindicato tem como objetivo a luta pela consolidação dos direitos trabalhistas e a ampliação destes, mas também atua no fomento a educação e cultura, e na valorização dos trabalhadores de um modo geral. Educação, gênero, política, são alguns dos temas aqui abordados. Com a presente publicação, fruto de um edital público para seleção de textos, colocamos a disposição do público em geral, novas perspectivas sobre esses assuntos.


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