Número 34/II Série - 2017
ORIENTE OCIDENTE
Índice 03 | Editorial Jorge H. Rangel 04 | Macau, 30 anos depois Fernando Lima 08 | Espaço geopolítico da Lusofonia. Macau – área estratégica do relacionamento Sino-Luso-Brasileiro Severino Cabral, D.Sc. 14 | Notas sobre três referências culturais da comunidade macaense Alexandra Sofia Rangel 20 | Macau in the Goa Archives: the books of Legados da Procuratura and Provisões Maria de Lourdes Bravo da Costa Rodrigues 28 | De Macau para a China: medicina ocidental António Leite da Costa 34 | Camilo Pessanha e João de Araújo Correia António Aresta 38 | A Nova Rota da Seda Marítima do Século XXI – os Países de Língua Portuguesa na Cadeia de Valor Global da China Fernanda Ilhéu
74 | Reflexão didática sobre uma análise das Gramáticas de PLE Ao Sio Heng Sónia 83 | O espaço da extensão na formação inicial do professor de línguas: o Fórum de Linguística Aplicada e Ensino e Aprendizagem de Línguas como um mediador entre a pesquisa e a formação Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin 88 | Os mata-biru, lusos-descendentes de Samatra – o tsunami da lusa amnésia Joaquim Magalhães de Castro 97 | Criação do Centro Científico e Cultural de Macau Alexandra Costa Gomes
44 | A Nova Rota da Seda: a Convergência da Terra e do Mar na (Re)emergência da China Paulo Duarte
104 | Estranha embarcação Maria Helena do Carmo
56 | China na Grande Guerra – a emancipação da pequena potência Luís Cunha
110 | Os nossos parceiros Gabinete Português de Leitura: Símbolo do Universo Português no Recife Maria de Lourdes Hortas
62 | Portugal – Oriente: momentos de intercâmbio comercial e cultural António de Abreu Freire
112 | IIM – 2016: principais actividades 122 | Edições IIM – 2016
Ficha técnica
ORIENTEOCIDENTE – N.º 34/II Série - 2017 (publicação anual) Director: Jorge H. Rangel | Coordenação: José Lobo do Amaral | Editor e proprietário: Instituto Internacional de Macau Sede: Rua de Berlim, Edifício Magnificent Court, 240, 2º (NAPE) – Macau – Tel: (+853) 2875 1727 / 2875 1767 | Fax: (+853) 2875 1797 Site: www.iimacau.org.mo | Email: iim@iimacau.org.mo | Delegação em Lisboa: Palácio da Independência, Largo de São Domingos, 11, 1150-320 Lisboa | Tel: (+351) 21 324 1020 | Fax: (+351) 21 324 1029 | E-mail: iimlisboa@iim.com.pt | Tiragem deste número: 1.000 exemplares | Ilustrações: Lio Man Cheong - verso de capa: Ruínas de São Paulo; verso de contracapa: Largo do Lilau | Design e produção gráfica: Maisimagem II | Impressão e acabamento: ACD Print | Depósito legal: 377103/14 - Os números anteriores ao n.º 31 foram produzidos e distribuídos na RAEM.
O Acordo Ortográfico é usado ou não pelos Autores segundo o seu próprio critério. Com o apoio da
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Editorial
Ver uma revista de qualidade reconhecida fazer o seu percurso com estabilidade e continuidade, em correspondência plena com os objectivos que presidiram à sua criação, é sempre motivo de júbilo para quem assumiu a responsabilidade de garantir a sua produção, especialmente quando se definiu, igualmente, como propósito prioritário ir ao encontro das expectativas dos leitores e das instituições com as quais foram estabelecidas relações estreitas de cooperação. Mesmo sem uma estrutura de apoio considerada indispensável, é graças à competência e persistência de quem o coordena – o vice-presidente do IIM, José Lobo do Amaral – e à participação constantemente enriquecida de qualificados colaboradores, antigos e novos, que vamos alargando o âmbito das matérias tratadas, com a legítima ambição de conseguir que cada novo número seja melhor e mais completo do que o anterior. O índice deste número 34 é revelador da diversidade e profundidade
dos temas escolhidos. Para além de artigos de conteúdo histórico relacionado com Macau e a presença de Portugal no Oriente, e também com a China, e outros nos domínios da cultura, da literatura, da linguística e da sociologia, dedicamos uma atenção visível à apreciação do gigantesco projecto, inspirado nas tradicionais rotas da seda, de afirmação comercial, cultural e político que as actividades chinesas, ao mais alto nível, abraçaram e a que, eufemisticamente, se chamou iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” (“One Belt, One Road” initiative ou, simplesmente, “Belt and Road Initiative”, em inglês, como consta em documentos amplamente usados na sua universal promoção). Neste contexto, voltamos a enfatizar o papel de Macau como área estratégica do relacionamento sino-luso-brasileiro e plataforma de cooperação com os países lusófonos. Como habitualmente, também damos espaço à divulgação de um dos nossos parceiros privilegiados, cabendo agora a vez ao Gabinete Português de Leitura do Recife (Pernambuco,
Brasil), que mantém com o IIM um eficaz e dinâmico relacionamento, que permitiu já a realização conjunta de importantes iniciativas úteis a Macau. O enfoque nos dois números anteriores foi colocado no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, instituição emblemática da comunidade portuguesa do Brasil, e no Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa. Fazemos também uma resenha das actividades mais relevantes do IIM e uma referência às nossas edições, continuando o IIM a ser a entidade que mais livros publica em Macau, em português, fazendo-o também em chinês e inglês, em resultado dos trabalhos produzidos no âmbito dos nossos centros de estudos e investigação ou através de parcerias firmadas com outras instituições. Macau, Janeiro de 2017
Jorge A. H. Rangel Presidente do Instituto Internacional de Macau
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Macau, 30 anos depois Fernando Lima Jornalista Autor de “Macau – As Duas Transições”, Volume I e II; autor e produtor da série televisiva de seis episódios “Macau Entre Dois Mundos”, transmitida em 1999 na RTP e TDM Em 2017, cumpre-se o 30º aniversário da assinatura da Declaração Conjunta entre os Governos de Portugal e da República Popular da China, em cerimónia realizada em Pequim no dia 13 de Abril de 1987. Trinta anos depois, não se concretizaram os receios que as comunidades locais de Macau manifestaram quanto ao seu futuro. Aquele dia marcava o início da contagem decrescente até 9 de Dezembro de 1999, data estabelecida para o regresso do território à China. No acordo ficara prati-
camente tudo bem definido quanto ao destino de Macau, mas a situação nova que se criara a partir daí precisava de tempo para que a confiança se sobrepusesse às muitas incógnitas do início do processo. O tempo do período de transição foi decisivo para demonstrar que os dois países estavam seriamente empenhados num processo construtivo, do qual resultasse as melhores soluções para Macau e as suas gentes. Na verdade, desde a primeira hora,
tornou-se claro, pelas afirmações dos seus altos responsáveis, que Portugal e a China tudo fariam, através dos seus negociadores, para manter um nível de entendimento que gerasse um espírito positivo em todos aqueles chamados a colaborar nas tarefas que a transição requeria. As negociações estiveram a cargo das diplomacias de Lisboa e Pequim, mas tal não significou que Macau não desse uma contribuição muito importante para os objectivos formulados na Declaração Conjunta.
Deng Xiaoping recebe o Presidente da República Portuguesa, António Ramalho Eanes, em 21 de Maio de 1983.
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Macau, 30 anos depois
Tudo isto já parece passado longínquo, quando hoje, em Macau, se aposta intensamente no futuro. Mas, chegar ao presente, foi possível, porque cedo se deram os passos necessários para as mudanças que a Revolução do 25 de Abril de 1974 impulsionou. Em primeiro lugar, as características especiais do território fizeram com que lhe fosse dado tratamento especial. Se constituía um ponto de honra das novas autoridades portuguesas em Lisboa corresponder, no programa de descolonização, à vontade dos povos que aspiravam à independência, o mesmo princípio deveria ser aplicado em Macau. Assim, não se poderia deixar de ter em conta os desejos da larga comunidade chinesa, cujos líderes deviam obediência à República Popular da China. Um desses desejos, sem dúvida o principal, era que as mudanças a ocorrerem no sistema político-administrativo do território, de forma a libertar-se da dependência administrativa de Lisboa, não pusessem em causa a estabilidade de Macau. Estava a ser atribulado, por lutas sangrentas, o processo de descolonização e em Macau não se era indiferente à conflitualidade em Angola, Moçambique e Timor-Leste. Observadora silenciosa mas atenta, a China não queria, certamente, à sua porta perturbações que a forçassem a uma intervenção extemporânea. Importava, igualmente, preservar Hong Kong a qualquer efeito de contágio. Nessa altura, Pequim teria provavelmente um calendário para resolver a situação dos dois territórios, mas ninguém sabia. “The time is not ripe”, como se ouvia a chineses influentes. Bom senso e pragmatismo O bom senso e o pragmatismo imperaram em Macau na construção
Momento histórico: os embaixadores de Portugal e da China, respectivamente António Coimbra Martins e Han Kehua, assinam em Paris, em 8 de Fevereiro de 1979, o acordo de estabelecimento de relações diplomáticas entre os dois países.
de uma nova realidade. Coube ao novo Governador, José Eduardo Martinho Garcia Leandro, conduzir o processo da mudança. O Estatuto Orgânico de Macau, elaborado com o cuidado de manter o bom relacionamento entre as duas comunidades, reflectia, assim, o entendimento que garantia a estabilidade desejada. Na nova Assembleia Legislativa, a composição procurava atender aos interesses e expectativas da sociedade macaense, num quadro de mudança política estimulado pela revolução em Lisboa. Uma parte da sua constituição era assegurada por eleitos por sufrágio universal que representavam as duas associações cívicas que se formaram a seguir ao 25 de Abril; outra, pelos escolhidos por eleição indirecta pelas principais associações económicas do território; e, ainda, uma terceira parte por representantes designados pelo Governador. Concretizada a mudança política, era preciso cuidar das necessidades bá-
sicas de Macau. Estava quase tudo por fazer em todas as áreas da vida do território para vencer longos anos de marasmo, uma vez que o regime deposto não considerava Macau uma prioridade na sua política ultramarina. Dotá-lo de infraestruturas essenciais para melhorar o bem-estar dos seus habitantes era, pois, todo um programa da nova governação. Ao mesmo tempo, esperava-se que o desenvolvimento económico conhecesse um impulso significativo. As receitas do território eram limitadas, vivendo em larga medida dos bons resultados do jogo. Deste modo, tornava-se imperioso ir mais longe. Ao lado, Hong Kong mostrava uma tal dinâmica que só podia servir de estímulo para que em Macau, aproveitando-se a mudança, surgisse um espírito mais ambicioso quanto ao futuro. As sucessivas administrações de Macau no pós-25 de Abril foram dando continuidade ao trabalho de modernização do território, lançando tam-
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bém grandes obras, das quais se destaca o desejado aeroporto na Taipa. Em mais de duas décadas, Macau recuperou de um tempo que parecia perdido. A sua transformação, a um ritmo impressionante, trouxe-lhe benefícios incomensuráveis. Aos nomes tradicionais que se notabilizaram como líderes nos principais sectores do território acrescentaram-se outros que emergiram pelo valor afirmado. À sua conta, foi-se alargando a classe empresarial, o que se traduziu no surgimento de novos investimentos, com especial incidência na área do turismo. Por isso, algumas atribulações políticas passageiras não interferiram na cadência que vinha marcando a vida de Macau. Um dia, Macau deu-se conta de que o seu destino poderia passar por uma alteração profunda. Em 24 de Setembro de 1982, Deng Xiaoping recebia Margaret Thatcher em Pequim, a quem transmitia que a China pretendia recuperar Hong Kong quando expirasse, em 1997, o contrato sobre os Novos Territórios. Pela conversa entre aqueles dois dirigentes políticos, percebia-se que chegara o momento de ser resolvida as situações de Hong Kong e Macau. Foi assim que nasceu a fórmula “um país, dois sistemas”. A vez de Macau ser avisado de que regressaria ao controlo chinês aconteceu em Maio de 1985, durante a visita de Estado à China do Presidente António Ramalho Eanes. Quando Ramalho Eanes foi informado da intenção chinesa de retomar Macau, já os governos da China e do Reino Unido tinham assinado a Declaração Conjunta Sino-Britânica sobre Hong Kong. A cerimónia ocorrera em Pequim em 19 de Dezembro de 1984. Com Portugal, a China seguiu um processo de negociação de padrão idêntico àquele que teve com os in-
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O vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, Zhou Nan, e o embaixador Rui Medina rubricam, em Pequim, em 26 de Março de 1987, os instrumentos do Acordo entre Portugal e a China sobre Macau.
gleses. As conversações luso-chinesas só se iniciaram em 30 de Junho de 1986 na capital chinesa. Os dirigentes chineses tiveram de esperar por dois actos eleitorais em Portugal que levaram às escolhas do primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva e do Presidente da República, Mário Soares. As conversações foram dadas por concluídas a 23 de Março de 1987 e, pouco tempo depois, a 13 de Abril, seria assinado em Pequim, pelos primeiros-ministros, o acordo sobre a Declaração Conjunta Luso-Chinesa. Iniciava-se um período de transição para a transferência de poder, cuja data fora estabelecida para 20 de Dezembro de 1999. A China concretizava, assim, o grande objectivo de receber de volta os territórios de Hong Kong e Macau antes do final do século. O presente oferece-nos uma perspectiva muito interessante sobre a
evolução de Macau, desde que o acordo foi assinado há trinta anos em Pequim. Portugal empenhou-se em que os últimos anos da administração portuguesa no território ficassem assinalados pelo enorme esforço em dotar Macau de todas as condições e meios que lhe garantissem um futuro promissor. Mas não só. O último governador, Vasco Rocha Vieira, empenhou-se também em que a memória portuguesa de mais quatrocentos anos ficasse preservada. O legado português tinha – e tem – um valor indestrutível que a China não podia deixar de ter em conta. A consagração desse valor foi obtida quando o Centro Histórico de Macau foi incluído pela UNESCO na Lista do Património Mundial da Humanidade. Na transferência de poderes de Macau para a China na data definida na Declaração Conjunta Luso-Chi-
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nesa, o território passou à categoria de Região Administrativa Especial (RAEM), como prevê a Constituição da República Popular da China, mantendo-se, porém, inalterados, durante cinquenta anos, os sistemas social e económico, bem como a respectiva maneira de viver. Sendolhe atribuído um elevado grau de autonomia, igualmente se estipulava que o Governo da Região seria composto por habitantes locais. A China queria estabilidade total e, por isso, teve de adaptar as suas prioridades às circunstâncias do território, para que a resolução da questão de Macau fosse considerada um caso de sucesso. Ajudava à promoção da imagem de país respeitador de compromissos. Enquanto Hong Kong, como uma das principais praças financeiras internacionais, teve sempre uma grande utilidade para a China, que papel poderia Pequim reservar a Macau, aproveitando o seu potencial, era uma pergunta pertinente. O nome de Macau estava associado a Casinos, sem dúvida a grande fonte de receita da RAEM. Mas a especificidade de Macau justificava que se tirasse partido da sua importância num contexto mais vasto, o do mundo da Língua Portuguesa. De facto, era impossível apagar o valor de Macau nessa realidade, como, de resto, têm defendido todos aqueles que se interessam para que seja preservado o legado de que Portugal tanto se orgulha. Pequim assim o compreendeu e viu também que Macau reunia as melhores condições para servir de ponte entre a China e os espaços onde se fala a língua de Camões. Fórum Macau Em 2013, Pequim criava o Fórum Macau, atribuindo-lhe a missão de
organizar uma plataforma para a cooperação económica e comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa. O que se seguiu foi dar corpo a um projecto que correspondia plenamente ao intuito chinês de diversificar os seus interesses na frente externa. Multiplicaram-se as reuniões ao mais alto nível para consolidar os propósitos subjacentes à iniciativa de Pequim. Todos os países envolvidos reconheceram vantagens na aproximação a uma China em ascensão, que encontrara na “economia socialista de mercado” o modelo que melhor servia a mudança exigida pela globalização. A abertura ao investimento directo estrangeiro, no princípio da década de 90, para beneficiar da transferência de tecnologia, produziu o choque de que carecia a economia chinesa. A China tornou-se imparável. Na sua imensa capacidade de projectar poder económico e financeiro, a China viu no espaço lusófono um filão que a ajudava a alargar a sua presença no mundo. Desde 2002, o reforço dos laços de amizade com Angola, expresso através de uma vigorosa cooperação em vários domínios, constitui uma referência de grande significado, dada a crescente interdependência económica. Também havia um motivo que justificava uma relação cuidada da China com o Brasil: ambos pertencem ao G20, criado em 1999. Actualmente, a China é o maior parceiro comercial do Brasil e, de acordo com a opinião recente de uma especialista da Deloitte em Shanghai, Rosa Yang, “os dois países são complementares”. Portugal, por seu lado, como acto natural da relação histórica, assinava com a China, em 2005, a Parceria Estratégica Global de Cooperação, um instrumento que lhe concede um tratamento preferencial pelo regime chinês. Desde então, intensificaramse os contactos bilaterais e o inves-
timento chinês em Portugal ganhou uma dimensão como nunca acontecera. Não na mesma escala, a China desenvolve ainda projectos nos restantes países do grupo lusófono. O progresso que tem vindo a ser conseguido pode traduzir-se em números. Segundo dados chineses divulgados pelo Fórum Macau, o comércio entre a China e os Países de Língua Portuguesa atingiu 8.281 milhões de dólares em Janeiro de 2017, montante que representa um acréscimo de 7,52%. Angola e o Brasil foram responsáveis por 92% das trocas comerciais entra a China e os oito países do espaço lusófono com um total de 7.625 milhões de dólares. Portugal surge em terceiro lugar em termos de valor com trocas comerciais que se situaram em 407 milhões de dólares, com exportações chinesas no montante de 259 milhões de dólares e exportações portuguesas no valor de 147 milhões de dólares. Em quarto lugar, aparece Moçambique com 168 milhões de dólares. O muito que já se andou e o potencial de crescimento que está ao seu alcance levaram já o Governo de Macau a estudar, conforme foi anunciado, a criação no território de um complexo que incorpore as várias iniciativas em curso para promover Macau como plataforma entre a China e os Países de Língua Portuguesa. Trinta anos depois da assinatura de Declaração Conjunta Luso-Chinesa, pode dizer-se que Macau se sente bem a cumprir o papel que lhe estaria destinado quando a sua administração mudou em Dezembro de 1999: servir de ponte entre a realidade a que pertence e o vasto espaço de Língua Portuguesa, outra realidade que também conta na cena internacional. Como uma ideia positiva pode, com o correr do tempo, gerar dinâmicas positivas.
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Espaço geopolítico da Lusofonia Macau – área estratégica do relacionamento Sino-Luso-Brasileiro
Severino Cabral, D.Sc. Diretor-Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de China e Ásia-Pacífico-IBECAP
“NENHUMA COUSA SE PODE PROMETER À NATUREZA HUMANA MAIS CONFORME AO SEU MAIOR APETITE, NEM MAIS SUPERIOR A TODA A SUA CAPACIDADE, QUE A NOTÍCIA DOS TEMPOS E SUCESSOS FUTUROS (...).” António Vieira, in História do Futuro. I – Espaço geopolítico da lusofonia
“Res habent radicem et ramos; agenda habent finem et initium.Qui novit quid prius, quid posterius, inde non longe est a via”. Magni Studdi O começo do século XXI e do terceiro milênio parece configurar uma nova e complexa ordem mundial, em que a parceria estratégica de dimensão global dos países lusofônicos – cerca de duzentos e sessenta milhões de pessoas – pode (deve) tornar-se um dos sustentáculos do sistema internacional multipolar em construção. Essa é a razão por que a promoção da língua portuguesa como veículo universal de comunicação e transmissão de cultura e civilização – a grande área lingüística e civilizacional lusófona – define uma das missões perenes da comunidade dos países de língua portuguesa (CPLP).
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É também uma das razões essenciais por que, na perspectiva da ascensão da “Nova Mundialidade” – o fortalecimento da comunidade de países de língua portuguesa, o seu papel estratégico na construção da nova ordem mundial multipolar, suas relações especiais com o mundo Sínico –, a cooperação e o intercambio sino-luso-brasileiro ganhou dimensões estratégicas globais. Nesse contexto insere-se o projeto desenvolvido pelo Instituto Brasileiro de Estudos de China e Ásia-PacificoIBECAP, em cooperação com o Instituto Internacional de Macau-IIM, de promover o diálogo entre os mundos lusófono e chinês, tendo como elemento de conexão, como ponto de interseção entre esses dois conjuntos culturais e civilizacionais, a Região Administrativa especial de Macau-RAEM. Desde os primeiros seminários organizados, a partir de 2009, no Rio de Janeiro e em Macau, a idéia básica foi sempre a de promover os dois conjuntos culturais de maneira equilibrada e harmônica. Depois de uma serie de oito seminários realizados no Brasil, em Portugal e na China surgiu à mente a ideia de inovar com a criação de uma plataforma digital pensada para incentivar o conhecimento mútuo sino-lusofono no campo da língua, da cultura, da ciência, da inovação tecnológica, da diplomacia e economia dos países e demais organizações que compõem
a Comunidade de Países de Língua Portuguesa – com o mundo de língua e cultura chinesa. A idéia de criar uma plataforma digital para conectar os centros de investigação e os investigadores envolvidos no estudo da China e dos países de língua portuguesa buscará fortalecer a confiança e aprofundar o consenso estratégico entre a comunidade de estudos chineses e o espaço mundial lusófono, na tentativa de fornecer um novo enfoque pragmático e inovador para explorar as potencialidades da cooperação e do intercâmbio entre esses universos culturais e civilizacionais. Nessa via, buscar-se-á intensificar os laços culturais, científico-técnicos, econômicos e sociais com todos os países, ampliando assim o conhecimento da “Nova Mundialidade” no espaço da comunidade sino-lusófona. A primeira fase do projeto, já em curso, deverá aproveitar-se da experiência de cooperação e intercâmbio sino-luso-brasileiro, via Macau, como um espelho do projeto institucional da criação da “RedeLíngua Portuguesa no Mundo”. Um caminho largamente percorrido por encontros, reuniões, e uma seqüência de oito seminários internacionais realizados, tendo Macau como plataforma de intercâmbio e comunicação do mundo chinês com o universo da língua portuguesa.
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dialidade”; a introução de novas concepções e dos novos mecanismos de regulação da Ordem Mundial.
A partir desse sistema de seminários internacionais, que tem se deslocado por sedes em Portugal, no Brasil e na China, vem sendo mobilizadas múltiplas instituições acadêmicas portuguesas, chinesas e brasileiras. Dentre elas, podem ser citadas: Instituto Internacional de Macau-IIM (sedes em Lisboa e Macau), Centro de Estudos de Países de Língua Portuguesa do Instituto de Estudos Regionais da Universidade de Economia e Negócios Internacionais de Pequim, Universidade de Estudos Estrangeiros de Pequim, Centro de Estudos Brasileiros do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Academia de Ciências Sociais da China (Pequim), Instituto de Estudos de América Latina do Instituto Chinês de Relações Internacionais Contemporâneas (Pequim), Universidade de Estudos Internacionais de Zhengjiang (Hangzhou), Real Gabinete Português de Leitura (Rio de Janeiro), Instituto Brasileiro de Estudos de China e Ásia-Pacífico-IBECAP (Rio de Janeiro), Centro de Estudos Estratégicos da Escola Superior de Guerra-ESG (Rio de Janeiro), Laboratório de Estudos de Ásia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Algo na direção dessas questões se observou na Cúpula do G-20 em Hangzhou e foi debatido pelos lideres das 20 maiores economias. Na concepção do anfitrião da reunião, o presidente chinês Xi Jinping, a nova força motriz da economia mundial estará impulsionada pelo desenvolvimento inovador da economia da Era Digital.
Esse projeto tem como meta alcançar novo enfoque inovador para explorar a potencialidade da cooperação internacional e do dialogo civilizacional no século XXI, bem como intensificar laços cuturais e científicos dos países lusófonos com o universo da cultura e civilização chinesas, tendo em vista aumentar o conhecimento e a participação da comunidade dos países lusófonos no processo de mundialização em curso. A plataforma deverá propiciar, ao mesmo tempo: o estudo voltado para a discussão da crise econômica global, a reflexão teórica sobre o espaço sino-lusófono e a “Nova Mun-
A situação gerada pela crise da economia e das finanças mundiais (começada em 2008 vem se prolongando até aos dias atuais) fez a cúpula do G-20 tornar-se uma plataforma de ação conjunta para tomada de medidas de natureza política, econômica, financeira e comercial que em sua totalidade configuram uma governança global econômica a trabalhar pela retomada do crescimento da economia mundial. Tarefa nada fácil, que deve ser conduzida à base do consenso dos países que integram a comunidade internacional sobre a necessidade de nova, mais abrangente e realista
Num momento de grandes e rápidas transformações do sistema internacional é instigante pensar que a interação dos conjuntos sino e lusófono poderá desenvolver mecanismos novos de concertação política, apoiada no aproveitamento do potencial que está a ser liberado pela nova revolução cientifica e tecnológica em curso. À sombra dos processos de mudança da ordem mundial, essa conectividade, decorrente da ligação especifica dos espaços sino-lusófonos no Extremo Oriente e no Extremo Ocidente, é um dos aspectos cruciais do fenômeno da emergente “Nova Mundialidade”.
compreensão da conjuntura internacional, da crise, de seus desafios e oportunidades. Entre os desafios que enfrenta a comunidade internacional e o mundo em desenvolvimento, a questão ambiental revela uma dimensão particular, por caracterizar-se como dupla ameaça – do aquecimento do planeta e do desaquecimento econômico global. Paralelamente, a crise econômica e financeira, que desregula os mercados e mergulha as economias nacionais na depressão e no desemprego, vem incitando ao extremismo político, étnico, religioso, ameaçando todos os países com o flagelo do terrorismo, do separatismo e do divisionismo, tendo como resultado possível a desintegração das nações, a fragilização das soberanias e a instauração do caos político e social em escala global. O enfrentamento dessas questões que ameaçam ao conjunto da humanidade deve ser um desafio comum aos países do mundo industrializado tanto quanto do mundo em desenvolvimento. Ao lado dos desafios, porém, surgem oportunidades no horizonte. Vemos a ascensão das megapotencias da era global – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul –, que evoluem de sua condição de grandes mercados emergentes, para abrir o caminho para a existência de novos centros de poder mundial. Em buscando manter o crescimento de suas economias, e atingir assim novos patamares de seu desenvolvimento, elas impulsionam a economia global e lançam as bases de uma nova ordem mundial multipolar. Por suas características diversas e complementares estão fadadas a estabelecer uma relação de transigência e harmonia capaz de gerar
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fatos positivos para a governança global. Entre esses fatos geradores de futuros estão o Novo Banco do Desenvolvimento, e o Acordo Contingencial de Reservas, criados pelo BRICS e que se apresentam como espelhos do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Essas duas instituições inovam e complementam o sistema financeiro internacional – criado em Breton Woods e há muito em crise. Outros fenômenos podem ser referidos como a internet, a economia digital, a economia “verde”, a nova matriz energética de “baixo carbono”. Fenômenos que estão a revelar aspectos e fatores que demonstram a presença de um “Novo Normal” na economia mundial, ao lado de uma “Nova Mundialidade” a instalar-se no curso do mundo. Na avaliação do observador da realidade internacional contemporânea um novo curso possível parece ter sido aberto ao desenvolvimento global no século XXI. Em suas grandes linhas a “Nova Mundialidade” começa a ser esboçada com a prometida abertura de novas rotas ao comércio mundial com a construção da “megainfraestrutura” global, que a China, como “Estado Pivô” da Eurásia, projeta a partir do “Cinturão Econômico da Rota da Seda” e a “Rota da Seda Marítima do Século XXI”. Do mesmo ponto de avaliação do observador internacional, pode-se adiantar que o avanço da interconexão do comércio global só se completará com a união do Pacífico com o Atlântico Sul e o Índico, a gerar o Grande Oceano Luso-Ibérico, tendo como “Estado Pivô” o Brasil, no centro do conjunto formado pela América Meridional e o Cone Austral da África. Estará assim definido novo mapa do comércio mundial com a construção possível de uma nova
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era, tal como, na antemanhã dos tempos modernos, a saga dos navegadores lusos dilatou a fé e expandiu os horizontes da humanidade. Assim, estará assente um novo caminho do crescimento baseado na inovação promovida pela revolução cientifica e tecnológica; na melhoria da eficácia da governança financeira global por meio de nova arquitetura financeira global que se anuncia com a criação das novas instituições financeiras “pós Breton Woods” (o Banco Asiático de Investimento em Infra-Estrutura (AIIB) e o Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS); a coordenação e regulação estratégica do crescimento do comércio e do investimento global. Esses novos caminhos que se abrem na complexa senda do sistema de desenvolvimento sustentável, inclusivo e interconectado, pelos quais a comunidade internacional (que compreende o mundo industrializado, os emergentes e o conjunto dos países em desenvolvimento) talvez consiga realizar a transformação da crise global em nova etapa do desenvolvimento da civilização industrial-urbana do século XXI –
desde que se abra passo ao advento da “Nova Mundialidade”. II – MACAU – área estratégica do relacionamento sino-luso-brasileiro “Já no largo Oceano navegavam As inquietas ondas apartando”. Os Lusíadas, I, 19 A abertura das rotas oceânicas ao comércio e à navegação mundiais inaugura, para o conjunto da humanidade, o começo dos tempos modernos. Sob a liderança lusa construíram-se as bases do mercado mundial, universalizando-se a troca e o intercambio de bens e cultura entre o Novo e o Velho mundo. Feito que emula, por seu impacto nos destinos de todos os povos e todas as nações do mundo com o fenômeno hodierno da “globalização econômica e financeira”. Vive-se, na atualidade, a transformação da cena mundial contemporânea, que decorre essencialmente, entre outros fatores, da continuidade da revolução cientifico tecnológica – da idade atômica à era espacial, e da revolução da comunicação até o desenvolvimento das ciências da
In Les Cahiers de Science & Vie – Histoire et Civilisations, No. 167, Février 2017, p. 40.
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vida –, e da emergência de grandes espaços continentais e populacionais no Oriente – China e Índia – e, no Ocidente Extremo: América Meridional. Nesse horizonte do começo de século e de milênio o extraordinário crescimento e desenvolvimento da China estão a gerar outro fenômeno com a criação em condições particulares de um “megaestado” continental e marítimo. A ascensão da China como Centro Mundial de Poder não só instaura nova realidade econômica e política internacional, como aponta para a emergência de nova ordem mundial multipolar. A relação da China com o Ocidente moderno, historicamente, não se iniciou com a Guerra do Ópio e o século das humilhações, mas foi inaugurada pelo encontro no século dos descobrimentos da língua portuguesa e da cultura lusa com o universo cultural chinês. Hoje, com o recuo do tempo, podemos imaginar/verificar que a viagem do navegador Jorge Álvares ao estuário do rio Pérola, a mando de Afonso de Albuquerque, sinaliza, simbolicamente, o ponto crucial de nascimento do diálogo Ocidente e Oriente. Relação que se cristalizaria com a fundação de Macau. E, assim, por séculos, um pouco de Portugal se tornou parte da paisagem chinesa, definitivamente marcando-a com a luz da civilização lusitana, a desmentir vozes como a de Rudyard Kipling, que preconizavam a impossibilidade do dialogo e a prevalência da incomunicabilidade entre Oriente e Ocidente. De tal maneira que, como fato gerador de futuro, no dia 20 de dezembro de 1999, nascia a região especial administrativa de Macau, na
China; pequeno acontecimento altamente significativo do final do século XX. A partir dele, muitas transformações adviriam no contexto internacional, desafiando a capacidade e o talento inovador do homem de Macau para gerir com autonomia, e criar um ambiente único de encontro do ocidente com o oriente: da cultura singular do ocidente latino, baseada na língua do povo português, e, no mesmo sentido, com a cultura mater do oriente sínico, baseada na língua do povo Han. Acontecimento histórico que se amplia a uma dimensão global, dado o tamanho da população de 260 milhões de luso-falantes, que integra a comunidade de países de língua portuguesa, presente em todas as regiões do mundo, e, de outro, a língua chinesa e o maior ecúmeno nacional do mundo. Lugar, pois, nuclear do encontro de duas culturas de significado especial para o Brasil, porque baseadas na extensão universal das línguas de cultura chinesa e portuguesa. Mas a língua portuguesa não teria essa dimensão se não fora o reconhecimento do fenômeno ao qual, um dia, o gênio de Fernando Pessoa denominou “o grêmio da língua portuguesa”: o fato de que o Brasil e os países que compõem a comunidade da língua portuguesa têm uma mesma língua de cultura e basicamente formam um mesmo processo civilizatório. Uma língua de cultura universal a qual, como os padres da Companhia de Jesus revelaram ao mundo, formava um par criador com a outra língua universal da cultura humana: o idioma chinês. A aventura lusa abriu o caminho das rotas oceânicas do mundo, gerando o mercado universal contemporâ-
neo; tal feito está na origem do fenômeno da soi-disant “globalização”. Esse fato está definitivamente retratado na imortal epopéia camoniana. A poesia de Camões, autor maior da língua portuguesa, é testemunha viva da trajetória seguida pela gente lusitana, que construiu o Brasil, a África e a Ásia como pátria humana comum. A literatura de língua portuguesa independente do acento que exiba – metropolitano, americano ou ásio-africano – representa, ontem como hoje, o que de melhor o mundo lusitano e a sua cultura integradora e universalista inspirou, em diferentes épocas da história, ao conjunto da humanidade. O começo dos tempos modernos assistiu, pois, ao povo lusitano inaugurar a história da humanidade universalizada pela integração das vias do comércio mundial; pela interação entre todos os povos e civilizações. Assim, pode-se quase afirmar hoje, que o descobrimento das rotas oceânicas do mundo, a unir pela primeira vez todos os continentes e todos os meios de riqueza e poder do homem – fruto da grande aventura marítima de Portugal – talvez só tenha símile na conquista do Cosmos em nossa época. Quando brasileiros exaltamos a grande conquista do povo português é porque ela não pode ser esquecida pelo que significou para o destino nacional do Brasil. Sem a epopéia portuguesa dos descobrimentos não haveria a nação brasileira tal como ela é conhecida de seus filhos e de todos os demais povos do mundo contemporâneo. Só por isso se justificaria a grande aventura do espírito luso. Ela pode ser ainda hoje medida pela construção ainda incompleta do outro Brasil – o Brasil africano – legado a ser realizado no futuro pelos países que for-
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In Les Cahiers de Science & Vie – Histoire et Civilisations, No. 167, Février 2017, p. 56.
mam a comunidade de língua portuguesa na África. Além da África, a Índia e a China foram também tocadas pela presença lusa na língua e na cultura. Desse modo podemos dizer que todo o mundo civilizado foi unido pela língua portuguesa: uma língua universal pela riqueza de sua expressão e pelo âmbito que ela criou. A importância da conquista lusa das passagens do grande oceano, que banha o Hemisfério Ocidental, a África e a Ásia, residiu, sobretudo, na aventura de levar aos continentes mais distantes a fé cristã e a nova ciência da natureza, que veio a substituir o cosmos do mundo antigo pelo universo infinito da era moderna. Foi essa passagem do Ocidente ao Oriente que permitiu a Índia e a China se integrarem ao mundo da modernidade e se introduzirem no sistema industrial e urbano que, “da ocidental praia lusitana”, se estendeu a todo o mundo. Símbolo vivo dessa relação do mundo lusófono com o Oriente tem sido desde sempre a cidade de Macau, que, fundada em 1557, permaneceu administrada por Portugal até 1999, num arco de tempo que vai dos começos
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da época dos descobrimentos até ao término do segundo milênio da era cristã. No momento em que a China inicia nova e decisiva etapa de sua modernização, orientada pelo sonho chinês da revitalização nacional, ao construir as bases da retomada do crescimento da economia global, com a criação da gigantesca infraestrutura a ser gerada pelo projeto do “Cinturão e da Rota Marítima do século XXI”, assistimos à reconstrução estratégica das rotas antigas do comércio do Velho Mundo. Esta é uma grande e inovadora iniciativa chinesa que motiva e inspira a todos os países do Velho Mundo a reconstituírem a antiga rota do comercio mundial que uniu, outrora, o Império Romano ao mundo Sino e IndoPersa. No entanto não se pode deixar de pensar que a economia global não se sustentará apenas na reconstrução dessa antiga rota do comercio internacional, mas, que será complementada pela reassunção do mundo criado pela abertura da rota do cabo, por Vasco da Gama, e da circunavegação pelo sul do continente americano, empreen-
dida pelo navegador português Fernão de Magalhães, a serviço de Espanha. Essas duas épicas viagens, na aurora dos tempos modernos, estabeleceram a ligação Pacífico-Atlântico Sul-Índico, no conjunto que veio a ser denominado por sir Halford Mackinder de o “Grande Oceano”. Parece que, se vier a se estruturar esta segunda grande rota de comercio internacional – a “Carreira das Índias” e a “Carreira do Pacífico” –, ela deverá tornar-se essencial ao reerguer-se da economia global. Como também deverá se tornar, por meio dos múltiplos pólos de poder, sustentáculo do equilíbrio do poder numa época de intensas mudanças na ordem mundial. O começo do século XXI e do terceiro milênio está a configurar o nascimento de nova e complexa ordem mundial, na qual a parceria estratégica de dimensão global da China com os países lusófonos será sustentáculo, pilar, socle, do sistema internacional multipolar. O poder meridional que emergirá com a integração do espaço sulamericano, mais o cone austral africano, tornará então o Brasil, país
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central do mundo lusófono, o primeiro estado “tri-oceânico”. A realização desses projetos nos revela e antecipa o fato incontornável de que Macau, não só deverá acompanhar o ritmo acelerado de desenvolvimento chinês, como virá a se tornar plataforma de cooperação e intercâmbio da China com o mundo de fala portuguesa em todos os continentes. Cabendo assim aos outros membros da comunidade de língua portuguesa um esforço a mais, na linha antecipada pelos clássicos eternos da língua portuguesa, para ampliar essa plataforma ligando todos os “lusitanisados” do mundo ao universo cultural sínico,
abrindo o passo para entrada da humanidade do terceiro milênio na era da “Nova Mundialidade”. As “Trovas do Bandarra” anunciaram um dia que o ser de Portugal seria tamanho ao ponto de todo o mundo nele se ver. Sob esta inspiração, na Idade Barroca, Vieira levaria adiante, na “História do Futuro”, a idéia do “Quinto Império”, a mostrar-se “como o novo e o futuro desta nossa história”. Mais próximo de nós Fernando Pessoa apreendeu, em sua visão particular do mito, que o “Quinto Império” teria que ser outro que o inglês, “porque teria de ser de outra ordem”. Poder-se-ia dizer: – de ordem mais espiritual.
Portugal, que gerou na América, África e Ásia, o mundo da lusofonia, revive hoje, portanto, sua vocação universalista, tendo em sua língua materna a fonte inesgotável de intercomunicação e diálogo com a língua chinesa, a promover a interligação Oriente e Ocidente. Não por acaso a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – que compreende o Brasil e demais países que tem na lusitanidade sua carta de identidade cultural e civilizacional – se vê alçada à condição de uma das bases de sustentação do processo de “mundialização” no século XXI, vale dizer de irradiação do sistema urbano-industrial a todo o planeta.
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Notas sobre três referências culturais da comunidade macaense Alexandra Sofia Rangel Investigadora do IIM
Neste artigo são recordadas três distintas e marcantes personalidades, tidas generalizadamente como figuras de referência cultural da comunidade macaense: Luís Gonzaga Gomes, José dos Santos Ferreira (Adé) e Henrique de Senna Fernandes. Luís Gonzaga Gomes
Luís Gonzaga Gomes nasceu em Macau a 11 de Julho de 1907 e faleceu a 20 de Março de 1976. Começou a escrever aos 14 anos, quando frequentava o Liceu de Macau, onde foi aluno de Camilo Pes-
sanha e colaborou no jornal A Academia, que também contou com a pena do seu amigo e colega Joaquim Paço d’Arcos, que se tornaria um grande escritor da língua portuguesa, filho do então Governador de Macau, Henrique Monteiro Correia da Silva (Paço d’Arcos) (Teixeira 1986: 466). Após concluir o liceu, ingressou na Repartição Técnica do Expediente Sínico,1 onde se dedicou ao estudo do chinês, formando-se como intérprete de 1ª classe (Teixeira 1986: 469). Foi professor primário durante 24 anos ao mesmo tempo que aprofundou os seus conhecimentos da língua chinesa, que lhe permitiram ensiná-la no Liceu de Macau e na Escola dos Correios, Telégrafos e Telefones (Batalha 2007: 9). Ao longo da sua vida, Luís Gonzaga Gomes trabalhou muito no sentido do enriquecimento do diálogo cultural luso-chinês, efectuando traduções e compilações, realizando estudos e escrevendo artigos em jornais e livros. Publicou em chinês uma tradução de Os Lusíadas contados às crianças de João de Barros (1942), História de Portugal (1955), Vocabulário Português-Cantonense (1941) e Vocabulário Cantonense-Português (1942). Das obras em português destacam-se Monografia de Macau (1950), Contos Chineses (1950), Lendas Chi-
nesas de Macau (1951), Curiosidades de Macau Antiga (1952), Chinesices (1952), Festividades Chinesas (1953), Arte Chinesa (1954) e Efemérides da História de Macau (1954) (Teixeira 1986: 479-480). Como afirma Graciete Batalha, no prefácio do livro Macau Factos e Lendas, uma compilação de artigos de Luís Gonzaga Gomes, “Mais de 30 volumes publicados, mais de 20 jornais e revistas em que colaborou ou que dirigiu, atestam bem a sua determinação de divulgar a história e a cultura macaense ou de contribuir para o intercâmbio cultural luso-chinês” (Batalha in Go-
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Organismo público responsável pelas traduções oficiais, formação de intérpretes e divulgação dos assuntos do Governo junto da comunidade chinesa.
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Notas sobre três referências culturais da comunidade macaense
empregados acabaram por se apaixonar, e ele foi pedir ao lavrador autorização para casar com ela. Este não consentiu e proibiu os dois jovens de se encontrarem novamente. Desesperados com a sua situação, os dois resolveram suicidar-se,
mes 1994: 5). E no seu opúsculo Luís Gonzaga Gomes e o Intercâmbio Cultural Luso-Chinês, “(…) houve em Macau um homem silencioso e tenaz que, sem grande apoio moral ou material (…) dedicou grande parte da sua vida ao estudo da língua e da cultura chinesa, ao mesmo tempo que da ocidental, e ao meritório trabalho de as dar a conhecer uma à outra” (Batalha 2007: 9). Em Macau Factos e Lendas, Luís Gonzaga Gomes conta uma história relativa a duas árvores no jardim do templo de Kun Iâm, a Deusa da Misericórdia, onde “(…) reina sempre profundo silêncio e um ar de mistério bem propícios para quem nele intente buscar o recolhimento e a paz de espírito” (Gomes 1994: 69). Segundo esta lenda, antes de existir o templo, aquela área era ocupada por um pequeno povoado. Um dos lavradores, mais abastado que os seus vizinhos, vivia apenas com a sua filha e dois empregados. A filha e um dos
(…) pois talvez conseguiriam alcançar a felicidade noutro mundo, uma vez que não poderiam ser felizes neste (…) e, depois de se abraçarem e chorarem muito, enforcaram-se, corajosamente, cada um, nos ramos de duas árvores que cresciam isoladas naquele local. (…) E, fenómeno que causou tão grande espanto, as duas árvores, onde os dois desgraçados amantes se suicidaram, passaram, daí em diante, a desenvolver-se com extraordinária pujança, mas com os seus troncos abraçados um ao outro, como dois seres envolvidos num forte amplexo e com o estranho aspecto com que ficou até hoje (Gomes 1994: 70-71).
Este local é um dos mais visitados em Macau, quer por residentes, quer por turistas. Luís Gonzaga Gomes foi conservador do Museu Luís de Camões,2 director da publicação Arquivos de Macau, director-bibliotecário da Biblioteca Central de Macau, vice-presidente e presidente da Comissão Administrativa do Leal Senado,3 secretário da Comissão da Defesa e Valorização do Património Artístico e Histórico da Província de Macau, secretário da comissão de instalação do Arquivo Central de Macau, além de ter igualmente desempenhado cargos em organismos da sociedade civil, como presidente do Rotary Clube de Macau, secretário do Círculo de Cultura Musical e do Círculo Cultural de Macau e secretário da Associação Desportiva Macaense.
Foi também director da Emissora de Macau, correspondente da Agência ANI, chefe de redacção e administrador da revista Renascimento, secretário-geral e redactor do diário Notícias de Macau e colaborador de numerosas publicações periódicas locais, nacionais e estrangeiras (Rangel 2007: 14-15). Além da sua actividade profissional, nos tempos livres, Luís Gonzaga Gomes representou Macau em ténis contra grupos de Hong Kong, tocou violino no Grupo de Amadores de Teatro e Música, participou como cantor em concertos e programas de rádio e adaptou e foi actor em peças radiofónicas (Teixeira 1986: 477). No entanto, era conhecido por ser uma pessoa solitária, dedicada aos seus trabalhos de investigação: “Luís Gomes foi o melhor e o mais prolífico historiador macaense nestes quatrocentos anos de vida desta terra, mas tão modesto que se escondia no pó dos Arquivos, sendo raro vê-lo em qualquer festa ou divertimento. Era um verdadeiro anacoreta” (Teixeira 1986: 473-474). Em 2007, comemorou-se o centenário do seu nascimento, com um muito variado programa que incluiu uma missa e homenagem junto da sua campa no Cemitério de S. Miguel, uma exposição fotobiográfica, lançamentos de reedições de obras suas e palestras sobre a sua vida e obra. Onze entidades da sociedade civil de Macau assinaram um protocolo de cooperação na organização e promoção destas comemorações. Foi também reactivado o Cenáculo Luís Gonzaga Gomes, com sede na Sala Luís Gonzaga Gomes no Instituto Internacional de Macau (Rangel
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Primeiro museu de arte de Macau, cujo espólio pertence agora ao Museu de Arte de Macau, integrado no moderno complexo do Centro Cultural de Macau.
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Câmara Municipal de Macau.
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2007: 27). Entretanto, a Sociedade Histórica da Independência de Portugal, ao reestruturar as suas subunidades de intervenção cultural, criou em Lisboa, em 2016, com a colaboração do Instituto Internacional de Macau, o Instituto Luís Gonzaga Gomes – Portugal, Macau, China. O nome de Luís Gonzaga Gomes foi dado a uma rua de Macau e a uma escola secundária e o seu busto, da autoria do escultor italiano Oseo Acconci, encontra-se no Jardim dos Poetas, numa zona nova da cidade de Macau. Foi condecorado pelo Estado Português com o grau de Cavaleiro da Ordem do Infante D. Henrique e, por decisão do Governador de Macau, foi-lhe atribuída, a título póstumo, a Medalha de Valor, a mais alta condecoração de Macau na vigência da administração portuguesa. O Governo Francês concedeu-lhe o grau de Cavaleiro da Ordem das Palmas (Rangel 2007: 16). José dos Santos Ferreira (Adé)
José Inocêncio dos Santos Ferreira, conhecido por Adé, nasceu em Macau a 28 de Julho de 1919, o mais novo de dezoito irmãos, filho de mãe macaense e pai português, natural de Seia que, nesse mesmo ano,
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– Sociedade de Turismo e Diversões de Macau e convenceu os proprietários da empresa a instituir bolsas de estudo para o ensino secundário, universitário e pós-universitário (Marreiros 1994: 22-23). Entusiasta de jornalismo, colaborou em vários periódicos locais, fez parte do corpo redactorial do Notícias de Macau e foi chefe de redacção de O Clarim, Comunidade e Gazeta Macaense. Foi correspondente dos jornais portugueses Diário de Notícias, Diário do Norte e Diário Popular, do jornal de Hong Kong China Mail e da agência noticiosa Associated Press (Marreiros 1994: 23). partiu para Timor em busca de fortuna, trabalhando como comerciante. Morreu pouco tempo depois, deixando a família quase na miséria (Marreiros 1994: 21-22). Por este motivo, o pagamento das propinas e outras despesas escolares foi bastante difícil para José dos Santos Ferreira, deixando o Liceu de Macau aos dezassete anos para procurar emprego. Foi auxiliar de topógrafo e fiscal de obras antes de cumprir o serviço militar obrigatório. Entrou no quadro da Secretaria dos Serviços de Saúde em 1943 e, em 1956, foi nomeado chefe de Secretaria no Liceu de Macau, onde “(…) preocupou-se imenso e muito batalhou para que os alunos, filhos de famílias de condições económicas modestas, tivessem isenção de todas as propinas – matrícula, frequência e exames – e livros e material didáctico necessários (…) Muitos alunos beneficiaram dessa sua preocupação” (Marreiros 1994: 22). Conseguiu, portanto, que vários jovens não tivessem de passar pelo mesmo que ele, dando-lhes oportunidades e incentivando-os a continuar os estudos, especialmente quando, em 1964, se tornou secretário da STDM
José dos Santos Ferreira também gostava de desporto e praticou futebol, atletismo, ténis e hóquei em campo, tendo desempenhado cargos e organizado competições no Hóquei Clube de Macau, Associação de Futebol de Macau, Conselho de Desportos, Ténis Civil, Associação de Hóquei em Campo de Macau e Associação de Tiro de Macau (Marreiros 1994: 23). Integrou a Mesa Directora da Santa Casa da Misericórdia e a Direcção do Clube de Macau
Notas sobre três referências culturais da comunidade macaense
Tempo corê ligéro, Trás di tempo, tudo passá azinha.
e foi presidente do Rotary Clube de Macau.
(…)
Pelo Governo Português foi condecorado com a Ordem do Infante D. Henrique (grau de Cavaleiro) em 1979 e, do Governo de Macau, recebeu as medalhas de Mérito Desportivo e de Mérito Cultural em, respectivamente, 1983 e 1984 (Marreiros 1994: 25). Além de todas estas actividades, foi na escrita, principalmente na poesia, em que ele mais se destacou, recuperando o dialecto macaense e dando-lhe uma nova vida nas suas récitas e poemas, sendo o seu maior divulgador, publicando as seguintes obras em patuá: Macau Sã Assi (1968), Qui-nova, Chencho (1974), Papiá Cristãm di Macau (1978), Camões, Grandi na Naçám (1982), Poéma di Macau (1983), Macau di Tempo Antigo (1985), Natal – Amor, Paz, Alegria (1986), Acunga Natal qui nôs já sunhá (1988), Macau, Jardim Abençoado (1988), Sã Natal, Jesus já nascê (1989), Luz di Natal (1990), Dóci Papiaçám di Macau (1990), Natal Cristãm (1991) e Poema na Lingu Maquista (1992) (Marreiros 1994: 26-27). No entanto, apesar de ter uma vida preenchida, o poeta, por dentro, estava a sofrer com o futuro próximo da sua terra natal: (…) cada vez mais negro estava também, segundo ele, o horizonte da sua amada terra que um dia acordaria chinês. O poeta que sempre acordou português, em todas as madrugadas, não podia continuar a conviver com a angústia de um dia acordar chinês. Nunca se acostumou à ideia, por isso, foi morrendo por dentro, pedaço a pedaço, despedaçado. Essa foi a sua morte, para quem o conhecia (Marreiros 1994: 25).
José dos Santos Ferreira faleceu num hospital de Hong Kong, a 24 de
(Ferreira 1990: 27). “O Adeus de Macau”
Macau está quase a dizer adeus A todos os seus filhos, A Portugal, Às pessoas que a amam verdadeiramente. Aqueles que a guardam no coração Hão-de sofrer grande mágoa; A voz lhes ficará embargada na garganta No momento de dizerem adeus a Macau.
Março de 1993. O seu poema “Adios di Macau” (“O Adeus de Macau”), escrito dez anos antes da transferência de administração, é revelador do estado de espírito do poeta, traduzindo a sua profunda mágoa com o destino traçado para a sua terra. Transcrevo a primeira parte desse poema, em patuá e na versão portuguesa, também da sua autoria: “Adios di Macau”
Macau ta perto falá adios Pa tudo su filo-filo, Pa Portugal, Pa gente qui divera querê pa êle.
Oh! Que grande pena, nossa Macau! Que sofrimento saber que terás de ir, Sair da nossa vida E viver desacompanhada do nosso Portugal. Não queremos que vás, Nem tu própria quererás ir… Mas quem somos nós Neste mundo de gente poderosa, O que somos nós Neste mar de ondas agrestes? Faltam dez anos, Apenas dez anos. O tempo corre veloz E atrás do tempo tudo desliza ligeiro. (…) (Ferreira 1990: 201).
Quim têm êle na coraçám, Lôgo sentí grándi margura; Voz lô ficá engasgado na gargánta Na ora di falá adios pa Macau. Ah! Divera saiám, nôsso Macau! Qui dói coraçám olá vôs têm-qui vai, Escapulí di nôsso vida, Vivo separado di nôsso Portugal. Nôs nom-quêro vôs vai, Vôs onçôm tamêm nom-quêro vai… Mâz quim sã nôs Na estunga mundo di gente poderoso, Cuza sã nôs Na estunga mar di ónda assanhado? Têm más dez áno, Dez áno na-más.
A comunidade macaense adaptouse ao novo estatuto de Macau, como região administrativa especial da República Popular da China e continua, localmente e na diáspora, a recordar Adé como um dos seus filhos mais dilectos. Henrique de Senna Fernandes Henrique Rodrigues de Senna Fernandes nasceu em Macau a 15 de Outubro de 1923, oriundo de uma das mais antigas famílias do território.
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Macaense e Ponto Final, e nas revistas Mosaico e Revista de Cultura. Foi também crítico de cinema na Emissora de Radiodifusão de Macau (Rangel 2006: 102).
Fez os ensinos básico e secundário em Macau. Terminou, em 1952, o curso de Direito na Universidade de Coimbra e regressou a Macau dois anos depois, exercendo advocacia desde então. Foi também professor na Escola Primária Oficial, no Liceu Nacional Infante D. Henrique, na Escola do Magistério Primário e na Escola Comercial Pedro Nolasco, de que foi director durante doze anos, sendo recordado com saudade e admiração por milhares de alunos que o consideram um dos melhores mestres de gerações de jovens de Macau (Rangel 2006: 101). Desempenhou cargos em organismos públicos e associativos, como director da Biblioteca Central de Macau e da Biblioteca Sir Robert Ho Tung, director do Centro de Informação e Turismo do Governo de Macau, membro do Conselho Consultivo do Governador de Macau, presidente do Rotary Clube de Macau, presidente da Assembleia Geral da Associação Promotora da Instrução dos Macaenses e presidente da Associação dos Advogados de Macau (Rangel 2006: 101). Foi colaborador em vários periódicos de Macau, como A Voz de Macau, Notícias de Macau, O Clarim, Gazeta
Henrique de Senna Fernandes publicou duas compilações de contos, Nam Van – Contos de Macau (1978) e Mong Há (1998), e dois romances, Amor e Dedinhos de Pé (1985) e A Trança Feiticeira (1993), este último com uma tradução em língua inglesa, The Bewitching Braid. Os dois romances foram levados ao cinema: Amor e Dedinhos de Pé foi realizado por Luís Filipe Rocha em 1993, e A Trança Feiticeira por Yuanyuan Cai em 1996. Os actores principais foram, respectivamente, Joaquim de Almeida, no papel de Francisco da Frontaria, e Ricardo Carriço, no papel de Adozindo. O seu conto “A-Chan, a Tancareira”, vencedor do Prémio Fialho de Almeida dos Jogos Florais da Queima das Fitas de 1950 da Universidade de Coimbra, relata a história de amor em Macau entre uma chinesa pobre, tancareira,4 chamada A-Chan, e um marinheiro português, Manuel, nos inícios da década de 40 do século XX. Destaco a seguinte passagem que traduz a atracção de Manuel por A-Chan: A-Chan trazia-lhe paz na sua determinada dedicação. Chocava-o aquela submissão de fêmea amorosa que nada pedia. Uma calada devoção que o enternecia. Gostava de ficar ao pé dela a seguir a marcha rutilante das estrelas, a paisagem nocturna de Macau, o casario da Penha e o da Barra, diluídos em sonho no fundo azul da noite. Era feia, ignorante, açulada pela canga do rio. Mas os olhos orientais não escondiam uma imensa ternura pelo marinheiro saudoso do mar. Sensibilizava-o a maneira como lhe sorria, como lhe oferecia a tigela de chá ou como lhe
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Mulher que vivia e trabalhava em pequenas embarcações pesqueiras chamadas tancás.
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passava os dedos calosos e ásperos pelos seus cabelos loiros de europeu, num requinte de familiaridade. Falavam pouco, entendiam-se mais por gestos que por palavras. Mas que reconfortantes os silêncios em que ela se apagava num canto do tancá para não lhe perturbar as meditações (Fernandes 1978: 11-12).
Manuel e A-Chan, apesar de não estarem casados, acabam por ter uma filha mestiça, com “cabelos aloirados, tez quase branca, olhos claros, a denunciar ascendência europeia” (Fernandes 1978: 14). Viveram juntos mas, com o fim da Guerra no Pacífico, Manuel é obrigado a regressar a Portugal: Tornou-se-lhe obsidiante o problema da filha. Não tinha coragem de renunciá-la. Que futuro lhe reservaria a tancareira? Cresceria no ambiente soturno do porto, acompanharia a mãe nos espinhos do ofício, maltratada pelo mundo e pela fome que é o estigma de todas as camadas paupérrimas da China. E depois, Mei-Lai não tinha feições puras de oriental. Só por si denunciava uma pecaminosa ligação com o europeu. Nunca vira mestiças a trabalhar no rio. Para outros caminhos as levara o destino. Para os bordéis, para as hospedarias das vielas do amor. Em toda
Notas sobre três referências culturais da comunidade macaense
de Mérito Cultural do Governo de Macau (1989), a Medalha de Valor do Governo de Macau (1995), o grau de Grande Oficial da Ordem Militar de Santiago de Espada (1998), o título de Cidadão Emérito de Macau (1999) e a Medalha de Mérito Cultural da Região Administrativa Especial de Macau (2001) (Rangel 2006: 101-102).
a parte, onde nasciam rebentos clandestinos de europeus, a prostituição lucrava. Não, não podia abandonála (Fernandes 1978: 16).
Sabendo que só ele poderia oferecer uma vida melhor à sua filha ilegítima, Manuel leva-a com ele para Portugal, abandonando A-Chan no porto, ouvindo os seus “(…) soluços (…). Espaçados, pungentes, envergonhados” (Fernandes 1978: 18). Henrique de Senna Fernandes foi condecorado com o grau de Oficial da Ordem da Instrução Pública (1978), a Comenda da Ordem do Infante D. Henrique (1986), a Medalha
Em 2003, foi eleito académico correspondente da Academia Internacional da Cultura Portuguesa e, em 2004, recebeu o Prémio Identidade do Instituto Internacional de Macau, destinado a contemplar “(…) personalidades ou instituições que, pela sua acção, obra e exemplo, hajam contribuído, activa e significativamente, para a preservação e o reforço da identidade de Macau” (Rangel 2006: 100). O Instituto Internacional de Macau quis homenagear, “(…) com toda a justiça, o escritor, o professor, o jurista, o bibliotecário e o dirigente dedicado de organismos locais, públicos e privados, que muito contribuiu para a afirmação da identidade cultural de Macau, sendo por muitos considerado o patriarca da comunidade” (Rangel 2006: 103). Henrique de Senna Fernandes faleceu no dia 4 de Outubro de 2010. Não obstante problemas de saúde que limitaram a sua intervenção cívica
e cultural, continuou nos últimos anos da sua vida a ser um membro activo de várias organizações, como o Conselho das Comunidades Macaenses e a Confraria da Gastronomia Macaense. Na nota de abertura do seu livro de contos Nam Van – Contos de Macau, escreveu: “Se alcancei o meu objectivo, ficarei grato por saber que prestei um serviço à minha terra” (Fernandes 1978: 4). É óbvio que sim. O Instituto Cultural de Macau assumiu, entretanto, a responsabilidade de publicar as obras completas de Henrique de Senna Fernandes, cujos primeiros volumes foram o romance inédito Os Dores, em 2012, a que se seguiram as reedições de Amor e Dedinhos de Pé e A Trança Feiticeira e, em 2015, A Noite Desceu em Dezembro, um novo romance parcialmente publicado no jornal Ponto Final. *** Estes três escritores macaenses, para além das relevantes obras que nos legaram, tiveram uma intervenção cívica da maior importância, contribuindo decisivamente para o reforço da singularidade de Macau. A sua memória continuará certamente a estimular novas gerações da comunidade macaense a enfrentar, com sucesso, os acrescidos desafios que as mudanças históricas verificadas na terra-mãe e na diáspora lhes lançaram.
Bibliografia BATALHA, Graciete Nogueira (2007). Luís Gonzaga Gomes e o Intercâmbio Cultural Luso-Chinês. Colecção Mosaico. Volume III. Macau: Instituto Internacional de Macau. FERNANDES, Henrique de Senna (1978). Nam Van – Contos de Macau. Macau: Edição do Autor. FERREIRA, José dos Santos (1990). Doci Papiaçám di Macau. Colecção Poetas de Macau. Volume I. Macau: Instituto Cultural de Macau. GOMES, Luís Gonzaga (1994). Macau Factos e Lendas. 3.ª edição. 1.ª edição 1979. Macau: Instituto Cultural de Macau. MARREIROS, Carlos (1994). Adé dos Santos Ferreira – Fotobiografia. Macau: Fundação Macau. RANGEL, Jorge A. H. (2006). Falar de Nós: Macau e a Comunidade Macaense – acontecimentos, personalidades, instituições, diáspora, legado e futuro. Volume II. Macau: Instituto Internacional de Macau. RANGEL, Jorge A. H. (2007). No Centenário de Luís Gonzaga Gomes. Colecção Mosaico. Volume VI. Macau: Instituto Internacional de Macau. TEIXEIRA, Monsenhor Manuel (1986). Liceu de Macau. 3.ª edição. 1.ª edição 1944. Macau: Direcção dos Serviços de Educação.
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Macau in the Goa Archives: the books of Legados da Procuratura and Provisões
Maria de Lourdes Bravo da Costa Rodrigues Historiadora/Investigadora Antiga Bibliotecária da Bibioteca Central de Goa The Goa Archives has a number of documents under the title MACAU which includes Contas do Colégio de Macau, only one volume from 1693-1736, Contas da Real Fazenda de Macau in seven volumes from 1792 to 1811. Although the first volume is mentioned as 1792, the income and expenses shown in these volumes cover the period from the year 1783. The Correspondencia de Macau has 65 volumes and covers from the period 1677-1861. Ten volumes of Provisões which cover orders sent by the Real Fazenda de Goa for a period from 1769 to 1846, and a single volume of Legados da Procuratura, from 1738-1761 are also a part of the collection. In the present article I will discuss the volumes of Provisões and the one on Legados da Procuratura. Although the Provisões are shown under Macau in the ‘Roteiro dos Arquivos da India Portuguesa’ organised by Dr. Panduronga P. Pissurlencar, they also cover besides Macau orders dispatched to other colonies like Daman, Diu, the Islands of Sofala, Timor and Mozambique, etc. One of the volumes of the Provisões, namely the book number 1590 of the said Roteiro is in fact the index to the books of the collection of Provisões (Nr. 1584 to 1591). The Provisões are indexed under different territories. These include Daman, Diu, Sofala and Timor, Macau,
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Mozambique, and even on Mangalore and Sião (Thailand). Besides these books, there are another two books, Nr. 2226 and 2563 which are part of the Provisões collection. Livro de Registo dos documentos das doações e da receita e despeza pertencente à 1ª Companhia que existia em Macau 1740. Cota 2001 This single volume Livro de Registo has a document, a gift deed executed by Antonia Correa widow of Nicolao Fiumes, of the rightful share of her husband which she had inherited on his death, in favour of the Company of Jesus. An amount of 10,000 taes is gifted to the Companhia with certain conditions to be observed by them in her lifetime as well as after her death. The money was to be used by the Company to send things, staff by ship as per requirement. The document has been drafted on April 16, 1738. Gift deed of Antonia Correa widow of Nicolao Fiumes: Unconditional and perpetual gift to the Company of Jesus, Province of Japan for the expenses of the Missions, always maintaining the gifted amount of 10,000 taes as a fund, with the stipulation that during my lifetime, I would be given annually 500 taes, and this pension will come to an end on my death, and after that the gifted amount will remain for the Province without any conditions, and
without the need to disburse any pension. The only request is to pray to God for my soul. Further, I declare that for the years 1739, 1740 and 1741 even if I am dead, the pension of 500 taes should be paid to me, which I request to be deposited in the Office of the College of the Jesuits, to be given not at present, and should not be given to anyone, but to whom I decide, and declare in the enclosed paper, written by me, which paper is in possession of the Provincial of the same Province. But in case the person whose name is mentioned in the said paper, does not come to look for the money, then it will be given to me, or to whom I desire to give. The first 10 pages are on the deed and declarations made therein. On page 11 the income accrued on the 10,000 taes is given. The balance sheet is from May 30, 1739 to June 3, 1761. The gift has been accepted by Fr. Domingos do Brito who requests his successors to follow the suggestions laid down by the benefactor. Book of PROVISÕES The territory of Macau was in possession of the Portuguese from 1557 and was administered from Goa, which was the capital of the Estado da India Portuguesa. The Islands of
Macau in the Goa Archives...
Projecto de desenho urbanístico de Velha Goa, elaborado pelo engenheiro militar José de Morais Antas Machado nas finais do século XVIII.
Solor and Timor were under the district of Macau, which was responsible for its administration. Therefore, while studying Macau, one cannot brush aside the history of Islands of Solor and Timor. In 1844 Macau and Timor were separated from the administration of Estado da India. However, Timor continued to be one district of Macau till 1894, except for a period from 1865-1878 when it was an autonomous district. In 1851 the governor J. J. Lopes de Lima directly discussed with the Dutch the surrender of Portuguese establishments of
Solor and Flores, in exchange of an enclave Maubara and 200,000 florins in cash. The Central government at Lisbon, which in the beginning did not want to sanction the accord, ended in accepting it in 18591. It was in1896 that Timor was definitely separated from Macau. D. Carlos chose Major J. Celestino da Silva to administer the territory.
the difficulties and delay in communication of Timor with Macau, which is prejudicial to its development. Considering that there is no reason of economic order, political or administrative, which justifies this dependence, it however manifests that all the conveniences suggest its dependence direct to the government in Lisbon.
The Portuguese government issued a decree dated October 15, 1896, which separated and made autonomous the district of Timor from the administration of Macau. The reasons given for this decision are
The article 1 of the decree says that Timor is declared independent of the province of Macau for all political and administrative effect. However, article 3 of the decree, says that the income of the district of Timor con-
_________________ 1
Verbo Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, Vol.17, Lisboa, Editorial Verbo, p.1544.
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tinues to be autonomous and it comprises of not only of its own income, but also an annual subsidy of 60,000 patacas, compulsory of the province of Macau. This will be exclusively recorded in the respective table of expenditure of Macau. Article 6 says that this subsidy will be put in practice from the next economic year. However, Macau will have to observe whatever was stipulated earlier and make good the deficit of the district of Timor. The staff will hence forth be responsible to the respective administration and Macau ceases to have any say in the matter 2.
particular Livro because it correlates to the Book of index (Cota 1590). The Provisões are indexed under different territories that appear in the books. These include Daman, Diu, Sofala and Timor, Macau, Mozambique, and even on Mangalore and Sião (Thailand). It would be very important if the Roteiro had mentioned or identified this particular book number 1590 as the index to these 6 books. It would simplify the work of the scholar and definitely save precious time of the user.
INDEX Book Nr. 1590
There are 10 volumes which refer to Provisões de Macau at the Goa Archives. Although the Provisões are shown under Macau in the ‘Roteiro dos Arquivos da Índia Portuguesa’ organised by Dr. Panduronga P. Pissurlencar, they also cover besides Macau orders dispatched to other colonies like Daman, Diu, Timor, etc. In fact these books have lot of information on Daman and Diu and would be an important source for those studying these pockets in the Praças do Norte of the Estado da India Portuguesa. Ten volumes of Provisões cover orders sent by the Real Fazenda de Goa for a period from 1769 to 1846. Books Nr. 1584 to 1591, 2226 and 2563 are part of the Provisões. One of the volumes of the Provisões, namely the book Nr. 1590 of the said Roteiro is in fact the index to 6 books that comprise the collections of Provisões, that is, from Book Nr. 1584 to 1591. Each book is numbered from Livro 1 to Livro 6. These numbers have been added by the Goa Archives on its book. It is very important to have this _________________ 2
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Legislação Novissima de 1896, p.558.
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The book is titled as Livro de Indice de Provisões de Damão e Diu, 18171825. The index covers the provisões sent from 1769 to 1821. This particular volume as already mentioned is the index to the other 6 books of the series of Provisões having the Cota 1584 to 1591. The territories covered in the index, include Daman, Diu, Solor e Timor, Macau, Mozambique, and even on Mangalore and Sião (Thailand). Under each territory the index is made based on different subjects or offices. For example with reference to Macau, the entries are as follows: Fazenda Real (King’s revenue), Confisco (Tax Collection), Estanco (tobacco shop), Tropas (military forces) and Alfandega (customs).
TIMOR AND SOLOR Book Nr. 2563, Provisões para Damão, Diu, etc. 1831-1846 As already mentioned Timor was dependent and subordinate to the
government of Macau for political and administrative affairs. The Fazenda Real had issued a Carta Régia dated January 4, 1820 to the Leal Senado de Macau which made a provision to help monetarily Timor with a subsidy of 6,000 patacas annually. This order was issued as Timor did not have enough and could not create financial support on its own. However, it is observed that inspite of the Carta Régia, Macau evaded to pay the subsidy and the Adjunto (assistant) of Islands of Timor and Solor wrote a couple of letters to the Junta da Fazenda at the City of Goa, regarding the non-implementation of the said Carta Régia. A provisão is sent based on an application of the Adjunto of Islands of Timor and Solor dated April 27, 1841, requesting the Junta to issue yet again orders to the Leal Senado not to abstain to send annually the stipulated subsidy of 6,000 patacas which is compulsory according to the Carta Régia of 4 January 1820. It was also informed that in the last few years the Senado had only sent half of the stipulated amount. The Junta taking note of the application of the Adjunto of Timor and with the prior information of Contador Geral and after having heard the Procurador da Coroa da Fazenda, sent an order dated August 30 of the current year (1841), to the Senado to expedite the said Carta Régia and make payments every year of the 6,000 patacas, with discount of the money the Senado had paid to the Missionaries of Malaca. And as per the orders the Senado should make the payments without fail. The order is dated May 4 1842. (p.568) The Adjunto of Timor also requested that a subsidy of 12$000 reis fortes
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be paid monthly to each of the priests Filipe Atanazio da Costa and Vitorino das Dores by the Leal Senado deducting the said amount from the subsidy stipulated by said Carta Régia. (p.571) However, inspite of the orders issued by the Junta da Fazenda to rigorously implement the Carta Régia and order the Real Senado to make regular annual payments it is observed that the Leal Senado did not comply by the said orders. A provisão dated March 5, 1842 sent by the Adjunto (Assistant) of the Islands of Solor and Timor to the Governor of the Estado da India, complaining about the Senado not following the stipulated with regard to the subsidy of 6 thousand patacas ordered by Carta Régia of January 14, 1820. He requests that this Carta Régia should be executed without wasting anytime, and make payments of the subsidy of the previous years, and to discount from it the expenses made with the voters, the salary of an official and the salary of the Governor of the same Islands, Jose Maria Marques. Further, requesting that the payment of the salary should be done in time and continue with needed certainty the said subsidy to satisfy what is laid down by the sovereign order, and which needs to be implemented by the said Senado. (p.625) The Leal Senado of Macau was not yet all happy with this order. They sent a representation dated December 23, 1842 to the Junta da Fazenda Pública to be dispensed from contributing to the Islands of Timor and Solor. The representation was discussed by the Junta and a reply sent to the Senado. The Junta informed the Leal Senado that their request to dispense with the
contribution of the subsidy has not been accepted as the Islands of Solor and Timor do not have the required financial means, which Macau has. Panjim, Junta da Fazenda Pública, Abril 1, 1843, signed by Antonio Ramalho. (p.626)
Book Nr. 2987 year 1797 Recovery of loans was always given priority as has been observed. It is obvious since the interest accrued on the loans was one of the sources of revenues to the treasury. In one particular case the Leal Senado did not execute the orders for recovery inspite of the Junta da Fazenda’s decision. Therefore the Junta sent an order to the Senado dated May 101,832 to recover an amount of 17,500 taes and interest thereon advanced to one Bernardo Gomes de Lemos, who was given a loan on January 15, 1812 to be repaid within ten months. The Junta therefore orders that the Leal Senado send to them all the papers under which it has taken decision not to execute the Junta’s orders so that the Junta decides to give its decision based on the steps taken by the Senado. (p.101)
Book Nr. 1584 MAINTENANCE OF RECORDS Macau was also an entreport between Goa and Island of Sofala and Timor. A provisão is made to send 50 arrobas of lead bullets for the fortresses of the Islands of Solor and Timor which have been handed over to the clerk of the ship João Remedios with instructions to hand them to the Adjunto of Macau. Further, the provisão orders the Adjunto of Macau to stock and send these bullets to the respective Adjuntos of the
Islands of Sofala and Timor on the first opportunity and occasion. (p.35) Many of the provisões dealt with are related to the financial problems. In fact lot of stress was laid on financial matters. Many of the orders sent from the City of Goa were regarding the maintenance of records. They mentioned that records were not maintained properly, or that the expenditure incurred by the city of Macao was not required. The issue of the loans advanced by the authorities and their recovery was discussed very often and orders issued to find out why necessary steps were not taken to recover the same. In fact if one observes the balance sheet it will be found that quite a big percentage of the income of the city of Macao depended on the interest accrued on the loans sanctioned to different individuals with the interest sometimes being as high as 25 percent and as low as 5 percent. Many of the provisões were issued in the name of D. Maria, the Queen of Portugal, by the City of Goa. For instance, an order of Her Majesty, the Queen, dated May 5, 1786 orders the Adjunto of the City of Macau to avoid flaws in the records of books of Income and Expenses of the Administration of Confisco and to observe the best of book-keeping procedures. (p.34) Another order in the name of Dona Maria is sent to the Adjunto of the city of Macau regarding income and expenses accrued by them in the year 1785. The order points out at the lapses committed by the clerk. Further, the order also mentions about an amount of 500 taes. This was recorded in the treasury of the Senado without informing the source of the income accrued, and without any agreement. The same order also pointed that debts were acquired without any
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documents or deeds in this regard. The balance sheet should show last year debts which should be carried in the next year and recorded. The debtors of 6 new loans and 2 of last year have not made any payments therefore the Adjunto is ordered to make necessary corrections in the register. (p33) There is an application of Dom Francisco Xavier de Castro, Governor of Macau who had applied for salary through the Real Fazenda. The Adjunto alleges that he was not aware of the orders of the Queen, who had given instructions not to pay the Governor, as he is a part of the Municipal Corporation (Senado da Camara de Macau) in conformity with the provision dated May 6, 1785. (p.35) One read a number of provisions regarding the recovery of loans. A list of debtors who acquired a loan is given. (p.36) The City of Goa requisitioned from the city of Macau different items including medicines to be used at the Military Hospital, the pharmacy of the hospital and for the Arsenal of Goa. Number of orders is sent by the government in Goa with lists of the required items from Macau to be used on the patients in the Military Hospital for the year 1787. Another two lists are provided one for the Botica (pharmacy) of the same Hospital and the other for the Arsenal Real. (p.37) Another list to provide to the warehouse of the Arsenal, and two more lists, one for the Hospital and another for the pharmacy of the Hospital. The order is dated April 7, 1787. (p.78) A provisão informs about the expenditure incurred at the Royal Seminary of Macau. (p.39)
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Inspite of all the orders and instructions on how to write the book of accounts and to make best efforts to recover the loans, the problems seems to be persist as one can read the provisão dated May 6, 1788 sent to the Adjunto da Cidade de Macau, who has been once again asked by the administration of the Estado da India to take necessary steps to write the books correctly and according to the instruction issued in this regard. He has also been asked to recover loans even using legal means and to try to avoid collecting debts. (p.137) It was not only material for the Arsenal, Hospital and the pharmacy which was requisitioned but also for other needs. For example we find a list of things mentioned for the dressing up of the hall of Junta do Estado, as well as the dining hall of the government. (p.139) A list of things required at the Hospital, arsenal and pharmacy of the hospital is given. The list of medicines and other items which are required from the city of Macau are also mentioned These provisões were sent in the year 1785. (p.227 and p.279) The Adjunto of the city of Macau was asked to spend the money from the safe of the Administração do Confisco for the purchase of things required for the Military Hospital in Goa. He was also instructed to see that they were well kept in the ships which will undertake the journey in the travel season (viagem de Monção). The goods should be sent alongwith the bill. In case the Adminstração do Confisco did not have sufficient funds to buy the goods, than if required, money from the treasury of the Administration may be used and in this case the Municipality of city of Macau should be informed immediately. (p.279)
The Book Nr. 1585 is the Livro de Registo de Provisões for the year 1781-1787 This particular volume is to register the provisions in the Contadoria Geral de Goa. The pages are numbered and counter signed by the treasurer of the Junta da Fazenda Real, Jose Joaquim da Silveira Rangel, and opened in 1781. As already mentioned earlier the emphasis of the government was on recovery of loans. One Jose Ribeiro de Guimaraes was ordered to be imprisoned for failure to pay the debt. Antonio Jose Pereira, the clerk of the Senado was asked to follow instructions laid down to register the loans according to the instructions laid down vide the Provisão of 9 May, 1780. (p.6) Instructions were sent on how to handle goods to be sent to Goa from Macau. In this particular case those responsible were asked to store with care the snuff (tobacco in powder form). Further, they were asked not to store it near the chillies. This recommendation was made because the previous year the consignment was stored next to the chillies. At the time Antonio do Rosario, was the Administrator of the Estanco de Tabaco of the city of Macau. (p.8) There is a provisão which approves the account submitted by the Governor D. Francisco Xavier e Costa. (p.10) Macau also sent medicines to the Islands of Solor and Timor. (p.15) The provisão dated July 15, 1784 refers to a loan of three thousand taes from Treasury of the Revenue Office (Cofre da Fazenda da Cidade de Goa), for the expenses of Pe. Manoel Correa Valente of the Congregation of Mission of St. Vincent of Paul and his companions of the Mission. (p.208)
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The Contadoria Geral da Junta of the Real Fazenda of the City of Goa, on behalf of the Queen D. Maria informs in a letter addressed to the Adjunto da Cidade de Macau that in the book of Income and Expenditure of the properties of the Administração do Confisco of that city of the year 1783, it was observed that many additions in expenditure have not been counter signed by the Adjunto who is responsible for expenses of the Convent of São Paulo of Macau. That there are many mistakes in the entries made in the records and to see that the same are not repeated.
A letter sent to Macau on May 12, 1791 gives the list of medicines and other requirements which in the travel season (Monções) of the next year 1792 should come from the City of Macau for supplying to the Hospital Militar and warehouses of this city of Goa. (p.36-38) Attention is called to the quality of goods to be supplied. This is required because of the quality of sugar sent this year which had lot of
mud, pieces of stone and of broken crockery, which led to reduced weight of sugar in these bags. On May 13, 1792 an order was sent to the Leal Senado wherein the Junta asked to provide the exact status of income and expenses of the goods of Confisco of the years 1791 and 1792 with the relevant information referred to in this order. Further, they were informed that the noncompliance makes the person ac-
Expenditure shows that money was used in purchase of wine and washing of laundry besides other expenses. It also directs the Adjunto to sell the gunpowder which is carried in the ships S. Antonio and Bom Sucesso owned by Simão de Araujo Rosa. The money accrued on the sale of the gunpowder, to be used in purchasing whatever is required by the Hospital Royal of Goa. In addition, to use the money to buy tar, barrels of gunpowder and other things mentioned in the list that was sent of goods required by the City of Goa. He is also asked to send the list of the things sent by him. (p.203)
Book Nr. 1586, Damão. Livro de Registo de Provisões 1791 a 1808 The book is numbered and signed by the Tesoureiro Geral, Manoel Maria da Silva e Gama. An order is sent to the Leal Senado on how to proceed against the defaulters of loans and how to recover them. (p.29) A list of the requirements for the Hospital Militar and the Arsenal Real is found. (p.32)
Planta da península de Macau desenhada por António Heitor, em Março de 1889.
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A report related to the sale of gunpowder and financial statement of the gunpowder products in the city of Macau is given. The report is given for the travel season (Monções) of the following years: 1816, 1817 and 1818. (p.121 and p.122)
Factura das encomendas embarcadas para a cidade de Goa no Brigue Belizario, com o Capitão Pedro Candido dos Santos Vital (Goods sent on Brigue Belizario from Macau to Goa). (Book Nr. 1589).
countable. They are also responsible to the losses and failure of the defaulters. (p.115 and p.118) This order is accompanied by a list of doubts which were found in the list of the recoveries from debtors in the year 1790. It also ordered in the same list, to proceed in the collection and give an account through the said Junta no sooner it is executed. Explanation of the failure in reporting or informing about the action taken with the reasons should be given. If not, it was informed that action will be taken at this end to solve whatever is convenient to the Royal service. However, the Adjunto did not follow the instruction and did not also update the accounts of the income, and expenditure, and debts as he had to do. The books also have the annual lists of the things required and sent from Macau to Arsenal Real and Hospital Militar and the pharmacy
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of the hospital for the year 1793 and 1794.
Books Nr. 1587 and 1588 Books Nr. 1587 and 1588 are numbered as Livro 4 in the Index. In fact they are two parts of the Livro 4. Since there were many provisões the correspondence was voluminous. For this reason there are two volumes. The Adjunto do Senado de Macau was ordered by the Junta da Fazenda Real to increase the cess on purchase, sale and auctions from immovable property, besides the existing five per cent so that the total will be ten per cent. (p.296, Book Nr. 1588)
Book Nr. 1589 (1818 to 1822) Das provisões para Damão e Diu and Mozambique.
There is also the case of one Antonio Vicente Roza which was discussed by the Fazenda. The correspondence concerning the loan acquired by Roza and the repayment of the same is discussed. The Senado is asked by the Fazenda to send all the correspondence regarding this matter, like the refusal of the bill, the bill and the answers given, and action taken to proceed against the borrower of the loan. (p.137) The surety of the bill Mr. Bernardo Gomes de Lemos could not repay the 320 patacas of the loan of Antonio Vicente Roza as his ship Pulpinao was kept in the Harbour which made him suffer losses, and his son having paid the remaining of the debt, the same is considered to be extinct by a notice sent by the Chief Secretary of the State. Therefore, the Senado is asked to reply immediately on receipt of the said notice. (p.209) Another provisão speaks about the impediments put by the heirs of Antonio Jose de Gamboa and his witness Joaquim Carneiro regarding the payment of the loan acquired by Gamboa. The Ouvidor Conselheiro, Miguel Bragança Brum de Silveira was instructed to shorten the discussions on this matter and take decisions to recover the money, since the impediments are not proved. The Senado was ordered to carry the auction and send to the Fazenda the amount accrued. If the orders are not done
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obeyed, the Senado should give an explanation. (p.208) As was the practice, things were ordered from Macau by ship. In connection with one such order the Senado informs that the goods will be sent by Brigue Santa Ana, till December 15, 1820 by ships of the route in the travel season, as it was not possible to send it by Navio Beleza as the Senado did not have sufficient time to execute the orders. A list of things sent to the capital of Goa by Brigue Belizario under the captaincy of Pedro Candido dos Santos Vital. (p.154 and p.155) There are also balance sheets dated October 24, 1820 that shows what the Leal Senado has to pay the Real Fazenda and what the Fazenda has to receive. (p.190-192 and p.211212) Details of expenses made by the Leal Senado with the frigate Temível of the capital of Goa by the Royal administration in charge of the Leal Senado. The charge of undertaking the said work was given to Mr. Antonio Vicente do Rosario Ajumborg, Clerk of Ouvidoria Geral, attached to this City of Macau by the Judge and Magistrate General (Conselheiro Ouvidor Geral) of the city of Macau. (p.276-285) A balance sheet is given at p.286 and 287 of the same book 1589.
Book Nr. 1591 (1822-1827) Loans or advance payments were made by the Fazenda Real to the staff posted at the city of Macau and these had to be adjusted by the Leal Senado while paying salaries to them. One of the provisões dated April 23, 1823 is related to the expenses
Pauta da despesa feita pelo Leal Senado de Macau com a Fazenda da Cidade de Goa (Balance sheet of expenditure by Leal Senado de Macau with the Fazenda da Cidade de Goa). (Book Nr. 1589).
by the Junta da Fazenda on the advances it made on the troops, advances it made to the officers and soldiers of the crew of the Fragata Salamandra which was going to Macau. The loan was of 4132 xerafins, four tangas and nine reis; the details of how much was paid per person are given. For example the Major of the 6th battalion João Cabral Estifique was paid an advance of 348 xerafins, 3 tangas and 15 reis as salary and for the horse. The advance is salary till the 21st of current month of June. Similarly the Chief surgeon Jose Caetano Machado was paid 108 xerafins. The Senado was advised to take note and make necessary deductions at the time of payments of salary at Macau. Other staff of the crew included 4 sergeants, one lance-corporal, 6 corporals, 3 drummers, 106 soldiers, one assistant of surgery. The latter belonged
to the Batalhões de Infantaria e Artilheria. (p.76) There is also an advance to Sergeant Jose de Espada, appointed for the Batalhão do Principe Regente of the city of Macau which is to be accounted in his salary, and the Treasurer of the Leal Senado is instructed to deduct 40 xerafins. Likewise Caetano Xavier Dias, clerk of the Accountant General’s Office (Escripturário da Contadoria Geral), incharge of the accounts of the Real Fazenda was given an advance of 800 taes, including the salary of 260 xerafins, that he gets paid as clerk The loan was given to undergo treatment at the Hospital Militar at city of Goa and to get ready for travel from Macau to Goa. This provisão is dated 5 April, 1826. (p.353)
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De Macau para a China: medicina ocidental* António Leite da Costa Professor e Investigador
Chego ao cair da tarde e entro na agitação de uma cidade cuja pressa parece sempre calma. Numa cidade que nunca pára, dia e noite, mas em que o tempo tem um ritmo diferente, pausado e certo, sem correrias loucas nem vagares em demasia. Entro também nele e acerto o passo, nesse ritmo cadenciado e certo. E quando vou apressado pela rua fora, sinto o coração sereno e calmo; e quando o coração se agita por rever velhos lugares e amigos que não esquecem, ando mais devagar, passo a passo, para poder saborear completamente um momento que não quero perder, que tenho medo me fuja gaiatamente por entre os dedos. Estou numa cidade em que se cruzam povos de todo o mundo, que vejo passar por mim, numa babel de línguas em que o cantonês naturalmente predomina mas onde aparecem ainda, teimosamente, sons e palavras portuguesas. Vejo-os nos autocarros, na rua, nos restaurantes, nas igrejas a falar a língua de Camões que aqui esteve e aqui viveu. São como nós lusíadas. Ou talvez mais. Embora tenham nascido no Oriente e aqui vivam e trabalhem. Foram eles que ao longo de sucessivas gerações criaram imorredoiros laços de amizade entre Portugal e a China. Que ainda hoje perduram na
Planta Geral da Cidade e Novo Porto de Macau, em 1927.
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* Comunicação apresentada no 4th International Annual Meeting on History of Pathology and Medicine, na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, no dia 1 de Julho de 2017. O autor agradece todo o apoio e colaboração prestada pela Profª Doutora Rosa Henriques Gouveia, do IAP da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.
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De Macau para a China: medicina ocidental
RAEM (Região Administrativa Especial de Macau, desde 1999). São os Macaenses. Fundado em 1557 pelos portugueses, Macau recebeu em 1583 o título de «cidade do nome de Deus». E desde então passou a ser uma cidade cristã encravada na China milenar. Mas também um aglomerado urbano de características muito especiais. É que desde o início da expansão marítima portuguesa, iniciada em 1415 com a conquista de Ceuta, criou Portugal um tipo de pequenas cidades costeiras, espalhadas por ilhas e continentes, inicialmente nas ilhas atlânticas, Madeira e Açores (séculos XV e XVI) e que, a partir de este último século até ao século XVIII, se estenderam da África ao Brasil, passando pelo Índico e o Oriente. Formam um conjunto extraordinário de que fazem parte Funchal, na Madeira; Ponta Delgada e Angra do Heroísmo, nos Açores; Cidade Velha, Praia e São Filipe, em Cabo Verde; S. Tomé e Santo António, em São Tomé e Príncipe; Cacheu, na Guiné, Luanda, em Angola; Ilha de Moçambique, em Moçambique; Cochim, Goa, Bombaim/Mumbai, Baçaim, Diu, Colombo, Galle. A que convém juntar no Extremo Oriente Malaca, na Malásia, Dili em Timor, Macau na China e Nagazaki no Japão. Sem esquecer, naturalmente, as cidades brasileiras de Belém, no Pará, São Luís do Maranhão, Olinda e Recife, no Pernambuco, Salvador, na Bahia, e Rio de Janeiro e Santos. Este tipo de cidades, «Modelo da Cidade Portuguesa da Expansão», como lhe chama o Prof. José Manuel Fernandes, arquitecto e professor da Faculdade de Arquitectura de Lisboa, que cuidadosamente as estudou e caracterizou, têm uma localização litoral ou costeira, com «baixas» comerciais e portuárias,
Santa Casa da Misericórdia.
apresentando uma estrutura urbana e edificada de adaptação ao sítio onde estão inseridas, constituindo uma «cidade de paisagem», dando primazia a sistemas de arruamentos que, de modo curvilíneo, se abrem e se fecham para largos, adros, terreiros ou rossios, com edifícios de uma arquitectura de pequena escala que, embora de base classicizante, denotam também influência local. Cidade aberta, foi através de Macau que o Ocidente penetrou no Oriente. A ciência, as artes e as letras. A filosofia e a teologia. E a religião católica que levou consigo a ciência, a cultura e a própria medicina. Sem esquecer, no domínio artístico, a noção da perspectiva, completamente desconhecida entre os chineses. Tudo isto, inicialmente sobretudo através dos padres jesuítas que de esta cidade irradiaram para todo o Império Chinês. Comecemos, no entanto, pelo princípio. No dia 15 de Agosto de 1498 é criada, sob o patrocínio régio da Rainha D. Leonor, a confraria da Mi-
sericórdia de Lisboa que viria a constituir um dos pilares essenciais de assistência e de apoio às camadas sociais mais frágeis da capital do Reino e futuro modelo de instituições similares espalhadas por todo o mundo português. Em 1559 é fundada em Macau a confraria de Nossa Senhora da Misericórdia por iniciativa de D. Melchior Carneiro, jesuíta, natural de Coimbra e primeiro reitor da Universidade de Évora (1551), bispo de Niceia, e que foi também, desde 1567, o primeiro bispo da China e do Japão. A Santa Casa da Misericórdia de Macau regeu-se inicialmente pelos Compromissos (Estatutos) da Misericórdia de Goa (1595), tendo no século XVII Compromissos próprios: Compromissos de 1627. Teve um hospital, criado por D. Melchior Carneiro, o primeiro hospital no Território e que assinala também a introdução da medicina ocidental na China. Além de este hospital, o futuro hospital de São Rafael, ou hospital dos pobres com leprosaria anexa, fundou ainda o Hospital de São Lázaro para os conversos chineses.
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O hospital da Santa Casa da Misericórdia, baptizado pelos chineses de yrenmiao, ou seja, «casa onde se tratam os doentes», tinha unidades de medicina interna e de cirurgia. Os doentes eram submetidos a exame da cor da urina e diagnosticados também através da palpação do pulso. Todos os medicamentos aplicados eram preparações líquidas, promovendo assim a introdução na China da prática ocidental de preparação dos medicamentos por destilação. Também para os doentes que eram submetidos a intervenções cirúrgicas havia medicamentos há muito usados na medicina ocidental, aplicando-se ainda óleo de cravoda-Índia, óleo de sândalo e óleo de flores de osmanto. Já no século XVIII, concretamente em 1755, os franciscanos abriram também um hospital em Macau. No século seguinte, desenvolveu-se ainda mais a medicina no território. Em 1820, João Livingstone, médico da Companhia Inglesa das Índias Orientais, abriu um hospital de medicina ocidental em Macau. E outro facultativo inglês, o Dr. Tomás Ricardson Colledge, criou nesta cidade um hospital de oftalmologia
Centro Hospitalar Conde de São Januário.
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que ganhou larga fama, pois consta que, em apenas cinco anos, deu assistência gratuita a seis mil doentes. Convém, a propósito, lembrar que foram os portugueses que introduziram os óculos na China, e também no Japão. Os chineses ficaram, de facto, muito impressionados com os óculos. No final da dinastia Ming (século XVII), um poeta chinês escreveu um poema que lhe era dedicado: «Objecto esquisito do Ocidente De novo torna a visão clara, Embora esconda os olhos, Traz mais brilho para dentro.» Um dos jesuítas que mais influência exerceu no Império do Meio, partindo de Macau, foi o sacerdote italiano Mateus Ricci. Este missionário soube de tal modo granjear simpatias que obteve o grau de mandarim e a presidência do tribunal das matemáticas na corte imperial, contribuindo, dado o favor de que gozava junto do próprio imperador, para difundir, não apenas o Cristianismo, mas sobretudo a ciência ocidental, desde a matemática à astronomia, sem esquecer a física e a medicina. De facto, deve-se a Mateus Ricci o
primeiro passo para a introdução da neurologia na China pois, em 1594, corria o ano 22 do reinado do imperador Wan Li (1573-1620) – 14º imperador da dinastia Ming (13681644) –, escreveu no Registo dos Países do Ocidente, capítulo «Yuanbenpian», o seguinte: «O lugar da memória encontra-se na cavidade craniana, sob o osso occipital por trás da fontanela…» Convém lembrar também outro jesuíta, Joanne Terrenz, que no 48º ano do reinado do mesmo imperador fez dissecações patológicas clínicas, após a sua chegada a Macau em 1620. E, no ano seguinte, tendo por base as teorias do pioneiro da dissecação na Europa, Andreas Vessalius, escreveu Análises Sucintas sobre o Corpo Humano, em dois volumes. Destinavase o primeiro à apresentação dos ossos, musculatura, pele, artérias e veias, sangue e nervos, enquanto o segundo descrevia o sistema nervoso, boca, olhos, nariz, língua, centro nervoso dos vários membros, acção e fala, indicando-se ainda e pormenorizadamente as formas e posições dos respectivos órgãos humanos. Os sacerdotes jesuítas Jerónimo Rho e Nicolas Longobardi, que de Macau penetraram na China, traduziram e compilaram, mais tarde, a obra Explicação Ilustrada do Corpo Humano, onde apresentaram, com carácter sistemático, o coração, fígado, baço, pulmões, rins, estômago, vesícula biliar, intestinos, bexiga, vasos sanguíneos, urina, útero, embrião e umbigo, através de 28 capítulos e 21 gravuras. Esta obra, juntamente com a anterior, contribuiu, de forma indelével, para o aperfeiçoamento dos conhecimentos sobre a dissecação entre os chineses. Deve-se também a dois jesuítas franceses, Jean-François Gerbillon e Joachim Bouvet, igualmente por
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empenho dos jesuítas portugueses junto da corte do imperador Kangxi (1662-1722) – 2º imperador da dinastia Qing (1644-1911) –, a introdução da anatomia europeia na China. Escolheram, para o efeito, a obra Anatome quartum renovata, de Thomas Bertholin, edição publicada em 1677, na cidade de Lyon. Chamou-lhes a atenção não só a expressividade e beleza das imagens que a ilustram, mas também a modernidade. É ainda de registar que uma tradução do estudo de Harvey, Regii exercitationes anatomicae: De motu cordis & sanguinis circulatione, fez parte da biblioteca imperial, desde provavelmente os finais do século XVII, reforçando, assim, o interesse por esta obra maior que atesta a descoberta mais inovadora da medicina europeia neste mesmo século.
médico chinês de medicina ocidental, tendo no ano 27 do reinado de Kangxi, em 1688, publicado Medicina Original, a primeira obra chinesa sobre medicina ocidental. Já no século XIX, no ano 10 do reinado do imperador Daoguang (18211850) – 6º imperador da dinastia Qing (1644-1911) –, ou seja, em 1830, Wang Quingren assimilou as teorias da dissecação que Mateus Ricci, Jerónimo Rho e Nicolas Longobardi tinham desenvolvido nas suas obras já referidas, e expôs no livro, em dois volumes, Correcção da Medicina, teorias e técnicas que combinavam a medicina ocidental com a chinesa, de modo a dar a esta um cunho mais científico, desenvolvendo por igual a teoria da determinação das causas da doença e processos de tratamento, através da autópsia dissecativa.
No reinado do imperador Kangxi, a medicina ocidental entra, no Império do Meio, numa fase prática. No 32º ano do seu reinado, em 1693, o imperador padeceu de várias mazelas: paludismo, tumor nos lábios e palpitações. O jesuíta Joanes de Fontanay aplicou-lhe cinchonina – alcalóide que produz quina –, curando-o assim do paludismo e também vários medicamentos ocidentais no tratamento do tumor nos lábios e nas palpitações. A cura do imperador reforçou a confiança quer na medicina quer na farmacopeia ocidental, tendo como consequência a nomeação de novos médicos pessoais na corte imperial, isto é, de um número considerável de jesuítas especializados na medicina ocidental. A introdução da medicina ocidental suscitou igualmente forte interesse entre alguns «mestres chinas» – médicos chineses tradicionais – que estudaram e passaram a exercer a medicina ocidental. Foi o caso de Wang Honghan, que se tornou no primeiro
Imperador Kangxi.
No século XIX Macau volta a assumir um papel fundamental na difusão da medicina e dos cuidados de saúde. Data de 1805 a primeira vacina antivariólica em Macau, feita pelo cirur-
gião do Senado, Dr. Domingos José Gomes, e cujos efeitos rapidamente se fizeram sentir. Não obstante a relutância da população chinesa em sujeitar-se livremente à vacinação, esta passou a ser habitual, através da instalação nos hospitais de postos de vacinação gratuitos, a partir de esta data. Um cirurgião inglês, Alexandre Pearson que tinha recebido vacinas de Manila e as tinha aplicado com sucesso em Macau, escreveu um artigo intitulado «A espantosa vacinação contra a varíola», que foi traduzido por um comerciante de Cantão, Zheng Chongquian, que na altura se encontrava em Macau. O próprio Alexandre Pearson deslocou-se a Cantão para vacinar os chineses de essa região. E Qiu Xi fazia frequentes viagens entre Cantão e Macau para praticar a vacinação contra a varíola, tendo, segundo os «Registos sucintos da vacinação da varíola», vacinado centenas de pessoas. Contou Macau com diversos hospitais. O primeiro, como sabemos, foi o hospital de São Rafael, criado e administrado pela Santa Casa da Misericórdia, e conhecido também como Hospital dos Pobres. Sofreu muitas vicissitudes e fortes remodelações em 1912-1913 e em 19381939. Só deixou de funcionar em 1975. O edifício alberga hoje o Consulado de Portugal em Macau. O Hospital de S. Januário, hospital militar, fundado em 1873, mas só inaugurado em 1874. O edifício primitivo, neogótico, foi mandado construir pelo governador de Macau, Visconde de S. Januário, e daí o nome do hospital. A sua capacidade aumentou com a criação de vários pavilhões em 1918. O Hospital Kiang Wu, cuja construção se iniciou em1871, é um hospital pertencente a uma Associação de Beneficência e dirigida por chineses. Os seus profissionais de saúde eram
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POEMA Vidro branco vindo dos Mares Ocidentais É importado através de Macau: Moldado em lentes do tamanho de moedas grandes, Eles cobrem os olhos numa armação dupla. Ponho-os – tudo se torna de repente claro; Posso ver os pormenores de todas as coisas! E ler letras pequenas com a fraca luz que vem da janela, Como quando era jovem. Kong Shangren (poeta da corte de Kangxi eYongzheng) (in Fernando Correia de Oliveira, “500 anos de contactos luso-chineses” Público/Fundação Oriente, p.104)
«mestres chinas» e as autoridades portuguesas tinham competência para inspeccionar as condições sanitárias. Houve também hospitais estrangeiros, todos de curta duração. O Hospital Oftalmológico, já referido, fundado em 1827 pelo oftalmologista inglês Tomás Richardson Colledge, e que só esteve aberto durante cinco anos (desde 1827 a 1832) e que dependia dos subsídios da colónia estrangeira de Macau. O hospital Inglês, fundado pelo mesmo médico, juntamente com os Drs. Parker e Bridgman, em 1838, e que encerrou em 1846, aquando da criação da colónia britânica de Hong Kong. E os Hospitais Naval Americano, fundado em 1845, e Francês, em 1858, na freguesia de S. Lourenço. Uma breve referência às farmácias em Macau. Para além das farmácias chinesas que ainda hoje existem no Território, foi criada uma «botica» – ou farmácia – ligada aos jesuítas de S. Paulo e que servia inicialmente a Misericórdia local. Mas com a ex-
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pulsão dos jesuítas, em 5 de Julho de 1762, a Santa Casa da Misericórdia viu-se sem o auxílio do boticário de S. Paulo. Só no final do século XVIII a Misericórdia de Macau conseguiu, através de Goa, uma nova «botica» e respectivo farmacêutico. Chegou então também outra de Lisboa. Mas em1791 o farmacêutico Joaquim José dos Santos pediu a demissão do cargo, acabando a Santa Casa da Misericórdia por lhe vender a «botica», com a condição de «pôr a botica ao serviço do povo». Foi a primeira farmácia ocidental aberta ao público em Macau. E nunca mais a Misericórdia teve farmácia própria. Um dos maiores romances da literatura portuguesa, da autoria de Henrique de Senna Fernandes, leva-nos, através das poderosas asas da imaginação, ao Macau da primeira metade do século XX, transportandonos, de corpo e alma, para o bulício e a agitação da cidade cristã e do bazar chinês. Amor e dedinhos do pé – assim se chama o romance – foi traduzido em inglês e chinês e dele se fez um filme de rara beleza
Ruínas de S. Paulo.
e sensibilidade. O laço que une o amor improvável entre um boémio inveterado e estroina e uma recatada solteirona é, imagine-se!, uma infecção quase incurável dos dedos dos pés do protagonista que recebe, por isso, a alcunha de Chico-PéFêde. E aqui sobressai, uma vez mais, a dualidade e a interligação entre a medicina tradicional chinesa e a medicina ocidental. Mas este romance é muito mais do que isso. É, verdadeiramente, o romance de Macau, uma obra cuja leitura nunca esquece e fica para sempre enraizada dentro de todos nós. Passo a passo, degrau a degrau, vou subindo a escadaria que me conduz à fachada da igreja de Nossa Senhora Mãe de Deus, em latim, Mater Dei, como se encontra gravado no lintel da porta de entrada principal. Degrau a degrau, passo a passo, olho para o céu e nele vejo recortada a fachada da igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, a quem foi dedicado este espaço sagrado que fazia parte do Colégio de Nossa Senhora Mãe de Deus, a primeira universidade europeia no Extremo-
De Macau para a China: medicina ocidental
Oriente, fundada pelos jesuítas, em 1594, nesta cidade de Macau. Passo a passo, degrau a degrau, subo devagar a velha escadaria em direcção à fachada que, com o tempo, ganhou o nome de fachada de S. Paulo, nome que vulgarizou também o colégio anexo, e que, no século XVII, muitos consideravam como tendo comparação apenas com a Basílica de S. Pedro, em
Roma. Ponto de encontro do Ocidente com o Oriente, é desde o dia 15 de Julho de 2005 Património Mundial da Unesco. E aqui se encontram ainda hoje muitas e variadas gentes que a visitam diariamente, por esta mesma escadaria subindo, passo a passo, degrau a degrau. Passo a passo, degrau a degrau, vou subindo também a escadaria.
Cruzo-me com turistas de quase toda a Ásia e um ou outro europeu que, num corrupio incessante, ora sobem, ora descem. Subo lentamente, olhos postos na fachada em ruínas que, para mim, continua a ser uma das mais belas do Mundo. Pois foi por ela e através dela, nesta belíssima cidade de Macau, que o Ocidente entrou no Oriente e o Oriente penetrou no Ocidente.
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Camilo Pessanha e João de Araújo Correia António Aresta Professor e Investigador
A propósito dos cento e cinquenta anos do nascimento de Camilo Pessanha, parece-me interessante convocar algumas histórias e controvérsias que andam por aí perdidas ou arredadas da sua arquitectura biográfica. E como escrevia Guimarães Rosa, narrar é resistir para não esquecer. Evoco aqui João de Araújo Correia em virtude do seu interesse e admiração por Camilo Pessanha e pela sua família. Em diversos artigos publicados no suplemento literário do jornal “O Comércio do Porto”1, na década de sessenta, ajudou a trazer uma enorme visibilidade a Camilo Pessanha, sobretudo a alguns aspectos mais negligenciados da sua biografia. Camilo Pessanha era um “poeta estranho, nirvânico, cioso de se parecer com um verme, impõe a devassa do íntimo, como quem diz da sua vida, para melhor se compreender a sua obra”2. Foram todos esses apontamentos recolhidos nos livros “Ecos do País” (1969), “Pó Levantado” (1974) e “Nuvens Singulares” (1975). De resto, “O Comércio do Porto” dedicou a Macau uma invulgar atenção, tendo acolhido, por exemplo, as “Cartas da China”, informativas e polémicas, de José Gomes da Silva, que ainda permanecem desconhecidas. E sem esquecer a longa colaboração de Wenceslau de Moraes. _________________ 1
Um grande jornal fundado no Porto em 1854 e que cessou a sua publicação em 2005.
2
“Pó Levantado”, Imprensa do Douro Editora, 1974, p. 128.
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João de Araújo Correia (1899-1985), natural da Régua, médico e escritor, considerado um dos grandes con-
Camilo Pessanha e João de Araújo
tistas portugueses contemporâneos, o “mestre de todos nós”, na expressão feliz de Aquilino Ribeiro é, lamentavelmente, uma figura literária bastante esquecida. João de Araújo Correia recordava com muita ironia que o “Mestre da Língua é o grande escritor morto e esquecido ou o grande escritor vivo e ignorado”3. Entre a sua vasta obra destacam-se “Contos Bárbaros” (1939), “Três Meses de Inferno” (1947), “Montes Pintados” (1964), “Enfermaria do Idioma” (1971), “Uma Sombra Picada das Bexigas” (1973) ou “Pátria Pequena” (1977). Ferreira de Castro dizia que “João de Araújo Correia é um poderoso escritor. Um dos melhores contistas que tem tido a nossa língua”. Todas as informações sobre Pessanha recolheu-as João de Araújo Correia de várias fontes, quase todas apertadas por laços de amizade. Desde logo, uma amiga do Porto, Sofia Agrebom, farmacêutica, professora no Liceu de Macau e directora do jornal a “Verdade”, ela mesmo uma interessante figura a resgatar do olvido. Foi ela que lhe emprestou o exemplar da “Verdade”, de 2 de Junho de 1910, onde estava transcrito o essencial de uma conferência de Camilo Pessanha sobre a estética chinesa. João de Araújo Correia nota “que a folhinha de Macau resume sem a deturpar. Cinge-se à súmula que o poeta lhe forneceu. Mas, quantas vezes a súmula é roupa de franceses em mãos defeituosas. No céu esteja a “Verdade”, que não esfarrapou o extracto fornecido por Camilo Pessanha”4. Recordar ainda que foi Miranda Guedes, conterrâneo da Régua e director das Obras Públicas
de Macau, que fez a apresentação de Pessanha, no Grémio Militar, enfatizando “a maneira musical de segredar os versos, nunca esquecível por quem os ouviu”5. Miranda Guedes era amigo de António José de Almeida e logo após a instauração do regime republicano em 1910, foi nomeado governador de S. Tomé e
_________________ 3
“A Língua Portuguesa”, selecção, prefácio e notas de Fernando de Araújo Lima, Verbo, s\d, p. 83.
4
“Nuvens Singulares”, Imprensa do Douro Editora, 1975, p. 105. “Nuvens Singulares”, idem, p. 104.
5
Príncipe, tendo terminado a sua carreira na Câmara Municipal do Porto. João de Araújo Correia privou muito de perto com o padre Jerónimo de Matos, amigo do Pai de Pessanha, que lhe confidenciou, “havias de ver as cartas que ele escrevia ao pai. Cartas maravilhosas”. E acrescenta, “recordo o padre Jerónimo e o fascínio que lhe produziam as cartas do poeta escritas a seu pai. Onde parará essa correspondência?”. Algumas dessas cartas foram preservadas
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do Juiz Pessanha, isto é, que não era homem de carácter. De uma vez que o poeta, na Praia Grande, conversava com um grupo de amigos, entrou na roda o tal sujeito. Mas, não se demorou. Disse duas tretas e logo se despediu. Camilo Pessanha, com grande espanto do adjunto, correspondeu à despedida com uma zumbaia tão meticulosa, que varreu com a barba o chão da Praia Grande. Um dos amigos, chumbado com o disparate, murmurou: o doutor não gosta do rapaz, mas, quando ele se despediu …. Réplica de Camilo Pessanha: está enganado, meu amigo. Quanto mais baixo é o indivíduo, mais baixo é o meu cumprimento”6.
As duas pequenas histórias, narradas por João de Araújo Correia, ajudam a recortar melhor o perfil psicológico de Camilo Pessanha e a sua fulgurante inteligência, também o modus vivendi de Macau. As histórias valem o que valem, insiro-as no léxico da desconstrução, segundo a perspectiva cunhada por Jacques Derrida. O ethos de Camilo Pessanha e o pathos de Macau jamais estiveram em sintonia porque o sistema de valores e as tradições enraizadas foram vividas e pensadas com uma energética contraditória e desalinhada.
A segunda história: “De outra vez, na mesma Praia Grande, que é uma avenida à beira mar, como a de Carreiros, aí na Foz, juntou-se o mesmo grupo. Daí a pouco, entrou nele um poetastro, um escritorelho ou literatelho. Entrou e saiu. Pouco se demorou, mas, não foi sem rabo-leva. Pespegou-lho nas costas, em forma de epigrama, o Camilo Pessanha. Ia o mísero a dois passos, perguntou o poeta: querem ouvir? Não disseram que sim nem que não os amigos de Camilo Pessanha. Mas, viram-lhe sair da boca a seguinte quadra: Cabeça! Que desconsolo! Até faz pena dizê-lo! Por fora, nenhum cabelo! Por dentro, nenhum miolo!“7
A primeira história: “O poeta, desterrado em Macau, onde exerceu vários cargos propiciados pelo seu grau de bacharel em Direito, não podia ver na sua frente, modo de dizer, uma figura que por ali passava, certo cavalheiro que não era filho
João de Araújo Correia acrescenta este incisivo comentário: “Teve Camilo Pessanha ocasião de poetar repentino, fluente, natural como se lhe assistisse, em Macau, a alma de Bocage. Esqueceu as preocupações crucificadoras do simbolismo. Se as-
e publicadas, mas, suspeita-se que a grande maioria se tenha perdido.
_________________ 6 7 8 9
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“Pó Levantado”, Imprensa do Douro Editora, 1974, pp. 128-129. “Pó Levantado”, idem, p. 129. “Pó Levantado”, idem, p. 129. “Nuvens Singulares”, idem, p. 105.
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sim se pode dizer, esqueceu-se de si próprio para ser ele próprio, isto é, folha de vide ancestral, sem enxerto em pé estranho, sem pitada de enxofre nem sulfato. Bastou uma irritação do córtice, produzida por olho de pateta, para pôr em giro, numa rede de veias portuguesas, uma sátira à moda velha”8. Cabe perguntar, que destino levou essas poesias soltas e repentistas? A evocação de Camilo Pessanha fica assim rematada com esta judiciosa observação: “o simbolista que vivia em Macau desde 1894, foi grande colecionador de arte chinesa. Mas, espírito crítico sem freio, não adorou de borco essa arte. Não se submeteu à estética chinesa. Julgou-a de acordo com o seu pensar e o seu sentir. Considerou que a arte chinesa, fina arte decorativa, nunca chegou a ser filosofia inspirada num alto pensamento”9. Um repto final. Procure o leitor descobrir ou redescobrir a obra literária de João de Araújo Correia. Terá seguramente uma boa surpresa e poderá ficar melhor preparado para compreender o Portugal mental da segunda metade do século XX.
A Nova Rota da Seda Marítima do Século XXI
Os Países de Língua Portuguesa na Cadeia de Valor Global da China
Fernanda Ilhéu Prof. ISEG. Coordenadora ChinaLogus/ISEG. Presidente Associação Amigos da Nova Rota da Seda
As Cadeias de Valor Global e a China No Fórum de Davos de 2017, o Presidente Xi Jinping pela primeira vez desafiou aos EUA a liderança do processo de globalização, afirmando “Se os EUA adoptam uma via mais mercantilista, os Asiáticos e Europeus em geral terão de se combinar para preservar o comércio livre” … “Nós devemos permanecer comprometidos com o desenvolvimento do comércio livre global e investimento”. No seu discurso Xi Jinping identificou dois problemas muito importantes “A economia global tem permanecido lenta há já algum tempo. O gap entre ricos e pobres e entre o Sul e o Norte está a aumentar” e identificou 3 causas chave; a falta de forças motrizes para o crescimento global, a governação económica global inadequada e o desenvolvimento global desigual. A China sente que por ser a 2ª Economia Mundial tem a obrigação moral de ativamente contribuir para a solução destes problemas apresentando um novo modelo conceptual para o desenvolvimento económico global. A China aproveitou a oportunidade que o novo presidente americano lhe deu ao afirmar uma atitude protecionista de fechamento ao mundo e proclamação da Amé-
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rica primeiro, indiferente aos equilibrios mundiais, para afirmar no Fórum mais importante da economia mundial, que assumia a responsabilidade de liderar o processo de globalização. Assumiu também que o processo de globalização tem problemas e ameaças mas também tem aspetos muito bons reconhecendo que “A China não só beneficiou da globalização económica mas também contribuiu para isso. O rápido desenvolvimento da China tem sido um motor sustentável e podoroso para a expansão e estabilidade económica global”. De facto de acordo com o Banco Mundial nos primeiros 38 anos da Reforma Económica da China 700 milhões de pessoas naquele país, sairam da linha de pobreza absoluta. O economista chinês Justin Yifu Lin ex-vice Presidente do Banco Mundial refere no seu livro Demistifying the Chinese Economy (2011) que em 1978 o rendimento per-capita nominal na China era de US$210 e afirma que a mudança do destino da China começou em dezembro de 1978 quando o 3º Plenário da 11ª Sessão do Comité Central do Partido Comunista Chinês lançou a política de Reforma e Porta Aberta, para reformar a estrutura económica chinesa com o objetivo de se abrir ao exterior para obter mais comércio ex-
terno. Este processo teve um êxito enorme sobretudo a partir de dezembro de 2001 quando a China aderiu à Organização Mundial do Comércio. Nessa altura a China abriu-se ao Mundo e o Mundo também se abriu à China começando a mudar a geoeconomia global. Em 2010 a China era já a 2ª Economia do Mundo depois de ter ultrapassado o Japão e em 2015 o rendimento per-capita chinês era de US$8278 em termos nominais e de US$14300 em termos de PPP (paridade do poder de compra), portanto a China posiciona-se agora como um país de rendimento médio. Neste processo de crescimento acelerado a China arrastou consigo e beneficiou a economia global do Sul devido à integração na China das Cadeias de Valor Global (CsVG) das Empresas Transnacionais (ETNs), que transformaram a economia chinesa na fábrica do mundo, verdadeiramente podemos dizer no estádio final dos networks de produção da Ásia e consequentemente no maior mercado de aquisição de muitas matérias-primas, produtos semiacabados e energia dos países menos desenvolvidos na Ásia, África e América Latina. A sinergia do modelo chinês foi também altamente benéfica para o poder de compra de milhões de europeus e americanos das classes médias e baixas que
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poderam usufuir de mais conforto ao adquirirem produtos de baixo preço fabricados na China. Podemos assim referenciar como o inicio da 1ª fase de globalização da China a Politica de Reforma e Porta Aberta com um modelo que utilizou a cultura e alguns provérbios chineses para ser comunicado e entendido internamente e que se apresentou como experimentalista “atravessar o rio sentido as pedras debaixo os pés”, gradualista “quando se abre uma janela entram ar fresco e mosquitos” e pragmático “não interessa se o gato é preto ou branco desde que cace o rato” mas onde sobretudo progressivamente se implementaram políticas que tiveram claramente como objetivo atrair o Investimento Direto Estrangeiro (IDE) das ETNs para integrarem a China nas suas CsVG e a utilizarem como plataforma exportadora. Essas políticas foram estruturantes em termos de mudar as infraestruturas físicas e legais da China, e não se pode deixar de referir o impacto que no seu tempo tiveram as 4 Modernizações (agricultura, indústria, defesa, ciência e tecnologia) e a Criação das Zonas Económicas Especiais iniciada no final dos anos 70 e início dos 80, a privatização de pequenas e médias empresas que ficou conhecida pela política de Agarra as Grandes deixa ir a Pequenas Empresas lançada em 1990, o lançamento da Economia
Socialista de Mercado em 1992, a Go West e a Go Global implementadas a partir do ano 2000 a primeira com o objetivo orientar o investidor para a zona Ocidental da China e a segunda para fomentar a globalização das empresas chinesas consideradas os campeões nacionais. Estas políticas vistas à luz do racional económico das Teorias das Cadeias de Valor Global, dos Gansos Voadores e da Eclética fazem todo o sentido na lógica de atrair capital estrangeiro, tecnologia, produção e compradores estrangeiros. Essas teorias e modelos dizem-nos que o crescimento económico está relacionado com as CsVG que contribuem em média com 30% do PIB dos Países em Desnvolvimento. Estas Cadeias estabelecem fluxos comerciais de bens intermédios e serviços entre diferentes locais do mundo que vão incorporados em vários níveis do processo de produção até o produto acabado ser entregue ao consumidor final pelas ETNs. Em 2013 estas empresas coordenavam CsVG que eram responsáveis por 60% do comércio global de bens e serviços. De notar o aumento progressivo da importância destas CsVG visto que em 2011 elas eram responsáveis por 49% do comércio mundial e em 1995 por 36% (World Investment Report, UNCTAD 2013; International Statistics 2015). Isto mostra uma tendência crescente na progressiva es-
pecialização dos países em estádios de produção de bens, conhecida por especialização vertical, resultante das decisões de IDE destas empresas que assim criam novas oportunidades de comércio internacional. O Modelo dos Gansos Voadores de Akamatsu (1962) conclui que no desenvolvimento da indústria e tecnologia existe uma interação entre os paises desenvolvidos e os países em desenvolvimento uma vez que o investimento, a tecnologia e a produção voam dos países mais avançados para os menos avançados, utilizando a divisão internacional de trabalho baseada na dinâmica das vantagens comparativas. Na Ásia o ganso líder é considerado ser o Japão, seguido dos Dragões, e depois pelos Tigres e depois China e depois o Vietname, o Camboja… Sabemos também que em conformidade com a Teoria Eclética do Investimento Direto Estrangeiro (Dunning J.H. 1980; 1988) os mercados escolhem as empresas que os vão fornecer de acordo com as vantagens específicas das empresas e essas empresas depois escolhem os lugares no mundo onde vão produzir esses produtos de acordo com as vantagens próprias locais, e ao fazer isso elas vão internalizar as vantagens competitivas desses países na sua cadeia de valor. Percebe-se assim que as políticas adoptadas pela China para convencer as ETNs dos países mais desenvolvidos a integrarem as suas CsVG na China decidindo ali investir, e para ali transferindo tecnologia e produção se concentrassem sobretudo na criação de vantagens especificas locais. Foi grande o compromisso do governo chinês na construção de infraestruturas físicas, na transformação da moldura legal tornando-a mais aberta e flexível e no desenvolvimento de políticas promocionais de atração de
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IDE sobretudo junto das comunidades dos chineses ultramarinos. Não teria sido possivel a China transformar uma economia agrária, tecnologicamente atrasada e completamente centralizada, numa economia industrial orientada para os mercados, no curto espaço de tempo em que a China o fez, sem o contributo das reformas feitas, do investimento direto estrangeiro, e a participação dos chineses ultramarinos. Novo Paradigma de Desenvolvimento e a Cadeia de Valor Global da China Mas a política do Produto Interno Bruto primeiro, se teve resultados rápidos e proporcionou a ascenção da China a 2ª Economia Mundial, com sinergias positivas na vida de milhões de pessoas que na China e em outras geografias do mundo melhoraram o seu nível de vida também criou muitos problemas. Nomeadamente tornou-se preocupante a forma de crescimento da economia chinesa cada vez mais insustentável em consumos energéticos com problemas ambientais, com cidades em que a poluição atinge níveis de toxidade que colocam a saúde em risco. A China tornou-se também numa sociedade altamente dividida com grandes disparidades na distribuição do rendimento, quer entre ricos e pobres quer entre habitantes das zonas urbanas e das zonas rurais, com estas em declínio com consequências económicas e sociais nefastas, por um lado a desertificação acentuou a escassez de produtos agrícolas já de si preocupante porque a terra arável na China sempre foi pequena, por outro lado a forma como a industrialização e urbanização foram conseguidas com grandes fluxos de milhões de migrantes socialmente não enquadrados, criou
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problemas humanos e familiares graves. O governo chinês começou no 11º Plano Quinquenal (2006-2011) a tentar corrigir estes e outros desiquilíbrios como o excesso de capacidade instalada em muitos setores industriais nomeadamente os ligados à construção, a liquidez massiva aplicada à economia especulativa, a bolha imobiliária e os créditos bancários mal parados. Um novo paradigma de desenvolvimento começou a ser construído com o focus já não no crescimento rápido do PIB, mas no crescimento do PIB per-capita e em outras fontes de crescimento alternativas. Começa neste Plano Quinquenal a esboçar-se um novo modelo de desenvolvimento dentro da visião de Hu Jintao de um “Desenvolvimento científico” e uma “Sociedade harmoniosa” com novas áreas prioritárias como redistribuição do rendimento, a poupança de energia e uma energia verde, o sistema de saúde pública e os sistemas de ambiente e educação. O Plano de Médio-e-Longo Prazo para o Desenvolvimento de Ciência e Tecnologia aprovado pelo Conselho de Estado em 2006 e com horizonte temporal de 15 anos pretende uma Sociedade Orientada pela Inovação em 2020 com não mais de 30% de importação da tecnologia utilizada e ambiciona tornar a economia chinesa na lider global da inovação em 2050. Esta mudança de paradigma tem sido um processo longo e persistentemente defendido por sucessivos governos. Em Setembro 2015 no 9º Forum de Verão de Davos em Dalian o Primeiro-Ministro Li Keqiang referia que “Sem transformação estrutural e melhorias não seremos capazes de sustentar o crescimento económico a longo prazo” a “longo prazo o governo terá de enfrentar excesso capacidade de produção e
aumento de créditos mal parados” e no 12º Plano Quinquenal (20112015) fala-se na evolução da China da fábrica do mundo para a fábrica da China e da fábrica do mundo para o escritorio do mundo e aponta-se como chaves para a transformação económica o aumento do consumo interno especialmente de serviços, a conservação da energia, a proteção do ambiente, um desenvolvimento regional mais equilibrado com maior ligação entre as províncias do centro e ocidente com ligações de caminho-de-ferro de alta velocidade, a diminuição do gap entre o mundo rural e o urbano e um crescimento futuro baseado na qualidade e na eficiência o que coloca um imperativo na inovação tecnológica nos processos de gestão, governação e nos comportamentos. O 13º Plano Quinquenal (2016-2020) prossegue esta orientação e coloca como objetivo atingir o rendimento per-capita em US$12000 em 2020 e maior urbanização por forma a aumentar o consumo. Mas este Plano vai introduzir um outro objetivo importante que é a melhoria da indústria chinesa, pretende-se o desenvolvimento da Indústria 4.0 através da implementação dos Planos Made in China 2025 e Internet Plus. Porque para evitar a “Armadilha do Rendimento Médio” a China precisa de subir na cadeia de valor. Para conseguir obter estes objetivos a China reforça a sua política de Going out já não interessa só captar IDE para integrar as CsVG na China o jogo agora passa a ser liderar essas cadeias e integrá-las no mundo por forma a internalizar as vantagens de outros países nas empresas globais chinesas cuja orientação é deixar de ser “só cópias … A China expandir-se-á através das suas próprias inovações e através de aquisições” (Neil Shen do Sequoia’s Capital, Economist 12/09/2015). Ao caminhar
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para este novo modelo de desenvolvimento a China está a entrar no que se pode considerar a 2ª fase da globalização da China, uma fase mais proactiva em que o seu modo de entrada em outros mercados é para além de exportações ativas diretas o Investimento Direto Estrangeiro Exterior (IDEE) sobretudo na forma de Fusões e Aquisições.
chinesas como principais produtores globais e a União Europeia (UE) como a principal região do mundo de consumo de produtos de alta qualidade.
nomic Partnership uma zona de comércio livre entre a ASEAN e China, Austrália, India, Japão, Coreia do Sul, Nova Zelândia, a SCO (Shanghai Cooperation Organization) o CEPA
Cadeia de Valor Global da China Médio e Extremo Oriente e África Principais Fornecedores de Recursos
Uma Faixa Uma Rota, a Nova Rota Marítima do Século XXI e a Cadeia de Valor Global da China Ainda antes do mundo ter tomado conhecimento da atitude protecionista dos EUA na era Trump, o Presidente chinês Xi Jinping lançou em 2013 uma inicitiva ambiciosa que pretende simultaneamente resolver os problemas globais e os da China referidos acima. Essa iniciativa Uma Faixa Uma Rota, a Nova Rota Marítima do Século XXI, normalmente referida como a Nova Rota da Seda, tem uma forte componente economicista e pretende alcançar uma nova fase da globalização mundial, respeitando no entanto a filosofia confucionista de Harmonia no Mundo e na Sociedade Global. De acordo com o documento orientador desta iniciativa Vision and Actions in Jointly Building Silk Road Economic Belt and 21st Century Maritime Silk Road publicado em março 2015, pela Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma do Ministério do Comércio da República Popular da China “A iniciativa permitirá à China expandir mais e aprofundar a sua abertura e fortalecer a cooperação mutuamente benéfica com países na Ásia, Europa e África e o resto do mundo”. A China propõe-se desenvolver CsVG lideradas por empresas chinesas integrando nelas empresas de África, Médio e Extremo Oriente como principais fornecedoras de recursos, empresas
UE Principal Região de Consumo Alta Qualidade
China Principal Produtor Global Cadeia de Valor de Elevado Potencial
A visão deste documento é a construção de um network de zonas livres de comércio, uma forma dos países interligarem as suas estratégias de desenvolvimento, complementando as suas vantagens competitivas. A cooperação no investimento e comércio é um objetivo principal na implementação desta iniciatva e a eliminação de barreiras à circulação de capitais e produtos, assim como a abertura de areas de comércio livre são tarefas essencais para expandir o potencial de cooperação entre os países da Nova Rota da Seda. O aumento de cooperação no investimento e comércio é um dos principais focus dos Acordos de Parcerias Estratégias, que China assinou já com 47 países (a parceria com Portugal foi assinada em 2005) e 3 espaços integrados a Ue, a ASEAN e a União Africana. É também uma razão chave para o reforço de processo de integração económica entre a China e várias áreas geográficas como a ASEAN-China Free Trade Area, a Regional Comprehensive Eco-
(Close Economic Partnership Arrangement). Também na agenda de negociações com a UE está a criação de uma zona de livre de comércio euroasiática que no entanto não tem tido progressos, porque a UE considera ainda não estarem reunidas as condições de abertura do mercado chinês aos parceiros europeus com o mesmo grau de reciprocidade com a China pretende que os mercados europeus se abram à China. Em termos tangíveis é um enorme projeto de construção de infraestruturas de tranportes e bases de produção e logistica ligando a China à Europa com uma rota terreste que percorre 6 corredores e uma rota marítima, que é praticamente traçada no percurso inverso à rota que os navegadores portugueses fizeram nos séculos XV e XVI, estas rotas começam em vários locais da China e vão até Duisburg na Alemanha, percorrendo vários caminhos onde vão criando zonas de comércio livre, investimento e desenvolvimento. Os
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países que quiserem integrar esta Nova Rota da Seda deverão preparar-se para cooperar pacificamente num projeto global que pretende ser integrativo, construído em conjunto por todos e bom para todos “win win” e não um jogo de soma zero. A China liga a iniciativa Uma Faixa Uma Rota com duas iniciativas complementares a ‘A Cooperação na Produção Internacional’ e ‘Cooperação em Mercados de Terceiros Países’. A iniciativa ‘Cooperação na Produção Internacional’ pretende combinar a produção industrial da China com a procura global existente e a ‘Cooperação em Mercados de Terceiros Países’ pretende combinar a capacidade de produção da China com a tecnologia avançada e equipamentos de países desenvolvidos para em conjunto desenvolverem mercados nos países em desenvolvimento. O PrimeiroMinistro Li Keqiang, afirmou no Summer World Forum em Davos 2015 que “Nós acreditamos que estas iniciativas podem ajudar a abrir mais o nosso país e a forjar uma cadeia industrial global mais equilibrada e inclusiva”. A China trabalhará com os Países da Rota em projetos de interesse bilateral e multilateral e irá tentar ligar estas inciativas com as estratégias de desenvolvimento dos países envolvidos, para isso alocou recursos consideráveis a esta iniciativa tendo criado o New Silk Road Fund com $40 mil milhões para promover o investimento privado ao longo de Uma Faixa Uma Rota, o Banco Asiático Investimento em Infraestruturas com um capital inicial de $50 mil milhões com financimento de 47 países (Portugal é um deles) mas que deverá chegar rapidamente aos $100 mil milhões uma vez que existe uma lista de 25 países que mostra-
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ram interesse em entrar com capital para este banco e o China Development Bank que declarou a intenção de investir US$900 mil milhões na iniciativa (Bert Hofman, Banco Mundial, 12/04/2015). A China aderiu também recentemente ao Banco de Reconstrução e Desenvolvimento Europeu, que não irá investir na China mas permitirá às empresas chinesas investirem em projetos de reconstrução e desenvolvimento em países europeus membros do Banco e que apoia sobretudo a construção de projetos de infraestruturas e energia. A questão que se coloca é como coordenar as diferentes economias ao longo de Uma Faixa e Uma Rota? A Cadeia de Valor Global da China e os Países de Língua Portuguesa No caso da Cadeia de Valor Global da China com os Países de Língua Portuguesa a responsabilidade de coordenação das economias destes países a esta iniciativa está acometida ao Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa criado em 2003 com um Secretariado Permanente em Macau
com o objetivo de transformar Macau numa Plataforma de Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa e ao Fundo de Cooperação para o Desenvolvimento entre a China e os Países de Língua Portuguesa que financia os projetos. A China deverá tentar ligar esta iniciativa com as estratégias de desenvolvimento dos países envolvidos e no caso dos Países de Língua Portuguesa é importante que estas instituições que em Macau têm a responsabilidade de coordenação tenham um bom conhecimento das realidades e dos projetos desses países. O Fórum de Macau realizou de 2003 a 2016 cinco Conferências Ministeriais e cinco Planos para a Cooperação Económica e Comercial. Na cerimónia de abertura da 5ª Conferência Ministerial do Fórum que decorreu em Macau a 11/10/2016 Chiu Sai On Chefe Executivo do Governo da Região Administrativa Especial de Macau referiu que “O objectivo do Fórum de Macau é a lógica subjacente à estratégia Uma Faixa uma Rota são semelhantes”. Em 2016, Macau elaborou pela pri-
Cadeia de Valor Global da China e os Países de Língua Portuguesa Angola; Brasil; Moçambique; Cabo Verde; Guiné Bissau; São Tomé e Príncipe; Timor-Leste
China; Macau
UE; Portugal
Cadeia de Valor de Elevado Potencial
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meira vez um Plano de Desenvolvimento Quinquenal que tem como prioridades a participação de Macau na estratégia “Uma Faixa, Uma Rota” e a construção da “Plataforma de Serviços para a Cooperação Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa”. Durante a 5ª Conferência Ministerial várias medidas de apoio foram anunciadas por Li Keqiang como a concessão aos países membros do Fórum de Macau em África e Ásia de USD$300 milhões de empréstimos em condições preferenciais para serem aplicados no reforço da capacidade produtiva dos países beneficiários e para reforçar a cooperação na construção de infraestruturas e de mais USD$300 milhões para apoiar projectos que visem o bem-estar das populações nomeadamente agrícolas, de prevenção e combate à malária e de pesquisa de medicinas tradicionais. Foram também anunciadas medidas de apoio à saúde materno infantil, 2000 vagas de formação em diversas áreas e 2500 bolsas de estudo. Foi ainda anunciado o perdão de 500 milhóes de RMB de dívidas já vencidas de empréstimos. Nesta Conferência as iniciativas complementares de uma Faixa Uma Rota a ‘Cooperação na Produção Industrial’ e a ‘Cooperação em Mercados de Terceiros Países’ foram estimuladas
com os anúncios respetivamente de que “O Governo da China irá promover ativamente a conexão das indústrias e a cooperação da capacidade produtiva com os Países de Língua Portuguesa do Fórum da Macau, estimular as empresas a construirem ou renovarem as zonas de cooperação económica e comercial nos referidos países” e de que o “O Governo da China irá empenhar-se na exploração de terceiros mercados em conjunto com as empresas dos Países de Língua Portuguesa”. Outra importante novidade desta Conferência Ministerial é que o Fundo de Cooperação e de Desenvolvimento entre a China e os Países de Lingua Portuguesa criado durante a 3ª Conferência Ministerial em 2010, no valor de US$ 1000 milhões e da responsabilidade do Banco de Desenvolvimento da China e do Fundo de Cooperação para o Desenvolvimento entre a China e os Países de Língua Portuguesa que passa a ser gerido em Macau e não em Pequim o que permite uma maior proximidade e uma melhor ligação entre a China e os Países de Lingua Portuguesa. Portugal demonstrou já o seu interesse em participar ativamente na iniciativa de construção conjunta da Nova Rota da Seda e o Primeiro-Ministro Português António Costa na Sessão de Abertura da 5ª Conferen-
cia Ministerial marcou a posição de Portugal nesta iniciativa dizendo que “Portugal e a China devem juntar forças para a promoção de uma cooperação triangular com os restantes países de língua portuguesa em setores como agricultura, infraestruturas e educação, ”…” protecção ambiental, energias renováveis” e que ”Além da cooperação bilateral entre a China e Portugal há disponibilidade mútua para cooperação triangular” concluindo que “Juntando as forças de Portugal, China e Brasil e dos restantes países de língua portuguesa, poderemos fazer mais em conjunto do que seria em separado”. Não devemos assim olhar para Macau apenas como um legado histórico deixado a Portugal e à China como mistura civilizacional harmoniosa do oriente ocidente mas sim como um ativo que se projeta no futuro, na construção de uma iniciativa integradora global para o qual a China considera o contributo de Portugal e de outros Países de Língua Portuguesa importantes e para o qual convoca Macau que para isso terá de preparar reforçando-se como uma plataforma de informação, conhecimento e relacionamentos, da China e outros países da região asiática com Portugal na UE com o Brasil na América Latina e com os Países Africanos de Língua Portuguesa.
Bibliografia Akamatsu K. (1962), A historical pattern of economic growth in developing countries. Journal of Developing Economies, 1(1):3-25, March-August. Bert Hofman, World Bank (12/04/2015). Dunning J.H. (1980), Towards an Eclectic Theory of International Production: Some Empirical Tests, Journal of International Business Studies, Vol. 11, 1, pp. 9-31. Dunning J.H. (1988), The Eclectic Paradigm of International Production: A Restatement and Some Possible Extensions; Journal of International Business Studies, Vol. 19, 1, pp. 1-31. Porter, M. E (1985), The Competitive Advantage: Creating and Sustaining Superior Performance, NY, Free Press. World Investment Report, UNCTAD 2013.
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A Nova Rota da Seda:
A Convergência da Terra e do Mar na (Re)emergência da China Paulo Duarte Doutorado pela Université Catholique de Louvain, autor de Metamorfoses no Poder: rumo à hegemonia do dragão? Doutorando na Université Catholique de Louvain e Investigador convidado na Cheng-chi University, Taipé O texto aqui apresentado resulta do agregar dos vários temas abordados na palestra proferida pelo investigador Paulo Duarte, no passado dia 1 de Dezembro de 2016, no Instituto Internacional de Macau, em Macau. O autor agradece profundamente quer o convite, quer a amabilidade, simpatia e extraordinário acolhimento de que foi alvo no âmbito da palestra proferida, com um especial obrigado ao Dr. José Lobo do Amaral e ao Dr. Jorge Rangel. A Nova Rota da Seda chinesa é denominada Uma Faixa, Uma Rota, incluindo uma componente terrestre e uma componente marítima (figura 1).1 A Nova Rota da Seda chinesa assenta, entre outros aspetos, num reforço das relações económicas com a Ásia Central e a Europa. Tem em si subjacente a ideia da criação de um espaço económico suscetível de abranger um vasto mercado de aproximadamente 4,4 mil milhões de pessoas, ou 63 por cento da população mundial, com potencial para se tornar o mais longo e promissor corredor económico do mundo. Mas quais as principais motivações e aspirações da China no seio da sua Nova Rota da Seda? Pequim vê
aí uma forma de encontrar novos mercados, reduzir as assimetrias de desenvolvimento entre as suas províncias costeiras e o interior pobre, bem como de preservar a estabili-
esta província continuará a fornecer ao resto do país os recursos naturais essenciais ao crescimento da sua economia. Considerando a proximidade do Xinjiang face aos países
Figura 1. A Nova Rota da Seda chinesa (mar e terra). Fonte: http://insight.amcham-shanghai.org/wp-content/uploads/OBOR1.png
dade nacional e a das regiões vizinhas. E, nesse sentido, a Nova Rota da Seda é, em grande parte, guiada pela estratégia de desenvolvimento e estabilização do Xinjiang, que Pequim quer acautelar de toda a aspiração terrorista, garantindo que
centrasiáticos e o acesso do Xinjiang às águas quentes do Índico, os líderes políticos chineses adotaram a política do Go West complementada pelo que vários especialistas chamam de diplomacia de infraestruturas da China. Esta as-
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Embora a Nova Rota da Seda chinesa assente na criação de vários corredores marítimos e terrestres (ao invés de um só corredor terrestre e/ou marítimo), optei, na prática (para facilitar a compreensão do leitor), por apresentar o mapa da figura 1, embora consciente de que este é, por natureza, incompleto.
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A Nova Rota da Seda ...
senta na construção de elos logísticos, que visam fazer das provícias remotas da China centros económicos na ligação entre Ásia e Europa. Uma outra razão que justifica a importância da Nova Rota da Seda, enquanto instrumento de defesa e promoção dos interesses chineses, tem que ver com o impulso que este projeto poderá trazer à economia chinesa, nomeadamente através da internacionalização da indústria de construção chinesa, incentivando as exportações, e atraindo o investimento para o interior do país. Por conseguinte, a Nova Rota da Seda constitui, metaforicamente, uma via de dois sentidos, quer por meio do estímulo à expansão das empresas chinesas mundo fora, quer no convite aos investidores estrangeiros a apostar no mercado chinês. A Nova Rota da Seda pode revelar-se uma alavanca importante face ao abrandamento da construção na China, proporcionando às empresas de construção chinesas oportunidades de rentabilidade promissora no estrangeiro. Todos estes motivos são necessários para se compreender o interesse chinês na revitalização da Rota da Seda, embora haja uma outra razão, tão ou mais importante: a energia. Na verdade, a cooperação energética e a construção de infraestruturas serão novos motores para a cooperação entre a China e os países da Ásia Central. E, entre estes, destaquemos a especial importância do Cazaquistão no quadro da diversificação energética (exportador de petróleo
Figura 2. A linha férrea China-Ásia Central-Europa. Fonte: Lanjian & Wei, 2015.
e gás) e da securitização 2 física, bem como logística (enquanto ponte para o continente europeu). A Nova Rota da Seda terrestre Face aos demais elos de ligação no seio da Nova Rota da Seda, as redes ferroviárias revelam-se uma alternativa logística importante, suscetível de ajudar a China a reforçar os seus laços com os mercados europeus, através da construção de várias infraestruturas (por exemplo, linhas férreas de alta velocidade ao longo da Ásia Central), para escoar de forma mais eficiente os produtos chineses, proporcionando-lhes uma via complementar ao transporte aéreo (caro) e ao transporte marítimo (cuja morosidade é ainda agravada pelo forte congestionamento dos portos chineses). As mercadorias chinesas expedidas por comboio para a Eu-
ropa Ocidental demoram apenas 16 dias a chegar ao seu destino, enquanto o transporte marítimo necessita de aproximadamente cinco semanas, com atrasos, em alguns casos, significativos. A opção ferroviária permite uma securitização económica e logística mais eficaz no tratamento de mercadorias sensíveis à humidade, perecíveis ou de elevado valor, e dificilmente transportáveis por via aérea devido ao seu volume e/ou peso. A aposta na construção de ferrovias é tão ou mais premente na medida em que estas oferecem uma rota alternativa aos produtos chineses, permitindo-lhes chegar aos mercados europeus sem terem de transitar por território russo. A este respeito, alguns autores consideram que a principal razão de ser dos esforços chineses em desenvolver os corredores terrestres é evitar a Rússia, quebrando o monopólio
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O vocábulo ‘securitizar’ é proveniente da teoria da securitização da célebre Escola de Copenhaga. Securitizar significa elevar determinado assunto da esfera da política dita normal ao da chamada high politics. Tal fenómeno verifica-se essencialmente quando se encontra em causa uma matéria (ameaça é a palavra mais indicada, segundo a Escola de Copenhaga) sensível aos interesses de determinado ator. Por exemplo, questões como a segurança energética, alimentar, mas também as disputas envolvendo a soberania territorial são, em geral, concebidas como pertencentes ao domínio das high politics, o que justifica que determinado ator (o caso da China) recorra a políticas dotadas de contornos de exceção (que podem envolver o uso da força militar, mas não necessariamente), bem como de um caráter temporário com vista à sua de-securitização, ou seja, ao seu regresso à esfera da política dita normal. Ver Buzan, Waever e de Wilde (1998) Security-A New Framework for Analysis, Colorado: Lynne Rinner Publishers, Inc., Boulder.
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Figura 3. A linha férrea China-América do Norte. Fonte: Lanjian & Wei, 2015.
de que esta beneficia no trânsito de mercadorias entre Oriente e Ocidente (Sárvári e Szeidovitz, 2016). Mas porquê evitar a Rússia? Porque os decisores políticos chineses estão cientes de que se as relações entre a Rússia e a União Europeia se agravarem, o poder de Moscovo face a Pequim tenderia a aumentar significativamente. Ora, Pequim não beneficiaria de todo de uma tal conjuntura. A utilização dos caminhos de ferro é um mecanismo de securitização extraordinário. Contudo, a Nova Rota da Seda em Aço não se confina à Ásia Central. Na verdade, ela consiste num projeto de caráter mundial, suscetível de revolucionar a infraestrutura de comunicações e transporte de pessoas e bens à escala planetária, literalmente. Embora seja prioritário para a China começar por securitizar o seu acesso ao continente europeu – o que permitirá ligar Londres a Pequim em apenas 48 horas (figura 2) – Pequim, aspira
a longo prazo, a desafios mais ambiciosos, como unir, por via férrea, a China à América do Norte3, ou, ainda, o Pacífico ao Atlântico4 (figuras 3 e 4). Dito isto, não é descabido especular que a estratégia chinesa nas próximas décadas (não anos) poderá não se limitar apenas a um reforço dos elos logísticos OrienteOcidente, mas, lato sensu, a uma aposta nos corredores que ligam a China ao resto do mundo, fazendo do país uma ‘mega-cidade’ global, para onde tenderão a convergir todos os caminhos. Além das razões já enumeradas, os caminhos de ferro desempenham um papel de extrema importância ao nível da securitização militar e logística no seio da Nova Rota da Seda chinesa, na medida em que são parte da estratégia de defesa e projeção de poder da China na Eurásia, protegendo silmultaneamente as linhas de abastecimento. A China está disposta a adotar ações militares proativas ao longo de vários tea-
tros. Neste sentido, a ‘militarização’ das vias férreas, no seio da Nova Rota da Seda em Aço chinesa, tem como objetivo assegurar uma célere mobilização de tropas em caso de necessidade. Este aspeto da securitização militar – associado à Nova Rota da Seda terrestre da China – torna os caminhos de ferro instrumentos estratégicos à disposição do Exército Popular de Libertação (EPL). Refira-se, a este respeito, que o EPL já utilizou o comboio de alta velocidade na China para o transporte de tropas, apontando a prática como um meio ideal de mobilização de pessoal e equipamento ligeiro no quadro de operações militares que não sejam de guerra. Apesar das vantagens de uma Nova Rota da Seda que privilegia os caminhos de ferro, deve notar-se que o transporte marítimo ainda representa mais de 95% do comércio de mercadorias entre a China e a Europa. Mas ainda há uma questão relevante associada à otimização do potencial da ferrovia. Com efeito, se os comboios que ligam a China aos mercados europeus partem quase sempre cheios de mercadorias, no seu regresso à China, vêm frequentemente vazios. Tal deve-se, em parte, ao facto de a China comprar muito pouco às empresas europeias. Não é descabido afirmar que a diferença nas bitolas ao longo do percurso ferroviário que liga a China à Europa ocidental também afeta a perfomance global da opção ferroviária como via de transporte. Os Estados da antiga União Soviética utilizam uma faixa larga com uma
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Construindo, para o efeito, um túnel subaquático, com cerca de 200 Km, no Estreito de Bering. A linha inteira percorrerá, no total, cerca de 13 000 km, ligando Pequim, Nova York e mesmo Washington D.C., a uma velocidade de 350 km, em menos de dois dias (ver a figura 3).
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A linha férrea Dois Oceanos refere-se ao projeto de construção de uma ferrovia suscetível de atravessar a América do Sul, ligando a costa do Perú (no Pacífico) à do Brasil (no Atlântico), percorrendo cerca de 5 000 km (ver a figura 4).
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de escoamento e transporte. Mar e terra são dois espaços geopolíticos e geoestratégicos complementares e interdependentes na formulação de uma estratégia holística de segurança energética. Pequim apoia a construção de um canal através do istmo de Kra. Apesar de não ser recente, tal ideia tem como objetivo criar uma espécie de ‘Canal do Panamá asiático’ (com 102 km), num momento em que o congestionamento e insegurança no Estreito de Malaca se revelam altamente sensíveis. Com um tempo de construção de cerca de 8 a 10 anos, o Canal de Kra teria um impacto extraordinariamente positivo ao nível da segurança energética chinesa, encurtando o tempo e a distância de expedição entre o mar de Andaman e o mar da China Meridional respetivamente em 72 horas e em cerca de 1200 km (figura 5).
Figura 4. A linha férrea Dois Oceanos. Fonte: Lanjian & Wei, 2015.
bitola de 1.520 mm, enquanto a China, o Irão, a Turquia e a Europa continental utilizam a bitola padrão (com 1.435 mm). Ora, daqui resulta que nos pontos de cruzamento entre os sistemas ferroviários, os contentores devem ser descarregados de um comboio e carregados para outro (usando rodas de calibres diferentes). Por conseguinte, é fundamental que as várias bitolas ao longo dos percursos ferroviários transasiáticos sejam harmonizadas numa única bitola, de forma a otimizar-se todo o potencial da Nova Rota da Seda em Aço, reduzindo o tempo de ligação entre Oriente e Ocidente. Por fim, a rede ferroviária transasiática deve ultrapassar um
dos seus maiores obstáculos: a burocracia. Com efeito, com os comboios a atravessar seis ou sete administrações ferroviárias diferentes, a simplificação dos acordos aduaneiros ao longo da rota é premente. Por outro lado, é fundamental que haja um combate eficaz à corrupção nos postos fronteiriços. A Nova Rota da Seda marítima Concomitantemente à aposta na revitalização dos corredores terrestres transasiáticos, a China tem vindo a dinamizar a promoção de uma Nova Rota da Seda marítima, que assenta na busca de acessos estratégicos a recursos naturais, mercados e vias
Contudo, a construção do dito canal é vista com uma certa suspeição por parte da Tailândia e de outros Estados da região. Na prática, o controlo de um canal no istmo de Kra gera apreensão quanto ao facto de Pequim vir a optar, quiçá, por recusar a passagem de navios ao seu critério, arrastando potencialmente a Tailândia para uma situação desagradável. Além disso, vários países da região demonstram profundas reservas quanto ao facto de a Nova Rota da Seda marítima vir a ser verdadeiramente win-win tanto para esses países como para a China. Daqui resultam duas importantes consequências: apesar da especulação por parte de alguns meios de comunicação, o Canal de Kra é, no curto e médio prazo, inviável. Em segundo lugar, fruto da incerteza dos vizinhos face às (reais) intenções navais da China, a Nova Rota da Seda marítima tem registado
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bens públicos à comunidade internacional.
Figura 5. O Canal de Kra. Fonte: www.bangkokpost.com/print/584473/
avanços menos significativos que a Nova Rota da Seda terrestre, esta sim recebida com entusiasmo quer pelos países da região, quer pelo Ocidente. Apesar do ênfase que Pequim coloca nas vantagens da Nova Rota da Seda para os Estados-membros da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ANSA), a realidade é que, paradoxalmente, o agravamento das disputas marítimas no mar da China Meridional e a modernização da marinha de guerra chinesa têm vindo a aproximar os países da ANSA dos EUA, assistindo-se na região a uma corrida ao armamento naval. À semelhança do que tem vindo a suceder com as vias férreas que integram a Nova Rota da Seda chinesa, a China também procura do-
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tar as infraestruturas portuárias de uma dimensão militar, além da sua utilidade civil. Ora, militarizar os portos significa apetrechá-los com um conjunto de utensílios que lhes permitam servir para ‘operações militares que não sejam de guerra’. E que utensílios são esses? No caso da necessidade de mobilização de tropas chinesas para uma zona de instabilidade, como em África, sublinhemos a construção de aeródromos para uso militar e civil, com instalações de apoio associadas (terminais, hangares, armazenamento de combustível) capazes de suportar pesados aviões de transporte, bem como a modernização de instalações portuárias estratégicas. As operações militares que não sejam de guerra têm uma dupla vertente: defender os interesses da China no estrangeiro e providenciar
Há um aspeto importante na forma como a China se serve da sua marinha de guerra para proteger os interesses chineses no mar. Contrariamente à marinha dos Estados Unidos, que utiliza uma abordagem essencialmente militarista, a People’s Liberation Army Navy (PLAN) recorre a um modelo mais subtil, marcado por um misto de diplomacia e comércio, na forma como opera e acede aos portos marítimos estrangeiros. Esta é, na verdade, uma caraterística inerente a regimes como o do Partido Comunista chinês, no qual o Governo controla importantes entidades, de que são exemplo as National Oil Companies, ou grandes empresas de transporte marítimo, como a China Ocean Shipping Company (COSCO). O que quer isto dizer em termos de securitização no âmbito da Nova Rota da Seda marítima da China? Dado que o Partido Comunista chinês controla entidades como a COSCO, a PLAN (braço armado do partido) tem, por conseguinte, acesso prioritário aos portos onde a COSCO está presente, tornando-se desnecessário para a China possuir bases navais permanentes, uma vez que a PLAN tem acesso a tais portos por outros meios. É, por conseguinte, compreensível que as empresas chinesas se mostrem ativas na construção, ampliação e gestão de portos um pouco por todo o mundo. O porto de Pireu, na Grécia, é um exemplo bastante ilustrativo a este respeito, não só pela extraordinária logística (já que este é o principal projeto de infraestruturas portuárias da China no Ocidente), mas também pela geopolítica a si subjacente, enquanto porta de entrada para os contentores chineses com destino à Europa.
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O chamado Colar de Pérolas é fundamental no contexto da militarização da rede portuária, bem como da proteção dos corredores marítimos da Nova Rota da Seda chinesa. Uma vez que a China receia, em caso de conflito, um embargo petrolífero por parte dos Estados Unidos, Pequim tem apostado na criação de bases terrestres, responsáveis pela segurança das suas rotas de abastecimento. Trata-se de um ‘litoral artificial’, formado por pontos de apoio logísticos ao longo das principais rotas de navegação (desde o Myanmar até ao Estreito de Ormuz), que permite à China vigiar o Oceano Índico (figura 6).
que a cada tentativa chinesa de securitizar o acesso a portos-chave do Índico, Nova Deli responde, por sua vez, por meio de uma contraofensiva diplomática, de soft power (que inclui frequentemente o apoio económico aos Estados da região), no sentido de conter a securitização logística, energética e militar chinesa. Por conseguinte, o ‘Colar de Pérolas’ assemelha-se a uma espécie de ‘jogo do gato e do rato’ entre China e Índia, em que cada potência procura conter os avanços da outra no Índico, sendo que os principais beneficiados desta competição geopolítica são os Estados como o Myanmar, Bangladesh, Maldivas,
Figura 6. O ‘Colar de Pérolas’. Fonte: http://broadmind.nationalinterest.in/wp-content/uploads/2015/10/i— e1444035160760.png
Ao negociar tal projeto com os países do Oceano Índico – para garantir uma vigilância permanente das linhas marítimas do Índico, e a longa distância, das bases chinesas – a China está, contudo, a entrar numa esfera que a Índia entende ser o seu estrangeiro próximo. Daqui resulta,
Paquistão, Sri Lanka, Seychelles, que procuram maximizar os seus interesses económicos. As incursões marítimas chinesas no Oceano Índico não são um fenónomeno recente. As operações de combate à pirataria marítima no
Golfo de Aden, bem como nas restantes rotas marítimas que ligam o Índico ao Suez, explicam o aumento das atividades navais chinesas no Oceano Índico. Ou, pelo menos, explicam em parte, uma vez que tal presença oculta, no entanto, outra questão que vai muito além da luta contra a pirataria: o domínio dos canais de comunicação. Na verdade, assistimos atualmente a uma disputa tácita entre as grandes potências pelo controlo das rotas marítimas que vão desde o Estreito de Bab el Mandeb5 ao Estreito de Malaca, artérias do comércio mundial. Dito isto, a China, enquanto grande potência, quer projetar o seu poder, tanto mais que se trata de um país que não está diretamente presente no Oceano Índico. A pirataria marítima é, neste contexto, um argumento ‘útil’ para que Pequim se posicione mais facilmente numa região que é a zona de influência natural da Índia. Qualquer iniciativa em interpretar o que pretende a China do mar, o porquê de um Colar de Pérolas 6 no Índico, os motivos que levam Pequim a modernizar a sua marinha, a construção de ilhas artificiais no Mar da China Meridional, ou, em sentido lato, a proteção das linhas marítimas, deve ter presente a evolução da doutrina naval chinesa. Na verdade, assistimos hoje a uma mudança física (no sentido de uma crescente modernização dos meios militares), que é acompanhada por uma evolução da reflexão estratégica. Esta inspira-se, por sua vez, nas teses do americano Alfred Mahan, segundo o qual o comércio necessita de uma marinha mercante e de uma marinha de guerra para a proteger, bem como de pontos de
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Este estreito separa a Península Arábica de África e liga o Mar Vermelho ao Golfo de Aden, no Oceano Índico.
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Embora o discurso e documentos oficiais chineses neguem categoricamente a existência de uma qualquer estratégia de Colar de Pérolas.
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Figura 7. Gwadar e o Corredor Económico China-Paquistão. Fonte: ww.offiziere.ch/?p=26318
apoio (abastecimento e reparação) nas vias marítimas. A respeito destes pontos de apoio, comungo de uma via média (ou moderada) segundo a qual o modelo de instalação logística de dupla utilização é o mais sensato para apoiar futuras operações navais chinesas no Oceano Índico. Contudo, por que está a China interessada em algo mais do que meras instalações logísticas ao longo dos principais portos? Ou seja, como justificar que Pequim se prepare para inaugurar aquela que será a sua primeira base naval no estrageiro (no Djibuti)? É uma questão complexa para a qual não existe uma resposta evidente, já que o próprio discurso e documentos oficiais chineses são extremamente opacos e lacónicos em determinadas questões-chave. Acredito que apesar de os portos marítimos no Oceano Índico poderem vir a satisfazer as necessidades da marinha de guerra chinesa, a sua utilização tenderá a ser em grande
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parte reativa, baseada no receio de Pequim face à conjuntura regional, em vez de se pautar por uma estratégia (bem) planeada. Por fim, defendo a via moderada de que a Pax Sinica – no caso do Oceano Índico – pressupõe uma crescente militarização das linhas marítimas, contudo relativamente subtil e gradual, tendendo a acompanhar a expansão da atividade comercial chinesa. No quadro dos esforços de securitização inerentes ao Colar de Pérolas, que é, por sua vez, uma componente importante da Nova Rota da Seda marítima chinesa, considero pertinente falar de duas ‘pérolas’ particularmente relevantes: Gwadar e Djibubi. Gwadar é um dos portos do Índico, com ligações por terra ao flanco ocidental e meridional da China, suscetível de ajudar o Império do Meio a evitar (ou, pelo menos, mitigar) as consequências do chamado ‘dilema de Malaca’. Além da dinamização económica, o Corredor Económico
China-Paquistão (figura 7), que ligará Kashgar, no Xinjiang, ao porto de Gwadar no Paquistão pressupõe, igualmente, uma securitização física/militar do Xinjiang. De facto, ao proporcionar ao Xinjiang um acesso ao mar – contribuindo simultaneamente para fazer de Kashgar e de Gwadar importantes hubs comerciais – Pequim concebe o Corredor Económico China-Paquistão como um instrumento suscetível de atenuar os sentimentos separatistas que minam a estabilidade do Xinjiang. Note-se também que o Paquistão proporciona à China um corredor de comércio e energia, por Gwadar, através do qual o petróleo proveniente do Médio Oriente – e armazenado em refinarias em Gwadar – chegará à China através de oleodutos e caminhos de ferro. Este corredor oferece um trajeto mais curto entre a Ásia Ocidental e a China, o que permitirá poupanças consideráveis quer em tempo, quer em despesas de frete, uma vez que a rota atual para o transporte de petróleo desde a Ásia ocidental até aos portos do leste da China, através do Estreito de Malaca, é de cerca de 12 000 km. Acresce ainda um percurso de 3 500 km, por via terrestre, desde os portos chineses até ao Xinjiang. Comparativamente, a rota Gwadar - Xinjiang é de apenas 3 000 km. Em termos de ‘operações militares que não sejam de guerra’, a logística inerente ao Corredor Económico China-Paquistão pode contribuir para que a China securitize os seus interesses, através de uma rápida mobilização de tropas e equipamento militar, a partir dos portos marítimos para o interior, ou desde os caminhos de ferro em direção aos portos e, posteriormente, para navios que se deslocarão, em seguida, para um teatro de guerra offshore. Ainda no plano militar, Gwadar po-
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derá proporcionar um posto de observação – e inclusivé um ponto de apoio – para o Exército Popular de Libertação, uma vez que está estrategicamente localizado fora do Estreito de Ormuz, através do qual circula 40 por cento do tráfego petrolífero mundial. Podemos resumir os interesses da China face ao porto de Gwadar em três grandes objetivos: solidificar os seus laços com o Paquistão, diversificar e aumentar a segurança das suas rotas para a importação de petróleo e gás natural, e expandir a sua presença no Oceano Índico. Adotando uma postura crítica (que admite o contraditório), julgo ser pertinente apresentar a visão oposta, ou seja, a de que Gwadar não é tão fundamental quanto possa, eventualmente, parecer no âmbito da Nova Rota Seda chinesa. Faço-o, todavia, sem tomar partido por nenhuma das visões em confronto, pois estou convicto de que as duas se complementam. Dito isto, alguns especialistas acreditam que mais do que fazer parte do referido Colar de Pérolas da China, Gwadar tenderá, ao invés, a ser um colar de perigos para a China. Com efeito, de entre os obstáculos a que Gwadar se venha a tornar um centro económico chinês, destaque-se a insurgência no Baluquistão (onde Gwadar se situa) e por onde passarão os oleodutos e gasodutos propostos, e também o facto de vários líderes tribais se oporem ao investimento externo em larga escala, temendo que tal traga um afluxo de estrangeiros. Mas existem outras barreiras: a corrupção endémica, a instabilidade política, os atrasos ao nível da burocracia no Paquistão, as recorrentes falhas de eletricidade no país e um historial de não pagar o dinheiro prometido aos credores externos. Perante estes inconvenientes, alguns especia-
listas sugerem que, caso a China pretenda utilizar um porto paquistanês para fins militares, o porto de Karachi é uma alternativa perfeitamente viável face a Gwadar, embora, do ponto de vista estratégico tenha como desvantagem a sua proximidade relativamente à Índia. Em conclusão, para os partidários desta visão – que critica a sobreavaliação da importância de Gwadar para a China – o porto ainda tem um longo caminho a percorrer antes de estar plenamente operacional enquanto instalação de trânsito internacional.
rítimas. Com efeito, a localização geográfica de Djibuti confere-lhe, como fronteiras marítimas, o Mar Vermelho e o Golfo de Aden, artérias cruciais no trânsito de navios em rota de/para África, Ásia e Europa (figura 8). Do ponto de vista técnico-logístico, a primeira base militar chinesa no estrangeiro será edificada num país (o Djibuti, cuja área é menor que a da cidade de Chicago) que alberga simultaneamente outras forças militares estrangeiras – francesas, japonesas, alemãs, italianas e ameri-
Figura 8. Mapa do Djibuti. Fonte: www.bbc.com/news/world-africa-33115502
Analisemos agora a importância de Djibuti no âmbito da Nova Rota da Seda marítima da China. A escolha de Djibuti para hospedar a primeira base naval chinesa no estrangeiro tem em si subjacente uma lógica de securitização logística, comercial, energética, política, militar e de soft power. Antes de mais, a escolha do local – no Corno de África – encaixa geostrategicamente nas operações de combate à pirataria marítima e, portanto, de proteção das linhas ma-
canas. O que explica que este local de África seja (tão) atrativo para as potências militares mundiais? Por um lado, a relativa estabilidade de que beneficia o Djibuti face a um enquadramento securitário regional consideravelmente volátil. Por outro, a já referida localização geográfica do país, estratégica não só no âmbito da proteção das linhas marítimas, como também terrestres. Além de a geografia ter inquestionavelmente determinado a escolha
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do Djibuti, por parte da China, acrescente-se que a partir de Djibuti, os aviões de patrulha marítima chineses poderão sobrevoar a maior parte da Península Arábica e do norte e centro de África sem reabastecer. A construção da primeira base militar da China no estrangeiro (neste caso, Djibuti) proporciona certamente várias leituras geopolíticas, as quais são, por sua vez, influenciadas pelo prisma de valores, entre outros. No entanto, qualquer iniciativa em interpretar os motivos que levam a China a modernizar a sua marinha, ou a construir ‘ilhas artificiais’, ou, em sentido lato, a securitizar as linhas marítimas, deve ter presente a evolução da doutrina naval chinesa a que anteriormente nos referimos. De entre os elementos que atestam um continuum lógico da securitização dos interesses navais (e que ajudam a perceber a razão de ser de uma base naval chinesa, assim como o porquê de um segundo portaaviões chinês) atentemos, em especial, no conteúdo do 12º Plano Quinquenal, que traz uma nova perspetiva sobre o mar. O 12º Plano Quinquenal reflete, na prática, a necessidade de o país garantir a segurança das linhas marítimas. A China, que até então havia privilegiado a terra sobre o mar, passaria a ser um Estado híbrido terra-mar, reconhecendo que terra e mar são complementares. Em termos operacionais, Pequim investe cada vez mais numa estratégia de sea denial 7, afastando-se gradualmente, por conseguinte, da simples defesa das costas chinesas. Mas, para realizar operações mili-
Figura 9. A 1ª e 2ª Cadeia de Ilhas. Fonte: www.nippon.com/en/editor/f00021
tares em oceano aberto (o que requer uma marinha de águas azuis 8), existem algumas etapas quantitativas, qualitativas, espaciais e temporais que devem ser gradualmente ultrapassadas. É por isso que o Pacífico Sul, embora remoto, é importante no contexto da proteção das linhas marítimas e da dita projeção de poder. Com efeito, num contexto em que a marinha
chinesa já indicou a sua intenção de operar regularmente para além da primeira cadeia de ilhas, que separa os mares do Sul da China, da China Oriental e Amarelo, do Oceano Pacífico, as ilhas do Pacífico servem como uma segunda cadeia de ilhas, suscetíveis de restringir a liberdade de manobra global da marinha do Exército Popular de Libertação (figura 9). Por conse-
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Sea denial é um termo militar que designa as tentativas de negar a um inimigo a capacidade de utilizar o mar (geralmente através de bloqueios navais e/ou portuários). Trata-se de uma estratégia muito mais fácil de executar do que a do sea control, uma vez que requer a simples existência de uma marinha.
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Ou seja, uma marinha capaz de operar em alto mar.
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guinte, do ponto de vista geoestratégico, a superação espacial da segunda cadeia de ilhas é essencial para a China. Por um lado, porque num potencial cenário de hostilidade, ela permitirá a Pequim impedir qualquer tentativa de contenção da sua marinha de guerra (por parte de uma potência rival) e, por outro lado, porque o controlo da segunda cadeia de ilhas é indispensável à transformação da marinha chinesa na dita ‘marinha de águas azuis’ (figura 9). Embora a literatura foque predominantemente as vias marítimas convencionais como as artérias, por excelência, do comércio mundial, a verdade é que as alterações climáticas (o célere derretimento do gelo polar) têm vindo a captar gradualmente a atenção dos especialistas para a eventual possibilidade de os navios mercantes poderem utilizar uma rota polar, em complemento às vias marítimas ditas ‘tradicionais’. Contudo, as visões sobre a eficiência da rota marítima do Ártico nem sempre se afiguram consensuais. Com efeito, não obstante ser inquestionável que a travessia do Ártico diminui (em cerca de quarenta por cento) a distância entre Xangai e a Europa, a verdade é que esta é uma visão demasiado redutora de avaliar os benefícios de uma potencial Nova Rota da Seda polar. Importa, pois, considerarmos outros fatores para se compreender por que é que alguns autores se mostram céticos face às ‘vantagens’ que o cruzamento marítimo do Ártico pode proporcionar aos navios mercantes chineses. Por exemplo, Varga (2013) estima que a navegação no Ártico não será economicamente viável mesmo sob condições ideais. Outros especialistas, tais como Vidal, sublinham que até 2040 continuará a ser mais económico efetuar trocas comerciais entre a Europa e
Figura 10. A Rota do Mar do Norte (a azul). Fonte: http://undertheangsanatree.blogspot.tw/2014/09/the-northern-sea-route.html
o Oriente através do canal de Suez, desmotivando, por conseguinte, o uso de uma rota polar em detrimento das linhas marítimas convencionais. Esta tese contraria a visão otimista da utilização da chamada Rota do Mar do Norte, segundo a qual além da redução do tempo de viagem (12 a 15 dias menos) comparativamente à rota tradicional do Suez, a utilização da Rota do Mar do Norte permitiria ainda aliviar o tráfego marítimo no Suez, bem como nos vários portos ao longo da rota convencional que liga a China à Europa. O especialista Malte Humpert (2013) desvaloriza a importância da Rota Marítima do Norte (a azul, na
figura 10), argumentando que as rotas marítimas do Ártico não serão capazes de competir com as grandes rotas de comércio mundiais, tendendo a permanecer apenas vias de transporte sazonais. Humpert (2013) defende que a construção iminente de navios porta-contentores de última geração irá proporcionar uma economia de escala bastante melhorada e reduzirá os custos ao ponto de a navegação do Ártico não ser economicamente viável mesmo em condições ideais. Acrescente-se que existem poucos portos ao longo da Rota Marítima do Norte, bem como escassos meios de salvamento e cartas marítimas suficientemente avançadas. Além disso, no Mar de Laptev, por
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exemplo, existem dois estreitos que limitam o calado dos navios a 12-15metros, o que impede que a nova geração de navios de carga – com um comprimento de mais de 366m, uma largura de mais de 49m e um calado superior a 15,2m – possa utilizar a rota marítima polar. Em caso algum a travessia do Ártico deve susbstituir-se integralmente às rotas marítimas convencionais. No meu entendimento, quer as rotas marítimas tradicionais, quer as polares devem ser entendidas numa perspetiva de complementaridade. Não quero com isto excluir radicalmente a eventual utilidade sazonal de uma rota marítima polar, mas, por ora, num contexto de devir tecnológico e climático, parece ser demasiado imprudente tirar conclusões sobre matérias que ainda carecem, no curto e médio prazo, de mais experimentação. Notas finais Apesar da apreensão da Índia face ao chamado Colar de Pérolas, não considero que este seja um comportamento ‘anormal’ numa grande potência como a China. Na verdade, se tivermos em conta a (re)emergência chinesa e o forte nacionalismo que marcam a China da atualidade, é expetável que o país conceba o Oceano não só como um instrumento de securitização energética, já que a esmagadora maioria do petróleo que importa por ele transita, mas também como um meio de projeção de poder. E, neste sentido, a China adota um comportamento semelhante ao que outras potências marítimas tiveram no passado. Muito se especula sobre a natureza dos interesses chineses no porto de Gwadar e naquela que será a primeira base naval chinesa no estrangeiro (Dji-
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buti). Contudo, o grande ‘efeito surpresa’ que tal despoleta, no meu entendimento, não reside tanto no desejo de construir bases no estrangeiro, mas sim no facto de a política externa chinesa ser, na sua essência, uma política de não-interferência. Mas, mesmo aqui, há que ter prudência. De facto, embora a ‘nova’ China de Xi Jinping já tenha dado provas de que a sua conceção das Relações Internacionais é dinâmica e pragmática, não será admissível que o país se preocupe em proteger a diáspora e interesses chineses mundo fora? Neste sentido, encaro Djibuti não como uma verdadeira base militar, nem como uma espécie de provocação belicista ao domínio militar de potências como os EUA, mas mais como uma instalação logística suscetível de servir para operações militares que não sejam de guerra, e enquanto símbolo do interesse legítimo de uma potência que se preocupa em securitizar os fluxos energéticos numa região minada pela pirataria marítima. Em última análise, a Nova Rota da Seda chinesa almeja a (re)emergência pacífica de uma China nostálgica de um passado de feitos gloriosos, embora imbuída de um nacionalismo exacerbado e de uma busca da legitimação de um regime cuja continuidade e credibilidade são inquietantes. Nesse sentido, a Nova Rota da Seda é feita não só de infraestruturas e investimentos, de conetividade e de ‘sede’ de recursos, mas também de uma narrativa que o Governo compõe para ‘consumo interno’, e para apaziguar os receios da comunidade internacional face às intenções da China neste século. A nível económico, a China pretende proporcionar momentum ao seu yuan face ao dólar americano.
A China quer (re)aproximar a Europa do Heartland de Mackinder, enfraquecendo assim o longo momentum transatlântico. Ao nível militar, os caminhos de ferro permitem uma projeção de hard e soft power extraordinários, sendo capaz de mobilizar o Exército Popular de Libertação para teatros vários, em operações militares que não sejam de guerra. Por sua vez, no plano marítimo, Gwadar e Djibuti são pontos de apoio logísticos para uma marinha de guerra que, inspirada em Mahan, necessita de proteger a marinha mercante e de superar a primeira e segunda cadeia de ilhas. Ao nível político, a Nova Rota da Seda é uma narrativa que o Partido Comunista chinês constrói para legitimar a sua continuidade. A One Belt One Road é a resposta de uma China pragmática e nostálgica face à instabilidade interna e à desaceleração económica, proporcionando margem de manobra a uma China que marcha rumo a Ocidente, num contexto em que o seu flanco leste se encontra mergulhado em tensões com os vizinhos (nos mares da China meridional e oriental). Não obstante o projeto da Nova Rota da Seda estar nos seus primórdios, há várias questões relevantes que o mundo necessita ver respondidas, dado o seu impacto económico, político, cultural e geoestratégico. Uma dessas questões, que no imediato me vem ao espírito, tem que ver com a possibilidade, a longo prazo – à medida, portanto, em que a Nova Rota da Seda chinesa progredir – de o dólar e outras moedas internacionais, principalmente as regionais (da periferia asiática da China) virem a ser substituídas pelo yuan, a moeda chinesa. Uma só moeda faz todo o sentido enquanto facilitador das trocas comerciais. Outra questão, a qual me
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incomodou particularmente no ‘Silk Road Economic Belt Cities International Forum’9, no qual estive presente a convite da Embaixada da China em Portugal, enquanto orador10 – por ter sido repetida várias vezes, quer pelo ex-Primeiro Ministro espanhol José Rodriguez Zapatero, quer por outros convidados e/ou oradores. Passo a explicar. Creio que os chineses, mas também outros, terão ficado com a perceção de que o fim da longa linha ferroviária entre Oriente e Ocidente é Madrid. Não! Portugal tem de estar atento. Só estavam dois portugueses no Fórum de Yiwu, eu e o Dr. Rui Lourido, Presidente do Observatório da China em Portugal, sendo que ambos fizemos questão de desmistificar a ideia de que a Europa continental (não me refiro às regiões insulares)
termina em Espanha. Em vez de Madrid, é Lisboa que deve reter a atenção dos decisores políticos chineses, na medida em que Lisboa possui portos marítimos, fluviais, aeroportuários, rodoviários e ferroviários. É em Lisboa (e não em Madrid) que a Europa continental abraça o Atlântico, ora rumo a África, ora rumo às Américas. Lisboa pode perfeitamente servir de centro logístico/rede multimodal no âmbito do esforço chinês de ligar os povos e as culturas num projeto de prosperidade coletiva e win win. Termino com uma recomendação (construtiva, espero) com vista ao sucesso da Nova Rota da Seda chinesa. É fundamental que a língua ou línguas não sejam uma barreira ao projeto chinês. O mundo deve ousar aprender o mandarim (por muito exigente que este seja), implemen-
tando cursos vários nas universidades, mas também ao nível escolar, já que o mandarim é uma língua de futuro. Porém, o esforço deve ser mútuo. Do que pude constatar aquando das minhas deslocações à China, é igualmente crucial que os chineses melhorem o seu inglês (não me refiro apenas ao chinês comum, mas também, e essencialmente, aos funcionários públicos, hoteleiros, logísticos, forças de segurança nas ruas, entre outros). Ainda há muita dificuldade para um chinês em falar ou compreender o inglês. Temo que se não forem feitas diligências mútuas, num esforço coletivo para se ultrapassar as barreiras linguísticas, o comércio e o Grande Projeto chinês possam apenas produzir ganhos parciais, quando o que se pretende é, no fundo, rentabilizar ao máximo os proveitos de uma cooperação coletiva.
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Que teve lugar nos dias 18 e 19 de junho de 2015, em Yiwu, uma cidade na província chinesa de Zhejiang, a cerca de 300 Km de Xangai.
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Fui falar sobre a construção do mega-canal de Nicarágua, por parte da China.
Bibliografia Buzan, B.; Waever, O. & de Wilde, J. (1998) Security – A New Framework for Analysis, Colorado: Lynne Rinner Publishers, Inc., Boulder. Figura 1, http://insight.amcham-shanghai.org/wp-content/uploads/OBOR1.png Figuras 2, 3 e 4, Lanjian, C. et Wei, Z. (2015). “China OBOR in Perspective of High-speed Railway (HSR) - Research on OBOR Economic Expansion Strategy of China”. Advances in Economics and Business, vol. 3, nº 8, pp. 303-321. Figura 5, www.bangkokpost.com/print/584473/ Figura 6, http://broadmind.nationalinterest.in/wp-content/uploads/2015/10/i—e1444035160760.png Figura 7, www.offiziere.ch/?p=26318 Figura 8, www.bbc.com/news/world-africa-33115502 Figura 9, www.nippon.com/en/editor/f00021 Figura 10, http://undertheangsanatree.blogspot.tw/2014/09/the-northern-sea-route.html Humpert, M. (2013). “The Future of Arctic Shipping: A New Silk Road for China”. The Arctic Institute, Washington D.C. November, pp. 1-19. Sárvári, B. & Szeidovitz, A. (2016). “The Political Economics of the New Silk Road”. Baltic Journal of European Studies. Tallinn University of Technology, vol. 6, nº 1, pp. 3-27. Varga, P. (2013). “Ice-free Arctic won’t attract more Chinese shipping: report”. NUNATSIAQonline, November 21, http://www.nunatsiaqonline.ca/stories/article/65674ice-free_arctic_wont_attract_more_chinese_shipping_report/
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China na Grande Guerra
A emancipação da pequena potência Luís Cunha Doutorado em Relações Internacionais
Os cemitérios chineses, espalhados pelo norte de França e Bélgica, são testemunhos silenciosos da premeditada entrada da China no sistema internacional e de uma participação na Grande Guerra que nunca seriam devidamente reconhecidos1. Exauridos e sujeitos a uma guerra de desgaste interminável, os Aliados viram-se obrigados a recorrer às forças armadas das dependências coloniais, bem como a trabalhadores estrangeiros destinados a suportar o esforço de guerra. O Império britânico mobilizou australianos, canadianos, neo-zelandeses, indianos e sul-africanos. Os franceses convocaram marroquinos, senegaleses e vietnamitas. Muitos cairiam no combate que foram travar por delegação. Mais curiosa, porquanto relativamente desconhecida, é a saga dos trabalhadores chineses que participaram activamente nos palcos europeus da Grande Guerra. Recrutados pelos Governos da França e Grã-Bretanha, mais de 140 000 trabalhadores viajaram em condições precárias até à Europa, onde deram um contributo significativo para o esforço de guerra aliado, designadamente nas fábricas de material de guerra – por vezes ao lado de portugueses, também recrutados para o efeito –, na
Rotas marítimas para o transporte dos trabalhadores chineses até à Europa. A rota do Pacífico, via Canadá, foi a mais usada.
reparação de caminhos-de-ferro, manutenção de tanques, construção naval ou reabastecimento da linha da frente. Na versão britânica integraram o Chinese Labour Corps (CLC). Quando os Estados Unidos da América (EUA) entraram na guerra, também o contingente expedicionário americano passou a contar com o apoio logístico destes chineses, cedidos pelo exército francês. Sujeitos à disciplina castrense, eram considerados soldados-trabalhadores , embora não fossem militares. O processo de recrutamento na China e transporte destes homens rústicos ficou marcado por atribula-
ções de todo o tipo. Franceses e britânicos tentaram ocultar a natureza militar do empreendimento, optando por delegar os procedimentos logísticos a empresas privadas de fachada, criadas expressamente para o efeito. Alheios aos protestos dos alemães, conhecedores da verdadeira natureza do projecto, os Aliados encarregaram-se de enviar estes trabalhadores para a Europa através de longas rotas marítimas. Pressionados pela rápida erosão dos exércitos Aliados, os recrutadores chegaram a despachar 10 000 trabalhadores chineses por mês para a Europa, via Canadá ou Canal do Panamá. Apinhados em barcos que podiam ser alvo dos
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Este artigo baseia-se no livro de Luís Cunha, China na Grande Guerra – A Conquista da Nova Identidade Internacional, Instituto Internacional de Macau, 2014. O centenário da entrada oficial da China na Grande Guerra foi assinalado a 14 de Agosto de 2017.
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submarinos alemães, como aconteceu na tragédia do Athos, estes chineses eram sujeitos a condições de acomodação a bordo de tal modo precárias que faziam lembrar os navios negreiros do tráfico esclavagista. A China estava desejosa de mostrar-se digna da confiança dos Aliados, na esperança de reconquistar uma dignidade perdida há séculos, muito por culpa das potências a que agora se associava. No final de 1916 já havia chineses a trabalharem (e a morrerem) em França. Seria o princípio da participação na guerra de um apreciável contingente, espalhado por dezenas de localidades. Numa época ainda marcada pelos estigmas raciais, os chineses acabariam por ser encarados de maneira diferente pelos britânicos (mais rígidos e xenófobos) e franceses (mais tolerantes e acomodatícios). Quanto aos soldados americanos, é de notar que seriam auxiliados pelos cidadãos asiáticos que – ironicamente – estavam impedidos de emigrar para os EUA, por via de uma Lei inspirada na discriminação racial (Chinese Exclusion Act).
A 14 de Agosto de 1917 a China declarava a guerra aos Impérios Alemão e Austro-Húngaro por incitação dos EUA. A Alemanha era à época uma potência com boa imagem nas elites chinesas.
Embora os países contratantes se comprometessem a empregar esta força de trabalho nas linhas recuadas da frente de batalha, muitos milhares de chineses acabariam por ser vítimas das contingências de uma guerra extrema. Mais de 2 000 seriam sepultados em solo europeu. Findo o conflito, os chineses ficaram responsáveis pelo delicado trabalho de limpeza nos campos de batalha, resultando desse processo muitas fatalidades. Os últimos trabalhadores chineses enviados para a Europa só regressariam à mãe-pátria em 1922.
Embora fosse uma jovem República e vivesse em clima de guerra civil, a China viu na participação na Grande Guerra uma oportunidade única no plano da afirmação política, procurando reparar injustiças históricas e, mais importante, ganhar direito a marcar presença nas conversações de paz, que iriam juntar as partes desavindas no final do conflito. Para isso teria que alinhar com os vencedores.
Estratégia internacional A presença dos chineses no palco europeu da Grande Guerra não foi fruto do acaso. Tratou-se antes de uma estratégia desenhada em Pequim para projectar e emancipar a China, à época considerada uma potência menor no seio da comunidade internacional.
Era uma aposta de alto risco, obrigando à negação da neutralidade que mantivera durante três anos e à
declaração de guerra à Alemanha (e Império Austro-Húngaro), potência relativamente benigna no contexto chinês e com a qual Pequim mantinha estreitos laços comerciais e militares. A 14 de Agosto de 1917 a China entrava oficialmente na Grande Guerra. Não foi uma decisão consensual. O fundador da República Chinesa, Sun Yat-Sen, assumiuse frontalmente contra a participação da China na Grande Guerra ao lado dos Aliados. Temia que o seu país acabasse por ser um joguete à luz dos interesses das potências aliadas, entre as quais se contava o Japão. Os acontecimentos posteriores vieram dar-lhe razão. Mas a agenda política chinesa tinha uma prioridade ainda mais premente: Shandong. A província chinesa que vira nascer Confúcio fora uma das primeiras vítimas da Grande Guerra. Desde 1898 que os alemães aí se haviam instalado, dando assim expressão a uma polí-
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As sepulturas na Flandres testemunham a participação da China na Grande Guerra.
tica colonial tardia e inconsequente: a Weltpolitik. Logo após o início do conflito na Europa, o Japão colocou em campo uma estratégia destinada a aumentar exponencialmente a sua esfera de interesses na China, a quem já tinha subtraído a tutela da Coreia e Taiwan, mantendo em simultâneo a pressão sobre a Manchúria. Um cenário agravado pela derrota da China na guerra sino-japonesa de 1894-95, que ultrapassara em muito as humilhações vividas pelo Império do Meio desde as Guerras do Ópio. Fazendo-se valer da aliança anglonipónica, assinada em 1902, Tóquio não perdeu tempo a lançar a sua poderosa marinha de guerra no encalço da frota naval alemã, expulsando-a das águas chinesas. Os britânicos integraram a força expedicionária, embora desempe-
nhando um papel menor e até caindo sob fogo amigo, pois os soldados japoneses alegavam ter dificuldade em distingui-los dos alemães.
cobrariam caro, na Conferência de Paz em Versalhes, o facto de os chineses não terem protagonizado uma intervenção armada na Grande Guerra.
Com a rápida conquista de Shandong, a política hegemónica japonesa ganhava uma preciosa ponta de lança para a penetração na China. Ainda antes do final do primeiro ano da guerra, o Japão conquistava o seu grande objectivo estratégico. As potências aliadas, absorvidas nas primeiras batalhas de uma guerra que cedo se revelara infernal, não cuidaram de ajuizar devidamente o alcance das movimentações estratégicas nipónicas. Um erro que teria profundas consequências no sistema internacional.
De acordo com as estatísticas oficiais da China, 9 900 chineses morreram ao serviço dos britânicos2. Todavia, as estatísticas pós-guerra referem que o número de chineses falecidos ou desaparecidos, ao serviço dos britânicos e franceses, poderá ascender a 20 000. Na Bélgica e Norte de França há 69 cemitérios que albergam campas de 1 874 trabalhadores chineses, mortos durante ou após a Grande Guerra. Só na zona ocidental da Flandres existem 15 cemitérios britânicos com campas de chineses. Extrapolando a partir dos chineses sepultados nos diversos cemitérios, o autor Xu Guoqi considera que terão sido cerca de 4 000 os trabalhadores mortos na Europa 3.
Durante o resto da guerra o Império do Sol Nascente manteve um interesse relativamente distanciado pela causa aliada. Só por viva insistência do governo britânico, Tóquio anuiria a enviar uma considerável força naval para a Europa que, estacionada na ilha de Malta, patrulharia o Mediterrâneo em busca de submarinos alemães. Não sem que antes os Aliados assegurassem os interesses nipónicos em Shandong. Exceptuando algumas baixas sofridas na tomada de Shandong e no combate à marinha alemã no Mediterrâneo, pode afirmar-se que foi a força aliada menos desgastada pelo conflito. Ao contrário, os chineses do CLC seriam dos asiáticos mais fustigados pela guerra, até pelos riscos a que estavam expostos por via do seu estatuto ambíguo. Os japoneses
Tudo indica que nunca se conhecerá ao certo o número definitivo dos chineses que perderam a vida ao serviço de uma causa que lhes era estranha. “Fiel até à morte”, “Uma boa reputação dura para sempre” e “Uma nobre tarefa, cumprida com bravura” são as frases inscritas nas lápides que assinalam os locais onde estes guerreiros civis repousam em solo europeu. Raras são as inscrições “morto de madrugada”, sinónimo de execução após condenação em tribunal marcial. Embora fossem contratados na condição de civis, estes homens podiam ser condenados por tribunais militares. Na realidade há registo de 10 chineses executados pelos militares britânicos. Cumprindo com a tradição chinesa, as
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“Remarks by Ambassador Zhang Yunyuan at Opening Ceremony of Exhibition on Chinese Labor Corps”, Ieper, 23 April 2010, http://be.china-embassy.org
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Xu Guoqi, China and the Great War, Cambridge University Press, 2005, pg. 144.
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campas destes homens estão voltadas para o Oriente. O dilema de Shandong Os dividendos da participação chinesa na Grande Guerra não são consensuais. Ao renegarem a neutralidade e o isolacionismo que vinham cultivando, os EUA e a China acabariam por se ver envolvidos, em graus diferentes, na guerra europeia. Mas se a estratégia de Washington visava a consolidação do poder imperial do novo mundo, através do realinhamento do sistema internacional e da construção da pax americana baseada nos famosos 14 pontos do Presidente Woodrow Wilson, já o resultado da participação da China na Grande Guerra seria relativamente pálido face às expectativas criadas pela elite política chinesa. Na realidade os acordos secretos inter-Aliados assinados durante o conflito mundial, reconhecendo as
Os trabalhos mais difíceis estavam reservados para os chineses, incluindo o manuseamento de munições.
pretensões nipónicas em Shandong, viriam a revelar-se particularmente espinhosos na atribulada Conferência de Paz realizada em Versalhes. A delegação chinesa à Conferência de Paz, ela própria dividida pelas lealdades às diferentes facções em
Os trabalhadores chineses estiveram ao serviço dos exércitos da Grã-Bertanha, França e EUA.
luta pelo poder na China, defenderia com brio os interesses de um país que, embora tivesse contribuído significativamente em prol da causa aliada, acabaria por se ver sacrificado no altar do maquiavelismo político. A estratégia chinesa passava por dramatizar a situação vivida em Shandong e denunciar as 21 exigências nipónicas, documento assinado em 1915 sob a ameaça de uma utilização massiva da força por parte do exército do Império do Sol Nascente. Todavia, o eixo Washington-ParisLondres não via interesse em alienar um Japão cada vez mais poderoso e capaz, em última análise, de fazer perigar as concessões europeias na China. A nova ordem mundial preconizada por Wilson não contemplava os interesses asiáticos, e embora o Presidente americano tenha assumido o compromisso de pugnar pelo retorno de Shandong à soberania chinesa – de que o governo chinês nunca abdicara – acabaria por ceder, com relutância, às reivindicações nipónicas. Esse desaire custarlhe-ia a oposição frontal do Senado norte-americano que, numa medida retaliatória, não ratificaria o Tratado
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Em todo o caso, é inegável que o envolvimento da China na Grande Guerra assinalou o início do processo de internacionalização do fragilizado país, reforçando a politização das respectivas elites. Embora acabasse por não ter uma intervenção armada no conflito mundial, a China conseguiu protagonizar, através dos trabalhadores enviados para a Europa, uma acção directa na guerra, e interagiu com os principais Aliados – todos com uma presença semi-colonial na China.
Mais de 140 000 chineses foram enviados para a frente ocidental.
de Versalhes e a inclusão dos EUA naquela que seria a grande criação política de Wilson – a Sociedade das Nações. China recusa Tratado de Versalhes O Japão Imperial acabaria por sair de Versalhes com as suas pretensões expansionistas tacitamente sancionadas pelos Aliados. Foi reconhecido a Tóquio o direito de administrar Shandong, a província chinesa que até ao início da Grande Guerra fora explorada pelo Império Alemão. Sentindo-se atraiçoados pelas promessas vãs dos americanos, a displicência das potências europeias e antevendo o previsível expansionismo nipónico na China, o chefe da delegação chinesa recusar-se-ia a assinar o Tratado de Paz em Versalhes, mesmo antes de receber instruções finais de Pequim. A China foi, de resto, a única nação ali representada a não rubricar o polémico documento.
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Os estudantes chineses, indignados com a humilhação sofrida à mesa das negociações em Versalhes, saíram às ruas de Pequim em protesto. O nacionalismo chinês foi ao rubro e deu origem ao movimento de Quatro de Maio, que ficaria para a história como a primeira grande acção popular reivindicando a emancipação da China na nova ordem internacional. Um episódio charneira na construção identitária da China moderna. Em suma, pese embora a estratégia de afirmação internacional encetada pela China a pretexto da Grande Guerra, esta acabaria por não surtir os efeitos desejados; não somente porque os Aliados se recusariam a validar um estatuto de igualdade inter-pares para a débil potência asiática, mas também porque as convulsões internas da China inquinavam qualquer tentativa de projecção internacional minimamente coerente.
A China dava o primeiro e decisivo passo para se libertar de um século e meio de humilhações impostas pela Europa, América e Japão. As concessões estrangeiras na China, as pesadas indemnizações da revolta dos Boxers e a asfixia financeira decorrente da impossibilidade de arrecadar a maior parte das receitas alfandegárias, tinham os dias contados. Conquanto tivesse perdido as causas submetidas ao juízo político e moral dos vencedores da Guerra, fora uma China renovada e autoconfiante que se apresentara em Versalhes. Todos os intervenientes neste drama saíram da Grande Guerra profundamente alterados pela experiência radical. A China não foi excepção. Um jovem estudante revolucionário e um militar formado no Japão não tardariam a digladiar-se pelo poder na China. Mao Tsé-Tung e Chiang Kai Chek, liderando as forças comunistas e nacionalistas, respectivamente, prosseguiriam nas décadas seguintes os projectos ideológicos de afirmação do seu país. Em campos opostos, deram sequência a alguns dos objectivos que conduziram à participação chinesa na Grande Guerra. Nascia uma estratégia de afirmação internacional da China que se prolonga até aos nossos dias.
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Momentos de Intercâmbio Comercial e Cultural António de Abreu Freire Professor Universitário
Contribuição de Portugal para o intercâmbio da cultura ocidental com as civilizações do Oriente. Desenho de Sérgio Carvalho.
Ninguém sabe ao certo quantos seres humanos se servem do idioma português no trato quotidiano por todo o planeta: não existem censos credíveis nos países africanos de língua portuguesa desde há mais de quarenta anos e, na diáspora portuguesa que se dilui por 165 países do mundo, também ninguém sabe quantos ainda traduzem as emoções
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do quotidiano em português. Há quem nos avalie em 230 milhões, há quem aponte para mais de 250, mas ninguém sabe e quase ninguém quer realmente saber. É que nós, portugueses, temos algo que nos distingue dos demais povos do planeta e que é o elemento mais significativo da nossa identidade: para nós a realidade sempre foi um mis-
tério e a utopia um prazer sensual, gostoso que nem pecado. Já seríamos assim nos alvores da nacionalidade, quando foram derrotados cinco reis mouros com o próprio Cristo a apontar o caminho ao nosso primeiro rei, na véspera da matança. Ninguém sabe onde nem quando a tal batalha terá acontecido, nem sequer se jamais aconteceu. Mas a di-
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nastia de Avis fez desta utopia o alicerce do grande empenho de assumir os custos e os riscos da empreitada das descobertas: uma cruzada para concretizar a promessa que o cronista Duarte Galvão se encarregou de divulgar, nos alvores do século de ‘500. E desde então nunca ninguém quis saber nem quanto dinheiro nem quantas vidas custou a empreitada que arruinou o reino: foi o custo do maior intercâmbio de civilizações que aconteceu na história da humanidade. Para que a promessa de Cristo se concretizasse, desviar-se-iam até as águas do rio Nilo e sequestrava-se o corpo do profeta Maomé. Tudo valia para que um rei encoberto entrasse um dia, glorioso, à frente de um exército, pelas portas de Jerusalém, abrindo o caminho às tribos perdidas e enfim reencontradas e convertidas à verdadeira fé. Maktub! Nas minhas andanças por este mundo de gente, encontrei-me muitas vezes com comunidades da diáspora portuguesa, nos recantos mais recônditos e estranhos do planeta, muito acima do círculo polar ártico e muito abaixo do equador, por longitudes terrestres e marítimas pouco recomendadas e notei que em qualquer clima a saudade não era apenas uma palavra, mas sobretudo uma emoção que destrói toda a nossa capacidade de resistir aos glaciares da indiferença. Seja onde for, se soltamos os acordes de um fado, abrimos as porteiras das lágrimas e largamos tudo o que se acalanta no curral do coração. Nas minhas longas e movimentadas viagens marítimas, incontáveis vezes se fez silêncio, quando nas escalas se acomodavam a bordo portugueses emigrantes, para escutar Amália Rodrigues cantar aquele Barco Negro da nossa trágica glória quinhentista. Tem uma praia, é o Tejo no Restelo, tem um barco, é negro de breu, en-
O Mapa Mundi encomendado pelo rei D. Afonso V ao monge italiano frei Mauro data de 1459, quando ainda vivia o infante D. Henrique. O mapa já mostrava todo o oriente, até à China e ao Japão.
feitado com as cores berrantes das flâmulas e dos paveses, tem missa e procissão, marinheiros nas vergas assobiando e acenando com os barretes, tem mulheres jovens e crianças na praia, chorando, tem mulheres velhas sem esperança, esgotadas as fontes das lágrimas. Dos que partem, metade não voltam. Alguns ficarão por lá, ninguém sabe quando nem onde, outros nunca terão sepultura de terra: essa é a realidade. Mas a utopia diz que quem parte ficará sempre no coração de quem fica. Seduzidos pelos acordes da guitarra e pela voz da grande artista, os meus convidados nem imaginavam a armadilha que eu lhes tramava. Vai daí, convidava-os para uma outra realidade: o barco negro
não está ancorado nas praias do Restelo, não tem missa nem procissão, os paveses já não têm cor, as flâmulas estão rotas, falta gente a bordo. Tem mulheres jovens e crianças na praia, elas gritam e choram, tem mulheres velhas que murmuram. São as praias do Ceará, do Malabar, de Malaca e de Macau, nas baías do Japão, nos recifes de Ormuz, nas parcelas das Molucas. São Iracemas, Paraguaçús, Dinamenes, muitas mulheres que se deixaram seduzir e amaram os soldados, marinheiros, degredados e lançados dos barcos negros, da cor do breu. Nasceram filhos, crioulos, mamelucos, mestiços, filhos do pecado, que aprenderam com eles a falar, rezar e a cantar em português. Essas mu-
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eficientes para o sucesso de um comércio sem fronteiras, o da primeira globalização. A expansão marítima resultou do intercâmbio de conhecimentos oriundos de vários cenários culturais e da partilha de inovações tecnológicas. Matemática, astrofísica, cartografia, carpintaria e armamento conjugaram-se. Mas a motivação profunda do reino de Portugal para tanto empenho era de ordem ideológica.
Maquete de uma nau do tempo da expansão, capaz de transportar até mil tonéis e quatrocentas pessoas.
lheres, que um dia acudiram à praia até à beira dos barcos que chegavam, levadas pela curiosidade ou para lavar e polir as panelas com areia, viram a sua felicidade ameaçada porque o homem que as seduzira ia regressar para donde viera e elas não sabiam se ele voltaria para as amparar e ajudar os filhos a crescer. As mais velhas, as primeiras que se deixaram seduzir e que esperaram até enlouquecer, murmuravam: eles não voltam. Na realidade, uns voltaram, outros não. Porque as coisas aconteceram assim, porque não tem pecado que resista do lado de baixo do equador, hoje nós somos esses tantos milhões a falar, a rezar e a cantar pelo mundo em português. E por isso estamos aqui hoje, a sete horas em viagem de sol, a falar em português. Porque muitos dos que chegaram, foram e voltaram para fazer do mundo inteiro o terreiro das leivas dos seus arados, o arraial das suas paixões. Este é o reflexo romântico e sedutor da faceta mais lúdica da nossa identidade, o de um espelho em estanho polido que nos devolve uma imagem fluida. Do outro lado do espe-
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lho tem outra coisa. Tem uma Europa que dominou o mundo a partir do século XVI com o conhecimento, a tecnologia, a civilização e a cultura, no momento da grande expansão marítima e comercial iniciada pelos países ibéricos e continuada por holandeses, ingleses e franceses; Portugal contribuiu com uma fatia considerável de esforço para a expansão dos valores ocidentais, deixando bem marcada a sua presença tanto no novo mundo recém-encontrado como no oriente, velho mundo e berço ancestral de grandes civilizações. A matemática e a geometria, a ciência astronómica, a tecnologia da instrumentação náutica, a cartografia e a arte de construção naval resultaram de contribuições inovadoras de diferentes povos europeus: judeus e muçulmanos ibéricos foram os grandes pioneiros da álgebra e da geometria, alemães e holandeses especializaram-se no fabrico de instrumentos náuticos e na artilharia das frotas, cosmógrafos e cartógrafos ibéricos e italianos foram pioneiros na arte de mapear, enfim armadores e especuladores financeiros exigiram dos estaleiros de construção naval embarcações seguras e
A chegada dos portugueses ao oceano Índico proporcionou desde os primeiros encontros um intercâmbio de conhecimentos. Ultrapassado o impacto inicial da desconfiança e a demonstração de força necessária para garantir a abertura e o controlo do trato comercial, o que foi facilitado pela superioridade bélica dos forasteiros e pela manta de retalhos dos frágeis poderes instituídos ao longo das costas da Índia, os portugueses de imediato se interessaram por outras experiências, procurando antigas comunidades cristãs isoladas e gente erudita com quem partilhar conhecimentos. No regresso da primeira viagem à Índia, entre a meia centena de navegantes que desembarcaram em Lisboa sãos e salvos, vinha um piloto e comerciante muçulmano do norte de África, culto e viajado, originário de Tunes, chamado Monçaide e emigrado há muitos anos, que usava com maestria um instrumento mais eficaz do que o astrolábio para calcular as latitudes, a balestilha. Vinha também Gaspar da Gama (ou das Índias), um judeu askenazi de origem polaca que serviria de intérprete na viagem de Cabral e nas seguintes, prestando inestimáveis serviços aos pioneiros da aventura oriental. Na viagem de Cabral os pilotos testaram a eficácia de outro instrumento de medida de alturas trazido por Vasco da Gama, o kamal, com as respetivas tabelas dos mouros ou tabuletas da
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O encontro entre os forasteiros das naus portuguesas das descobertas e da expansão com os autóctones das terras longínquas provocou um choque civilizacional marcado pela criatividade.
Índia . Os navegantes dos mares orientais já contavam com o apoio de cartógrafos e de pilotos experientes, conheciam com rigor os regimes das correntes e dos ventos e as rotas comerciais que cruzavam o Índico e o Pacífico ao ritmo das monções. Mercadores muçulmanos e judeus, de origem ibérica e norte africana frequentavam há mais de cinco séculos as terras do oriente. Eles constituíam os principais obstáculos às pretensões comerciais dos portugueses, mas eram também os mais indicados para partilhar com os recém-chegados a experiência acumulada. Os muçulmanos foram os primeiros a receber amigavelmente os homens de Gama. Os poucos cristãos encontrados não correspondiam às ideias que durante séculos vigoravam nos meios europeus: eles pertenciam às classes mais pobres, de Melinde e Socotorá até Cranganor, Coulão e Meliapor; o império fabuloso do Preste João, a alimentar utopias durante séculos, era terra pobre e herética, encurralada entre poderosas comunidades islâmicas da África oriental. A Terra Santa estava longe: Ormuz, a pérola no anel do mundo, era a conquista mais próxima do objetivo desejado. A ideo-
logia imperial e messiânica guiava os destinos de todas as empreitadas. O projeto oriental da coroa portuguesa durou pouco mais de um século, se bem que as consequências deste ousado e temerário feito se estenderam por mais de três séculos. Foi o resultado de uma estratégia deliberadamente construída a partir de objetivos previamente definidos: o primeiro desses objetivos era o do cerco ao domínio comercial dos muçulmanos e a destruição da
supremacia do Islão que, após a queda de Constantinopla em 1453, confinava a Europa num espaço comercial demasiado restrito. Por todo o espaço que os portugueses dominavam ao longo da costa africana, o inimigo, o concorrente e o parceiro comercial, eram sempre o mesmo muçulmano. O projeto do rei D. Manuel e de Afonso de Albuquerque de controlar o Mar Vermelho para fechar por completo as rotas marítimas muçulmanas não se realizou, assim como não havia meios para concretizar a sedutora sugestão do
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Négus etíope: desviar o curso do rio Nilo a fim de arrasar o poderio do sultão mameluco do Cairo e cumprir a profecia de Ezequiel – reduzirei os canais do Nilo a um deserto… (Ez,30, 12). O poder religioso em Roma confiava na guerra de cruzada dos portugueses e na estratégia de expansão marítima para travar o Islão e a supremacia do comércio dos infiéis, por isso os papas apoiavam sem reservas as iniciativas portuguesas. Aquele mito da missão divina do reino revelada pelo próprio Cristo ao primeiro rei de Portugal dominava as mentes cultas, inspirava o povo e os rumos das navegações; a utopia de um Império mundial cristão e português instalou-se como ideologia oficial do reino.
O segundo objetivo consistia em criar um novo espaço político e comercial na Europa, baseado na hegemonia dos soberanos fiéis a Roma, para o que era necessário garantir a estes o acesso privilegiado às fontes de riqueza disponíveis. Este objetivo só foi possível graças à combinação das áreas do saber e da experiência: a cosmografia e o contorno do continente africano. Ambas exigiam conhecimentos teóricos e aplicações técnicas. As bases teóricas estavam há muito codificadas em tratados de astronomia que o poder de Roma olhava com suspeição, pois contrariavam os textos da Bíblia; a igreja condenava as novas teorias científicas mas permitia que os princípios fossem aplicados na prática para garantir o sucesso das navegações longínquas, porque navegar é preciso. No destino das naus começava a tarefa dos pregadores, os semeadores da palavra divina. Foi fantástica, a história da expansão do comércio português a partir da Índia: desde as primeiras viagens que surgiu a ambição de alcançar
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mercados mais distantes, os da Malásia, China e Japão, de terras até então conhecidas como Cataio e Cipango. A ideologia que comandava tamanha empreitada era opção de uma seita de fanáticos, qual sociedade secreta empenhada em realizar uma façanha milagrosa num vastíssimo continente e num rosário de arquipélagos. O chamariz era o comércio: pimenta de Samatra e Malaca, seda da Índia e da China, noz-moscada das ilhas de Banda, sândalo de Timor… e tudo quanto bastasse para obter em Lisboa lucros chorudos. Conquistada Malaca o objetivo passou a ser a China (Cantão, a chave do reino da China , grande terra e gente, com formosos cavalos e mulas em grande número, mas onde a principal mercadoria era a seda, no relato de Tomé Pires); da China (Macau, a 30 léguas de Cantão) surgiu um novo desafio, dominar o comércio do reino fabuloso de Cipango, o Japão de Mendes Pinto e de Xavier, do qual Marco Polo ouvira falar e que Colombo não alcançara. Em menos de cinquenta anos, os missionários assentaram arraiais e organizaram comunidades cristãs pelos portos e feitorias onde os comerciantes se aventuravam com as naus da fortuna. Ergueram-se igrejas, colégios, misericórdias, hospitais… O sucesso militar e comercial foi o suporte da expansão cultural, em especial o da difusão do cristianismo que arrastou para o oriente levas de bandeirantes apostólicos, espalhando novos conceitos e outros tantos rituais. Os valores ocidentais e latinos encontravam-se e confrontavam-se com culturas antiquíssimas e a religião cristã enfrentava os cultos de outras religiões profundamente enraizadas no tempo e nas mentalidades: um encontro excitante de civilizações. Pelas cidades da Índia e em seguida pelo espaço das con-
quistas que de Malaca se estenderam pelo levante até à China e ao Japão, os missionários entregaramse à tarefa de organizar comunidades religiosas e de criar centros de irradiação de cultura. Já ao longo do século XVI se editaram dicionários, gramáticas e obras de divulgação religiosa e moral em sânscrito, tâmil, concani, chinês e japonês, impressas em tipografias que se instalaram a partir de 1553 em Goa e Cochim, logo de seguida em Macau e Nagasáki. Os poderes civis, militares e religiosos mantinham uma colaboração estreita e comprometida para garantir o sucesso das respetivas empreitadas. Uns e outros estavam conscientes da vulnerabilidade por serem minoritários e emigrantes: o espaço de intervenção comercial limitava-se a pequenos pedaços de orla marítima e insular distantes uns dos outros, onde o mérito e o reconhecimento do valor dos intervenientes dependiam de muitos fatores, por vezes perturbados pelas intrigas e pela malvadez dos concorrentes. O oriente não seduzia pelo espaço a colonizar, mas pelo comércio. Os comerciantes portugueses alcançaram o Japão (Marco Polo não o visitou mas teve notícias e divulgou-o com o nome de Cipango) ao longo do ano de 1543 e os pioneiros terão sido Fernão Mendes Pinto na companhia de Cristóvão Borralho e Diogo Zeimoto que desembarcaram, em risco de naufrágio e sem autorização nem conhecimento do governador Martim Afonso de Sousa, numa das ilhas do arquipélago de Osumi, a de Tanegashima. A introdução da arma de fogo (o bacamarte) foi a primeira grande novidade técnica vinda do ocidente que modificou por completo a arte e o poder militar num país então fragilizado, sem poder central, governado por dáimios e samurais, senhores da
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guerra ao jeito do feudalismo europeu medieval. A partir de 1547 os mercadores japoneses visitavam Malaca e no ano seguinte frequentavam Goa, levando com eles, de regresso ao Japão, as primeiras novidades sobre o modo de vida dos forasteiros latinos. Os primeiros jesuítas chegaram e instalaram-se na cidade de Kagoshima no mesmo ano em que os seus companheiros chegaram ao Brasil, em 1549. O comércio com os nanban jin, os bárbaros do sul, desenvolveu-se em menos de uma década, prosperou graças ao apoio estratégico de Macau e manteve-se por largos anos monopólio dos portugueses. Em 1581 um cartógrafo português, talvez o jesuíta Inácio Moreira, desenhava a primeira carta geográfica do Japão. O jesuíta Luís Fróis (12532-1597), nascido em Lisboa e chegado ao Japão em 1562, escreveu a primeira História do Japão (1595). Porém, a presença dos europeus em terras tão distantes e no meio de culturas tão diferentes sempre foi precária e recheada de imprevistos. A fixação dos portugueses em algumas partes do continente asiático foi difícil: eles não conseguiram dominar o interior das terras e passaram muitos anos até se conseguir um acordoo duradouro com as autoridades da China para a ocupação de uma ilhota. O navegador Jorge Álvares foi pioneiro: partiu de Malaca em 1513 às ordens do capitãomor Jorge de Albuquerque e deixou um padrão clandestino em Tamão, hoje Lingding, no estuário do rio das Pérolas, sem mais consequências; Tomé Pires, naturalista e boticário real enviado como embaixador por Lopo Soares de Albergaria, não teve sucesso e foi preso logo no início da missão em 1516 (faleceu em território chinês em 1527). A China desconfiava das intenções dos bárbaros ocidentais que somente com subor-
nos se fixavam esporadicamente em pequenos portos. Na realidade, a China – um espaço sagrado no meio do mundo – não precisava de nada nem de ninguém: após a aventura marítima da primeira metade do século XV, sob o comando do almirante muçulmano Zheng He, os imperadores da dinastia Ming até proibiram a construção de barcos de comércio. Francisco Xavier faleceu em 1552 na ilha de Sanchoão, a caminho de Cantão, exausto após mais uma tentativa frustrada, acompanhado pelo embaixador Diogo Pereira. O primeiro acordo com os chineses aconteceu em 1554, por um capitão-mor chamado Leonel de Sousa e finalmente em 1557 foi assinado um tratado que garantia uma espécie de arrendamento de espaço no delta do rio das Pérolas, numa zona habitada por uma população de baixa condição que se dedicava à pirataria, reinava Jiajing, 12º imperador da dinastia Ming. Logo um arrojado dominicano, frei Gaspar da Cruz, vindo de Goa e Malaca, se dedicou à divulgação do cristianismo (deixou-nos um texto delicioso, o Tratado das Coisas da China, escrito em 1569, depois de regressar a Portugal). Não tardaram a chegar os franciscanos, que deixaram pelo extremo oriente marcas duradouras da sua passagem. Paulo da Trindade (1570-1651) e Jacinto de Deus (1612-1681), franciscanos naturais de Macau, escreveram obras importantes sobre a história do cristianismo no oriente (Conquista Espiritual do Oriente e Descrição do Império da China). Os jesuítas chegaram em 1563 e a cidade de Macau, que contava então 5.000 residentes dos quais 600 eram portugueses (ou 900, segundo o relato do padre Francisco de Sousa), foi elevada a sede de um bispado em 1575. O primeiro hospital público, o Hospital dos Pobres, uma
leprosaria e a Santa Casa da Misericórdia foram obras dos jesuítas a partir de 1569. O colégio de São Paulo, dos jesuítas a partir de 1594, tornou-se rapidamente uma instituição de ensino superior donde irradiou a cultura ocidental e latina por terras do império chinês. Durante os 168 anos de atividade do colégio (até à expulsão pelo marquês de Pombal em 1762), lá se formaram 665 padres e irmãos jesuítas. Macau foi um caso exemplar de sucesso político, cultural e comercial duradouro; no primeiro quartel do século XVII o pequeno território possuía a mais sofisticada fundição de canhões de todo o oriente, superior às de Cochim e de Goa, a de Manuel Tavares Bocarro – que hoje enriquece o espólio de museus militares do mundo inteiro. A China sempre foi um espaço interdito aos estrangeiros, os chineses consideravam-se o centro do mundo (o país do meio) e desprezavam os forasteiros, essas criaturas estranhas com hábitos de vestuário e de alimentação bárbaros e grotescos. Eles eram governados por um imperador, filho do céu e servidor de Deus, responsável por tudo o que acontecia ao povo do meio do mundo. A convivência pacífica com os portugueses, chegados do outro lado do mundo e portadores de outros valores culturais, durou 442 anos, até à devolução do espaço em Dezembro de 1999. O Império Português do Oriente foi um projeto ambicioso de D. Manuel, assumido por Albuquerque como uma supremacia militar, mercantil e cultural para sustentar um grande desígnio ideológico e profético. O governador propunha uma massiva miscigenação de portugueses com mulheres indianas (os casados, apelação que durou séculos), criando uma classe aculturada que servisse
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de apoio à empreitada política, uma verdadeira colonização, mas os nobres e eruditos do reino recusavam a ideia de uma raça de mestiços que pudesse ofuscar a dignidade e a qualidade da utópica pureza lusitana – o peito ilustre lusitano. A intolerância foi certamente o principal obstáculo ao diálogo e à convivência pacífica entre portugueses, hindus e muçulmanos. A atitude conciliadora de Albuquerque com os muçulmanos xiitas não foi entendida no reino, antes fortemente contrariada pelas ambições particulares de outros protagonistas. A ideia não vingou; a aventura oriental manteria como modelo um projeto comercial agressivo, onde a ganância não tinha regras nem limites e as empreitadas sucederam-se, por entre tragédias e sucessos. D. João III abandonara quase todas as praças de África para acudir às necessidades de investimento num comércio mais rentável, mas a fasquia fora colocada demasiado acima das capacidades e da qualidade dos concorrentes. No final do século XVI concediam-se em Goa e em Macau graus académicos em artes, direito e teologia, medicina e cosmografia. Imprimiam-se livros em Goa, Cochim, Macau e Nagasaki, o que só aconteceria no Brasil no primeiro quartel do século XIX. O intercâmbio cultural não sustentou a fraqueza militar, política e comercial do regime dos soberanos austro-espanhóis que nunca mais se recuperou. O último rei guerreiro de Portugal, que assumiria o império dos últimos dias e realizaria as profecias, perdera-se numa guerra para nunca mais voltar. A dispersão do império por pequenos pedaços distantes uns dos outros, vulneráveis às investidas da concorrência e à ganância dos protagonistas e administradores que tanto se dedicavam a cumprir as instruções da coroa como a satisfazer
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as ambições pessoais, foi a principal causa da derrocada do projeto. As motivações de ordem ideológica não pesavam nos projetos pessoais de juntar fortuna, esses sim justificavam a luta e a guerra. Apodrecer na rede ou pelejar em Goa, nos versos de Humberto de Campos escritos já no século XX, definiam o destino de quem procurava um novo rumo para a vida. Para os menos atrevidos, o novo mundo representava um imenso espaço de liberdade onde não era necessário exibir virtudes. Para os reis da dinastia de Avis, a cruzada não se estendia ao Brasil ali tão perto, onde não havia muçulmanos nem grandes desafios comerciais, uma terra de gentios, quase virgem, que era necessário cultivar, aguardar pelas sementeiras para colher frutos mais tarde. Os indígenas viviam nus, sem exércitos nem edifícios de pedra e cal, desconheciam os metais e a escrita, era terra de futuro incerto e por isso não constava no cardápio da realeza. O oriente distante e perigoso que alcançá-lo já era uma proeza, era o espaço único de todos os sonhos, os da glória, os da riqueza e os da profecia. O comércio do oriente fez de Lisboa uma das maiores cidades da Europa: 100.000 habitantes em 1550, 250.000 no final do século XVI, (decrescendo para 165.000 em 1619). Durante o reinado de D. Manuel tinham zarpado de Lisboa para a Índia duzentas e trinta e sete naus. A Rua dos Mercadores de então era o terreiro de uma verdadeira globalização, mais parecida com uma favela de luxo com gente de toda a Europa, de muitas raças e crenças, no meio de uma euforia provocada pelo exotismo das mercadorias e a ânsia da fortuna. Porém, depois do longo cerco de Goa pelos holandeses (1639), da perda de Malaca (1641) e de Ceilão (1657), da entrega
de Negapatão (1658), da cedência de Bombaim aos ingleses como parte do dote chorudo do casamento de D. Catarina de Bragança com Carlos II de Inglaterra (1662), o denominado Império Português do Oriente declinou muito rapidamente. No final do primeiro quartel do século XVII pouco restava também do esforço dos cento e quarenta e dois jesuítas (dos quais setenta e um autóctones), de uma centena de franciscanos e algumas dezenas de dominicanos infiltrados na China e Japão, entusiasmados pelo sucesso comercial dos primeiros investidores e pela empreitada louca de São Francisco Xavier. O catolicismo, através do qual se divulgou por mais tempo e mais intensamente a cultura ocidental e neolatina, não entrou no oriente com os portugueses: tanto os primeiros franciscanos que acompanharam as viagens de Gama e de Cabral, como Xavier e os jesuítas nas ousadas investidas pela China meio século depois, já lá encontraram cristãos de longa data e tradição. Tinha havido já um Patriarcado do Oriente na China, no século XIV (1307-1375), resultado do pioneirismo missionário de franciscanos italianos. Porém, a partir da intervenção dos missionários portugueses, através do Padroado da Ordem de Cristo, nunca mais deixou de haver continuidade na presença cristã por todo o oriente. Quando o poder político se desmoronou, os valores culturais sobreviveram e a igreja católica continuou a expandir-se sem o suporte comercial e militar que de início a protegeu. O recinto do Vaticano exibia o sucesso da ação missionária, no tempo do último papa renascentista, Alexandre VII (pontificou de 1655 a 1667), com a inauguração da monumental colunata de Bernini
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a simbolizar o poder da igreja dominando e protegendo o mundo. As nove dioceses católicas orientais do Padroado Português estendiamse no século XVII até à China e ao Japão e na África oriental tinha as dioceses da Etiópia (1555) e de Moçambique (1612). Para além do poderoso espólio religioso presente até aos nossos dias por todo o oriente, a língua portuguesa e a cultura neolatina infiltraram-se nas principais culturas orientais, todas elas exibindo até hoje nos seus vocabulários fonemas de origem portuguesa, assim como no quotidiano de pequenas comunidades que ainda falam dialetos do português, na identidade das pessoas, nos trajes e costumes tradicionais, nos nomes das embarcações de pesca da Malásia e da Indonésia, nas festas populares, na cor da pele dos descendentes de portugueses… Os missionários, primeiro os franciscanos, depois os dominicanos e os agostinhos, finalmente os jesuítas, oratorianos e outros mais, vieram reacender no oriente uma fé residual, obra de outros mais antigos e quase esquecidos, criando novas estruturas religiosas, igrejas, conventos, hospitais e colégios que se ergueram para durar muito para além das empreitadas dos comerciantes e dos militares. Eles foram autênticos bandeirantes desafiando todos os perigos ao encontro dos povos mais distantes, longe da proteção dos demais intervenientes: eles alcançaram civilizações tão isoladas como as do Tibete, do Nepal e do Butão. No primeiro quartel do século XVII, o jesuíta António de Andrade, chegado a Goa em 1600, foi o primeiro europeu a atravessar as neves perpétuas do Himalaia e a fundar uma missão no Tibete em 1626. O padre Estêvão Cacella alcançou o reino do Butão e lá fundou missão no ano seguinte. Outros, como o jesuíta João
Porque as coisas aconteceram assim, hoje nós somos esses tantos milhões a falar, a rezar e a cantar em português.
de Brito (1647-1693), canonizado em 1947, empreenderam ações missionárias e sociais junto dos mais pobres e segregados da Índia, em Madurai, longe de qualquer proteção militar. O padre oratoriano José Vaz, um brâmane natural de Goa (16511711), dedicou vinte e três anos de apostolado à comunidade de Ceilão durante o período do domínio holandês; beatificado em 1995, foi canonizado pelo papa Francisco em Janeiro de 2015. A igreja tinha canonizado em 1862 o franciscano Gonçalo Garcia, natural de Baçaim, filho de pai português e de mãe indiana, um dos vinte e seis cristãos martirizados em Nagasaki em 1597
juntamente com o jesuíta Paulo Miki, filho de um samurai. A persistência da religião cristã permitiu a continuidade da influência linguística e cultural nas suas formas mais duradouras. Até ao final do século XVIII o português era ainda a principal língua comercial por todo o oriente. Há uma dezena de anos ainda se publicava em Ceilão um jornal em crioulo de português, mantido por uma igreja cristã. São doze os crioulos indo-portugueses identificados e cinco os crioulos malaio-portugueses, a maioria deles quase extinta, línguas de comunidades pobres e marginais. O papiá
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kristáng, um dialeto de origem portuguesa com mistura de fonemas malaios e chineses, ainda é falado por mais de cinco mil cidadãos em Malaca e Singapura e por mais alguns milhares dispersos por várias comunidades migrantes na Austrália e em Inglaterra. Um crioulo similar ainda subsiste como língua única dos seus utilizadores em Chaul, o kristí, dialeto da comunidade cristã de Korlai utilizado por um milhar de pessoas a sul de Bombaim, onde a presença portuguesa durou até 1740. Os últimos redutos do domínio português até ao século XX, os espaços do antigo Estado Português da Índia, mais os de Macau e de Timor, contribuíram grandemente para a continuidade da língua, mesmo que residual. Cerca de metade da população do atual estado de Goa (que é de um milhão e quinhentos mil habitantes) continua católica e a língua portuguesa, apesar de muito minoritária em relação às línguas concani e marata e mesmo ao inglês, ainda é falada por centenas de famílias. O diário O Heraldo foi publicado em português até 1983. Até 1847, os bispos da diocese chinesa de Pequim eram portugueses, até 1868 os bispos da diocese de Malaca e Singapura eram portugueses, como os bispos de Meliapor e de Cochim até 1951. O primeiro bispo da primeira diocese do Brasil, São Salvador da Bahia, D. Pedro Fernandes Sardinha (1496-1556), tinha sido vigário geral na Índia; o primeiro bispo do Maranhão, D. Gregório dos Anjos (1679-1689), o bispo do Pará D. frei Miguel de Bulhões (17491759), foram antes bispos de Malaca. D. António Barroso, bispo do Porto, um prelado que teve relevante intervenção nos primeiros tempos da República, tinha sido bispo de São Tomé de Meliapor. A igreja de São José em Singapura, construída na primeira década do século XX, ostenta na sua decoração
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o escudo português. A língua portuguesa é atualmente um dos três idiomas da República da Maurícia, um arquipélago habitado por um milhão e trezentas mil almas, situado a leste de Madagáscar, encontrado pelos portugueses em 1505. Em Goa Velha, estão de pé e abertas ao público a sé catedral, as igrejas do Rosário, do Bom Jesus e de São Francisco, todas erguidas no século XVI. Em Macau subsistem as igrejas de São Lázaro, de Santo António e de São Lourenço, originalmente da mesma época. As ruinas da igreja do colégio de São Paulo são património da humanidade. Por muitos outros espaços do que foi o sonhado Império Português do Oriente resistem ao tempo vestígios eloquentes do que foi a obra do Padroado português, em especial a da atuação dos padres da Companhia de Jesus. Eles não foram os primeiros missionários portugueses no oriente, mas foram os mais ousados e destemidos na propagação do cristianismo, seguindo o exemplo de São Francisco Xavier. O padre Francisco de Sousa, um jesuíta nascido na Bahia (1649-1712), viveu 47 anos no oriente e escreveu a história da grande bandeira dos jesuítas, desde a chegada dos pioneiros até 1585: Oriente Conquistado a Jesus Cristo pelos padres da Companhia de Jesus da Província de Goa (Deslandes, Lisboa, 2 vols, 1710). Um dos personagens mais relevantes da implantação da cultura ocidental e latina na China foi o jesuíta italiano Matteo Ricci (1552-1610), cientista, matemático e cartógrafo, o primeiro europeu a criar um intercâmbio científico e cultural com o oriente ao mais alto nível, entre os intelectuais e junto da corte imperial chinesa. Ricci veio para Portugal em 1577, aos vinte e cinco anos, para aperfeiçoar os conhecimentos de
português na universidade de Coimbra. Partiu para Goa em 1578, integrado nas missões do padroado português e foi ensinar latim e grego no colégio de Cochim (hoje a maior aglomeração urbana do estado de Kerala, no sul da Índia), enquanto estudava teologia, para ser ordenado sacerdote em 1580. Em 1582 foi enviado para Macau (a diocese tinha sido fundada em 1575, desmembrada da de Malaca), a fim de aprender a língua e a cultura chinesa, enquanto ensinava matemática no colégio. No ano seguinte, juntamente com outro missionário o padre Miguel Ruggieri, fundava a primeira missão na China, em Zhaoqing, dependente do colégio dos jesuítas de Macau. O colégio Madre de Deus, fundado na origem pelos franciscanos viria a ser, a partir de 1594, com o nome de colégio de São Paulo e já sob a tutela dos jesuítas, uma instituição de altíssima qualidade: aí se ensinava filosofia, teologia, matemática, geografia, astronomia, latim, português, música e artes, uma verdadeira instituição de ensino superior, foco de difusão da cultura ocidental por terras chinesas e dos seus aliados. O padre Ruggieri, companheiro de Ricci, também foi professor de matemática no mesmo colégio durante quatro anos e foi o primeiro a publicar em língua chinesa um livro sobre a visão cristã do mundo, Verdadeiro Tratado do Senhor do Céu, em 1584. Em 1589 Matteo Ricci introduziu o calendário gregoriano na China e em 1594 traduziu para latim os quatro livros do Cânone do Confucionismo , permitindo pela primeira vez o acesso dos ocidentais à filosofia de Confúcio (551-479 ac). Vestido de seda como os altos funcionários e os calígrafos da administração do império, o homem sábio do ocidente logrou aproximar-se da cor púrpura que enfeitava a cidade interdita.
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O padre João Rodrigues, natural de Sernancelhe (1560-1633), embarcou para o Oriente muito jovem, pelos catorze anos e lá ingressou na Companhia de Jesus; fez os estudos de filosofia e teologia no colégio jesuíta de Nagasaki, foi ordenado padre em Macau e tornou-se um dos maiores conhecedores ocidentais da língua japonesa. Ele compôs o primeiro dicionário japonês-português (1603) e escreveu a primeira gramática da língua japonesa (1604). Para além de escrever uma história do cristianismo no Japão, que não é apenas uma história de religião mas uma verdadeira enciclopédia da cultura nipónica, o padre foi também comerciante, diplomata, político e intérprete junto dos estrangeiros que demandavam o país do sol nascente. A carreira promissora do padre terminou em 1610, no momento de um incidente infeliz com a nau do trato Nossa Senhora da Graça, também conhecida como Madre de Deus, destruída pelos japoneses na baía de Nagasaki, depois de um incidente mal resolvido em Macau. Em retaliação pela morte de soldados e marinheiros japoneses, a maioria dos padres foi expulsa do Japão (em 1614). O colégio fechou, o comércio declinou e os mercadores portugueses abandonaram Nagasaki em 1639, após 68 anos de um movimento comercial exclusivo entre Macau e o Japão. A história da vida do jesuíta João Rodrigues inspirou o romance Shogun de James Clavell, que deu origem à série televisiva e ao filme com o mesmo nome em 1980. Um filme recente, O Silêncio, relata o drama de um dos padres jesuítas no tempo da perseguição. Pelos anos de 1670 o padre Gabriel de Magalhães, natural de Pedrógão Grande, ensinava astronomia na corte do imperador Kangshi (o 2º da dinastia Qing, reinou de 1661 a 1722), que visitou pessoalmente a
As mesmas velas que nos levaram até ao oriente no século da glória, ainda servem na lide de todos os dias por todos os continentes.
casa dos jesuítas em Pequim em 1675, resolvidos alguns conflitos que entretanto tinham surgido entre missionários de diferentes ordens religiosas e com as autoridades. Por esses anos, já a presença dos padres portugueses era minoritária na China; na Relação escrita pelo jesuíta francês François de Rougemont, sobre a ação dos padres nos anos de 1659 a 1666, apenas cinco em vinte e cinco padres jesuítas são portugueses, entre eles o padre Magalhães, que completou o trabalho iniciado pelo francês até ao ano de 1669. Outro jesuíta que desempenhou um papel preponderante no Celeste Império foi o padre Tomás Pereira (1645-1708), natural de Famalicão, que chegou a Goa com o vice-rei D. João Nunes da Cunha em 1666, ainda noviço, aos vinte e um anos,
onde completou os estudos seguindo depois para Macau em 1672. Músico, astrónomo, matemático e diplomata, frequentava desde 1680 a corte do imperador Kangxi (o 3º da dinastia Qing) e fez parte da delegação chinesa que assinou em 1689 o primeiro tratado de paz com uma nação europeia, a Rússia de Pedro I o Grande, soberano que unificou, modernizou e abriu o seu país à influência ocidental. Matemático e astrónomo, o jesuíta introduziu também na China a música erudita europeia, construiu o primeiro órgão de tubos e montou o primeiro carrilhão numa igreja chinesa. Apesar de ter desempenhado a sua ação já numa fase decadente do poder económico e cultural português no oriente, o seu contributo para o intercâmbio cultural com a China foi brilhante, no tempo do reinado do mais extraordinário imperador de toda a história
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chinesa. Os jesuítas foram os maiores intervenientes no intercâmbio científico e cultural entre o ocidente e o oriente, sobretudo nas áreas da matemática, da geografia e da astrofísica. Eles mantiveram uma presença quase constante junto da corte imperial chinesa até 1806, quando faleceu em Pequim o padre, matemático e cirurgião José Bernardo de Almeida, reinava o imperador Jiaging, o 5º da dinastia Qing. A difusão da civilização ocidental e latina pelo oriente foi prodigiosa: em meados do século XVII tinham sido publicadas nas tipografias de Goa, Cochim, Macau e Nagasáki mais de duas centenas de livros sobre ciência e religião e meia centena de grandes obras clássicas ocidentais. As ordens religiosas cresceram graças ao recrutamento de noviços autóctones que contribuíram para o sucesso missionário do Padroado. A nossa história conta muitas miudezas e alguns momentos de glória – momentos sublimes de grandeza – fragmentos da formação da identidade de um povo; todas as histórias são feitas de fragmentos. A aventura oriental nasceu de um projeto profético assumido, no contexto de uma mística escatológica de forte influência judaica e gerou riquezas pessoais fabulosas, mas foi desastrosa para o reino: escreve Oliveira Martins que a nossa ruina foi o preço do maior ato da civilização nos tempos modernos. Os primeiros três navios que zarparam de Lisboa com destino à Índia, comandados por Bartolomeu Dias, passaram o Cabo em 1488, fincaram um padrão no rio do Infante, mil quilómetros a nordeste, na costa do oceano Índico, mas a insegurança das tripulações provocou uma rebeldia que impediu de alcançar o destino. Entre 1497 e 1700 zarparam para o oriente 1154 naus e regressaram apenas 589.
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O maior génio da nossa identidade, o padre António Vieira, um mestiço irreverente, pregando na capital da cristandade em outros anos de crise e de descalabro da nação, na década de ‘70 do século XVII, imaginava para os portugueses nada menos que o Vº Império do mundo e apregoava nos púlpitos de Roma o que imaginara nas missões do Maranhão e Grão-Pará, quando era missionário entre os povos mais primitivos da terra: que o planeta se tornaria uma Feira Universal (expressão do cronista João de Barros), qual Nova Malaca, cosmopolita e tolerante, no início de uma nova era de riqueza e de felicidade. O pregador augurava o reino consumado de Cristo sobre toda a humanidade, mil anos depois de um Apocalipse atribuído ao bispo Metódio de Olimpos o ter profetizado para um soberano bizantino e etíope, imperador dos últimos dias, dominador do Islão e libertador de Jerusalém. Cumprida a missão profética, ele renunciaria à coroa. Quando Vieira escrevia o seu projeto, o rei a quem ele destinava o trono do Vº Império, após ressuscitar conforme os mesmos e outros profetas da plebe, já renunciara à coroa, para si e seus sucessores, havia vinte e cinco anos. Que faltaria então para que se cumprissem as profecias? Na linha ideológica das muitas teorias milenaristas que surgiram ao longo da história do cristianismo, todas inspiradas no mesmo texto do Apocalipse, o Vº Império de Vieira é uma apologética da esperança. A língua portuguesa, diferenciada da galega a partir de 1290, quando D. Dinis a impôs como idioma oficial da corte e da administração do reino, consolidou-se em 1516 com a publicação do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende e normalizouse com as gramáticas de Fernão de Oliveira (1536) e de João de Barros
(1540). A consolidação e normalização da língua aconteceram ao mesmo tempo que ela se disseminava pelos novos espaços onde os portugueses assentavam arraiais no século de ouro da expansão marítima, comercial e cultural. Permeável às influências linguísticas e fonéticas dos povos agregados, a língua assimilou quantidade impressionante de fonemas que a enriqueceram e globalizaram, enquanto fornecia às outras línguas novas sonoridades, num intercâmbio de exotismo sustentado e duradouro, numa diluição dinâmica e interativa. Hoje, a língua portuguesa serve de pátria emotiva a centenas de milhões de cidadãos espalhados por quatro continentes, graças àqueles barcos negros que foram e voltaram, tornaram a vir e tornaram a voltar. Teve mais de trinta idiomas crioulos do português (muitos extintos) por espaços continentais e arquipélagos da América, África, Índia, Malásia e China. Com a língua viajaram, nos rumos de ida e de torna-viagem, mitos e virtudes de civilizações diferenciadas, valores e desejos globais, ideias e tecnologias inovadoras partilhadas pelos povos do planeta e talvez seja essa universalidade que anuncia hoje a alvorada de um sonhado e profetizado Vº Império, cujos testemunhos de pedra e cal, os que ainda estão de pé e os que resistem ao implacável desgaste do tempo e das águas, da Etiópia ao Japão, continuam a marcar o tempo e o modo da presença efémera dos portugueses. São mensagens proféticas para quem sabe ler a história do futuro. A euforia não terminou, nem a pátria se perdeu na desolação de Cúria Múria. Tem uma ilha encantada num lugar que não existe, povoada de heróis e de esperanças, alimentando o imaginário de um povo que nunca desistiu de encontrar a sua identidade a uma distância segura da realidade. O sonho continua.
Reflexão didática sobre uma análise das Gramáticas de PLE Ao Sio Heng Sónia Universidade de Macau (UM)
Abstrato: A Língua é um meio fundamental de comunicação interpessoal. No âmbito institucional, o uso preciso de regras gramaticais é um critério para avaliar a proficiência linguística dos aprendentes. De modo geral, a fim de estar confiante na atuação linguística de qualquer língua estrangeira, o aprendente chinês acha primordial saber as regras gramaticais. Diz um provérbio chinês “É fundamental ter boas ferramentas para se trabalhar bem”. Um livro de gramática é comumente considerado uma ferramenta indispensável para a aprendizagem duma língua estrangeira. Através da análise de 4 livros da gramática de PLE, este estudo procura esboçar linhas orientadoras para a elaboração de uma gramática destinada ao aprendente chinês do português como língua estrangeira. Palavras-chaves:
gramática, aprendente chinês de PLE, modelo cognitivo-comunicativo Papel de Macau no ensinoaprendizagem de português na China e na Ásia-Pacífico No quadro da política estratégica de “Uma Faixa, Uma Rota” impulsionada pelo Governo Central da China, na 5ª Conferência Ministerial do Fórum realizada em 2016, foi repetidamente reforçado o papel de
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plataforma de Macau nas oportunidades de colaboração celebradas entre a China e os países de língua portuguesa. Por razões principalmente históricas e socioculturais, Macau tem desempenhado um papel estratégico na promoção do ensino-aprendizagem do Português como língua estrangeira (doravante PLE) na zona asiática. O Governo da RAEM tem investido muito neste aspeto em: pacotes de cursos e formações, bolsas de estudos, colaborações institucionais, entre muitos outros. Sendo cada vez mais sólidas as relações comerciais e de cooperação entre a China e o mundo lusófono, o Português tem vindo a tornar-se uma língua muito procurada na China, incluindo em Macau. Nas últimas décadas, registou-se um significativo aumento de Instituições universitárias chinesas que investem no ensino-aprendizagem do PLE. No que diz respeito a materiais disponíveis no mercado, embora sobressaia sempre a vontade de melhorar a situação, o número de materiais pedagógico-didáticos ainda não está a acompanhar este notável crescimento da procura de instrução. Em Abril de 2016, em mais uma iniciativa do Governo da RAEM, o Gabinete de Apoio ao Ensino Superior (GAES) deu início ao projeto dos “Financiamentos Especiais para Formação de Quadros Qualificados Bilin-
gues em Chinês e Português e para a Cooperação do Ensino e da Investigação nas Instituições do Ensino Superior de Macau”. Este projeto tem como objetivo principal intensificar a cooperação entre as instituições do ensino superior de Macau, do Interior da China, das regiões da Ásia-Pacífico e dos Países de Língua Portuguesa. É mais uma forma para reforçar o papel de Macau como a base de formação de quadros qualificados da língua portuguesa na região global da ÁsiaPacífico. Para que um aprendente comunique eficaz e corretamente numa língua estrangeira, considera-se indispensável uma boa competência gramatical da língua em questão. Isso é
Reflexão didática sobre uma análise das Gramáticas de PLE
ainda mais evidente quando um indivíduo está a aprender uma língua que é muito distinta da sua língua materna, como no caso de Português/Chinês. O Projeto dos Financiamentos reforça a nossa iniciativa de elaborar um livro da gramática de PLE destinado ao público chinês. Neste contexto, procuramos obter ideias norteadoras para a elaboração de uma gramática de uso prático, pela análise de 4 livros de gramática que são usados nas instituições do ensino/aprendizagem de PLE na China. Conceção da gramática Para sermos competitivos no mundo globalizante, nós devemos ser capazes de compreender e agir no mundo de aceleradas mudanças sociais, económicas e tecnológicas (Marçalo et. al., 2010:83). De acordo com Jimenez (2009), aprender línguas estrangeiras é uma forma de lidar com as constantes mudanças do mundo, permitindo agir em face de necessidades linguísticas, socioculturais, económicas, entre outras. Casteleiro (1991) defende que a gramática não pode ser nunca excluída do ensino duma LE. O linguista argumenta que aprender uma língua estrangeira, qualquer que seja a metodologia adotada, implica sempre a apropriação de regras gramaticais, consciente ou inconscientemente, explícita ou implicitamente (ibid, 1991:116). Hopper (1987) recusa a ideia de que a língua é constituída por um sistema de regras abstratas. Ao invés, seja qual for, a língua é viva e transforma-se no espaço e tempo. Fundamentando-se na teoria cognitiva de usos discursivos, a aquisição linguística é norteada pelas experiências que cada usuário se atua em ações discursivas (ibid ). Entretanto,
Travaglia (1996:112-124) fez questões entre saber a gramática e usar a gramática. Em termos de saber a gramática, o aprendente é capaz de descrever a categoria e as funções dos elementos gramaticais. No que diz respeito a usar a gramática, o aprendente busca desenvolver as suas competências através do uso de recursos linguísticos em contextos de comunicação sociocultural. Ou seja, a perspetiva de usar a gramática privilegia o princípio de “aprende-se a fazer, fazendo” e não a memorização das regras. Usa-se a língua estrangeira como instrumento de acesso a informações, a outras culturas e grupos sociais. Isto permite que o aprendente se integre num mundo globalizante. Ensino e aprendizagem da gramática Em Larsen-Freeman (2001), argumenta-se que as regras devem ser ensinadas e aprendidas dentro do seu quadro semântico (significado) e pragmático (contexto). Ou seja, a competência gramatical deve ser desenvolvida de modo a permitir ao indivíduo ser capaz de interpretar a situação discursiva de maneira apropriada e, eventualmente, agir nela de forma apropriada. Com base nos pressupostos da Linguística Cognitiva, Mello e Dutra (2000) e Mello (2001) propõem dois princípios gerais do ensino de gramática: (1) Princípio do andaime (scaffolding) na construção do conhecimento – neste trabalho, ‘Fazer andaime’ significa oferecer ao aprendente oportunidades de treino (ou seja, atividades) com vista a possibilitar que o aprendente possa avançar na resolução de problemas de forma progressiva e confiante;
(2) Princípio de inserir a língua em contexto sociocultural – isto significa que a língua é um sistema simbólico utilizado para comunicar. Logo, há uma relação interdependente entre a gramática e seu uso no mundo real – a gramática dá corpo ao uso e o uso influencia o corpo da gramática. Em termos pragmáticos, o uso da língua é conduzido por aspetos inerentes à situação comunicativa, tais como as intenções e o perfil do usuário, a condição sociocultural e o grau de informatividade (Wilson e Martelotta, 2009). Ou seja, a língua adapta-se ao contexto comunicativo, mediante as intenções do falante, em interface com os processos mentais e os aspetos da ordem sociocultural (Wilson e Martelotta, 2009; Furtado da Cunha, 2013). Fisher (1989, citado em Neves, 1989:17) apresenta 3 níveis fundamentais das características essenciais da abordagem comunicativa no ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras: • Ao nível do aluno – é uma abordagem centrada no aprendente. Esse é orientado para o uso de língua em situações da vivência concreta, para os seus interesses e para as suas necessidades. • Ao nível dos materiais – privilegia-se a utilização de textos autênticos, materiais variados de acordo com os interesses do aprendente e o ritmo progressivo da sua aprendizagem. • Ao nível das relações interpessoais – enfatiza-se o processo de interação em que o aprendente usa a língua, de forma adequada e autónoma, em situações comunicativas.
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Metodologia Esta parte metodológica destina-se a descrever a constituição do nosso corpus e a definição dos critérios com base nos quais executamos a análise do corpus. Constituição do corpus Como orientação metodológica, este trabalho adota uma abordagem descritiva do objeto em apreço. Para delimitar o corpus do estudo, foram considerados os seguintes critérios para a seleção do objeto de análise: O livro de gramática deve 1. estar em uso atual nas instituições chinesas do ensino de Português; 2. ser de publicação posterior a 1996, ou seja, nas últimas duas décadas em que se registou um notável desenvolvimento do ensino/aprendizagem do português na China; 3. estar disponível no mercado chinês; 4. destinar-se ao público-alvo jovem, jovem-adulto ou adulto. É de salientar que o objetivo da análise não é, de maneira alguma, criticar o trabalho apreciável e admirável
dos autores destes livros, mas é dar um conhecimento alargado e norteador para a elaboração de materiais pedagógicos de PLE. Critérios para a análise A análise dos livros selecionados assentará nos pressupostos defendidos pela Gramática Cognitiva, pelo Quadro Europeu Comum de Referência (2001) [doravante: QECR] e pelo Conselho da Europa (2001) [doravante: CE], e também será orientada pelos parâmetros apresentados por Tavares (2008). No QECR (Alves, 2001:28) defendese que os conteúdos linguísticos representam uma base fundamental no desenvolvimento da competência gramatical que se refere a conhecimento dos recursos gramaticais e capacidades para os utilizar adequadamente em situações comunicativas. Sintetizando Tavares (2008), a análise de conteúdos linguísticos assenta em: (a) como são apresentadas e treinadas as regras fonéticas e de acentuação, (b) como são apresentadas, exemplificadas e treinadas as regras gramaticais e (c) como é selecionado e apresentado o conteúdo lexical.
Assim, foram selecionados 4 livros de gramática cuja informação se apresenta no Quadro 1: Corpus do estudo Título da gramática
Autor(es)
Data
Editora
Gamática da Língua Portuguesa (2ª edição)
Wang Suoying e Lu Yubin
1999
Shanghai Foreign Language Education Press
Li Fei
2010
Foreign Language Teaching and Research Press
Isabel Coimbra e Olga Mata Coimbra
2011
Lidel
Carla Oliveira e Luísa Coelho
2012
Texto
Grande Gramática Portuguesa Explicada (1ª edição) Gramática Ativa 1 (3ª edição) Gramática Aplicada 1
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Análise e Observação Entre os 4 livros de gramática em apreço, apenas nos livros de Wang e Lu (1999) e de Li Fei (2010) se aborda a descrição das regras fonéticas e prosódicas do Português. De fato, a fónica tem um papel fundamental na aprendizagem de línguas estrangeiras, em particular no desenvolvimento das competências de compreensão e de produção oral (Hammerly, 1982). Estes dois livros, escritos em chinês, dão uma explicação detalhada das regras fonéticas do Português, as quais são, supostamente, difíceis para os aprendentes chineses cuja língua materna tem um sistema fonético muito distinto daquele da língua-alvo. No quadro 2, observa-se que as regras fonéticas são apresentadas basicamente através de uma descrição fisiológica do mecanismo gerador de sons, i.e. articulação física de sons produzidos pelos movimentos do aparelho fonador. Recorre-se a muitos termos metalinguísticos, tais como alvéolos e véu palatino. Todavia, não se disponibiliza qualquer suporte auditivo. Observa-se que, no Quadro 3, a entoação oracional é apresentada, visualmente, através de desenhos lineares. Esta orientação visual promoverá uma imagem mental da produção de som. Porém, às vezes, pode variar-se a realização prosódica consoante as situações variam entre a alegria, a tristeza, a raiva, a dúvida ou o humor. Como exemplo, uma pessoa quando está contente pode articular “olá” numa maneira prosodicamente diferente de quando a mesma está desanimada. Por isso, os desenhos lineares nem sempre podem corresponder à realização prosódica. A pronúncia é código básico de comunicação linguística. Sob a visão holística de pronúncia, Odisho (2007) propõe uma modalidade mul-
Reflexão didática sobre uma análise das Gramáticas de PLE
Quadro 2: Conteúdo fonético Gramática da Língua Portuguesa
tifacetada para ensinar pronúncia ao aprendente de línguas estrangeiras. A modalidade envolve o uso de treinos auditórios, propriocetivos e vi-
Grande Gramática Portuguesa Explicada
gua-alvo. Porém, esses treinos não são suficientes para o aprendente internalizar a matéria fonética; (2) orientação propriocetiva – o apren-
Quadro 3: Conteúdo prosódico Gramática da Língua Portuguesa
suais, os quais requerem a manipulação de processos cognitivos na forma de pensar, associar, memorizar, sintetizar, etc. (ibid, 2007:3). Segundo o autor, a competência fonética e fonológica desenvolve-se sob 3 orientações fundamentais: (1) orientação auditiva – o aprendente está exposto a estímulos auditivos e vai identificando os sons ouvidos. Entretanto, Odisho (2006:18) afirma que os exercícios de ouvir e imitar sons ouvidos são treinos importantes para a reprodução automática na lín-
Grande Gramática Portuguesa Explicada
dente perceciona os movimentos articulatórios dos sons produzidos. Ao complementar os sons ouvidos, a associação explicativa de movimentos articulatórios (tátil-cinestésicos) entre a língua-alvo e a língua materna gera imagens percetivas de como os sons são produzidos. Esta associação estimula um processo cognitivo em que o aprendente compara, analisa, sintetiza e memoriza as imagens associativas. A comparação analítica entre as línguas em questão faz o aprendente conscien-
temente perceber e reconhecer os sons produzidos, facilitando a interiorização dos mesmos; (3) orientação visual – usam-se meios visuais (cor, figura e imagem) para facilitar a criação e a fixação de imagens acústicas na mente a longo prazo. Ou seja, por meio das imagens visuais reforça-se a retenção das imagens percetivas de sons auditórios. Neste contexto, de maneira holística, a matéria fonética e fonológica é trabalhada em complementaridade de diversas modalidades sensórias. E a complementaridade funcional de diversas modalidades sensórias facilitará a interiorização de matéria fonética e fonológica de língua estrangeira (Odisho, 2007). Neste estudo, outro foco de análise relaciona-se a maneiras como as regras gramaticais são apresentadas ao usuário (Tavares, 2008). Quanto à natureza de linguagem e exemplo, no Quadro 4, nota-se que a explicação e a exemplificação das regras gramaticais são feitas no padrão concetual da gramática convencional. Ou seja, são explicadas as regras em termos de classes de discurso e formas morfossintáticas, com exemplos maiormente tirados de obras clássicas. A explicação convencional de regras gramáticas privilegia o exercício de análise estrutural dos segmentos internos oracionais. Este tipo de exercício é particularmente útil para quem procura aprofundar o seu conhecimento sobre as funções estruturais e morfossintáticas dos elementos oracionais. Porém, para os aprendentes que assimilam uma língua estrangeira e que buscam a adequação e a fluência no discurso, não basta apenas saberem e memorizarem as categorias gramaticais. O primordial é para eles desenvolverem as competências de usar a língua que estão a aprender e que lhes permite agirem adequada e confiantemente em contextos con-
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Quadro 4: Conteúdo linguístico – estrutura sintática Gramática da Língua Portuguesa
cretos de comunicação (CE, 2001:29). Assim sendo, é necessário que as estruturas linguísticas sejam apresentadas, de forma articulada, em situações de comunicação, para que o indivíduo comunique eficazmente e defina as suas próprias necessidades linguísticas. Ao longo do tempo, tem sido pouco consensual a questão do papel de língua materna no processo de ensino/aprendizagem de LE. Para muitos, é particularmente importante o recurso à língua materna quando o aprendente é iniciante ou ainda não domina bem a língua em questão. Observa-se que, nos dois livros acima analisados, toda a explicação é feita na língua materna do público usuário, ou seja, o Chinês. O uso da língua materna facilita muito a compreensão dos conteúdos gramaticais, tornando a aprendizagem mais fácil e eficaz. Ainda relativo à explicação de regras gramaticais, para evitar o cair na abstração das regras gramaticais, é importante que os exemplos sejam apresentados num contexto comunicativo de uso corrente. No quadro 5 mostra-se que as palavras cá, lá, aqui, aí e ali são apresentadas como advérbios de lugar. Porém, esses termos podem desempenhar funções diferentes consoante situações de comunicação distintas. Por exemplo é advérbio de lugar o termo “aí” no enunciado “Põe-no aí em cima da mesa! Vou verificando tudo”, mas o
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Grande Gramática Portuguesa Explicada
mesmo termo já funciona como um adjetivo e significa “qualquer” no contexto de “É época de Carnaval. Se vais assistir a uma festinha de rua aí, é desregramento total” e funciona como anafórico de tempo “meia-noite” no contexto de “Era meia-noite. Aí ainda não tínhamos hotel e ficámos com medo…”. Os exemplos de “aí”, acima apresentados, revelam a importância de
dadas oportunidades funcionais que facilitem o desenvolvimento de competências em usar a língua que esse está a aprender. Enquadrados num contexto de uso funcional, os treinos estimulam e motivam os aprendentes a conhecerem as estruturas para que, com base nelas, possam desenvolver a capacidade de expressar as suas ideias na LE. Notase que os dois livros de gramática, escritos em chinês, não fornecem treinos como meios para consolidar ou testar o que foi aprendido. Em contrapartida, nos outros dois livros em apreço, a Gramática Aplicada 1 e a Gramática Ativa 1, há exercícios para os usuários treinarem o que aprenderam. Isto é uma forma importante que leva os usuários a refletirem sobre a sua própria aprendizagem. Mostra-se no Quadro 6 que estes dois livros adotam uma estrutura da apresentação de con-
Quadro 5: Conteúdo linguístico – regras gramaticais Gramática da Língua Portuguesa
os conteúdos serem apresentados em contexto de uso. Nos contextos aprende-se a função gramatical e interpreta-se o conteúdo semântico. Segundo a teoria da linguística cognitiva, o desenvolvimento de competências gramaticais requer um número significativo de treinos. Neste contexto, ao aprendente devem ser
Grande Gramática Portuguesa Explicada
teúdos bastante semelhante. Começa-se por um parágrafo introdutório sobre a matéria em foco ou um diálogo em que se insere a matéria em estudo (por exemplo: o verbo ser no Presente do Indicativo). Segue-se a explicação dos usos do conteúdo tratado, que é feita na língua-alvo (i.e. Português). Por fim, complementa-se com exercícios
Reflexão didática sobre uma análise das Gramáticas de PLE
Quadro 6: Conteúdo linguístico – regras gramaticais Gramática Aplicada 1
Gramática Ativa 1
para os usuários praticarem o que aprenderam. Vale a pena salientar a grande possibilidade de os aprendentes não aprenderem quando não compreendem o que estudam. Nestas Gramáticas a explicação é feita na língua-alvo, o Português. No entanto, os usuários que não têm suficiente conhecimento linguístico para compreender as explicações, podem ficar inseguros ou até desmotivados na aprendizagem. Isto é ainda mais óbvio quando se trata da autoaprendizagem em que o aprendente não tem orientação docente.
tivo de autoavaliação é de ajudar os aprendentes a apreciar os seus aspetos fortes, a reconhecer as suas fraquezas e a orientar a sua aprendizagem com maior eficácia (QECR, 2001:263). A Gramática Aplicada 1 disponibiliza, no fim do livro, exercícios de revisão que servem para os usuários autoavaliarem a sua aprendizagem. Entretanto, o quadro 8 mostra que os exercícios de avaliação se mantêm de natureza estrutural.
Segundo o princípio de andaime na aprendizagem de línguas estrangeiras, é necessário serem criadas oportunidades com base nas quais o aprendente se vai tornando autónomo na sua própria aprendizagem. Os conteúdos devem ser apresentados de forma simples e fácil para facilitar sua compreensão e as atividades para treinar os conteúdos devem ser diversificadas e próximas da vida real. No QCER defende-se que os temas a serem trabalhados para língua não-materna devem estar ligados à vida social e profissional do aprendente. Esta ligação temática permite ao aprendente agir para satisfazer as suas necessidades comunicativas e socioculturais (Alves, 2010:29). A diversidade de atividades possibilita ao aprendente treinar e explorar a meteria em perspetivas diferentes. É uma forma para estimular o interesse e o envolvimento do aprendente no processo de aprendizagem. Quanto ao conteúdo lexical, o Quadro 9 mostra-nos que a seleção le-
Quadro 7: Conteúdo linguístico – regras gramaticais Gramática Aplicada 1
No Quadro 7 pode observar-se que os exercícios gramaticais nestas Gramáticas são primordialmente da índole estrutural: preencher lacunas na frase ou no texto, (re)escrever frases com elementos dados. Este tipo de exercícios é útil para descobrir normas gramaticais e reforçar a memorização das mesmas. As soluções dos exercícios são registadas, como apêndice, respetivamente, no final de cada uma das Gramáticas.
Gramática Ativa 1
Os exercícios de avaliação funcionam como uma forma de feedback para o usuário autoavaliar o grau de sucesso e progressão na sua aprendizagem. Segundo o QECR, o obje-
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Quadro 8: Conteúdo linguístico – regras gramaticais Gramática Aplicada 1
xical das Gramáticas se faz com base nos temas prescritos no QECR, ou seja, em torno da vida sociocultural e profissional de um indivíduo jovem ou jovem-adulto. E a forma de apresentação do conteúdo lexical é, primordialmente, em enunciados ou diálogos forjados. Hatch e Brown (1995) não favorecem a apresentação de conteúdos lexicais em frases forjadas, listas de definição, de sinónimo e de antónimo.
profícua em contextos comunicativos. Tudo isto nos leva a pensar, em termos holísticos, na importância do conhecimento funcional do léxico da língua. Ou seja, a competência lexical deve desenvolver-se em consonância com as outras competências linguísticas (ouvir, ler, falar e escrever). Numa gramática, a seleção e a apresentação do conteúdo lexical tem impacto direto em como o usuário
Quadro 9: Conteúdo linguístico – vocabulário Gramática Aplicada 1
Gramática Ativa 1
desenvolve suas competências gramaticais (no sentido lato). Portanto, a seleção do conteúdo lexical deve vincular-se à vivência do públicoalvo. O aprendente usa o seu conhecimento lexical na sua vivência para satisfazer as suas necessidades comunicativas. Em termos de adequação pragmática, deve desprivilegiar-se a apresentação das palavras enquanto entidades isoladas, porque o contexto é onde as palavras assumem o seu significado. O QECR (Alves, 2001) confere um papel muito importante aos suportes ilustrativos (fotos, quadros, tabelas, canções, jornais, etc.) na aprendizagem de uma língua, salientando a função que desempenham como facilitadores do ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras. Aliás, são consideradas materiais autênticas as ilustrações como desenhos, fotos, canções e banda desenhada (Alves, 2010), que são exemplos concretos e reais da língua. Devido às suas propriedades ao nível fonético, temático, lexical e gramatical, o material autêntico torna o ensino/ aprendizagem mais motivante e proporciona uma melhor resposta às necessidades dos aprendentes e às suas expectativas. Os suportes ilustrativos têm duas funções fundamentais: cognitivo-linguística e sociocultural. Em termos cognitivo-linguísticos, as ilustrações
De acordo com estes autores, aprender uma palavra é muito mais do que aprender o seu significado, e aprendemos mais rápido e melhor os itens lexicais que necessitamos de alguma forma. Esta importância dada ao uso contextual para o desenvolvimento da competência lexical está em sintonia com a teoria da gramática cognitiva. Em termos cognitivo-comunicativos, a competência lexical desenvolve-se de forma mais
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Quadro 10: Conteúdo comunicativo – conteúdo cultural Gramática Aplicada 1
Gramática Ativa 1
Reflexão didática sobre uma análise das Gramáticas de PLE
visuais estimulam e facilitam associações mentais entre os objetos e as palavras, facilitando a compreensão e permitindo ao aprendente assegurar melhor a fixação do significado. Em termos socioculturais, para entender, por exemplo, o humor de um senário visual, é necessário que o aprendente conheça a história de fundo sobre o acontecimento em questão. Além disso, ilustrações visuais também têm uma função estética para captar a atenção do usuário (Quadro 10). Observações finais A grande procura de português na China e na Ásia tem, sem dúvida, influência na maneira como esta língua é ensinada e aprendida. Num espaço internacional em que português desempenha o papel de língua franca, os falantes desta língua comunicam entre si para satisfazerem necessidades concretas. A seleção das técnicas mais adequadas para transmitir conhecimento depende de muitos fatores interrelacionados: a idade dos aprendentes, a sua língua materna, o seu nível de proficiência, a sua atitude, as condições de ensino/aprendizagem, entre outros (Nation & Newton, 2009). Livros de gramática são ferramentas úteis para quem aprende línguas estrangeiras. Porém, é muito comum que um aprendente saiba muito bem o que são preposições, mas nem sempre as sabe usar corretamente em situações reais de comunicação. Pela análise dos 4 livros da gramática de PLE, este estudo procura adquirir algumas ideias norteadoras para elaborar uma gramática de PLE para aprendentes chineses. Aqui, as competências gramaticais são entendidas como competências que permitem ao aprendente interagir correta e adequadamente em
situações reais para satisfazer necessidades comunicativas. Pretende-se um livro da gramática de língua portuguesa que se distancia da mera análise de regras, mas que se adota a um modelo de uso pragmático das regras no dia-a-dia.
e, ainda, entre os conteúdos de cada unidade. Esta coesão permite ao aprendente estabelecer uma associação entre o que já aprendeu, o que está a aprender, o que vai aprender e até o que quer aprender;
As observações da análise realizada permitem-nos esquematizar os seguintes pontos norteadores:
4. Usar suportes não-verbais (materiais audiovisuais, imagens, etc. que ajudam à compreensão da matéria e à realização linguística)
1. Usar a língua materna do público (i.e. chinês) para explicar as regras -
Isto facilitará a compreensão, aumentará a motivação do aprendente e, eventualmente, favorecerá a aprendizagem. As explicações vão ser feitas passo a passo, e em cada passo são dadas oportunidades de treino (i.e. exercícios e atividades) para que o aprendente possa colocar em prática o que aprendeu;
2. Estabelecer uma ponte de ligação entre diferentes tipos de treinos -
O treino é muito importante para aprendentes de línguas estrangeiras. Os exercícios estruturais são usados como treino básico que preparará os aprendentes para subirem a outros patamares de desenvolvimento de competências. Ou seja, primeiro, com os exercícios estruturais, os aprendentes familiarizam-se com as regras gramaticais; depois, esses irão avançando para a adequação do uso deste conhecimento gramatical em atividades próximas da vida real;
3. Fazer uma ligação coesiva entre conteúdos (conteúdos articulados e coerentes) -
-
A ligação faz-se entre o novo conhecimento e o conhecimento de fundo do aprendente, entre o conteúdo lexical e a vida real,
Quanto a uma aula real, o professor pode mostrar aos alunos coisas tangíveis para facilitar a compreensão de matéria tratada. No caso de um livro, suportes não-verbais (imagens, fotos, gráficos, vídeos e filmes) podem desempenhar essa função facilitadora. Além disso, suportes visuais são meios eficientes para o desenvolvimento de vocabulário;
5. Fornecer abundantes oportunidades de treino diversificado -
O treino é indispensável para assegurar sucesso em desenvolvimento de competências e habilidades gramaticais. Os aprendentes têm de treinar muito a sua gramática. Atividades que o aprendente faz com prazer reforçarão seu desejo inicial para aprender a língua e aumentarão o seu envolvimento no processo da aprendizagem. Portanto, os exercícios devem ser designados em consideração das caraterísticas socioculturais do público, sua faixa etária, suas necessidades comunicativas, entre outros.
Além disso, os exercícios tripulados devem estar ligados ao texto, ao léxico e às imagens apresentadas. Exercícios em que se promova a coerência entre elementos linguísticos e audiovisuais favorecem não só a compreensão mas também a atualização comunicativa.
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O espaço da extensão na formação inicial do professor de línguas: o Fórum de Linguística
Aplicada e Ensino e Aprendizagem de Línguas como um mediador entre a pesquisa e a formação
Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin Universidade Federal do Ceará
Introdução
seio do Departamento de Letras Vernáculas e apresentar o seu percurso durante os mais de dez anos de existência. Para alcançar nosso objetivo, optamos pelo percurso temporal para descrever, contando, a história desse projeto.
Desenvolver projetos de extensão em uma universidade nem sempre é uma das estratégias mais utilizadas por pesquisadores. Talvez porque optar por organizar um evento científico demanda de muito tempo e, por isso, o resultado traz consigo conclusões pouco animadoras, considerando o tempo dedicado à pesquisa e utilizado na extensão. Mas, também é necessário dizer que falar sobre um projeto de extensão mobiliza resultados de projetos de pesquisa e põe em evidência o nosso agir professoral e nossa atuação como pesquisador na instituição. Tal procedimento ressalta as modalizações deste agir, isto é, o querer-fazer, o dever-fazer e o poder-fazer (LEURQUIN, 2013) e isso envolve pôr em pauta as representações do que realizamos (BRONCKART, 1999).
Um projeto de extensão em desenvolvimento, antes de tudo, é um retorno necessário e obrigatório que a universidade pública dá à sociedade. Para falar sobre o projeto de extensão Fórum de Linguística Aplicada e Ensino e aprendizagem de Língua, é preciso, antes de tudo, informar alguns dados importantes da construção de sua identidade.
Nosso objetivo com esse artigo é refletir sobre o espaço da extensão e da pesquisa na formação inicial do professor de línguas, do pesquisador. Para isso, optamos por traçar um panorama de um dos projetos de maior visibilidade realizado no
Na sua origem, o Fórum de Linguística Aplicada Ensino e Aprendizagem de Línguas (doravante FLAEL) aconteceu sem muita divulgação e com o título Encontro de professores de português língua materna. Não tinha nenhuma pretensão de continuar a
Pelas trilhas do Fórum de Linguística Aplicada e Ensino e Aprendizagem de Língua: um espaço de encontro entre a pesquisa e a sociedade.
sua existência. Mas, devido à aceitação do público, ele também foi aceite no calendário do Departamento de Letras Vernáculas. Por essa razão, passou por uma reformulação nos objetivos e metodologia. Durante o percurso desse texto ficará mais evidente. Hoje, é um dos quatro projetos de extensão (1) Curso de português língua estrangeira: língua e cultura brasileiras; (2) Oficina de produção de material didático; (3) Tradução de textos teóricos, e (4) FLAEL sob a minha coordenação. Todos estão alocados na Pró-reitoria de Extensão, dentro do Programa de extensão Laboratório de línguas: ensino, aprendizagem e formação do professor.
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O FLAEL está situado no Departamento de Letras Vernácula. Atualmente, faz parte do calendário do Curso de Letras e, por isso, tem o apoio do Curso de Letras em todas as suas dimensões: Casas de Cultura, do Departamento de Letras Vernáculas, Departamento de Letras Literatura, Departamento de Letras Estrangeiras e Departamento de Letras Libras; muito embora a responsabilidade seja do Programa de Pósgraduação em Linguística. Para além desse curso, também conta com o apoio da Pró-Reitoria de Extensão, Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pró-Reitoria de Graduação. Ele é desenvolvido dentro da Linha de pesquisa Linguística Aplicada, pelo Grupo de Estudos e Pesquisa em Linguística Aplicada (GEPLA). O FLAEL é bienal. Ele é configurado como um espaço de diálogo entre pesquisadores, professores da educação básica, estudantes do Curso de Letras e demais interessados. Mas, também é um espaço que temos para divulgar os projetos desenvolvidos no seio do GEPLA. Por essa razão, a sua história está diretamente relacionada à própria dinâmica do grupo de pesquisa. Tem origem em outubro de 2005, como uma proposta de trabalho entregue à Universidade Federal do Ceará, no momento de minha chegada a essa instituição. Tornou-se possível em novembro de 2006, em sua primeira versão, como um encontro de professores de língua materna do Ceará. Seu objetivo era promover um fórum de discussão sobre o tema Ensino, aprendizagem e formação de professor de língua materna. Nessa versão, focalizamos nossa discussão em torno do estágio docente. Vivenciávamos um momento de reformulação curricular do curso de Letras, a fim de alinharmo-nos à nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB
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9.304/1996). Outro fator relevante era a implementação da Linha de pesquisa Linguística Aplicada, no Programa de Pós-Graduação em Linguística. Foram bastante singulares os questionamentos feitos sobre o papel do estágio na formação do professor; a formação inicial do professor de língua materna; a figura do estagiário: perfil, crenças, limite de suas obrigações e direitos. É importante dizer que o evento contou com a participação de pesquisadores e professores do estado do Ceará. Ele aconteceu em dois dias e sua composição contou com uma conferência de abertura, pela manhã, e uma mesa redonda, à tarde. No segundo dia, aconteceu uma palestra no turno matutino e uma mesa redonda de encerramento, no turno vespertino. Como parceiros, o FLAEL contou com a Universidade Estadual do Ceará e o hoje denominado Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará. Durante a avaliação do encontro realizado em 2006, concluímos que seria importante redefinir o evento. Ele
passou a ser reconhecido como um fórum de Linguística Aplicada. Em 2008, reorganizamos o perfil do encontro e ele passou a ter o formato de um fórum. I FLAEL aconteceu no período de 24 a 27 de novembro de 2008. Nesta versão, alguns fatores merecem ser destacados. O primeiro é o facto de termos ampliado a discussão para o âmbito das línguas estrangeiras. Isso foi muito importante porque também pôde representar os três departamentos do Curso de Letras. Outra mudança relevante ocorrida diz respeito ao seu alcance na academia. Também nesse Fórum, passamos a incluir os mestrandos e doutorandos em Linguística Aplicada, até então apenas envolvíamos os estudantes de Letras. Nesta versão, o Fórum passou a se caracterizar como um evento internacional e teve a participação de pesquisadores de estados vizinhos, sobretudo. Igualmente importante foi o fato de realizar dentro do FLAEL o V Colóquio de professores de metodologia de ensino de língua portuguesa e literatura, em parceria
O espaço da extensão na formação inicial do professor de línguas ...
Aplicada na discussão. Problemas que envolvem a formação inicial e continuada do professor de língua, a ética na profissão e demais inquietudes perpassaram nos discursos dos participantes. A abertura do evento aconteceu com a conferência do professor Rajagopalan (UNICAMP) que indagou sobre a Linguística Aplicada crítica e ressaltou o papel do professor nesse contexto.
Na primeira fila a professora Maria João Marçalo (Portugal) e Dora Riestra (Argentina). Na segunda fila, a professora Vera Menezes (Brasil).
com a Universidade de São Paulo. Tivemos a experiência de migrar o Fórum para o Instituto Federal, campus de Fortaleza, estreitando muito mais as nossas relações. Neste Fórum, foi discutido o tema O agir do professor de línguas, com especial atenção às práticas de leitura e produção de textos em sala de aula. Questões sobre a interação didática, o papel do professor em sala de aula de leitura e de produção de textos e a transposição didática foram marcadas nessa versão. Nesta versão do FLAEL realizamos uma homenagem à primeira coordenadora do PPGL, a professora Maria Elias Soares, estávamos naquele momento comemorando os quinze anos do Programa de Pós-Graduação em Linguística. O Fórum, então, assumiu o seu formato que até hoje vem acontecendo: três dias de evento, duas conferências, a de abertura e a de fechamento, mesa redonda, palestra, apresentação de pôster e comunicação individual. Neste ano, foi re-
gistrada a parceria da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), órgão de fomento brasileiro de grande reputação na academia brasileira. Também a partir deste ano, começamos a contar com a parceria da Secretaria de Educação do Estado do Ceará, Secretaria de Educação do Município, Faculdade 7 de setembro, editoras brasileiras reconhecidas na área de Linguística Aplicada e Educação (Mercado de Letras, Pontes, Editoras da UFC, entre outras). O FLAEL a partir de então retornou ao Campus do Benfica/UFC. Neste Fórum já contamos com a participação de pesquisadores de diversos estados brasileiros. Em novembro, no período de 24 a 26, de 2010, foi realizado o II FLAEL. Ele manteve o mesmo formato, aconteceu no Campus Benfica/UFC e se consolidou como um evento de cunho internacional. Durante o Fórum, foi discutido o tema Formação de professor e ética, com especial atenção ao espaço da Linguística
A conferência de fechamento foi realizada pela professora Francine Cicurel (Université Sorbonne Nouvelle Paris 3/França). Ela retomou o tema do evento e discutiu sobre a formação do professor de língua, ressaltando o seu agir didático. Nesse Fórum, já contamos com um número maior de pesquisadores estrangeiros que vieram de Portugal, da Argentina, Alemanha França e Suíça. Registramos pesquisadores, professores e estudantes de todas as regiões brasileiras. Nessa edição, foi necessário ampliar os espaços para dar conta da procura pelo evento. Então mantivemos o mesmo formato, mas o Fórum começou a disponibilizar de três espaço onde paralelamente ocorriam as mesas redonda e palestras. As conferências aconteciam em um espaço determinado e não deixamos as apresentações de pôster (feitas por estudantes da graduação) concorrer com nenhuma atividade, a fim de que eles fossem prestigados. Da mesma forma fizemos com as sessões de comunicação, que envolviam mestrandos e doutorandos. No II FLAEL, homenageamos a professora Maria do Socorro Aragão, membro do Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal do Ceará, desde a sua fundação, em 1993, pelos trabalhos desenvolvidos na área de Linguística.
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Em 2012, foi impossível realizar o III FLAEL. No final de 2013, decidimos realizar no ano seguinte o Fórum. Nesse momento, na reunião de definição do Fórum, uma decisão foi tomada pela equipe de organização do evento: a história do FLAEL precisava ser revista. Decidimos então revê-la e recontá-la, corrigindo-a. Neste artigo, retificamos os fatos, pois seria na verdade o IV FLAEL. Ele aconteceu no período de 29 a 31 de outubro. Cada vez mais consolidado, ele aconteceu com o mesmo formato, no Campus do Benfica. A insistência em permanecer no mesmo local decorre da própria compreensão que temos de universidade pública, como um espaço aberto em todos os sentidos. Elegemos como tema gerador das discussões Perspectivas da Linguística Aplicada no século XXI: dos diálogos possíveis aos novos desafios. Esse tema gerou discussões em torno da identidade da Linguística Aplicada e de sua atuação na contemporaneidade. A conferência de abertura foi realizada pela professora coordenadora do Grupo de Trabalho da Associação Nacional de PósGraduação e Pesquisa em Linguística Letras e Linguística (ANPOLL), na época, a professora Darcília Simões. A conferência de encerramento do Fórum foi realizada pelo presidente da Associação de Linguística Aplicada do Brasil (ALAB), à época, o professor Ruberval Franco Maciel. Problematizamos os limites da LA e suas interlocuções com demais áreas de conhecimentos. Homenageamos a linguista aplicada, a professora Maria Izabel Magalhães, por seu papel desempenhado no PPGL, por suas contribuições dadas no Brasil e no exterior, no tocante a questões relacionadas a práticas de letramentos e identidade do professor, em particular, na perspectiva crí-
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Em destaque o professor Joaquim Dolz, (Genebra).
tica. Nesta versão do Fórum, contamos com a participação de pesquisadores do Japão, de Portugal, da Suíça, e da França. Neste ano, duas atividades, em particular, merecem destaques pelo cunho de inovação que tentamos trazer para o Fórum. A primeira foi a introdução do Departamento de Letras Libras, efetivamente, através de participações dos professores em mesa redonda e sessão coordenada; passamos a traduzir as conferências nessa língua, bem como demais atividades de interesse do departamento em questão. A segunda atividade inovadora diz respeito ao espaço que tiveram as questões relacionadas à língua portuguesa no contexto da internacionalização. Os patrocinadores permaneceram. A quantidade de participantes aumentou ao longo dos anos. O V FLAEL já não pôde suportar a quantidade de inscrito, permanecendo no mesmo espaço, embora estivéssemos vivendo um momento muito particular que era a ocupação da universidade pelos estudantes do Curso de Letras. Precisamos ampliar o espaço e por esse motivo decidi-
mos fazer a abertura do Fórum no auditório da Faculdade de Economia, Administração, Atuaria e Contabilidade (FEAAC), no Campus do Benfica, conforme podemos ver no site da Universidade Federal do Ceará: http://ufc.br/noticias/noticiasde-2016/9031-ensino-e-aprendizado-de-linguas-e-tema-de-foruminternacional-que-ocorre-ate-sextafeira-18 Outra estratégia que precisamos adotar foi recorrer ao Colégio 7 de setembro, nosso parceiro desde o II FLAEL, para a realização dos três três minicursos realizados com professores Joaquim Dolz (Université de Genève / Suíça), Bernard Schneuwly (Université de Genève/ Suíça), Jean Remi Lapaire (Université Montaigne Bordeaux 3) e Luciane Ferreira (Universidade Federal de Minas Gerais). Este FLAEL contou com a participação de pesquisadores de Portugal, da China, França, Suíça e Argentina. O tema foi O ensino e a aprendizagem em perspectivas: do Ensino Superior à Educação Infantil. Esse tema foi discutido dentro do contexto dos seguintes eixo temáticos:
O espaço da extensão na formação inicial do professor de línguas ...
1. Ensino e aprendizagem de línguas em situação de formação inicial de professores de línguas: o estágio docente;
Para 2018, está previsto o VI FLAEL. Esperamos contar com a participação de todos em torno do tema provisório A formação do professor para atuar no mundo globalizado da lusofonia: do português como língua materna ao português como língua não materna.
2. Ensino e aprendizagem de línguas: a interação em sala de aula, o agir professoral e o objeto de ensino; 3. Ensino e aprendizagem de línguas: aquisição de língua estrangeira em situações de plurilinguismo; 4. Ensino e aprendizagem de línguas: políticas linguísticas; 5. Ensino e aprendizagem de línguas: linguagem e tecnologias; 6. Ensino e aprendizagem de línguas: identidade e representação de professores; 7. Ensino e aprendizagem de línguas: análise e produção de material didático. Ao dar relevo ao ensino e à aprendizagem, considerando um percurso que se inicia na universidade, mas que alcança o ensino infantil, percebemos que esse tema proporcionou aos participantes refletir sobre as modalidades de ensino no Brasil, ressaltando o ensino de línguas. Ao mesmo tempo, ele também trouxe em evidência a formação inicial e a prática na sala de aula da educação básica. No percurso do ensino, a universidade foi mostrada como o ponto de partida. Mas também como referência para o retorno. Isso fica muito evidente nas discussões sobre o estágio do estudante de Letras que convive com a dupla jornada (a da universidade e a da escola de estágio). Um percurso que contempla teoria e prática, ensino, aprendizagem e formação. A conferência de abertura foi realizada pelo professor Bernard Schneuwly (Université de Genève/
Em destaque o professor Bernard Schneuwly no minicurso por ele ministrado aos professores e pesquisadores.
Suíça). A conferência de encerramento do Fórum foi feita pelo professor Joaquim Dolz (Université de Genève/Suíça). Ambos os professores pontuaram problemáticas da sala de aula de línguas, quer seja para discutirem a engenharia didática, quer seja para apresentarem resultados de pesquisas desenvolvidas no âmbito da didática de línguas. O espaço da língua portuguesa, para além do espaço brasileiro foi, bem marcado, favorecendo o aspecto da sua internacionalização. Nesse sentido, ressaltamos a participação da professora Sónia Ao Sio Heng, da Universidade de Macau/China, do Instituto Internacional de Macau, através de pesquisadores e funcionários da administração chinesa. Esta parceria foi muito importante para nós por tudo que ela representa. Ela está sendo registrada em um livro com os artigos mais expressivos do evento, que será publicado pela Mercado de Letras. Ressaltamos que nesta versão, o Instituto Federal do Ceará assumiu o papel de protagonista no Fórum, ao trazer em uma mesa redonda a discussão sobre o ensino e aprendizagem da língua materna no contexto do ensino profissional. No V FLAEL, em um movimento externo à UFC, homenageamos a professora Maria Dilamar Araújo (UECE) pelas contribuições na área de Linguística Aplicada.
Considerações finais A pesquisa e extensão podem estar articuladas. Conseguir estabelecer essa relação não é uma atividade fácil, mas necessária quando se pode fazer. O Fórum de Linguística Aplicada Ensino e Aprendizagem de Línguas na UFC já está consolidado no calendário e isso demanda dos organizadores mais responsabilidade com a qualidade do trabalho.
Em destaque a professora Aurea Zavam (Brasil).
Trazer os professores pesquisadores de diversas partes do mundo é sempre um grande desafio, mas é necessário, pelos diálogos, pelas trocas. O V FLAEL apresentou desafios – a ocupação da universidade – que nos permitiu aprender muito a interagir em contexto de conflito e sobretudo ensinou a conhecer o estudante em suas múltiplas atuações na sociedade. A jornada de, nesta vez, cinco dias foi muito ativida e produtiva. Muitas vezes, deixando pouco tempo para as relações profissionais se estabelecerem com maior produtividade. Mas o saldo no final foi muito bom.
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Os mata-biru, luso-descendentes de Samatra
O tsunami da lusa amnésia Joaquim Magalhães de Castro Escritor e Investigador da História da Expansão Portuguesa
As notícias do terrível tsunami de 26 de Dezembro 2004 chegaram no mesmo formato que a tragédia em si. Numa torrente. O cômpito de vítimas, que inicialmente atingia as centenas, ao fim de uma semana, era já da ordem das centenas de milhar. No Norte da ilha de Samatra, arquipélago da Indonésia, a devastação teria de ser necessariamente massiva, já que o epicentro do sismo se situara a centena e meia de quilómetros de uma orla costeira praticamente desconhecida dos ocidentais. Uma costa fustigada por um conflito já com três décadas entre as forças governamentais e a Frente Nacional de Libertação do Achém, mais conhecida pelo acrónimo GAM. Por razões óbvias, a região não constava dos pacotes promocionais das agências de viagens, malgrado as praias selvagens de areais brancos e águas cristalinas, pontuadas por pitorescas aldeias piscatórias de gente hospitaleira. O subdistrito de Lamno viu metade das suas 48 aldeias ser varrida pela força das vagas. Entre elas, Kuala Daya, Ujon Meuloh, Lamso e Lambesu, onde, desde finais do século XVI, vivia uma comunidade de luso-descendentes, os ditos “Portugueses de Lamno”. Distinguia-os do resto da população um modo de vida intercomunitário e traços fisionómicos caucasianos: tinham o cabelo e os olhos claros, amiúde verdes, ocasionalmente azuis. Viviam da agricultura
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e da pesca e professavam o islamismo, à semelhança dos restantes achéns. Importa realçar que o destino dessa comunidade única – «um exemplo perfeito de miscigenação assimilada» – suscitou muito mais interesse na Indonésia do que em Portugal. Vários órgãos da comunicação social do arquipélago lhe deram o devido destaque, assumindo aqui a revista semanal Tempo um papel de relevo, visto que consagrou ao tema uma reportagem de nove páginas. O assunto continuaria a despertar curiosidade durante alguns meses, como o confirmava a publicação de artigos nos jornais Waspada Medan e Jakarta Post . Este último, em Outubro de 2005, publicara um texto intitulado «The last Portuguese-Acehnese of Lamno». em Hong Kong, o consagrado South China Morning Post, na edição de 4 de Março de 2005, incluíra nas suas páginas uma peça da France Press, denominada: «Acehnese lament the disappearence of their blue-eyed heritage.» A dada altura, feita a devida contextualização histórica, o autor do artigo escrevia o seguinte: «Na escola primária de Meutara, duas ou três crianças parecem mais europeias do que indonésias. O cabelo louro de Rauzatul Jannah, demasiado novo para frequentar as aulas, fá-lo passar por europeu.» Estes
e outros testemunhos alertaram desde logo para a possibilidade da existência de sobreviventes dessa comunidade, que inicialmente fora dada como extinta. Em Portugal, exceptuando uma ou outra menção, do tipo fait divers e nunca como reportagem de fundo, o assunto passou praticamente despercebido junto do grande público. Ora, essa falta de interesse estava bem expressa no episódio do programa da RTP Príncipes do Nada dedicado ao apoio humanitário português às vítimas. Catarina Furtado limitou-se a uma lacónica observação, sem ter tido a preocupação de contactar com um desses sobreviventes. Eu próprio, quando uns dias após o tsunami, abordei algumas publicações sugerindo-lhes o meu testemunho escrito e fotográfico, uma vez que convivera de perto com essa comunidade, ano e meio antes da tragédia, fui recebido com frieza e velado desinteresse. Atitude que nem me chegou a surpreender, pois lendário é o desprezo a que o país vota temáticas como esta. No rescaldo da calamidade, o embaixador português em Jacarta, José Santos Braga, aquando de uma deslocação a Achém para contactos com as autoridades locais, manifestara a possibilidade de as entidades portuguesas participarem, de algum modo, na reconstrução de Lamno.
Os mata-biru, luso-descendentes de Samatra ...
Seria um «processo moroso, que exige um plano geral de reordenamento territorial, o que implica a relocalização e o redimensionamento dos antigos aglomerados populacionais». Mas, para isso, havia que conciliar a vontade da população e das autoridades locais com «a vontade dos portugueses em se envolverem numa acção de solidariedade». Claro que, para a haver, era preciso que os portugueses soubessem da existência dessa comunidade, ou melhor, dos seus sobreviventes. O que era pouco provável, pois, exceptuando uns quantos despachos da LUSA e umas quantas menções num ou noutro blogue, os meios de comunicação nacionais praticamente ignoraram o assunto. Em contrapartida, o miúdo encontrado na praia com uma camisola da selecção
nacional recebeu toda a atenção, tendo sido exibido pelo país qual animal de estimação. Santos Braga, que se dizia «à disposição de todos» os que demonstrassem interesse em «fazer renascer a comunidade dos ‘Portugueses’ de Lamno», apontou até sugestões: «Se a ajuda se concretizar, julgo que poderia abranger, por exemplo, um serviço público – escola, centro de saúde, centro de reuniões da comunidade, infra-estrutura desportiva. Também me parece que poderia ser útil o apoio na área da formação profissional, continuação de estudos e retoma da actividade piscatória.» Lamentavelmente, o desejo do diplomata parece ter caído em saco roto, e, até hoje, nada foi feito nesse sentido.
Entre as centenas que perderam a vida no tsunami de 2004, constava T. R. Adam, um nativo de Lamno que, ano e meio antes, me indicara o nome de pessoas que me poderiam ajudar nas minhas pesquisas. A investigação mostrar-se-ia, como mais adiante demonstro, difícil de concretizar, pelo que decidira guardar a tarefa para uma outra viagem ao Achém. Infelizmente, esta só se realizaria uma vez consumada a tragédia. Limito-me agora, através de fotos e recordações escritas, a prestar tributo à memória dos membros dessa comunidade. Uma comunidade que me demonstrou hospitalidade, quebrada a barreira inicial da desconfiança, naturalíssima numa zona de conflito. Há que considerar que muitos deles eram simpatizantes da causa independentista, já que
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pelo maremoto de 2002, entrassem pela cidade adentro, levando consigo o que era menos sólido. A mesquita Raya, símbolo maior do Achém, foi dos raros edifícios que resistiram. Mantinha à entrada a mesma tabuleta: “Show respect and get impressed”. A praça em redor voltara a ser o pólo aglutinador dos achéns, que notoriamente preferiam olhar em frente a recordar o amargo passado. Empunhando armas automáticas, com inexplicável jactância, jovens polícias patrulhavam as imediações, malgrado o cessar-fogo assinado com os independentistas.
achéns de corpo e alma se assumiam. Reparei, à chegada a Banda Aceh, que o ruído que me impressionara aquando da minha primeira visita, na Primavera de 2002, estava de regresso à capital da província mais setentrional de Samatra. Todos ti-
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nham algum tipo de veículo, sobretudo motociclos, que transformavam as ruas num pesadelo logo pela manhã. Banda Aceh era uma das urbes mais ruidosas do arquipélago indonésio, talvez por ser totalmente plana. A ausência de qualquer barreira natural permitiu também que as águas, enfurecidas
Ao contrário do que inicialmente se temia, houve sobreviventes entre os elementos da comunidade luso-descendente, os quais foram deixando o seu testemunho nos dias e semanas que se seguiram à tragédia. Entre eles, encontrava-se Ratna Willys, que conhecera no início das minhas investigações e que agora revia com todo o prazer. Uma Ratna Willys com um olhar ainda mais triste e distante. Sobrevivera ao tsunami porque habitava nos arredores da cidade. O mesmo não se podia dizer da sua irmã Marzuki Ayah Te, residente no bairro de Padang Seurahit, totalmente arrastado pela fúria das águas. Popy Diana, a irmã mais nova, essa, vivia em Meulaboh, a pequena cidade da costa oeste varrida do mapa... Restava-lhe uma quarta irmã, que, anos antes, se casara com um comerciante chinês e se mudara para Langsa, na costa oeste, perto de Medan, o quinhão de Samatra poupado à devastação. Só depois de me contar tudo isto, de lágrimas nos olhos, me pediu para que não lhe falasse mais do passado. Ambos evocámos, contudo, a memória de Abdula, empregado do pequeno hotel onde fiquei alojado,
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o Uncle’s Homestay, e que me colocara na senda da gente de Lamno. Dissera-me ele, em 2002: – Aí vivem muitas famílias de descendentes de portugueses, embora as mulheres mais bonitas tenham já sido levadas pelos homens de negócios de Jacarta. Graças a isso, é possível encontrar gente de Lamno em toda a Indonésia. Contava Abdula que, em certa ocasião, tinha metido conversa, em inglês, com uma mulher que julgava ser ocidental e que esta lhe respondera em bahasa indonésio: – Era uma dessas portuguesas de Lamno. Nem imagina a vergonha por que passei. Para minha surpresa, o homem demonstrou ter alguns conhecimentos quanto ao quotidiano dos embarcadiços do século XVI: «Naquele tempo, as embarcações levavam apenas homens.» A propósito do naufrágio da nau que esteve na origem da comunidade de Lamno, mencionou a «lenda da areia movediça», que em dialecto local se diz lam, termo facilmente identificável com o nosso «lama». Para Abdula, lam, areia movediça, era uma metáfora que designava as mulheres achéns, com quem esses portugueses se viriam a casar e constituir família. Segundo a lenda, quando os achéns avistaram os náufragos, rogaram-lhes que não avançassem, pois o terreno era pantanoso, ou seja, lam. Aqueles, porém, ignoraram o aviso, tendo por isso ficado presos nas areias, «afundaram-se em Lamno». Quer dizer: perderam a identidade, acabando por esquecer os seus apelidos e a sua língua natal. Ironia das ironias, séculos depois, seria a lama, empurrada pela força das vagas de um mar em fúria, que os faria desaparecer para sempre.
Abdula apresentar-me-ia depois a Andy Ikshan, jovem funcionário «do sector da manutenção das vias públicas», de 26 anos. Assumindo-se luso-descendente, dissera-me que o seu avô do lado materno era nativo de Lamno. A mãe também lá nascera. O pai, esse, era puro achém, «nado e criado em Banda». Ikshan, sabendo ao que eu ia, logo me falou de uma tia de olhos azuis, também ela residente em Banda. No dia seguinte, deparava, para meu espanto, com uma senhora totalmente europeia, não fosse o nariz achatado. Chamavase Ratna Willys, tinha 49 anos e estava casada com um achém de 51. Enquanto percorria a centena de quilómetros de costa que separa Banda Aceh de Lamno, confrontado com uma notória alteração da paisagem (gigantesca ferida não totalmente cicatrizada), fui revivendo as impressões da viagem anterior. Atravessava uma zona de intensa actividade guerrilheira. Comprovavamno as barreiras, primeiro do exército, depois da polícia militar, a denominada BRIMOB (brigada móvel), à entrada e à saída de todas as povoações ao longo do caminho, por mais pequenas que fossem. Pneus, ripas de madeira, arame farpado, tudo servia para intimidar e controlar. Visualizei os coloridos estaleiros de barcos de pesca de Nhg Ko e Lamouk, a dezassete quilómetros de Banda, e a esplêndida panorâmica que me proporcionara o topo de um outeiro a escassa distância de Lamno. Dali, avistava-se uma sucessão de palmeirais e campos de arroz, seguidos de uma povoação quase plantada no mar. Soube mais tarde que se tratava de Kuala Daya, a mais «portuguesa» dessas aldeias. O marco quilométrico Lamno/2 km, colocado na colina sobranceira ao
vale de Lamno, continuava no mesmo sítio. Tudo o resto, lá em baixo, fora pura e simplesmente varrido da paisagem. O maremoto não só alterara o perfil topográfico da região, como também toda a fauna e a flora costeira. O impacto fora de tal ordem que os cientistas viriam a descobrir uma zona sem qualquer tipo de vida junto ao epicentro do sismo responsável pelo tsunami. Os solos, inundados de água salgada e pejados de árvores caídas e destroços das habitações, voltavam a ser cultivados e produziam de novo arroz, feijão e soja, permitindo que as populações sobreviventes tivessem uma alternativa à prática do abate ilegal de árvores, até então, uma das formas de subsistência. Na província de Achém, operavam dezenas de agências humanitárias, muitas destinadas a permanecer no terreno ainda alguns anos. As de maior dimensão concentravam a atenção em projectos sanitários, na habitação, na recuperação de estradas e de pontes e no abastecimento de água potável. Em Lamno, membros dos MSF (Médicos sem Fronteiras) tinham montado um centro cirúrgico numa clínica de saúde regional, onde eram tratados, sobretudo, pacientes com tuberculose. Operavam ainda na região, entre outras, a Oxfam, a Oikos, a AMI, e o serviço de refugiados dos Jesuítas. Para os próximos anos, esperava-se que a vida regressasse à normalidade possível, que os adultos voltassem aos campos e aos mercados; e as crianças, à escola. Mas, para isso, era fundamental que as estradas e as pontes reassumissem os propósitos para que tinham sido concebidas.
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Ironia do destino. Os achéns, nossos arqui-rivais em busca do domínio do Índico no século XVI, eram agora assistidos por equipas médicas portuguesas num hospital de campanha com víveres e medicamentos vindos de Portugal. Das casas e edifícios públicos de Lamno restavam apenas as fundações de cimento. Ironicamente, a única estrutura que resistiu foi uma escola queimada em cujas paredes era ainda visível um grafito apelando ao referendo na província: “Referendum. Yes! Aceh, Merdeka” (Referendo. Sim! Liberdade para Achém). Quem diria que há vinte e quatro meses habitavam naquela jurisdição territorial trezentas e vinte mil almas. Logo à chegada a essa Lamno em plena pujança, em 2002, me apercebi dos traços europeus em muitos dos habitantes, que, inteirados da minha nacionalidade, redobravam a simpatia, exclamando um atónito: «Ah, Portugal!» O problema estava na impossibilidade de estabelecer um diálogo profícuo, já que apenas dois dos residentes falavam inglês. Num instante me puseram em contacto com um deles, o professor As Rasman, de 73 anos. – Há muito do vosso sangue por aqui. É bom, isso das misturas e da assimilação – argumentava ele, manifestando-se, logo ali, um convicto anti-separatista. Para ele, o separatismo na província de Achém só serviria para enfraquecer essa assimilação que os portugueses tão exemplarmente conseguiram. O conflito do exército com os GAM, grupo independentista de inspiração islâmica, activo no Norte de Samatra desde a década de 1990, recrudescera de maneira significativa desde
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a queda de Suharto, com um número crescente de vítimas, não só entre militares e guerrilheiros, mas sobretudo entre a população civil. – Se os rebeldes lograrem os seus objectivos, não teremos mais segurança, estaremos todos sujeitos à lei do mais forte. Quando perguntei se as mulheres também participavam na revolta armada, o velho As Rasman riu-se e não me respondeu, limitando-se a apontar para o soalho da pequena barraca, onde vendia tabaco, doces e bananas, e afirmando em jeito profético: – O inimigo dos GAM está sob os seus próprios pés. Para ele, o soalho era uma metáfora da morte; a mortalha do adversário. – Não são fortes e falta-lhes preparação militar. Dou-lhes mais um ano de existência. Serão eliminados. Reformado da Marinha, As Rasman falava com conhecimento de causa, pois lutara contra o poder colonial holandês, logo a seguir à Segunda Grande Guerra. – Se houvesse um referendo, as pessoas votariam pela integração. A primeira coisa que avistei do meu quarto na losmen Singa Han, a única hospedaria de Lamno, que aconselhava os hóspedes a «pensar globalmente e a vestir tradicionalmente», foram as letras garrafais, brancas, “Referendum, yes!” pintadas no telhado de zinco de um barracão com as paredes esburacadas e pejadas de outras frases apelando ao separatismo, entretanto esborratadas com tinta castanha. Sinais de um tempo mais conturbado, quando a aldeia, sob o controlo dos guerrilheiros, estivera a ferro e fogo, e sobrevivera. Não creio que o empregado da pensão apoiasse a integração do Achém
na mãe indonésia, pois pediu-me que fotografasse todos esses protestos e os mostrasse depois no meu país. Tão-pouco me parecia integracionista o homem sorridente com que deparei à saída do posto dos correios. Nativo de Banda Aceh, Raffil dizia-se professor e andava a «incentivar as pessoas a acreditarem e investirem nas suas capacidades». – Trabalho para o povo – explicoume, enquanto retirava de sacos de plástico molhos de papéis com listas com nomes. Depois, a meia-voz, acrescentara – O Achém está a ser mal interpretado. Deve ser visto como um irmão e não como um inimigo. Aquela era uma achega ao governo, com toda a certeza, embora Raffil não o admitisse. – O que se passa não é culpa do governo, mas de certos indivíduos. Já, para o ex-militar As Rasman, não sobravam dúvidas: – Isso do GAM é mero banditismo, influência estrangeira. Que pelos vistos tinha rosto. – É obra do Khadafi – exclamou. – E do Bin Laden?– perguntei. – Sim, e do Bin Laden também – respondeu. Lançada a bojarda, perguntara: – E o seu país, Portugal, apoia os GAM? Sem me dar tempo para responder, lembrara que a Alemanha e a América, «que é um pouquinho má», não apoiavam. Depois, ciente de que «Portugal é um país amante da paz», acabara por me desejar «sucesso nas minhas investigações». Assistia-se naquele domingo a um inusitado movimento de furgonetas que chegavam com pessoas das povoações vizinhas. Era dia de mercado. Um mercado frequentado também pelos soldados ali estacionados, que faziam as compras de
Os mata-biru, luso-descendentes de Samatra ...
arma automática a tiracolo, não fosse o diabo tecê-las. Lembro-me de um dos feirantes utilizar os seus dotes de violinista para melhor vender a mercadoria. Sabia que o instrumento que tocava – biola, em bahasa indonesia – fora ali introduzido pelos navegadores lusos. Estava então muito em voga a música Dara Portugis, de Sabirin Lamno, filho da terra, que abordava precisamente a saga dos portugueses de Lamno. Lembro-me de um bálsamo contra as dores reumáticas feito a partir de malagueta, extremamente eficaz, a cinco mil rupias cada frasquinho. Para demonstrar a sua eficácia, o vendedor untava os olhos, sem verter qualquer lágrima. Proclamava, filosoficamente: – Não tenho mais lágrimas para verter. Lembro-me das bancas dos vendedores de tabaco de enrolar e das dos curandeiros. Metade dos chás e mezinhas destinava-se a melhorar o desempenho sexual dos machos, o que não parecia ser problema na aldeia, a julgar pelo elevado número de crianças ali presentes, como a miudita de tez pálida, «uma dessas tais portuguesas», para a qual As Rasman me chamara a atenção. – A elite de Jacarta e os detentores de cargos públicos de outras províncias têm por hábito procurar mulheres em Lamno, uma vez que são bonitas, discretas e têm bom carácter. Na verdade, não se avistavam muitas dessas mulheres, que, coincidência ou não, raramente usavam véu, contra a tradição local. Algumas delas, mais velhas, deixaram-se fotografar, ao contrário de uma beldade que se refugiou dentro de portas, apossada de uma súbita timidez. Afi-
nal, nem todas as mata-biru tinham sido «raptadas» pelos ricalhaços de Jacarta.
– Queremos todos que isto termine para regressarmos a casa – confessava.
Nesse mesmo dia, conheci Surya Wibaura, um capitão do TNI, exército indonésio, natural de Macassar, capital das Celebes, pátria dos lendários bugis, povo de navegadores. Declarava ter estado na fronteira com Timor Leste numa patrulha conjunta com as forças da UNTAET. Em comissão de serviço em Aceh há mais de um ano, sem ver a família, sentia que chegara a altura de partir, embora soubesse que a decisão cabia aos seus superiores hierárquicos.
Toda aquela incerteza e a perigosidade das tarefas diárias traziam angustiado o bugi das Celebes, o menos militar dos militares, ou assim me pareceu. Nada nele era bélico: nem as palavras, nem a postura. Como o próprio dizia: – Sinto-me como o pára-quedista que sabe que vai levantar voo num avião, mas que não aterrará a bordo... Na manhã seguinte, fui apresentado ao outro aldeão que falava inglês.
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Chamava-se T. R. Adam e logo me indicou o nome das pessoas que me poderiam ajudar nas minhas pesquisas. Em Lamno, Teku Abas e o «meu familiar Ibrahim» eram os homens a contactar. Já na aldeia vizinha de Kuala Daya, «se conseguir autorização para lá chegar», Teku Suleiman e Teku Achim, «filho de Anak Raja Sarung», seriam as melhores fontes de informação. Segundo me dizia, Teku Achim saberia, inclusive, pormenores da história do naufrágio e tinha em sua posse uma tabela genealógica daqueles que descendiam de portugueses.
Teria de lhes deixar o passaporte como garantia e, ao fim de duas horas, reportar a minha chegada.
Durante os dois dias que consegui permanecer em Lamno tentei, por diversas ocasiões, embora sem êxito, visitar Kuala Daya, contrariando os militares que gentilmente me «convidavam» a seguir viagem para sul.
Se não fora muito complicado conseguir autorização de estada suplementar na aldeia, e até para uma visita-relâmpago a Kuala Daya, estava a ser dificílimo encontrar alguém disposto a levar-me até Teku Achim e companhia, provavelmente por receio de eventuais represálias por parte dos militares.
Argumentava o capitão do regimento Tarantula destacado na área: – Kuala Daya é zona GAM. Teremos de telefonar ao nosso superior, informando-o da sua presença, e esperar que lhe conceda autorização para aqui permanecer. Só depois poderemos saber se o deixam visitar a aldeia ou não. Pelos vistos, não deixavam. Teria de requisitar um salvo-conduto em Melabuoh, 200 quilómetros a sul, e regressar. – Não podemos correr riscos. Se lhe acontecer algo, se for morto, seremos os responsáveis – escusava-se o educadíssimo comandante. Insisti, socorrendo-me de alguma retórica persuasiva, e o jovem oficial, a contragosto, acabaria por ceder. – Por quanto tempo? – perguntou. – Terá de tratar do transporte e ir por sua conta e risco.
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Ultrapassado o primeiro obstáculo, dirigi-me para casa de Ibrahim, «irmão» de T. R. Adam, convencido de que me arranjaria transporte. Negociante de sucesso, Ibrahim construíra casa, a mais abastada da região, junto à mesquita. Para meu espanto, não só não me convidou a entrar, como me disse não haver qualquer veículo que me pudesse levar a Kuala Daya, embora o seu jipe fosse bem visível, na garagem.
Só então entendi a súbita mudança de planos do homem gordo que me levara a visitar a sua família, prometendo-me uma deslocação, «mais tarde», a Kuala Daya. Uma breve troca de palavras com a mulher foi suficiente para que uma doença súbita o acometesse. Para tornar o quadro mais convincente, o homem simulava até descontrolada tremedeira... Achei tudo aquilo muito estranho. Regressei ao botequim na rua principal, o meu habitual posto de observação, e, quando estava pronto a desistir, topei com um homem franzino, encavalitado numa motocicleta vermelha. – Vá. Ele leva-o a Daya. Por dez mil rupias – alguém disse. Nem vi quem. Sem hesitar, saltei para o veículo. Ao contrário dos motociclistas com quem tinha contactado anteriormente e que me diziam que po-
deria ser morto pelos GAM se viajasse até Daya, este parecia estar bastante bem relacionado. Cumprimentou todas pessoas com quem nos cruzámos. E, se imaginara ter de atravessar seis quilómetros de selva à mercê de uma emboscada, enganei-me redondamente, pois eis-nos na estrada principal a maior parte do tempo, tendo sempre ao nosso lado arrozais, casas humildes e gente com o ar mais acolhedor deste mundo. Sentado na única tasca de Kuala Daya, junto à mesquita de madeira, no centro da minúscula povoação, não pude deixar de relembrar as recomendações do jovem capitão. – Daya é um foco de guerrilha. Eles são GAM. E não apenas apoiantes, fazem parte da organização. Por apenas três mil rupias (o preço de uma garrafa de água mineral de litro e meio), comi um delicioso prato de peixe, camarão e legumes banhados em molho de coco, tudo isso acompanhado de arroz. O repasto decorreu sob o olhar atento de um tipo de forte bigodaça. O bigode era, aliás, marca de referência dos «portugueses» da região de Lamno. E, se a maioria transpirava simpatia, havia-os também com cara de poucos amigos. Era o caso deste observador sério e inquisitivo. A seu lado, um homem mais velho, de tronco nu, demonstrara orgulho na sua ascendência, pedindome que o fotografasse. entusiasmados pelo gesto, outros quiseram também tirar o retrato. Mulheres com crianças ao colo aproximaram-se, movidas pela curiosidade, mas logo fugiram quando lhes apontei a câmara. Acabaram por ceder, algumas a pedido dos maridos, que pacatamente deixavam correr as horas à sombra da enorme man-
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gueira, cuja copa cobria todo o boteco. O encontro decorreu entre sorrisos e linguagem gestual, pois ninguém sabia outro idioma que não achenense e bahasa. – Os GAM gostaram de ti. Por isso, não tiveste problemas – concluiria, mais tarde, As Rasman. – Em Kuala Daya todos são pescadores, mas a verdade é que têm muitas armas escondidas. O contrabando desse material de guerra, proveniente da Tailândia, era feito de barco a partir da costa malaia. Como moeda de troca, recorriase a fardos de marijuana, produzida em grande quantidade na província do Achém, como era sabido. – Trata-se de uma troca. Os pescadores fornecem ganja e recebem metralhadoras AK-47 de fabrico belga. E o exército, por que razão não estava ali? – Para lá irá – dizia Rasman, assegurando não temer os GAM, apesar da sua posição integracionista. – Eles têm-me respeito, assim como o exército. Fui encontrar Teku Achim na praia a remendar redes na companhia de outros pescadores. Visto que eu não falava bahasa, mostrou-se desinteressado, embora tivesse perguntado se era jornalista. Uma vez mais vi-me rodeado de pessoas com a pele mais clara do que a minha e de olhos castanhos e esverdeados. Ali se materializou também o sujeito de bigode e ar desconfiado. Dir-se-ia que me controlava os movimentos. Um forasteiro que filmava e fotografava indiscriminadamente só poderia ser motivo de suspeita. Imaginava-o agarrado a uma arma automática,
na mata cerrada. Aos outros, nem a uma fisga, apesar das fartas bigodaças. Quanto aos miúdos que tomavam banho em pelota, esses, sim, piores do que terroristas. Mal-educados, obscenos, fizeram-me estragar umas quantas fotos e furaram-me os tímpanos com berros estridentes e despropositados. Frustrado por não conseguir o meu objectivo, e incapaz de comunicar, a não ser por gestos e com uma ou outra palavra de bahasa que conhecia, aproveitei para subir a um morro ali próximo, tentando obter uma melhor perspectiva do terreno. A paisagem era fabulosa.
Não admira que os portugueses tivessem ficado por estas bandas... Se calhar nem sequer houve naufrágio, dei por mim a pensar. Acompanhou-me nesse passeio um bizarro personagem de crânio rapado, que me mostrou o túmulo ali existente de Po Teumeurehom Daya, soberano do reino de Daya no século XVII, vassalo do poderoso sultanato de Achém. Quando me preparava para fotografar as embarcações pousadas no areal, saiu-me com um chorrilho de frases aparentemente desconexas e em perfeito
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inglês, que me deixaram surpreendido. Dizia ele: – Agora não, meu amigo, porque estou cansado, acabei de subir a um coqueiro. Também me disse que estávamos no «lugar errado» e que o melhor era «deixarmos para uma próxima vez». Interpretei tudo aquilo como um convite simpático para abandonar a aldeia. A criançada, porém, dava-me a entender que o tipo não regulava muito bem da cabeça. Por isso, acabei por fotografar, mas não fiquei convencido. Naquelas frases, havia algo de inquietante. Ficaram por ver as caves de Geurentee, nas proximidades, onde subsiste o mistério de um «homem-macaco», uma espécie de yeti cujas peugadas foram encontradas na região. De novo no centro da aldeia, depois de beber um café com borras e antes do regresso a Lamno, fui abordado por um outro indivíduo de bigode, recém-chegado, que inteirando-se da minha nacionalidade, perguntou: – E Timor? Portugal apoia a independência de Timor, não é? E do Achém, apoia? Esta pergunta só viria reforçar a suspeita da alegada ligação dos habitantes de Kuala Daya aos GAM. Também em Lamse, a alguns quilómetros a sul de Lamno, à entrada da barra, ali mesmo, entre o mar e o rio, habitavam luso-descendentes. As Rasman fizera questão de lá me levar pessoalmente, pois os habitantes eram apoiantes do «partido do touro», o PDI de Megawati Sukarnoputri, com o qual também ele se identificava.
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Encontrei ali mais homens de bigode, crianças reguilas, barcos coloridos e um monte de atuns acabados de pescar, «mas apenas para exportação».
das que surgiram na sequência do tsunami, tal como a lenda da areia movediça, à falta de documentos coevos, explicava a existência dos «Portugueses de Lamno».
Recordo-me de ver, na televisão, esse mesmo local, totalmente devastado, por detrás de um repórter da BBC, poucos dias após o tsunami. A ponte que permitia a circulação para sul simplesmente desaparecera.
Apesar de os contactos com o Achém terem sido frequentes desde 1509, não há documentos comprovativos da fixação de portugueses na região de Lamno. Porém, para além da miscigenação que foi acontecendo ao longo dos séculos – e, nesse sentido, é errado dizer que a comunidade desapareceu por completo, já que os seus membros se encontram espalhados pelo arquipélago –, outras heranças lusas subsistem no Achém de hoje.
Na vizinha aldeia de Lambesu, As Rasman tivera a amabilidade de me apresentar a uma família, cujos genes lusos se mantinham quase intactos, apesar do correr dos anos. Na filha, então, loura e de pele branquíssima, era surpreendente. Reunidos para o retrato, mãe e filhos mais pareciam aldeões de uma qualquer terreola da raia transmontana. Reconheci de imediato a mulher, anos antes fotografada pelo meu amigo e historiador António de Maues Collaço, a quem devo o conhecimento da existência dos «Portugueses de Lamno».
O dialecto achenense contém diversas palavras de origem portuguesa, tais como sítio, santo, nanas (ananás), kaldu (caldo), karantina (cantina), lepra, pasta, kebaya (cabaia), karambol (carambola), arloji (relógio), dadu (dado). O bolo de mármore e o rolo de pãode-ló, designado bolo roti, esse, certo e seguro, são um legado gastronómico bem lusitano.
Semanas após a tragédia, as notícias mencionavam o sobrevivente «português» Jamaluddin Putih, pescador de 40 anos, em plena faina na altura do maremoto. Era bem possível que o chefe dessa família fosse Putih, que na altura da minha visita também se encontrava no mar.
No domínio lúdico, chamo a atenção para o pião, de madeira de ébano e crina de cavalo. A variante que se joga no Achém é a do pião de nica, como vem explícito num folheto turístico: «Longer circling and kick each other until is broken.»
Falou-se ainda de Cut Pudo, uma idosa de oitenta anos, que teria percorrido uma centena de quilómetros até Banda Aceh. Profundamente traumatizada pelos acontecimentos, ficara amnésica e acreditava ser Siti Hawa, que, na língua local, significa Eva, a primeira mulher, de acordo com as religiões monoteístas do livro. Tal assunção, porém, entrava já no domínio dos mitos e das len-
A par das competições de papagaios de papel e das corridas de canoas e de cavalos, eram assaz populares as lutas de touros. Esses combates, «para fazer com que os touros comam», decorriam nos intervalos dos jogos de futebol e de outras festividades, não faltando quem atribuísse tais singulares distracções à passagem dos portugueses.
Criação do Centro Científico e Cultural de Macau Alexandra Costa Gomes Administradora da Fundação Jorge Álvares e ex-Presidente do Centro Científico e Cultural de Macau
I Este texto tem como objectivo destacar o que foi feito nas últimas três décadas para dar a conhecer Macau, as relações históricas que Portugal estabeleceu naquela área do Globo, particularmente com a China, procurando mencionar numerosas iniciativas, que se sucederam e se interligaram, e que contribuíram, e culminaram na criação de um Centro Científico e Cultural de Macau. Tratar do Oriente, do Centro Científico e Cultural de Macau – portanto do Oriente em Lisboa, constitui um grande desafio para quem, como eu, até ao fim da década de 80, se tinha ocupado, tão só, do Ocidente, da Europa, de Organizações Financeiras Internacionais. Para o efeito torna-se necessário refletir sobre o que foi o meu universo até então, para poder explicar como entrei no Oriente, ou como o Oriente entrou em mim! No Ocidente, numa época em que começava a perspetivar-se a abertura de Portugal à Europa, trabalhava na Administração Financeira do Estado, onde fui responsável por negociações com importantes instituições internacionais, tendo chegado a integrar, em representação do nosso país, a administração de algumas, como o Banco Europeu de Investimentos e o Banco Africano de Desenvolvimento.
Professor Pedro Lynce, Ministro da Ciência e do Ensino Superior, Dr. Jorge Rangel, Engenheira Alexandra Costa Gomes.
Nessa época, participei activamente nas negociações de adesão com a Comunidade Económica Europeia e na negociação das ajudas comunitárias, tendo igualmente sido responsável pela negociação de apoios, que numerosos países amigos quiseram disponibilizar para suportar o desenvolvimento do nosso país, no pós-25 de Abril. Foi um período extraordinário, muito estimulante, com desafios constantes, em que era indispensável articular a nossa realidade específica, com regras internacionais de grande exigência, como eram, entre outras, as do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Nessa fase,
foi muito gratificante criar e incentivar equipas, que ainda hoje dão cartas na nossa Administração. II Estendi-me um pouco nesta descrição para mostrar como o mundo ocidental, em que estive profundamente mergulhada, era o meu limite. Mas a vida deu-me inúmeras oportunidades. Nessa fase, o primeiro desafio foime lançado pelo então Governador de Macau, Eng. Carlos Melancia, que me conhecia de negociações internacionais, em sectores que tinha tutelado como Ministro, no sen-
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General António Ramalho Eanes, Engenheira Alexandra Costa Gomes.
tido de aproveitar os anos da transição de Macau, negociados com a China, para criar em Portugal uma Delegação que fosse simultaneamente um Centro de Dinamização Cultural e desse a conhecer Macau e as Culturas Orientais, bem como as relações históricas que o nosso país manteve com o Oriente durante cinco séculos. Simultaneamente, surgiu um convite do saudoso Dr. Mário Soares, então Presidente da República, para integrar, em sua representação, o Grupo de Ligação Conjunta Luso-chinês, criado no âmbito da Declaração Conjunta Luso-chinesa negociada entre os dois países, entidade que durante uma década devia equacionar as condições para a integração harmoniosa de Macau na República Popular da China.
de um Centro Científico e Cultural de Macau, de que falaremos mais tarde. Estava criada uma teia de situações, projectos e desafios, que se interpenetravam, e de certa forma interagiam, o que me motivou a entrar, com entusiasmo, naquele novo Mundo, e desenvolver aí as sinergias indispensáveis à concretização daquele ambicioso projecto.
Nas conversações com a República Popular da China, realizadas de três em três meses, alternadamente em Portugal, Macau e China, tive o primeiro contacto com aquela fascinante civilização, tendo tido oportunidade de conhecer novas sensibilidades, personalidades e culturas, e de visitar diversas Regiões e importantes Museus da China, de que destaco o “Museu de Arte Chinesa” de Xangai, na altura acabado de inaugurar, e criado com recurso às mais modernas tecnologias existentes no mundo, como nos foi transmitido na época. Esta visita constituiu um marco, no projecto que viemos a desenvolver em Portugal, tendo sido possível enviar posteriormente a Xangai a equipa envolvida na criação do Museu do CCCM, afim de ali se inteirar das novas tecnologias utilizadas e discutir com os responsáveis aspectos relevantes da nova Instituição. A Missão de Macau em Lisboa constituiu, na oportunidade, uma plataforma de grande importância, tendo
Impossível resistir a este salto para a nova “Galáxia”. Foi nesse quadro que surgiu, ainda em 1995, o terceiro e mais importante desafio, que o então Governador de Macau, General Vasco Rocha Vieira, lançou ao governo português, para a criação em Lisboa,
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Inauguração da Exposição “Do Neolítico ao Último Imperador” no Palácio Nacional de Queluz.
Criação do Centro Científico e Cultural de Macau
com grande frequência nas lindíssimas instalações criadas nos edifícios adquiridos por Macau, na Av. 5 de Outubro, hoje Delegação Económica e Comercial de Macau.
Padre Manuel Teixeira e Engenheira Alexandra Costa Gomes.
sido um polo dinamizador de todas as iniciativas que Macau desenvolveu no nosso país, na década de 90. Aí se cruzaram projectos, especialistas e equipas diversificados, com destaque para a Comissão Instaladora do CCCM, a que tive o gosto de presidir, e que integrou e mobilizou personalidades marcantes na cultura e conhecimento do Oriente, de que destaco o meu amigo Dr. Guilherme Valente, que veio a ter papel relevante no lançamento, com a Universidade de Aveiro, do 1º Mestrado em Estudos chineses, existente em Portugal. A Missão viveu um fervilhar de actividades, com múltiplas acções de formação, sendo de destacar Cursos de Mandarim, ministrados pela Profª Wang, hoje professora da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade de Aveiro, cursos lançados em 1991 e que se mantêm até hoje no CCCM, com o apoio da Fundação Jorge Álvares. Palestras sobre História e Cultura Portuguesa, ministradas pelo Prof. Guilherme d’Oliveira Martins, mais tarde Ministro da Educação, a que todos os sábados assistiam largas dezenas de bolseiros de Macau. Conferências e Colóquios, com individualidades marcantes da nossa cultura, sucediam-se
Foram realizadas, sempre com apoio inestimável de Macau, dezenas de exposições, algumas em articulação com a Fundação Gulbenkian, que itineraram por todo o país, tendo a sua preparação envolvido, frequentemente, bolseiros de Macau, que hoje têm papel relevante à frente de Instituições daquele Território. Sem querer maçar-vos com mais detalhes, permitam-me destacar a exposição de pintura de Deng Lin, filha de Deng Xiao Ping, que esteve entre nós por ocasião da inauguração da sua exposição. E permitam-me a propósito mencionar, com muita estima, o nome de Filomena Silva Pinto, responsável, desde o 1º Dia, na Missão de Macau, pelo Departamento de Acção Cultural. A Missão contou ainda com o apoio de professores e especialistas, que, de regresso de Macau a Portugal, aceitavam dar ali o seu contributo. Uma palavra de muito apreço e admiração para o Prof. Luís Filipe Barreto, hoje Presidente do CCCM, que de regresso de Macau em cuja Universidade foi Professor, aceitou dar um contributo inestimável e determinante na concepção do Centro Científico e Cultural de Macau. Seria fastidioso enumerar tudo o que foi feito naqueles 10 anos, mas cito 4 acontecimentos em que a MML esteve profundamente envolvida e que contribuíram para conceber, de forma criteriosa, o papel da nova instituição: • LISBOA, CAPITAL EUROPEIA DA CULTURA (1994) Pela primeira vez, foi dada a conhecer em Portugal, a “Colecção
de Arte Chinesa” do grande coleccionador de Macau e consultor da Sotheby’s, António Sapage, que aqui recordo com muita estima. Esta colecção veio a ser adquirida pelo Governo de Macau, para integrar o Museu do CCCM. • EUROPÁLIA (1991) Macau realizou importantes iniciativas em Bruxelas, com forte apoio da Missão de Macau em Lisboa. Gostaria de mencionar a notável exposição “Triunfo do Barroco”, com que Portugal participou na Europália em 1991, que incluiu diversas peças de Macau, com destaque para o fabuloso “Andor de prata da Igreja de S. Domingos”, que viajou de Macau para Bruxelas, sob escolta policial. Gostaria de referir ainda uma passagem de modelos, do artista polifacetado de Macau, António Conceição Júnior, que suscitou imenso impacto, e contou com a presença interessada da Rainha da Bélgica. • EXPO 98 Macau, com o envolvimento da Missão, teve uma participação activa na Expo 98, onde foi criado um espectacular Pavilhão, que recebeu um número absolutamente invulgar de visitantes. Gostaria de destacar o nome do Dr. Mário Matos dos Santos, que teve neste projecto papel determinante. • EXPOSIÇÃO INAUGURAL DO CCCM Voltarei mais tarde a esta exposição, mas gostaria de referir aqui, o papel importante e fundamental assumido pela Missão, com destaque para a contribuição vinda de Macau, através da Presidente do Instituto Cultural, Dra. Gabriela Cabelo e do Dr. Enio de Souza, hoje funcionário do CCCM, que se envol-
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sabilizando-se pela criação do respectivo espólio, bem como pelas despesas com a adaptação dos espaços atribuídos e ainda pelos encargos com o funcionamento da mesma durante o período de instalação e até à data da entrega de Macau à República Popular da China, no fim de 1999.
Inauguração do Centro Científico e Cultural de Macau – Engenheiro Carlos Melancia, Senhor Man Hin Choi, Professor Narana Coissoró, Dra. Gabriela César e Engenheira Alexandra Costa Gomes.
veram de forma absolutamente extraordinária na organização da exposição. Gostaria também de deixar uma palavra de muito carinho para a Dra. Manuela d’Oliveira Martins, que esteve connosco desde a 1ª Hora, e é hoje responsável pelo Museu da Fundação Oriente. IV Retomando o tema do CCCM, é importante fazer agora o enquadramento que presidiu à sua criação: Em meados da década de noventa, o Governador de Macau, com o apoio de diversas entidades privadas do Território, decidiu oferecer a Portugal as condições para a criação de um Centro Cultural, de Investigação e de Documentação, capaz de perpetuar o relacionamento impar que Portugal e a República Popular da China desenvolveram durante cinco séculos, assim facultando às gerações vindouras a possibilidade de aprofundarem e desenvolverem no futuro o diálogo com aquela zona do Globo. Na oportunidade, foram estabelecidas conversações com o governo português, que acolheu a ideia com
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entusiasmo, tendo decidido que a nova entidade deveria ter a forma de Instituição Pública e, tendo-se comprometido a disponibilizar espaços adequados para o efeito. Nas conversações realizadas, foi ainda superiormente decidido atribuir ao Centro património próprio e conceder-lhe autonomia administrativa e financeira. Em contrapartida, o governo de Macau, com o apoio de entidades privadas do Território, comprometeuse a suportar todos os encargos com a criação da instituição, respon-
Para o efeito, Macau propôs-se dotar o Centro com a importante colecção de Arte Chinesa, referida anteriormente, e que tinha sido exposta em Queluz, por ocasião de “Lisboa Capital Europeia da Cultura”, comprometendo-se também com a constituição de um Serviço de Informação e Documentação, para onde seriam enviados microfilmes de todos os documentos valiosos existentes na Região, cobrindo o período de cinco séculos, desde os primórdios da chegada dos portugueses ao Oriente até à actualidade. O Centro Científico e Cultural de Macau foi inaugurado em Novembro de 1999, com a presença de importantes personalidades de Portugal e de Macau, tendo contado com a presença do então Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio, do então Primeiro-Ministro, Eng. António Guterres, e naturalmente com a presença do então
Inauguração da Exposição “Cerâmicas de Timor Lorosae” no Centro Científico e Cultural de Macau – Professor José Mariano Gago, Ministro da Educação e Ciência, Dr. Ximenes Belo, Engenheiro José Arez e Engenheira Alexandra Costa Gomes.
Criação do Centro Científico e Cultural de Macau
Governador de Macau, General Vasco Rocha Vieira. Na inauguração foi apresentada uma notável exposição, já referida anteriormente, denominada “Os Fundamentos da Amizade, Cinco Séculos de Relações Culturais e artísticas LusoChinesas”, cujo comissário, Dr. Fernando Baptista Pereira, Director do Museu de Setúbal, realizou um trabalho de grande envergadura e rigor. A exposição reuniu mais de quatrocentas peças de grande diversidade, dos objectos arqueológicos a valiosas obras de arte, passando por manuscritos, livros impressos e cartografia de múltipla proveniência. O catálogo produzido constitui um marco importante na história das nossas relações com o Oriente, contendo contributos científicos notáveis e elucidando os mais significativos momentos constitutivos da Amizade Luso-chinesa, uma das mais antigas, senão a mais antiga e duradoura, existente entre povos do Extremo Oriente e do Ocidente Europeu. O então Ministro da Tutela, Professor José Mariano Gago, escreveu no catálogo, que o “CCCM surge como uma entidade moderna e original, simultaneamente instituição de investigação e museu, entidade geradora de acções de formação, e de divulgação, constituindo uma peça essencial na política de cooperação científica e tecnológica de Portugal com a China, da Europa com a Ásia”. V Penso estar aqui o cerne da responsabilidade que se coloca hoje ao nosso país, no sentido de dar a esta Instituição os meios necessários para cumprir uma Missão, tão importante para o nosso futuro colectivo. De facto, as origens do Centro Cientí-
fico e Cultural de Macau prendemse com a necessidade de dar sequência em Portugal, depois da criação da Região Administrativa Especial de Macau, a uma cooperação científica e cultural, que contribua para manter viva a presença entre nós de uma amizade fecunda, com raízes históricas e com potencialidades futuras. A ideia de ligar a ciência com a cultura prende-se com a necessidade de não nos limitarmos a uma visão retrospectiva, da ligação entre Portugal e Macau, mas à preocupação de articularmos, de forma viva, o passado, o presente e o futuro. Foi esse espírito que animou a criação de uma Instituição Pública, capaz de constituir um factor de diálogo e também um catalisador de iniciativas e de projectos capazes de ligar a História ao presente, atraindo novos públicos e mantendo junto dos mais jovens a presença viva de um diálogo permanente entre culturas e civilizações. Em síntese, o CCCM nasceu, como escreveu o Professor Mariano Gago, com uma directriz inovadora, preenchendo três finalidades: • Prolongar e aprofundar os elos históricos entre Portugal e Macau. • Favorecer e desenvolver a amizade e cooperação com a República Popular da China, nos campos cultural e científico. • Promover o estudo, a investigação e um melhor conhecimento sobre a relação Portugal-Extremo Oriente. VI Neste quadro, o Centro comporta três Departamentos fundamentais: 1) Um núcleo museológico, com um acervo de mais de 3.000 peças,
Inauguração da Exposição “Cerâmicas de Timor Lorosae” no Centro Científico e Cultural de Macau – Presidente Xanana Gusmão e Engenheira Alexandra Costa Gomes.
constituiu uma aposta inovadora, partindo de modernas concepções sobre a criação e o diálogo culturais, e recorrendo às mais modernas tecnologias, na área da animação multimédia, no caso desenvolvida por uma conceituada equipa canadiana, que posteriormente veio a participar na criação do recentemente inaugurado Museu Charles Chaplin, na Suíça. As tarefas ligadas à instalação do Museu contaram com forte apoio do importante Museu das Civilizações do Québec, cuja Presidente esteve entre nós nos momentos mais cruciais da instalação, depois de a equipa portuguesa, responsável pela montagem, se ter deslocado ao Canadá e aí ter tido oportunidade de se inteirar de aspectos relevantes da criação e funcionamento daquele importante Museu. No Museu de Macau procurou-se traduzir, de forma adequada ao espaço disponível, todo o processo histórico de Macau, com recurso a linguagens dinâmicas, didáticas e interactivas.
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A escolha de um modelo, à escala 1/10 da “Nau do Trato” merece destaque, constituindo um modo de enquadramento da colecção, com elevado sentido didático e com recurso às mais avançadas metodologias, no domínio da museologia. Um espectáculo de multimédia relata, de forma viva, como, na época, era feita a viagem do mais célebre dos navios, no comércio Macau-Japão. As religiões mereceram também tratamento especial, sendo apresentado, em paralelo, um Núcleo dedicado às “formas de espiritualidade chinesas”, com peças de imagética religiosa oriental, e com um espectáculo multimédia sobre o Colégio de S. Paulo, o Cristianismo e a importância que os Jesuítas tiveram no Oriente.
2) Importa acentuar que o CCCM comporta uma outra componente, particularmente importante – A Biblioteca e o Serviço de Informação e Documentação, cuja riqueza é reconhecida nos meios universitários e científicos internacionais, e que comporta o mais completo acervo existente em Portugal, e em todo o mundo lusófono, de documentação especializada espalhada pelo mundo, sobre as relações estabelecidas pelo nosso país com aquela região do Globo, bem como sobre Sinologia e História e Cultura da Ásia Oriental, encontrando-se articulada, em rede, a outras Bibliotecas e Arquivos nacionais e estrangeiros.
Procurou-se mostrar que o Cristianismo e Cultura constituiem um convite à espiritualidade cristã no universo do confucionismo. Importa aqui acentuar a relevância do Colégio de S. Paulo, o 1º Colégio universitário europeu na China, que teve a partir de 1595 cursos de 3 anos de Artes e Teologia, desenvolvendo ao mesmo tempo estudos de Língua e Civilização chinesas e japonesas. No Colégio foi criada a 1ª Biblioteca Europeia de livros chineses, e aí nasceu e foi editado, em 1620, o 1º Diccionário de português-chinês. A opção pela proposta museológica surgiu também como um desafio, ao tentar conciliar a modernidade, com recurso às novas tecnologias, ao longo da viagem, através da História de Macau, com a solidez da exposição permanente de “Arte Chinesa”, que como foi referido cobre cinco mil anos e cuja valia tem sido reconhecida internacionalmente.
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Inauguração do Centro Científico e Cultural de Macau – Professor José Mariano Gago, Ministro da Educação e Ciência, Dr. Edmundo Ho e Engenheira Alexandra Costa Gomes.
Permitam-me destacar os fundos principais que compõem aquele acervo: Colecção de mais de 5.000 microfilmes de documentos manuscritos e impressos, existentes no conjunto de Serviços e Instituições de Macau, bem como nos diversos países por onde passaram os portugueses, com destaque para Goa e Brasil. De referir ainda registos existentes em diversos arquivos europeus, com destaque para o Vaticano. Documentos e espólios oferecidos, por diversas personalidades e Insti-
tuições, com menção especial para o importante espólio oferecido por Monsenhor Manuel Teixeira. Aquisições de obras relevantes, que foram sendo realizadas desde 1995, mediante sugestões formuladas e o envolvimento e empenho do Professor Doutor Luís Filipe Barreto, hoje Presidente do CCCM. Toda a documentação recebida encontra-se arquivada em estrutura compacta, em condições rigorosas de temperatura e humidade, tendo sido previamente catalogada e classificada, e encontrando-se disponível, em catálogo “online”, num total de mais de 20 mil registos bibliográficos, correspondendo a mais de cem mil documentos. Por fim, importa destacar a terceira e importante vertente do CCCM – a Investigação Científica, onde são evidentes as potencialidades da Instituição, bem como a importância da missão que lhe foi confiada, registando-se uma grande aposta nos últimos anos e uma estreita articulação com Universidades e outras Unidades de Investigação nacionais e estrangeiras, de que importa destacar o papel do actual Presidente. Uma vez inaugurado o CCCM, foi dado início a uma actividade com um enquadramento naturalmente mais limitado, em termos de recur-
Conferência na Missão de Macau em Lisboa – Dr. Ximenes Belo, Engenheiro Roberto Carneiro e Engenheira Alexandra Costa Gomes.
Criação do Centro Científico e Cultural de Macau
Não quero deixar de assinalar que o CCCM tem desenvolvido com a Embaixada da República Popular da China uma importante parceria, representando a Instituição portuguesa que mais actividades da Embaixada tem acolhido em Portugal, contribuindo assim decididamente para o crescimento das relações científicas e culturais entre os dois povos.
Jantar no Clube dos Empresários por ocasião da transferência de soberania de Macau – General Vasco Rocha Vieira, Governador de Macau, Dra. Manuela d’Oliveira Martins e Engenheira Alexandra Costa Gomes.
sos orçamentais, sendo de destacar o apoio importante que a Fundação Jorge Álvares tem representado.
particularmente feliz os traços culturais daquele Território”.
De referir os Cursos de Língua e Cultura Chinesas, iniciados na Missão de Macau em 1991, e que se mantêm até hoje com notável grau de adesão.
O meu querido amigo, Professor Doutor Luís Filipe Barreto, Presidente do Centro Científico e Cultural de Macau, certamente poderá relatar melhor do que eu o que tem sido a evolução da Instituição nos últimos anos. Mas gostaria de assinalar, que, recentemente, certamente com o empenho do Professor Luís Filipe Barreto, o conceito da Instituição criada em 1995 viu reforçada a componente de investigação científica, com a publicação em 2012 de um Decreto-lei cujo preâmbulo diz:
Foram realizadas diversas exposições, que não vou descrever com detalhe, desejando tão somente mencionar uma Mostra muito interessante de “Cerâmicas de Timor Lorosae”, inaugurada em Novembro de 2001, com a presença do Presidente Xanana Gusmão, que escreveu no catálogo palavras muito elogiosas e emotivas, considerando “tratar-se de uma Exposição que constitui uma prova de amor entre dois povos, e que realça de forma
“O Centro alarga o âmbito da sua missão, mantendo no essencial as atribuições que já tinha, procurando orientar a actuação para a sua afirmação enquanto Centro de Investigação Científica, de formação contínua e avançada, de alta divulgação cultural e de especializada informação, bem como, para a sua consolidação como espaço de estudo e de ensino de língua, cultura e História da China e como parte de cooperação Portugal-China”.
Nos primeiros anos da sua existência, altura em que tive o gosto de assumir as funções de Presidente, desenvolveram-se algumas actividades que vinham na linha de continuidade do que tinha sido realizado anteriormente no quadro da Missão.
Em conclusão, gostaria de acentuar que, com uma história de relações ancestrais que Portugal desenvolveu com o mundo, o Centro Científico e Cultural de Macau constitui hoje a única instituição pública de que Portugal dispõe para apoiar o desenvolvimento das suas relações com o Extremo Oriente, e mais concretamente com a República Popular da China, tratando-se de uma entidade pública insubstituível, de enorme importância estratégica, no relacionamento entre Portugal e a República Popular da China, tanto mais significativo, quanto é certo que essa função se projecta no mundo lusófono.
Inauguração da Exposição “Um Serão no Jardim da Primavera” no Centro Científico e Cultural de Macau – General Vasco Rocha Vieira, Governador de Macau e Dra. Leonor Rocha Vieira.
Se o Governo – os governos – não falharem no apoio e consolidação deste verdadeiro “Polo de Macau”, ele constituirá no futuro a plataforma de diálogo – e de afirmação – indispensáveis para o nosso futuro colectivo, no mundo globalizado em que nos encontramos.
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Estranha embarcação Maria Helena do Carmo Escritora
Tocavam as 12 horas nos sinos das igrejas a anunciar o início da tarde, quando entrou no Estuário do Rio das Pérolas o navio russo Sv. Petri Sv. Pavel (S. Pedro e S. Paulo), sob o comando de Maurício de Benyowsky, que saudou a Fortaleza do Monte com doze tiros de canhão. Perdido nos mares agitados do Norte, sem atinar com o rumo certo para regressar à Europa, o navio passou pelas ilhas Aleutas, próximas do Alasca, depois pelo Japão, desceu à Ilha Formosa e chegou a Macau. Segundo nos relata o comandante no seu Diário, ancorou no porto pelas duas da tarde do dia 22 de setembro do ano de 1771, sendo recebido com grande afabilidade pelo governador Salema e Saldanha, que encarregou o senhor Hiss, um francês radicado há muito na cidade, de servir de intérprete e arranjar casas para a tripulação1. A estranha embarcação carregava mareantes miseráveis, doentes e famintos, por terem andado à deriva, situação que levantou suspeitas entre os magistrados de Macau e levou o conde de Benyowsky a entregar o navio ao governador, como depósito, deixando as armas dos seus homens na Fortaleza. Nessa mesma tarde, depois da guarda vistoriar a corveta, fez desembarcar o pessoal que trazia a bordo para uma hospedaria, onde
lhes foram servidos alimentos frescos. Pouco depois faleciam treze homens por comerem com muita sofreguidão, tendo os estômagos vazios, devido ao estado de grande debilidade pela fome que passaram durante a viagem. Das mulheres que vinham no navio, três casadas com soldados e uma solteira, só esta ficou de quarentena e impedida de pisar em terra, por estar tuberculosa. A curiosidade dos moradores não descansou até saber quem eram aqueles andrajosos, um grupo de militares húngaros, refugiados das prisões russas de Petropowlowski. Vinham de muito longe, sob o comando do barão Maurício Augusto de Benyowsky, homem de 30 anos de idade, natural de Verborwa, atual Eslováquia, filho de um general austríaco, conde Samuel de Benyowsky, e de uma baronesa húngara, Rosália Révay. De temperamento revolucionário, Maurício andou envolvido em várias polémicas que o levaram à prisão e fizeram dele um fugitivo. Numa rebelião contra o domínio dos russos sobre a Polónia, acabou sendo aprisionado com os seus soldados e com eles exilado para Kamechateca. No dia seguinte à sua chegada a Macau, Maurício jantou em casa do governador na companhia de vários membros do clero, interessados na conversão dos tripulantes, tendo fi-
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Jorge, Cecília & Beltrão Coelho, “Viagem por Macau”, Vol. I, Séculos XVII-XVIII, p. 163.
2
Ibidem, p. 160.
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cado assente entre todos fazer-se uma visita ao mandarim, que os recebeu com um chá de cortesia. Nesse encontro, o conde aproveitou a amabilidade de um dominicano, que se prestou a dar-lhe auxílio, para fazer negócio com peles de arminho, de castor e zibelina, que ainda lhe restavam de alguns milhares que havia trazido da Rússia. O quadro geopolítico da Europa dessa época registava mudanças significativas. Perdurava uma forte rivalidade entre a Inglaterra e a França desde a Guerra dos Sete Anos, guerra em que Maurício lutou como oficial e dela desertou, sendo depois julgado por apostasia contra o catolicismo2. Os conflitos aqui e além entre as nações europeias criavam um clima de tensão latente pelo domínio de matérias-primas e na conquista de novos mercados. Os navios europeus das Companhias de Comércio rondavam por Macau, que no início dos anos setenta do século XVIII gozava de certo desafogo, comparativamente às décadas anteriores. Um sofisticado entendimento entre os comerciantes e as autoridades chinesas, beneficiando uns e outros do comércio do ópio, proporcionava maior volume nas transações em Cantão, único porto da China aberto ao comércio internacional. A afluência de estrangeiros em terras do Oriente na demanda dessa preciosa
Estranha embarcação
mercadoria, denominada anfião, era cada vez maior. Os primeiros socorros de roupas e alimentos aos navegantes ficaram a cargo das senhoras da cidade, benfeitoras com posses para exercerem uma ação social junto dos mais desfavorecidos. Prestaram-se a alimentar aqueles famintos, a forneceremlhes roupas, vestindo as mulheres com os seus próprios trajes, e a receber a senhora retida na corveta, que de tão magra mais parecia uma criança. O médico da cidade avisou que Aphanasia sofria de tísica, doença contagiosa e para a qual não havia cura, hoje conhecida por tuberculose, devendo ficar de quarentena na embarcação. Alguém havia de encarregar-se de lhe levar o que fosse necessário. Dona Flipa Pereira e a sua cunhada Mariazinha, esposa de Simão Vicente Rosa, então Procurador do Leal Senado, foram das primeiras senhoras a darem assistência aos viajantes em resposta ao apelo dos padres das Paróquias. Na igreja tinham ouvido críticas e comentários a respeito daquela gente e D. Filipa não se conteve: – Que miseráveis e andrajosos! Dizem mesmo que nem todas as mulheres, vestidas como tal, o são. Não acha esquisito? – Muito estranho, na verdade! Aquela história de vir a bordo uma senhora que faleceu durante a viagem, parece muito mal contada. Pediram ao governador Saldanha para lhe dar sepultura honrosa, num lugar onde não houvesse outros mortos, insistindo para que o funeral fosse assistido pelo barão. Afinal, deramlhe um enterro ordinário. – Então a Mariazinha não sabe por quê? Dois frades franciscanos curiosos, intrigados com o assunto, durante a noite foram espreitar o cai-
Imagem retirada de “Viagem por Macau”, Vol. I p. 160.
xão e viram que o corpo do defunto era de um homem e não de uma mulher. – Credo, cunhada! Grande atrevimento dos frades. Faço ideia qual não foi a indignação do nosso governador. – Agora cada um diz sua coisa, ou o que lhes vem à cabeça. O conde Maurício afirmou que o defunto era um príncipe da Europa, outros alegam que era um bispo, mas a verdade só Deus sabe!
– Trafulhices, que aumentam as desconfianças sobre esse estrangeiro. Um húngaro aventureiro que lutou ao lado dos confederados contra a Rússia, mas acabou derrotado e preso, condenado ao exílio com trabalhos forçados. – Não me parece, cunhada Mariazinha. A tísica contou àquele senhor padre jesuíta muito entendido em línguas, quando o autorizaram ir a bordo, ter sido o conde seu professor e andar livremente por todo o
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Presídio, só recolhendo à cela para dormir. Decerto, por não ter como escapar. Mas no mar, esse Maurício Augusto Benyowsky foi um mau comandante. – Nem soube manter a disciplina entre os seus homens. Deixou alguns vestirem-se com os fatos da pobrezita, que de tão magra já nem lhe serviam. – Castigo de Deus! Também ela se vestiu de rapaz para viajar com um homem casado, que agora confessa só ter sabido depois de embarcar. Um amor que nunca poderia dar certo, mesmo que não tivesse denunciado ao pai o plano dele em fugir de Kamechateca. – Foi na intenção de o reter perto de si, coitada! Mas sofreu a mágoa da morte do pai e o abandono do homem que ama, por quem jogou o seu destino. Ainda ganhou uma fraqueza nos meses em que navegou por alto mar sem alimentos, pelo que não admira que esteja tísica. – Afinal que línguas falam eles, que ninguém os entende, mas já todos conhecem a sua história? – Não sei, cunhada Filipa. Tanto os padres como o governador são homens letrados. Estudaram línguas estrangeiras, que à mistura com o latim bastam para se entenderem. – Tem razão. Se esse comandante é dotado de grande cultura, na aflição em que se encontra, depressa passou as barreiras da fala. Só tenho pena da Aphanasia, tão sozinha neste mundo. – Ninguém a mandou aventurar-se a tudo por uma louca paixão. Largou a mãe e as irmãs para vir atrás dele, sujeita a privações por esses mares sem fim, vindo a descobrir que ele em nada lhe poderia valer. Uma lou-
cura que não se permite a uma mulher. – Eu admiro-a por isso mesmo. Por ter sido uma mulher de muita coragem. Só tenho pena da mãe, quando imagino o seu sofrimento pela leviandade da filha. Se fosse uma das suas meninas a fugir de casa… – Nem pense nisso, cunhada Filipa! Quem morria de desgosto era eu. Não tarda, Maurício vai-se embora e ela fica por aqui, sem que alguém se lembre dela. – As mulheres sabem que não podem escolher um homem para casar, seja em Macau ou em qualquer parte do mundo. São eles que nos escolhem, ou os nossos pais. Restanos aceitar o destino sem revolta. A história de Maurício Augusto de Benyowsky e de Aphanasia Nilow tinha ainda muito por contar. Na cidade, todos estavam interessados em conhecer a vida deste militar, que registava no seu Diário os eventos mais significativos. Logo ao terceiro dia de ter ancorado recebeu uma oferta de mil piastras de ouro, quarenta e duas peças de pano azul e doze peças de cetim preto, com o pedido de fornecer uma cópia do seu manuscrito, que ele recusou entregar, prometendo apenas um resumo histórico, para não ficar prejudicado3. O conde conseguiu entender-se bem com o governador Saldanha, que no mês seguinte o acolheu em sua casa por ter adoecido com febres altas, ali ficando retido quase um mês até ficar restabelecido. Enquanto permaneceu no palácio do governador, travaram-se sérias discussões com as autoridades síni-
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Ibidem, p. 165. Teixeira, P. Manuel, “Macau no Séc. XVIII”, p. 554.
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cas por causa da estada no território deste estrangeiro, por terem os ingleses que circulavam pelo Oriente informado que Maurício era um desonesto desertor, um pirata que deveria sair rapidamente de Macau se não fosse entregue ao Suntó de Cantão. Um periódico de Londres, The Annal Register, depois da notícia se ter espalhado entre os navios da Companhia das Índias, relatava como fonte segura de S. Petersburgo, o seguinte: «O pretenso Barão e General dos Confederados era um verdadeiro aventureiro e astuto em grau considerável da sua vocação; foi condenado a trabalhos forçados em Kamchatka por crimes cometidos, ou em Petersburgo ou em Moscovo» 4 . Para desmentir tais acusações, Maurício decidiu falar diretamente com o Vice-rei de Cantão. Ao notar certo constrangimento no governador Saldanha, diligenciou pessoalmente essa entrevista, por intermédio do senhor Hiss, por estar interessado em visitar Pequim. Depois do Suntó ficar convencido de que tais acusações eram falsas, levantou-se um outro dilema: ou aproveitava a oportunidade de viajar até Pequim, ou regressava à Europa com os homens que restavam, por ter conseguido transporte num navio francês a sair de Cantão. O conde optou por abandonar o projeto de conhecer Pequim. Entretanto, mais homens da tripulação e três mulheres tinham falecido, embora a cidade continuasse a socorrer aquela gente, por ter o barão negociado a corveta e as armas que traziam a bordo. Mas a ajuda não foi a tempo de salvar Aphanasia, que
O Sonho Chinês o Novo Normal e Uma Faixa Uma Rota
faleceu poucos dias depois. A senhora recebeu um funeral condigno, sendo sepultada na igreja de S. Paulo. Aos poucos, a cidade foi tomando conhecimento da história daquele amor que nasceu na Sibéria, em grande parte através da voz de Aphanasia, que antes de fechar os olhos para sempre desabafou as suas mágoas ao jesuíta, que a ouviu como se fosse em confissão, e a absolveu dos pecados. Soube-se então, que naquele presídio de Kamechateca não havia grandes condições de sobrevivência e os guardas deram espingardas aos prisioneiros, para caçarem e poderem alimentar-se, por falta de provisões. Maurício de Benyowsky aproveitou para caçar também animais de pele valiosa, que mais tarde lhe serviriam de moeda de troca à sua liberdade, mas andava indignado com a situação de cativo, não só pela clausura de se ver afastado da civilização, mas pela falta de tudo a que estava habituado. Para preencher o vazio cultural, inerente a qualquer recluso, abriu uma escola para os soldados ali aquartelados. Quando o governador do Presídio tomou disso conhecimento, convidou Maurício para educar as filhas em aulas particulares, uma vez que estavam muito longe da cidade, onde poderiam adquirir maior cultura. A filha mais velha, Aphanasia, que teria de ser a primeira a casar, apaixonou-se perdidamente pelo professor. Admirava-lhe a sabedoria, o modo sedutor como falava, o tom melodioso da sua voz, a elegância do porte e, apesar de ele não exteriorizar grande afeto por ela, deixou a sua imaginação desenvolver dentro de si um amor, que se tornou superior à sua vontade e lhe ditou a sorte do seu futuro.
Lisonjeado pelas reações que provocava na jovem, Maurício dedicavalhe mais atenções do que às irmãs, também suas alunas. A mãe apercebeu-se da inquietação em que a filha andava, numa alegria desacostumada e um nervosismo constante, que muito a afligia. A paixão pelo professor fazia dela a melhor aluna, mas o seu comportamento obsessivo revelava facetas de um amor desequilibrado, difícil de esconder. A mãe avisou-a: – Tem cuidado com os males do coração se queres evitar sofrimentos. Nunca te percas de amores por um estrangeiro, cujas famílias desconhecemos. – Maurício é um fidalgo, senhora minha mãe. É barão e também visconde, por ser filho do conde Benyowsky, general de cavalaria. – Ele pode dizer que é visconde, barão, até pode dizer que é rei, que nada podemos averiguar. Se este Presídio fosse visitado por outros jovens militares, talvez não te deslumbrasses com o Maurício. Pela idade que tem deve ser homem casado, pelo que deves comportar-te com modos decentes para não envergonhares o teu pai. O nome do governador Nilow sempre foi respeitado aqui e em toda a parte. – É um fidalgo, um jovem militar com conhecimento das ciências e de literatura, que poucos homens possuem. – Por essa razão o vosso pai lhe confiou o ensino na educação das filhas enquanto ele estiver por cá. Não tarda, tomará outro destino. – Não creio, minha mãe – respondeu despeitada. Aphanasia estava enganada a respeito de Maurício. Homem casado com a filha de um alemão, dono da casa onde se refugiara antes de participar na rebelião da Polónia contra
o domínio da Rúsia, já havia arquitetado um plano para se evadir da prisão junto com os seus companheiros de infortúnio. Logo que chegasse a primavera e conseguisse uma fortuna considerável em peles, para se aguentar na viagem, havia de sair dali. Um dia descaiu-se numa confidência a Aphanasia em falar desse projeto de fuga, que ela tentou evitar para que ele ficasse junto de si, denunciando-o ao pai. Depois arrependeuse, porque o governador Nilow enfrentou os prisioneiros com os seus homens de armas numa luta feroz, de que resultou a sua morte. Senhor da situação no campo militar, Maurício Augusto de Benyowsky apoderou-se da corveta S. Pedro e S. Paulo, para nela embarcar até à Europa com mais os 95 homens que comandava. Assim que o tempo permitiu, em maio de 1771, largou rumo ao Oceano Pacífico. Enquanto ele preparava o embarque, Aphanasia decidiu rapidamente o seu destino. Não queria viver afastada daquele amor, que a consumia numa ansiedade angustiante, tão intensa como a lenha a ser devorada no braseiro, e vestiu-se com roupas do pai para seguir atrás dele. Pegou em algumas joias, nos vestidos que mais gostava, numas broas de pão, um frasco de mel e fez duas trouxas com mantas, atadas nas quatro pontas, duas a duas em diagonal, que carregou aos ombros até à corveta. O pai havia falecido na contenda e ela não seria um peso a mais para sua mãe que, entregue à sua dor, nem daria pela sua falta. Seguiria naquele navio atrás de Maurício, nem que fosse até ao fim do mundo. Confiante em conquistar o coração do visconde, tomou para si o ilustre nome de Aquiles. Irredutível na sua vontade, esperou que todos se re-
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colhessem e escapou de mansinho até à cavalariça. Pegou num cavalo pelas rédeas, que montou mais adiante para que ninguém ouvisse o galope no silêncio da noite, e dirigiu-se para o cais. Na azáfama da largada, nenhum dos marinheiros reparou que ela subiu a bordo. Mas a má sorte envolveu a pobre menina apaixonada. Um dos soldados conseguiu roubar-lhe a trouxa dos vestidos com um safanão, enquanto ela corria pelo convés para entrar no corredor das cabines até à porta, onde se lia: “capitão do navio”. Ali sentiu-se em segurança. Horas depois, logo que o navio entrou em alto mar, Maurício regressou ao camarote e, num misto de surpresa e aflição, perguntou-lhe: – Que fazes aqui, menina? Acaso pensaste que vou tomar conta de ti? Não recordo ter-te prometido o que quer que fosse para te levar a tamanha loucura! Seguimos rumo incerto para a Europa e o melhor é saíres quanto antes numa baleeira de volta para casa. – Jamais te abandonarei! Onde fores irei também, porque decidi ser tua companheira para o resto das nossas vidas – disse com voz determinada. – Que diabo, Aphanasia! Uma boca a mais para comer, uma mulher solteira no meio de tantos homens, isso só pode trazer azar à viagem! – Ninguém dará por mim dentro desta cabine. Tenho biscoitos, mel e todo o meu amor para te dar. Eu não sei remar e já estamos muito longe de terra – replicou desiludida, por ver que o seu amor não era correspondido na dimensão que a sua mente imaginara. – Sou um homem casado. Jamais poderei ficar contigo. – Nunca me falaste da tua mulher. Acaso sabes se ela ainda espera por
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ti? O mundo dá muitas voltas. Talvez um dia… – lamentou a jovem com lágrimas a rasarem-lhe os olhos, por ele ter confirmado tão amarga notícia. Já não havia nada a fazer. Navegavam rumo a Cantão e o melhor seria aguardar pelo desenrolar dos acontecimentos. Maurício pensou que ter uma mulher a bordo para o servir numa viagem com imprevisível duração, talvez não fosse uma oferta para rejeitar. Tentou amenizar a situação, secando-lhe as lágrimas com carícias, enquanto um sinal de desilusão trazia Aphanasia à crua realidade. Nunca poderia confiar naquele amor. Se o barão era um bom estratega militar, o mesmo não se poderia dizer das suas qualidades ao comando de um navio, quando fortes tempestades assolaram a corveta S. Pedro e S. Paulo, desviando-a da sua rota. Durante o temporal Aphanasia sentiu-se esventrar de tantos enjoos. Os soldados, alguns deles já contaminados desde o Presídio pela tuberculose, sujavam o convés de vómitos que as ondas altas e furiosas limpavam sem cessar. Quando o temporal amainou tiveram dificuldade em identificar a posição marítima em que se encontravam, de latitude e longitude, por falta de instrumentos de navegação e de conhecimentos náuticos. Arrastados para o Sul do Alasca foram dar às ilhas Aleutas, situadas a Norte do Oceano Pacífico, rumo que ele regista no seu Diário fazer parte de um projeto de exploração marítima. Depois de se abastecer, Maurício viu-se obrigado a voltar para trás. Naquele arquipélago adquiriu provisões alimentares em troca de uma baleeira e das joias de Aphanasia, que não conseguiu negar essa generosidade ao seu amado, na espe-
rança de lhe ficar reconhecido. A ajuda não deu para muito tempo, porque rumaram em direção a Oeste e o navio foi ter às ilhas do Japão. Ali ninguém recebeu qualquer apoio, nem licença para desembarcar, ou mesmo para se banhar nas águas do mar, porque o país do Sol Nascente estava fechado aos estrangeiros. Famintos, fracos e doentes, alguns soldados sucumbiram, sendo os seus corpos atirados ao mar. Maurício tentou seguir para Sul na ideia de chegar a Cantão. Aphanasia passou os piores dias da sua vida durante aquela viagem, que se arrastou por longos quatro meses. Minada pelo desgosto de se sentir rejeitada pelo homem que tanto amava, sem as mesuras de outrora mesmo quando usava da sua dedicação, tornou-se apática, triste e muito magra, devido à fome a que ficou sujeita por falta de víveres. Desinteressou-se das joias, de cuidar da sua imagem, vendo os mareantes divertirem-se com os vestidos que lhe roubaram, sem que Maurício os metesse na ordem. Aliás, o calor era tanto que Aphanasia não precisava dos vestidos para cobrir o fantasma do seu esqueleto ambulante. O conde deixara de ser sedutor, como fora no Presídio. Tornara-se austero, talvez minado pelo desespero de ver toda a tripulação definhar com o sofrimento a que fora submetida ao entrar naquela aventura. Do seu contingente restavam apenas 65 homens. Em setembro, o navio aproximou-se do Delta do Rio das Pérolas, onde navegavam inúmeros juncos e navios com bandeiras de nacionalidades diferentes. As autoridades encaminharam a corveta para a ilha da Taipa, onde se viam muitos pescadores chineses nas suas sampanas, com um ar amistoso, deixando os filhos seminus acenarem em sinal de
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acolhimento. Tinham chegado a bom porto. Imediatamente, Maurício Augusto de Benyowsky pediu para falar com o capitão daquele lugar a fim de expor a sua situação. Antes de desembarcar do navio aviou Aphanasia: – Vou providenciar socorro para os meus homens. Em terra escreverei uma carta a minha mulher para sair da Hungria em direção a Paris, onde nos devemos juntar. A partir de agora ficarás por tua conta. – Que crueldade, Maurício! Não conheço ninguém, sinto-me fraca e doente, quem me poderá valer? – Estamos todos nas mesmas circunstâncias. Agora é cada um por si – concluiu, virando as costas, para se desenvencilhar dela. Assim ficou aquela menina enclausurada no navio de quarentena, que não chegou a terminar por ter falecido alguns dias depois. O governador atuou de comum acordo com o Senado neste assunto dos refugiados, tendo todos os homens bons da cidade, na reunião camarária a 16 de outubro de 1771, tomado conhecimento da proposta que consta do Livro das Vereações, onde se pode ler:
«Propoz o Governador que a gente da Ungria que aqui veio se lhe deve dar alguma couza por conta da hospitalidade – a qual proposta, sendo ouvida e bem entendida por todos, assentarão, que visto eles terem requerido ao Governador se lhe vendesse a sua embarcação, e esta com efeito se vendeo […] em publica praça por mil e setenta taéis, e que além disso tem as suas armas, as
quais se mandarão avaliar por este Senado, e se lhe pagará seo valor: e assim mais se lhe desse por hospitalidade a despeza da comedoria de três dias, e se lhe pagassem as cazas a dez patacas por mez, e que o produto da chalupa o Procurador deste Senado lhe mande entregar, de que tomará consto. E aqui se houve o dº Conselho por acabado…»5. Vendida a embarcação em hasta pública na presença do juiz ordinário e aceite por todos as condições de apoio, os refugiados permaneceram instalados em duas casas da cidade até meados de janeiro de 1772, altura em que conseguiram navio em Cantão para regressarem à Europa. Os gastos com os náufragos geraram críticas do governo de Goa, como se pode ler numa carta do vice-rei D. João José de Melo, dirigida ao Senado, datada de 28 de abril de 1772, onde dizia o seguinte:
«Vi a conta em que esse Senado me participa a boa Hospitalidade que deo aos Ungaros que arribarão a esse porto em lastimozo e mizerável estado. E ainda que essas acçoens são muito agradaveis por que são generozas e cheyas de piedade, com tudo deve o Senado em outras ocazioens semelhantes ter a consideração de que o cabedal que administra não hé seo, para o regular com toda a moderação e prudencia. Nosso Snr…»6. Maurício partiu de Macau para se juntar à sua esposa em Paris. Aí, convenceu o governo francês em darlhe auxílio para fundar uma colónia na ilha de Madagáscar, tendo rece-
bido para esse fim um navio e um grupo de soldados. Em 1773, já instalado na ilha, fez-se passar por neto do chefe local, a quem raptaram uma filha que venderam a estrangeiros, forjando uma história em torno dessa senhora, dizendo ser seu filho. Chegou a levar testemunhas de Paris para confirmarem o seu enredo. Três anos depois foi eleito rei de Madagáscar pelos indígenas, que se agradaram da sua governação, e tentou fazer uma aliança com a França. Como não conseguiu, devido à adversidade de outros europeus, procurou apoio na América, onde arranjou outro navio e homens de armas para atacar a feitoria francesa, ajudado pelos indígenas. Com eles fundou uma nova cidade em Madagáscar, mas acabou por morrer em batalha contra os franceses.
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A. H. M., Códice nº 54: Termos dos Conselhos Gerais desde 6-9-1752 a 27-10-1786, f. 55, verso e 56. A. H. M., Códice nº 54: Livro de Registos das Ordens do Governo Superior de Goa, desde 12-4-1768 até 8-6-1773, f. 99.
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Gabinete Português de Leitura:
Símbolo do Universo Português no Recife Maria de Lourdes Hortas
O Gabinete Português de Leitura de Pernambuco já comemorou 167 anos de existência. A instituição, idealizada pelo comendador Miguel José Alves, chanceler do Consulado de Portugal em Pernambuco, foi fundada no dia 3 de novembro de 1850 pelo médico português João Vicente Martins. Numa análise simplista da sua história, podemos encontrar três fases distintas. Num primeiro momento, a Casa foi aquilo que, ao fundá-la, João Vicente Martins tinha em mente: um ponto de amizade e solidariedade entre aqueles que, deixando suas terras de além-mar, aqui se enraizaram, como num segundo chão pátrio. Objetivo claramente exposto no artigo primeiro dos Estatutos:
Unir os portugueses residentes em Pernambuco, fomentando a sua unidade moral e congregando-os ao amor à Pátria portuguesa e ao Brasil. No fim do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, o Gabinete Português de Leitura tornou-se um dinâmico centro de convívio, cultura e lazer, correspondendo às circunstâncias sociais da época. Para os comerciantes lusos que tinham seus estabelecimentos no centro da cidade, ir ao Gabinete fazia parte da rotina. Lá se encontravam, trocavam ideias, falavam de saudade, liam os jornais que, por correio marítimo, chegavam com atraso, mas lhes tra-
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ziam notícias das suas vilas e aldeias. São desses tempos os saraus memoráveis, onde as famílias lusas se reuniam, para prestigiar artistas de fora, locais ou a prata da casa, como, por exemplo, a Tuna Lusitana, formada por membros da instituição. A vida associativa florescia, resgatando a memória da identidade nacional e preservando a História que o tempo poderia lançar no esquecimento. Nessa época outras associações portuguesas foram surgindo, algumas delas fundadas no próprio GPL, como foi o caso do Real Hospital Português de Beneficência. Sem finalidade lucrativa, mantido a expensas próprias, graças ao patrimônio formado por doações de abastados portugueses aqui radicados, o Gabinete tornou-se ponto de referência cultural no Recife, reconhecido em 1949 como entidade de utilidade pública, o que lhe trouxe, e continua trazendo, medalhas, condecorações e diplomas. Foi este, sem dúvida, o segundo momento na história do GPL. A biblioteca, com valioso acervo, frequentada por pesquisadores e estudiosos, entre eles personalidades ilustres, como Gilberto Freyre, Mauro Mota, César Leal, Ariano Suassuna, Jordão Emerenciano e tantos outros, já registrava no livro de visitas os autógrafos de Joaquim Nabuco, Ramalho Ortigão, Gago Coutinho, Sacadura Cabral,
Júlio Dantas, Clóvis Beviláqua, aos quais vieram somar-se outros, mais recentes, como por exemplo, o de D. Helder Câmara, Mário Soares, o do escritor José Saramago e o do atual presidente da República portuguesa, Marcelo Rebelo de Souza. Em 1983 surgiu a revista Encontro e em 1990 o informativo A Cidade e as Serras, publicações mantidas até hoje. Em seu itinerário, o secular GPL foi se adequando a novas realidades, priorizando sempre os eventos culturais e a comemoração de festas cívicas, com destaque para o Descobrimento do Brasil e o 10 de junho – dia de Portugal, de Camões e da Comunidade Portuguesa, onde sócios e amigos da casa estreitam laços de fraternidade. A par disso, são feitas exposições de artes plásticas e de temas referentes à Lusofonia. Atualmente sob a presidência de Celso Stamford Gaspar, podemos dizer que a instituição vive o seu terceiro momento, passagem para nova fase. Ao comemorar 167 anos de dedicação à causa cultural, o GPL abre-se a propostas e parcerias culturais, como por exemplo a que assinou com o Instituto de Macau e com o Instituto Camões de Lisboa, para parceria em programas educativos, voltados para a cultura portuguesa.
Os nossos parceiros
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IIM – 2016: principais actividades Seminários e Encontros 8ª EDIÇÃO DO SEMINÁRIO SOBRE O PAPEL DE MACAU NO INTERCÂMBIO SINO-LUSO-BRASILEIRO
Na Confederação Nacional do Comércio.
Na Escola Superior de Guerra.
A sessão inaugural decorreu a 7 de Novembro, de manhã, na Escola Superior de Guerra, do Rio de Janeiro, continuando à tarde, na Confederação Nacional do Comércio (CNC), também no Rio de Janeiro. Foram enfatizadas as potencialidades e formas de aumentar os intercâmbios culturais e académicos entre a China, o Brasil e os outros países de língua portuguesa, e também Macau como plataforma para contactos entre os referidos países. Na sessão da manhã estiveram presentes os cerca de 100 alunos dos cursos de oficiais superiores daquela importante instituição militar, com intervenções do Presidente do IBECAP, Severino Cabral, e do Vice-Presidente do IIM, José Amaral, tendo na sessão da tarde, além destes dois dirigentes das instituições co-organizadoras, usado também da palavra o representante da Subsecretária Geral da Ásia e do Pacífico do Ministério das Relações Exteriores do Brasil e um representante da Embaixada da República Popular da China. No dia 1 de Dezembro, o Seminário continuou em Macau, no auditório do IIM, com uma sessão presidida pelo Presidente do IIM, Jorge Rangel, subordinada ao
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tema “Macau e os Países de Língua Portuguesa e os desafios das novas rotas chinesas no século XXI”. Os intervenientes reflectiram sobre a nova Rota da Seda no século XXI, as suas implicações e vantagens competitivas, e o interesse dos países lusófonos em apostarem no mercado chinês. As várias intervenções ficaram a cargo dos académicos Fernanda Ilhéu, Paulo Duarte e Severino Cabral. A 6 de Dezembro realizou-se nova sessão na capital chinesa, co-organizada pelo Centro de Estudos dos Países de Língua Portuguesa (CEPLP) da Universidade de Gestão Internacional e de Economia, pelo IIM e pelo Instituto Brasileiro de Estudos da China e Ásia-Pacífico (IBECAP), tendo participado nesta sessão o Embaixador de Portugal em Pequim, Jorge Torres Pereira, e o 1º Secretário da Embaixada do Brasil.
No Centro de Estudos dos Países de Língua Portuguesa (Universidade de Gestão Internacional e de Economia).
IIM – 2016: principais actividades
Nesta sessão intervieram também, entre outros, o VicePresidente do IIM, o Presidente do IBECAP e a Profª Fernanda Ilhéu, além do Prof. Wang, Director do CEPLP. Em todas as sessões deste Seminário foram apresentadas edições do IIM sobre os temas abordados.
No local estavam também expostas, em pré-apresentação promovida pelo IIM, fotografias de “Aves de Macau” do fotógrafo macaense Roberto Badaraco.
COMEMORAÇÃO DO CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE PADRE BENJAMIM VIDEIRA PIRES
ENCONTRO DAS COMUNIDADES MACAENSES
O IIM assinalou no dia 8 de Janeiro o 100º aniversário do nascimento do Padre Benjamim Videira Pires, SJ., com uma palestra proferida pela historiadora Beatriz Basto da Silva. A sessão contou com a apresentação de edições que recordam o Padre Benjamim Videira Pires, considerado como uma das figuras mais marcantes da vida cultural de Macau da segunda metade do século XX, e a vasta obra que deixou.
O Encontro contou com a habitual participação do IIM, tendo decorrido em Macau de 26 de Novembro a 2 de Dezembro, e registado mais de 1.200 inscrições.
Beatriz Basto da Silva apontou diversos aspectos desta figura ilustre que deixou marca no Oriente, em especial na vida cultural de Macau, tendo, no final da sessão, muitos dos participantes partilhado memórias sobre o homenageado.
FESTIVAL DA LUSOFONIA EM GOA
Na manhã de 30 de Dezembro, no Centro de Ciência de Macau e, integrada no programa do Encontro, realizou-se uma sessão cultural organizada pelo IIM, cujo programa incluiu comunicações da Fundação Macau, da Associação dos Macaenses, do Prof. Henrique “Quito” d’Assumpção e do Prof. Ming K. Chan. Foi também apresentado o quadro a óleo “A Lorcha” de Marciano Baptista, restaurado pelo Museu do Palácio Imperial de Pequim. Depois do lançamento de cerca de dez novas edições do IIM, foi entregue o troféu do “Prémio Identidade”, instituído pelo IIM, à Presidente da Casa de Macau em Portugal, em testemunho público pelos serviços prestados a Macau por ocasião do seu 50º aniversário, finalizando a sessão com um convívio.
Macau esteve presente, através do IIM, na 2ª edição deste Festival, com a exposição “Macau – Uma História de Sucesso”, inaugurada a 20 de Fevereiro. A mostra de foto-
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grafias, feita com o apoio da Fundação Macau, retrata a cidade e as ilhas, o património e o seu desenvolvimento físico, as gentes e festividades, a economia e a educação. Na Galeria de Artes da Biblioteca de Goa, local da exposição, foram também projectados vídeos sobre Macau, sendo um de Sérgio Perez, com uma visualização aérea obtida através de um drone, e outro de Silvie Lai e James Jacinto, divulgando as variadas vertentes do território. Registou-se uma presença muito grande de público, e muita gente a ficar positivamente surpreendida com as imagens exibidas da RAEM, especialmente com o seu crescimento e a preservação e a valorização do legado luso. Esta exposição já tinha sido apresentada em 2015, em Lisboa, São Francisco e Oakland (EUA), Toronto (Canadá) e nas cidades brasileiras de Santos, Rio de Janeiro e Recife. Aproveitando a ocasião, o IIM estabeleceu contactos muito úteis com a Sociedade Lusófona de Goa e outras entidades culturais e associativas locais, destacando-se entre elas o Consulado-Geral de Portugal e a delegação da Fundação Oriente.
Idêntico apoio foi concedido também ao Club Amigu di Macau, de Toronto, quando comemorou o aniversário da sua fundação.
5º FLAEL O IIM esteve presente no V Fórum de Linguística Aplicada e Ensino de Línguas (FLAEL), que decorreu de 16 a 18 de Novembro na cidade de Fortaleza, Brasil, através do seu Vice-Presidente e da Profª Sónia Ao, da Universidade de Macau, que apresentou uma comunicação, tendo também estado presente neste importante Fórum a Dra. Ana Cigarro, técnica superior da Direcção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ) da RAEM.
ENCONTROS COM A ASSOCIAÇÃO DOS EMBAIXADORES DO PATRIMÓNIO DE MACAU
Este Festival, iniciativa da Sociedade Lusófona de Goa a que o IIM se associou, realizou-se em Panjim de 22 de Janeiro a 22 de Fevereiro e contou com um programa diversificado, incluindo seminários e palestras, exposições fotográficas e música do mundo lusófono.
FESTAS DAS CASAS DE MACAU NO DIA 24 DE JUNHO – DIA PADROEIRO DE MACAU
DO
A 11 de Abril decorreu uma reunião entre responsáveis do IIM e da Associação dos Embaixadores do Património de Macau. Foi discutida a cooperação em futuros projectos sobre questões ligadas ao património de Macau, tendo a Associação informado do seu interesse em organizar uma digressão a Portugal no intuito de visitar alguns dos principais lugares históricos e assim poder conhecer o património cultural português e as políticas da sua preservação. O IIM apoiou as Casas de Macau em Sydney, Toronto e o Centro Cultural de Macau em Fremont, San Francisco (que engloba três instituições macaenses) na celebração dos festejos do dia 24 de Junho, Dia do Padroeiro da Cidade de Macau. Além de exposições de fotografias, as Casas organizaram convívios em que participaram muitos associados e convidados.
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Novo encontro foi realizado em Lisboa dos directores da Associação com o Presidente do IIM, em Junho, por ocasião da sua deslocação a Portugal para participarem numa conferência internacional sobre a valorização do património, realizada na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
IIM – 2016: principais actividades
Exposições “TERRITÓRIO”
de um novo nicho no mercado turístico do território dirigido aos amantes da observação de pássaros que estejam interessados em conhecer as espécies locais. Realizou-se em Lisboa, entre de 20 de Outubro e 20 de Novembro, no Centro Científico e Cultural de Macau, a exposição fotográfica “Territórios”, de António Conceição Júnior.
Roberto Badaraco partilha frequentemente as suas fotografias nas redes sociais – não só de aves, mas também dos ecossistemas naturais do território –, tendo as suas fotos atraído já a atenção de muitos internautas.
“ÁRVORES E ARBUSTOS”
Na inauguração, que contou com a presença de grande número de convidados que encheram o vasto salão de exposições e em que esteve também presente o Autor, foi também apresentado um álbum fotográfico contendo todos os quadros em exposição.
AVES DE MACAU Da autoria de Roberto Badaraco, dezenas de fotografias de “Aves de Macau” foram expostas no Centro de Ciência de Macau entre os dias 2 e 7 de Dezembro. A mostra retratou aves nativas e de arribação, que registam em Macau mais de quatro centenas de espécies no total. Com o apoio da Fundação Macau, o IIM procurou com esta exposição mostrar as possibilidades de exploração
Entre 29 de Dezembro de 2016 a 13 de Janeiro de 2017 estiveram em mostra, no auditório do IIM, desenhos da flora de Macau, da autoria das ilustradoras Catarina França e Mafalda Paiva que incluem gravuras que irão fazer parte de um livro, já no prelo, que apresenta a história da arborização em Macau. Intitulada “Árvores e Arbustos de Macau”, a publicação é da autoria de António Paula Saraiva, engenheiro agrónomo que trabalha em Macau desde 1985 e que se tem dedicado ao estudo dos seus jardins, botânica e ambiente.
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Com o apoio da Fundação Macau, a iniciativa pretende introduzir esta temática junto do público, para melhor conhecer o esforço que tem sido feito para preservar os espaços verdes da cidade.
NAS CASAS DE MACAU EM TORONTO E SYDNEY
Figueira da Foz, no Forte de S. João Baptista da Foz, no Porto, de 31 de Março a meados de Abril, e na Biblioteca Municipal de São João da Madeira, também em Abril. A exposição teve a colaboração dos Serviços de Turismo de Macau, tendo sido exibidos vídeos sobre Macau, de Sérgio Perez e de Silvie Lai e James Jacinto.
E EM SALVADOR (BRASIL)
Cerca de 50 fotografias sobre Macau foram expostas na Casa de Macau em Toronto. “Macau – uma história de sucesso”, iniciativa do IIM, realizada com o apoio da Fundação Macau, juntou na inauguração os sócios da Casa e seus convidados, a que se seguiu um debate e um jantar de convívio. Esta mesma exposição havia sido já apresentada em Sydney, pela respectiva Casa de Macau, integrada no dia do Padroeiro da Cidade.
NA FIGUEIRA DA FOZ E NO PORTO
Igual mostra teve lugar no Gabinete Português de Leitura de Salvador (Bahia), de 10 de Novembro a 30 de Janeiro e a cuja inauguração compareceu um grande número de visitantes. No dia da inauguração foi assinado um protocolo de cooperação entre aquele Gabinete e o IIM, tendo na ocasião o Vice-Presidente do IIM, José Amaral, feito uma intervenção sobre Macau e as suas realidades, que suscitou um animado debate com a assistência, tendo no final sido apresentado um álbum fotográfico de Macau, edição do IIM. Refira-se que o IIM é a única instituição cultural que possui protocolos de cooperação com os três Gabinetes de Leitura do Brasil: Real Gabinete Português de Leitura, do Rio de Janeiro, Gabinete Português de Leitura do Recife (Pernambuco) e Gabinete Português de Leitura de Salvador (Bahia).
O mesmo conjunto de fotografias “Macau – uma história de sucesso” foi também exposto de 26 de Fevereiro a 6 de Março no salão principal do Casino da Figueira, na
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IIM – 2016: principais actividades
EXPOSIÇÃO “MACAU É UM ESPECTÁCULO”
Prémios PRÉMIO IDENTIDADE
A exposição de fotografias “Macau é um espectáculo” decorreu no Castelo de S. João da Foz, no Porto, numa iniciativa conjunta do IIM e da Freguesia de Aldoar, Foz do Douro e Nevogilde, de 19 a 26 de Fevereiro e a 15 de Abril, na Biblioteca Municipal de S. João da Madeira.
Concursos
A Casa de Macau em Portugal foi distinguida com o “Premio Identidade”, instituído pelo IIM, tendo o respectivo Diploma sido entregue pelo Presidente do IIM, Jorge Rangel, numa cerimónia realizada na sua sede em Lisboa, e o troféu entregue, em Macau, durante o Encontro das Comunidades Macaenses.
“PATRIMÓNIO CULTURAL DE MACAU” PRÉMIO JOVEM INVESTIGADOR
Desde 2014 que o IIM tem vindo a realizar um concurso de fotografias intitulado “Património de Macau”, que atraiu mais de uma centena de concorrentes e conta já com a apresentação de mais de três centenas de obras. Esta iniciativa tem tido o apoio da Fundação Macau e a colaboração da Associação de Fotografia Digital de Macau e do Clube Leo de Macau Central. O concurso tem por objectivo aumentar a consciência geral, especialmente entre os jovens e artistas locais, para a existência de uma rica herança cultural no território, retratada no legado patrimonial e nas tradições culturais. As obras premiadas e outras foram este ano expostas entre os dias 6 a 13 de Novembro de 2016, no edifício Ritz no Largo do Senado, com o apoio da Direcção dos Serviços de Turismo.
O concurso aberto entre estudantes universitários de Macau atraiu um número elevado de participantes, cujos trabalhos foram considerados excelentes pelo júri que os apreciou. O Prof. Mok Kai Meng, da Universidade de Macau, atribuiu a classificação mais elevada a Lei Ka Meng, na área de Ciências Aplicadas, pela pesquisa intitulada “Miniaturized Nuclear Magnetic Resonance Platforms for Chemical/Biological Assays with Customized CMOS Integrated Circuits”. Na área de Ciências Sociais, a Profª Anita Chan atribuiu a melhor classificação ao trabalho de Loi Wai Cheng “The Impact of Social Support on the Mental Health of the Visually Impaired in Macao”. Além de um diploma, ambos receberam um prémio pecuniário.
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Lançamento de Livros
“CHINA’S TECHNO NATIONALISM IN THE GLOBAL ERA – STRATEGIG IMPLICATIONS FOR EUROPE”
“PADRE ÁUREO NUNES E CASTRO – MISSIONÁRIO, MÚSICO PEDAGOGO” E “MACAU CONFIDENCIAL”
E
A 23 de Abril realizou-se o lançamento no Clube Militar de Macau de dois livros publicados pelo IIM – “Padre Áureo Nunes e Castro - Missionário, músico e pedagogo” e “Macau Confidencial”. O autor de ambos é o jornalista e escritor João Guedes. O evento contou com uma brilhante actuação do Coro Perosi, que interpretou duas das obras rearranjadas pelo Pe. Áureo Nunes e Castro: o “Te Deum” e a canção chinesa “Donzela junto ao Lago”.
“MACAU – CIDADE, TERRITÓRIO E ARQUITECTURAS”
Este livro, da autoria de Luís Cunha, e publicado em resultado da cooperação estabelecida com o Instituto de Estudos Europeus de Macau, que financiou os trabalhos de investigação, foi apresentado publicamente a 7 de Dezembro de 2016, no auditório do Consulado-Geral de Portugal em Macau. O Autor apresenta uma extensa análise sobre as áreas da tecnologia onde a China está a alcançar patamares muito importantes, reflectindo sobre as implicações estratégicas daí decorrentes para a Europa. A sessão contou com a presença do Cônsul-Geral de Portugal em Macau, Vítor Sereno, e com apresentações do autor e de José Sales Marques, Presidente do IEE.
“MOMENTOS DO INTERCÂMBIO COMERCIAL E CULTURAL COM O ORIENTE” Da autoria do Prof. António de Abreu Freire, esta publicação, editada pelo IIM, foi apresentada no Porto a 12 de Março por Isabel Veloso, evento que contou com a colaboração da Academia do Conhecimento Portuscale. Com grande presença de público, o lançamento dos livros “Macau – Cidade, Território e Arquitecturas” (de José Manuel Fernandes, Maria de Lurdes Janeiro e Maria João Janeiro), e “Recife Macau – duas cidades, dois mundos, duas histórias, relações e contrastes” (da autoria de José Manuel Fernandes), editados pelo IIM, teve lugar no dia 16 de Março, no Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa. São obras muito importantes sobre o património arquitectónico de Macau, ambas publicadas pelo IIM.
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IIM – 2016: principais actividades
Promoção com recursos a Meios Digitais
PLATAFORMA PARA VENDA DE LIVROS
NOVA PÁGINA ELECTRÓNICA
O IIM lançou uma nova página electrónica (www.iimacau.org.mo), com visual mais moderno e prático para os visitantes da página. Disponível em chinês, português e inglês, a página foi concebida para expor melhor os conteúdos das notícias, nomeadamente as constantes no seu boletim informativo, que se encontra na plataforma “Issuu”. Permite também directamente o acesso à página de Facebook do IIM, facilitando o acompanhamento atempado das actividades do Instituto. Com o intuito de melhor promover Macau, encontramse disponíveis na rúbrica galeria, fotografias, vídeos e informação sobre as suas mais recentes actividades.
O IIM Bookshop nasce também com a nova página electrónica (www.iimacau.org.mo/bookshop), centrando assim a totalidade das publicações do IIM num só sítio digital, facilitando a visualização dos conteúdos das antigas e novas publicações do Instituto e dispensando dessa forma a existência e actualização de um catálogo, face ao constante acréscimo de novas edições. A página do IIM Bookshop possui também uma página no Facebook, para melhor acompanhar as últimas publicações lançadas pelo Instituto. Actualmente está a ser negociado com a Caixa Económica Postal um acordo, mediante o qual o pagamento de livros adquiridos nesta plataforma poderá ser feito por seu intermédio, reduzindo os custos associados e facilitando a operação. Pretendese no futuro incluir as publicações de outras editoras locais que não tenham possibilidades nem meios de as distribuir no estrangeiro pelos circuitos tradicionais.
O IIM abriu uma página nesta rede social para assim divulgar com maior rapidez a realização de eventos, dar notícias, bem como a edição de novas publicações.
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Outras Actividades COMEMORAÇÃO DO 10 DE JUNHO EM MACAU
zado em conjunto com a Associação para a Promoção do Intercâmbio entre a Ásia-Pacífico e a América Latina (MAPEAL). Este evento – “Goa Workshop: Closer Macau-Goa Economic Cooperation” – teve lugar na Fundação Rui Cunha e teve como propósito debater ideias e formas de cooperação entre Goa e Macau.
TERRITÓRIOS LUSÓFONOS NO ARQUIVO DE MACAU
Comemorou-se condignamente o dia 10 de Junho em Macau – o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Como habitualmente, o IIM esteve presente com uma representação de seus associados e colaboradores. Com a presença do Secretário de Estado da Administração Interna de Portugal, Jorge Gomes, do CônsulGeral de Portugal em Macau e Hong Kong, Vítor Sereno, de representantes das instituições e associações de matriz portuguesa e com o apoio dos Escuteiros Lusófonos de Macau, o Dia começou com o habitual içar da bandeira nacional no jardim do Consulado-Geral de Portugal em Macau. Logo a seguir, a comemoração prosseguiu junto à Gruta de Camões com danças folclóricas e recitação de poemas de Camões por alunos das escolas que, no final, cumprindo uma tradição que se vem mantendo inalterável no tempo, depositaram flores junto ao busto do Poeta.
“WORKSHOP” NA FUNDAÇÃO RUI CUNHA
Decorreu a 22 de Abril, no Arquivo de Macau, o lançamento do livro “Macau e os Territórios Lusófonos – Colecção Iconográfica Única de Postais Fotográficos”, da autoria de João Manuel Loureiro. A sessão, co-presidida pelo Presidente do Instituto Cultural e pelo Presidente do Instituto Internacional de Macau, contou com a presença do Autor do livro (membro da Direcção do IIM), do representante do Cônsul-Geral de Portugal em Macau e Hong Kong, e do Presidente do Instituto Português do Oriente, João Laurentino Neves. A obra, que reflecte a paixão do Autor como coleccionador de postais fotográficos do antigo Ultramar Português, reúne mais de dez mil postais, impressos entre 1898 e 1999, que retratam a geografia, a economia, o comércio, a vida das populações e os seus costumes culturais, a religião, os monumentos e edifícios desses países e regiões de língua portuguesa.
A 7 de Janeiro, o Presidente do Instituto Internacional de Macau, Jorge Rangel, orientou um workshop organi-
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O Instituto Cultural da RAEM foi o responsável pela publicação deste livro/catálogo.
IIM – 2016: principais actividades
COOPERAÇÃO COM A GALIZA
A Academia Galega (instituição cultural com sede na Galiza (Espanha) tem vindo a estabelecer contactos com o IIM com o intuito de vir a formar uma parceria que permita organizar actividades em conjunto que tenham como propósito promover o intercâmbio estudantil entre jovens da Galiza e de Macau, envolvendo também escolas e jovens de Portugal.
“Viagem Oriental – Rediscovering Macau in Goa”, na Escola Portuguesa de Macau (EPM). Tratou-se de uma iniciativa da ONG goesa “Communicare Trust”, apoiada pelo Gabinete de Apoio ao Ensino Superior de Macau, pela EPM e pelo Instituto Internacional de Macau, que assumiu a organização e a coordenação.
REACTIVAÇÃO DO CENÁCULO LUÍS GONZAGA GOMES
ARRAIAL DE SÃO JOÃO, NO BAIRRO DE SÃO LÁZARO
Organizado conjuntamente pela Associação dos Macaenses, Casa de Portugal em Macau e Instituto Internacional de Macau, com o apoio da Direcção dos Serviços de Turismo, realizou-se mais uma vez o Arraial de São João, no Bairro de São Lázaro. Esta festa, de cariz popular, contou em 2016 com a implantação de mais tendas e barracas do que em anos anteriores, a que correspondeu a participação de maior número de associações e de pessoas.
“VIAGEM ORIENTAL – REDISCOVERING MACAU IN GOA” No dia 29 de Outubro foi inaugurada uma exposição fotográfica em simultâneo com a apresentação do livro
No dia 12 de Dezembro realizou-se na sala Luís Gonzaga Gomes, do Instituto Internacional de Macau, uma cerimónia para marcar a reactivação do Cenáculo Luís Gonzaga Gomes, como organismo dedicado à “essência de Macau e local de encontro de culturas”, vertente à qual Luís Gonzaga Gomes dedicou toda a sua vida. Na cerimónia foram dados a conhecer o Conselho Honorífico, integrado por cerca de 30 personalidades locais, e os seus corpos sociais. Preside ao órgão executivo o escritor Luís Sá Cunha. PRÉMIOS PARA ALUNOS DA ESCOLA PORTUGUESA DE MACAU Através de verbas próprias, o IIM tem vindo a atribuir anualmente prémios monetários aos melhores alunos do 10º e do 12º anos, nas disciplinas de Inglês e de História da Escola Portuguesa de Macau.
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Edições IIM – 2016 COLECÇÃO “FALAR DE NÓS”
COLECÇÃO “MILÉNIO HOJE”
Falar de Nós – XI Macau e a Comunidade Macaense – Acontecimentos, Personalidades, Instituições, Diáspora, Legado e Futuro
O Legado Luso em Macau – Um património valorizado
AUTOR: Jorge A. H. Rangel Nº de páginas: 256 ISBN: 978-99937-45-91-4
Volume dedicado às instituições e às pessoas que souberam honrar o legado e a memória de Macau, ao mesmo tempo que contribuíram para o seu desenvolvimento, constitui tombo de consulta importante para quem pretenda saber de Macau e das suas gentes.
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AUTOR: Jorge A. H. Rangel (com a colaboração de Alexandra Sofia Rangel e António R. J. Monteiro) Nº de páginas: 80 ISBN: 978-99937-45-90-7 Com ilustrações
Uma década e meia após a transferência do exercício da soberania de Portugal para a República Popular da China, constata-se que o legado luso em Macau foi preservado e até tem sido valorizado. O livro é profusamente ilustrado e resultou da adaptação de duas comunicações sobre o tema do autor, apresentadas na Universidade de Aveiro e na Academia de Marinha, em Lisboa, e de um artigo publicado na revista “Povos e Culturas”, da Universidade Católica Portuguesa.
COLECÇÃO “MOSAICO”
Stories from the Western Seas AUTOR: Frederic “Jim” Silva Nº de páginas: 72 ISBN: 978-99937-45-95-2 Com ilustrações
O livro, editado em versão inglesa e dedicado aos jovens da comunidade macaense falantes de inglês, remete-nos para a História de Portugal no período dos descobrimentos marítimos e em particular para a rota do Oriente e, consequentemente, para Macau.
Edições IIM – 2016
COLECÇÃO “MOSAICO”
O Cantar de Macau Valorizar a Identidade – Entidades distinguidas com o Prémio Identidade AUTORA: Alexandra Sofia Rangel Nº de páginas: 88 ISBN: 978-99937-45-99-0 Com ilustrações
O “Prémio Identidade”, instituído em 2002 pelo Instituto Internacional de Macau, distingue anualmente individualidades ou instituições que “pela sua acção, obra e exemplo, contribuam, activa e significativamente, para a identidade de Macau”. O Prémio “corporiza o mais nuclear espírito do IIM, consagrado na sua vocação e finalidades estatutárias, e contempla aquelas personalidades individuais ou colectivas que, nos campos da Cultura em geral, nas Artes, no Pensamento, na Antropologia, nas Ciências Jurídicas e na Educação e Ensino tenham contribuindo relevantemente para a substanciação dos factores da identidade de Macau”.
TRADUÇÕES: Maria Yan, Lam Lai Man, Cristina, Rufino Ramos e Frederic “Jim” Silva, pautas musicais do Club Amigu di Macau (Toronto) e A. Botelho dos Santos Nº de páginas: 64 ISBN: 978-99937-45-96-9
Reúne um conjunto de cantilenas, “lenga-lengas” e algumas canções que fazem parte do folclore tradicional, musical e poético, que importa preservar e valorizar, como património imaterial de Macau. Trata-se de “uma modesta contribuição do IIM, editando-as em português, chinês e inglês, para registar a memória colectiva da comunidade macaense, mas também reavivar o interesse por aquelas cantilenas pelos quatro cantos do mundo”. O material agora publicado foi, em significativa medida, transcrito do “Ta-Ssi-Yang Kuo”.
O Instituto Internacional de Macau como instrumento eficaz de cooperação académica e cultural AUTOR: Jorge A. H. Rangel Nº de páginas: 60 ISBN: 978-99965-59-00-6 Com ilustrações
Esta publicação assinala o 15º aniversário do Instituto Internacional de Macau, identificando, sucintamente, os seus propósitos, potencialidades e realizações mais relevantes, o que permite conhecer, ainda que em grandes linhas, o percurso da Instituição ao longo da primeira década e meia de existência. Foi adaptada de um artigo inicialmente inserido no “Diário de Todos”, jornal luso-chinês publicado em Lisboa.
A Autora reúne agora em livro os nomes das individualidades e instituições contempladas com o Prémio, com uma nota informativa sobre cada uma.
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COLECÇÃO “SUMA ORIENTAL”
O Oriente na Literatura Portuguesa – Antero de Quental e Manuel da Silva Mendes
China’s Techno-Nationalism in the Global Era – Strategic Implications for Europe
AUTOR: Carlos Miguel Botão Alves Nº de páginas: 376 ISBN: 978-99937-45-89-1
AUTOR: Luís Cunha Nº de páginas: 192 ISBN: 978-99937-45-92-1 Com ilustrações
Este livro resulta de uma profunda investigação e de um conjunto de ideias e de conceitos oriundos das correntes do pensamento oriental, que foram acolhidos por Antero de Quental nos seus sonetos e por Manuel da Silva Mendes nos seus ensaios. Procura também sublinhar o papel activo que estes autores de língua portuguesa desempenharam no diálogo cultural entre a Europa e o Oriente. Se é verdade que, por um lado, Antero de Quental teve um contacto indirecto com o Oriente cultural, sobretudo através de traduções, já Silva Mendes, que viveu em Macau durante cerca de três décadas, teve um diálogo directo e contínuo com os orientais.
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O mais recente estudo de Luís Cunha analisa as estratégias de modernização da China no século XXI, baseadas na cooperação tecnológica e nas áreas de inovação, e as relações científicas entre a China e a Europa. Ao compreender a ciência do desenvolvimento económico e a competição internacional, a China tem vindo a desenvolver um programa ambicioso, com o objectivo de se tornar um país com poder científico global antes do ano de 2050. A edição é feita em colaboração com o Instituto dos Estudos Europeus de Macau.
Five Hundred Years of Macau AUTOR: Stuart Braga Nº de páginas: 128 ISBN: 978-99937-45-97-6 Com ilustrações
Edição em língua inglesa, é uma bem elaborada história de Macau, como porta de entrada da cultura ocidental na China e um importante entreposto comercial entre o Oriente e o Ocidente. O livro é ilustrado com mapas da colecção do investigador José Maria Braga, que viveu e trabalhou em Macau.
Edições IIM – 2016
COLECÇÃO “NOVOS CAMINHOS”
COLECÇÃO “MISSIONÁRIOS PARA O SÉCULO XXI”
China e Países Lusófonos – Património Construído
D. Arquimínio Rodrigues da Costa, Bispo de Macau (1976-1988)
César Brianza – a missão, o coro e o sonho da China
COORDENADOR: José Lobo Amaral Nº de páginas: 488 ISBN: 978-99937-45-93-8 Com ilustrações
AUTOR: António Aresta (com testemunhos do Gen. Garcia Leandro, José M. Bártolo e Maestro Simão Barreto) Nº de páginas: 112 ISBN: 978-99937-45-94-5 Com ilustrações
AUTOR: João Guedes Nº de páginas: 128 ISBN: 978-99965-59-05-1 Com ilustrações
Na sequência dos dois oportunos estudos em que foram analisadas, em variadas vertentes, as relações económicas da China com os países de língua portuguesa e também as suas potencialidades turísticas, edita-se agora um volume sobre o património construído que constitui (ou virá por certo a constituir) Património da Humanidade nesses países. A obra reúne textos de reputados especialistas sobre o Exército de Terracota e a Grande Muralha (China), o Centro Histórico de Macau, M'Banza Kongo e Nova Oeiras (Angola), Ouro Preto e o Convento e Igreja de S. Francisco da Bahía (Brasil), a Cidade da Ribeira Grande (Cabo Verde), Cacheu (Guiné-Bissau), o Mosteiro dos Jerónimos e o Centro Histórico do Porto (Portugal), a Roça Sundy (S. Tomé e Princípe), e a Urbanização de Dili (TimorLeste).
Para além do texto de António Aresta, contém uma adequada selecção fotográfica e cinco anexos: a Bula da nomeação do Bispo, datada de 20 de Janeiro de 1976; um artigo de D. Arquimínio sobre a Igreja e a Educação na óptica do II Concílio do Vaticano, inserido na revista dos Serviços de Educação de Macau, de Maio de 1986; uma entrevista concedida à revista “Além-Mar”, em Outubro de 1987, sobre a Igreja em Macau; um depoimento de homenagem a Monsenhor Manuel Teixeira, de Maio de 1998; e a homilia proferida no 35º aniversário da sua ordenação episcopal, em Março de 2011. O volume junta ainda três testemunhos: do antigo Governador de Macau José Eduardo Garcia Leandro (1974/79), de José Maria Bártolo, ex-seminarista e chefe de Divisão, aposentado, da então Imprensa Oficial de Macau (então denominada Imprensa Nacional de Macau) e de Simão Barreto, maestro e também exseminarista.
O livro retrata a vida e a obra do Pe. César Brianza, conhecido por se dedicar à música como missão educativa. Foi professor no Colégio D. Bosco de Macau e distinguiu-se como Mestre da Banda da Polícia e como professor de piano, muito conceituado, na Academia de Música S. Pio X, até ao último dia da sua vida. A sua obra mais memorável foi a criação do grupo dos Pequenos Cantores da Cruz de Madeira do Colégio D. Bosco. A música e a docência foram as actividades mais relevantes a que se entregou César Brianza, missionário salesiano nascido em Chiari, na Lombardia (Itália), em Agosto de 1918, e radicado no Extremo Oriente desde 1935, primeiro em Hong Kong e Macau e depois em Xangai, de 1938 a 1949, que já era então uma das maiores e mais importantes e desenvolvidas cidades do mundo, onde concluiu o curso de Teologia e foi ordenado padre, regressando de novo a Hong Kong e Macau em 1949.
ORIENTEOCIDENTE
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FORA DE COLECÇÃO
Clepsidra (versão chinesa) AUTOR: Camilo Pessanha Nº de páginas: 144 ISBN: 978-99937-45-88-4
Segunda tradução para o chinês daquele que é o único livro de poemas de Camilo Pessanha – “Clepsidra”. O livro, publicado em versão bilingue português/chinês, foi traduzido para o chinês pelo poeta, académico e tradutor Yao Feng – pseudónimo de Yao Jingming. A “Clepsidra” foi publicada pela primeira vez em 1920 por iniciativa de amigos próximos do poeta e nele estão inseridos alguns dos poemas mais belos do autor como “Violoncelo”, “Ao Longe os Barcos de Flores” e “Viola Chinesa”. Esta nova edição da “Clepsidra” é uma das muitas homenagens prestadas ao poeta português ao longo de 2016, marcando os 90 anos sobre a sua morte.
Pearl River Delta – From World Factory to Global Innovator AUTORES: Thomas Chan e Louise do Rosário Nº de páginas: 144 ISBN: 978-99965-59-02-0 Com ilustrações
Aborda detalhadamente as nove principais regiões do Delta do Rio das Pérolas (Guangzhou, Shenzhen, Foshan, Dongguan, Huizghou, Zhongshan, Jianmen, Zhuhai e Zhaoqing). Para além do perfil pormenorizado de cada uma destas regiões, retrata a contínua modernização das suas infra-estruturas e indústrias, em conformidade com o 13º Plano Quinquenal (2016-2020) e com a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”. Nesta nova era de desenvolvimento, Macau articula o seu desenvolvimento com o destas regiões do Delta, o que se intensificará com a conclusão das obras da ponte que ligará Hong-Kong a Zhuhai e a Macau. A edição foi coordenada pela Macaulink.
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ORIENTEOCIDENTE
Macaense Cuisine – Origins and evolution AUTOR: António M. Jorge da Silva Nº de páginas: 216 ISBN: 978-99937-45-98-3
Dá a conhecer a origens da cozinha macaense e a sua história por detrás de inúmeras receitas, a evolução dos ingredientes ao longo dos anos em Macau, Hong Kong e Xangai, e as receitas que foram inovadas também pela diáspora macaense após a Segunda Guerra Mundial. Totalmente ilustrado, encontramse nele os pratos mais saborosos da comunidade macaense.
Edições IIM – 2016
FORA DE COLECÇÃO
REVISTA
Oriente / Ocidente (Nº 33) EDITOR: Instituto Internacional de Macau Nº de páginas: 160 Com ilustrações
Macau – Roteiros de uma Cidade Aberta AUTORES: Jorge Santos Alves e Rui Simões Nº de páginas: 80 ISBN: 978-989-99457-4-6 Com ilustrações
Destinado a todos quantos queiram visitar Macau e melhor compreender a sua história, as suas principais características e transformações (físicas, culturais, sociais, económicas, religiosas, etc.) enquanto cidade aberta ao mundo. Os Autores, dois prestigiados académicos com vasta e muito relevante obra publicada sobre Macau, brindaram-nos com um conjunto coerente de roteiros temáticos desenhados especialmente para visitantes exigentes que queiram ver com outros olhos a cidade e que são também da maior utilidade para quem aqui nasceu ou escolheu o território para viver.
de um espaço verdadeiramente singular e explicando o significado desta jóia ímpar que Portugal ajudou a talhar e a China assumiu o compromisso de continuar a valorizar. Da cultura aos sabores, do lazer e dos “vícios” aos negócios, da administração aos cultos, da maneira de viver à pujança da sociedade civil, de tudo um pouco os autores partilharam com o leitor os seus conhecimentos, elaborando seis roteiros: o dos poderes, o dos negócios, o dos prazeres, o das confissões, o dos saberes e, o das sociabilidades.
Revista de publicação anual, de abrangência universal, os artigos vertidos na ORIENTE/OCIDENTE, de reputados académicos e investigadores, constituem apoios relevantes aos leitores que pretendem aprofundar os conhecimentos do papel e da importância que Macau tem tido, ao longo da história, como plataforma de ligação de universos tão distintos como os que aqui se cruzam. A revista dá conta ainda das acções que o Instituto Internacional de Macau desenvolve nas várias áreas em que intervém e das edições que promove.
A ligação intensa de ambos a Macau permitiu-lhes entender o legado, a terra e as gentes, que estudaram interessadamente nas suas variadas vertentes, descobrindo caminhos, lugares e recantos
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