ISSN 1984-8625
REVISTA CIENTÍFICA ELETRÔNICA
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ANO IV
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N0 08
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IFSP - CAmPuS SERTãOzINhO
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NOVEmBRO / 2012
REVISTA CIENTÍFICA ELETRÔNICA • ANO IV • N0 08 • IFSP - CAmPuS SERTãOzINhO • NOVEmBRO / 2012
Corpo Editorial Editor-chefe Altamiro Xavier de Souza - IFSP Editor substituto Weslei Roberto Cândido - UEM Conselho Editorial Altamir Botoso – UNIMAR * Ana Cristina Troncoso – UFF * Andréia Ianuskiewtz – IFSP * Anne Camila Knoll Domenici – IFSP Antonio Sergio da Silva – UEG * Antonio Sousa Santos – UFVJM * Janete Werle de Camargo Liberatori – IFSP * José Carlos de Souza Kiihl – FATEC * Mauro Nicola Póvoas – FURG * Plínio Alexandre dos Santos Caetano – IFSP Reinaldo Tronto – IFSP * Rodrigo Silva González – UFV * Whisner Fraga Mamede – IFSP * Conselho Consultivo Alexandre do Nascimento Souza – USP Álvaro José Camargo Vieira – PUC-SP / FIT Amanda Ribeiro Vieira – IFSP Ângela Vilma Santos Bispo – UFRB Araci Molnar Alonso – USP/EMBRAPA DF Cristiane Cinat – UNESP Denise Paranhos Ruys – IFSP
Eliana de Oliveira – FACFITO Emanuel Carlos Rodrigues – IFSP Gilvandro de Jesus Almeida Sanches – UFPA Kjeld Aagaard Jakobsen – USP Leandro Dias de Oliveira – UFRRJ Luciana Brito – UENP / UEL Luiz Carlos Leal Júnior – IFSP Magno Alves de Oliveira – IFB Marina P. A. Mello – FACFITO / UNICAIEIRAS Nadja Maria Gomes Murta – UFVJM / PUC-SP Paula Tatiana da Silva – UEL Pedro Cattapan – UFF Pierre Gonçalves de Oliveira Filho – FAMEC Ricardo Castro de Oliveira – UFSCAR Rita de Cassia Bianchi – UNESP Ronaldo de Oliveira Rodrigues – UFPA Rosana Cambraia – UFVJM Tania Regina Montanha Toledo Scorparo – UENP Vágner Rodrigues de Bessa – UFV Designer Gráfico Nildo Xavier de Souza Diretor Geral do IFSP - Campus Sertãozinho Lacyr João Sverzut Reitor do IFSP Arnaldo Augusto Ciquielo Borges
* Membros do Conselho Editorial que atuam conjuntamente no Conselho Consultivo.
REvISTa CIEnTíFICa ElETRônICa ISSn 1984-8625 Fundada em 2008 Peridiocidade Semestral
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palavras do Editor
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Revista Iluminart é um projeto do Prof.Dr. Weslei Cândido. Foi um presente deixado por ele após o breve período de tempo em que foi docente do IFSP – Campus Sertãozinho. Com o advento da transformação dos CEFETs em IFs houve a necessidade do estabelecimento de novos parâmetros nestas Instituições, pois além do ensino Técnico e Tecnológico, a Lei 11.892, de 29 de dezembro de 2008, definiu as Licenciaturas como uma de suas atribuições. Some-se a isto, a alteração no perfil dos profissionais que passaram a compor seus quadros; já que a ampliação da presença de mestres e doutores ficou evidente por dois aspectos: vantagem destes nos novos concursos e a disposição do governo Federal em incentivar os servidores, tanto docentes quanto administrativos, a buscarem um aperfeiçoamento em programas de Pós-Graduação. A chegada do Prof. Weslei ao IFSP se dá nesta realidade e a Iluminart surge com a proposta de ser um espaço aberto para as áreas publicarem resultados de relevante interesse para as necessidades emergentes neste cenário educacional. O IFSP somente ganhou com a Revista, pois para solucionar aspectos internos relevantes, abriu-se para contato com pesquisadores, autores e leitores de todo o Brasil. Após o imenso esforço para seu estabelecimento, o corpo editorial trabalhou para ampliar a divulgação do espaço entre os possíveis autores e enfrentou as dificuldades inerentes ao trabalho técnico de análise dos artigos e da disponibilização do seu conteúdo na Internet, já que é uma revista eletrônica. Todo este trabalho transcorreu ao longo de 7 números de forma consistente, porém a greve no IFSP surgiu como ingrediente para dificultar a normalidade de suas ações, algo que refletiu intensamente na publicação trimestral proposta e que estava sendo cumprida pelo corpo editorial. A greve foi longa e com poucos resultados (na verdade quase nenhum) conquistados pelos integrantes do movimento. Os servidores ativos na greve foram obrigados, naturalmente, a repor suas aulas e os passivos, foram agraciados por sua subserviência, com o “descanso dos justos”. Com o retorno das aulas – para alguns – na última semana de janeiro de 2012, a Iluminart passou a ser repensada e novamente encontrou espaço para ser prioridade dos membros do seu Conselho Editoral, conselho este combalido pelo afastamento de diversos membros após a cessão, por parte do Campus Sertãozinho, de diversos membros de seus quadros na estruturação dos novos campi oriundos do processo de expansão da Rede Federal de Ensino.
Somados a todos estes fatos, o prof. Weslei, aprovado em concurso na Universidade Estadual de Maringá (UEM), foi requisitado a assumir sua vaga no início de março de 2012, algo que nos deixou, particularmente, muito feliz, pois acompanhávamos o seu desejo intenso em trabalhar com pesquisa, algo ainda nascente no IFSP. A felicidade de sua nomeação foi acompanhada pela preocupação quanto ao destino da Revista Iluminart, projeto tão importante nesta nova fase do IFSP, cujos esforços tinham sido imensos para sua implantação e não poderiam ter de seu mentor a mesma dedicação de outrora. Partilhando de indagações semelhantes a respeito de questões pertinentes ao trabalho e à própria vida, permitir que este projeto fosse interrompido, pareceu-me ser algo prejudicial ao extremo para nosso Instituto e muito desanimador para a nova fase profissional do amigo Weslei, que estava partindo na busca de seus sonhos e novas possibilidades profissionais. Mesmo sabedor de minhas limitações, coloquei-me à disposição de meu colega/amigo para prosseguir com seu trabalho de editor, acreditando que o suporte tanto dele quanto dos profissionais envolvidos diretamente com a Revista, seriam apropriados para manter a qualidade deste trabalho feito com tanta dedicação e profissionalismo. Aprovada a indicação de meu nome para compor a equipe editorial, o único pedido feito por mim, foi a continuidade do Prof. Weslei na Iluminart, pois não poderíamos dispor de sua experiência e compromisso para o sucesso desta nova fase. Atendido neste pedido, abrimos a todos membros que a compunham a opção em permanecer ou a liberdade de contribuírem em novos projetos com a eterna gratidão por tudo que fizeram ao longo destes anos de dedicação. Como resultado da força e alta qualidade da Iluminart, a chamada para o número 8 recebeu tão alto número de artigos que foi preciso lançar concomitante o número 9. A divisão deste editorial em duas partes é reflexo deste sucesso da equipe original, que enfrentando diversas condições adversas manteve vivo um belíssimo projeto educacional. (continua no número 9) Altamiro Xavier de Souza Editor Chefe Docente do IFSP – Campus Sertãozinho altamirox@gmail.con
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Editorial “Talvez possamos contribuir para que nas políticas culturais haja lugar não apenas para aquilo que é vantajoso para o mercado, mas também para a diferença e a dissidência, para a inovação e o risco. Em suma; para elaborar coletivos interculturais mais democráticos e menos monótonos”. Néstor García Canclini
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em sempre a mudança pode ser vista com desconfiança. Os períodos de transição carregam consigo constelações de criatividade e inovação que só são possíveis graças ao deslocamento de pessoas, de ideias, objetivos e o desafio de olhar o mesmo objeto pelos infinitos ângulos que cada ser humano é capaz de enquadrar o mundo que o cerca. Este é o presente momento da Revista Iluminart, sai o seu editor-chefe que a dirigiu por sete números para a entrada de um novo olhar sobre esta publicação eletrônica. Este olhar agora é o de Altamiro Xavier de Souza, educador, professor, estudioso de química e do ambiente no qual ele atua de forma crítica, sempre propondo mudanças ou reflexões. Quando o convidei para assumir o comando da revista não tive dúvidas de que o trabalho seria concluído com êxito. As escolhas dos novos membros do corpo editorial e conselho consultivo, feitas pelo novo editor-chefe, representam de forma brilhante o que é o presente e o futuro da Iluminart. É com grande honra que apresento essa nova equipe e essa inovadora publicação dentro de seu novo projeto de arte visual e de leitura. Com certeza seus leitores terão diante de seus olhos um belo material, tanto pelo conteúdo quanto pela dinamicidade que ganhou a revista. Esperamos, assim, dois tipos de leitores para o presente número: o leitor de Cortázar em Rayuela, “lector cómplice”, companheiro de viagem, um parceiro na construção de sentidos ao longo da aventura que é o ato de ler; e o “(e)lector” de Carlos Fuentes em Cristóbal Nonato, mistura de leitor e eleitor, capaz de ler e ao mesmo tempo selecionar aquilo que deseja aceitar como verdade para seu mundo. O número 8 da Iluminart é dedicado em sua grande maioria às letras, à linguística e ao ensino que se cruzam e entrecruzam quase de forma a sensualizar os signos linguísticos que se prestam a interpretar o mundo. O primeiro artigo traz um regaste de um periódico feminino “O mundo elegante”, por Louise Farias da Silveira, que analisa uma seção de cartas e mostra como o mundo feminino era o foco dessa publicação, material que serve para conhecer um pouco da história das mulheres na sociedade ocidental. Na sequência temos outra análise de periódico, dessa vez uma publicação do Rio Grande do Sul intitulada Revista Ibirapuitã, divulgada no final da década de 1930, estudada por Vanessa Oliveira Juliani Regina, que fazez um resgate das poesias desse jornal e busca encontrar uma temática que norteie essa produção literária.
Mais um periódico está em foco no terceiro artigo: O pão (18921896), publicação cearense dedicada ao movimento simbolista e que é o objeto de análise da pesquisadora Luciana Brito que se dedicou a recuperar esse rico material para a crítica literária brasileira. Em seguida, Daniel Baz dos Santos, com a “Visita cruel dos gêneros”, propõe uma análise do gênero romanesco a partir das teorias de Bakhtin em contraponto com questões do realismo na literatura e o conceito de mimese como ponto nevrálgico de suas discussões.
Héder Júnior dos Santos insere os leitores da Iluminart no âmbito da literatura comparada, destacando a importância do pensamento de Gramsci para a literatura rosiana, a fim de discutir o papel do intelectual na sua relação com a sociedade. Da literatura comparada encaminha-se para outra forma de análise de objetos artísticos distintos proposta por Tânia Regina Montanha Toledo Scoparo: a literatura e o cinema como estratégia de ensino/aprendizagem na escola, unindo a mídia visual à impressa, despertando no discente novas formas de interpretar o mundo. Encontra-se, também, nesse volume, a discussão da docente Andréia Dias Ianuskiewtz sobre a interculturalidade no ensino de língua inglesa; com uma proposta muito interessante de respeito linguístico que deve haver nesse processo de aquisição de uma nova língua, libertando-se de conceitos eurocêntricos para o de uma troca intercultural entre os falantes que os coloquem como atores sociais em permanente interação com a cultura do outro. O artigo de Paula Tatiana da Silva direciona a discussão para os operadores argumentativos na propaganda da Natura Ekos como estratégia de construção do texto publicitário e sua produção de sentidos, um ótimo material para o leitor pensar a forma como são vendidos os produtos e quais os caminhos para convencê-los a adquirir determinada marca. Do mundo da propaganda entramos na análise da ambiguidade presente em Solombra, de Cecília Meireles, trilhando os caminhos do existencialismo por meio do olhar de Delvanir Lopes, que estuda a essa poeta pelo viés de Martin Heidegger que direcionará os estudos dessas possíveis ambiguidades na poética de Cecília. No mesmo caminho da poesia encontra-se o trabalho de Natália Moreira Viana, que discute a questão da diáspora na produção poética da cubana Aimée Bolãnos e como esses deslocamentos identitários se fazem presentes no livro Las palabras viajeras, estudando esses versos por meio das análises teóricas de críticos do pós-colonialismo como Stuart Hall e Edward Said. Por fim, temos a resenha de Tainara Quintana da Cunha sobre o livro Os íntimos, de Inês Pedrosa, publicado pela Editora Objetiva no ano de 2010, que nesse caso dispensa comentários prévios, ficando ao leitor a sugestão de leitura desse texto para conhecer um pouco melhor o romance em questão. Resta apenas convidar os pesquisadores, os professores, os discentes de graduação, os estudantes de pós-graduação e demais leitores a empreender esta viagem pelas páginas da Iluminart, conhecendo os diversos olhares que se prestam a interpretar esse mundo composto por palavras, perscrutado a composição de significados que sugerem os signos linguísticos em permanente sensualização com o mundo. Weslei Roberto Cândido Editor Substituto Docente da UEM – Universidade Estadual de Maringá weslei79@gmail.com
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sumário 07 a sEção “Cartas póstumas” no pEriódiCo fEminino O MundO ElEgantE ..................................... Louise Farias da Silveira diálogos EntrE litEratura E imprEnsa: o rEsgatE da poEsia 21 na REvista ibiRapuitã ........................................................................................................ Vanessa Oliveira Juliani Regina a rECEpção CrítiCa do movimEnto simbolista nas páginas 33 do jornal CEarEnsE O pãO ) .......................................................................................................... Luciana Brito
47 a visita CruEl dos gênEros: jEnnifEr Egan E a situação romanEsCa ....................................... Daniel Baz dos Santos Héder Junior dos Santos
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83 litEratura E CinEma: proposta mEtodológiCa para o Ensino médio .................................. Tania Regina Montanha Toledo Scoparo Andréia Dias Ianuskiewtz
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os ECos da biodivErsidadE brasilEira: a argumEntação na 119 propaganda da natuRa EkOs .............................................................................................................. Paula Tatiana da Silva
133 vErsos ambíguos Em solombra, dE CECília mEirElEs ................................................................. Delvanir Lopes 147 a diáspora dE aiméE g. bolaños Em las palabras viajEras ..................................................... Natália Moreira Viana rEsEnha: sobrE Os ÍntiMOs Tainara Quintana da Cunha
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A SEÇÃO “CARTAS PÓSTUMAS” NO PERIÓDICO FEMININO O MUNDO ELEGANTE
LOUISE FARIAS DA SILvEIRA Graduanda em Letras (Inglês) pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG), bolsista de iniciação tado do Rio Grande do Sul (FAPERGS) sob orientação do Prof. Dr. Mauro Nicola Póvoas. Contato: lousilveira@hotmail.com
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A SEÇÃO “CARTAS PÓSTUMAS” NO PERIÓDICO FEMININO O MUNDO ELEGANTE Louise Farias da Silveira
RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar uma série de cartas redigidas por importantes escritores portugueses do século XIX, tais como Alexandre Herculano e Júlio Dinis. Publicado após suas mortes em uma seção da publicação feminina O Mundo Elegante – Mensageiro Semanal Ilustrado de Modas, Elegância e Bom-Tom, o conjunto intitula-se “Cartas Póstumas”, sendo veiculado ao longo de dez edições. As epístolas dirigiam-se a Guiomar Torresão, escritora e diretora do periódico, que circulou entre 1º de janeiro e 25 de dezembro de 1887. A análise das cartas foca-se em três aspectos principais: o gênero epistolar e suas características; a questão de o periódico ser direcionado ao público feminino; e as relações íntimas que se estabeleceram entre os remetentes e a destinatária. PALAVRAS-CHAVE: Periódico feminino; O Mundo Elegante; Carta.
THE SECTION “CARTAS PÓSTUMAS” IN THE FEMALE PERIODICAL O MUNDO ELEGANTE ABSTRACT: This paper aims to analyse a series of letters written by important Portuguese writers from the 19th century, such as Alexandre Herculano and Júlio Dinis. The series, entitled “Cartas Póstumas”, was published after the writers’ death during ten editions, in a section of the women’s publication O Mundo Elegante – Mensageiro Semanal Ilustrado de Modas, Elegância e Bom-Tom. The epistles were directed to Guiomar Torresão, writer and director of the periodical, which was published between January 1st and December 25th of 1887. The letters’ analysis is focused on three main aspects: the epistolary genre and its characteristics; the fact that the periodical is direct to the female public; and the relationship of intimacy that is established between the remitters and the addressee. KEYWORDS: Female Periodical; O Mundo Elegante; Letter.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Em um tempo em que livros eram algo raro, devido ao alto custo de sua impressão, cabia aos periódicos, de variedades e literários, veicular a produção dos novos escritores. Ao longo do século XIX, essa prática popularizou-se na Europa, fazendo com que as publicações do Velho Continente viessem a ser um modelo seguido por outras nações.
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É na busca de material nessas publicações passadas que o pesquisador traz à tona textos que se encontravam, até então, esquecidos. Na reflexão de Bordini (2004, p. 199), essa prática justifica-se pela necessidade de se fazer “um retorno produtivo à memória social” e a partir daí, conferir um “novo valor a seus registros”. Deste modo, a fonte periódica oferece um vasto registro de informações que pode ser resgatado e analisado, como documentos de uma época, esteja esse registro presente em jornais, almanaques ou revistas. A importância da utilização de revistas como fornecedoras de material a ser examinado é reconhecida por Martins (2001, p. 21), pelo fato de este tipo de impresso “documentar o passado através de registros múltiplos: do textual ao iconográfico, do extratextual – reclame ou propaganda – à segmentação, do perfil de seus proprietários àquele de seus consumidores”. Além de exaltar a revista por sua peculiaridade em reunir diferentes manifestações textuais e um vasto público leitor, Martins (2001, p. 27) também aponta que ela “era o instrumento eficaz de propagação de valores culturais, dado seu caráter de impresso do momento, condensado, ligeiro e de fácil consumo”. A escolha da revista feminina portuguesa O Mundo Elegante – Mensageiro Semanal Ilustrado de Modas, Elegância e Bom-Tom, como corpus da pesquisa, dá-se pelo fato de nesta ter sido publicada uma série de cartas de importantes escritores portugueses do século XIX, o que faz de tal suporte uma fonte primária. As epístolas, de temática variada, dirigiam-se a Guiomar Delfina de Noronha Torresão, escritora e diretora do periódico, que circulou entre 1º de janeiro e 25 de dezembro de 1887. Veiculadas ao longo de dez edições, as epístolas foram reunidas sob uma seção intitulada de “Cartas Póstumas”. A pesquisa nos periódicos, que oferecem materiais inéditos de muitos escritores, é vista como de extrema importância por Regina Zilberman, pois, conforme mencionado pela autora, esse processo:
Corresponde igualmente à tomada de posição perante o canônico e o marginal, já que, quando se trata de recuperar elos perdidos de nosso passado literário e cultural, passam a ocupar o proscênio coadjuvantes que, seguidamente, ainda não suscitaram interesse, foram reprimidos ou ocultados, ficaram de fora da corrente dominante, as main streams das escolas e tendências. (ZILBERMAN, 2003, p. 7)
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O presente trabalho, portanto, tem como objetivo resgatar e analisar esse conjunto de cartas, focando-se em três aspectos principais: o gênero epistolar e suas características; a questão de o periódico ser direcionado ao público feminino; e as relações íntimas que se estabeleceram entre os remetentes e a destinatária.
2. O PERIÓDICO FEMININO O MUNDO ELEGANTE – MENSAGEIRO SEMANAL ILUSTRADO DE MODAS, ELEGÂNCIA E BOM-TOM Ao longo do século XIX, na Europa, com o crescente número de mulheres alfabetizadas (em sua maioria de classes altas), surge uma demanda por impressos que tratassem de temas que interessavam a essas senhoras, publicações voltadas ao público feminino. Paulo Silvestre corrobora essa ideia ao afirmar que:
O público feminino já não se revia apenas na simples divulgação de contos, romances ou receitas de bolos. Uma nova forma de imprensa, dirigida às mulheres, emerge buscando, sobretudo, discutir o papel destas na sociedade, reivindicar direitos civis e divulgar ideias emancipatórias. As leitoras desses periódicos eram principalmente mulheres da alta sociedade, professoras, artistas, profissionais liberais ou, simplesmente, donas de casa com algum grau de instrução ou poder econômico. (SILVESTRE, 2009, p. 32)
Na segunda metade do século XIX, as publicações passaram a não ser apenas feitas para as mulheres, e sim administradas por elas, demonstrando um novo posicionamento do sexo feminino frente a um mercado editorial que era, até então, dominado pelos homens. O periódico português O Mundo Elegante, uma revista de periodicidade semanal, é um exemplo dessa tendência que despontava. A publicação, dirigida e fundada pela escritora Guiomar Torresão, em 1887, tratava de assuntos diversos, tendo como especialidades aqueles referentes ao universo da moda, trazendo as últimas tendências parisienses. Já no primeiro número de O Mundo Elegante, datado de 1º de janeiro de 1887, o gerente da revista, António de Sousa, proprietário da editora Sousa e Cia., localizada em Paris e responsável pelo impresso, apresenta a publicação e suas intenções como tal, conforme se vê no seguinte fragmento:
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O Mundo Elegante, sendo o único jornal de modas e literatura que, em Língua Portuguesa, se publica semanalmente, é também, o mais econômico de todos que tem aparecido. Infundir às filhas, às irmãs, às esposas e às mães, o amor da família e os seus deveres, ensinarlhes, a ricas ou a pobres, a maneira de fazerem a felicidade do lar doméstico, de lhes avivar a inteligência, desenvolvendo-lhes o espírito; e iniciando-as nos trabalhos do ménage bem como das regras da economia, tal é o fim, que se propõe o Mundo Elegante. (O MUNDO ELEGANTE, ano 1, n. 1, 1º jan. 1887, p. 1)
O mensageiro, “dedicado às senhoras portuguesas e brasileiras”, conforme explicitado em sua capa, tinha, portanto, o intuito de colaborar para a formação dessas mulheres, oferecendo-lhes dicas de como manter um lar harmonioso, como cuidar de si e sua família, bem como algumas noções sobre economia doméstica. O público-alvo era, por conseguinte, as senhoras que queriam não apenas ser boas esposas e mães, como também almejavam serem pessoas dotadas de inteligência e raciocínio próprio.
3. A SEÇÃO DAS “CARTAS PÓSTUMAS” A seção das “Cartas Póstumas” apareceu pela primeira vez, na revista O Mundo Elegante, em sua edição de número 32, datada de 6 de agosto de 1887. Inicialmente localizada na margem esquerda da primeira página da revista, a coluna ocupava um lugar de destaque, sendo apresentada com grande entusiasmo por, provavelmente, Guiomar Torresão:
Abrimos hoje esta preciosa série de cartas inéditas dos nossos mais gloriosos escritores, falecidos, com uma carta do grande historiador Alexandre Herculano. No próximo número daremos uma segunda carta, mais extensa, de Herculano, seguindo Castilho, Silva Gaio, Júlio Dinis e outros. Temos recebido numerosas cartas dos nossos assinantes e outras pessoas, saudando com alvoroço este acontecimento literário, de que o nosso Mundo justamente se orgulha. Assim correspondemos, por todas as formas, ao efusivo acolhimento que nos tem dispensado e que diligenciaremos não desmerecer. (O MUNDO ELEGANTE, ano 1, n. 32, 6 ago. 1887, p. 1)
A série de cartas inéditas, todas dirigidas a Guiomar Torresão, diretora do periódico, foi publicada ao longo de dez edições. Por permitir que fossem realizadas conversas entre aqueles que estavam distantes, a carta era muito usada, seja entre amigos ou visando a propósitos profissionais. As epístolas publicadas n’O Mundo Elegante, escritas em tom cordial, indicam a existência de uma relação de proximidade entre os remetentes e a destinatária. Afrânio Coutinho, sobre essa variedade epistolar, afirma que:
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A carta privada de amizade é o modelo do gênero [epistolar], escrita num estilo informal de conversa íntima. A velha retórica aconselhava o sentimento de amizade como o seu motivo central e a sinceridade, a simplicidade, a brevidade e a graça como as qualidades principais do estilo epistolar, embora também lembrado o decoro como indispensável, desde que a carta, ao contrário da conversa, é escrita. Na Idade Média e no Renascimento, cresceu a importância da carta como instrumento oficial de comunicação, de sorte que diferenças radicais foram introduzidas no estilo, acomodando-o às exigências do decoro e da conveniência em relação com as categorias das pessoas envolvidas na troca de cartas. (COUTINHO, 2008, p. 110)
A primeira carta a ser publicada na seção das “Cartas Póstumas” foi de autoria de Alexandre Herculano, datando de 1872. Alexandre Herculano nasceu em Lisboa em 1810, tornando-se um reconhecido escritor historiográfico, que se dedicou também a outros diversos gêneros literários, como a poesia, as novelas, os contos e os ensaios, vindo a falecer em 1877. Em sua escrita, Herculano dirige-se à Guiomar Torresão como “Ex.ma. Sra. D. Guiomar Torresão”, demonstrando todo o respeito que nutria pela escritora, elogiando suas qualidades como mulher, ao afirmar que “as duas grandes qualidades das pessoas do sexo de V. Ex.ª., a imaginação e o sentimento, tornam-se, às vezes, em mácula pelo excesso”. Ao que parece, Guiomar Torresão havia solicitado, em correspondência anterior, permissão para que pudesse publicar no Almanaque das Senhoras, fundado e coordenado por ela a partir de 1870, uma outra carta de Herculano. O escritor, por sua vez, responde da seguinte forma:
Pede-me V. Ex.ª. para publicar a minha anterior carta. Não me lembro do que escrevi, porque a memória é a primeira faculdade que falta aos velhos. Faça V. Ex.ª. o que entender. Como já não tenho pretensões de escritor, por maiores sensaborias que contenha, já se me não faz a face vermelha com isso. O pior é o desgosto dos leitores do Almanaque. O que receio é que V. Ex.ª., cega pela amizade, se esqueça dessa consideração gravíssima. (O MUNDO ELEGANTE, ano 1, n. 32, 6 ago. 1887, p. 1)
Percebe-se, a partir do fragmento apresentado acima, que a relação existente entre Herculano e Torresão era a de uma amizade repleta de confiança, pois este, frente a um pedido da escritora, não lhe nega o que é solicitado, deixando a cargo desta a escolha publicar a carta ou não. A segunda epístola a ser publicada na seção das “Cartas Póstumas”, na revista O Mundo Elegante de número 33, também é escrita por Alexandre Herculano. Nesta,
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cuja data constante era de 23 de maio de 1873, Herculano desculpa-se com a amiga por não ter oferecido resposta à sua carta antes, justificando tal falta por estar doente:
Não é só a V. Ex.ª. que tenho ofendido com a falta de resposta à sua carta. Muitas outras pessoas se queixam ou se reputam com direito a queixar-se de igual ofensa. O fato é indubitável; mas as causas é que são ignoradas pelos queixosos. Desde que vim de Lisboa tenho passado constantemente perseguido por um padecimento antigo (cálculos e areias nos rins) e que terminou pela expulsão de um grande cálculo, ou para melhor dizer não terminou, porque as dores na região correspondente continuam mais ou menos obscuras, mas suficientes para me tornar repugnante e violento qualquer trabalho de espírito, e às vezes, o que pior é, os próprios movimentos do corpo. (O MUNDO ELEGANTE, ano 1, n. 33, 13 ago. 1887, p. 1)
Ao relatar seu sofrimento com os problemas renais pelos quais passava, em uma carta à diretora, Herculano comprova, uma vez mais, a estreita relação existente entre eles, uma vez que descreve assuntos referentes à sua vida pessoal e tratados como de importância. Ao longo da escrita, nota-se que a destinatária torna-se uma confidente, a quem Herculano confessa estar farto de receber escritos alheios enviados a ele para que sejam corrigidos e criticados, posto que ele já não se dedicava nem mesmo às suas próprias obras. Herculano encerra sua carta da seguinte maneira:
Aos sessenta e cinco, doente, obrigado a pensar na vida positiva para ter os modestos cômodos que a velhice exige, sou tudo quanto há mau, porque não me sacrifico à vaidade ou interesse literário alheio, eu que solenemente me despedi da república das letras! É uma violência por tal modo absurda e insensata que me pejo de a discutir. Desculpe V. Ex.ª. este desafogo de um ânimo justamente irritado, e a demora que tenho posto em responder para me desapressar dos mais vaidosos e impacientes, dispondo entretanto da inutilidade de quem é. (O MUNDO ELEGANTE, ano 1, n. 33, 13 ago. 1887, p. 1)
Outro conhecido escritor, cuja carta foi a quarta a ser publicada no conjunto das “Cartas Póstumas”, foi António Feliciano de Castilho. Nascido em Lisboa em 1800 e falecido no mesmo local em 1875, Castilho, cego desde os seis anos, traduziu obras literárias e escreveu prosa e poesia, sendo as últimas publicadas principalmente durante o Romantismo. A epístola escrita por ele datava de 1870, vindo a ser publicada na edição de número 36 de O Mundo Elegante. Em sua escrita, Castilho expressa-se brevemente a respeito da publicação de um texto seu em um livro de Guiomar Torresão, agradecendo a esta a gentileza de fazê-lo:
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Desejar V. Ex.ª. algum escrito meu para o seu excelente livro; e pedirmo por medianeira a quem eu nada poderia recusar, já era, por si só, um obséquio muito honroso; inseri-lo, porém, à frente de todos, e com tão gracioso modo foi coroar a delicadeza com a maior de todas as delicadezas. Nada disto se pode devidamente agradecer; agradeço porém o presente deste notável livro, que entesoiro entre os mais apreciados da minha biblioteca. (O MUNDO ELEGANTE, ano 1, n. 36, 3 set. 1887, p. 1)
O tratamento dispensado por Castilho ao dirigir-se a Torresão – “Minha querida e respeitável senhora” – e o fato de este encerrar sua escrita com as palavras “De V. Ex.ª. admirador afeiçoado e obrigado servo” comprovam a estima nutrida por aqueles que se encontravam à volta dessa mulher escritora. Guiomar Torresão era não apenas respeitada por sua posição, como também admirada por sua produção artística. Seguindo a carta de Castilho, o próximo a ser publicado na revista O Mundo Elegante de número 37, datada de 10 de setembro de 1887, foi Júlio Dinis, pseudônimo de Joaquim Guilherme Gomes Coelho, que nasceu no Porto em 1839 e, devido a uma tuberculose, faleceu também no Porto, em 1871. Dinis formou-se em Medicina, mas foi na escrita que se encontrou, produzindo crítica literária, teatro, poesia, conto e romance. A primeira epístola de Júlio Dinis a ser publicada na seção das “Cartas Póstumas” foi escrita em 1867, ano em que o autor lançara o romance As pupilas do Senhor Reitor. Em seu texto, Dinis comenta a carta que Guiomar Torresão enviara-lhe com o intuito de elogiar seu recém-lançado livro e oferecer-lhe a oportunidade de transpô-lo para o teatro:
(...) queria V. Ex.ª. acrescentá-la de novo e maior favor, qual era o de extrair daquele romance um drama e trazer ao teatro, sob a direção do fino tato dum cultivadíssimo engenho feminino, os personagens, entre quem se passa a ação, lenta e difusa, do meu romance. (O MUNDO ELEGANTE, ano 1, n. 37, 10 set. 1887, p. 1)
Dinis, ainda que lisonjeado em receber tal proposta, sente-se obrigado a negála, uma vez que já havia recebido, anteriormente, sugestão semelhante:
Esta perspectiva, porém, sedutora como era, é-me forçoso renunciar a ela. Antes da honrosíssima proposta de V. Ex.ª., havia eu recebido outra no mesmo sentido, à qual por várias razões não pude aceder. Já vê pois V. Ex.ª. que, hoje, a mais comum delicadeza me proíbe de aceitar outra proposta, embora muito mais honrosa e tentadora do que a primeira. Creia V. Ex.ª. que não me receava da influência
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literária da índole feminina no trabalho que V. Ex.ª. se propunha; antes via nele uma garantia de êxito. Espero da bondade de V. Ex.ª. que me será relevado este passo que me vejo obrigado a dar, com bem pesar meu. (O MUNDO ELEGANTE, ano 1, n. 37, 10 set. 1887, p. 1)
Ao esclarecer que sua decisão em não oferecer sua obra para que Torresão pudesse adaptá-la ao teatro nada tinha a ver com o fato de ela ser uma mulher, Dinis evidencia que na época ainda existia uma resistência em relação à escrita feminina e sua suposta inferioridade. O escritor, fugindo do preconceito ligado ao gênero, defende que a influência feminina seria, acima de tudo, um ponto positivo a ser considerado, caso a adaptação fosse realizada. Dinis encerra sua carta declarando-se “De V. Ex.ª. muito respeitador e agradecido criado”. Na seção das “Cartas Póstumas” de 4 de dezembro de 1887, número 49 d’O Mundo Elegante, uma outras carta redigida por Júlio Dinis, de 1870, veio à tona. Nesta, Dinis também escreve em resposta à Guiomar Torresão, falando-lhe a respeito de uns escritos que esta havia lhe solicitado para publicar no Almanaque das Senhoras que era, então, coordenado por ela. O escritor comenta em seu texto que:
Para aceder ao honroso convite de V. Ex.ª. tive de abrir os livros findos e extrair de lá umas quadras ainda não publicadas, que ouso enviar-lhe. Nada podia mandar-lhe em prosa, acomodado à índole e dimensões de um almanaque, por isso sou obrigado a mandar-lhe versos e versos velhos de mais a mais. Se não servirem, deixe V. Ex.ª. o lugar vago para escrito que melhor o ocupe, que nisso ainda mais me obsequiará. (O MUNDO ELEGANTE, ano 1, n. 49, 4 dez. 1887, p. 2)
Percebe-se, a partir desse fragmento, que Dinis e Torresão mantinham uma relação de proximidade, pois participavam do mesmo contexto, fazendo parte do sistema literário português. Essa prática de troca de textos seria, portanto, natural, pois esses autores liam e incentivavam as produções dos amigos. Dinis encerra sua epístola evidenciando, uma vez mais, a admiração que ele sentia por essa senhora, ao assinar: “Curvando-me respeitosamente ante o simpático talento de V. Ex.ª., ouso assinar-me. De V. Ex.ª. colega muito reconhecido e admirador e amigo”. Gonçalves Crespo, que já tivera uma de suas cartas publicadas, foi o escritor cujos escritos encerraram a coluna. Em sua primeira carta, datada de 1871, Crespo agradecia Guiomar pelos elogios tecidos por ela, em correspondência a ele, a respeito de seu livro, escrevendo-lhe que:
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O pouco que V. Ex.ª. disser do livro será muito para a glória dele, e muitíssimo para os meus agradecimentos. Não sei o que mereci a Deus, para que Ele me dispense estas venturas do trato fidalguíssimo do seu elevado espírito. (O MUNDO ELEGANTE, ano 1, n. 38, 17 set. 1887, p. 1)
Na última seção das “Cartas Póstumas”, a epístola redigida por Crespo, também em 1871, e escolhida para finalizar a série, partilhava algumas características com a sua primeira. Nesta, assim como na anterior, o autor utilizava de sua modéstia para mostrar sua gratidão acerca dos louvores feitos por Guiomar, ficando claro, deste modo, a importância que ele dava às opiniões emitidas por ela:
Da sua crítica entusiasta tomei simplesmente aquilo que julguei pertencer-me com razão, separando o que julguei ser simples e mero incentivo. Vale a pena a gente trabalhar, ousar e ser tenaz para que no fim da luta se recebam recompensas e galardões, como os que tenho recebido. (O MUNDO ELEGANTE, ano 1, n. 51, 18 dez. 1887, p. 2)
A seção das “Cartas Póstumas” teve seu fim na penúltima edição do periódico O Mundo Elegante, de 18 de dezembro, uma semana antes de este sair de circulação, em 25 de dezembro de 1887. Publicado por apenas um ano, o periódico feminino teve uma produção semanal regular, somando ao total cinquenta e duas edições. Além dos autores mencionados, outros três tiveram suas epístolas reunidas nesse conjunto: Silva Gaio, Visconde de Paiva Manso e José da Silva Mendes Leal.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS A maioria das cartas que depois foram publicadas na seção das “Cartas Póstumas” foi escrita na época em que Guiomar Torresão coordenava o Almanaque das Senhoras. Durante esse período, Torresão recebeu muitas críticas de escritores portugueses, que consideravam a função desempenhada por ela junto ao Almanaque como não adequada a uma senhora, recebendo duras críticas:
O Almanaque, como já se referiu, é a única publicação, aparecida na década de 70, que tem como responsável uma mulher. Isto dá uma ideia da aventura em que Guiomar Torresão se meteu ao iniciar uma lide intelectual aprovada por uma minoria. Basta lembrar os termos da resposta de Oliveira Martins ao convite que lhe foi endereçado pela redatora, em 1884, para se perceber quão profunda era a rejeição de alguns escritores às iniciativas intelectuais femininas. Contatado, com
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efeito, para colaborar nessa publicação, o historiador invoca a sua conhecida atividade intelectual. Mas, em seguida, dirigindo-se à colega e a todas as mulheres, sem exceção, diz o que ele, e, afinal, toda a Geração de 70, pensava dever ser a atividade feminina: “de um modo sumário que o seu destino comum – salvo as exceções privilegiadas, como V. Ex.ª. – é cozinharem bem a panela a seus maridos, saberem lavar os filhos e remendar-lhes os calções”. Por isso, e por saberem coser bem os fundilhos das calças dos consortes, continua, é que um inglês, seu amigo, punha as portuguesas acima de todas as europeias. (LOPES, 2005, p. 514)
Percebe-se, a partir de tal afirmação, que muitos autores negavam os pedidos feitos por Torresão para que pudesse publicar alguma produção deles no Almanaque, pelo fato de ela ser uma mulher. Assim, as epístolas que foram veiculadas n’O Mundo Elegante representavam um perfil diferente de escritores: os que a apoiavam e colaboravam para que ela pudesse dar continuidade à sua iniciativa, colocando seus escritos à disposição. Torresão, apesar de contar com diversos opositores masculinos, também tinha amigos a quem podia recorrer. Deste modo, a seção das “Cartas Póstumas” desempenhou papel de destaque ao ser parte de O Mundo Elegante, pois a partir da leitura das epístolas publicadas nessa coluna percebe-se que existiam intelectuais portugueses dispostos a amparar os empreendimentos femininos no periodismo. Ao endereçarem as cartas, escritores canônicos como
Alexandre
Herculano
e
Júlio
Dinis legitimavam
as ações
desempenhadas por Torresão. Portanto, as “Cartas Póstumas” tiveram a função de registrar o suporte que Guiomar Torresão possuía no meio literário português, de modo a mostrar que ela não estava sozinha na empreitada de coordenar e dirigir um periódico voltado ao público feminino. Torresão contava, sim, com a aprovação de renomados escritores, que a reconheciam e valorizavam como uma mulher disposta a quebrar o ciclo prédeterminado para as senhoras da época, de ser unicamente boa esposa e mãe, estando ela, assim, na contramão dessa concepção, disposta a investir seus esforços no reconhecimento da independência intelectual feminina.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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DiÁlOgOs enTre liTeraTura e iMPrensa: O resgaTe Da POesia na reVisTa IBIRAPUITÃ (1938/1939)
Vanessa OliVeira Juliani regina Mestranda em letras pela universidade Federal do rio grande (Furg), licenciada em letras – Português/espanhol e suas da região de Campanha (urCaMP). Contato: reginavanessa65@yahoo.com.br
DIÁLOGOS ENTRE LITERATURA E IMPRENSA: O RESGATE DA POESIA NA REVISTA IBIRAPUITÃ (1938/1939) Vanessa Oliveira Juliani Regina
RESUMO: Este artigo integra parte da dissertação de Mestrado que está sendo desenvolvida no Curso de Pós-Graduação em Letras/Mestrado em História da Literatura, na Universidade Federal do Rio Grande, inserida na linha de pesquisa Literatura Sul-Rio-Grandense, e tem como corpus de análise a revista alegretense Ibirapuitã-Mensário de Sociedade, Literatura e Arte e sua produção poética, especificamente, a veiculada em sua fase inicial de circulação, compreendida entre os anos de 1938 e 1939, totalizando quinze volumes. Para tanto, no presente artigo, serão expostas observações preliminares acerca da poesia presente nos dois primeiros números do periódico na tentativa de se compreender a configuração literária neste impresso e sugerir uma possível tematização. A seleção de poemas e autores obedece aos critérios de organização cronológica e ocorrência/frequência de publicação. PALAVRAS-CHAVE: literatura; imprensa; Revista Ibirapuitã; poesia.
DIALOGUES BETWEEN LITERATURE AND THE PRESS: THE POETRY’S RESCUE IN IBIRAPUITÃ’S MAGAZINE (1938-1939) ABSTRACT: This paper is part of a Master's research in History of Literature which is being developed at the Federal University of Rio Grande, inserted in the line of Sul-RioGrandense Literature. It has as analysis corpus the alegretense Ibirapuitã-Monthly Publication of the Society, Literature and Art’s magazine and its poetries, more specifically, the ones published in its initial phase of circulation, between the years of 1938 and 1939, resulting in fifteen volumes. So, in this paper we will introduce some observations about the poetry present in the first two issues of the magazine in an attempt to understand the setting in this literary form and suggest a possible thematization. The selection of poems and authors follows the criteria of chronological organization and occurrence / frequency of publication.
KEYWORDS: literature; press; Magazine Ibirapuitã; poetry.
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INTRODUÇÃO Este artigo integra parte da dissertação de Mestrado que esta sendo desenvolvida no Curso de Pós-Graduação em Letras/Mestrado em História da Literatura, na Universidade Federal do Rio Grande. A partir da utilização de fontes primárias como campo de pesquisa, optou-se pela escolha do periódico IbirapuitãMensário de Sociedade, Literatura e Arte, criado em 1938, na cidade de Alegrete, por representar veículo de publicação responsável pela divulgação de autores locais bem como os já canonizados pelo sistema literário sulino, e propulsor de considerável efervescência cultural, imprescindível para a construção da memória cultural e literária da cidade. Para tanto, no presente artigo, serão expostas observações preliminares acerca da poesia presente nos dois primeiros números do periódico na tentativa de se compreender a configuração literária neste impresso e sugerir uma possível tematização. A seleção de poemas e autores obedece aos critérios de organização cronológica e ocorrência/frequência de publicação.
REVISTA: FONTES PRIMÁRIAS E A IMPRENSA LITERÁRIA Fontes primárias constituem objeto e fonte de pesquisas literárias, na reconstrução não apenas de um determinado espaço-temporal, em que verificamos historicamente seu contexto cultural e social, como também da história literária, permitindo estabelecer a formação de seu sistema e fixação de seu cânone, e desmarginalizar textos excluídos pela própria tradição. Segundo Zilberman (2004, p.15), fontes primárias são aquelas que “[...] constituem, em princípio, matéria da história, que constrói uma narrativa a partir dos documentos do passado.”. São os resquícios desse passado não problematizado que se transformam em objeto potencial para o resgate de textos literários muitas vezes esquecidos e desvalorizados pela tradição, tal qual afirma Bordini (2004, p.201): Fontes primárias são de caráter vestigial, ou seja, sinalizam algo que já não é, cujo advento ocorreu em dimensão temporal da vida de um escritor, da vida de algum outro sujeito histórico relacionado com o evento literário, do processo da produção, recepção de uma obra, com todos os agentes e objetos nele envolvidos, mesmo que esse momento seja contemporâneo.
Com a crise do paradigma da Teoria da Literatura a partir do século XX, em que a obra literária passa a ser problematizada para além dos limites do objeto físico
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livro, as fontes primárias sinalizam novas opções para a compreensão do produto literário, no entanto, afirma Zilberman (2004, p.15): A Teoria da Literatura tende a abrir mão deste material, ao privilegiar o produto final, a obra publicada, em detrimento de suas origens e processo de criação. A História da Literatura acabou acompanhando essa escolha, alinhando no tempo o produto legitimado pela Teoria. Por não percorrer o caminho de volta, que levaria da obra publicada às suas origens e repercussão, a História da Literatura des-historiciza seu objeto; com isso, contradiz sua natureza e acaba por fornecer à Teoria um objeto desmaterializado, um ser ideal a que não corresponde algo concreto. As fontes primárias apresentam-se na contramão desse processo: são concretas, materiais e palpáveis. [...] E suscitam uma reflexão do conhecimento, uma vez que elas não se explicam por critérios de especificidade e valor.
Com esta configuração na compreensão da obra literária pela Teoria e História da Literatura, as fontes primárias promovem importante desconstrução do discurso historiográfico literário tradicional, permitindo ao historiador que se utiliza destas fontes, reescrever parte da história da literatura, preenchendo suas lacunas criadas arbitrariamente por critérios de escolha muitos vezes excludentes e carregados de juízos de valor. O caráter documental das fontes primárias auxilia na construção de uma época em todos os seus aspectos, e a compreensão da literatura também se faz através destes sinalizadores, como afirma Bordini (2004, p.202): “Tudo, enfim, que forneça um suporte material para significar um momento transitório do sistema literário, que possa dar permanência ao tempo que foge e às condições espaciais que se modificam, constituir-se-ia em uma fonte primária para o conhecimento da literatura.”. A pesquisa através de algumas fontes primárias, como jornais e revistas, caracteriza o chamado periodismo literário, a partir do século XVII, na tradição européia. A edição de textos literários nestas publicações valida a relação existente entre literatura e imprensa, fazendo do jornal e da revista veículos propulsores do fazer artístico, oportunizando a divulgação de autores. Segundo Martins (2002, p. 39), [...] a existência do periodismo ancorava-se em agremiações e/ou grupos que se queriam colocar. [...] Jornais, e em seguida, revistas, tornaram-se instrumentos correntes de informação, consignando-se aos primeiros as notícias de teor político e de divulgação imediata e às revistas temas variados, de informação mais elaborada, anunciando as últimas descobertas sobre as matérias abordadas. [...] o novo gênero periódico passou a ser disputado por escritores reconhecidos, que tinham nas páginas avulsas do jornal e da revista, o espaço alternativo para divulgação de seus escritos.
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Ao nos reportarmos ao estudo de uma das fontes primárias que caracterizam o objeto desta pesquisa, a revista, Ana Luiza Martins (2002, p.46 apud ROCHA, 1985, p.25) aponta-nos uma definição para o impresso, diferenciando-o do livro: [...] é um tipo de publicação que, depois de re-vista, se abandona, amarelece esquecida, ou se deita fóra. Enquanto objeto material, a revista distingue-se do livro por ser mais efêmera. [...] Essa efemeridade [...] tem a ver com sua solidez material. Enquanto o livro dura [porque é mais resistente, tem uma capa sólida a protegê-lo], a revista é [pode ser] mais frágil em termos de duração material. [...] é normal que o livro tenha reedições, e já não o é tanto que apareça uma segunda edição duma revista. Ainda outra característica: uma revista é em geral menos volumosa que um livro. [...] uma revista é quase sempre uma manifestação duma criação de grupo: ao contrário do livro que, salvo algumas excepções, costuma ser produzido por um só autor [...]
A revista configura, segundo Martins (2002, p.46), fonte de conteúdo documental, pois é reflexo da sociedade que a consome; e os objetivos deste tipo de publicação se transformam de acordo com seu contexto de produção: Insista-se que o caráter fragmentado e periódico da revista é seu traço recorrente, imutável nas variações geográficas e temporais onde o gênero floresceu, resultando sempre em publicação datada, por isso mesmo de forte conteúdo documental. Quanto a seus objetivos, variaram ao longo do tempo, condicionados às circunstâncias históricas de gestação e circulação, cabendo apreendê-los, reafirmamos, nos contextos próprios de sua existência, ao seu tempo cultural, revelador da variedade de seus propósitos.
Para Martins (2002, p.43), quanto às variações temporais do impresso revista ao longo dos anos, no seu contexto de produção e recepção, surgem os hebdomadários e os magazines, formatos diferenciados e com público leitor diversificado, assim conceituados pela autora: [...] suas variações no tempo, presididas por circunstâncias de produção (técnica) e recepção (público), conferiram-lhe traços temporais específicos, mutáveis diante das transformações da sociedade à qual serviu. Nesta trajetória, o surgimento, a partir de 1758, dos hebdomadários, publicações de periodicidade semanal precisa, de cunho informativo técnico e político, e, por volta de 1776, do magazine, a revista ilustrada por excelência, representativa de uma demanda de caráter ligeiro e de teor fortemente publicitário [...]
Com a configuração deste tipo de publicação no Brasil, no início do século XX, em meio a grandes dificuldades de edição, haja vista a precariedade das gráficas, um público leitor reduzido e situação cultural desfavorável, vários autores se utilizaram das páginas da imprensa para divulgarem seus textos e conquistarem novos leitores,
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fazendo do periódico revista grande aliado na consolidação de um sistema literário brasileiro, se pensado a partir do resgate desses textos em fontes primárias.
REFLEXÕES INICIAIS: POSSÍVEIS TEMATIZAÇÕES DA PRODUÇÃO POÉTICA NO PERIÓDICO IBIRAPUITÃ Criado pelo jornalista e poeta Felisberto Soares Coelho, sob a gerência de Emílio Lopes, no interior do Rio Grande do Sul, na cidade de Alegrete em 1938, o periódico Ibirapuitã- Mensário de Sociedade, Literatura e Arte apresenta caráter de revista, por se constituir dos mais variados gêneros textuais, como artigos, ensaios, resenhas críticas; além de textos de outra ordem e sessões tais como coluna social, anúncios publicitários, traduções, dados estatísticos e um espaço destinado à correspondência dos leitores. Já no âmbito literário, além de poemas, também publicava crônicas e contos. A periodicidade da revista era mensal, porém, sendo publicada muitas vezes bimestralmente, com um corpo editorial bastante diversificado que vai se modificando ao longo das edições. Em sua fase inicial, nos anos 30, possuía tipografia própria, Tipografia Tupi, e após longa interrupção em sua circulação, aproximadamente 30 anos, volta a ser relançada nos anos 60 e 70 por outra revista cultural alegretense intitulada Cadernos do Extremo Sul (1953), dirigida pelo poeta Hélio Ricciardi. A abrangência de sua circulação alcançava, além do âmbito local, na cidade de Alegrete, outros municípios do interior do Estado, bem como a cidade do Rio de Janeiro, já que uma de suas edições chega às mãos de Monteiro Lobato que aprecia os poemas de Quintana e elogia a iniciativa dos autores gaúchos interioranos, endereçando-lhe uma carta, publicada na íntegra pela revista. Outros países vizinhos à fronteira também colaboram de forma significativa com a publicação, dentre eles, o Uruguai, representado pelo poeta Marcelino Pérez. Este percurso de publicação fora do reduto local, certamente, se fez pelas mãos dos leitores deste periódico. Na primeira edição da revista Ibirapuitã- Mensário de Sociedade, Literatura e Arte1, já podemos constatar, através do seu pomposo editorial, que o periódico pretende oferecer à pacata cidade do interior, uma publicação não apenas constituída por assuntos diversificados, com o intuito de promover o entretenimento de seu público, mas também, um veículo de caráter cultural e literário que possa renovar as diretrizes de sua 1
COELHO, Felisberto Soares. Ibirapuitã Mensário de Sociedade, Literatura e Arte. Janeiro, 1938. Ano I: Número 1.
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produção artística local e congregar intelectuais de todas as bases ideológicas. Percebemos também o orgulho de seu passado histórico, já que Alegrete, à época da Revolução de 1835, tornou-se a terceira capital farroupilha, aparentemente motivo de ufanismo para os seus editores, também dispostos a alcançar outras terras com seu periódico, deixando nas mãos do tempo sua perenidade. Para Coelho (1938, p.2): Ibirapuitan, revista que arranca de um Rincão Gaúcho e leva para alongadas Terras o Pensamento e a Cultura da Gente Farrapa, prodigalizando à civilização um pedaço da Beleza e da Bondade que moram na Alma e no Coração dos Guascas [...] e desse esforço e desse propósito que diga, quando chamado a contas, o velho Tempo, - Cronista- Rei da História e da Lenda, - presente sempre ao nascimento e morte de Homens e Coisas, de animais e plantas.
Iniciativa ousada para época, já que a configuração política, econômica e social não é das mais favoráveis. Estamos na conturbada década de 30, tomada por conflitos revolucionários no Brasil e no Rio Grande do Sul; tais como a Revolução de 30, Revolução Constitucionalista de 32, Intentona Comunista de 35 e o Levante Integralista de 38, bem como a nível mundial, com o prenúncio da Segunda Guerra. Reunir colaboradores que problematizem seu local de produção cultural, dando novo fôlego à pesada atmosfera de guerras e revoluções através de uma publicação no interior do Estado, longe dos holofotes da Capital e de seus autores já consagrados, situando-se à margem do sistema literário gaúcho, certamente, não constituiu tarefa das mais simples. Já na primeira correspondência publicada na sessão Correio Amigo, do colaborador Oliveira Mesquita, é possível inferirmos acerca desta exclusão e de como esses autores se colocam neste sistema: Vocês, com a publicação desse mensário de arte e vibração, irão prestar enorme serviço às nossas letras, no interior do Estado. [...] Não querem escrever para as revistas e jornais da capital, certos da prevenção, receosos da manifesta má vontade que sempre houve por parte dos que estão lá em cima contra os que mourejam na planície... [...] (COELHO, 1938, p.36)
Neste primeiro número da revista, o espaço dedicado à literatura vai se configurando de forma não muito organizada, ainda não há uma sessão específica para a publicação de textos literários. Nesta edição, são publicados os seguintes poemas2: Ou a cidade ou o rio (1938) de Antonio Brasil Milano; Soneto VII (1938) de Mário Quintana; A Carreteada Farrapa (1938) de J. O. Nogueira Leiria; Mãos (1938) de Felisberto Soares Coelho; Ibirapuitã (1938) de Maria do Carmo Thomas; Versos
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para um tordilho chamado Mohomet (1938) de Tirteu Rocha Viana. Imensa variedade de temáticas e estilos perfazem as publicações do periódico, de escritores posteriormente reconhecidos pela crítica, como Mário Quintana, que passa a assinar uma coluna na revista, intitulada “De Rebus Pluribus”, a partir de 1939, junto a autores praticamente anônimos. Já no segundo número da revista3, a produção poética se apresenta mais organizada, ocupando uma coluna específica, apesar de contar ainda com poemas dispersos pela revista, entremeadas ao longo da edição por textos de outra natureza. Este número já apresenta o nome dos colaboradores e seus respectivos poemas no expediente da publicação, destacando desta forma a importância que o periódico atribui ao gênero poético. Nesta edição constam publicações de Gerson Neves com Povo da Lata (1938); Luz Interior (1938) de Maria do Carmo Thomas; Cantiga para a minha esperança (1938) de Antonio Brasil Milano; Caminhos das Missões- Paisagens de além- Ibicuí (1938) de Juca Ruivo; Canção das Horas Mortas (1938) de Hernani de Carvalho Schmitt; Da Ilha do Paiva (1938) de Túlio Chaves e Canção do meio do mundo (1938) de Mário Quintana. A partir da seleção destes textos, podemos organizá-los tematicamente, da seguinte forma:4 produção poética de cunho regionalista; tempo, memória e infância; a produção de cunho social; imagens do urbano: a construção da cidade; e identidade. Se redimensionados na história literária gaúcha, há textos pertencentes ao movimento romântico; poemas com a estética simbolista, porém com forte influência parnasiana, simbolismo este que, segundo Zilberman (1992, p.74), na poesia do Rio Grande do Sul de forma geral, estende-se até os anos 50; e poucos textos sob influência modernista. Como representante da temática que congrega tempo, memória e infância, temos o poeta alegretense Antonio Brasil Milano, que por ora também suscitará poemas de cunho social. Em Cantiga para a minha esperança (1938)5 o eu – lírico evoca a imagem da infância perdida, rememorando um tempo findo, que não volta mais. Apenas em seu mundo infantil há possibilidade de concretização de suas aspirações, pois o mundo adulto, repleto de responsabilidades, desagua em um conflito interior, provocando um desajuste no indivíduo que se coloca à mercê da efemeridade do tempo.
3
COELHO, Felisberto Soares. Ibirapuitã-Mensário de Sociedade, Literatura e Arte. Janeiro, 1938. Ano I: Número 2.( 4 Essa é uma tematização inicial acerca dos poemas selecionados, com aspectos observados além das duas primeiras edições, caracterizando grande parte do material coletado. 5 MILANO, Antonio Brasil. Revista Ibirapuitã. Fevereiro, 1938. Ano I: Número 2. p. 8.(
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Cantiga para a minha esperança Foi num sonho de criança que venho minha esperança num barquinho de papel. Foi ninada com carinho nunca saiu do barquinho que trouxe Papai Noel. Meu barquinho não descansa, meu barquinho sempre avança qual um soberbo batel. Ele é o barco de um menino o mundo é tão pequenino e todo feito de ouropel. Era uma vez... um barquinho que voltou no seu caminho e bem depressa singrou Me deixou em outra idade, foi buscar felicidade e até hoje não voltou.. Já na poesia de Hernani de Carvalho Schmitt, Canção das horas mortas (1938), também localizada na mesma temática que o poema anterior, o eu-lírico mostra-se desesperançado tal qual um fim de tarde, a realidade é uma pintura melancólica representada pela contemplação da natureza. A estação outonal se equipara com a tristeza do seu contemplador ao presenciar as pequenas perdas do cotidiano, como a folha que cai, simbolizando a impotência diante da efemeridade da vida.
Canção das horas mortas6 Na tristeza augural da tarde que agoniza como uma emocional rosa de outono, vejo as folhas que caem uma por uma, num lírico abandono da árvore primeira que se faquiriza. “As árvores são emoções da Natureza” 6
SCHMITT, Hernani de Carvalho. Revista Ibirapuitã. Fevereiro, 1938. Ano I: Número 2. p. 14.
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DIÁLOGOS ENTRE LITERATURA E IMPRENSA: O RESGATE DA POESIA NA REVISTA IBIRAPUITÃ (1938/1939)
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e, cada folha que cai é um grito de beleza no silêncio augural da tarde que agoniza, é um farrapo de vida que se esvai... Quando uma folha cai e amarelece e morre ao leu do vento que a agita na umidade do pomar, eu vejo nessa folha uma Saudade. E que não há-de? se é um pedacinho da infinita Alma da Terra que vem, brilhando, refletir o Sol e refletir o Luar. Folha morta! Farrapo de ilusão! Esquecimento! dança, folha morta, ao leu do vento, no seio maternal da terra fria. Se pensados de acordo com a periodização da historiografia literária, ambos os poemas poderiam ser redimensionados nas estéticas romântica e simbolista, respectivamente, o que leva-nos a pensar, inicialmente, que a produção poética veiculada pelo periódico Ibirapuitã se constitua de poetas influenciados pelos movimentos anteriores ao modernismo, tão evidenciado nos anos 30 no que tange à produção literária advinda do centro do país e tão pouco problematizado pela tradição literária sulina.
RECONHECENDO A “LITERATURA PELAS BEIRADAS”7·: UMA TENTATIVA O resgate de textos não tão celebrados pelo cânone é ponto fulcral deste artigo, que tenta viabilizar, através do espaço dedicado à literatura em fontes primárias, especialmente o periódico Ibirapuitã (1938-1939), a inserção, no sistema literário sul- rio-grandense, de autores gaúchos marginalizados pela tradição. Inscrever esses autores que colaboraram de forma intensa com o periódico na história literária sulina, representa tentativa de reconhecimento das mais árduas e espinhosas para uma produção do interior que se construiu em circunstâncias desfavoráveis, mas que 7
Refiro-me à expressão mencionada por Marcelo Backes em “A literatura gaúcha pelas beiradas”; acerca da produção literária do Estado que não se configura suficientemente bem ao lado da literatura brasileira, com uma gama de autores não reconhecidos por esse sistema; haja vista, a existência de algumas “beiradas” tais como geográficas, editoriais e midiáticas; aspecto que também se observa, em minha opinião, dentro do próprio sistema gaúcho, que muitas vezes exclui a produção do interior.
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alcançou projeção nacional e internacional à época, redirecionando-a para outros pampas que não o do esquecimento. Há um visível esgotamento frente aos sistemas literários auto-excludentes, arbitrários e exacerbadamente subjetivos, onde se faz necessária a constante reescrita e releitura da história literária, com lentes de aumento para além de suas esferas centralizadoras. É necessário que o revisionismo que tanto afeta a historiografia literária gaúcha produza, de fato, mudanças visíveis em seu produto e que o cânone seja repensando frente a tantas formas de se fazer história da literatura, isto é, visualizar possibilidades de outras fontes, tal qual a fonte primária, que também se inscreve a margem desta escrita literária. Porém, como nos diz o poeta Milano (1938, p.8), ainda há uma esperança “Meu barquinho não descansa/meu barquinho sempre avança/Qual um soberbo batel”; uma esperança que, apesar de tudo, não morre, apenas se renova. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BACKES, Marcelo. A literatura gaúcha pelas beiradas. Revista Vox XXI. Porto Alegre, 22 de setembro de 2002. COELHO, Felisberto Soares. Ibirapuitã- Mensário de Sociedade, Literatura e Arte. Alegrete, Ano I, nº 1, janeiro 1938. Editorial. COELHO, Felisberto Soares. Ibirapuitã- Mensário de Sociedade, Literatura e Arte. Alegrete, Ano I, nº 1, janeiro, 1938. Correio Amigo. MARTINS, Ana Luiza. De Revistas, Hebdomadários e Magazines In: Revistas em Revista: Imprensa e Práticas Culturais em Tempos de República, São Paulo (1890-1922). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: FAPESP, 2001, p. 111-162. MILANO, Antonio Brasil. Cantiga para a minha esperança. Ibirapuitã- Mensário de Sociedade, Literatura e Arte. Alegrete, Ano I, nº 2, Fevereiro, 1938. MOREIRA, Alice Campos. Acervos de periódicos literários: estatuto, taxionomia e memória. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM PERIÓDICOS LITERÁRIOS BRASILEIROS, 2002, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: PUCRS, 2003. SCHMITT, Hernani de Carvalho. Canção das Horas Mortas. Revista Ibirapuitã. Mensário de Sociedade, Literatura e Arte. Alegrete, Fevereiro, 1938. Ano I nº 2. ZILBERMAN, Regina. A literatura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992. ZILBERMAN, Regina; BORDINI, Maria da Glória. As pedras e o arco: fontes primárias, teoria e história da literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
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a rEcEPÇÃo crÍtica Do MoViMEnto SiMBoLiSta naS PÁGinaS Do JornaL cEarEnSE O PÃO (1892-1896)
Luciana Brito Doutora em Letras pela universidade Estadual Paulista (unESP). Diretora e Professora do centro de Letras, comunicação e artes da universidade Estadual do norte do Paraná (uEnP/Jac) e Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da universidade Estadual de Londrina (uEL). contato: lbrito@uenp.edu.br
A RECEPÇÃO CRÍTICA DO MOVIMENTO SIMBOLISTA NAS PÁGINAS DO JORNAL CEARENSE O PÃO (1892-1896) Luciana Brito
RESUMO: O artigo em questão tem por objetivo estudar a recepção crítica do movimento simbolista nas páginas do jornal cearense O Pão (1892-1896), um dos órgãos literários que mais colaborou para a consolidação das Letras e das Artes no Ceará. Foi nas colunas deste jornal, onde ecleticamente conviviam diversas tendências estéticas, que os poetas Lopes Filho, autor de Fantos (1893), e Lívio Barreto, autor de Dolentes (1897), e o contista Cabral de Alencar, publicaram seus primeiros textos simbolistas. Entretanto, alguns dos redatores do jornal, como é o caso de Antônio Sales, atacam impiedosamente o Simbolismo nacional. Vale ressaltar que tal ação é uma resposta a ataques vindos de outras revistas simbolistas espalhadas pelo país, como é o caso da Tebaida, órgão dos simbolistas do Rio de Janeiro, mas a nova escola é que passa a ser alvo das censuras dos redatores de O Pão. PALAVRAS-CHAVE: Recepção crítica; Imprensa; Simbolismo; O Pão.
THE CRITICAL RECEPTION OF THE SYMBOLIST MOVEMENT IN THE PAGES OF THE CEARENSE NEWSPAPER O PÃO (1892-1896) ABSTRACT: The article aims to study the critical reception of the Symbolist movement on the pages of the newspaper from Ceará, O Pão (1892-1896), a literary group which most contributed to the consolidation of Letters and Arts in Ceará. It was on the pages of this newspaper that different aesthetic tendencies like the poets Lopes Filho, the author of Fantos (1893) and Livy Baker, the author of Dolentes (1897), and the storyteller Cabral de Alencar published their first texts. However, some editors of the newspaper as Antonio Sales, mercilessly attack the national symbolism. It is important to emphasise that such action is a response to attacks from other Symbolist magazines across the country, as Tebaida from Rio de Janeiro, but it is the new school that becomes the focus of censure by the editors of O Pão. KEYWORDS: Critical reception; Press; Symbolism; O Pão.
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INTRODUÇÃO Na segunda metade do século XIX, apesar de vários fatores concorrerem para o declínio econômico e político do Ceará, a atividade artística, principalmente a literária, foi intensa e fecunda em Fortaleza. Vários intelectuais formavam agremiações, espaços de sociabilidade onde discutiam os mais variados assuntos, principalmente os literários. O escritor cearense Leonardo Mota (1938), procurando fazer um levantamento das academias e grêmios literários que surgiram entre 1870 e 1939, responsáveis pela propagação das letras no Ceará, concluiu que, de 1870 até 1900, foram trinta e sete os grupos que atuaram no contexto intelectual cearense, sendo que a maior parte surge na cidade de Fortaleza. E, segundo diversos estudiosos, como é o caso de Dolor Barreira (1948), foi de extrema importância para a história da literatura cearense as revistas e jornais literários veiculados por essas agremiações. O Ceará não podia eximir-se à proliferação das academias ou agremiações literárias em voga na Europa desde o século XVII e no país desde o século XVIII. Além disso, há outro motivo que também explica o aparecimento dessas sociedades na província: não havia no Ceará nenhum estímulo às produções intelectuais e artísticas bem como à publicação de livros. Sendo assim, intelectuais reuniam-se em agremiações em Fortaleza, tendo como intuito promover a fermentação de ideias, o gosto artístico e, principalmente, a formação de um público leitor. Para tanto, lançavam jornais e revistas em que publicavam os mais diversos tipos de textos que “além de sanar os problemas relacionados com as dificuldades eventuais de edição da obra em volume [...] também era uma interessante oportunidade [...] de lançar uma espécie de balão de ensaio, através do qual poderiam sondar a aceitação do público” (BRITO, 2003, p.60). Referindo-se às causas que determinaram o surgimento dessas sociedades na Capital cearense e sua grande importância intelectual, escreveu Pessoa no final do século XIX: [...] essas agremiações não deixam de ser interessantes e até certo ponto se justificam. No meio provinciano falece de todo o estímulo a qualquer produção de arte. [...] Não há como se celebrizar um gênio, fulgindo nessas colunas febris, consagradas a fins mais altos que acolher lucubrações literárias. Depois, o poeta, que é amanuense do governo, não tem guarida no jornal da oposição, e contista, que frequenta os salões e namora a filha do chefe político em oposição, nunca achará agasalho na folha oficial. A publicação de livros é um martírio: o preço da edição – exorbitante, e ninguém quer ou sabe lê-los, quanto mais comprá-los (PESSOA apud BARREIRA, 1948, p.63).
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Pessoa sabia das dificuldades do meio, inclusive fez parte de uma dessas agremiações que procuravam sacudir Fortaleza, o Centro Literário1. Intelectuais como ele, ou seja, que tinham interesse em publicar suas ideias, só encontravam certo desafogo nessas sociedades, nas quais discutiam variados assuntos, reuniam-se para lerem suas produções, fundavam jornais e revistas, desenvolviam seus talentos e partiam para voos mais largos, pois, afinal, vários escritores cearenses renomados, reconhecidos em todo o país, no início de suas carreiras, fizeram parte desses grupos, como é o caso de Juvenal Galeno, Araripe Junior, Rocha Lima, Tomás Pompeu, Adolfo Caminha, Antônio Sales, Oliveira Paiva, dentre outros. Dentre essas sociedades algumas tiveram existência curta e efêmera, outras intensa e fecunda, como é o caso da Padaria Espiritual2 (1892-1898). Apesar do espírito jovial e brincalhão dos seus idealizadores, a verdade é que a Padaria Espiritual contribuiu muito para a promoção da literatura cearense. Além de ter lançado o jornal O Pão3, em que foram publicados vários contos, fragmentos e capítulos de romances, crônicas, poemas e textos de crítica literária, também foi a responsável pela publicação de um número considerável de livros.
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Em 27 de setembro de 1894, surge o Centro Literário, tendo como sócios fundadores Juvenal Galeno, Viana de Carvalho, Temístocles Machado, Papi Júnior, Álvaro Martins, Luiz Agassiz, Pedro Moniz, Alves Lima, Alfredo Severo, Jovino Guedes, Quintino Cunha, Frota Pessoa, Alcides Mendes, Farias Brito, Rodolfo Teófilo, José Olímpio, Eduardo Sabóia, Francisco Barreto, Tancredo de Melo, Almeida Braga e Belfort Teixeira (MOTA, 1932). De acordo com Mota (1932), o Centro Literário originou-se do afastamento de Álvaro Martins e Temístocles Machado da Padaria Espiritual. O Centro, que durou dez anos, organizou conferências literárias, editou obras, criou a revista Iracema, que lançou durante dois anos inúmeros textos, e prestou auxílio a grupos congêneres. 2
A Padaria Espiritual surge, em 1892, das reuniões de um grupo de rapazes que se reuniam nas mesas do Café Java, um quiosque que ficava no centro de Fortaleza, para falar de literatura. O intuito maior do grupo era despertar nos cearenses, como fora de interesse de outras sociedades literárias, o gosto artístico, principalmente literário. Todavia, como já havia precedentes de sociedades literárias, muitas delas de traços tradicionais, então os integrantes da Padaria Espiritual, em especial seu idealizador, Antônio Sales, decidiram produzir algo original e, se necessário, até mesmo escandaloso, mas que repercutisse entre os cearenses. Desse modo, Antônio Sales deu um nome original ao grêmio, Padaria Espiritual, e, em seguida, elaborou seu inovador programa de instalação, que foi um verdadeiro sucesso.
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Preocupados em divulgar suas ideias e obras e, inclusive, impor-se socialmente, era natural que os idealizadores da Padaria espiritual tivessem um jornal que fosse porta-voz dos seus interesses. A ideia de “O Pão” surgiu junto com a ideia da “Padaria”, pois era difícil conceber uma sociedade literária sem um jornal que divulgasse as ideias inovadoras do grupo. O Pão, assim como a Padaria Espiritual, teve duas fases, a primeira, em que foram publicados os seis primeiros números, vai de julho a novembro de 1894. A segunda, em que há um diretor, Antônio Sales, e um gerente, Sabino Batista (1868-1899), inicia-se em 1895 e vai até 1896, e apresenta trinta números. No primeiro número dessa nova fase, há um artigo que explica a ausência assim como o retorno do jornal, que volta mais circunspeto e mais forte, e o mais importante, com novos “obreiros”, ou seja, novos sócios e correspondentes. Nesta fase, os redatores, cheios de otimismo e orgulho, apresentam-se satisfeitos com o jornal e a agremiação, já, então, reconhecida em todo o país e dispondo de sóciocorrespondentes nacionais e estrangeiros. O Pão, que era enviado a todas as sociedades literárias brasileiras, devido à sua excentricidade, despertava a simpatia pública.
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A ESTÉTICA SIMBOLISTA NAS PÁGINAS DO JORNAL O PÃO (1892-1896) Foi nas colunas d’O Pão, onde ecleticamente conviviam diversas tendências estéticas (Romantismo, Realismo, Naturalismo e Parnasianismo), que os poetas Lopes Filho, autor de Fantos (1893), e Lívio Barreto, autor de Dolentes (1897), e o contista Cabral de Alencar, publicaram seus primeiros textos simbolistas. Todavia, alguns redatores do jornal escrevem críticas severas ao Simbolismo nacional. Vale dizer que tal ação é uma resposta a ataques vindos de fora, mas a nova estética é que passa a ser alvo das censuras dos redatores. É o caso, por exemplo, do artigo “Uma agressão”, publicado no n.º 18, em que Antônio Sales, poeta e romancista realista-naturalista, ataca impiedosamente Alves de Faria, poeta alagoano que pontificava na revista Tebaida (órgão dos simbolistas do Rio de Janeiro), que além de escrever uma carta criticando duramente o segundo livro de Antonio Sales, as Trovas do Norte, também mencionou a destruição da Padaria Espiritual. Diz Sales, em certo momento do seu artigo, que a carta que Alves de Faria lhe remeteu é um atestado do seu desequilíbrio mental, pois há muito tempo ele “não via tanta asneira junta” (SALES, 1895, p. 02). Como o caluniador também havia censurado, no mesmo artigo, Olavo Bilac, Afonso Celso, Artur Azevedo, Carlos Dias e Coelho Neto, Antônio Sales comenta que é um regalo ser sovado em tão boa companhia. Alves Faria, ao mencionar a destruição da Padaria Espiritual em um de seus artigos, afirma: Alongando o olhar até esse pedaço de Norte para onde a ciência hidráulica conseguiu fazer derivar um cristalino veio, calmo e doce, da fonte Cristalina, parece-nos ver a imagem da Arte, quente e fumegante do forno da Padaria Espiritual, ereta em meio de um cesto de bolos e conduzida sobre um chiante carro de bois! E como ela vai desfigurada! Vemo-la inteiramente, através da distância, e nos parece antes uma condenada, lavada ao patíbulo da Crítica, triste e lacrimosa, de olhos doces e amêndoas confeitadas e lábios secos e duros de côdea! Pobrezinha! Falta-lhe apenas, para a perfeita apoteose do seu martírio, a verde cana, já sagrada à essência suavíssima (sic) da sua Doçura! (FARIAS apud CAROLLO, 1981, p. 397)
Defendendo sua agremiação, diz Antônio Sales:
Estes rapazes (padeiros) de quem S.S. fala tão desdenhosamente são artistas de finos nervos, tendo na Arte uma orientação segura e nítida, emoldurando a ideia simples e sã na estrofe ou no período singelo e claro, sem esses atavios supérfluos e requintados que alguns nevrotados (sic) inventaram com o fim de ocultar a compleição raquítica das suas produções. (SALES, 1895, p. 2)
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A afirmação do crítico é genérica demais, pois não corresponde aos estilos seguidos por todo o grupo, que não era tão homogêneo assim. Basta lembrar que Lopes Filho e Lívio Barreto, dois poetas indubitavelmente simbolistas, logo nos primeiros números do jornal do grêmio, já aparecem com seus poemas repletos de pessimismo e misticismo, cuja linguagem nada tinha de nitidez e muito menos de ideia “simples e sã”. Ao interrogar sobre o que consistia a “estética literária dos nevrotados (sic) reformadores da Arte de escrever no Brasil”, no caso a estética simbolista, responde o seguinte: Nisto simplesmente: sobre um fundo de lirismo doentio e incongruente tecer composições de formas arrevesada, de vocabulário exótico e rebuscado, com grandes gastos de maiúsculas e tudo besuntado de um misticismo piegas e de um fatalismo incoerente. (SALES, 1895, p.2)
O “lirismo doentio e incongruente”, o “vocabulário exótico e rebuscado”, o “misticismo” e o “fatalismo incoerente” da estética simbolista, iam contra o ideal de arte defendido pelo crítico, cujas raízes eram calcadas na objetividade dos temas e na clareza da linguagem. No final do texto, conclui que a Padaria Espiritual não deve ser “banida” como afirma Alves de Faria, mas sim essa “igrejinha simbolista” (a Tebaida), “a bem do bom senso e do bom gosto” (SALES, 1895, p. 2). Neste fragmento, ocorre uma referência à famosa Questão Coimbrã, polêmica travada entre românticos e realistas, em Portugal, durante a segunda metade o século XIX. Os românticos, representados por Feliciano de Castilho, criticaram um grupo de jovens da Universidade de Coimbra, que defendiam novas ideias, diga-se, realistas. Antero de Quental, um desses jovens, rebate as críticas dos românticos com uma carta aberta conhecida por Bom Senso e Bom Gosto. Essa polêmica só se definiria mais tarde com as Conferências do Cassino Lisbonense, proferidas por Antero de Quental, Eça de Queirós e outros. Tal acontecimento entrou para a história de Portugal com o nome de Questão Coimbrã e marca oficialmente o início do Realismo na Península Ibérica. Assim como os portugueses, os membros de O Pão e da Tebaida também realizaram inúmeras trocas de ofensas através de seus respectivos jornais. A seção “Carteira”, no mesmo número em que Antônio Sales responde às críticas de Alves de Faria, tratando de Carlos Dias, que teria também atacado a Tebaida, informa haver este pintado “a debandada que vai por aquele viveiro de gênios, do qual já se desligaram Cruz e Sousa, B. Lopes e outros” (CARTEIRA, 1895, p. 3). E, aludindo à união existente entre os literatos do jornal O Pão, diz a seção: “Desunidos, eles não podem ver com bons olhos a união dos outros” (CARTEIRA, 1895, p. 3). A mesma seção, no número seguinte, o 19, volta a falar da revista Tebaida que certamente continuava insultando a Padaria Espiritual. Diz ela: “[...] esses decadentistas de meia tigela sempre
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que discutem arrepanham (sic) sua túnica de romeiros e deixam ver o paletó sovado e gorduroso de capadócios (sic)” (CARTEIRA, 1895, p. 2) Os ataques continuam no n.º 20, Bruno Jaci, isto é, José Carlos Júnior, publica um artigo muito expressivo intitulado “Com a Tebaida” respondendo às ofensas que um dos integrantes da revista Tebaida (órgão dos simbolistas do Rio de Janeiro), cujo pseudônimo era “Pedro, o eremita”, lançara sobre a Padaria Espiritual. O padeiro inicia seu texto comentando que em um hospital “de doidos” na Inglaterra, estava sendo publicado um jornal redigido pelos próprios pacientes e quando recebeu o primeiro número do jornal A Tebaida, descobriu que estava diante do mesmo tipo de jornal. Para ele, a única diferença existente entre ambos é que os redatores de um estão recolhidos em um hospício, enquanto que os do outro andam soltos. Depois diz que: “Excetuadas duas ou três composições em que na Tebaida há senso comum, o mais é tudo coisa de nefelibatas, simbolistas, estradeiros de Santiago, etc.” (JÚNIOR, 1895, p. 2) Ao atacar os integrantes da Tebaida que haviam denegrido a imagem da Padaria Espiritual na imprensa carioca, o crítico acaba por insultar o movimento simbolista, na medida em que menciona, pejorativamente, os vocábulos “nefelibata”, “simbolista” e “estradeiros de Santiago”. O alvo dos ataques passa a ser o movimento como um todo. A terminologia utilizada para referir-se ao movimento, estrutura-se através do emprego pejorativo de termos que têm um significado de provocação, de conotação moralista, sarcástica e pejorativa. O crítico, não se libertando dos clichês tão em voga no momento entre os ensaístas que se referiram ao Simbolismo, não consegue apreender as inovações da nova estética. Ao ler o movimento, fez uso dos clichês que a crítica da época tanto apresentava nas suas apreciações dedicadas às obras simbolistas. O intenso uso de clichês e estereótipos por parte de muitos dos críticos que se referiram à corrente novista talvez possa ser resultado do fato de que a promoção do Simbolismo na literatura brasileira ocorre através de uma inquietação cultural que inseriu notícias e informações divulgando as últimas transformações operadas na literatura europeia, ligadas ao esgotamento das tendências estéticas orientadas pela concepção cientificista do mundo. São informações nem sempre esclarecedoras sobre o movimento na França, obtidos através do acesso a revistas e jornais ou da leitura de algumas poucas obras que dificilmente poderiam permitir uma visão satisfatória das novas posições. Daí a existência de clichês, de estereótipos, de informações genéricas nos textos críticos que comentavam a chegada da nova estética. A muitos pode parecer estranho o fato de a Padaria Espiritual (que tem sido considerada por alguns estudiosos, aliás, erroneamente, um grupo simbolista) lançar tão terríveis ataques aos cultores da nova seita, tendo em seu seio pelo menos dois poetas indubitavelmente simbolistas:
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Lopes Filho e Lívio Barreto. E parece mais estranha ainda a inclusão, no n.º 22 de O Pão, de um texto em que o próprio Lopes Filho, autor do primeiro livro simbolista cearense, justamente ao elogiar os Mármores, de Francisca Júlia, faz censura aos simbolistas do Sul do país. Depois de exaltar na jovem escritora os seus “versos corretos”, diz o poeta dos Fantos: Cruz e Sousa e outros, ultimamente, no Rio de Janeiro, têm-se constituído os arautos do decadismo; mas em quase todos esses moços – excetuando B. Lopes, Afonso Guimarães e Emiliano de Menezes – reina a mais bem acabada vocação artística para... para copiarem servilmente os novos de Portugal e França. (FILHO, 1895, p. 04)
Deve-se advertir, entretanto, que já iam bem longe os tempos em que, sem conhecimento do que faziam os primeiros simbolistas do Paraná ou do Rio de Janeiro, Lopes Filho compunha os versos de seu livro ao influxo do Simbolismo português. Com o tempo, o padeiro foi, aos poucos, fugindo da ortodoxia da escola, apesar de nunca ter perdido os tons crepusculares do Simbolismo ou o pessimismo do Decadentismo. Junta-se a isso o fato do Pedro, da Tebaida, havê-lo atacado, a ele e a seu livro, o Fantos, duramente, como se pode ver no fragmento abaixo: A Padaria Espiritual e o Centro do mesmo nome são fábricas de rosas colossais, manejadas no grande forno do espírito Cearense pela pá do Sr. Antônio Sales, um padeiro de avental e cafurinha branca na cabeça, muito suado pelo calor do seu talento, enquanto o Sr. Lopes Filho agarra-se ao badalo colossal dos Fantos e dobra-o e redobra-o pavorosamente, de tal modo que o som se espalha pelo Norte até a extrema latitude setentrional do Brasil e desce Sul abaixo até as fronteiras com o Rio da Prata, como se fosse um Quasímodo das Letras, disforme, anguloso, corcunda, endemasiado (sic), cheio da grimace (sic) fantástica do Som. (FARIAS apud CAROLLO, 1981, p. 397)
Tudo isso leva a crer que os seguidores da mesma corrente estética não se entendiam muito bem, o que, aliás, não é de se estranhar entre literatos. Apesar de que esses ataques ao Simbolismo, existentes nos artigos publicados em O Pão e escritos por Antônio Sales, José Carlos Júnior e pelo próprio Lopes Filho, podem ser explicados à luz da história. Em geral, uma revolução poética longe de ser resultado de um processo de sucessão amigável, supõe uma longa fase de lutas, polêmicas e debates, decorrentes da reação natural de um sistema até então dominante. E o movimento simbolista não fugiu a essa regra. Todavia, paralelamente a essa reação natural, o movimento simbolista conviveu com outros problemas de adaptação. O peso ideológico que marca desde cedo a literatura brasileira acaba sendo talvez o dado fundamental para compreendermos a chegada da nova estética. Era preciso “criar” uma realidade nacional, e a literatura ocupava um lugar privilegiado no campo da produção de bens
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simbólicos. A ideologia romântica do “nacionalismo artístico” acabou por levar a criação artística a ser entendida como prova da capacidade nacional. Sendo assim, as correntes que, desde o início do século XIX, orientam a produção literária brasileira são nacionalismo e nativismo. No âmbito literário, a necessidade de afirmação e participação do/no contexto nacional só eram possíveis mediante a utilização de uma linguagem que oferecesse alto grau de legibilidade calcada no pretexto patriótico e no papel didático que o literato deveria assumir, como afirma Antonio Candido: Correspondendo aos públicos pequenos e singelos a nossa literatura foi geralmente acessível como poucas, pois até o Modernismo não houve aqui escritor realmente difícil, a não ser a dificuldade fácil do rebuscamento verbal [...] A constituição do patriotismo como pretexto, e a conseqüente adoração pelo escritor do papel didático de quem contribuiu para a coletividade, deve ter favorecido a legibilidade das obras. Tornar-se legível pelo conformismo aos padrões correntes; exprimir os anseios de todos, dar testemunho sobre o país; exprimir ou reproduzir sua realidade [...] (CANDIDO, 1965, p.102)
Desse modo, ao mesmo tempo em que se favoreciam as obras literárias que estabelecessem a legibilidade do real, no fundo o ideal de nacionalidade, reprimiam-se as obras de invenção, pois estas não correspondiam adequadamente à função que o modelo de linguagem legível e verossímil, oriunda do Romantismo, Realismo/Naturalismo e Parnasianismo, vinham preenchendo no que diz respeito a uma visão do real, do nacional. Ainda segundo Antonio Candido “Não espanta que os autores brasileiros tenham pouco de gratuidade que dá asas às obras de arte; e, ao contrário, muito da fidelidade documentária ou sentimental, que vincula a experiência bruta.” (CANDIDO, 1965, p.103) Neste contexto, cujas linhas mestras giravam em torno da referencialidade e da legibilidade do objeto literário, o artificialismo, tomado como verdadeira cosmovisão anti-naturalista, a sensibilidade “névrosée”, o gosto pelo vago e pelo indefinido, o esteticismo e sobretudo a linguagem poética rejeitando a objetividade e os padrões de estruturação lógica, associados ao gosto pelo mistério e hermetismo, próprios da corrente simbolista, - que aparece em grande parte como o começo do movimento de construção de uma linguagem não representativa – não poderiam ser facilmente adequados à realidade da literatura brasileira. O modelo simbolista representava a tomada de consciência dos limites da linguagem representativa. Ora, essa posição implicava um questionamento não só da possibilidade da reprodução realista, mas do próprio real, visto como algo não apreensível racionalmente. Ao passo que, no caso da literatura brasileira, o momento era o de estabelecer modelos de linguagem que favorecessem a legibilidade do real, do nacional, que assegurassem uma linguagem nacional e não uma crise desses modelos. Wilson Martins, ao tratar da literatura brasileira no final do século XIX, esclarece:
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É que, contrariando as polarizações fáceis dos manuais, não só o Simbolismo estava longe de ser uma corrente predominante em 1894 (na verdade jamais chegaria a sê-lo), como, ainda, e talvez por isso mesmo, havia um anti-Simbolismo ao lado do Simbolismo. (MARTINS, 1978, p. 450)
Esse “anti-Simbolismo” a que se refere o escritor seria formado, em sua maioria, pelos críticos naturalistas e positivistas que dominaram grande parte do século XIX e tiveram seus pressupostos colocados em questão pelo aparecimento das obras simbolistas que, além de não se ajustarem as suas lentes naturalistas e positivistas, fizeram do desajustamento uma antirrepresentação, apontando, desse modo para os desvios entre literatura e história e, por consequência, para a crise dos métodos historiográficos. Daí a existência de inúmeros comentários incompreensíveis ou ataques à corrente simbolista por parte dos críticos, uma vez que as discussões tinham pouco de considerações polêmicas em torno de ideias e teorias de ordem literária e estética. A figura de Cruz e Sousa, alvo dos ataques mais fortes, é também o exemplo do rumo tomado pela luta: poucas indagações literárias, muitas ofensas pessoais e zombarias.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Como pôde ser visto, na fase em que o conceito de Decadentismo e Simbolismo circula como informação, isto é, principalmente entre 1887-94, a crítica naturalista, dirigida pelos pressupostos metodológicos de base cientificista, converge seus esforços para preocupações orientadas pelo critério de nacionalidade e para estudos interessados pelos métodos historiográficos. Com exceção de Araripe Júnior, cuja crítica distingue-se pela inclinação natural pelo ecletismo, pela formação humanista, os principais representantes da crítica estão voltados para a historiografia literária. É verdade que José Veríssimo, como crítico militante que foi, terá uma relação mais direta com os simbolistas, porém sua atuação ocorre numa fase em que a notícia do movimento já deixara de ser novidade, sendo interesse do crítico a avaliação de obras, ficando implícitas as considerações sobre a teoria da nova estética. Este tipo de comportamento perante a corrente simbolista não é caso isolado da literatura brasileira pois ocorre nas demais literaturas, não sendo raro o crítico que deixe de deplorar a obscuridade, o artificialismo, a sensibilidade névrosée, e o relaxamento das regras prosódicas por parte dos decadentistas. Todavia, no caso da literatura europeia, os traços que iriam mais tarde ser radicalizados pelos simbolistas, no sentido de uma mudança na função poética da linguagem, já estavam
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delineados – diferentemente do que ocorre no contexto brasileiro – através de uma necessidade natural, por parte dos europeus, de libertar a linguagem de seu compromisso com a representação. As diferenças contextuais no caso da literatura europeia e brasileira são gritantes, e muitos críticos conseguem captar isso, inclusive o padeiro Antônio Sales que acaba por afirmar o seguinte: É este o espetáculo que nos oferece a intelectualidade européia, que nós começamos a macaquear como se estivéssemos nas mesmas desgraçadas condições psicológicas e sociais a que chegaram povos gastos pelo atrito de tantos anos de civilização crescente e devoradora. Não há dúvida que a moléstia do século começa a minar a intelectualidade brasileira, moléstia que não apareceu espontaneamente, mas que importamos mui simplesmente como se fosse um objeto da moda. (SALES, 1895, p. 05)
O processo de repetir e absorver superficialmente os modelos de linguagem “como se fosse um objeto da moda” que a Europa urbanizada e industrializada envia é um dado que instiga o padeiro, pois diz respeito a nossa situação de colonizados, na medida em que tal processo revela um dos aspectos do sistema imitativo de uma literatura considerada periférica, assim como seu país. Foi possível a Antônio Sales perceber, de uma maneira fecunda, a questão da importação de modelos – mecanismo indispensável, mas insuficiente como se dava entre nós –, algo que era e ainda é, a pedra de toque de certa “consciência nacional”. Em outras palavras, ele percebe uma transposição imitativa de fórmulas, o que não é o mesmo que uma recriação. No caso especifico da Padaria Espiritual, os ataques ao Simbolismo, principalmente aos grupos simbolistas que aqui se formaram, além de serem resultado de diferenças estético-literárias também são consequência de outra polêmica. Trata-se da polêmica Norte/Sul que envolveu grande parte dos escritores renomados na defesa da literatura do Norte, enquanto os do Sul proclamavam a literatura sulista como verdadeira manifestação do novo pensamento. No caso, a Padaria Espiritual representava o Norte e a revista Tebaida, órgão dos simbolistas do Rio de Janeiro, o Sul. Afirmando estarem em defesa dos ideais estéticos, os integrantes da Tebaida desenvolveram intensa campanha contra o grupo cearense da Padaria Espiritual que, como era natural, respondeu aos ataques. Com o tempo, as ofensas que ficavam inicialmente, por parte dos padeiros, ao nível pessoal, passam a ter como alvo o movimento simbolista em geral, como se viu no início do texto com os fragmentos transcritos dos artigos publicados nas páginas de O Pão. Vários fatores concorreram para que o movimento simbolista não fosse bem visto pelos padeiros e recebesse deles várias críticas. Mas o principal fator vai além dos interesses meramente pessoais ou regionais, como é o caso da polêmica Norte/Sul. Como já foi dito anteriormente, o que realmente inviabilizou a adaptação da corrente aqui no Brasil diz respeito à barreira imposta à obra de
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invenção que não correspondia aos modelos literários pré-estabelecidos, baseados na legibilidade de um “certo real”, através dos quais pudesse ser elaborado uma representação da realidade brasileira, necessária para a formação de uma consciência nacional. Desse modo, apontando o que é brasileiro, o escritor passa a ser visto como o porta-voz da nacionalidade. Ao lado desse veto implícito/explícito à obra simbolista, ao que é ficcional, caberia talvez apontar que ele é reforçado por outras razões: na medida em que é enfatizado o documental, a “realidade” de que a obra pretende ser o retrato, ocorre uma ausência de indagação crítica, reflexiva por parte dos leitores, ao passo que o ficcional exige uma resposta ativa, de curiosidade filosófica do receptor, que o leva a inquirir sobre sua noção de realidade, contrária a uma formação autoritária, conservadora que acaba por influenciar o caráter da literatura brasileira.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARREIRA, Dolor. História da literatura cearense. Fortaleza: Instituto do Ceará, 1948. BRITO, Luciana. O Pão... da Padaria Espiritual (1892-1896) e sua produção crítica. 2003.148 f. (+ anexo). Dissertação (Mestrado em Letras) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2003. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Nacional, 1965. CARLOS JÚNIOR, José. Com a Tebaida. O Pão, Fortaleza, n.º 20, 15 de julho de 1895. CAROLLO, Cassiana Lacerda. Decadentismo e simbolismo no Brasil: crítica e poética. Brasília: INL_Mec; Rio de janeiro: LTC-Livro Técnicos e Científicos, 1981, vol. I. CARTEIRA. O Pão, Fortaleza, n.º 18, 15 de junho de 1895, p. 3. ______. O Pão, Fortaleza, n.º 19, 1 de julho de 1895, p. 2. LOPES FILHO. Mármores. O Pão, Fortaleza, n.º 22, 15 de agosto de 1895, p.4. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. São Paulo: Cultrix, 1978, v.4. MOTA, Leonardo. A Padaria Espiritual. Fortaleza: Edésio, 1938. SALES, Antônio. Bibliografia. O Pão, Fortaleza, n.º 13, 01 de abril de 1895, p. 5. ______. Uma agressão. O Pão, Fortaleza, n.º 18, 15 de junho de 1895, p. 2.
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a Visita CRUel Dos GÊneRos: JenniFeR eGan e a sitUaÇÃo RoManesCa
Daniel Baz Dos santos Doutorando em História da literatura pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Mestre em História da literatura (FURG) e Graduado em letras Português-inglês (FURG). Contato: deucaliaoepirra@yahoo.com.br
A VISITA CRUEL DOS GÊNEROS: JENNIFER EGAN E A SITUAÇÃO ROMANESCA Daniel Baz dos Santos RESUMO: O romance A visita cruel do tempo, que deu a Jennifer Egan o Pulitzer de ficção e o National Book Critics Circle Award, ambos em 2011, permite uma discussão atualizada a respeito do romance como gênero híbrido, plurilinguístico e bivocal, tal qual Mikhail Bakthin o classificou. Além disso, provoca reflexão acerca do caráter dialógico destes recursos, que podem, como veremos, manter aberto o diálogo sobre o futuro do romance. Entre mortos e feridos, o realismo na ficção é posto mais uma vez em pauta, visto que A visita cruel do tempo trabalha no limite do experimentalismo e da mimese responsável por um efeito verossímil de realidade. PALAVRAS-CHAVE: gênero, romance, Bakhtin, ideologia
A GOON VISIT FROM THE GENRE: JENNIFER EGAN AND THE NOVEL SITUATION ABSTRACT: The novel A visit from the goon squad, winner of the Pulitzer Prize for fiction in 2011, promotes an updated discussion about the novel concerning Mikhail Bakthin’s theory. Moreover, it incites a reflexion considering the dialogical character of the novel, which can sustain interesting topics regarding the future of the novel and its relations with reality. KEYWORDS: Genre, Novel, Bakhtin, Ideology A partir do trabalho de Jennifer Egan, em A visita cruel do tempo, é possível pensar a respeito do estatuto do romance enquanto gênero, produto e máscara da sociedade moderna ocidental, e refletir sobre seus limites de representação, se é que eles existem. Afinal, faltaram velas para as tantas mortes decretadas pelos intelectuais do século XX e a do romance foi somente mais uma delas, apesar das inúmeras demonstrações, como estas de Egan, de uma pós-vida longeva. Um dos pontos centrais desta discussão já está em textos de modernos precoces como Henry James, no visionário ensaio “O futuro do romance”. Este evoca a liberdade de composição do romance, que garante sua natureza imprevisível, ao mesmo tempo em que nos faz desconfiar de sua utilidade quando chegam tempos de monotonia (ou de vulgarização, como diz James).
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O autor também é bem claro ao apontar que “O Romance é, de todos os retratos, o mais abrangente e elástico. Pode se estender aonde for – apreenderá quase tudo.” (JAMES, 1995, p. 58), amplitude assimilativa que estará na base da teoria bakhtiniana acerca do gênero. Antes de entrar nela, é preciso lembrar alguns acontecimentos mais próximos de Egan, que estimulam o olhar esperançoso ou descrente que se lança à forma romanesca. O primeiro deles envolve as experiências das novas vanguardas pós-década de 60 que, entre outros postulados, decretam o fim da narrativa. Os novos romancistas, como os franceses do nouveau Roman, testam uma espécie de anti-romance, textos que não têm mais a preocupação totalitária de um Balzac, Tolstoi e mesmo de Proust, e compactuam com a necessidade de dizer o mínimo, além da abstração do sentido humano dos textos. Como Alfredo Bernardinelli, no provocativo ensaio “Não estimulem o romance”, explica: [...] Os romancistas pareciam tão enfadados com o grande passado do romance, estavam tão paralisados pelo pesadelo de modelos inalcançáveis, que decidiram escrever contra o romance, para demolir suas estruturas. E, portanto, não narrar, não representar, apagar a personagem, não se misturar com o jornalismo, evitar a sociologia, ignorar a psicologia, pulverizar os eventos, escrever como se nada pudesse acontecer e ninguém pudesse agir. Enfim, acreditando ter aprendido as lições de Ulisses e de O castelo, o romance havia entrado para o território da autonegação da arte. Impregnado de autocrítica, não sabia o que fazer de si mesmo. (BERNARDINELLI, 2007, p. 175)
A resposta vem a seguir, da América Latina, quando o boom liderado por García Márquez renova o interesse pela narrativa e pelas grandes sagas, como a dos Buendía. Neste momento, “À autocrítica do romance (e de toda a arte) segue a autocrítica da autocrítica. Ou seja, à crítica, o retorno aos mitos e a todo tipo de mito.” (BERNARDINELLI, 2007, p. 177) Fica, no desenvolvimento do romance do século XX, a fissura entre uma forma narrativa de um lado, que se pensa e faz da autocrítica uma pedagogia da sagacidade, instruindo o leitor a também ser crítico e consciente do paradigma seletivo de toda obra; e outra, narrativa, que estabelece o pacto da ficção a partir da confiança do leitor no sintagma actancial. Duas culturas surgem desse complexo, uma da narração e outra da análise crítica. Problema que a história também sofreu nas suas duas tendências - serial e narrativa, ou evemencial – que a caracterizaram no século XX.1
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A respeito disso, ver: FURET, François. A oficina da história. Lisboa: Gradiva, s/d.
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A menção a Bernardinelli não é gratuita, já que ele nos provoca a repensar o papel do romance na atualidade, quando afirma que o fortalecimento do regime democrático atenua a necessidade de uma forma, cuja primeira função seria a de permitir o trânsito de ideias minoritárias. O crítico italiano não diz nestes termos, mas com o Youtube, com a televisão atingindo um grau técnico incomparável e tendo-se outras manifestações narrativas da/na sociedade, como o cinema e a história em quadrinhos, fica difícil preservar o discurso romanesco sem cair-se no fetiche, no prazer solitário sem qualquer ligação com as demais séries que o cercam. Se pensarmos o desenvolvimento do romance e especificamente do romance norte-americano, verificamos que muitos de seus modelos canônicos exploram os conflitos entre o percurso individual do sujeito e o macrocosmo, como se a forma pudesse prever seus obstáculos posteriores. A tensão entre criar heróis individuais, mas que serão recebidos por intermédio da esfera pública e serão por ela ressignificados. Desde Moby Dick, passando por Ernest Hemingway, William Faulkner, John Steinbeck e John dos Passos, ainda na primeira metade do século passado, há a necessidade de envolver o percurso individual com alegóricos vínculos ao destino comum. Dos Passos, por exemplo, é exemplar na tentativa de unir experimentação discursiva com um rico panorama da realidade coletiva e relembra Egan quando assimila um gênero de fora, neste caso o cinematográfico, no discurso romanesco. Dando um salto para os autores vivos, Don DeLillo em sua obra-prima Submundo, usa de uma bola de beisebol, que passa de personagem a personagem, como símbolo da interconexão humana, um projeto que tenta problematizar, na contra-mão, os defensores da fragmentação e do individualismo como mote principal do romance. Baste lembrar hipóteses como a de Ian Watt, em A ascensão do romance, que inicia sua investigação apostando no grau de individualismo das personagens do romance, como, por exemplo, o uso de nomes próprios reais e particulares. E
DeLillo
não
está
sozinho,
principalmente
se
pensarmos
contemporaneamente. Um dos mais premiados autores da última década, Jonathan Franzen, também dedica seus monumentos ao uso da história individual ligada ao percurso coletivo, ideário que está expresso no seu Correções, de 2001, mas principalmente no seu aclamado Liberdade (2010), onde é traçado um panorama da sociedade americana das últimas gerações. Fica evidente a semelhança deste com A visita cruel do tempo. A diferença deste último reside no fato de uma crença no panorama social vir atrelada à pessoalização discursiva das consciências romanescas, isto é, das personagens. Considerando a provocação de Bernardinelli, poderíamos
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antever que o romance sequer consiga responder mais a um mundo em que as individualidades estejam em contato ininterrupto e liberal. A mimese realça o processo de criação, mas não pretende perder o mundo de vista, e o mundo não precisa mais reconhecer sua imagem numa representação tão cheia de refrações. É neste momento que Bakhtin vem em nosso socorro. Para Bakhtin2, o romance é uma forma tipicamente moderna, componente inalienável do modo de vida capitalista, e cuja principal função é permitir que a heteroglossia social seja percebida por meio da dialogização da linguagem. É um gênero secundário (uma formação complexa, que utiliza um código elaborado, organizado em um sistema específico) que fundamenta um modo de pensar acerca do mundo, baseado na ação e na ideologia das personagens que o habitam. O eixo inaugural do romance enquanto gênero é a representação dos homens e de suas ideias, a partir dos seus ideologemas, e este só se sustenta pelo fato de haver sempre, no mínimo duas consciências em debate dentro de si, isto é, a autoral (nunca transposta plenamente para a forma) e a da personagem e seu mundo. Além disso, o romance é o mais dialógico dos gêneros discursivos; sua força reside no realce da palavra semi-alheia (BAKHTIN, 1998, p. 100). Trata todos os seus componentes como não-finalizáveis (característica da heteroglossia), sendo sempre experimental, pois questiona o mundo antes de aceitá-lo, testa suas formações discursivas, seus limites e incoerências e permite que um gênero em contato com outro adquira autoconsciência. O movimento de composição de Jennifer Egan permite vermos isso melhor, na sua tentativa exaustiva de aprender a cosmovisão do outro pelo contato mútuo das linguagens e esforçar-se por construir assim uma forma atualizada, quente, viva, como prova a análise da estrutura do livro. O enredo de idas e vindas do novo romance de Jennifer Egan conta a história de um amplo número de personagens, dos quais se destacam Lou, um figurão do mundo da música e de caráter questionável; Bennie, guitarrista punk, cujo grande feito foi descobrir os Conduits; Bosco, guitarrista da tal banda descoberta; Sasha, secretária de Bennie; Scotty, guitarrista da antiga banda do velho punk; entre muitos outros. Todos estes personagens servem para os dois efeitos principais produzidos pelo texto. Primeiro, permite que se trace um panorama vasto dos último 50 anos da sociedade norte-americana com suas contradições, vícios e virtudes. Paralelo a isso, as inúmeras personagens são mimetizadas por vários pontos
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Vale ressaltar que utilizamos uma síntese de Bakhtin que nos convence dentro do cosmos heterogêneo de suas propostas. A palavra romance, por exemplo, pode ter outros significados ao longo sua obra, como mostra Morson e Emerson (MORSON; EMERSON, 2008, p. 319).
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de vistas, recursos de focalização e registros discursivos, que demonstram a natureza renovável da dinâmica romanesca atualmente. O primeiro capítulo do romance é, não ao acaso, narrado a partir de uma terceira pessoa razoavelmente tradicional que enfoca um momento na vida da personagem
Sasha,
cleptomaníaca
secretária
de
Bennie,
que
frequenta
constantemente sessões psicanalíticas com Coz. Os dois juntos empreendem exercícios que envolvem a narração do passado da secretária, com o intuito de curar seu distúrbio psicológico. Assim, as imagens do passado ligam-se sincronicamente com sua identidade de paciente, o que vincula naturalmente sua patologia com seu percurso existencial/narrativo, numa primeira amostra do duplo discurso/identidade, fundamental para o entendimento não só desta obra, como do romance como gênero. No segundo capítulo, outro prisma vem complementar o de Sasha, através da figura de Bennie, que também tem um complexo, uma patologia de origem psíquica que deseja curar. O complexo: uma estranha impotência sexual, aparentemente sem razão. A cura: beber café e... ouro. No terceiro capítulo, temos a introdução da primeira pessoa na figura de Rhéa, mudança necessária para que possamos conhecer a geração da década de setenta que resultou nos dois primeiros capítulos, assim como nos subsequentes. A visão limitada funciona análoga à paulatina fragmentação que caracteriza o grupo com o passar dos anos, numa representação incompleta de um objetivo totalitário, qual seja, sintetizar as últimas gerações norte-americanas. Percebe-se a tentativa de Egan, por enquanto sutil, de aliar suas escolhas discursivas à mundivisão expressa pelos diversos seres que compõe sua história. A partir do quarto capítulo, essa experimentação com a forma romanesca fica cada vez mais impactante, a partir da introdução de múltiplos pontos de vista e estratégias discursivas, mas nosso interesse recai no capítulo nove, onde é narrada a entrevista da atriz Kitty Jackson, dada ao jornalista Jules Jones. Neste ponto, ficam mais palpáveis as contribuições de Bakhtin, uma vez que o grotesco e o cômico dominam o tom da narrativa. Em poucas linhas, o capítulo, imitando uma típica entrevista de revista (com o hilário título “Um almoço em quarenta minutos: Kitty Jackson revela tudo sobre amor, fama e Nixon!”), conta como Jules Jones tentará estuprar a célebre estrela durante o encontro. Bakhtin, observando o realismo grotesco, ou seja, o sistema de imagens da cultura cômico-popular legado pelo renascimento, explica como este degrada o sublime, sendo, na evolução do romance, um aspecto arcaico que garante a ambiência do alto e do baixo, do começo e do fim, da metamorfose como poética romanesca.
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As ações do personagem são transmitidas a partir da típica linguagem jornalística, principalmente a do novo jornalismo, forma já híbrida, mesclada com ficção, expoente nos nomes de Norman Mailer, Tom Wolfe e Hunter S. Thompson, ou nos célebres “perfis” de Gay Talese, como mostra trechos como: [...] Felizmente, a bandeja é a nossa sim (a comida chega mais depressa quando você está comendo com uma estrela de cinema): para Kitty, uma salada Cobb com folhas, tomate, peito de frango, abacate e bacon; para mim, um cheeseburger com fritas e salada Caesar (EGAN, 2011, p. 167) (grifo do autor)
Trecho em que as duas mundivivências são refletidas nos pratos servidos como vulgares “correlatos objetivos”. O mesmo se vê em: [...] Pago a conta apressadamente. Vários motivos me levaram a orquestrar nossa saída: em primeiro lugar, quero arrancar alguns minutos extras de Kitty na tentativa de salvar a entrevista e, em um sentido mais amplo, minha outrora promissora e agora claudicante reputação literária.[...] Em segundo lugar, quero ver Kitty Jackson em pé e em movimento. Para isso, deixo-a seguir na frente ao sair do restaurante, serpenteando entre as mesas com a cabeça baixa como sempre fazem as mulheres excepcionalmente bonitas e também os famosos (sem falar em pessoas como Kitty, que se enquadram nas duas categorias. (EGAN, 2011, p. 175)
Onde a temática sexual é o único indício do corte abrupto que se dará duas páginas a seguir, quando lemos “Kitty se vira para mim. Acho que esqueceu quem sou. Sou tomado por um impulso de jogá-la de costas na grama, e é o que faço.” (EGAN, 2011, p. 177). O ataque de Jules a atriz é inesperado por causa do registro em que ele acontece. A linguagem não sofre qualquer impacto a respeito da violência narrada e mantém seu caráter formal, elevado e até protocolar: [...] Voltemos ao instante em pauta: uma das minhas mãos tapa a boca de Kitty e faz o possível para imobilizar sua cabeça um tanto ágil, enquanto a outra tateia minha braguilha, que estou tendo dificuldade para abrir, talvez por causa das contorções de minha entrevistada sob mim. O que não controlo, infelizmente, são as mãos de Kitty, uma das quais conseguiu se enfiar dentro de sua bolsa branca que contém vários objetos: a foto de um cavalo, um celular do tamanho de uma batata chips que vem tocando sem parar há vários minutos, e uma lata de algo eu devo supor ser spray de pimenta, ou talvez alguma forma de gás lacrimogêneo, a julgar por seu impacto ao ser vaporizado em cheio sobre o meu rosto: uma sensação quente que me cega acompanhada por um jorro de lágrimas, uma sensação de aperto na garganta [...] e é então que ela se apodera de mais um objeto contido na mesma bolsa: um molho de chaves preso a um pequeno canivete suíço cuja lâmina diminuta e um tanto cega ela
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mesmo assim consegue usar para furar minha calça cáqui e minha batata da perna (EGAN, 2011, p. 178-179)
O estilo eleito está em desarmonia com a temática dada. Esta pertence a uma cosmovisão distinta e que deve ser iluminada por um código-alteridade, que quase lhe é oposto. Poderíamos falar de carnavalização, de duas vozes (uma alta, outra baixa) que se iluminam para se conhecer melhor, mas preferimos falar de algo mais amplo, isto é, do riso. O riso, na teoria bakhtiniana é uma espécie de corretor da realidade, porque é o som que toda exterioridade produz. Por isso, realismo no romance é saber rir, já que o afastamento cômico é que permite a verdadeira experimentação investigativa. Ser realista é rir do mundo. Sendo assim, a questão do realismo não é uma adequação especular, pois a realidade ainda não terminou, e reside nas suas potencialidades, no seu devir. Portanto, uma forma cômica, que se permite o inacabamento contínuo e confia na autorregeneração, pode apresentar a essência da vida, a cosmovisão do mundo assim como ele é.3 A comicidade é uma das duas grandes entonações que fundamentam o desenvolvimento do romance e tal arcaica aparece com força em textos como A visita cruel do tempo. A realidade da palavra gritada (nunca imprimível) e a da palavra autoritária, cuja sintaxe tenta ordenar a realidade, são postas em conflito. É por isso, que o texto, neste ponto, se excede em coordenações e subordinações, apostos e outros tipos de recursos sintáticos hipotáticos, que pretendem organizar a matéria efervescente que o discurso relata, como em: [...] Por que não paro de mencionar – de ‘inserir’, como pode parecer – a mim mesmo nesta história? Porque estou tentando arrancar algum material legível de uma garota de 19 anos muito, muito simpática: estou tentando construir uma história que não apenas revele os segredos aveludados de seu coração, mas que também contenha ação e desenvolvimento, além de – que Deus me ajude – alguma indicação de significado. (EGAN, 2011, p. 171)
A narração segue cada vez intercalando mais informações paralelas, mas é necessário que se perceba como a não-finalização do discurso é incorporada já em pseudo-prolepses, visto que tudo que é dito, ganha outro sentido, outra carga volitivoemotiva depois do término do capítulo. Que fique claro que não se trata simplesmente da estratégia modernista da múltipla focalização (também presente aqui), mas da 3
“O vir a ser não assinala a transformação necessária de cada significante em significado; o vir a ser é a produção constante (e misteriosa) de novos contextos para o discurso.” (HIRSCHKOP, 2010, p. 103)
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solidariedade dialógica do discurso contaminado pelo acento do outro. O recurso garante, no plano da personagem, a ênfase na hesitação do sujeito, em conflito com o que irá ser confessado, mas também sinaliza para a tensão interna ao próprio discurso ao racionalizar um momento de perda de razão. Vale lembrar que o capítulo também está cheio de rodapés de toda ordem que só reforçam o caráter duplo, de várias camadas, assumidas pela linguagem. No capítulo seguinte, “Fora de corpo”, outra solução é encontrada para o mesmo problema da busca de imagens ambivalente fortes. Nele, o respeito à voz do outro é introduzido pelo uso da segunda pessoa discursiva, técnica sempre perigosa quando utilizada na ficção, podendo ser um problema para a verossimilhança. Não é o que acontece aqui. O capítulo segue o ponto de vista de Rob, amigo de Sasha, logo é a ela que a voz narrativa se dirige, como demonstra já a primeira frase: “Seus amigos estão fingindo ser todo tipo de coisa, o seu dever é chamar sua atenção quanto a isso” (EGAN, 2011, 182). Não sabemos se é uma instância discursiva superior que se dirige a Rob ou se é ele mesmo, e essa dúvida faz parte da indefinição identitária do personagem. Afinal, ele tem muitas dúvidas a respeito de sua opção sexual, parece amar Sasha; e seu percurso termina num suicídio no mar que não se sabe se é fruto de motivação pessoal ou se do acaso. Portanto, a voz discursiva preenche uma necessidade existencial: tentar absorver o eu de fora, mas mantendo sua centralidade. Toda esta parte usa de forma complexa o que Bakhtin chamou de “motivação pseudoobjetiva”. O conceito expressa os trechos dos romances em que a voz do outro se confunde com a do autor. O discurso chega a nós entre “aspas entonacionais”, uma vez que não sabemos se é autor ou personagem que fala. Assim, uma opinião que parece objetiva é na verdade a ideologia da personagem contaminando o discurso (BAKHTIN, 1998, p. 110). O efeito foi chamado de “estilo pictórico”, nas análises de Marxismo e filosofia da linguagem, quando as duas intenções se confundem, principalmente no uso do discurso indireto livre. Mas o grande impacto do livro, e o objeto mais importante de nossa análise a partir de agora, reside no penúltimo capítulo, em que uma nova personagem, Alison, filha de Sasha, tem sua intimidade narrada através de 76 slides, como em uma apresentação de PowerPoint. A escolha mais uma vez é precisa. Se o romance, em síntese, é “[...] um gênero híbrido capaz de representar a imagem do homem na linguagem.” (MACHADO, 1995, p. 20), então o uso de slides é o arcabouço necessário para representar o mundo da personagem e respeitar sua alteridade. Com naturalidade somos introduzidos – por meio de um tipo de discurso fragmentado, cheio
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de elipses e espaços – à inquietude de Alisson com respeito à sua relação com seus familiares e às obsessões de seu irmão. Este passa seu tempo procurando e interpretando as pausas de músicas como “Foxy Lady”, de Jimmy Hendrix e “Young Americans”, de David Bowie. A leitura lacunar de gráficos e tabelas e a estranha coleção de pausas do irmão ajudam a reforçar a incompletude de um texto que exige que interpretemos seu silêncio. Estamos mais uma vez em território bakhtiniano, se notarmos que o uso da linguagem do PowerPoint envolve os fundamentos básicos da estilização - forma mais nítida do “aclaramento mútuo das línguas na dialogização interna (BAKHTIN, 1998, p. 159) - que apenas o gênero romanesco consegue configurar. Estamos no plano do que Bakhtin chama de “variação”, isto é, o ato de por a prova a língua do outro estilizada, colocando-a em situações novas, contemporâneas (BAKHTIN, 1998, p. 160). O mundo estilizado adquire nova consciência por intermédio do uso de material de outrem, neste caso, a intimidade da jovem Alisson, que vive a tensão de ser representada pelos gráficos e tabelas dos slides. Lembremos a capacidade do discurso do romance de admitir em sua constituição vozes ainda “quentes”, que, incompletas por natureza, já que as relações humanas que as criam e condicionam ainda estão abertas, podem assumir papéis ainda não previstos pelas relações reais. Como Bakhtin sustenta no início de “Epos e Romance”: O romance é o único gênero por se constituir, e ainda inacabado. [...] A ossatura do romance enquanto gênero ainda está longe de ser consolidada, e não podemos ainda prever todas suas possibilidades plásticas. (BAKHTIN, 1998, p. 397)
Dessa forma, o presente inacabado é aceito pelo romance, e insufla nele a incompletude semântica que garante sua regeneração, já que ele se torna uma forma de porvir, uma parte do diálogo histórico que lhe engloba e lhe reavalia paulatinamente, pois, diferente da épica, o romance admite a adequação da experiência ficcional à experiência pessoal do homem “de hoje”. A ênfase da forma épica envolve axiologias da memória e do absoluto e não do conhecimento e da experiência. Além disso, há algo também de paródico na estilização deste capítulo, já que, como vimos, a voz de uma intimidade é absorvida pela assepsia organizativa dos slides, num processo de mútuo desmascaramento, semelhante ao capítulo em que Jules entrevista Kitty. O acento de uma linguagem sobre outra que lhe é estranha consuma uma das funções do romance, isto é,
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[...] a tradução ideológica da linguagem, a superação de seu caráter estranho – que só é fortuito e aparente. A modernização efetiva, a eliminação das fronteiras dos tempos, a descoberta do passado são as características do romance histórico.” (BAKHTIN, 1998, p. 401)
Ao fim, ambas as vozes estão frouxas e formam o todo coerente da personagem, expressando sua ideologia em uma linguagem que a ilumine, seja por negação, seja por afiliação. Este uso paródico, a apropriação do gênero desconhecido, é fundamental para a permanência e imprevisibilidade do romance, e é a causa principal da reinterpretação da teoria dos gêneros feita pro Bakhtin, visto que [...] À diferença dos outros grandes gêneros, o romance se formou e se desenvolveu precisamente nas condições de uma ativação aguçada do plurilinguismo exterior e interior. Este é o seu elemento natural. É por isso que o romance encabeçou o processo de desenvolvimento e renovação da literatura no plano linguístico e estilístico. (BAKHTIN. 1998, p. 405)
É aqui que precisamos nos deter mais um pouco. Estilizar, apropriar-se do estilo e mudar seu acento pelo uso do PowerPoint e da focalização de Alisson põe uma lógica familiar e mundana em contato com uma criação do discurso oficial e público. Estamos diante do medo da forma. O romance receia desaparecer e, como nos autores listados no início deste ensaio, os romancistas estabelecem novas maneiras de soprar vida em seu corpo amorfo. O PowerPoint é o som que a exterioridade da vida oficial produz em certos contextos fora do privado. É um estilo do alto, com tom e carga emotivo-volitiva própria. Possui um estilo que, como qualquer outro, denuncia um conjunto operante de procedimentos de acabamento estético. Logo, tem-se o uso de uma forma padronizada para criar um estilo individual, usa-se o lugar comum fora do seu lugar comum para torná-lo anômalo e justificar a função do gênero. O estilo está ligado a unidades temáticas determinadas, mas ao misturarmos influenciamos sua renovação, ampliamos sua ressonância, e, em sucessos mais contundentes, renovamos seu repertório. Contudo, a questão não existe apenas nesta esfera mais simples. O que está em jogo é o confronto de dois conjuntos ideológicos antagônicos que, frente a frente, mantêm-se pacíficos, mas, quando têm os limites de seus valores testados, atribuem outra ordem ao mundo conhecido. Estamos no plano estrito das ideologias. Como explica Valdemir Montello, falando da ideologia em Bakhtin, mais especificamente do diálogo entre várias delas,
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[...] A relação permanente entre esses diversos níveis faz com que todo o conjunto ideológico de uma dada sociedade se apresente como um conjunto único e indivisível, e em constante movimento, pois reage às transformações que se dão nas esferas produtivas.” (MONTELLO, 2005, p. 175).
Quando se junta a linguagem oficial (Powerpoint) com a cotidiana/íntima, misturam-se duas ideologias que se mostram no eterno presente, sempre atuais, porque são frutos da realidade construída a partir das relações dos indivíduos, suas referências e símbolos. Mas como pensar essa característica do romance quando vivemos em tempos em que o cinismo expressa um grau elevado de descrença na criticidade como motor do pensamento e das formas secundárias de expressão humana. Como explica Vladimir Satale, em Cinismo e falência da crítica, o cinismo da sociedade capitalista consiste em fragilizar continuamente as formas e normas que ele próprio enuncia. O romance tem no riso o atributo que permite sobreviver em contextos como esses. O riso é a sua constituição irônica, ou seja, a estética romanesca ao privilegiar o afastamento, envolve a conciliação das várias vozes que lhe constituem. Ora, a estética é justamente a primeira esfera em que se percebe a desagregação da linguagem e dos valores por ela estipulados. No que diz respeito ao gênero romanesco, a corrosão de qualquer parcela do mundo pode ainda resistir. Basta pensar em um romance como Grande Sertão: Veredas e a pós-vida de arcaísmos e da entonação épica. Toda essa realidade, no plano da estética, sofreu inúmeras revisões a partir da estética modernista. Como explica Safatle: [...] Grosso modo, é possível afirmar que a concepção de forma crítica que vigorou de maneira hegemônica no modernismo tem força em situações históricas nas quais a ideologia pode ser pensada como recalcamento de seus pressupostos, como bloqueio da passagem da aparência para a essência. A obra de arte se estrutura a partir da dinâmica disponível à crítica social com suas temáticas da alienação da consciência no domínio da reificação da aparência. A ideia benjaminiana de crítica como “distância correta” só pode ser operativa diante de mecanismos ideológicos dessa natureza. No entanto, ela será marcada com o selo da obsolescência ao depararse com uma realidade social na qual a ideologia não responde a tais coordenadas. Nesse sentido, devemos insistir neste diagnóstico, já comentado em capítulos anteriores, sobre a ideologia ser, atualmente, autoirônica. Dessa forma, a crítica como “correta distância” seria impossível porque a ideologia já opera, a todo momento, uma distância reflexiva em relação àquilo que ela própria enuncia. Ou seja, a forma crítica esgotou-se porque a realidade internalizou as estratégias da crítica. (2008, p. 193-194) (grifos do autor)
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O experimento no romance carrega sempre uma carga de alienação. Não há modernismo que não sinalize de algum modo para a autonomia dos processos constitutivos da arte, introduzindo na forma e na sua recepção a distância que garante a percepção das desaumotizações. O “estranhamento” dos formalistas russos foi só o primeiro impacto disto. Da mesma forma que a gramática da música não comportava o que o dodecafonismo de Schoenberg buscava expressar, uma vez que há a necessidade de combater a reificação e o fetichismo a partir de uma revisão das estruturas comunicativas, cresce a racionalização da arte, toda vez que somos levados a pensar no procedimento artístico pela ruptura de alguma convenção. Neste sentido, as experiências de certos escritores contemporâneos como Jennifer Egan reforçam uma postura crítica, no sentido de revisarmos para contestar uma tradição ainda não suficiente. Mas este movimento é ambíguo, pois, apesar de explicitar o método imanente ao sistema e revelar sua fraquezas e limitações, o procedimento não ignora nossa referência fora da experiência estética com fenômenos que não sejam artísticos. O PowerPoint é uma “voz” testada e aprovada como um comunicante útil em situações distintas, mas que permitem o acesso sem traumas a sua forma enunciativa. Qual a validade, portanto de revitalizar a forma romanesca por um campo enunciativo que já se convencionalizou fora de si? Num primeiro momento, pode-se pensar mais uma vez na distância cômica bakhtiniana, ao menos como uma forma do gênero conviver com a ironia do cinismo da modernidade atual. Como vimos, o PowerPoint é reacentuado pelo seu uso num campo que pertence a uma alteridade, mas faltou deixar visto que o riso produzido, ao perceber como ele ecoa em um terreno não-familiar, mostra a estratificação dos modelos sociais, ou seja, mostra que uma fala não se solidariza inteiramente com o discurso alheio (BAKHTIN, 1998, p. 113), pois isso finalizaria o diálogo ininterrupto das vozes. A autoparódia reinsere o presente ainda aberto e confronta-o com nossa “zona familiar”. Além disso, introduz uma nova temporalidade na forma - diferente da que viu Lukács, por exemplo, e sua ênfase no material já historicamente adensado pelo percurso das sociedades - a do tempo atual, vulgarizado nas formas do senso comum. As ideologias resistem mesmo quando cortadas de suas redes classicamente definidas de causas e efeitos diz ainda Safatle (2008, p. 11), e são mais visíveis em procedimentos ambíguos como em A visita cruel do tempo. A transgressão é limitada a outro horizonte, mas permite uma reavaliação, ainda que atenuada do esgotamento do romance. Ao utilizar um sintagma não previsto, não só se ilumina a sintaxe já
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conhecida, como nos conscientiza a respeito do fato de nada sabermos sobre o futuro da linguagem. O mesmo pode ser visto em muitos experimentos contemporâneos. Para citar alguns, pode-se falar de Sebald, em Austerlitz, que utiliza fotos para compor seu romance, da mesma forma que o brasileiro Ferréz, em Capão Pecado. Tem-se também o exemplo do recente O amor nos tempos do blog, de Vinicius Campos, cuja composição simula a escrita de blogs para construir sua trama, entre outros. Introduzimos este ensaio com a provocação de Bernardinelli e a maneira como ele vê, na querela entre o romance em busca de uma totalidade social e da narração e o romance que se volta para si, a curva final do gênero que mais estimulou a democracia moderna e que, ao fim, percebe que ela não mais precisa dele. Além disso, mostramos como há, no desenvolvimento do gênero, o uso do particular como emblemático do todo, numa forma interna de negar as acusações de alienação e fetichismo do produto romanesco. Em Egan mais uma vez a saída é ambígua. Afinal, a estrutura bipolar da vida, individual e social, é unida, mas contra os excessos da liberdade do sujeito.4 Assim como suas novas estratégias permitem que joguemos com convenções que já possuímos, mas deslocando-as de lugar, o romance comunica e desvela o comunicante. A racionalidade estética ainda é um setor privilegiado da crítica social da ideologia (SAFATLE, 2008, p. 180). Um novo gênero lançado no mundo não superobsoletiza o romance, da mesma maneira que as novas formas de interrelação das vozes sociais garantem sua existência. Todo gênero tem sua esfera, mas o romance não tem estilo. O plurilinguismo absoluto é seu ideal, na negação intensiva da língua única. O romance, portanto, não permite a pós-ideologia, pois só se sustenta a partir do esclarecimento mútuo de pelo menos duas delas e, por ser o único gênero literário que se formou depois do livro, sabe usar sua capacidade tipológica para manter o frescor do choque de ideologemas, já que conhece as possibilidades de seu media. Além disso, Ken Hirschkop, no excelente ensaio “Bakhtin, discurso e democracia”, demonstra que “Escrever romances expõe o trabalho da linguagem à visão do público. É a exploração consciente e a exposição da natureza social do discurso.” (HIRSCHKOP, 2010, p. 107) Desta maneira, o que distingue o romance é sua forma discursiva, e não sua forma linguística, visto que ele não tem apenas uma. A democracia é antes uma quimera, do que um modo de vida historicamente alcançado,
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à
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da
comunicação
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mensagens
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Ideal que já está na obra teórica de Balzac: “Assim a obra a ser empreendida devia ter uma forma tripla: os homens, as mulheres e as coisas, ou seja, as pessoas e a representação material que elas dão ao seu pensamento; enfim, o homem e a vida.” (BALZAC, 2011, p. 389)
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(democrática) escamoteia a falta da “existência de uma vontade coletiva fora do Estado que seja capaz de desafiar sua autoridade e, portanto, as instituições que oferecem aos indivíduos a oportunidade de uma forma diferente de existência de ação coletivas.” (HIRSCHKOP, 2010, p. 122-123), e conclui, desmembrando o que seria o ideal democrático de Bakhtin: [...] Nele a coletividade significa algo mais do que a concordância pacífica de pessoas isoladamente; ele se refere a uma forma de ação e análise que transforma todos os vínculos particulares em vínculos sociais, fazendo com que os interesses envolvidos na história estejam bem expostos à visão pública. (HIRSCHKOP, 2010, p. 122-123)
Para a sociedade atual, esta seria uma função inalienável da romanesca. Como disse o lúcido Henry James: “o futuro do romance é intimamente ligado ao futuro da sociedade que o produz e consome” (JAMES, 1995, p. 63). Não há nada que a democracia possa fazer a respeito do romance, pois ele é sua face mais exemplarmente evoluída. Se este perecer, aquela pode estar com os dias contados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de Estética (A Teoria do Romance). São Paulo: UNESP, 1998. BERNARDINELLI, Alfonso. Não incentivem o Romance e outros ensaios. São Paulo: Humanistas Editorial, 2007 BALZAC, Honoré de. “História, sociedade e romance”. In: SOUZA, Roberto Acízelo de. (org.) Uma ideia moderna de literatura. Chapecó: Argos, 2011. p. 389-392. JAMES, Henry. A arte da ficção. São Paulo: Imaginário, 1995. HIRSCHKOP, Ken. “Bakhtin, discurso e democracia”. In: Mikhail Bakhtin: Linguagem, cultural e mídia. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. p. 93 – 129. MACHADO, Irene A. O romance e a voz. Rio de Janeiro: Imago, São Paulo: FAPESP, 1995. MONTELLO, Valdemir. Ideologia. In: BRAIT, Beth(0rg.) Bakhtin: Conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. MORSON, Gary Saul; EMERSON, Caryl. Mikhail Bakhtin: criação de uma prosaística. São Paulo: Edusp, 2008. SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.
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Héder Junior dos santos Mestrando em Letras pela universidade estadual Paulista (unesP), bolsista do CnPq e membro do Grupo de estudos e Pesquisa em Cinema e Literatura do Campus Marília da unesP. Contato: heder_eu@hotmail.com
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ANTONIO GRAMSCI E JOÃO GUIMARÃES ROSA: UM DIÁLOGO (INTER)NACIONAL(POPULAR) Héder Junior dos Santos RESUMO: Este trabalho procura analisar as ideias do filósofo italiano Antonio Gramsci e do literato brasileiro João Guimarães Rosa. Primeiramente, procuramos discutir a fecundidade da incorporação das noções fornecidas pelo pensador marxista para refletirmos a importância de Rosa para o contexto do modernismo brasileiro. Em seguida, passamos a descrever o que para Gramsci seria uma arte “nacional-popular” e sua capacidade de romper com o distanciamento entre o intelectual e o universo popular, destacando ocorrer na realização formal, o espaço de encontro entre o local e o universal. A partir daí, tecemos considerações sobre a trajetória de Rosa e como ela acaba por fornecer elementos motores para seu projeto artístico de inspiração popular, sobre o qual, poder-se-ia considerar que, se não combativo, pelo menos ofereceu uma interpretação peculiar acerca do esfacelamento dos valores tradicionais em pleno processo de modernização brasileira. PALAVRAS-CHAVE: Cultura popular; Literatura brasileira; Fricções entre tradição e modernidade.
ANTONIO GRAMSCI AND JOÃO GUIMARÃES ROSA: AN (INTER)NACIONAL(POPULAR) DIALOGUE ABSTRACT: This paper aims to analyze the ideas of the Italian philosopher Antonio Gramsci and the Brazilian writer João Guimarães Rosa. First, we discuss the possibility of incorporating some notions provided by the marxist thinker to reflect the importance of Rosa to the Brazilian modernism context. Then we describe what is a “nationalpopular” art to Gramsci and its ability to overcome the gap between the intellectual and the popular universe, praising that form is the space where regional and international values revel themselves. Thereafter, we consider Rosa’s trajectory and how it ultimately provides elements for his popular art project, upon which, it may be considered that, if not combative, at least it offered a peculiar interpretation about the disintegration of traditional values in the Brazilian modernization process. KEYWORDS: Popular Culture; Brazilian Literature; Friction between tradition and modernity.
A cultura erudita busca renovar-se pelo aproveitamento mais ou menos bruto, mais ou menos elaborado, do que lhe parece ser a espontaneidade e a vitalidade populares. Nesse processo, o risco mais comum é repetir, talvez sem as riquezas da fantasia estética modernista, o Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!65!
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fenômeno ideológico e psicológico da projeção, de que os modernistas, aliás, não escaparam: projeções de neuroses, desequilíbrios, preconceitos, recalques e desrecalques do intelectual na matéria popular assumida como válvula de escape da subjetividade pequenoburguesa. Mas não será esse risco uma tendência profunda de toda cultura engendrada no seio de uma sociedade de classes? Se assim for, o tema crucial das relações entre cultura erudita e cultura popular deverá começar por um diagnóstico da cultura erudita. Até o momento, as observações mais felizes que conheço sobre o comprometimento do intelectual com sua classe estão na obra de Antonio Gramsci, [...] que seria necessário repensar para ver o quanto são aplicáveis às situações precisas da vida cultural brasileira. Alfredo Bosi
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES Podemos considerar que Antonio Gramsci (1891-1937) foi um filósofo basilar para elaboração de vários conceitos-chave ainda hoje revisitados para se interpretar as condições sociais no capitalismo avançado. Alguns deles se tornaram termos recorrentes nos debates sobre a cultura e os processos sociais, como é, pois, o caso da noção de “nacional-popular”, a ser reincorporada e tratada neste artigo. A partir das reflexões do pensador italiano em questão, pode-se considerar que o referido conceito se relaciona à quebra do distanciamento estabelecido entre os intelectuais e artistas, e as classes subalternas que lhes fornecem substrato narrativo, ou melhor, que lhes providenciam conteúdo. Tem-se, segundo Gramsci, colocada a provocação maior ao artista dialético, a saber, tornar nacional e popular a vida de sujeitos comuns, sem elaborar representações calcadas em um olhar caracteristicamente pitoresco e pretensamente objetivo. A vida dos integrantes das camadas subalternas trazidas para a assim chamada “grande literatura” (ou uma literatura universalmente válida), sem dada folclorização ou se recorrer ao ato falacioso de um particularismo atroz, ao mesmo tempo em que confere problemas de caráter humano-universais às personagens emolduradas pela obra, sem que elas necessitem de afastar-se de seu chão histórico. Dito de outra forma, todavia, em conformidade com o filósofo marxista, uma obra de arte “nacional-popular” propõe-se a descortinar a vida popular encarnada de dramas complexos e não na condição de massa amorfa, atribuindo os dramas apenas 66!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!
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às personagens representativas de dada elite, ou ainda a sujeitos inexistentes historicamente. O autor de Cadernos do cárcere estava contra certa arte fascista que desenhava heróis inatos, ausentes de terreno histórico, como foram representados, por exemplo, os santos da igreja oficial, cuja força simbólica fez com que tais criaturas nascessem como que iluminadas, escolhidas e especiais; e isto em termos políticos, como observou o pensador, aumentava o paternalismo, que por sua vez, se constituía em moeda de troca com o fascismo, no caso italiano. Assim se expressa Gramsci (1968), em Literatura e vida nacional, a propósito da postura adotada por intelectuais e artistas católicos, seu afastamento da matéria popular e os reverbérios desta diluição para a formação de uma moralidade laica e difusa na Itália: A literatura católica transpira apologética jesuíta, tal como o carneiro transpira, e cansa pela sua vulgar mesquinhez. A insuficiência dos intelectuais católicos e o pouco êxito de sua literatura são um dos mais expressivos indícios da íntima ruptura que existe entre a religião e o povo: este se encontra num miserável estado de indiferentismo e de ausência de vida espiritual ativa: a religião conservou-se na forma da superstição, mas não foi substituída por uma nova moralidade laica e humanista por causa da impotência dos intelectuais laicos (a religião não foi nem substituída nem intimamente transformada e nacionalizada, como em outros países, como o próprio jesuitismo na América: a Itália popular ainda está nas condições criadas imediatamente pela Contra-Reforma: a religião, na melhor das hipóteses, combinou-se com o folclore pagão e conservou-se neste estágio). (GRAMSCI, 1968, p. 109)
ANTONIO GRAMSCI E OS ÓCULOS PARA OBSERVAR A ARTE: OUTRAS CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES Ainda no livro anteriormente citado, Antonio Gramsci (1968) observa que, colocados em face de uma obra artístico-cultural, a perspectiva interpretativa deve necessariamente ser modificada, posto que tal objeto não se clarifica, como na ciência, pela revelação da essência contida no poder universal de leis gerais. Na interpretação do autor, de maneira distinta, a obra de arte se define por sua potencial particularidade; livre dos filtros da ciência, sintetiza em si a representação de um momento histórico particular, não necessariamente revelador da essência do real, mas em hipótese alguma descolada da realidade, já que toda obra é, conforme o filósofo marxista, um produto social e humano. De acordo com Gramsci, o artista que se atém ao conteúdo em detrimento da forma, mal ou bem, impulsiona certa batalha, a qual se pretende amparada na Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!67!
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realidade objetiva, e para isso elege determinada cultura, municiando-se daquilo que lhe é próprio e passando a discorrer “por uma determinada concepção do mundo, contra outras culturas e outras concepções do mundo” (GRAMSCI, 1968, p. 65). Essa interpretação muitas vezes corresponde à ação de concebermos o deles de acordo com a perspectiva do que fundamenta o que é nosso. Esse ponto é, pois, característico da atitude de dominação, uma vez que ao dizer do outro cria-se uma separação e um distanciamento propícios ao caráter hegemônico e à ação diante do que se crê primitivo e fraco. A imagem do outro, então alicerçada, cria conhecimentos – no âmbito intelectual e no senso comum – que são traduzidos em atitudes, possibilitando reações diversas. Daí tornar-se a ambiguidade, a característica da história da invenção das identidades nacionais, uma vez que permanece, ao longo dessa mesma historicidade, certo hiato entre quem fala (o eu) e sobre quem se fala (o outro), mesmo quando o primeiro se propõe a estabelecer com o segundo uma relação de circunvizinhança. Isto quer dizer que a ligação mostra-se permeada pela visão de mundo do observador e que, a priori, carrega determinados imperativos, perspectivas, como também preconceitos político-ideológicos, os quais se fazem notar no próprio corpo de suas alocuções. O distanciamento entre as partes, nessa dinâmica, agudiza a dificuldade encontrada pelos homens de letras em apreender a diversidade e pluralidade de vozes presentes nas várias territorialidades nacionais, quando sobre elas se debruçaram; a exemplo do sertão, no caso do Brasil1. Para Gramsci (1968), a obra de arte é fundamentalmente histórica e comporta as nuances e impasses do terreno social, cultural, econômico e político de que parte o artista, e que podem ser percebidos, consecutivamente, por meio da construção formal da obra. O produto artístico, comenta o pensador italiano, “é um processo e as modificações de conteúdo são também modificações de forma” (GRAMSCI, 1968, p. 65). E com declarada ironia, observa a postura analítica de certas correntes da crítica de arte: “mas é ‘mais fácil’ falar de conteúdo do que de forma, pois aquele pode ser resumido logicamente” (GRAMSCI, 1968, p. 65, aspas do autor). De outra maneira, poderíamos dizer que os fenômenos artísticos têm autonomia relativa em relação aos fenômenos reais que buscam reproduzir. Algumas vezes, se aproximam mais da !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 1
Seja entendido como antiquário cultural ou reserva por excelência do núcleo da raça, os discursos científicos, artísticos e historiográficos acabaram por especular a espacialidade sertaneja, associando-a alguma coisa familiar, pura, de raiz, algo que idealmente decanta brasilidade. Todavia, as intelecções sobre esse espaço são bem produtos de forças e interesses políticos, pois compuseram um sistema de representações que acabaram por introduzi-lo e reiterá-lo na consciência e na cultura nacionais.
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concretude do real, em outras, se afastam, visto a maior liberdade que têm os artistas em comparação com os cientistas, por exemplo, ao colocarem-se como produtores de discursos simbólicos com a finalidade de inteligir a realidade circundante. Esta postura distintiva, que reconhece a separação entre arte e ciência, nos resguarda do cometimento daquilo que Antonio Candido (1976, p. 7) denominou, em Literatura e sociedade, de “sociologismo crítico”, isto é, “a tendência devoradora de tudo explicar por meio dos fatores sociais”. Para que se possa ultrapassar o que o crítico nomeia de “aspectos periféricos da sociologia” e para se chegar a uma dimensão dialética entre a obra de arte e seus referenciais sociais, é necessário compreender o processo pelo qual o “externo” se torna “interno”, ou seja, considerar os fatores sociais como formadores da estrutura da obra. De maneira prática, o autor expõe de outra forma aquilo que já assinalamos em Gramsci (1968), ou seja, da singularidade com que os produtos artísticos intelegem o real, quer dizer, a diferença entre arte e ciência, apontada pela relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com a realidade, mesmo quando pretende observá-la e transpô-la rigorosamente, pois a mimese é sempre uma forma de poiese. (CANDIDO, 1976, p. 12).
Retomando o debate em Gramsci: Vê-se então que ‘conteúdo’ e ‘forma’, além de um significado ‘estético’, possuem também um significado histórico. ‘Forma histórica’ significa uma determinada linguagem, assim como ‘conteúdo’ indica um determinado modo de pensar não apenas histórico, mas ‘sóbrio’, expressivo (sem necessidade de colocar as mãos no rosto), passional (sem que as paixões sejam exacerbadas como em Otelo ou no melodrama; em suma, sem a máscara teatral). Este fenômeno, creio, verifica-se apenas em nosso país, como fenômeno de massa, entenda-se, porque casos individuais ocorrem em toda a parte. Mas é preciso ficar atento: porque o nosso país é aquele no qual o convencionalismo arcaico sucedeu ao convencionalismo barroco; de qualquer modo, porém, sempre teatro e convenção. (GRAMSCI, 1968, p. 65-66, aspas do autor e grifo nosso)
E o argumento não poderia ser diferente, sendo Gramsci um intelectual fortemente preocupado com a cultura italiana, formadora de uma “nação-sociedade italiana”. Por meio das reflexões acima transcritas, o pensador marxista acaba por fornecer também elementos analítico-argumentativos para sairmos de seu terreno histórico-social e transplantarmos suas ideias para outros tempos e espaços. É nesse sentido que segue o elogio de Marcos Del Roio (2007), presente no texto “Gramsci e a emancipação do subalterno”, a propósito da universalidade das reflexões do filósofo italiano, pois, conforme o autor, a obra gramsciana reitera “uma riqueza e uma Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!69!
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possível permanência no tempo, mas também abre a possibilidade de ser apropriada e decomposta por outras vertentes culturais e políticas” (DEL ROIO, 2007, p. 63). Destas palavras de Marcos Del Roio (2007) e daquelas proferidas por Alfredo Bosi (1992), por nós utilizadas como epígrafe, nascem as motivações deste artigo.
ANTONIO GRAMSCI E JOÃO GUIMARÃES ROSA: UM DIÁLOGO POSSÍVEL? Sem a menor pretensão de esgotar a questão, neste trabalho, propomos uma reflexão que assimila e transculturaliza os debates de Antonio Gramsci sobre arte e cultura para o contexto do modernismo literário no Brasil, com o intuito de delinearmos, em termos gramscianos, a importância cultural de João Guimarães Rosa (1908-1967) e seu projeto de recriação de uma literatura de inspiração popular, sobre a qual, poder-se-ia considerar que, se não combativa, pelo menos ofereceu uma interpretação peculiar acerca do esfacelamento dos valores tradicionais em pleno processo de modernização brasileira. Quando a ideologia nacional-desenvolvimentista (1940-1950) desfrutava de forte prestígio nos círculos intelectuais, João Guimarães Rosa concebe uma obra centrada no cotidiano do Brasil rural, entendido pela intelligentsia saída do Estado Novo, como atrasado e em processo de extinção. Enquanto o processo de modernização parecia varrer e ocultar de uma só vez o Brasil do século XIX e apresentá-lo numa visão sofisticada através do projeto da nova Capital, Rosa sugere artisticamente um revirar de perspectivas sobre o espaço rural brasileiro, revelando por meio de seus narradores sociais a maneira secular de vida dos homens do sertão, vocalizando e apresentando discursos sobre a nação segundo a perspectiva da plebe rural brasileira, e colocando sua obra como palco para as disputas entre tradição e modernidade, rural e urbano, sagrado e profano, etc. Assim, ao colocarmos Sagarana, de 1946, Corpo de baile, de 1956, Grande sertão: veredas, de 1956, Primeiras estórias, de 1962 e Tutaméia, de 1967, lado a lado dos estudos, digamos assim, “não literários”, de uma geração de intelectuais das décadas de 1940 e 1950, notamos que a realização estética de Rosa acaba por tornar-se um registro etnográfico dos modos de viver no sertão, acentuando o imaginário do indivíduo citadino sobre a realidade emoldurada pela obra, não deixando de lembrá-lo sobre a permanência histórica da condição dos sertanejos e sua essência em nossa brasilidade2. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 2
O imaginário depositado sobre a territorialidade sertaneja é pensado, neste trabalho, como uma espécie de “reservatório/motor”, à maneira como discutiu Juremir Machado da Silva
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Tendo em vista que o literato mineiro constrói um discurso estético que visa a reforçar seu engajamento para a manutenção de uma cultura e memória sertaneja, o qual confere credibilidade e verossimilhança ao que é ensinado e transmitido através das relações de grupo – próprias das comunidades rurais emolduradas artisticamente por sua escritura –, defendemos a ideia de que a obra de Rosa, especialmente sua produção em prosa, não possui apenas uma implicação literária, inovadora e singular, mas que a mesma aproxima cultura erudita e popular, rigor etimológico, antropológico e arquivístico, além de seu evidente revisitar da tradição3. Tudo isso, atrelado ao caráter político da obra, que reside no fato de Rosa não apresentar um Brasil rural com o olhar impregnado pela ideologia dominante no período. Falamos de um Rosa intérprete a contrapelo e que, em linhas gerais, podemos avaliar que, apropria-se de um universo agrário e popular sem que o resultado disso seja uma produção artificial ou simplesmente descritiva, sob um ponto de vista intelectivo distanciado; não recria o locus sertanejo e suas particularidades como uma paisagem para seu argumento narrativo. O universo rústico e rural de que parte, tanto quanto permite a escrita, é preservado, e ao mesmo tempo reinventado, todavia, sem que se perca o referente original, fazendo, portanto, com que o mesmo adquira novas nuances e significações. Retornando à obra de Antonio Gramsci, podemos entender que a mesma intenta radiografar a sociedade moderna ocidental, em especial, a italiana. Isso leva o autor a discutir os problemas presentes no cerne das atividades ditas intelectuais, questionandose sobre o papel das mesmas para a configuração histórico-social dos indivíduos e das classes sociais. Daí os fenômenos artísticos e culturais se apresentarem como objetos !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! (2003), em As tecnologias do imaginário. Para o autor, o imaginário é, primeiramente, reservatório, na medida em que abrolha imagens, anseios, lembranças, experiências, “visões do real que realizam o imaginado, leituras da vida e, através de um mecanismo individual/grupal, sedimenta um modo de viver, de agir, de sentir e de aspirar ao estar no mundo” (2003, p. 11-12). Conforme Silva, o imaginário passa a ser uma “distorção” involuntária do vivido, do experienciado que, a seu ver, se naturaliza como “marca individual ou grupal” (2003, p. 12). O que ocorre de forma diferente com o “imaginado”, o qual, na interpretação do autor, é “projeção irreal que poderá se tornar real” (2003, p. 12). Dessa maneira, comenta Silva: “o imaginário emana do real, estrutura-se como ideal e retorna ao real como elemento propulsor.” (2003, p. 12). E se o imaginário é considerado pelo seu aspecto de “reservatório”, também assim o é “motor”, seguindo os apontamentos do autor. Visto sob esta perspectiva, o imaginário também pode ser entendido como “sonho que realiza a realidade, uma força que impulsiona indivíduos ou grupos” (2003, p. 12). Desse modo, acaba por operar “como catalisador, estimulador e estruturador dos limites das práticas. O imaginário é marca digital simbólica do indivíduo ou do grupo na matéria do vivido” (2003, p. 12). 3 Entendida a noção de “tradição” conforme concebe Gerd Bornheim (1987, p. 20), isto é, um “conjunto dos valores dentro dos quais estamos estabelecidos; não se trata apenas das formas de conhecimento ou das opiniões que temos, mas também da totalidade do comportamento humano, que só se deixa elucidar a partir do conjunto de valores constitutivos de uma determinada sociedade”. Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!71!
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fundamentais de análise sócio-histórica. Nesse ponto, Gramsci se coloca como grande representante do marxismo no século XX. Mesmo que não tencionemos restringir seus escritos à realidade de seu país, ele tem nesta sociedade e em seus processos sociais a base material de sua análise. Ao tratar da questão das estruturas ideológicas constituídas pelas atividades intelectuais, artísticas e culturais, o estudioso marxista coloca sempre no horizonte um problema central para a Itália: a dissociação entre sua intelectualidade instituída e o seu povo; problema este que poderíamos considerar compreensível em um país que passa por um processo político de unificação de cima para baixo, ou de fora para dentro. Diz Antonio Gramsci: Os intelectuais não saem do povo, ainda que acidentalmente alguns deles seja de origem popular; não se sentem ligados ao povo (deixando de lado a retórica), não o conhecem e não percebem suas necessidades, aspirações e seus sentimentos difusos; em relação ao povo, são algo destacado, solto no ar, ou seja, uma casta, não uma articulação – com funções orgânicas – do próprio povo. (GRAMSCI, 1968, p. 106-107)
A exposição de Gramsci parece acomodar-se com dado conforto ao caso brasileiro: a noção de “nacional-popular” é, antes de qualquer coisa, o esfacelamento das fronteiras entre os intelectuais e o povo, apartamento este que está presente na formação de uma cultura, caracterizada por Carlos Nelson Coutinho (2008), de “intimista”, quer dizer, patenteada pelo elitismo cultural e que, amiúde, não é oriunda de uma preferência voluntária do intelectual e/ ou artista. Como se sabe, a cultura brasileira conecta-se de forma orgânica, seja com sua maquiagem reacionária, seja democrática e progressista, a partir do “patrimônio cultural universal”, o qual conveio e convém como jardim inspirador e alimento substancial. Desse modo, se a essência de uma obra “nacional-popular” se estabelece por um modo de articulação entre os intelectuais e o povo, o que resultaria em “intelectuais orgânicos”, para utilizarmos um vocabulário gramsciano, a mesma não pode ser compreendida no tocante às personagens concretas ou mesmo o conteúdo tematizado, como fundamentalmente contrária ao universal, uma espécie de assertiva categórica de nossas pretensas genealogias culturais encerradas em si mesmas contra a abertura ao cosmopolitismo, entendido como detentor de dado potencial alienante. Não se trata de asseverar que tal atitude cosmopolita não exista no seio de nossa vida nacional, conforme Coutinho (2008, p. 2), “ela se manifesta sempre que a recepção de uma corrente cultural universal se faz de modo abstrato, sem nenhuma tentativa de concretizá-la e enriquecê-la no confronto com a realidade brasileira”. Dito de outra forma pelo estudioso:
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[...] há cosmopolitismo abstrato todas as vezes que a ‘importação’ cultural não tem como objetivo responder a questões colocadas pela própria realidade brasileira, mas visa tão-somente a satisfazer exigências de um círculo restrito de intelectuais ‘intimistas’. Nesse sentido, podemos afirmar que essa postura ‘cosmopolita’ é uma das manifestações da cultura elitista e não nacional-popular; é por estarem separados do povo, emparedados nos limites do ‘intimismo’, que certos intelectuais são incapazes de proceder àquela concretização e àquele enriquecimento do patrimônio universal. (COUTINHO, 2008, p. 2, aspas do autor)
Este conflito é, segundo Antonio Candido (1980), recorrente na história literária brasileira, e se pudermos alargar a constatação do crítico para as artes em geral no Brasil, quando fala de “nossa vida espiritual”, sempre a defrontar localismo e cosmopolitismo. O fechamento sobre si mesmo versus a abertura para influências exteriores. Em Literatura e sociedade, Antonio Candido assim se coloca: Se fosse possível estabelecer uma lei de evolução da nossa vida espiritual, poderíamos talvez dizer que toda ela se rege pela dialética do localismo e do cosmopolitismo, manifestada pelos modos mais diversos. Ora a afirmação premeditada e por vezes violenta do nacionalismo literário, com veleidades de criar até uma língua diversa; ora o declarado conformismo, a imitação consciente dos padrões europeus. Isto se dá no plano dos programas, porque no plano psicológico profundo, que rege com maior eficácia a produção das obras, vemos quase sempre um âmbito menor de oscilação, definindo afastamento mais reduzido entre os dois extremos. E para além da intenção ostensiva, a obra resulta num compromisso mais ou menos feliz da expressão com padrão universal. [...] Pode-se chamar dialético a este processo porque ele tem realmente consistido numa integração progressiva de experiência literária e espiritual, por meio da tensão entre o dado local (que se apresenta como substância da expressão) e os moldes herdados da tradição europeia (que se apresentam como forma de expressão). A nossa literatura, tomado o termo tanto no sentido restrito quanto amplo, tem, sob este aspecto, consistido numa superação constante de obstáculos, entre os quais o sentimento de inferioridade que um pais novo, tropical e largamente mestiçado, desenvolve em face de velhos países de composição étnica estabilizada, com uma civilização elaborada em condições geográficas bastante diferentes. O intelectual brasileiro, procurando identificar-se a esta civilização, se encontra todavia ante particularidades de meio, raça e história, nem sempre correspondentes aos padrões europeus que a educação lhe propõe, e que por vezes se elevam em face deles como elementos divergentes, aberrantes. A referida dialética e, portanto, grande parte de nossa dinâmica espiritual, se nutre deste dilaceramento [...] (CANDIDO, 1980, p. 109-110, grifo nosso)
Dito isto, impossível não falarmos em relações (tanto de aproximação quanto de afastamento) entre o quadro italiano e o brasileiro, este último que busca a
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formação de um sistema literário próprio, numa longa e conturbada história de nossa cultura e, portanto, também de nossa literatura. Antonio Candido finaliza sua Formação da literatura brasileira (1975) sentenciando estar no escritor Machado de Assis a concretização de um sistema literário brasileiro, em que o autor consegue incorporar dialeticamente os matizes externos das tradições literárias que nos servem de modelo e formação, compondo, pois, uma literatura que nos retrata, que fala de nós de forma sistêmica, desenvolvida pelo contato do local com o universal. Quando evoca o seguinte trecho do ensaio “Instinto de nacionalidade”, escrito por Machado de Assis, o analista da formação do sistema literário nacional parece engordar a constatação de José de Alencar, a propósito da superação do regionalismo que praticara, ao passo que o texto machadiano aponta, de maneira explicita, entre nós, uma determinação elementar do nacional-popular: Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. (MACHADO DE ASSIS apud CANDIDO, 1975, p. 368-369, grifo nosso).
Ao que tudo indica, podemos avançar o período histórico analisado por Candido e pensar o Modernismo, não exclusivamente o da Semana de 22, mas sua continuidade, quando surgem criações literárias que dão conta de nossa realidade social, ligando e criando em nós um laço com nossas raízes e ao mesmo tempo se projetando artisticamente para fora, ou seja, esteticamente consequente com uma arte universal a partir de nossa realidade particular. Falamos de obras capazes de captar socialmente nossas estruturas essenciais e particulares de forma “esteticamente válida”, fornecendo um retrato vivo de momentos históricos fundamentais. Em Literatura e sociedade, Antonio Candido (1980), observa que o Modernismo “inaugura um novo momento na dialética do universal e do particular” (p. 119). Entendido pelo crítico como uma denominação que abarca, pelo menos, três fatores envoltos a produção artística nacional: “um movimento, uma estética e um período” (CANDIDO; CASTELLO, 1977, p. 7), o Modernismo comporta um instante em que a literatura brasileira é “muito larga no seu âmbito”, quando investiga “outros setores da vida intelectual no sentido da diferenciação das atribuições, de um lado; da criação de novos recursos expressivos e interpretativos, de outro” (1980, p. 134). Historiando o movimento, Candido o divide em 74!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!
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três fases – a primeira, de 1900 a 1922; a segunda, de 1922 a 1945; e a terceira inicia em 1945. É da segunda fase em diante, comenta o estudioso, que se entrevê “mais humour, maior ousadia formal, elaboração mais autêntica do folclore e dos dados etnográficos, irreverência mais consequente, produzindo uma crítica mais profunda” (1980, p. 122). E prossegue o crítico literário nas considerações que particularizam a abordagem desta “segunda etapa” do Modernismo: Sobretudo a descoberta de símbolos e alegorias densamente sugestivos, carregados de obscura irregularidade; a adesão franca aos elementos recalcados da nossa civilização, como o negro, o mestiço, o filho de imigrantes, o gosto vistoso do povo, a ingenuidade, a malandrice. É toda evocação dionisíaca de Oswald de Andrade, Raul Bopp, Mário de Andrade; este haveria, aliás, de elaborar as diversas tendências do movimento numa síntese superior. A poesia Pau Brasil e a Antropofagia, animadas pelo primeiro, exprimem a atitude de devoração em face dos valores europeus, e a emancipação de um lirismo telúrico, ao mesmo tempo crítico, mergulhado no inconsciente individual e coletivo, de que Macunaíma seria a mais alta expressão. (1980, p. 122, grifos do autor)
E a propósito dos reverbérios destas predileções estéticas e políticas na literatura brasileira subsequente, interpreta Antonio Candido: A destruição dos tabus formais, a libertação do idioma literário, a paixão pelo dado folclórico, a busca do espírito popular, a irreverência como atitude; eis algumas contribuições do Modernismo que permitiram a expressão simultânea da literatura interessada, do ensaio histórico-social, da poesia libertada. (1980, p. 135)
Assim, o antropofagismo modernista poderia ser apontado como efetivamente o caminho para nossa literatura. Candido observa em Guimarães Rosa a presença da dialética modernista, funcionando de forma consistente. Segundo o crítico, o literato mineiro representaria a concretização do projeto nacional, não um projeto de nacionalismo imposto de fora para dentro, mas construído de dentro para fora, do sertão para a cidade. Por meio da construção de sua linguagem, aqui entendida como um tratamento formal, o escritor em questão cria um tempo-espaço brasileiro, síntese das influências múltiplas externas e internas. Em suas narrativas, Guimarães Rosa não procura uma imitação caricatural do nosso contexto interno, ao contrário, descortina os impasses que existem em uma cultura multifacetada, que não é una e que se ressente de uma partição duradoura. Portanto, não mais se trata de tampar as fissuras de nossas fragmentadas e múltiplas influências culturais, mas de assumi-la como nossa cultura. E não fazê-la de forma romântica e idealizada, mas encarando seus impasses. De tal modo, se nos atentarmos ao nosso país, podemos notar que as Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!75!
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questões levantadas por Gramsci têm muito a descrever sobre uma nação colonizada por vários países europeus que trouxeram nas bagagens sua língua, sua cultura, seus valores e seus costumes, e aqui os estabeleceram. Mesmo que no confronto entre as realidades
políticas,
econômicas,
sociais,
históricas
e
culturais
haja
vários
distanciamentos, o que nos interessa são as aproximações. Em outros termos, o que podemos aprender com Gramsci, e onde poderíamos, com nossa experiência cultural, ir além dele ao retornarmos o olhar para João Guimarães Rosa. Assim, introduzimos a quarta parte do nosso artigo, dedicada ao referido literato brasileiro.
GUIMARÃES ROSA E O SERTÃO REVISITADO João Guimarães Rosa nasceu na pequena cidade de Cordisburgo, localizada no interior mineiro. Na primeira metade do século XX, o primeiro sinal de civilização vinha através da malha férrea e das escolas secundárias estrangeiras que se estabeleciam no interior dos Estados. Formado em Medicina em 1930, retornou ao interior para exercer tal profissão na pequena cidade de Itaguara, então distrito de Itaúna. Era exigido que viajasse no lombo de cavalo, percorrendo fazendas e visitando as famílias necessitadas de seu serviço. Em Itaguara, participou da Revolução Constitucionalista de 1932, primeiro como rebelde, depois como voluntário na Força Pública de Minas, onde conheceu Juscelino Kubistchek, quando este era médico– chefe do Hospital de Sangue. Em seguida, serviu no município de Barbacena como oficial-médico do 9º Batalhão de Infantaria, onde a rotina médica permitiu-lhe estudar idiomas, dedicar-se a escrita e realizar pesquisas nos arquivos do quartel sobre o jaguncismo barranqueiro que até por volta de 1930 existiu na região do Rio São Francisco. Em pouco tempo, Rosa desistiu da carreira médica e prestou concurso para o Ministério do Exterior, onde poderia exercer um trabalho mais teórico e dedicar-se a escrita. Trabalhou como cônsul adjunto em Hamburgo na Alemanha a partir de 1938, quando explodiu a Segunda Guerra. Concedeu vistos aos judeus sem a anuência do Estado totalitário, devido ao bombardeio das cidades alemãs; escapou da morte algumas vezes, foi retido em Baden-Baden em 1942, quando o Brasil rompeu com a Alemanha, até seu retorno à terra natal alguns meses depois. Entre as missões em embaixadas na Europa e América do Sul, realizou excursões pelo interior do país (Mato Grosso e Minas Gerais em 1947, Caldas do Cipó, no interior da Bahia, com Assis Chateaubriand e Getúlio Vargas e de novo a Minas Gerais, em 1952). 76!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!
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Nesse retorno, restabeleceu seu contato de infância com as histórias sertanejas, com o universo de sujeitos simples, personagens que recriou na ficção, como o vaqueiro Manuelzão, coordenador da comitiva que o acompanhou por 240 km, conduzindo a boiada entre a fazenda Sirga, em Três Marias, até a fazenda São Francisco em Araçaí, distrito de Paraopeba. Os moradores guardam na memória a comitiva de trezentos bois, e Rosa com uma caderneta pendurada no pescoço, em que anotava tudo o que via e ouvia, registrando o trabalho do vaqueiro, inquirindo-os incansavelmente, registrando a flora e fauna sertaneja, as crenças e expressões populares, as músicas, anedotas, canções, jogos e danças, os remédios caseiros, etc. Ao todo, preencheu 50 cadernos espiralados4. Guimarães Rosa conheceu tantos lugares e culturas diferentes, passou por experiências-limite e retornou a pequena localidade em que nasceu. Ao mesmo tempo em que ampliou sua visão de mundo, estabeleceu comparações que o levaram a uma compreensão mais arguta do que lhe era familiar. O autor realizava, em termos literários, o registro dos resquícios e a substituição de um Brasil primitivo, arcaico, e visceral de religiosidade, patriarcalismo, do universo masculino e rústico dos coronéis e jagunços, das pousadas e fazendas, riachos e veredas que perduraram ao longo de séculos quase imutável. Ele retrata as relações sociais e de poder estabelecidas, em declínio, mas que persistiram pelo período republicano e que contrastavam com os projetos de modernização e de consolidação política da nação brasileira e faziam refletir sobre as condições de transformação das pessoas em cidadãos e de integração nacional diante da diversidade dos vários Brasis. Quiçá, sua obra se apresente como contrapartida do projeto de modernização que culminou nos “anos dourados” com a proposta de construção da nova capital, a vitória da cidade sobre o sertão, da modernidade frente ao arcaico. Numa reflexão de Rosa sobre a familiaridade do escritor com a linguagem, em uma entrevista a Günter Lorenz, ele deixa entrever a superioridade e a universalidade do sertanejo e de seu universo sobre o homem da cidade: Goethe nasceu no sertão, assim como Dostoievski, Tolstoi, Flaubert, Balzac; ele era, como os outros que eu admiro, um moralista, um homem que vivia com a língua e pensava o infinito... Acho que Goethe foi, em resumo, o único grande poeta da literatura mundial que não escrevia para o dia, mas para o infinito. Era um sertanejo. Zola, para tomar arbitrariamente um exemplo contrário, provinha apenas de São Paulo. De cada cem escritores, um está aparentado com Goethe e noventa e nove com Zola (ROSA apud LORENZ, 1991, p. 79).
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Atualmente, eles se encontram no arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP). Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!77!
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Esta comparação do sertanejo com o habitante da cidade decorre da convicção de que o sertanejo é um pensador, alguém que lida com a linguagem de forma orgânica, não originária de um cartesianismo, mas empírica, fruto do discernimento, das relações de grupo, da observação, de um amplo filosofar sobre as experiências do cotidiano. Na visão de Rosa, o sertanejo percebe o “idioma como metáfora de sinceridade” (ROSA apud LORENZ, 1991, p. 78). Logo, o sertanejo é um pensador que reflete sobre a existência, o que diverge da ideia corrente do rústico homem do campo ocupado demais com trabalho manual. Nas palavras de Rosa, “Nós sertanejos somos diferentes da gente temperamental do Rio ou Bahia... Somos tipos especulativos, a quem o simples fato de meditar causa prazer” (ROSA apud LORENZ, 1991, p. 79). Esta perspectiva se aproxima da afirmação de Antonio Gramsci de que todo homem é um filósofo, no sentido que produz visões de mundo. Muitas vezes o senso comum que guia o sertanejo no seu manejo com as atividades do dia a dia, como as crenças, as preces, os remédios, previsões e soluções advindas da prática, sobre a qual o sujeito reflete e tira conclusões de maneira original e dinâmica. Muitas vezes a combinação destes elementos resulta em um tipo de coerência imperceptível ou inaceitável para o homem urbano e moderno. Então, quer dizer que a combinação dos elementos tem uma coerência própria, e não que a coerência esteja dispensada, pois adquire sentido naquele contexto em particular, para os sujeitos históricos envolvidos naquela ação ou comunicação. Contudo, tal sentido não permanece idêntico todo o tempo, muda cada vez que é atualizado pelos sujeitos sociais. Além disso, a narrativa de Rosa não é apenas resultado do contraste, mas também do encontro entre o urbano e o rural, a tradição oral e a cultura erudita, que tantas vezes esteve presente como parte integrante não explicitada da literatura. O próprio Guimarães Rosa era produto da combinação destas duas tradições, um médico formado, versado e estudioso de várias línguas, diplomata e escritor prestigiado, crédulo em superstições, curandeirismo, etc. O texto de Guimarães Rosa tornou-se o lugar de encontro destas duas tradições, através do qual podemos ouvir as vozes dos sertanejos e vaqueiros, representações de personagens reais que ele conheceu e com os quais conviveu. Importa destacar que cultura letrada e tradição oral não são universos isolados e impermeáveis, antes, elas se interpenetram, são retro alimentadas e se defrontam, principalmente, em momentos de conflitos entre os grupos sociais.
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UMA TENTATIVA DE ARREMATE: GUIMARÃES ROSA SOB O PRISMA DAS REFLEXÕES DE ANTONIO GRAMSCI Até o momento, discutimos a fecundidade de transplantarmos o ideário gramisciano para a realidade brasileira, mais especificamente, para o Modernismo, com o intuito de apreciarmos a obra de Guimarães Rosa, à luz dos debates sobre uma arte “nacional-popular”. Se entendermos que para a realização de uma obra de arte com caráter nacional e popular, a mesma deve provocar a ruptura que distancia o artista (o intelectual) e as classes sociais subalternas, através de um desempenho estético que redimensiona e atualiza os valores tradicionais, numa tensão dialética entre o regional e o universal, podemos julgar que a obra de Guimarães Rosa apresenta-se com tais características: é “nacional-popular”. Como já mencionamos, o projeto rosiano de recriação de uma literatura de inspiração popular se coloca combativo diante do esfacelamento dos valores tradicionais em pleno processo de modernização brasileira. Por meio de suas narrativas, Guimarães Rosa não procurou uma imitação caricatural do nosso contexto interno, mas descortinou os impasses provenientes de uma cultura multifacetada como a brasileira, uma cultura que não é una, mas hibrida. Atentando-nos aos valores dialetais propostos por Gramsci para certo julgamento artístico, podemos considerar que Rosa corporifica em suas narrativas, no plano da forma e do conteúdo, elementos de uma cultura popular – dos quais reiteramos a linguagem, os porta-vozes, as canções, as crenças, seus códigos, aproximando-se assim do povo que lhe fornece matéria narrativa. Com isso, Rosa demonstra seu interesse não apenas por tal temática (sertaneja), mas apresenta-se como divulgador dessa cultura, ou melhor, revela-se como uma espécie de guardião daquilo que se fala entre o povo, em especial, entre os sertanejos; demonstra a capacidade de se estabelecer um diálogo coeso entre a escrita e a oralidade; impõe-se a responsabilidade de cativar o leitor para as relações rurais de grupo. Em suma, Guimarães Rosa dispõe-se a deflagrar a “essência do sertanejo”. E isso se torna possível, principalmente, por seu projeto de captar e recriar a maneira como tais sujeitos percebem e reproduzem o mundo circundante. Como ressalta Paulo Rónai, a “transliteração desse universo opera-se num estilo dos mais sugestivos, altamente pessoal e, no entanto, determinado em sua essência pelas tendências dominantes [...] da fala popular” (RÓNAI, 1991, p. 532). A perspectiva empregada por Guimarães Rosa sobre a cultura popular não tem um caráter saudosista. O autor não apenas retoma práticas importantes que estão se
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dissolvendo, mas também ampara “atitudes” da modernidade. Contudo, mais do que demonstrar a importância dessas práticas populares, é necessário definir seu espaço em nosso meio e o quanto as histórias que aí se formam têm a nos dizer e a influenciar sobre nosso modo de ser, estar e nos expressar. No tocante ao plano temático das narrativas rosianas, é evidente a conservação da homogeneidade do espaço e personagens: Todas elas [as estórias] se desenrolam diante dos bastidores das grandes obras anteriores: as estradas, os descampados, as matas, os lugarejos perdidos de Minas, cuja imagem se gravara na memória do escritor com relevo extraordinário. Cenários ermos e rústicos, intocados pelo progresso, onde a vida prossegue nos trilhos escavados por uma rotina secular, onde os sentimentos, as reações e as crenças são os de outros tempos. Só por exceção aparece neles alguma pessoa ligada ao século XX, à civilização urbana e mecanizada; em seus caminhos sem fim, topamos com vaqueiros, criadores de cavalo, caçadores, pescadores, barqueiros, pedreiros, cegos e seus guias, capangas, bandidos, mendigos, ciganos, prostitutas, um mundo arcaico onde a hierarquia culmina nas figuras do fazendeiro, do delegado e do padre. A esse mundo de sua infância o narrador mantém-se fiel ainda desta vez; suas andanças pelas capitais da civilização, seus mergulhos nas fontes da cultura aqui tampouco lhe forneceram temas ou motivos, o muito que vira e aprendera pela vida afora serviu-lhe apenas para aguçar a sua compreensão daquele universo primitivo, para captar e transmitir-lhe 5 a mensagem com mais perfeição (RÓNAI, 1991, p. 531-32) .
Nos trabalhos de Guimarães Rosa, o familiar encontra seu ponto de comparação na estrutura léxica e gramatical de idiomas estrangeiros por ele estudados, no pensamento de filósofos e romancistas e na metodologia adotada. Dizia, por exemplo, que aprendeu “algumas línguas estrangeiras apenas para enriquecer a sua própria e porque há demasiadas coisas intraduzíveis” (ROSA apud LORENZ, 1991, p. 87). Muitas expressões intraduzíveis de outras línguas foram traduzidas para a obra de Guimarães Rosa com o intuito de o literato descrever seu universo sertanejo já que apenas renovando a língua, se pode renovar o mundo, parafraseando Rosa (apud LORENZ, 1991, p. 88). Como ele mesmo nos esclarece, seu método de escrita se baseava na: utilização de cada palavra como se ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-la a seu sentido original. Por isso, e este é o segundo elemento, eu incluo em minha dicção certas particularidades dialéticas de minha região, que são linguagem literária e ainda têm sua marca original, não estão desgastadas e quase sempre são de uma grande sabedoria
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Interpolação nossa.
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ANTONIO GRAMSCI E JOÃO GUIMARÃES ROSA: UM DIÁLOGO (INTER)NACIONAL(POPULAR)
lingüística. Além disso, como autor do século XX, devo me ocupar do idioma formado sob a influência das ciências modernas e que representa uma espécie de dialeto. E também está a minha disposição esse magnífico idioma já quase esquecido: o antigo português dos sábios e poetas daquela época escolástica da Idade Média, tal como se falava, por exemplo, em Coimbra (ROSA apud LORENZ, 1991, p. 81)
PALAVRAS FINAIS A temática do Brasil do atraso versus o Brasil moderno, ou em vias de modernização,
apresenta-se
como
o
contraponto
de
um
projeto
nacional
desenvolvimentista, consagrado como consensual pelo imaginário político. Guimarães Rosa foi testemunha e contemporâneo de um momento em que o Brasil passava por um processo de modernização que parecia varrer e ocultar de um só ímpeto o Brasil secular da cultura popular. O Brasil urbano e industrializado impunha-se sobre o Brasil rural, governado por coronéis e seus jagunços, povoado também por cangaceiros e camponeses. Mas apesar dos sinais de seu esfacelamento, este universo ainda estaria presente na paisagem cotidiana, e permaneceria na memória de uma geração cujas raízes procedem do meio rural, do sertão e todos os dilemas nele contido.
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HÉDER JUNIOR DOS SANTOS
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LITERATURA E CINEMA: PROPOSTA METODOLÓGICA PARA O ENSINO MÉDIO
TANIA REGINA MONTANhA TOLEDO SCOPARO Mestre em Comunicação pela Universidade de Marília. Especialista em Mídias Integradas Literatura pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Integrante dos Grupos -
taria Estadual de Educação do Paraná (SEED). Contato: taniascorparo@uol.com.br
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LITERATURA E CINEMA: PROPOSTA METODOLÓGICA PARA O ENSINO MÉDIO Tania Regina Montanha Toledo Scoparo
RESUMO: Propor novos modos de ler os veículos midiáticos é um desafio para os professores e para as escolas, como também condição para a inserção do sujeito no mundo atual. Nesse sentido, o cinema pode ser um grande recurso para o trabalho pedagógico, uma vez que sua leitura traz uma nova discursividade, uma nova linguagem. O objetivo deste artigo é apresentar uma proposta metodológica utilizando a mídia impressa, o romance O primo Basílio, e a mídia audiovisual, o cinema, com o filme homônimo da obra literária, na perspectiva do Método Recepcional. A intenção é propor esse método como recurso à leitura dos clássicos da literatura e ampliar os horizontes de expectativas da população discente. PALAVRAS-CHAVE: Leitura. Literatura. Cinema. Mídias. Método Recepcional
LITERATURE AND CINEMA: METHODOLOGY FOR HIGH SCHOOL ABSTRACT: Proposing new ways of reading media spread is a challenge to teachers and schools as well a condition to the individual to take part of the modern world. Thus, the cinema can be a great resource for pedagogical work, as the its reading brings a new speech, a new language. The objective of this paper is to present a methodological proposal with the use of the printed media, the novel O Primo Basílio by Eça de Queirós; and the audio-visual media, the cinema, with the homonymous film of the literary work, in the perspective of the Reception Method. The intention is to propose this method as a resource to the reading of the classical literature and to amplify the horizons of students’ expectations. KEYWORDS: Reading. Literature. Cinema. Medias. Reception Method
INTRODUÇÃO Ensinar é um ato criador, um ato crítico e não mecânico. (Paulo Freire, Pedagogia da Esperança, 1992) O presente artigo apresenta uma proposta metodológica para despertar o interesse do aluno nos grandes clássicos da literatura e devido à força dos meios de comunicação junto à sociedade moderna, propõe-se uma prática de ensino pautada na integração da linguagem verbal com outras linguagens, o que se costuma chamar
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de aprendizagem de multiletramento: um diálogo entre a mídia impressa, o romance; e a mídia audiovisual, o cinema. A leitura está presente na vida do ser humano desde a infância, pois a criança, desde o berço, convive com diferentes formas de linguagem. Ela tem contato com a fotografia, o cinema, o som, a música, a pintura, a imagem, as histórias em quadrinhos, enfim, com linguagens que se articulam em vários momentos. E é essa articulação que pode ser explorada na escola. Segundo as Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa da Rede Pública do Estado do Paraná (2009), praticar a leitura em diferentes contextos requer que se compreendam as esferas discursivas em que os textos são produzidos e, posteriormente, circulam. De acordo com essa perspectiva, entende-se ser necessário que o professor aproprie-se de seu papel na formação de leitores e que ele próprio tenha na leitura fonte de aprimoramento e fruição, de forma que seu discurso não seja vazio. Para isso, cabe ao docente ousar, fazer diferente, mexer com a imaginação dos alunos, criar estratégias de motivação, passar rapidamente pelas concepções clássicas ou mais usuais e, enfim, focar as possíveis mudanças trazidas pelas novas tecnologias inovando sua prática pedagógica. Os meios de comunicação são ferramentas de apoio ao processo de ensino e aprendizagem. As diversidades de temas, de opiniões e as formas de leitura desses meios trazem uma nova discursividade, uma nova linguagem. Ler o discurso da mídia faz o sujeito se inteirar do mundo e da história contemporânea. Ao ler, o indivíduo estabelece relações com o outro e reafirma seus valores individuais. Segundo Freire (2006), não basta apenas ler a palavra e o mundo, mas também escrever sobre o mundo em busca de sua transformação. Para isso, o ensino e aprendizagem têm como tarefa aprimorar os conhecimentos discursivos dos alunos para que eles possam compreender os discursos que os cercam. A língua é considerada uma criação social por acompanhar as mudanças da sociedade. Ela coloca à disposição do indivíduo muitas possibilidades de repertório para o seu discurso: “A linguagem é vista como fenômeno social, pois nasce da necessidade de interação (política, social, econômica) entre os homens” (PARANÁ, 2009, p. 16). Esse conceito sobre a linguagem tem como base teórica as reflexões de Bakhtin. O referido autor concentra suas atenções no discurso, como se pode perceber quando afirma que “Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma interação viva e tensa” (BAKHTIN, 1988, p. 88). Nesse
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sentido, todos os enunciados no processo de comunicação são dialógicos e levam em conta o discurso alheio. Sobre esse assunto, Proença (1996, p. 71) observa: [...] toda comunicação envolveria a interação de um falante, um destinatário e um “personagem” (de que se fala) envoltos por um horizonte comum que possibilita a compreensão dos elementos ditos e não ditos. [...] a realização de qualquer comunicação ou interação verbal envolve uma troca de enunciados, situa-se na dimensão de um diálogo. [...] À luz desses posicionamentos, o discurso literário envolve um cruzamento, um diálogo de vários textos.
Nesse sentido, no ato da aprendizagem, espera-se que o aluno tenha contato com diversos textos, de diferentes esferas sociais, ancorados em atividades que lhe deem possibilidades de leitura, interpretação e reflexão da língua. Nesse contexto, os textos da mídia podem ser aliados no processo de ensino e aprendizagem. Considerando a força dos meios de comunicação junto à sociedade moderna, propõe-se neste artigo uma prática de ensino pautada no diálogo entre mídia e literatura, mais especificamente, entre cinema e romance. Essa escolha parte da crença que o saber escolar necessita constantemente de novas manifestações culturais e da expectativa de que os professores sejam preferencialmente educadores dialógicos, preocupados em buscar procedimentos interacionistas para uma efetiva mediação com os educandos.
MÉTODO RECEPCIONAL: UMA PROPOSTA DE TRABALHO Para as Diretrizes Curriculares da Educação Básica de Língua Portuguesa do Paraná (2009, p. 58), o ensino de literatura é pensado a partir dos pressupostos teóricos da Estética da Recepção e da Teoria do Efeito, de Jauss (1994) e Iser (1996), respectivamente. Essas teorias buscam formar um leitor capaz de sentir e de expressar o que sentiu com condições de reconhecer um envolvimento de subjetividades que se expressam pela tríade obra/autor/leitor. O leitor nessa concepção é ativo, reformula hipóteses, considera todas as informações, sejam explícitas ou implícitas. É uma relação que se estabelece entre o leitor e a obra, num ato dialógico da leitura. Hans Robert Jauss, na década de 1960, teceu uma crítica aos métodos de ensino da época, que consideravam apenas o texto e o autor numa perspectiva formalista e estruturalista. Em 1994 elaborou a teoria da Estética da Recepção,
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apresentado sete teses com a finalidade de propor uma metodologia para reescrever a história da literatura:
Na primeira tese, aborda a relação entre leitor e texto, afirmando que o leitor dialoga com a obra atualizando-a no ato da leitura. A segunda tese destaca o saber prévio do leitor, o qual reage de forma individual diante da leitura, influenciado, porém, por um contexto social. A terceira enfatiza o horizonte de expectativas, o autor apresenta a idéia de que é possível medir o caráter artístico de uma obra literária tendo como referência o modo e o grau como foi recebida pelo público nas diferentes épocas em que foi lida. A quarta tese aponta a relação dialógica do texto, uma vez que, para o leitor, a obra constitui-se respostas para os seus questionamentos. Na quinta, Jauss discute o enfoque diacrônico que reflete sobre o contexto em que a obra foi produzida e a maneira como ela foi recebida e re-produzida em diferentes momentos históricos. A sexta tese refere-se ao corte sincrônico, no qual o caráter histórico da obra literária é visto no viés atual. Na última tese, o caráter emancipatório da obra literária relaciona a experiência estética com a atuação do homem em sociedade, permitindo a este, por meio de sua emancipação, desempenhar um papel atuante no contexto social. (PARANÁ, 2009, p. 58-59, grifos nossos)
Compartilhando da teoria de Jauss, Wolfgang Iser apresenta a Teoria do Efeito. Ele trabalha com os conceitos de “leitor implícito”; “estruturas de apelo” e “vazios do texto”. Para Iser (1996, p. 73) “ [...] a concepção de leitor implícito designa [...] uma estrutura do texto que antecipa a presença do receptor”. Assim, no ato da escrita ocorre uma previsão, por parte do autor, de quem será o seu interlocutor. Um leitor ideal, e nem sempre real. É na recepção que o texto significa, por isso ele permite múltiplas interpretações. Mas não aberto a qualquer interpretação. Há pistas, estruturas de apelo, que direcionam o leitor para o seu significado, para uma leitura coerente. Além disso, o texto também traz lacunas, vazios, que podem ser preenchidos conforme o conhecimento de mundo do leitor. Partindo desses pressupostos, as professoras Bordini e Aguiar (1993) elaboraram o Método Recepcional, que é o objeto de estudo nesse trabalho. O método apresenta cinco etapas, cabendo ao professor delimitar o tempo de aplicação de cada uma delas, de acordo com o seu plano de trabalho. No texto das Diretrizes encontra-se a descrição dessas etapas:
A primeira etapa é o momento de determinação do horizonte de expectativa do aluno/leitor. O professor precisa tomar conhecimento da realidade sóciocultural dos educandos, observando o dia-a-dia da sala de aula. Informalmente,
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pode-se analisar os interesses e o nível de leitura, a partir de discussões de textos, visitas à biblioteca, exposições de livros, etc. Na segunda, ocorre o atendimento ao horizonte de expectativas, o professor apresenta textos que sejam próximos ao conhecimento de mundo e às experiências de leitura dos alunos. Para isso, é fundamental que sejam selecionados obras que tenham um senso estético aguçado, percebendo que a diversidade de leituras pode suscitar a busca de autores consagrados da literatura, de obras clássica. Em seguida, acontece a ruptura do horizonte de expectativas. É o momento de mostrar ao leitor que nem sempre determinada leitura é o que ele espera, suas certezas podem ser abaladas. [...] Após essa ruptura, o sujeito é direcionado a um questionamento do horizonte de expectativas. O professor orienta o aluno/leitor a um questionamento e a uma autoavaliação a partir dos textos oferecidos. O aluno deverá perceber que os textos oferecidos na etapa anterior (ruptura) trouxeram-lhe mais dificuldades de leitura, porém, garantiram-lhe mais conhecimento, o que ajudou a ampliar seus horizontes. A quinta e última etapa do método recepcional é a ampliação do horizonte de expectativas. As leituras oferecidas ao aluno e o trabalho efetuado a partir delas possibilitaram uma reflexão e uma tomada de consciência das mudanças e das aquisições, levando-o a uma ampliação de seus conhecimentos. (PARANÁ, 2009, p. 74-75, grifos nossos)
É inserida nesse contexto que se fará a proposta de atividade com o clássico de Eça de Queirós. O texto literário dialoga com outras áreas, com a arte cinematográfica, que pode servir de base para a ampliação dos horizontes de expectativas dos alunos/leitores. Essas teorias servem como suporte teórico para construir uma reflexão sobre o ensino de literatura na sala de aula, levando em conta o papel do leitor e a sua formação, pois a leitura não se restringe mais ao ato de juntar as letras para formar sílabas e posteriormente palavras. Orlandi (2000, p. 40), ao refletir sobre leitura afirma que: A convivência com a música, a pintura, a fotografia, o cinema, com outras formas de utilização do som e com a imagem, assim como a convivência com as linguagens artificiais poderiam nos apontar para uma inserção no universo simbólico que não é a que temos estabelecido na escola. Essas linguagens não são alternativas. Elas se articulam. E é essa articulação que deveria ser explorada no ensino da leitura, quando temos como objetivo trabalhar a capacidade de compreensão do aluno.
Esse enfoque vai ao encontro da fala apresentada nas Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa, (2009). Conforme este documento, ler é familiarizar-se com diferentes textos produzidos em diversas esferas sociais - jornalística, artística, judiciária, científica, didático-pedagógica, cotidiana, midiática, literária, publicitária, bem como, a leitura de imagens, fotos, cartazes, propagandas, imagens digitais e virtuais, figuras que povoam com intensidade crescente o universo cotidiano,
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propiciando o desenvolvimento de uma atitude crítica que leva o aluno a perceber o sujeito presente nos textos e, ainda, tomar uma atitude de resposta diante deles. Sob esse ponto de vista, a leitura de textos diversos amplia o imaginário e a memória discursiva do leitor. É preciso, então, que a escola, como espaço privilegiado de aprendizagem, possa contribuir para a formação desse leitor, a qual exige que o professor também se capacite num leitor de textos, atuando como mediador, provocando os alunos a realizarem leituras significativas.
DELINEAMENTO DA PROPOSTA METODOLÓGICA A proposta de trabalho em sala de aula apresentada aqui, de acordo com Bordini e Aguiar (1993), tem como objetivos: efetuar leituras compreensivas e críticas; ser receptivo a novos textos e a leitura de outrem; questionar as leituras efetuadas em relação ao seu próprio horizonte cultural; transformar os próprios horizontes de expectativas. Por meio dessa proposta, espera-se que o aluno de Ensino Médio se identifique como sujeito que pode sentir, pensar e transformar. Propõe-se uma atividade que interpele os sentidos, desloque significações e perturbe a aprendizagem, virando pelo avesso o conhecimento ilimitado do mundo. Obra escolhida: O primo Basílio - romance e adaptação fílmica. Para se trabalhar com filmes na sala de aula, o aluno não pode achar que o filme serve somente para não fazer lição na sala. O professor atento às adaptações para o cinema encontrará vasto material para propor atividades que estimulem a relação do aluno com o livro. Ele pode apresentar o filme como incentivo para a leitura do livro, conforme Nagamini (2004, p. 16): “O desenvolvimento de atividades abordando o processo de transposição é uma das possibilidades para despertar o interesse pela obra literária e estimular momentos de discussão e descoberta do livro, no espaço escolar”. Propõe-se uma análise do romance O primo Basílio, grande clássico da literatura portuguesa. Livre da contaminação novelesca comum no Romantismo, complexo, irônico, com rigor artístico, arma de ação revolucionária e reformadora de consciências. Assim são os romances de Eça de Queirós. Justamente por isso eles devem ser trabalhados na sala de aula: para permitir que os alunos conheçam textos clássicos e aprendam a apreciar a literatura de qualidade.
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Considerado um dos maiores escritores em prosa da literatura portuguesa, Eça de Queirós é autor múltiplo, inventivo, original. Ele realiza em suas obras a superação de um estilo, dando um salto para a modernidade literária, que antecipa em vários aspectos: a crítica da linguagem tradicional da narrativa, com enredo não linear, constante metalinguagem; o estilo anti-retórico, substantivo; a análise psicológica que anuncia a psicanálise; o humor sutil e permanente, destruindo as ilusões e pieguices românticas, a visão metafísica aguda e relativista de todos os valores, em sentido profundo, e por isso considerada pessimista; a linguagem repleta de ambigüidades e outros recursos estilísticos desconhecidos de seu tempo. Devido a isso é inquestionável a importância literária de O Primo Basílio. Considerado clássico da língua portuguesa, esta obra é um dos principais romances que representam o movimento Realista-Naturalista português. Como romancista com profunda consciência social, Eça fez o que lhe parecia mais lícito: inquietou-se diante das injustiças sociais e na veemência de suas denúncias, na profunda individualização de seus personagens, o artista revelou as próprias idéias e sentimentos. Enquanto intérprete do Realismo e do Naturalismo, Eça de Queirós cultivava o moderno pensamento filosófico e científico de sua geração. O mundo físico passava a ser visto e avaliado sob o prisma da ciência e da experimentação e os valores místicos e religiosos enaltecidos pelo Romantismo eram veementes atacados. A arte literária era uma arma de combate e ação social. Eça abordava, em suas obras, temas sociais: “a condição do clero, o parlamentarismo, a literatura, a educação, a condição da mulher, o adultério, o casamento, ou o jornalismo” (REIS, 2005, p. 13). Nesses contextos, ele concebeu O Primo Basílio, traçando um pequeno quadro doméstico, tendo a família como objeto de interesse. Suas obras são marcadas pelo naturalismo, que enfatiza o determinismo social para explicar a trajetória das personagens. Esses grandes temas de que se nutriu o Realismo-Naturalismo, Eça os acolheu e os disseminou por meio da ficção literária. A qualidade da narrativa, a complexidade com que conflitos são nela expostos, a força das ideias que transmitem e os questionamentos que suscitam dão status aos escritos de Eça. Devido a isso, propõe-se aqui uma atividade de leitura do romance O Primo Basílio e sua adaptação para o cinema, para alunos do Ensino Médio. Nessa atividade, será usado o Método Recepcional, de Aguiar e Bordini, para se trabalhar com os clássicos nas aulas de literatura; e serão analisados alguns aspectos do processo de transcodificação da linguagem da narrativa literária para a linguagem cinematográfica, para motivar a leitura completa das obras.
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MÉTODO
RECEPCIONAL
ALIADO
À
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TECNOLOGIA
NA
PRÁTICA
EDUCACIONAL Os procedimentos didáticos aqui adotados têm origem em algumas sugestões encontradas no texto de Aguiar e Bordini - Literatura e formação do leitor: alternativas metodológicas, 1993; e também criadas por nós para a elaboração deste trabalho. As etapas de desenvolvimento: procedimentos didáticos Conteúdo da aula: mulheres ontem e hoje Objetivo da aula: conhecer as personagens femininas mais significativas de Eça de Queirós. Perceber como algumas delas são mulheres de personalidades fortes, misteriosas, ambíguas, estrategistas, que põem em prática seus projetos, inclusive arrastando ou levando consigo os homens que elas dominam. Ênfase para as personagens femininas: Luisa, Juliana e Leopoldina. Filmografia: O Primo Basílio DETERMINAÇÃO DO HORIZONTE DE EXPECTATIVAS – CINCO ETAPAS Etapa 1. Em um primeiro momento, para verificar o conhecimento dos alunos nos diversos gêneros existentes nas esferas sociais, o professor pede aos alunos que falem sobre a mulher na sociedade e quais são as leituras midiáticas disponíveis no seu cotidiano. No quadro negro reproduz um mapa mental das mídias mencionadas. Modelo: Quadro 01: Mapa mental Leitura Internet Leitura Letras Musicais
Leituras Literárias Formação do Leitor (a mulher) na sociedade)
Leitura Mídia TV Leitura Imagens Pinturas
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Leitura Mídia Cinematogr áfica
Leituras Mídias Impressas
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Segundo Newman & Mara (1995), esse formato de esquema organiza graficamente as idéias e não há hierarquia. Ele reflete a estrutura cognitiva do aluno, uma ferramenta confiável para representar o conhecimento. Com esse mapa os alunos perceberão que já conhecem várias mídias e que as utilizam para pesquisa, mas reconhecerão que falta pesquisar em várias outras para ampliar mais o conhecimento sobre determinado assunto. Etapa 2. O professor traz para a sala de aula uma quantidade grande de artigos de mídia impressa que fala da mulher (passado e presente) e os distribui entre os alunos. Propõe leitura livre, cada um escolhe a matéria que quer ler. Etapa 3. Terminada a leitura, o professor promove um debate informal sobre os vários assuntos sobre a mulher e suas implicações. O professor sugere que os alunos levantem, das matérias lidas, os elementos que mais os tocaram. Poderão aparecer os mistérios, a profundeza e a riqueza da alma e do psiquismo da mulher. Etapa 4. Depois dessa primeira abordagem, o professor pode levar os alunos para o laboratório de informática e solicitar uma navegação por sites da internet que retratam as mulheres atuais. Nessa atividade, o professor precisa tomar alguns cuidados. É muito fácil se perder no meio de tantas informações, tantos sites diferentes, tantos links. Portanto é necessário passar a eles um roteiro de busca com os links preestabelecidos. O grande desafio é manter o objetivo da busca diante das diversidades de informações. Tem que haver critérios para a busca, para navegar com eficiência é necessário ter novas atitudes, decisões rápidas para extrair a informação desejada. O professor, também, precisa ter consciência que não adianta proibir o uso de certos programas na internet, pois os alunos usam o MSN, o Orkut, o e-mail, os chats, em casa, então é importante conscientizar os alunos sobre o uso da internet e suas consequências. A escola tem que incentivar o uso, tem que usar na sala de aula, mas de forma ética, para que os alunos possam identificar os riscos que correm se usarem sem responsabilidade, tornando-se vítimas. Nesse sentido, para usar o computador na sala de aula é preciso: desprender do que vem sendo feito na escola tradicionalmente há anos e vislumbrar uma nova realidade do ensino. Nessa nova realidade não há lugar para a decoreba nem para o que não é significativo para o aluno. O que está valendo são todas as tentativas de fazer com que o aprendiz se envolva na construção do seu próprio conhecimento. É também importante lembrar que a obtenção de resultados satisfatórios com o uso do computador depende de como esse equipamento está sendo usado. O computador não faz nada sozinho e nem faz milagres. Ele tem muitos recursos e nos dá acesso a uma infinidade de informações, no entanto, cabe ao professor planejar o uso desses recursos e informações em sua sala de aula. (COSCARELLI, 1999, p. 13)
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Enfim, cabe ao professor tornar o computador um grande aliado, um instrumento de auxílio para suas aulas. Pelas suas muitas possibilidades de uso, viabiliza aulas mais atrativas e estimula o conhecimento dos educandos para que se tornem mais críticos e melhores cidadãos no futuro. Após a pesquisa no computador, o professor promoverá novo debate e discussões sobre o papel da mulher moderna na sociedade atual. Etapa 5. Montar um painel sobre o assunto pesquisado e expor para que outros alunos possam interagir com o tema. ATENDIMENTO DO HORIZONTE DE EXPECTATIVAS Em outra aula, para atender aos interesses dos alunos pela mulher, o professor direciona o assunto para as mulheres de outra época, as retratadas por Eça de Queirós. São duas etapas Etapa 1. Colocar no quadro o tema: Mulheres queirosianas – mistérios, ambigüidades e traições. Apresentar as características de algumas delas: Luisa, Leopoldina e Juliana (O Primo Basílio), Maria Eduarda (Os Maias), Amélia (O crime do padre Amaro). Depois distribuir fragmentos de textos retirados dos romances apresentando as personagens: O Primo Basílio (capítulo I ); Os Maias (capítulo XV); O crime do padre Amaro (capítulo IV), de Eça de Queirós. Por essa mostra, o aluno perceberá que, na literatura de Eça a mulher deixa de ser aquela heroína idealizada dos românticos e se apresenta como um ser humano completo, com virtudes e vícios, força e fraqueza, sonhos e desejos. As mulheres em Eça são personagens fortes, profundas, inteligentes e ativas, que comandam suas vidas, manipulam seus homens, são misteriosas e ambíguas e têm uns olhares... inexplicáveis, arrebatadores... destruidores!.... Etapa 2. Dividir a turma em grupos e cada um vai estudar as características de uma dessas personagens. Depois vão expor para a turma o que descobriram em relação a cada personagem e farão uma comparação com as mulheres de hoje. Apresentarão as conjunções e as disjunções em relação a elas. RUPTURA DO HORIZONTE DE EXPECTATIVAS Como a atividade de exploração das características e a comparação entre as mulheres revelarão um conjunto de elementos textuais que atrairão os leitores com evidente predominância (as descrições das personagens conterão os temas: sedução,
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ciúmes, traição, aventura etc.) - esse será o meio de efetuar a transição para uma literatura de ordem mais exigente. São cinco etapas. Etapa 1. Assistir ao filme homônimo adaptado do romance O primo Basílio. Depois, em sala de aula, passar algumas cenas selecionadas para fazer uma análise. Etapa 2. Ao ler os fragmentos dos romances e assistir ao filme, os alunos estarão preparados e motivados para a leitura integral do romance. Propor, portanto, a leitura do romance O Primo Basílio, de Eça de Queirós. Num prazo marcado, segundo orientações do professor, a turma se dividirá em três grandes grupos, cada um encarregado de contar, por escrito, a história de uma das personagens do romance, ou seja, Luísa, Leopoldina e Juliana em O primo Basílio. A vida de cada personagem deverá ser narrada de forma a servir posteriormente de roteiro para teatralização. Assim sendo, deve conter todos os indicadores de espaço, sequências de ações, tempo e caracterização das personagens, bem como as falas. Etapa 3. Estudar com mais atenção as personagens dos textos, do romance e do filme e suas respectivas funções dramáticas dentro da história. Compará-las fazendo um quadro de semelhanças e diferenças. Etapa 4. Analisar os aspectos cinematográficos para a composição da significação das imagens do filme. Napolitano (2006) faz uma distinção das técnicas fílmicas: a) a trilha sonora (ruídos, efeitos e música: são elementos expressivos fundamentais, cuja função é reforçar os efeitos emocionais ou o sentido de uma sequência); b) a fotografia (responsável pela qualidade, pela textura, pelo sombreamento e pelo colorido da imagem que se vê na tela); c) O figurino (elemento expressivo que é visto como puramente instrumental ou ornamental, o figurino também pode expressar mensagens e reforçar identidades das personagens ou de determinadas épocas); d) a câmera (ponto de vista e enquadramento: a câmera guia o olhar, organiza o quadro cênico, enfatiza determinados personagens ou objetos pelo enquadramento plano geral, plano americano, plano médio, primeiro plano -, conduz o olhar pelo mundo fílmico por meio de seus movimentos e ângulos). Xavier (2005, p. 27, grifos nossos) explica melhor a expressividade do discurso a partir desses planos, que são as tomadas de cenas entre dois cortes. Deixar-se-á a palavra com o autor para explicar as nomenclaturas e as técnicas básicas: Classicamente, costumou-se dizer que um filme é constituído de seqüências – unidades menores dentro dele, marcadas por sua função dramática e/ou pela
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sua posição na narrativa. Cada seqüência seria constituída de cenas – cada uma das partes dotadas de unidade espaço-temporal. Partindo daí, definamos por enquanto a decupagem como o processo de decomposição do filme (e portanto das seqüências e cenas) em planos. O plano corresponde a cada tomada de cena, ou seja, à extensão de filme compreendida entre dois cortes, o que significa dizer que o plano é um segmento contínuo da imagem.
Assim, é na articulação dos planos que se produz um sentido coerente para o texto visual. Xavier (2005, p. 27), ao tomar conceitos de decupagem clássica, classifica quatro planos, e é nessa perspectiva que se propõe a análise para os alunos: •
Plano Geral: cenas amplas, mostra todo o espaço da ação;
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Plano Médio ou de Conjunto: mostra o conjunto de elementos envolvidos na ação (figuras humanas e cenário);
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Plano Americano: corresponde ao ponto de vista em que as figuras humanas são mostradas da cabeça até a cintura, aproximadamente;
•
Primeiro Plano (close-up): focaliza um detalhe.
e) os objetos: “[...] Desempenham o seu papel, atualizam comportamentos, participam da essência e da existência dos conflitos. Poderão ser interpretados à escala de símbolos, mas apresentam-se com os mesmos direitos dos vivos, porque com eles vivem os pontos de vista que compõem a trama romanesca” (MENDONÇA, 1977, p. 36). Para melhor entender a função dos objetos, faremos uma análise de dois pormenores descritos na obra de Eça. Assim subsidiaremos melhor o professor em sua prática. Os objetos analisados serão o romance A Dama das Camélias e a Voltaire que compõem o espaço da sala de visitas da casa de Luísa e juntamente com este a iluminação do ambiente, a cor, que compõem o quadro doméstico do lar da personagem. Esses objetos, também chamados de pormenores, segundo Mendonça (1977), são muito importantes para uma compreensão plena dos objetivos de Eça e de Daniel Filho, romance e filme respectivamente, colaborando decisivamente para a compreensão do código dramático. A amplitude dos múltiplos significados e interpretações que os pormenores concedem ao leitor remete às palavras de Souza (1990, p. 56), ao comentar a descrição dos pormenores na obra de Eça: Eu entendo que detalhes, geralmente tidos como irrelevantes, por vício de leitura atenta unicamente aos núcleos temáticos, acabam, se forem devidamente organizados e inseridos no intertexto, por esclarecer o significado dos elementos primordiais da estrutura romanesca, e ajudam-nos a melhor compreender a extrema subtileza do ‘processo’ queirosiano.
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ANÁLISE DOS OBJETOS O romance A Dama das Camélias e a voltaire No romance, logo no início da narrativa, aparecem os objetos: o romance A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho, que marca o indício do drama da personagem principal; e a voltaire1 que colabora para o adultério. Em uma cena inicial, capítulo 1, Luisa, estendida na voltaire, lia um livro tranquilamente: Tornou a espreguiçar-se. E saltando na ponta do pé descalço, foi buscar ao aparador por detrás duma compota um livro um pouco enxovalhado, veio estender-se na voltaire, quase deitada, e, com o gesto acariciador e amoroso dos dedos sobre a orelha, começou a ler, toda interessada. Era a Dama das Camélias. (QUEIRÓS, 1996, p. 16, grifos nossos)
Primeiramente uma análise da Voltaire, que tem no romance uma utilização específica, pois sublinha o estado de espírito de Luísa, e também tem um significado considerável no jogo do adultério. Traduz a preguiça, o cansaço, o alheamento de Luísa: “E depois de jantar ficou junto à janela, estendida na voltaire [...] deixara-se ficar na voltaire esquecida, absorvida, sem pedir luz” (capítulo 3, p. 55-56) ou “Luísa subiu daí a pouco com um largo roupão, muito fatigada; estendeu-se na voltaire; sentia virlhe uma sololência” (capítulo 4, p. 79). Por meio dela, interpretam-se as intenções da personagem: sentada na voltaire, pensava “Que vida interessante a do primo Basílio! O que ele tinha visto! Se ela pudesse também fazer as suas malas, partir” (capítulo 3, p. 56). A sua importância equivale a de um personagem ativo na diegese: “E estendida na voltaire [...] lembrou-lhe de repente a notícia do jornal, a chegada do primo Basílio” (capítulo 1, p. 17), como se vê, o objeto estava sempre presente quando pensava no primo, revelando pensamentos íntimos, que colaboravam para a traição. O romance, A dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho, narra a história de uma elegante cortesã francesa, em meados do século XIX, que encanta por sua beleza e mantém um romance impossível com um rico homem da emergente burguesia urbana. Na história, ela ficou conhecida como a guardiã da falsa moral burguesa da época. Esse enredo é bastante revelador, pois antecede, como elemento proléptico2, o drama que Luísa sofrerá. Apesar de histórias muito diferentes, Luísa agirá, no decorrer da narrativa, como uma mulher volúvel ao se relacionar com outro
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Voltaire, palavra francesa, um tipo de poltrona. A prolepse corresponde a todo o movimento de antecipação, pelo discurso, de eventos cuja ocorrência, na história, é posterior ao presente da ação (cf. Genette)
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homem, fora do casamento, viverá um romance proibido e morrerá por causa disso, devido aos falsos conceitos moralizantes da época. Etapa 5. Propor a análise das imagens. Abaixo um modelo, do filme O primo Basílio:
Fig. 01: Luísa e Leonor na sala conversando
Fig. 02: Basílio e Luísa: traição
Fig. 03: O casal aos pés do sofá
Fig. 04: Juliana sondando a sala
Nessas imagens procure identificar: Quadro 02 - Análise das imagens para os alunos Elementos que indicam o uso da metalinguagem (diálogo entre os textos verbal (romance) e audiovisual (filme)):
Observar se o romance e as imagens acima deixam perceber ou não a ideologia dos autores:
Nessa descrição, o sofá é elemento determinante na ação. Este pormenor não é despiciendo, ele faz sentido dentro da ação da narrativa. Não é por acaso que o sofá está presente nas ações da história. Ele participa do Analisar os efeitos de iluminação, cor, figurino, evento que mudará a vida de Luísa, constitui, planos (geral, médio, americano, close-up): assim, o cerne da história. O diretor do filme soube adequar os objetos às necessidades da ação, sem eles esta não seria tão perfeita. Observar o objeto sofá nas cenas e analisar sua importância para a composição do drama:
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QUESTIONAMENTO DO HORIZONTE DE EXPECTATIVAS - QUATRO ETAPAS Etapa 1. Elaborar um roteiro para um documentário, um telejornal. Os seus aspectos técnicos devem ser analisados antes de sua confecção: o cenário, as técnicas de produção (vinheta, enquadramento, entrevistas, opinião etc.). Etapa 2. Solicitar aos alunos que saiam a campo para fazer um documentário sobre o tema “Mulheres: ontem e hoje”, apoiando-se em entrevistas com as mulheres da sociedade da comunidade dos alunos. Para isso é elaborado um roteiro de entrevista pelos alunos, contendo as perguntas que lhes interessem. Etapa 3. De posse do roteiro organizado, os alunos dividem-se em dois grupos e cada um entrevista as mulheres selecionadas (jovens e idosas). Etapa 4. Com base nessa entrevista, cada grupo, valendo-se de algumas reportagens lidas na sala de aula, na internet e vista na TV como modelo, escreve e edita a sua reportagem em vídeo. Esse telejornal deverá incidir sobre as diferenças entre a situação das mulheres jovens e das idosas, observando-se as conjunções e as disjunções; e também as vantagens e as desvantagens. O telejornal possibilita ver e ouvir o mundo, o que nele acontece, construindo assim um conhecimento histórico-social. Nas palavras de Umberto Eco (1970, p. 363): “Há na comunicação pela imagem algo radicalmente limitativo, de insuperavelmente reacionário. E, no entanto, não se pode rejeitar a riqueza de impressões e descobertas que, em toda história da civilização, os discursos por imagens deram aos homens”.
AMPLIAÇÃO DO HORIZONTE DE EXPECTATIVAS A discussão anterior possivelmente levou à constatação de que a diferença básica entre os problemas e comportamentos das mulheres na sociedade moderna está relacionada à posição social, à cultura, ao emprego, à idade, ao preconceito etc. São duas etapas. Etapa 1. De posse dos dados coletados, o professor prepara para a aula seguinte dois cartazes, cada um com uma dessas questões, entre outras: 1) como a sociedade determina o comportamento das mulheres?;
2) Que problemas sociais, culturais
afetam a mulher moderna?. Os cartazes são afixados na parede para serem debatidos entre os alunos. O professor os incentiva a relacionar as questões propostas com todo o conteúdo
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desenvolvido nas aulas anteriores de literatura e com outros livros que tratem de assunto sobre a mulher. Etapa 2. Indicar outros livros de Eça de Queirós e de outros autores que falam da mulher. É estipulado um prazo para a leitura dos livros indicados. No dia marcado, os leitores discutem as dimensões sociais, culturais e outras em que as mulheres dos textos foram inseridas pelo autor. É importante ressaltar que, em atividades dessa natureza, os alunos problematizam as produções de jornal, revista, TV, cinema etc., aprendem a tirar significados das imagens e compará-las com o conteúdo verbal do texto escrito e descobrem que a mídia é um recurso tecnológico importante para o ensinoaprendizagem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS A escola tem compromisso com a construção da cidadania. Por isso, em sala de aula, cabe à prática educacional voltar-se para a compreensão da realidade social e dos direitos e responsabilidades em relação à vida das pessoas inseridas na sociedade. Nessa perspectiva é que foi incorporada como tema, a mulher, a contemporânea, em comparação com aquela do século XIX. Suas semelhanças e diferenças para melhor compreensão da realidade social de cada uma delas. A abordagem aqui proposta teve a intenção de fornecer subsídios aos alunos para auxiliá-los a superar os problemas com a leitura e a atribuição de significados que decorrem do modo de construir o texto. Para isso, foram propostos novos conhecimentos que atiçam a imaginação - fundamento de todo ato de leitura, seja de textos verbais ou não – leitura do mundo, desenvolvendo leitores críticos, atuantes, que saibam o papel social que desempenham dentro da sociedade. Os desafios para formar o aluno leitor do texto verbal e não-verbal são de várias ordens, desde as escolhas das estratégias de incentivo à leitura até a concorrência com outras linguagens, sobretudo as visuais e audiovisuais. Então foi a intenção deste artigo aproveitar essa concorrência para propor atividades que estimulem a leitura dessas artes no ensino e aprendizagem. Por tudo que foi pesquisado e analisado, acredita-se que as atividades voltadas para o ensino da leitura e da literatura aliadas à tecnologia podem constituir-se em
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atividades significativas, nas quais os alunos vislumbrem uma situação real que as justifique. Ao apresentar na sala de aula grandes clássicos da literatura, utilizando o Método Recepcional, pretendeu-se possibilitar aos alunos uma efetiva participação em diferentes práticas sociais, utilizando a leitura com a finalidade de inseri-los nas diversas esferas de interação. Enfim, espera-se que o estudo realizado aqui contribua para a elaboração de outras práticas, com diferentes metodologias. Isso porque se crê em professor como sujeito ativo, que faz da sua prática um espaço para a produção de novos saberes, mais próximos à realidade de sua população discente.
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ANDRéIA DIAS IANUSkIEwTZ Doutoranda junto ao Programa de PósFederal de São Carlos e Professora do Ensino
ASPECTOS (INTER)CULTURAIS NO ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA Andréia Dias Ianuskiewtz
RESUMO: Discutir questões (inter)culturais em aula de língua estrangeira não significa meramente transmitir informações culturais estanques; significa adotar a perspectiva do intercultural como processo de diálogo entre pessoas pertencentes a culturas diferentes, diálogo este, que deve promover a integração, permitindo ao educando encontrar-se com a cultura do outro sem deixar de lado a sua, incentivando o respeito a outras culturas, a superação de preconceitos culturais e do etnocentrismo. No ensino de línguas baseado em uma perspectiva intercultural busca-se desenvolver a habilidade de usar a língua de forma social e culturalmente adequada. Considerando-se tais pressupostos, pretendemos, na primeira parte deste artigo, tecer reflexões sobre a questão da interculturalidade no ensino-aprendizagem de língua estrangeira e, em seguida, analisar trechos de três livros didáticos de língua inglesa, verificando como são propostas atividades pedagógicas que podem ser bem sucedidas e cumprir um dos importantes papéis da abordagem intercultural que é levar o aprendiz à reflexão sobre a língua estrangeira e sua(s) cultura(s) e sobre a língua materna e sua(s) cultura(s). PALAVRAS-CHAVE: Interculturalidade; língua estrangeira; material didático; língua inglesa.
ABSTRACT: Discussing intercultural issues in a foreign language class doesn’t mean mere transmission of stagnant cultural information; it means to adopt an intercultural perspective as a dialogue process among people who belong to different cultures. This dialogue must promote integration, allowing the students to meet the other’s culture without putting their own culture aside, encouraging the respect for other cultures, the overcoming of cultural prejudice and ethnocentrism. Language teaching based on an intercultural perspective aims to develop the ability of using the language in a socially and culturally appropriated way. Considering these assumptions, in the first part of this paper we aim to reflect on the subject of interculturality in foreign language teaching and learning. Next, we will analyse sections of three didactic books for English teaching, verifying the way pedagogical activities are presented and how they can be effective in leading students to reflect on the foreign language and its culture(s) and on the mother tongue and its culture(s). Keywords: Interculturality; foreign language; didactic material; English language.
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1. CULTURA/INTERCULTURALIDADE E ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA De acordo com Kumaravadivelu (2008), embora o componente cultura seja parte integral do ensino de língua estrangeira (LE) há muito tempo, não era considerado, até recentemente, um conteúdo explícito do currículo do ensino de línguas: era visto como um subproduto do ensino-aprendizagem de LE. Segundo o autor, é somente após a Segunda Guerra Mundial, quando o comércio e a comunicação internacional se tornam difundidos, que os profissionais da área de ensino-aprendizagem de línguas reconhecem a necessidade de se “ensinar cultura” explicitamente. Nos anos noventa, a preocupação com a inserção de aspectos culturais nas aulas de LE, juntamente com a noção de multiculturalismo, adquire maior relevância. Rozenfeld (2007, p.69) afirma que existe, atualmente, uma visão amplamente difundida de que alunos de LE necessitam, além do conhecimento da gramática da língua-alvo, da “habilidade de usar a língua de forma social e culturalmente adequada”, pois entende-se que “a simples aquisição de sistemas linguísticos não é garantia de compreensão nem de paz entre os povos” (BARBOSA, 2009, p.115). Segundo Corbett (2008), há, hoje em dia, em muitas aulas de LE ao redor do mundo, uma crescente demanda para que professores combinem as quatro habilidades linguísticas (reading, writing, listening, speaking) a um conjunto de habilidades e competências interculturais. Porém, Kramsh (1993) atenta para o fato de que a aprendizagem da cultura na área de LE não deve ser vista como uma quinta habilidade (além das outras quatro acima citadas), mas sim, como um aspecto que precisa estar sempre presente na aula de LE. Almeida Filho (2002) corrobora essa reflexão e elucida que a cultura, ao invés de ser uma “franja” na aula de LE, deve ocupar o mesmo lugar da língua, quando essa se apresenta como ação social propositada. Cleary (2008) aponta que a cultura sempre ocupou lugar importante no ensinoaprendizagem de línguas, mas que nos últimos anos, o foco tem mudado para seus aspectos sociais e comportamentais, com ênfase na consciência cultural (cultural awareness), como fator primordial para a comunicação efetiva. De acordo com a autora, consciência cultural é um tema complexo e vai além da aprendizagem sobre povos ou culturas, abrangendo a) a consciência sobre a bagagem cultural do próprio aprendiz e a bagagem cultural do outro e o modo como essas influenciam seus comportamentos e b) o
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conhecimento de como interpretar, negociar e explicar a diversidade cultural para auxiliar na comunicação efetiva com pessoas de outras culturas. Assim como Cleary (2008), acreditamos que ao entendermos e refletirmos sobre nossa cultura e nosso comportamento, o qual também é culturalmente influenciado, estamos mais preparados para compreender a cultura e o comportamento alheio, e assim, criarmos a base para uma comunicação intercultural bem sucedida. Corbett (2010) pontua que os significados atribuídos ao termo “intercultural” têm mudado constantemente, à medida que o conceito é adotado e adaptado pela ampla comunidade de estudiosos de línguas. Segundo o autor, as origens do conceito “intercultural” remetem à preocupação pelo que acontece, quando pessoas de diferentes backgrounds, que fazem uso de uma língua em comum, enfrentam problemas de comunicação por não compartilharem uma série de crenças, atitudes e suposições sobre o que pode ser considerado um padrão de comportamento “normal”. O autor esclarece que, embora o ensino de línguas com enfoque intercultural ainda inclua a preocupação com situações nas quais ocorrem falhas de comunicação, atualmente vai além desse foco limitado, e tem como objetivo a comunicação além das barreiras culturais. A abordagem intercultural no processo de ensino-aprendizagem de línguas seria uma resposta à necessidade de preparar os alunos para lidarem com diferenças em atitudes, crenças e comportamentos, com respeito, humildade e tolerância. Desse modo, entendemos que em uma dimensão intercultural de ensino de LE, objetiva-se a promoção de uma ação integradora entre falantes oriundos de diferentes culturas, de modo que possam construir novos significados, sempre sensibilizados para o respeito às diferenças e diversidades culturais do outro. De acordo com Barbosa (2009, p.122), a abordagem intercultural vai além do conhecimento habitual dos fatos culturais; ela “visa permitir a compreensão da maneira pela qual esses fatos estão interligados”. A autora completa que: Nessa perspectiva, o professor de língua deixa de ser apenas o “empresário” de um determinado desempenho linguístico, para tornar-se o catalisador de uma competência crítica e cultural em expansão contínua. (BARBOSA, 2009, p.130)
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Almeida Filho (2002, p.211) compartilha as mesmas reflexões e acrescenta a ideia de que o termo “intercultural implica a noção de reciprocidade de viver (mesmo que temporariamente) na esfera cultural do outro e simultaneamente ter o outro confortavelmente na nossa esfera cultural”. Em 2001, o documento Common European Framework of Reference for Languages: Learning, Teaching and Assessment foi publicado pelo Conselho Europeu. Kumaravadivelu (2008) aponta que um conteúdo importante desse quadro é o desenvolvimento do tema interculturalidade no ensino-aprendizagem de línguas, que objetiva promover a consciência intercultural do aprendiz de LE. Tal consciência compreende, além do conhecimento objetivo da relação entre o “mundo de origem” e o “mundo da comunidade alvo” (similaridades e diferenças), uma conscientização de como cada comunidade é vista da perspectiva do outro, geralmente na forma de estereótipos. Corbett (2008) elucida que, no ensino-aprendizagem de línguas, o conhecimento e habilidade interculturais juntam-se ao conhecimento e habilidade linguísticas na investigação dos seguintes tópicos: •
como construímos noções de nós próprios e dos outros;
•
como interagimos e construímos um senso de comunidade;
•
como respondemos politicamente à globalização;
•
como podemos relacionar o comportamento dos outros às suas atitudes e crenças;
•
como podemos ter empatia, respeito e valorizar as crenças dos outros. Sendo assim, o ensino de línguas, em uma abordagem intercultural, deve buscar
“a reflexão, sensibilização e compreensão de aspectos da cultura-alvo, assim como sobre a própria cultura” (ROZENFELD, 2007, p.72). Nessa perspectiva, o processo de ensinoaprendizagem de LE não se restringe à explicitação de fatos e comportamentos em diferentes culturas; ele vai além, em busca da sensibilização de todos os indivíduos envolvidos na interação, para que possam agir na tentativa de compreenderem e respeitarem uns aos outros, “construindo novos significados e redescobrindo suas próprias identidades” (PAIVA, 2009, p.47).
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Portanto, discutir questões culturais em sala de aula não significa meramente transmitir informações culturais estanques. Significa, sim, adotar a perspectiva do intercultural como processo de diálogo entre pessoas pertencentes a culturas diferentes; diálogo este que promove a integração e o respeito à diversidade e permite ao educando encontrar-se com a cultura do outro sem deixar de lado a sua, ao incentivar o respeito a outras culturas, a superação de preconceitos culturais e do etnocentrismo. Porém, há de se pensar em como podemos incorporar questões culturais ao conjunto de práticas pedagógicas de professores de LE. Holliday, Hyde e Kullman (apud KUMARAVADIVELU, 2008) identificam três grandes dificuldades a respeito do “ensino de cultura” na área de ensino-aprendizagem de LE, tanto no campo teórico quanto no campo prático: primeiramente, os autores apontam que apenas “problemas” e “dificuldades” culturais são o foco dos estudos. Em segundo lugar, o estudo da cultura estaria limitado ao estudo de padrões de comportamento e valores fixos. E por último, cultura, do modo limitado em que é idealizada, torna-se a explicação necessária e suficiente dos conflitos interculturais. Atkinson (apud KUMARAVADIVELU, 2008) conclui que a maioria dos profissionais de LE vê cultura como entidades geograficamente e nacionalmente distintas, com sistemas de regras e normas que determinam o comportamento pessoal. O autor acredita que precisamos desenvolver uma noção de cultura que leve em conta o cultural no individual e o individual no cultural. A sala de aula de LE, segundo Corbett (2010), é um lugar privilegiado para a exploração de aspectos interculturais, porque proporciona o tempo e espaço para encontros com “outros”, encontros esses, regulares, e que possibilitam reflexão e discussão sobre nossos comportamentos, atitudes e crenças, comparando-os com o outro. Bizarro e Braga (2005, p.828-829) também reconhecem a aula de LE como espaço onde o encontro com o outro assume particular significado: Hoje, ela [a aula de LE] constitui-se, fundamentalmente, como um espaço de interação cultural, onde se evidencia a heterogeneidade das pessoas (professor/a e alunos/as) que a frequentam, heterogeneidade esta feita de diferenças, mas também da ocorrência de similitudes, umas e outras detectáveis não só no conhecimento e no uso que se faz/tem da língua em estudo, mas também no aspecto sócio-relacional que ela instaura, e, ainda, heterogeneidade face aos falantes autóctones da língua estrangeira que é objeto de estudo.
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Podemos afirmar que a educação intercultural oferece também ao professor de línguas um novo conjunto de contextos, propósitos e motivações, que lhe permitem explorar outras culturas e mediar quando a má comunicação ocorre devido a questões culturais. O educador, nesse contexto, tem como objetivo promover habilidades de “descentralização”, encorajando o aprendiz a ver sua cultura através dos olhos do outro e também a simpatizar com as atitudes e crenças do outro (CORBETT, 2008, 2010).
2. QUAL CULTURA DEVEMOS “ENSINAR” NAS AULAS DE LÍNGUA ESTRANGEIRA? Após reconhecermos que enriquecer nossas aulas com informações e conteúdos (inter)culturais auxilia o aprendiz de LE a desenvolver sua consciência cultural, devemos refletir sobre qual cultura devemos “ensinar”. Cleary (2008) lembra que o idioma inglês, conforme afirmam Carter e Nunan (2001) em Cambridge Guide to Teaching English to Speakers of Other Languages, não pertence mais ao Reino Unido ou aos Estados Unidos: ele é uma fonte diversa e diversificada para a comunicação global. Desse modo, Cleary (2008) acredita que o componente cultural que apresentamos aos nossos alunos deve ser representativo de todos os contextos e situações nos quais a língua inglesa é falada, refletindo assim, a diversidade e pluralidade de seus usuários. Outra questão importante a considerar, de acordo com Cleary (2008), seria decidir quais aspectos culturais incluir nas aulas de línguas. De acordo com a autora, a maioria dos livros didáticos para o ensino da língua inglesa abordam aspectos tradicionais da cultura. No entanto, concordamos com Cleary (2008), que a melhor maneira de integrarmos o ensino do componente cultural à aula de LE seria usarmos o modelo de culture-enriched instruction, substituindo o conteúdo acadêmico por informação cultural significativa, e promovendo, desta maneira, tanto as habilidades linguísticas, quanto o conhecimento e a competência cultural. Ao ensinarmos LE por meio de um amplo escopo de referências culturais, oferecemos ao aprendiz oportunidades de desenvolver importantes competências cognitivas e culturais, sem com isto, comprometer seu desenvolvimento linguístico. Rozenfeld (2007) afirma que:
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No campo linguístico, o EI (ensino intercultural) acontecerá, no momento em que alunos, ao se defrontarem com a LE, formularão questões sobre o significado de palavras, o entendimento das estruturas e tecerão comparações entre a LM e a língua-alvo. Nesse momento, busca-se o reconhecimento de que as pessoas utilizam outras ferramentas e outros meios para expressar determinados desejos, ou certas opiniões. Aceitar isso sem estranhamento, assim como buscar a relativização do outro e do eu, marca uma mudança de paradigma na aprendizagem de LE, a do ensino intercultural. Busca-se a normalização do outro e o estranhamento do normal, tanto no campo linguístico, quanto cultural (Vollmuth, 2002). Ocorre o reconhecimento não só de que o outro vive e se comunica de forma diferente, com o mesmo direito que o eu, mas que o mundo até então absolutamente tomado como próprio e normal é relativo. (ROZENFELD, 2007, p.73, grifos do autor)
A autora destaca o conceito de competência intercultural (CI) e esclarece que ele surgiu a partir dos pilares da relação entre língua e cultura na interação. Baseando-se em Volkmann, Rozenfeld elucida que a CI se refere à capacidade e habilidade do aprendiz de LE, “de conhecer as diferenças entre a cultura-alvo e a própria, de reconhecer essas diferenças em situações concretas e de desenvolver estratégias para lidar de forma compreensiva com os costumes da outra cultura” (ROZENFELD, 2007, p. 79). Vollmuth (apud ROZENFELD, 2007, p. 79) vai além e afirma que como CI “não é o simples conhecimento do outro, mas também reflexão sobre o outro, é necessário que se teça reflexões e comparações acerca também de si mesmo”. A CI compreenderia, então, a capacidade de entendimento do outro, a partir da análise do eu, da sensibilização para as diferenças e evidenciaria a necessidade de reflexão quanto à própria cultura e aos próprios valores. Ela tornaria possível o preparo de alunos e professores para a tolerância, aceitação e compreensão do outro, bem como para possíveis reformulações de (pré) conceitos.
3. ATIVIDADES PEDAGÓGICAS EM LIVROS DE LÍNGUA INGLESA QUE ABORDAM ASPECTOS INTERCULTURAIS Após refletirmos sobre o ensino de línguas em uma perspectiva intercultural e ressaltarmos sua importância, observaremos, a seguir, como são propostas atividades pedagógicas que abordam aspectos interculturais, retiradas de três livros didáticos de Inglês LE: English File1, Total English2, e Face2Face3.
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OXENDEN, C.; SELIGSON, P. English File (Elementary). Oxford: Oxford University Press, 1996.
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Atividades do livro English File
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ACKLAM, R.; CRACE, A. Total English (Pre Intermediate). Essex: Pearson Education, 2005. REDSTON, C.; CUNNINGHAM, G. Face2Face (Upper Intermediate). Cambridge: Cambridge University Press, 2006.
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ASPECTOS (INTER)CULTURAIS NO ENSINO-APRENDIZAGEM DE Lร NGUA ESTRANGEIRA
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Atividades do livro Face2Face
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ASPECTOS (INTER)CULTURAIS NO ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA
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Atividades do livro Total English
O livro English File propõe que os alunos primeiramente citem três coisas que são tipicamente inglesas. Em seguida, é sugerida a leitura do texto intitulado Tipicamente inglês?, no qual são apresentados vários estereótipos a respeito dos ingleses, tais como: moram em casas, trabalham em escritórios, leem o The Times, bebem chá às cinco, assistem à BBC, não fumam, têm gatos ou cães, gostam da família real, não falam nenhuma língua estrangeira, etc. Os alunos verificam, então, se os três fatos que citaram no primeiro exercício aparecem no texto. Após a verificação, outro texto é apresentado aos alunos; nele, duas pessoas inglesas se apresentam: Catherine e Terry. O foco gramatical é a prática da adição do –s nos verbos conjugados na 3ª pessoa do singular no presente simples. Porém, ao completarem os verbos, os aprendizes refletirão sobre os estereótipos contidos no primeiro
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texto, pois: Catherine trabalha em um hotel (não em um escritório), bebe tanto chá como café, fuma em média cinco cigarros por dia e lê o The Independent, ao passo que Terry mora em um apartamento (e não em uma casa), assiste TV a cabo (e não a BBC), lê o The Sun, não gosta de gatos e nem da família real e fala duas línguas estrangeiras. A primeira atividade proposta pelo livro Face2Face propõe aos alunos que discutam em grupos quais são os quatro adjetivos que melhor descrevem os ingleses. Em seguida, devem ler o texto O que todo visitante à Inglaterra precisa saber, que consiste em uma resenha crítica escrita por Henry Hardcastle sobre o livro Observando os ingleses, de Kate Fox. Na resenha o autor discute o estereótipo vinculado ao povo inglês como sendo frio e hostil e explica que na verdade, os ingleses têm dificuldade de conversar com pessoas com as quais não têm intimidade, por serem muito reservados. Após a leitura do texto e do ponto gramatical (o uso de verbos com a terminação ing), há um exercício que sugere ao aluno imaginar que um turista inglês está vindo ao seu país. É solicitado a ele, então, que liste oito dicas sobre códigos de conduta em seu país. São dadas ao aluno algumas ideias sobre os temas que pode abordar, tais como: comportamento nos transportes públicos, filas, puxar conversa com estranhos, falar alto, entre outros. O aluno deve usar verbos com a terminação ing em suas frases. Nessa atividade, a fim de sensibilizar os alunos para diferenças culturais e promover o encontro entre culturas via linguagem, os alunos são incentivados a refletir sobre comportamentos de pessoas de seus países. Os alunos podem, dessa forma, relacionar o novo conhecimento cultural a si próprios e ao seu mundo. Rozenfeld (2007) destaca a importância de definirmos estratégias didáticas que favoreçam a reflexão e revisão pessoal sobre valores do mundo e que possibilitem e intensifiquem as trocas culturais. O livro Total English propõe uma atividade de leitura que se inicia com a seguinte pergunta: O que lhe vem à cabeça quando pensa sobre os ingleses? Após discussão dos itens levantados, os alunos leem o texto Olhando para a Inglaterra, no qual se destaca logo no início a seguinte afirmação: “Há ideias sobre a Inglaterra e sobre os ingleses que não são verdadeiras”. O texto identifica alguns estereótipos que existem sobre a Inglaterra e os ingleses e os desconstrói, como por exemplo: embora os ingleses gostem de chá, não param todas as tardes para bebê-lo; apesar de o tempo ser bastante instável, não
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ASPECTOS (INTER)CULTURAIS NO ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA
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chove todos os dias no país; o fato de permanecerem em silêncio durante as viagens no metrô, não significa que os ingleses sejam antipáticos; significa apenas que não têm o hábito de iniciar conversa com pessoas que não conhecem.
4. REFLEXÕES FINAIS Observamos que as atividades propostas nos três livros analisados propiciam experiências sócio-interativas envolventes, as quais podem promover ação linguística comunicativa na língua alvo e favorecer o trabalho pela consciência cultural do outro e da própria cultura do aprendiz. Nelas, o conteúdo cultural é abordado sem que haja uma delimitação entre língua e cultura, ou seja, o componente cultural não constitui um apêndice no ensino de línguas, nem se limita ao ensino de curiosidades e exotismos que podem levar a criação de estereótipos. Ao contrário, as atividades propostas possibilitam a abordagem, discussão e quebra de estereótipos a respeito da cultura da língua alvo. Os autores desses livros parecem compartilhar da ideia de que não se pode desassociar língua e cultura, considerando-se a maneira como as atividades foram propostas e os tópicos apresentados. Nas atividades dos livros em questão, os alunos são levados, primeiramente, a apresentar as imagens que trazem da cultura inglesa e em seguida, têm a oportunidade de averiguar, por meio da leitura de textos, se suas representações a respeito da cultura da língua alvo são ideias estereotipadas ou não. Portanto, as atividades estimulam a análise comparativa de aspectos da cultura britânica com a cultura do aluno, favorecendo, assim, a autopercepção e a percepção de aspectos de outras culturas, conforme propõem Byram et al (2002). É importante, como educadores envolvidos com o ensino de línguas, termos em mente que o ensino intercultural deve despertar a curiosidade dos alunos a respeito de outras culturas, auxiliá-los a reconhecer que as variáveis socioculturais afetam o comportamento das pessoas e que a comunicação eficiente depende da maneira como, culturalmente condicionadas, as pessoas pensam e agem. O ensino intercultural deve conduzir a reflexões que levem o aprendiz a perceber a expressão de uma cultura por meio de pessoas, costumes, comportamentos e hábitos. Dessa forma, “o ato de comunicação se caracterizará por processos dialógicos que envolvem muito mais a compreensão que o mero conhecimento do outro” (SCHINELO, 2009, p.56).
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Ensinar uma LE não significa transmitir valores culturais do povo que a fala; significa, entre outros aspectos relevantes, permitir ao aprendiz o acesso a outras culturas, outros modos de pensar o mundo. Ao ensinarmos uma nova língua, também contribuímos para a formação de indivíduos que se veem como cidadãos do mundo, trabalhamos com noções de quem somos e com questionamentos sobre a relação dessa nova língua com nossas identidades individuais e coletivas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ACKLAM, R.; CRACE, A. Total English (Pre Intermediate). Essex: Pearson Education, 2005. ALMEIDA FILHO, J.C.P. Língua além de cultura ou além da cultura, língua? Aspectos do ensino da interculturalidade. In: CUNHA, M.J.C & SANTOS, P. Tópicos em Português Língua Estrangeira. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002, p.209-215. BARBOSA, L. M. A.O Componente Cultural na Linguística Aplicada. São José do Rio Preto: APLIESP - Associação dos Professores de Língua Inglesa do Estado de São Paulo, 2009, p.115-134. BIZARRO, R.; BRAGA, F. Da(s) cultura(s) de ensino ao ensino da(s) cultura(s) na aula de Língua Estrangeira. Universidade do Porto. Faculdade de Letras , p.823-835, 2005. BYRAM, M.; GRIBKOVA, B.; STARKEY, H. Developing the intercultural dimension in language teaching: a practical introduction for teachers, 2002. (versão eletrônica) Disponível em: < http://www.lrc.cornell.edu/director/intercultural.pdf>. Acesso em: 6 de jan. 2012. CLEARY, M. Culture in ELT. New Routes, São Paulo, n.36, p. 32-33, set. 2008. CORBETT, J. Developing Intercultural Language Awareness. New Routes, São Paulo, n. 34, p. 26-27, jan. 2008. CORBETT, J. Explore, Reflect and Discuss: Intercultural Activities for the Language Classroom. New Routes, São Paulo, n. 42, p. 14-18, set. 2010. KRAMSCH, C.J. Context and Culture in Language Teaching. Oxford: Oxford University Press, 1993. KUMARAVADIVELU, B. Cultural Globalization and Language Education. New Haven (EUA): Yale University Press, 2008. OXENDEN, C.; SELIGSON, P. English File (Elementary). Oxford: Oxford University Press, 1996. PAIVA, A.F. Perspectivas (inter)culturais em séries didáticas de português língua estrangeira. 118f. Dissertação (Mestrado em Lingüística) – Universidade Federal de São Carlos, 2009. REDSTON, C.; CUNNINGHAM, G. Face2Face (Upper Intermediate). Cambridge: Cambridge University Press, 2006. ROZENFELD, C.C.F. Crenças sobre uma língua e cultura-alvo (alemã) em dimensão intercultural de ensino de língua estrangeira. 197f. Dissertação (Mestrado em Lingüística) – Universidade Federal de São Carlos, 2007. SCHINELO, L.M. Aspectos interculturais no ensino de espanhol em contato com o português em canções em livros didáticos. 168f. Dissertação (Mestrado em Lingüística) – Universidade Federal de São Carlos, 2009.
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OS ECOS DA BIODIVERSIDADE BRASILEIRA: A ARGUMENTAÇÃO NA PROPAGANDA DA NATURA EKOS
PAULA TATIANA DA SILVA Doutoranda em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Mestre em Estudos da Linguagem (UEL) e Licenciada em Letras. Contato: paulasilva_uel@yahoo.com.br
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OS ECOS DA BIODIVERSIDADE BRASILEIRA: A ARGUMENTAÇÃO NA PROPAGANDA DA NATURA EKOS1 Paula Tatiana da Silva RESUMO: Neste trabalho, com base na Semântica Argumentativa, analisamos os recursos semântico-argumentativos de um texto publicitário. Trata-se de um anúncio do Perfume do Brasil, da linha Natura Ekos, em que o locutor elabora os argumentos dos textos linguístico e imagético, valorizando a riqueza da biodiversidade do Brasil, além de destacar, sutilmente, o compromisso com a preservação ambiental e com as comunidades locais. Recursos linguísticos como adjetivação, recursos gráficos e operadores argumentativos destacam-se na análise da propaganda, bem como o texto não verbal, que faz referência a nosso país. PALAVRAS-CHAVE: recursos argumentativos; ecopropaganda; Natura Ekos. ECHOES OF THE BRAZILIAN BIODIVERSITY: THE ARGUMENTATION ON! NATURA EKOS ADVERTISEMENT ABSTRACT: In this paper, which is based on Argumentative Semantics, we analyzed the semantic-argumentative’s features of a publicity text. This is an announcement of Brazil's Perfume, Natura Ekos line, in which the speaker develops the language and imagery text arguments, enhancing the rich biodiversity of Brazil, and highlights, subtly, the commitment to environmental preservation and with local communities. Language resources such as adjectives, graphics and argumentative operators stand out in the analysis of the advertisement, as well as the non-verbal text, which refers to our country. KEYWORDS: argumentative resources; eco advertisement; Natura Ekos.
INTRODUÇÃO O discurso publicitário verde tem se tornado frequente nas últimas décadas, em decorrência das preocupações ambientais nos mais diversos setores da sociedade. Atualmente, por exemplo, um evento mundial que ganhou destaque na mídia foi o Rio+20 (Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável). A denominação Rio+20 refere-se aos vinte anos decorridos desde a !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
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!Artigo desenvolvido a partir da dissertação de mestrado da autora: “Discurso argumentativo: biodiversidade e preservação ambiental na propaganda da Natura Ekos”.!
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realização, na cidade do Rio de Janeiro, da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como Rio-92 ou Eco-92. As empresas em geral, diante do tema em voga e dos inúmeros problemas que assolam o meio ambiente, como o desmatamento indiscriminado, a emissão de gases poluentes na atmosfera, a poluição dos rios e a extinção de espécies vegetais e animais, perceberam a necessidade de posicionarem-se de forma comprometida perante a sociedade, a fim de amenizarem os danos que causam à natureza. Considerando o fato de que a preocupação da sociedade interfere de forma direta na aceitação dos produtos pelo consumidor, as empresas passaram a divulgar, de modo criativo, maior consciência e atitudes ecológicas em seus anúncios publicitários. A “criatividade é, sem dúvida alguma, um grande diferencial [...] criatividade para entender o modo de pensar do consumidor, antever tendências, detectar necessidades, desejos e expectativas do anunciante” (MAINARDES, 2003). Na propaganda selecionada para análise, a estratégia é divulgar um produto desenvolvido com as essências da biodiversidade brasileira. O apelo é a divulgação da “verdadeira essência do nosso país”, o Perfume do Brasil, além de “mais um produto inovador: a Água de Banho”, utilizando recursos argumentativos como a adjetivação, o recurso gráfico, o operador argumentativo, além da intertextualidade.
1. SEMÂNTICA ARGUMENTATIVA E ARGUMENTAÇÃO PUBLICITÁRIA A Semântica Argumentativa foi apresentada, em 1976, por Oswald Ducrot e Jean-Claude Anscombre, em um artigo intitulado “L’argumentation dans la langue” publicado na revista Langages. Os trabalhos desenvolvidos por Ducrot revelam expressiva importância histórica (GUIMARÃES, 1998). Seus estudos são de base estruturalista, procurando descrever os fatos da língua a partir da própria língua e não por meio de acontecimentos no mundo. Além de Saussure, Émile Benveniste, com a Teoria da Enunciação, também influenciou as pesquisas de Ducrot, em especial seus estudos sobre enunciação, enunciado e enunciadores, por exemplo. Segundo Oliveira (2004, p.123), a Semântica Argumentativa “preocupa-se com as relações entre locutor e alocutário em determinada situação discursiva, direcionando o sentido do texto por meio de uma grande variedade de procedimentos”. Os anúncios publicitários impressos, por exemplo, apresentam os mais diversos
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recursos linguísticos e imagéticos, em que o locutor direciona o seu discurso a um alocutário, colocando em evidência a marca de um produto e/ou a propagação de valores e ideias. Para que a mensagem veiculada atinja o objetivo desejado, levando um produto a sobressair-se em um universo de opções, o locutor apresenta não só inúmeros recursos argumentativos, que a Semântica Argumentativa considera direcionadores de enunciados, como também alguns valores que a sociedade prioriza. Nesse sentido, a Natura Ekos assume, em seu discurso, a valorização da biodiversidade brasileira e, consequentemente, dos produtos elaborados a partir dela.
2. DISCURSO PUBLICITÁRIO VERDE A postura adotada por algumas empresas, como a Natura, revela que seu conceito de marketing está baseado no que Kotler (2000, p.47) nomeia como marketing societal, e estabelece que a organização deve priorizar o bem-estar da sociedade como um todo, valorizando os interesses e os desejos do público-alvo, mostrando-se mais eficaz que os concorrentes. O autor acrescenta que o marketing societal exige considerações sociais e éticas nas práticas das empresas, devendo equilibrar os lucros, a satisfação e o desejo dos consumidores, além de atender ao interesse público. Dentro da linha de marketing societal, ganha destaque o marketing ambiental que
surge
como
uma
proposta
complementar
necessária
na
sociedade
contemporânea, a qual vem tentando corrigir os excessos praticados durante séculos pelos seres humanos contra as riquezas naturais do planeta Terra. Assim, “[...] as empresas, em geral, precisam adotar uma política ambiental que permita o maior controle de seus resíduos e ao mesmo tempo procure promover, ao menos em parte, a recuperação do meio ambiente já tão degradado” (OLIVEIRA, 2002, p.112). No Brasil, ao longo das últimas décadas, inúmeras empresas assumiram compromisso com a questão ambiental, procuram disseminar a importância do uso racional de água e de energia elétrica; divulgam a utilização de refis e embalagens recicláveis e recicladas; preocupam-se com os dejetos produzidos por suas indústrias; investem na modernização para zerarem os testes feitos em animais; visam ao desenvolvimento sustentável; além de inúmeras outras medidas que só vêm a contribuir para a preservação do ambiente natural e, também, para a boa imagem da empresa.
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O discurso ecológico assumido pelas empresas, nos anúncios publicitários nacionais, apresenta-se, às vezes, de maneira “sutil”, em decorrência das próprias características que perpassam esse gênero textual que deixou de ser objetivo há muito tempo. Sendo assim, a propagação de ideias ecológicas, em anúncios impressos, demonstra, também, o interesse das empresas em destacarem suas marcas dentre as muitas existentes no mercado, pois as maiores mudanças ocorridas na postura das empresas são decorrentes da exigência do mercado, que, devido à competitividade, estabelece que a responsabilidade da empresa vai além da qualidade do produto oferecido, e passa a exigir, também, a ética ambiental (OLIVEIRA, 2002, p. 112).
3. ANÁLISE DO CORPUS
(Superinteressante. Ago. 2003)
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OS ECOS DA BIODIVERSIDADE BRASILEIRA: A ARGUMENTAÇÃO NA PROPAGANDA DA NATURA EKOS1
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3.1 Transcrição da propaganda Assinatura do perfume: Perfume do Brasil de Natura Ekos. A verdadeira essência do nosso país. Título: Um país encontra a sua essência. Texto: 1.
O Perfume do Brasil é fruto do
2.
delicado equilíbrio do homem com
3.
a floresta. É elaborado a partir do
4.
breu branco, uma resina nobre, só
5.
encontrada nas nossas matas,
6.
que traz no seu aroma a pura
7.
expressão da natureza feminina.
8.
Revelar essa preciosidade é o que faz
9.
do Perfume do Brasil uma descoberta
10. única na perfumaria mundial. 11. Sinta a exuberância da nossa 12. biodiversidade, que, para ser 13. preservada, é aproveitada em harmonia 14. com a vida das comunidades locais. 15. E da sabedoria desses povos surge mais 16. um produto inovador: a Água de Banho. 17. Um mergulho na alma brasileira 18. que faz do ritual do banho 19. uma nova experiência 20. para os sentidos. 21. Converse com uma Consultora Natura 22. para saber mais sobre a linha Natura Ekos. 23. Elas estão usando este bóton. 24. Seja você também uma Consultora Natura. 25. Ligue 0800-115566 26. ou acesse www.natura.net Natura bem estar bem. Natura Ekos. Viva sua natureza.
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3.2
PAULA TATIANA DA SILVA
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Análise das imagens 3.2.1
Análise da Imagem 1
Na imagem 1, dentro da moldura do plano retangular da fotografia, há um trabalho artesanal de entrelaçamento de bambu (de cor verde), sobre o qual se encontra uma cesta, em forma de losango, feita de palha de muriti (de cor amarelopalha). Dentro da cesta, há um frasco de perfume, cujo formato permite que se adapte perfeitamente ao recipiente circular, onde foi colocado. As formas geométricas, retângulo, losango e círculo, em conjunto com o verde e os tons de amarelo, foram escolhidas com um propósito argumentativo claro: fornecer aos enunciatários elementos que os levem a associar o Perfume do Brasil à nação brasileira.
Assim, há o texto fonte bandeira do Brasil (o intertexto), cujo formato e cores estabelecem um diálogo com a imagem elaborada pelo locutor da propaganda. Esse é um caso de intertextualidade implícita, pois na propaganda não se menciona que aquela imagem utilizou a bandeira nacional como fonte, cabendo ao leitor, por meio de sua memória discursiva, perceber a semelhança.
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[...] a intertextualidade será implícita quando se introduz no texto intertexto alheio, sem qualquer menção da fonte, com o objetivo quer de seguir-lhe a orientação argumentativa, quer de colocá-lo em questão, para ridicularizá-lo ou argumentar em sentido contrário [...] o produtor do texto espera que o leitor/ouvinte seja capaz de reconhecer a presença do intertexto, pela ativação do texto-fonte em sua memória discursiva [...] (KOCH, 2004, p. 146).
Koch (2004) destaca que, se o interlocutor não fizer o reconhecimento do fenômeno da intertextualidade, resgatando o primeiro texto, a construção do sentido será prejudicada. A intertextualidade com a bandeira brasileira, nessa propaganda, é um recurso importante para que a persuasão alcance o objetivo pretendido, considerando que o nome do produto anunciado foi estrategicamente elaborado para evidenciar a cor local do país de onde vieram as essências desse perfume e onde ele foi fabricado.
3.2.2 Análise da Imagem 2
Na imagem 2, o “Perfume do Brasil” e a “Água de Banho” são apresentados em um cenário simples, que se torna sofisticado com a presença dos produtos, como se a Natura tivesse se inspirado na natureza para criá-los. Assim, o locutor fornece elementos que combinam entre si e formam a linha Natura Ekos: produtos extraídos do contexto das populações tradicionais, e transformados por meio da tecnologia desenvolvida pela empresa Natura. É necessário destacar que as formas geométricas similares às da bandeira do Brasil contrastam com a assimetria dos vidros dos perfumes, cujo designer estabelece diferenciação desse produto sobre os demais existentes no mercado. Elabora-se,
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PAULA TATIANA DA SILVA
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assim, um argumento a favor da particularização da linha Ekos e, consequentemente, da empresa Natura, que pretende ser reconhecida como a “família Natura”, possuidora de uma essência própria, que lhe é única. 3.3
Análise linguística
Nesse anúncio publicitário, as características do texto argumentativo combinam-se a marcas linguísticas que o aproximam de uma prosa poética, utilizando vários recursos para alcançar a persuasão: estruturação em versos; linguagem mais subjetiva;
rimas
internas
(delicado/
elaborado;
perfumaria/harmonia/sabedoria;
preciosidade/biodiversidade); figura de linguagem sinestesia ( “que traz no seu aroma”/ “sinta a exuberência”/ “uma experiência nova para os sentidos”). Convence-se pela reiteração da informação. A quantidade substitui o que seria um teor informativo capaz de convencer. A baixa informação referencial é compensada por uma estetização cada vez mais sofisticada. O uso da função poética da linguagem é uma das marcas da publicidade atual. [...] Dessa forma, as propagandas não são feitas unicamente para um potencial consumidor; elas se destinam ao receptor de propagandas, que as consome como resultado de uma ação muito próxima do trabalho artístico. (SILVA, 2005, p. 236).
A seguir, examinaremos alguns casos de adjetivação posposta e anteposta, além dos recursos gráficos e operadores argumentativos.
3.3.1
Adjetivação
A adjetivação anteposta, segundo Neves (2000), ocupa posição mais marcada, cria efeitos de sentido, principalmente relacionados à subjetividade, sendo muito utilizada na linguagem literária. Em geral, a anteposição do adjetivo cria ou reforça o caráter avaliativo – mais subjetivo – da qualificação. Esse fato pode ser verificado não apenas nos casos da ordem pertinente, como também nos casos da ordem livre. Isso significa que, mesmo nos casos em que, com as duas colocações, se chega a uma mesma acepção básica, na verdade não resultam construções de valor absolutamente idêntico, do ponto de vista comunicativo. (NEVES, 2000, p. 203).
Nas seguintes ocorrências: verdadeira essência (assinatura do perfume); delicado equilíbrio (linha 2); pura expressão (linha 6); nova experiência (linha 19), a
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anteposição dos adjetivos é uma marca subjetiva do locutor, que qualifica o substantivo, deixando sua avaliação evidente. Ao deixar a linguagem mais subjetiva, por meio dos adjetivos antepostos, o locutor contribui para a argumentatividade da propaganda, pois permite que, em conjunto com a estrutura poética do texto, o anúncio seja assemelhado a uma poesia. Possibilita, portanto, o alcance de certa “leveza” desta propaganda, em que, novamente, estão presentes os elementos da simplicidade e da sofisticação, observados na imagem 2 . A adjetivação mais corrente, ou seja, a que se expressa imediatamente após o substantivo, está na posição posposta (NEVES, 2000, p. 201). Por ter características mais objetivas, essa adjetivação é conhecida como não afetiva. Nessa propaganda, identificamos sete casos de posposição do adjetivo: resina nobre (linha 4); natureza feminina (linha 7); descoberta única (linha 10); perfumaria mundial (linha 10); comunidades locais (linha 14); produto inovador (linha 16); alma brasileira (linha 17). Tais adjetivos, quando qualificam substantivos relacionados ao produto anunciado (resina nobre, perfumaria mundial, descoberta única e produto inovador), estabelecem a autenticidade do perfume, pois o locutor classifica-o como sendo o único, portanto, de qualidade superior a qualquer outro, pois é inovador, feito com uma resina nobre e, por isso, reconhecido mundialmente. Ocorre a exaltação das características do produto, visando não só à persuasão do público-alvo para levá-lo à compra, mas também à divulgação do anúncio aos leitores da revista em geral. Nas linhas 6 e 7, encontramos “[o breu branco, uma resina nobre,] que traz no seu aroma a pura/ expressão da natureza feminina”, o trecho destacado foi cuidadosamente selecionado pelo locutor visando repercutir, de maneira mais poética, no público a que se destina o produto anunciado: o feminino. Assim, segundo o locutor, o Perfume do Brasil foi tão bem elaborado pelos laboratórios da Natura que ele passa até a ser sinônimo da “pura expressão da natureza feminina.”
3.3.2
Recursos gráficos
Os textos foram escritos em letra cursiva, popularmente, é a escrita em “letra de mão”. Antes do advento da imprensa, desenvolvida pelo alemão Johannes Gutenberg no século XV, o conhecimento da escrita e da leitura se restringia aos religiosos católicos e a outras pessoas, em número pouco expressivo. Como não era possível produzir livros em grande escala, havia um trabalho minucioso com as letras, portanto, um processo demorado, que exigia atenção, tempo e paciência.
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PAULA TATIANA DA SILVA
Ao
utilizar
essa
tipologia
de
escrita,
o
locutor
pretende
fazer
a
correspondência dos cuidados exigidos na elaboração de textos escritos em letra cursiva, com o cuidado com que o Perfume do Brasil e a Água de Banho foram desenvolvidos: com as minúcias de um trabalho artesanal, onde estão presentes a emoção, a subjetividade. A subjetividade e a emoção evidenciados nesse recurso gráfico em conjunto com as imagens e os adjetivos anteriormente analisados fornecem os elementos necessários para enriquecer a propaganda, mostrando a harmonia alcançada entre textos verbais, não verbais e a configuração da arte gráfica do anúncio.
3.3.3
Operador argumentativo
Indicando restrição, o operador só (linha 4) aponta o argumento para uma direção determinada, promovendo a exclusividade de algo. No caso, o que se torna exclusivo é o nosso país, pois o breu branco é uma resina nobre só encontrada nas nossas matas. Está implícita a referência à biodiversidade brasileira, além de exaltá-la, já que apenas nas florestas do Brasil é possível encontrar a essência que deu origem ao produto anunciado. breu branco
SÓ
encontrado em nosso país
(apenas/indica restrição) resina nobre
ARGUMENTO A
ARGUMENTO B
A exclusividade do breu branco, nas matas brasileiras, aponta para a unicidade do produto anunciado, tornando-se o único disponível no mercado, “uma descoberta única na perfumaria mundial”. Apesar de os operadores serem um importante recurso argumentativo, o único utilizado na propaganda foi o só. Isso porque, como já destacamos anteriormente, esse anúncio utiliza uma linguagem particular, mais próxima da linguagem poética, procurando
distanciar-se
de
uma
linguagem
puramente
argumentativa.
Essa
característica não empobrece o texto e nem o torna menos persuasivo, pelo contrário, ressalta o caráter sutilmente argumentativo assumido pelo locutor.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS Para concluir esta análise, é necessário destacar o duplo sentido, a polissemia
da palavra “essência” presente na assinatura do perfume (página 1) “A verdadeira essência do nosso país.”, e no título da propaganda (página 2) “Um país encontra a sua essência.” Essa palavra pode tanto ser compreendida como o óleo fino e aromático que se extrai de plantas, flores ou raízes para dar origem a alguma fragrância, como também a característica central e mais importante de algo, no caso, do Brasil. Essência no sentido de fragrância (outras empresas brasileiras podem até já ter elaborado outras essências, mas essa será reconhecida como a marca de nosso país) e, também, aquilo que caracteriza o Brasil, no mais próprio de sua existência. Ressaltamos que, nessa propaganda, não há a preocupação de colocar em evidência o comprometimento da empresa com o meio ambiente, o que se destaca é a riqueza da biodiversidade brasileira, tornando possível a divulgação de uma marca da linha Natura Ekos, capaz até mesmo de ser caracterizada como “A verdadeira essência do Brasil”.
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS GUIMARÃES, Eduardo. História, sujeito, enunciação. lingüísticos., Campinas, (35):109-116, jul./dez.1998.
Caderno
de
estudos
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versos aMBĂ?GUos eM SOLOMBRA, De CeCĂ?lia Meireles
Delvanir lopes Doutor em letras pela Universidade estadual paulista (Unesp) e Docente de literatura Brasileira / literatura infanto-Juvenil na Faculdade Centro paulista (FaCep). Contato: delvanirlopes@professor.sp.gov.br
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VERSOS AMBÍGUOS EM SOLOMBRA, DE CECÍLIA MEIRELES Delvanir Lopes
RESUMO: Solombra (1963), última obra madura publicada em vida por Cecília Meireles (1901-1964), deixa transparecer desde o título a possibilidade da ambiguidade. O termo arcaico que, segundo Cecília, se refere à sombra, sugere, contudo, a possibilidade de outras leituras: uma delas é perceber a luminosidade nos versos abstratos da obra, o que destoa de grande parte dos críticos. A partir daí, nos 28 poemas da obra, as ambivalências se multiplicam e evoluem para os paradoxos. O intuito principal deste artigo, portanto, é o de mostrar que a ambiguidade é presente e pertinente em Solombra, ampliando-se em paradoxos e em outras discussões que a obra contempla, entre elas: a morte, a angústia e a dor da existência. O auxílio à nossa leitura se dará com algumas ideias vindas da filosofia existencialista, sobretudo na figura do pensador Martin Heidegger (1889-1972) que desenvolve a discussão e nos auxilia na compreensão da possibilidade de ambiguidade em Solombra. PALAVRAS-CHAVE: ambiguidade, Solombra, existencialismo, poesia AMBIGUOUS VERSES IN SOLOMBRA OF CECÍLIA MEIRELES ABSTRACT: Solombra (1963), last mature work published by Cecilia Meireles (19011964) during her lifetime, makes clear from the title the possibility of ambiguity. The term archaic which, according to Cecilia, refers to the shadow, suggests, however, the possibility of other readings: one is realize the light lines in the abstract book, which is not possible to part of the critics. From there, in the 28 poems of the work, the ambivalences multiply and evolve to the paradoxes. The purpose of this paper therefore is to show that ambiguity is present and it is relevant in Solombra, expanding into paradoxes and in other discussions that the work includes, among them: death, anguish and pain of existence. The aid to our essay will be given by some ideas from the existential philosophy, especially in the figure of the philosopher Martin Heidegger (1889-1972), who develops the discussion and helps us to comprehend the possibility of ambiguity in Solombra. KEYWORDS: ambiguity, Solombra, existentialism, poetry
1. INTRODUÇÃO Ó luz da noite, descobrindo a cor submersa pelos caminhos onde o espaço é humano e obscuro, e a vida um sonho de futuros nascimentos. (MEIRELES, 2001, p. 1273)
Solombra, de 1963, foi a última obra madura publicada por Cecília Meireles em vida. O livro é considerado por muitos como a mais abstrata e de difícil compreensão, mas mantém nos versos a musicalidade e a beleza dos versos cecilianos que atraem
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e fascinam o leitor. Solombra é, podemos dizer, misteriosa e clara, sombra e luz, ambígua o tempo todo. Assim, enquanto é ela própria instrumento de revelação e parece que nos deixa diante do conhecido, ao mesmo tempo se mostra enigmática e nos obscurece o pensamento. Cecília Meireles, em entrevista a Pedro Bloch, afirmou ter encontrado o termo solombra ao acaso e que se tratava de um antigo nome para designar sombra. Contudo, o termo escolhido por ela levou, nos poucos estudos que há sobre a obra, a dissonâncias, pois carrega em si a ambiguidade e amplia a discussão sobre o jogo paradoxal de Solombra: sombra e claridade. O termo, antes nas sombras, ganha nova vida e novas conotações, é iluminado novamente e ilumina. Em citação que, infelizmente, só encontramos em artigo de Chrisani Mendes, que fez apurado estudo (1968) a respeito da metáfora em Solombra, Carlos Drummond já manifestava a ambiguidade que a palavra-título carregava: SOLOMBRA – Sombra. Sombra só? Sol e Sombra? Sol em sombra? Em torno dela multiplicam-se as conotações que se gravam em nós, em som, forma, côr e sugestão e também em signos que temos de decifrar continuamente pois são símbolos de interrogações, especulações transcendentes. (ANDRADE, apud MENDES, 1968, não paginado)
Avistar os limites da sombra e da luz que o jogo de palavras cecilianas propõe leva à análise do interior humano que também é ambíguo e desconhecido e permeado por tênues linhas que separam a luz das sombras. Entrar em si é como arriscar-se no ignorado em que lampejos de luz surgem repentinamente e logo em seguida desaparecem engolidos pela escuridão. Isso remete às situações-limite que cercam o ser humano o tempo todo e que, de certo modo, movimentam o estar-no-mundo. O limite da sombra é a luz e o contrário também é verdadeiro, o que pode ser ampliado na afirmação de que esses dois momentos estão intimamente unidos, sempre incompletos e coexistindo latentes um dentro do outro. Solombra admite essa compreensão paradoxal, comporta a ambiguidade: “O mistério todo está nisto. Este momento da emoção em que há claridade, mas tudo envolto na penugem da noite – a vida se recolhendo, se revisando.” (AYALA, 1964, não paginado) Depois destas considerações percebemos que a partir do título da obra podemos conjecturar que não se tratará de um livro voltado apenas à melancolia, à solidão, à sombra e à morte. Ainda que Cecília Meireles se volte para estes temas, não trabalha com eles de forma finalista e enfadonha, mas utiliza-se de tais recursos
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para demonstrar a possibilidade do devir, da transformação, do processo inevitável a que a existência caminha minuto a minuto. Se o título Solombra, segundo nossa interpretação, antevê que a temática da obra estará além do significado lexical da palavra, isso se verifica na leitura dos tantos paradoxos e ambiguidades que se leem nos poemas. Embora seja entendida como sombra, tal palavra-título viveu de novo e o re-nascimento sempre indica mudança. Nesse âmbito, ainda que poeticamente, podemos citar Pedro Bloch: “Solombra, a última obra de Cecília, quer dizer só sombra. Cecília, para nós, é só luz.” (BLOCH, 1989, p. 36) Demonstrar de que forma se dá o movimento, nos poemas, das sombras para a luz é um dos intuitos desse artigo. O trabalho da poetisa é com a palavra que é o símbolo que permite a comunicação entre os mundos real e transcendente – ou o seu mundo e o mundo transcendente. É a própria Cecília quem, em entrevista a Walmir Ayala, afirma: “Parece que os poemas são apenas o resultado de um diálogo do espírito com o mundo. Do meu espírito ou do Espírito. [...] De permeio está, naturalmente a palavra, por ser a forma de expressão literária.” (AYALA, 1958, não paginado) A autora percebe a palavra como o elemento que permite a comunicação entre os mundos e o poeta como aquele que trava uma relação diferenciada com ela. No entanto esse diálogo não é claro, mas sempre insinuado verbalmente. Daí o uso extremado de metáforas que levam à apreensão da essência por meio da associação de ideias e de imagens e que não pretendem ser evidentes, mas lançar o leitor a realizar uma série de associações livres. O poeta torna-se o “entre”, portanto. Na perspectiva simbolista, tão evidente em Cecília Meireles, isso lhe faculta a capacidade de entender o enigma das “correspondências” e tornar-se, como sugeria Baudelaire, um decifrador: A linguagem cifrada não é direta, mas não está separada da realidade empírica, por isso num poema tudo pode ser visto como linguagem cifrada, tudo é linguagem da transcendência, mas para que se torne cifra depende de uma existência que a interprete, atualizando-a em sua liberdade, que é o caso do poeta. (LOPES, 2004, p. 129)
Se o poeta, enquanto existente, é o que decifra a linguagem transcendente e a torna cifra, nós podemos participar dessa relação entre o poeta e o Tu buscando o desvelamento dessas cifras. Nesse sentido a poesia de Cecília torna-se ambígua: é enigmática para clarificar, é cifra que espera revelação. A clarificação se dá aos poucos, digerindo as imagens que a poesia forma não numa interpretação imediata de
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suas palavras e que, sabemos, não será jamais completa. Isso posto, Solombra passa a ser um grande símbolo que o poeta-vate usa para indicar o caminho à ideia, ao pensamento. E como sabemos o símbolo sugere, mas não descreve. Assim, ainda que solombra faça referência direta à sombra, ela quer dizer muito mais. A pista ceciliana colocada no título do livro – nome que indica sombra – pode dar indicações ao leitor, mas não revela o enigma. Basta atentarmos para a epígrafe da obra de Cecília Meireles em que o eu-lírico está entre vozes vindas do Céu e a da Terra: Levantei os olhos pra ver quem falara. Mas apenas ouvi as vozes combaterem. E vi que era no Céu e na Terra. E disseram-me: Solombra. (MEIRELES, 2001, p. 1262)
Vozes que combatem no céu e na terra e são ouvidas pelo poeta que, entre elas, apenas levanta os olhos para tentar decifrar quem fala. Em Solombra não há, portanto, uma única voz que fala e todas dizem juntas “solombra”. Neste sentido poderíamos considerar como, ao menos aceitável, a hipótese de que a obra ceciliana não é só Terra, só penumbra, mas carrega outro viés, do Céu, da luz, uma vez que o céu é considerado na simbologia como princípio masculino e relacionado à claridade enquanto a terra é o princípio feminino, passivo e escuro. O estudo analítico que faremos de alguns versos de Solombra procurará demonstrar neles, além da presença da ambiguidade, a evolução desta discussão para o paradoxo. Para isso nos valeremos em alguns momentos da filosofia da existência na figura de Martin Heidegger (1889-1976), filósofo alemão. Embora não haja indícios de que Cecília possa ter sido leitora de Heidegger, de certo modo ambos trabalham com temas em comum o que os aproxima: questões relacionadas à existência humana, ao homem preso à evanescência do tempo, ao ser angustiado diante da morte e às interrogações sobre os porquês do existir. Em Solombra, obra escolhida para análise de alguns versos, também encontramos tais temas.
2. SOL E SOMBRA Solombra deixa transparecer que se volta para os dois lados de uma mesma moeda: ora reveste-se de uma aura de negrume, de escuridão, de ausência; em outros momentos, ainda que mais timidamente, mas não menos ativo, revela um lado mais claro, luminoso e desvelador.
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Contudo, se a aura de sombra prevalece em Solombra e em raros momentos a luminosidade dá algum lampejo, é natural que os estudiosos se detenham, primeiramente, nessa caracterização e que busquem em Solombra traços que traduzam a obscuridade, a negatividade, afinal é o que a palavra-título indica, reforçados pela declaração da própria autora. Isso se dá também pela recorrência de motivos voltados à “escuridão” na poética ceciliana que são: a brevidade da existência, o sofrimento das condições de vida do plano terrestre, a impossibilidade de comunicação com as pessoas, o sentimento de incapacidade de mudar as circunstâncias existenciais, a necessidade de aceitação dessas condições, por serem etapas a percorrer no processo evolutivo espiritual. (MELLO, 2002, p. 191)
Mesmo a partir desses conceitos-chave e, talvez, a evidência de que se tratará de obra de sombra dividem-se as interpretações sobre Solombra. Na maioria delas a obra é ligada somente ao sentimento de nadificação da existência ou a um lamento repetitivo sobre o que se perdeu e ao sofrimento que isso gera no eu-lírico: Um poeta português disse que [Cecília] escrevia à beira mágoa; a poesia de Solombra vem de dentro dela como enunciação feita do ponto de vista da distância e da ausência do que se perdeu. É a experiência da ruína e do sofrimento da perda que a caracteriza. (HANSEN, 2005, p. 7)
Porém há também algumas percepções dissonantes, como a de Hiudéa Boberg que percebe outro viés na obra ceciliana. Boberg encontra nos versos da obra associações que exploram a luminosidade e todas as suas relações o que cria, segundo ela, “contrastes líricos”. E acrescenta que ainda que o termo solombra “colabore para caracterizar a atmosfera obscura em que o ser humano se debate – o mundo sensível e suas limitações – percebe-se que também a luminosidade, ou a busca do mundo ideal, acentua-se através da vasta gama de símbolos que percorre o livro.” (BOBERG, 1989, p. 213) A respeito do símbolo proposto por Cecília a ambiguidade permanece. Solombra é só sombra ou é sol, como já questionou Drummond? Ou são as duas instâncias paradoxalmente convivendo? Como vimos, na epígrafe da obra as ideias de luz e sombra aparecem unidas em Solombra, assinalando para uma leitura que não se prenda somente à escuridão, mas que contemple as duas instâncias. Semelhante a isso é o que lemos em alguns versos da obra:
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Ó luz da noite, descobrindo a cor submersa pelos caminhos onde o espaço é humano e obscuro, e a vida um sonho de futuros nascimentos. (MEIRELES, 2001, p. 1273) Sobre um passo de luz, outro passo de sombra. (MEIRELELES, 2001, p. 1277)
As instâncias sol e sombra estão sempre no limiar, no umbral e na obra são inseparáveis já que uma só tem significação a partir da existência da outra. O limite entre ambas é que indica a possibilidade de transição e de transcendência, ou seja, o que aparentemente separa é o que pode unir. Perceberemos que a fronteira tão delicada de luz e escuridão é um dado positivo em Solombra e que ela acaba levando à discussões mais profundas, entre elas, a discussão a respeito do paradoxo.
3. AMBIGUIDADES E PARADOXOS EM SOLOMBRA A ambiguidade, propriedade presente nas unidades linguísticas (morfemas, palavras, locuções, frases), é a admissão de mais de uma leitura, embora o contexto linguístico acabe indicando frequentemente qual a interpretação correta a ser dada. Contudo, na linguagem poética nem sempre o processo interpretativo mostra-se tão simples. Em Solombra o ponto de partida dos comentários é a ambiguidade constante na obra entre a luminosidade e a escuridão. Esta ideia principal permanece e ampliase na discussão do paradoxo. Conforme afirmação de Margarida Maia Gouveia a escrita ceciliana é a de um “discurso do paradoxo” em que realidades heterogêneas coexistem, transfigurando a visão de mundo estabelecida: “a uma temática motivada pela vida como exílio e sofrimento, pela dispersão e cisão do eu, é oposta a consideração da poesia como diálogo possível e como presença que configura poeticamente o mistério.” (GOUVEIA, 2002, p. 143) E esta escrita paradoxal é evidente em Solombra o que faz com que a leitura dos versos da obra ofereça várias interpretações e que os sentidos das palavras mostrem diferentes pontos de vista. O paradoxo apresenta uma aparente falta de nexo, uma contradição entre duas ideias quando referentes à opinião comum. No sentido existencial, segundo Kierkegaard (1813-1855), o paradoxo é um argumento que por ser inusitado reflete o absurdo em que está imersa a existência humana. O paradoxo é interessante porque propõe algo que aparentemente não pode ser tal como se diz que é. Por exemplo: como pode sol e sombra estar convivendo numa mesma palavra? Vejamos alguns
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outros momentos em que os paradoxos estão presentes em Solombra e o modo como eles refletem nas demais concepções da obra. O primeiro poema assim se inicia: Vens sobre noites sempre. E onde vives? Que flama pousa enigmas do olhar como, entre céus antigos, um outro Sol descendo horizontes marinhos? (MEIRELES, 2001, p. 1263)
Nessa estrofe percebemos que o eu-lírico está em diálogo com o Tu, diálogo esse que permeia toda a obra. Questiona-o duas vezes. Na primeira procura situá-lo para que não precise esperar sempre pela sua manifestação na noite, mas também possa saber onde encontrá-lo caso queira. Este pensamento se repete em outro poema do livro, onde lemos: “Dizei-me onde é que estais, em que frágil crepúsculo!” (MEIRELES, 2001, p. 1279) Já a segunda pergunta é mais abstrata e bastante simbólica. Nela o Tu é comparado a “outro Sol”. O paradoxo dessa questão está em o sujeito-lírico afirmar que o Tu traz a flama que pousa enigmas do olhar. Ou seja, aparentemente contraditório, o Tu que deveria clarear utiliza-se da luz para trazer ainda mais enigmas ao eu-lírico quando o mais óbvio seria que viesse para terminar com as dúvidas, iluminar a sua existência. Desse modo o que é aparentemente evidente acaba por tornar-se ainda mais obscuro. Tal ambiguidade é qualidade do Tu que surge em momentos de extrema escuridão e a luz que porta aumenta as dúvidas do sujeito-lírico. Em outros versos de Solombra o mesmo paradoxo aparece e por isso o consideramos uma figura-chave na obra: ele revela e esconde num movimento contínuo. Tais versos parecem ofuscar a verdade das coisas e contrariar o pensamento humano lançando desafios à inteligência. O caminho que leva à descoberta da verdade é paradoxal porque parece ser ilógico. O Sol descendo horizontes marinhos remete-nos ao crepúsculo, que é a luminosidade que se produz no céu entre a noite e o nascer do sol ou entre o pôr-dosol e a noite devido à dispersão da luz solar na atmosfera. O Ser está neste limiar da luz do dia e da escuridão da noite. É um misto de luz e sombra, é o lusco-fusco. É onde a mudança acontece, seja para adentrar na noite ou para sair dela: “No entardecer, o dia se põe num poente que não é nenhum fim, mas somente a inclinação para preparar aquele declínio pelo qual o estrangeiro adentra o começo de sua travessia.” (HEIDEGGER, 2003, p. 419) Os paradoxos vão se multiplicando justamente porque as palavras-símbolo escolhidas comportam a ambiguidade: o Tu que vem sobre noites – e noite é símbolo
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de ignorância e insegurança, mas também o momento em que a revelações podem acontecer; a flama que pousa enigmas – onde os sentidos dos símbolos são invertidos; o sol que desce horizontes marinhos – e que nesse movimento provoca não a morte, mas o renascimento dos dias. Analisemos outros versos de Solombra em que os paradoxos também são evidentes: Há mil rostos na terra; e agora não consigo recordar um sequer. Onde estás? Inventei-te? Só vejo o que não vejo e que não sei se existe. [...] Qualquer palavra que te diga é sem sentido. Eu estou sonhando, eu nada escuto, eu nada alcanço. Quem me vê não me vê, que estou fora do mundo. (MEIRELES, 2001, p.1264 )
O poema como um todo se refere ao eu-lírico que, aparentemente, está desanimado com o diálogo com o Tu porque este parece não se efetivar. O Tu que vinha sobre noites no primeiro poema de Solombra agora tem a existência colocada em dúvida quando o sujeito-lírico diz: Onde estás? Inventei-te? Só vejo o que não vejo e que não sei se existe. Assim, ao mesmo tempo em que desconfia da existência do Tu não quer acreditar que ele seja invenção de sua mente, uma vez que ele “vem”, ainda que na escuridão. Os mil rostos na terra não dão indicação de como seja o Tu ou, paradoxalmente, podem ser caminhos para a relação com ele. Para o eu-lírico, porém, é como se eles não existissem, não se recorda de nenhum deles. O que importa é a relação dele com o Tu e nada mais. O modo de manifestação do Tu não é comum e a relação que trava com o sujeito-lírico é de confiança, afinal o que não vê pode experimentar e isso lhe basta; entrega-se a ele sem o ver – só vejo o que não vejo. Tais palavras indicam a relação mística que há entre o Tu e o eu-lírico, uma relação de confiança incondicional. Não é preciso ver parar crer, mas demonstrar a procura pela possibilidade de comunicação com o espiritual. O Tu está presente em tudo, pessoas e coisas. Contudo, ele só se mostra para quem estiver livre para vê-lo, o que só é possível quando o indivíduo se desprende da relação utilizável com as coisas. Heidegger chamará o contrário disto de “vida inautêntica”, que é o fato de nos deixarmos absorver em nossa relação com os objetos e por conta disso não enxergarmos mais nada. No segundo terceto do mesmo poema o eu-lírico continua se dirigindo ao Tu, mas amplia esse diálogo ao outro que está no mundo como ele dizendo: Quem me vê
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não me vê, que estou fora do mundo. Assim, o mesmo paradoxo que se apresentava diante do Tu, quando o eu-lírico dizia “ver o que não via” mostra um paralelo nesse terceto em que o outro que “vê o eu-lírico não o vê”, já que está fora do mundo. Os motivos são bastante parecidos. Nesse caso estamos pensando no mundo real em que, caso viva-se na inautenticidade, Qualquer palavra que [se] diga é sem sentido ou é como um sonho que retira o eu-lírico da realidade. O ser humano não existe da mesma forma que as demais realidades, mas ele é o “lugar” em que o mundo pode se revelar com uma infinidade de ângulos e vieses interpretativos. Por isso está no mundo, mas não pertence a ele, como vimos. Em Solombra o eu-lírico apresenta-se como o ser-no-mundo, mas não do-mundo, o que significa dizer que percorre seu caminho existencial na trama da existência fazendo uso das coisas para atingir seu projeto maior que é o vir-a-ser. Chrisani Mendes, que estudou a obra poucos anos depois da sua edição, salientou que “Solombra é o forado-mundo de Cecília Meireles” (MENDES, 1968, não paginado), ou seja, as coisas do mundo não são fins, mas meios para o eu-lírico vir-a-ser autêntico. Estar no mundo, mas não pertencer a ele – estou fora do mundo -, é o que nos diz o eu-lírico de Solombra. Assim, ao ver o eu-lírico o que se vê é a sua aparência e não o que se passa em seus pensamentos ou quais são seus anseios. O maior deles é o desejo de relacionar-se com o Tu. A atitude de ser fora do mundo torna o eu-lírico preparado para o diálogo: percebe que deve utilizar-se das coisas caso estas sirvam para eleválo até o Tu, transcender. Desse modo é que ver o sujeito-lírico é o mesmo que não vêlo por completo. Podemos, por fim, entender também algumas expressões de Solombra como oximoros, uma antiga figura poética em que se combinam palavras ou expressões que além de contrastantes são contraditórias, assemelhando-se ao paradoxo. Tais expressões que parecem excluírem-se mutuamente, no contexto reforçam a expressão. Citemos alguns dos oximoros encontrados em Solombra: “Ó luz da noite... (MEIRELES, 2001, p. 1273) e “é que morremos – e num lúcido segredo” (MEIRELES, 2001, p, 1281). Neles Cecília Meireles revela-se extremamente engenhosa com as palavras, aliando o que poderíamos achar comumente contraditório. Na verdade, em poucas palavras a escritora encerra um profundo sentido ao seu livro Solombra, alimentando as indagações e as interpretações acerca de sua obra. Ou seja, esconde e clareia ao mesmo tempo, como o “claro enigma” drummondiano.
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Reforçando o que dissemos, Margarida Maia Gouveia afirma que é frequente encontrar em Cecilia “uma estrutura antitética, em certos casos da natureza do oximoro, que se sente procurar expressar o que de exprimível é possível numa relação com o transcendente”. [...]. Na poesia de Cecília, tudo tende a resolver-se no seu contrário. (GOUVEIA, 2002, p. 143) No oximoro, que é utilizado na poesia mística como um jogo de conceitos que favorece a contemplação, os contrários coincidem. Assim é que em Solombra os oximoros também fazem sentido e reforçam ainda mais as figuras do paradoxo e da ambiguidade, presentes em vários momentos da obra.
4. CONCLUSÕES Pelas considerações feitas podemos ponderar como provável a hipótese de que a obra ceciliana não é só penumbra, mas carrega outro viés, o da luz. Isso posto só reforça nossa proposição sobre o caráter polissêmico do símbolo proposto por Cecília Meireles: Solombra. Heidegger, pensador alemão, em A caminho da linguagem, também reforça o traço da poesia ter múltiplos sentidos: “Não conseguiremos escutar nada sobre a saga do dizer poético enquanto formos ao seu encontro guiados pela busca de um sentido unívoco.” (HEIDEGGER, 2003, p. 63) Esta consideração do pensador alemão reflete, por sua vez, a proposta dos simbolistas: a palavra, enquanto símbolo, permite múltiplas associações. Cecília Meireles alimentou a ambivalência e trouxe enigmas ao seu leitor o que torna a sua obra sempre por descobrir, sempre pronta para novas abordagens, sem se esgotar e abandonando a obviedade. É a tal “poesia filosófica” amparada na vida que faz nascer em Cecília esse simbolismo tão sui generis. (MERQUIOR, 1960, p. 7) São manifestações que não podem ficar encerradas em palavras porque elas sempre dizem algo mais. Em Cecília Meireles, de modo especial Solombra, o que entendemos como limitado ganha dimensão de ilimitado, o aparentemente contraditório e ilógico mostra seu lado de verdade e coerência. Acreditamos que os jogos paradoxais conferem movimento aos poemas, instigam ainda mais o leitor que já havia ficado intrigado com o título perfeitamente eleito pela poetisa. As estruturas antitéticas por ela propostas conseguem expressar de modo condensado o que não é de fácil expressão: a relação com o transcendente e com o mundo. Neste sentido é que a partir dos paradoxos podemos encontrar na leitura de Cecília Meireles um ponto de vista que não se prende somente à dor, solidão e a
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angústia, justamente pelo fato de que tais elementos, quando aparecem, são trampolins para momentos de esperança, renovação e transcendência.
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A DIÁSPORA DE AIMÉE G. BOLAÑOS EM LAS PALABRAS VIAJERAS
NAtÁLIA MOREIRA VIANA Mestranda em História da Literatura pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Especialista em Educação de Jovens e Adultos na diversidade (FURG) e Licenciada em Letras – Língua Portuguesa, Língua Espanhola e resContato: natalia.viana.84@gmail.com
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A DIÁSPORA DE AIMÉE G. BOLAÑOS EM LAS PALABRAS VIAJERAS Natália Moreira Viana
RESUMO: Sendo a diáspora um tema em debate dentro da cultura contemporânea, pretende-se, neste artigo, dialogar sobre este conceito com base na compreensão da escritora cubana Aimée G. Bolaños e de seus estudos em alguns teóricos como Edward Said e Stuart Hall, entre outros. Pretende-se ainda, a exemplo do livro de poesias Las palabras viajeras (2010), da mesma escritora, analisar algumas de suas poesias a fim de demonstrar como o indivíduo escritor, que vive o processo de migração, independente de ser forçado ou não, acaba deixando por refletir em sua escrita os deslocamentos vividos, expressando suas dores, alegrias e descobertas. PALAVRAS-CHAVE: poesia; diáspora; entre-lugar
AIMÉE G. BOLAÑOS’ DIASPORA IN LAS PALABRAS VIAJERAS ABSTRACT: As the diaspora is a topic of debate within the contemporary culture, this article aims to discuss this concept based on the understanding of the Cuban writer Aimee G. Bolaños and her studies on some theorists such as Edward Said and Stuart Hall, among others. In addition, this study also aims to analyze, following the example of the poetry book entitled Las palabras viajeras (2010), by the same writer (Aimee G. Bolaños), some of her poems to show how the individual writer, who lives the migration process, regardless of whether forced or not, ends up not reflecting the displacements experienced and not expressing the pain, joys and discoveries in the writing. KEYWORDS: Poetry; diaspora; in-between place
Aimée G. Bolaños, cubana que reside no Brasil há aproximadamente quinze anos, é poeta, leitora e escritora de ficção. Atualmente, é professora de Literatura Hispano-Americana no curso de Graduação em Letras e professora na disciplina de Tópicos Avançados de História da Literatura pertencente ao curso de Pós-Graduação em Letras, ambos da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Dentre algumas Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!149!
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publicações da escritora, em relação ao conceito de diáspora, está o texto para o Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos (2010). Aimée foi docente na Universidad Central de Las Villas, em Cuba, e fez seu doutorado em Rostock Universität, Alemanha, sem contar os momentos em que foi professora visitante fora de seu país. A partir disto, entende-se que devido aos deslocamentos entre diferentes culturas, tais mobilidades acabam por refletir na escrita da poeta. Conforme afirma a própria escritora: “Soy yo, pero no yo misma, tal vez y además, las Otras que me habitan en el viaje inacabado de mi diáspora” (BOLAÑOS, 2010a, contracapa). Por esta afirmação que se buscará em alguns poemas do livro Las palabras viajeras (2010) traços que demonstrem a marca diaspórica característica desta escritora. Para Baumgarten, O problema da diáspora tem marcado profunda e historicamente a vida de autores cubanos, anteriores e posteriores à Revolução comandada por Fidel Castro, daí ser o mesmo uma recorrência temática em suas obras. (BAUMGARTEN, 2006, p. 80)
A partir da afirmação do professor, percebe-se que o tema diáspora é típico dos indivíduos escritores que passaram pelo processo de migração, independente de ser um deslocamento forçado ou incentivado. Ao lembrar a origem grega do termo diáspora que remete ao significado de dispersar ou semear, cabe ressaltar a maldição que atingiu tal termo no contexto do Velho Testamento, o que ditou o êxodo do povo judeu: “Serás disperso por todos os reinos da terra” (BOLAÑOS, 2010b, p. 167). Na contemporaneidade, o conceito de diáspora é desenvolvido de maneira mais produtivo nas ciências sociais e abre-se para a reflexão, intensificando a análise das práticas culturais dos movimentos migratórios desta época, tornando-o complexo e até contraditório. A produção de literatura, por emigrantes, muito tem a contribuir na investigação do termo diáspora. Edward Said (2003), teórico que discorre sobre conceituar o termo diáspora numa concepção pós-modernista, afirma que o intelectual cosmopolita é uma figura da realidade transnacional. É por isso que Said relaciona o termo diáspora a uma visão moderna que vai muito além do exílio e do regresso, mas sim a uma multiplicidade de identidades em trânsito, ou seja, a diáspora para ele se dá numa
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perspectiva não negativa, mas embebida de questionamentos do eu que motivam a escrita desta trajetória para muitos escritores diaspóricos. Said aponta ainda que o exílio: [...] é a vida levada fora da ordem habitual. É nômade, descentrada, contrapontística, mas, assim que nos acostumamos com ela, sua força desestabilizadora entra em erupção novamente. (SAID, 2003, p. 60)
O entrar em erupção, conforme aponta Said, talvez possa ser pensado e revelado no procedimento da escrita destes indivíduos, sendo este o momento de expressar as perdas, de refletir profundamente a respeito da condição de emigrante, isto é, de buscar no passado e no presente formas que expressem sua identidade em trânsito. É entre uma cultura distinta das suas tradições que o exilado se autoafirma um ser nacionalista, evidenciando sua pátria, mesmo que sua saída desta não tenha se originado por uma decisão de escolha, mas sim de imposição. Aimée G. Bolaños em seu texto Diáspora, que está presente no Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos (2010) apresenta o discurso de alguns teóricos a respeito da diáspora. Cita, por exemplo, James Clifford que, ao estudar tal temática, reflete sobre a construção de lares longe do próprio lar e ainda, interessa-se pelo fenômeno contemporâneo da dimensão diaspórica. Ainda sobre o mesmo teórico, Bolaños (2010b, p. 169) aponta que este “apresenta a diáspora como um termo desestabilizador que fala de roteiros e raízes, cambiantes nas condições do mundo globalizado”. Aimée apresenta ainda, em seu texto, a compreensão de diáspora entendida por Atvar Brah. Segundo Bolaños, para A. Brah: A diáspora é um conceito geral, abrangente, daí sua força e fraqueza [...] Embora a palavra evoque trauma e separação, presentes em qualquer migração, diáspora também significa esperança e começo. Nomeia os novos lugares de contestação sociocultural, onde as memórias colidem para se refazer. (BOLAÑOS, 2010b, p. 170)
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Desta forma, A. Brah afirma que, mesmo a diáspora sendo fundada numa perspectiva de dispersão, quando retratada num sentido contemporâneo, esta evidencia não apenas o desejo do regresso para a terra natal, mas especialmente, a nova localização. Como em toda diáspora o indivíduo tem consciência da sua origem, mas acaba dando a esta um espaço de subtexto em sua escrita. Pode-se ratificar esta consciência de origem, por exemplo, no poema intitulado “Morada”, pertencente ao capítulo “Memorias”, do livro Las palabras viajeras (2010): mi nueva casa es un puente sobre um río que pasa cuando lo atravieso me sé en verdadera morada mi nueva casa es un camino sobre una tierra alada cuando ando celebro cada uno de mis pasos. (BOLAÑOS, 2010, p. 26)
De acordo com o poema nota-se que a reflexão se dá a respeito da nova morada, sendo a “ponte” uma forma metafórica de representar este entre-lugar que habita o indivíduo diaspórico. Além disso, o “río”, citado no poema, pode ser pensado como a identidade deste próprio sujeito que vive em constante deslocamento, movimento, assim como as águas. Ao citar, na segunda estrofe, que sua nova casa é um caminho, o eu lírico aponta a nova morada como um lugar que, assim como o seu “río” também é passível de deslocamento constate. Com isso, a partir de tais simbologias, o sujeito diaspórico celebra suas múltiplas identidades que vivem em trânsito devido a sua condição de emigrante. Junto a este fator está a escrita sobre a viagem que narra os diversos contextos de múltiplas culturas ao qual o sujeito da diáspora vive e revive. Conforme questiona Stuart Hall (2003, p. 28): “Como podemos conceber ou imaginar a identidade, a diferença e o pertencimento após a diáspora?”. De acordo com Hall, é de senso comum, sobre o conhecimento da identidade cultural, que esta seja fixada no nascimento, através dos parentescos. Entretanto, tal afirmativa não procede quando relacionada a um indivíduo da diáspora, pois este pode colocar-se em dúvida sobre seu local e cultura de pertencimento. Assim, podemos observar no poema “Ante la puerta”:
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estoy ante la puerta ¿dueña de las pruebas? ¿o en el desafío? ¿de las llegadas o las despedidas? estoy en el umbral ¿de qué lado estoy? ¿transgresora o guardiana? ¿volviendo o de partida? (BOLAÑOS, 2010, p. 34)
Nas palavras de Bolaños (2010b, p. 170-171) “o sujeito diaspórico transformase na viagem transcultural, sendo transformador também dos espaços em que transita, efetiva formulação de mão dupla”.
Assim, ao mesmo tempo em que se
questiona quanto ao seu pertencimento, o sujeito diaspórico sabe que sua condição não é unívoca e, por isso, desfruta desta situação em uma escrita reflexiva interrogando-se, por exemplo, “¿de qué lado estoy?”. Na tentativa de descobrir-se e descobrir o seu próximo, o sujeito não aponta para o fato de que “a cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar”. (HALL, 2003, p. 43). É nesta “formulação de mão dupla” que, mesmo perante os questionamentos, é possível ao sujeito diaspórico estabelecer uma relação paradoxal de dúvida e certeza. Ao afirmar no primeiro verso “estoy ante la puerta”, percebe-se através do eu lírico, a consciência de um indivíduo que encontra-se no começo de um movimento, ou seja, no princípio de conhecer um novo mundo, pois a “puerta” pode significar a abertura ou o fechamento para uma nova cultura. Entretanto, num segundo momento, quando no quinto verso expressa “estoy en el umbral”, este sujeito afirma sua condição de iniciante, podendo estar na entrada desta porta da qual ele desconhece o caminho que irá está por vir e ele deverá seguir. Verifica-se também em Gustavo Pérez Firmat que ao desenvolver o conceito de três categorias de poética diferenciadas: a literatura do imigrante, do exilado e étnica dos cubano-americanos, tais categorias podem ao mesmo tempo contribuir na escrita uma das outras. Enquanto uma categoria caracteriza-se pelo idioma de partida e outra no idioma de chegada, a terceira categoria não tem crise identitária e desfruta da sua dualidade. O que Firmat aponta ainda é que o exilado pode aprender do escritor cubano-americano a arte do oxímoro. E mais, tais categorias distintas podem mesclar-se na escrita de uma mesma poeta, conforme é possível notar no poema “Mítico”, incluso no capítulo “Autorretrato”, também do livro Las palabras viajeras:
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me tramo en el hogar del universo cuyo centro imprevisible trazo hilos entran y salen de mi vientre mientras la espiral de mis ovillos forma este impar mundo-casa mi ser dual preso también atrapa soy celosa protectora de una estirpe a cada ciclo de devoración renazco el sol ciño con redes poderosas de mí nacidas en gestación solitaria para que los fieros amantes de la noche se reproduzcan en mis confusas tramas hacedora de infinitos ilegibles fiel a lo ilusorio del tejido semejante a lo mismo y lo diverso soy la intricada tela que imagino Ariadna, Araña, Airó Velada Maya Yo (BOLAÑOS, 2010, p. 39)
Inicialmente, pode-se analisar a seção da qual o poema “Mítico” está inserido. Sendo o capítulo “Autorretrato” o escolhido pela poeta, pode-se pensar que tal escolha não foi em vão, pois ao retratar-se em “Mítico”, a poeta esta desenhando a si mesma, ou seja, representando-se através do seu olhar em outros olhares, fazendo de sua diáspora uma vida mítica e simbólica. Além disso, a poeta expressa em “Mítico” a busca de si mesma em sua viagem inacabada, sendo este tema recorrente dentre as poetas de diáspora cubana. Ao expressar nos versos “me tramo en el hogar del universo”, e “soy celosa protectora de una estirpe” a poeta demonstra consciência de seu lugar de origem; entretanto, ao simbolizar sua vida através de um novelo, pode-se ter a ideia de uma vida em espiral, o que simbolicamente pode expressar uma vida em disseminação onde passado e presente cruzam-se constantemente formando “este impar mundocasa”, ou talvez, construindo a identidade deste sujeito poético. Com isso, percebe-se que embora o sujeito tenha consciência de sua origem fixa quanto à sua vida atual, esta é representada num oxímoro cultural, sendo este uma arte característica do escritor
cubano-americano.
Nada
melhor
que
passado
e
presente
estarem
representados em uma mesma linha neste poema. Ao pensar na identidade cultural da poeta, outro traço a ser marcado é o verso “a cada ciclo de devoración renazco”, que pode ser remetido ao mito de Prometeu. A partir disso, a exemplo deste mito que expressa a regeneração diária do indivíduo, o sujeito diaspórico também renasce e inicia uma nova vida em seu entre-lugar 154!!!|!Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!
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constantemente. Relacionando o mito de Prometeu a escritora, é possível entender tal representação não apenas por sua condição de emigrante, mas também por sua passagem em outras culturas. No verso “soy la intrincada tela que imagino”, outro mito é possível desvelar: o mito de Ariadne, pois no momento em que a poeta se conceitua como uma tela, podese dizer que por evidenciar Ariadne, Bolaños nada mais é do que sua própria construção, ou seja, esta se tece conforme seus deslocamentos a motivam. Ainda através do mesmo mito e da significação de um labirinto, pode-se perceber outra representação desta escritora da diáspora no poema “História adversativa con final feliz”, quando em seus últimos versos consta “ella vive para siempre amada; en su isla-hilo-laberinto; un dia del tiempo humano; habrá de morir feliz”. Desta forma, tais versos denunciam que apesar da vida em um labirinto, “o seu poder redentor encontra-se no futuro, que ainda esta por vir. (HALL, 2003, p. 29). Ainda em relação ao uso da mitologia, que é característico nesta escritora, nota-se a relação com Maya quando expressa “Velada Maya, yo”. Sabe-se, segundo a mitologia Hindu, que Maya foi mãe do Buda, sendo conhecida como deusa da ilusão, isto é, a deusa que permite ao indivíduo tecer sua própria vida, ocultando-se da realidade. Ao configurar-se em “velada Maya”, o sujeito poético opta, nesta escrita, por construir e visualizar apenas o que lhe parece bom aos olhos, fugindo então da verdadeira realidade, vivendo apenas como sua inteligência e imaginação lhe permitem. Quando Gustavo Pérez Firmat fala em poéticas diferenciadas, percebe-se também no poema “Hogar”, de Bolaños, características pertencentes à categoria do exilado: la puerta de la casa abierta sueño feliz de la viajera que regresa al hogar desnudo de la isla constante (BOLAÑOS, 2010, p. 25)
O desejo do regresso para o lar é expresso no poema através de um “sueño feliz”, demonstrado numa escrita retrospectiva e nostálgica. Na perspectiva da possibilidade de volta para casa ao sonhar com “la puerta de la casa abierta”, o sujeito poético demonstra sua noção de que “a presença de barreiras que o fecha num
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território familiar, também podem ser a prisão e são, com frequência, defendidas para além da razão ou da necessidade”. (SAID, 2003, p. 58). Na mesma perspectiva de regresso, aparece ainda o poema “Con aire y en movimiento”, que, ao utilizar uma epígrafe de Alejo Carpentier, expressa juntamente a possibilidade e a aceitação do deslocamento. Assim segue o poema:
Regreso a lo mío esta misma noche. Para mí es otro el aire que, al envolverme, me esculpe y me da forma. Alejo Carpentier me hago en el aire topo azul de los viajeros situado en el centro de la circunferencia que un poeta escéptico llamó Laberinto o Universo en su casa vital me hago habitada desde adentro así voy y vengo en una torre de tiniebla sin el menos sustento con la palabra rauda vuelvo ahora a lo mío que es una isla feliz de aguas interminables en los dominios de viento (BOLAÑOS, 2010, p. 33)
Através dos dezoito versos, o sujeito lírico apresenta sua vida de emigrante repleta de vai e vens, revelando-se, através da construção de um ser multifacetado que, “con aire y en movimiento”, segue os ventos (destino) que o levam. Além disso, ao afirmar no verso “regreso a lo mío esta misma noche”, percebe-se que o eu lírico, faz uso da “noche” para expressar seu sonho, isto é, a ilusão em voltar para seu lar de origem que é “una isla feliz”. Por ter nascido em Cuba, Bolaños, frequentemente faz referência, em suas poesias, sobre a felicidade em voltar a “isla”. Assim, o desenraizamento do indivíduo diaspórico não significa apenas dor em sair da sua terra natal, da sua cultura de origem, mas principalmente, a felicidade em poder retornar a ela. Desta maneira, o enfrentamento do indivíduo emigrante com sua constante diáspora pode atribuir-lhe uma capacidade inquestionável de formar e esculpir sua cultura permanentemente.
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Em Las palabras viajeras, Aimée G. Bolaños, aponta a lembrança das vivências em solidão, como por exemplo, expressa no poema supracitado, “así voy y vengo en una torre de tiniebla”, demonstrando também as perdas, as viagens para o desconhecido, para o novo, utilizando-se de heterotopias que descrevem a dor e o prazer de sua diáspora. Para Bolaños: No imaginário da diáspora, as heterotopias são espaços alternativos, oníricos, projetivos, que sinalizam conflitos, omissões, ausências e não poucas vezes configuram refúgios míticos onde os sujeitos se encontram em uma memória habitada desde dentro pelas ficções da identidade mais complexas. (BOLAÑOS, 2010b, p. 179)
Por meio de alguns poemas que foram examinados neste artigo, pertencentes ao livro Las palabras viajeras, é possível notar que, por configurar-se como uma poeta em trânsito, Aimée G. Bolaños, deixa em seu conjunto de poesias marcas que revelam a escrita de um indivíduo que partiu e ainda não chegou, além de expressar, através de simbologias, o lugar que esta habita sempre em movimento: podendo ser uma ponte, um rio, um labirinto, a soleira, demarcando assim, o seu limiar. Ao tecer sua diáspora, conforme afirma a própria autora: “A Ilha é mapa imaginário, blue-print, palimpsesto, sobre a qual cada poeta recria-se e cria os espaços que tenta habitar. (BOLAÑOS: 2010b, p. 179) Por meio da produção literária de Bolaños, em especial no livro, Las palabras viajeras, ficou demonstrada e constatada uma poética da diáspora, em que as identidades são multifacetadas, expressando, com isso, uma poética de reflexão deste indivíduo, isto é, uma poética transnacional que vem sendo muito comum na produção literária contemporânea. Com isso, esta escritora acrescenta ao campo da literatura contemporânea, uma possibilidade de construir novos discursos, embasados na pluralidade dos indivíduos que se caracterizam pela diáspora. É desta forma que se percebe, em Las palabras viajeras, juntamente ao estudo dos teóricos Edward Said e Stuart Hall, entre outros, que a poesia do indivíduo que vive o processo de migração, independente de ser forçado ou não, acaba deixando por refletir em sua escrita os deslocamentos vividos, expressando suas dores, alegrias e descobertas, o que vem de certa forma, nos últimos anos, enriquecendo o debate sobre diáspora não apenas como temática dentro da escrita, mas principalmente, como prática social complexa e, muitas vezes, contraditória.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BAUMGARTEN, Carlos A. A escrita poética de Aimée Bolaños e a questão da identidade. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 41, n. 4, p. 72-82, 2006. BOLAÑOS, Aimée. G. Autoficción: una experiencia creativa. Trabalho apresentado no V Seminário Nacional de História da Literatura. Rio Grande: FURG, 2012. No prelo. ______. Las palabras viajeras. Madrid: Betania, 2010a. ______. Diáspora. In: BERND, Zilá. Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos. Porto Alegre: Literalis, 2010b. HALL, Stuart. Pensando a diáspora: reflexões sobre a terra no exterior. In: ______. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Trad. Adelaide la Guardia Resende et al. Belo Horizonte: Ed. da UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003. p. 25-50. MARASHINSKY, Amy Sophia. Maya – Mitologia Hindu. Wikipedia. Disponível em: http://www.olhosdebastet.com.br/textos/MAYA.htm. Acesso em 10 de agosto de 2012. SAID, Edward. Reflexões sobre o exilo. In: ______. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 46-60.
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RESENHA: SOBRE OS ÍNTIMOS OU DA NECESSIDADE DE NÃO ESTAR SOZINHO
TAINARA QUINTANA DA CUNHA Mestranda em História da Literatura pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Licenciada em Letras – Português (FURG). Contato: tainaraquintana27@hotmail.com
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RESENHA: SOBRE OS ÍNTIMOS OU DA NECESSIDADE DE NÃO ESTAR SOZINHO Tainara Quintana da Cunha
Cinco homens, cinco personalidades distintas, cinco vidas diferentes e uma única intenção na chuvosa noite de Lisboa: reunir-se em um restaurante para falar sobre mulheres e amores. Assim o fazem há anos, uma vez por mês, os amigos Afonso, Pedro, Guilherme, Augusto e Filipe, que nada têm em comum, mas que deliberam sobre a vida, partindo de suas experiências individuais ou coletivas. O que permite traçar o perfil de cada um e concluir, ao cabo, que essas cinco mentalidades convergem para a incompreensão do amor transmutado nas vozes femininas presentes na obra, e multifacetado em amor carnal, paternal ou fraterno. Sobretudo, essas reuniões mensais fazem parte de uma ordem inerente ao ser humano, refletindo sua vontade de não sentir-se só no mundo, mas sim, parte da coletividade e, por conseguinte, próximo daqueles indivíduos cujas semelhanças sobrepõem-se às diferenças, fazendo com que estes, por algum motivo, assemelhemse entre si. Ao explorar as peculiaridades de cada um desses sujeitos, Inês Pedrosa nos apresenta a história de homens cuja vida está atrelada a existência feminina, considerando que a personagem Afonso, médico oncologista, frequentemente, reflete sobre a morte da pequena Mariana, sua filha de apenas oito anos, que morrera ao cair de uma ribanceira, fato que o faz sentir-se culpado em certos momentos, chegando a despertar sua sensibilidade, posto que ele põe-se a ler sobre o túmulo da menina, numa atitude de arrependimento tardio e na esperança de que ela o escute e o perdoe. Porém, o mesmo não acontece com a mãe da menina, Leonor, de quem lhe é conferida a responsabilidade da retirada de um cancro da mama, “sem prejudicar a autoestima”, conforme pedido da própria mulher. Ao contrário, nessa passagem Afonso ri-se, pois jamais poderá compreender como pode uma mulher pode ter a autoestima concentrada nas mamas. Dessa forma irônica e bem humorada, a autora fala também às mulheres, através das vozes masculinas tão surpresas quanto confusas e convida à reflexão acerca dos avanços femininos nas mais diversas áreas, conforme o desabafo de Afonso, principal voz na narrativa, por representar uma das interfaces do homem contemporâneo e talvez, a personalidade mais complexa, intensa e pulsante de vida, com relação aos outros colegas: Revista!Iluminart!|!Ano!IV!|!nº!8!5!Nov/2012!|!!!161!
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A emancipação das mulheres parece ter-lhes aguçado um espírito científico perturbadoramente materialista. (...) Acabaram-se os bons sentimentos das mulheres: a timidez, o pudor, a culpa, a entrega desinteressada, enfim, a compaixão. È melhor nem pensar nisso. (PEDROSA, 2010, p.29).
Por afinidade, o protagonista responsável por apresentar seus amigos ao leitor, assemelha-se a Augusto, administrador de uma empresa discográfica que “vê melodia na música mais manhosa”, conforme relato jocoso de Afonso. Esses dois amigos partilham de gostos e costumes semelhantes. Afonso goza da fama de sedutor, Augusto também. O primeiro teve um caso com Margarida, que mais tarde o segundo haveria de namorar. Ambos, cada um a sua maneira, sempre encontram uma forma de gabar-se de suas conquistas amorosas, um dos aspectos que faz deles o centro das atenções na mesa do restaurante, sempre muito bem servida por Celinha, habituada aos gracejos dos rapazes. Ao contrário da espontaneidade de Afonso e Augusto à mesa da tasca, Pedro prefere manter-se fechado no invólucro que o torna distante do mundo e eternamente ligado à mãe. Sem namorada, esposa ou coisa que o valha, o técnico de informática demonstra profundo conhecimento da alma feminina: “O que eu sei das mulheres, meus amigos, é isto: elas são muita gente ao mesmo tempo. Como se trouxessem todas as variedades da vida dentro de seus corpos. Elas são feiticeiras e anjos e putas. E homens também.” (PEDROSA, 2010, p. 37). É através dessa forma perspicaz e observadora de perceber o feminino que Pedro descobre o instinto masculino, o que proporciona a ele descobrir-se enquanto homem viril, másculo e apaixonado por Bárbara, personagem ficcional (e por isso ideal) que adentra em sua vida através de um manuscrito oferecido por uma jornalista brasileira, perdida de amores por ele e que mais tarde tiraria a própria vida por sua causa. Por sua vez, outra personalidade alterada pelos descompassos da vida e pela ausência do afago da família é Guilherme que preferiu não ser nada, depois que seu pai, sargento, sonhou ver-lhe doutor ou general. Criado em escola militar e, submetido aos rígidos regimes desta instituição, o jovem Guilherme empregou-se, afinal, numa farmacêutica, local onde conheceu sua grande paixão: Clarisse, moça que mais tarde tentaria esquecer com todas as suas forças: “Saí do colégio e empreguei-me na farmacêutica. Nisso tive sorte. Assim encontrei e perdi Clarisse.” (PEDROSA, 2010, p. 59).
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Todavia, um dos cinco amigos se distingue totalmente dos demais porque, segundo sua autoavaliação, nenhum deles é suficientemente bom para ser equiparado consigo. Seu nome é Filipe, um aspirante a artista que julga seu talento demasiado grande para ficar esquecido num país tão pequeno. Ao lado da mulher, Benedita, outro “talento injustiçado”, o último dos cinco amigos perde-se no seu desmedido egocentrismo e dirige-se aos demais de maneira superior. Assim como ocorre com os outros rapazes, quase tudo o que se sabe de Filipe é dito por Afonso. Segundo ele, “Filipe é um interesseiro incapaz de identificar seus próprios interesses. Um falhado que persiste na falha. Um miúdo imune à introspecção. (...) O louco da aldeia que confirma a sanidade mental dos outros.” (PEDROSA, 2010, p. 160). Mesmo frente às inúmeras diferenças que os cercam, por uma estranha necessidade de estar reunido, o grupo precisa de Filipe e vice-versa. O que justifica a necessidade do ser humano de não estar só, mesmo que isso acarrete a convivência com sujeitos de presenças tão diversas e complexas. Eis nesta afirmação uma das grandes reflexões para a qual nos convida Inês Pedrosa em sua obra Os íntimos. A autora promove o enlace de diversas vozes e estilos narrativos num texto fragmentado, convergindo para a busca das respostas que diferenciam homens e mulheres, mas, sobretudo, a obra lança mais questionamentos para que se possa entender o ser humano e os diferentes comportamentos que pautam sua existência como a necessidade de não estar sozinho, por exemplo.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
PEDROSA, Inês. Os íntimos. Objetiva, Rio de Janeiro: 2010.
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