Jornal Arrocha edição 43 - LGBTQIA+

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DISTRIBUIÇÃO GRATUITA - VENDA PROIBIDA

Jornal

SETEMBRO DE 2021. ANO XII. NÚMERO 43

JORNAL-LABORATÓRIO DO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL/JORNALISMO DA UFMA, CAMPUS DE IMPERATRIZ

FOTO DE CAPA: RAINARA FERREIRA

LGBTQIA+


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Arrocha

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Editorial - Além das letras

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ésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, transexuais, travestis, queer, intersexo, assexual e um democrático + (mais) para as novas afirmações já existentes e as que ainda surgirão. Não são apenas letras. São seres humanos em busca de respeito à diversidade. Reivindicam políticas públicas específicas, querem amar com liberdade, sem serem agredides, mortes, excluídes de suas famílias ou do mercado de trabalho. Praticar jornalismo é abrir espaço para vozes plurais da sociedade, entender as suas complexidades. Por isso os estudantes envolvidos neste Arrocha prepararam uma edição didática e humana. As páginas iniciais do jornal são dedicadas ao universo contido em cada uma das letras LGBTQIA+. Encontramos personagens que falam de seus processos de autoconhecimento, enfrentam preconceitos e esclarecem as características do seu gênero ou agênero.

Após conhecer as histórias de vida envolvidas em cada denominação, as últimas páginas são dedicadas a questões amplas. O crime da homofobia, a vivência da espiritualidade e as relações familiares entram em pauta, com novos personagens. Na página de entrevista, dois especialistas, o cientista social Adeilson Viana e a mestranda em psicologia, Fernanda Bravo Rodrigues, apresentam os olhares especializados sobre a temática central. No ensaio fotográfico, a interpretação em imagens de um universo múltiplo. Elaborar esta edição foi um grande aprendizado e motivo de orgulho. Cada repórter, fotógrafo e diagramador se esforçou para compreender as particularidades regionais do assunto e explicá-las para o público. Como é recorrente no jornal Arrocha, personagens comuns são o grande centro da narrativa, nos chamam para o debate e nos tornam mais humanos.

EXPEDIENTE Publicação laboratorial interdisciplinar do Curso de Comunicação Social/Jornalismo da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). As informações aqui contidas não representam a opinião da universidade Jornal Arrocha. Ano XII. Número 43 Setembro de 2021 Reitor - Prof. Dr. Natalino Salgado Filho Vice-reitor - Prof. Dr. Marcos Fábio Belo Matos Diretor do Campus de Imperatriz - Prof. Dr. Daniel Duarte Coordenador do Curso de Jornalismo - Prof. Dr. Marco Antônio Gehlen Professores: Dr. Alexandre Maciel (Jornalismo Impresso) Dr. Marco Antônio Gehlen (Programação Visual) Dr. Marcus Tulio Borowiski Lavarda (Fotojornalismo)

Repórteres Aline Marinho Andressa Rocha Bruna Carvalho Carllos Alcântara Eduarda Figueredo Enia Ocean Giulliane Andrade Gustavo Vale Jainara Oliveira Jakeline Bernardo Kárita Motta Laurenice Alcantara Lorrany Lopes Marcela Lima Marcos Feitosa Nathália Carvalho Nayra Moraes Paulo Maciel Rainara Ferreira Rogério Gomes Tayná Duarte Tiago Leitão Wallisson Santos Williana Costa

Fotógrafxs: Aline Marinho Ana Luísa Marques Andressa Rocha Bruna Carvalho Carllos Alcântara Eduarda Figueredo Enia Ocean Giulliane Andrade Gustavo Vale Jainara Oliveira Jakeline Bernardo Kárita Motta Laurenice Alcantara Livia Nicolly Lorrany Lopes Marcela Lima Marcos Feitosa Mariana Muniz Nathália Carvalho Nayra Moares Paulo Maciel Poliana Castro Rainara Ferreira

Charge LORRANY LOPES

LGBTQIA+ “Para alguns é só um monte de letras agrupadas, mas, para o movimento de LGBTQIA+, é fazer com que essas pessoas sejam representadas e defendidas”, explica Maria Antônia Rodrigues de Oliveira, 55 anos, mestre em psicanálise clínica, especialista em sexualidade humana e psicopedagogia clínica, pedagoga e letróloga. A pedido do Arrocha, ela detalha o significado de cada uma das letras:

“Mulheres que sentem atração e se relacionam com o mesmo gênero”.

LÉSBICA

Tayná Duarte Wallisson Santos

Diagramadorxs: Ane Beatriz Sandes do Nascimento Árion Sousa Barbosa Cairo Yuri Avelino Nascimento Cinthya Nayara Lopes Monteiro Danielle Luz Silva Flávia Regina Costa Lago da Silva Francilene da Silva Jorge Francisca Leticia Pereira Francisco Monteiro dos Santos Isabelle Mariana Gesualdo Sales Jéssica Lima Conceição Juliana Fernandes Silva Laís Vitória Santana Laura Paulino da Silva Lucas Lima de Medeiros Marcos Viana Pereira Maria Carolina Nascimento de Sousa Maria Thatyele Rodrigues de Sousa Pedro Lucas dos Santos do Nascimento Renara Leite Lima Rodrigo Araújo Souza Vivia Maria Moura de Almeida Wanessa Silva de Oliveira

Ensaio fotográfico (p. 10 e 11) 1. Mariana Muniz 2. Marcos Vinicius Nunes 3. Enia Ocean 4. Cristina Araújo 5. Rainara Ferreira 6. Karoláyne Gomes 7. Luísa 8. Divulgação boate Vitória House 9. Lívia Nicolly 10. Emanuella Alencar 11. Michelle Heidrich 12. Mariana Muniz 13. Ana Luisa Marques 14. Lívia Nicolly 15. Ana Luisa Marques 16. Jullyana Monteiro 17. Poliana Castro

Revisora:

Janaína Amorim

Todas as edições do Arrocha estão disponíveis no site:

www.imperatriznoticias.ufma.br

ANO XII. EDIÇÃO 43 IMPERATRIZ, SETEMBRO DE 2021

“Aqueles que sentem atração afetiva ou sexual por ambos, tanto por homens quanto por mulheres”.

BISSEXUAL “Simboliza as pessoas que transitam entre o gênero feminino e o masculino, ou em outros gêneros os quais os binários não se aplicam”.

QUEER

“Indivíduos que não sentem atração afetiva ou sexual por outra pessoa, independente da orientação ou identidade de gênero”.

ASSEXUAL

“Homens que sentem atração afetiva ou sexual por pessoas do mesmo gênero que o seu”.

GAY

“Transexuais e travestis, agora reunindo em uma única palavra ficou “transvestigênere”: “Homens e mulheres que se identificam com outro gênero, diferente do atribuído no nascimento. Muitas vezes relacionado à identidade de gênero e não sexual”.

TRANSGÊNERO

“Pessoas em que o desenvolvimento sexual corporal, seja por hormônios genitais, cromossomos ou outras características biológicas, não se encaixam no masculino ou feminino, que é aquela forma binária”.

INTERSEXO “Abriga as possibilidades de orientação sexual e identidade de gênero. Hoje, a mais fluida que nós chamamos são os pansexuais, que simbolizam aquelas pessoas que sentem atração afetiva ou sexual independente da sua identidade ou gênero”.

+(MAIS)


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LÉSBICAS Processo de mulheres na autodescoberta como homossexuais provoca reações na família. Às vezes demora anos até que sua sexualidade seja creditada, pois costuma ser vista como algo passageiro e anormal

Corpos que carregam resistência e amor LAURENICE ALCANTARA

com ele embrulhadinho. Mas eu nunca cheguei a dar, porque dentro de mim eu sentia um certo ésbica é um termo para impedimento que eu não podia mulheres que se relacionam estar fazendo aquilo.” exclusivamente com muCom a massoterapeuta Joylheres, sendo de forma sexual ou ce Nunes, 25 anos, o processo afetiva. “Posso ser quem eu sou também começou aos 10, quando de verdade”, afirma a corretora era muito nova para entendê-lo. Raíssa Leocádio, 21 anos, sobre Somente aos 15 anos ela decidiu sua orientação. Para ela, vai além beijar uma menina e disse que foi da designação, é “liberdade”. algo surreal. Já tinha beijado um A descoberta às vezes parte menino e o sentimento não foi o desde muito nova. A professora mesmo. Depois disso, ela comede reforço çou a se relacionar escolar, Thacom mulheres, mas lia Alcantara, escondia de sua “Não tira nossa essência e 23 anos, aos família. Até arru10 teve o pri- não nos deixa de ser quem um namorado somos, uma mãe, amiga mou meiro contacom a intenção de to com esse ou parceira” que não soubessem sentimento: de sua atração por se apaixonou meninas. pela professora de catequese. Mesmo sem Respeito - Depois da autodescobercompreender sobre o assunto, ta e a escolha de querer ou não não sentia que era um problema. compartilhar sobre sua orientaMas como fazia parte da igreja e ção sexual, surgem as reações. as pessoas falavam que sim, de Joyce Nunes sentia-se culpada e forma ingênua, comprou um preerrada por deixar sua mãe triste sente para a catequista, um cubo quando ela se assumiu. Já seu pai mágico. “Passei quatro anos ana abraçou, disse que a respeitava, dando da minha casa para a igreja o importante era sua felicidade. NATHÁLIA CARVALHO TAYNÁ DUARTE

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Thalia relembra de ter se apaixonado pela catequista e nunca ter entregue o cubo mágico de presente

Casais relatam descrédito ao relacionamento entre lésbicas NATHÁLIA CARVALHO

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Casal Amanda Conceição e Rafaela Borges gosta de viajar junto, celebrar o amor e se orgulhar do relacionamento

FLAVIA RACHEL

JEFFERSON CARVALHO

a cabeça de muitas pessoas é uma fase. Que estamos juntas somente para irmos em festas, mas que não haja um crescimento.” A assistente de fotografia, Amanda Conceição, de 20 anos, diz que a relação entre duas mulheres existe sim. Podem formar uma família e conquistar uma casa. Atualmente, Amanda namora a fotógrafa Rafaela Borges, de 22 anos. Começaram o seu relacionamento no carnaval de 2020, no Bloco do Imprensa e estão juntas há um ano

e cinco meses. São mães de gatos, o Lírio José e o Kekel, mas com esperança no futuro, pretendem ter filhos e se casar.

“A gente se entende muito, às vezes nem precisa falar para se encaixar bem” Quando Rafaela assumiu sua orientação sexual para seu pai, militar, sete anos atrás, ficaram todo esse tempo sem contato. Hoje o relacionamento está tranquilo. Inclusive, o casal chegou a viajar junto com ele e com a família dele de outro casamento. “Eu estou vivendo os melhores momentos da minha vida em relação a isso, porque eu nunca imaginei. Era uma das últimas pessoas do meu coração que eu queria que me

“Mesmo após um ano, minha mãe ainda falava sobre homem em relação a mim e jogava indiretas”, conta Joyce. Hoje, depois de cinco anos, todos aceitam bem. A preocupação de Thalia Alcantara era principalmente com a sua bisavó de 80 anos, por ela ser de outra época e ter outro pensamento. “Foi algo muito único, porque ela não liga muito para isso. Disse que me amava, me enxergava da mesma forma e que estava tudo tranquilo.” Thalia lembra que certa vez estava sentada com sua bisavó assistindo ao telejornal, quando a idosa cutucou a bisneta e disparou: “Minha filha, sabe que às vezes eu acho é bom tu gostar de mulher? Por que está vendo esse bando de macho que fica matando as mulheres? Essas ‘pragas’ não prestam”, relata a professora. De acordo com a analista Adrielle Cristina, 20 anos, as lésbicas são pessoas como quaisquer outras. “Não tira nossa essência e não deixamos de ser quem somos, uma mãe, amiga ou parceira. Apenas escolhas diferentes que não deveriam interferir no cotidiano.”

Psicologia e psicanálise mantêm compromisso com mulheres homossexuais LUCAS OSÓRIO

aceitasse”, comenta Rafaela. A mãe de Amanda Conceição no início do namoro da filha, era rude e dura com Rafaela. “Não que a gente precise da aprovação das pessoas, mas em relação aos nossos pais, dói, quer somente ser tratado bem”, diz Amanda. Rafaela, que já havia passado a mesma situação com a avó, entendeu o comportamento da sogra e conta como fez para lidar com a questão. “Fui mostrando para ela que eu era uma pessoa boa, independente da minha orientação sexual.” Situações - Como Rafaela Borges é fotógrafa, seu público alvo são as crianças e famílias tradicionais. A preocupação surgia do receio de os clientes não quererem mais seus serviços. “Evitamos ao máximo andar de mãos dadas. Também no meu estúdio, lá a gente não se trata como um casal”, explica Rafaela. Caroline Chaves, de 23 anos e a estudante Jéssica Emanuella Eustáquio, de 22, namoram há dois anos e sete meses. Contam que já passaram por momentos de preconceito quando frequentavam um estabelecimento. “A mulher mandou a gente ir embora do bar, pois ela achou que estávamos tendo relação sexual dentro do banheiro e fez um escândalo, foi bem constrangedor’’, relata Caroline. Jéssica ficou indignada porque tinha entrado no banheiro com a companheira há apenas um minuto. “Quem não vai em um banheiro acompanhada?”, indaga Jéssica. Apesar das lutas e resistências, Caroline destaca: “A gente se entende muito, às vezes nem precisa falar para se encaixar bem. Não temos muitos conflitos, nem nos gostos musicais, é tudo a mesma coisa”.

Psicanalista e pedagoga, Márcia Lima, reflete sobre violência contra a comunidade lésbica TAYNÁ DUARTE

“Q

uando falamos de mulheres lésbicas cis ou trans, é a orientação do seu desejo sexual ou do seu afeto, voltada para outras mulheres”. A psicóloga Maiara Muniz, 31 anos, conta que apesar do termo existir, muitas vezes é tratado como uma categoria distante, mas que na verdade, também são pessoas comuns. A psicóloga acrescenta que a sexualidade diz respeito às subjetividades humanas. Assim, descarta qualquer tipo de percepção que tome isso como algum tipo de distúrbio ou algo fora de reta. “É a construção da existência de quem essas pessoas são.”

Apoio - Já a psicanalista e pedagoga, Márcia Lima, de 25 anos, afirma que as mulheres lésbicas estão vulnerá-

veis a problemas psíquicos, inclusive, mais que os heterossexuais, porque encontram-se sujeitas a preconceitos e à discriminação, além de estarem expostas a risco de morte. Exemplo disto é um número alarmante de lesbocídio no Brasil. O dado publicado pelo site Politize confirma: entre 2014 e 2017, o registro de assassinatos de mulheres lésbicas aumentou em 150%. Nos primeiros dois meses de 2018, foram registrados 26 casos. De acordo com Maiara Muniz, o compromisso da psicologia e psicanálise com as mulheres lésbicas é o mesmo que tem com todas as pessoas. É sobre uma sociedade menos excludente, é na validação da sexualidade como um processo normal no desenvolvimento do ser humano e principalmente: “Contribuir para que essas vivências não sejam violentadas”, completa Maiara.


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GAYS Entre a liberdade e o medo: jovens maranhenses relatam como foi o processo de descoberta da sexualidade e os desafios enfrentados ao se declararem gays para suas famílias e a sociedade

Homossexuais masculinos e seus anseios MARCOS VINICIUS NUNES LAURENICE ALCANTARA

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que é ser gay? Para o instrutor de zumba, Marcos Vinicius Nunes, de 23 anos, é um ato de resistência. “A gente necessita resistir em meio ao preconceito para ter a graça de existir sendo quem somos e amando quem quisermos amar.” Desde muito cedo, Marcos sentiu o peso de parecer diferente aos olhos da sociedade. “Sempre ouvi muitos comentários maldosos. Na escola eu apanhava constantemente, escutava muitas besteiras”, explica. Mas os questionamentos sobre sua orientação sexual só começaram a surgir após ser indagado por sua avó a respeito. Até então, Marcos Vinicius se envolvia com garotas, porém sentia a sensação de que faltava alguma coisa. “Era algo que não parecia real, sabe? Não era tão verdadeiro, não me instigava.” Ao se assumir, o instrutor relata que não teve muitas dificuldades e que tudo foi acontecendo naturalmente. No entanto, viveu momentos angustiantes com sua mãe. Na época, decidiu escrever uma carta explicando todos os medos que sentia, mesmo com a possibilidade de não ser acolhido por ela. “Nos primeiros dias ela ficou em silêncio, então não tinha como ter certeza se ela havia lido a carta. Mas, depois ela veio e falou que estava tudo bem, então meu coração ficou mais calmo”, afirmou Marcos Vinicius. Libertação - Já para o acadêmico de Letras, Edmilson Maciel, 25 anos, ser gay é sinônimo de liberdade. “É se libertar, se sentir livre e perceber que você é

realmente diferente, graças a Deus.” De acordo com o estudante, o processo de compreender sua orientação sexual e se aceitar não foi fácil. “Pra mim foi bem tenso. Até porque não existem pessoas LGBT na minha família, todos são héteros, casadinhos, com o padrãozinho de vida que eles acham normal”, afirma. Por isso, Edmilson relata que só conseguiu se assumir para sua família quando tinha 18 anos e já possuía sua independência financeira. Para ele, isso ajudou bastante, pois assim sua família percebeu a força que ele tinha para enfrentar qualquer coisa, até os preconceitos.

“Era algo que não parecia real, sabe? Não era tão verdadeiro, não me instigava” Edmilson acredita que o mais difícil nesse período foi o fato de ver sua mãe, que sofre de microcefalia, e que constantemente era internada, ter a possibilidade de falecer e não o conhecer por completo. “Eu sempre ficava com aquele peso na consciência dela fazer uma cirurgia, morrer e eu não ter contado pra ela a situação”, explica. Fortalecimento - Para o especialista em segurança alimentar, Walisson Martins, de 24 anos, ser gay representa potência. “É ser forte, ter orgulho de quem sou de verdade, amando da minha maneira.” Porém, nem sempre foi assim. Apesar de ter notado sua atração por

outros homens desde cedo, Walisson tentou fugir dessa realidade inúmeras vezes. “Eu me assumi quando eu tinha 19 anos e, assim, a descoberta comigo mesmo veio bem cedo, só que no início eu não queria acreditar. Mas quando é pra ser, não tem como esconder, é evidente”, explica. Quando se assumiu, Walisson viu sua vida mudar completamente, o que gerou uma forte depressão. “Cheguei ao nível de tentar até suicídio por conta disso. Eu me vi sem apoio, sem amigos, vi minha família se distanciando, então não foi fácil”, afirma. Atualmente, Walisson destaca que já conta com o apoio de sua família e que tudo que passou serviu para chegar ao homem forte que é. “Hoje eu tenho um pensamento bem diferente de antes. Não me arrependo de ter me assumido. Se eu soubesse que isso iria trazer o fortalecimento que eu precisava, tinha me assumido bem antes. Mas, tudo no seu tempo.” Edmilson Maciel relata que seu processo de autodescoberta foi “tenso” por ser o único de sua família a se assumir (Crédito da foto: Edmilson Maciel)

“A gente necessita resistir em meio ao preconceito pra ter a graça de existir”, diz Marcos Vinicius

Gays contam suas percepções sobre relacionamentos ANTONIO WAGNER BRUNA CARVALHO

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Moab Araújo se orgulha de ser gay, pois para ele isso significa respeitar e dignificar a sua existência, fazendo-o resistir

evidente. Porque como não experimentamos o prazer de viver nossas vivências e experiências em público, a gente não consegue nem compreender a dimensão disso”, explica.

m uma sociedade estruturada na heteronormatividade, ir contra esta padronização é uma forma de resistir. Moab Paiva, de 26 anos, que se identifica como homem gay, Casamento - Aos 32 anos, o acadêmico Jean Pier é dissidente nesse espaço no qual tentam a todo Figueiredo se descobriu enquanto homem gay. custo defini-lo. “A nossa sociedade oprime. E Ele conta que cumpriu todo o papel social exidiante dessa opressão que tenta caracterizar es- gido pela família e pela sociedade hetero-pases corpos, a gente se vê em um paradigma de triarcal. “O que diferencia um pouco a minha luta constante pra existir mesmo”. história das demais é que eu fui vivendo a vida. Moab está em um relacionamento há cin- Fui vivendo cada ciclo. E quando eu percebi que co anos e conheceu o namorado por meio das eu podia viver a minha sexualidade gay, eu vivi. redes sociais, ambiente em que, segundo ele, a Foi simples assim. Simples no sentido do meu maioria dos relacionamentos subversivos acon- íntimo.” tecem. “É o mundo em Hoje com 47 anos, Jean que a gente tem uma relata que quando frequenta possibilidade de viver alguns lugares com o marido “E quando eu percebi que uma segunda vida, recebe olhares atravessados e eu podia viver a minha porque a nossa, real, até xingamentos. No entanto, sexualidade gay, eu vivi” não nos permite viver isso nunca o impediu de deas nossas potencialidamonstrar afetividade. O casal des.” está junto há nove anos e o Sem nenhuma intenção para um relaciona- casamento civil ocorreu há cinco, em Imperatriz. mento amoroso, o casal começou conversando O primeiro passo do casal foi a união estáaleatoriamente sobre séries, filmes e músicas. vel. Porém, ainda encontraram barreiras para ter Um dia resolveram ir até a Beira-Rio. O encon- uma relação plena. Eles optaram então pelo catro, que era para concretizar a amizade, termi- samento civil, por dois motivos: “A união civil é nou em um assalto e os dois tiveram, além de a que dá o direito amplo constitucionalmente a outros objetos, os celulares roubados. qualquer casal” e “a iminência de elegerem Bolso“Como é que fica um relacionamento que é naro”. Os dois temiam que o atual presidente os proibido e não tem sua única ferramenta de co- deixasse “órfãos de direitos”. municação que é o celular?”, questiona. O estuJean, junto com o marido e os três filhos, fordante lembra que ele e o namorado passaram a mam uma família homoafetiva. “Nós não temos conversar pelos celulares das mães deles. tabu sobre certos assuntos. E isso ajuda muito, Para Moab e o namorado, demonstrar afeti- porque a gente tem um diálogo mais aberto. No vidade está restrito a ambientes em que estão caso, os nossos filhos se sentem à vontade pra equiparados por um grupo de amigos. “O ato de conversar, pra expor o ponto de vista deles sem ser negada a afetividade em público é tão cons- a necessidade de subterfúgios, de fazer algo estante que às vezes não é tão significativo, mas é condido.”


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BISSEXUAIS Ainda que queiram rotular o amor pelo próximo, existe um grupo seleto que não aceita isso. Eles amam quem desejam, independente das atrocidades que escutam até por pessoas do mesmo grupo

Despertar do amor em corpos distintos Semelhança - Pessoas do grupo LGBTQIA+ sofrem preconceito consdespertar do interesse tante pelo simples ato de amarem sexual por alguém é algo à sua maneira. Logo, se presume intenso e confuso. Ainda que dentro da própria comumais quando essa atração se faz nidade exista um acolhimento, por pessoas de ambos os sexos. A compreensão e amor que não é melhor forma de entender o que recebido por outros grupos. Mas está acontecendo é se entregar ao a realidade é outra: bissexuais desejo e à curiosidade de compresofrem preconceito por gostarem ender o que está sentindo e por de ambos os sexos. quem sente ou reprime esse deEssas pessoas, além de serem sejo. É o caso de Maria Clara, de tidas como “indecisas”, escutam 21 anos, estudante de pedagogia, piadas como “só dá pra gostar de que por muito tempo escondeu o um só”, conforme conta Maria que desejava devido à opinião da sobre um de muitos gracejos que igreja e da própria família sobre a já ouviu de pessoas da própria bissexualidade. comunidade. A Maria, por mesma situafrequentar a igreja ção se repete desde pequena, foi com o auxiliar “Foi lento e foi arrastado, administrativo ensinada que era foi como passar por uma Thiago Viana, pecado que pessoas do mesmo sexo rede de espinho” que por muitivessem relações. tos foi chama“Era uma coisa do de indeciso, que eu mascarava, visto que em escondia e oprideterminadas mia. Isso me fazia muito mal, pois festas só paquerava homens, pois me tornei uma pessoa totalmente era o que mais lhe atraía naquele intolerante”, diz Clara. Foi quanmomento. Contudo, ainda assim, do estava prestes a terminar o sente atração e amor por mulheEnsino Médio, em 2017, que ela se res, tanto que já namorou alguviu interessada por uma menina. mas. Então se permitiu a sentir e viver Além dos comentários duvidoo que por anos reprimiu logo que sos que Thiago sofre da própria havia se afastado da igreja. comunidade, ele precisa lidar “Nunca foi algo que conversei com insinuações e provocações abertamente, pois ainda não me do tipo: “Ah, tu tem um jeitinho sinto confortável”, afirma Maria assim”. Neste caso, se coloca em sobre a sua bissexualidade em prova a reação do rapaz, se por casa, onde nunca houve uma acaso ele vai dizer algo ou vai conversa aberta sobre o assunto. aceitar o comentário maldoso Mesmo assim, fica subentendido e desnecessário. Porém, Thiago entre os parentes que ela gossabe que esse é o modo da sua ta tanto de homens quanto de família “querer” saber sobre sua mulheres. Embora possa parecer orientação, já que até o momento que eles sintam repúdio, Maria não houve uma conversa sobre o manifesta o seu único desejo: “Eu assunto. esperava que me apoiassem, que Por não ter apoio ou alguém me amassem”. para partilhar suas dúvidas e

ENIA OCEAN

ENIA OCEAN

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Maria Clara continua sorridente mesmo quando há dificuldades, mostrando que pode ser feliz independente da situação que tenha de vir a enfrentar

seus anseios, o processo de descoberta da bissexualidade de Thiago “foi lento e arrastado, foi como passar por uma rede de espinho”. Conforme comenta, ele precisou aprender o “certo” e o “errado” passando por situações que pode-

riam ser evitadas com uma simples conversa. Desde criança, Thiago sentia atração pelo corpo masculino. Mas não houve uma situação específica que deixasse claro que ele gostava de homens, e sim

pequenos sinais que levaram a uma coisa à outra. “Me vi em uma situação que eu queria muito fazer aquilo, me aproximar de um homem, sentir o calor masculino, sentir o toque, o beijo”, diz Thiago.

Autodescoberta é o principal caminho para a aceitação MARCIA RIOS EDUARDA FIGUEREDO

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esde criança, com desenho ou live action, eu percebia que gostava muito dos dois e não só do menino, como era ensinado”, conta Márcia Rios, 21 anos, em relação à descoberta da bissexualidade. A estudante diz que sempre soube desde muito cedo, mas existiam dificuldades internas por ser algo que ela não estava familiarizada. “Não tinha sido aquilo que eu tinha sido ensinada e vivido a maior parte da vida, então me sentia muito confusa”, expressa. Porém, não é necessariamente sempre uma descoberta difícil. Igor, 20 anos, que prefere não revelar o seu sobrenome, também descobriu desde cedo sua bissexualidade e nunca houve muitas dúvidas. “Pra mim, toda essa questão referente à minha sexualidade veio de uma maneira muito natural”. Ele diz que foi tranquilo lidar com todo esse processo e mesmo sendo novo, sempre entendeu. Igor não é assumido, mas

Para Anna Letícia, 24 anos, a descoberta da bissexualidade foi tranquila. Ela diz após o ensino médio se mudou para uma cidade grande e que foi bom se relacionar com pessoas de mente mais aberta, algo que seria diferente em um município pequeno, onde todos se conhecem e julgam. “Esse processo, pra mim, foi fácil, porque eu estava distante dos preconceitos”, reflete. A intolerância contra a comunidade LGBTQIA+ é algo diário e a bissexualidade pode ser incompressível para algumas pessoas, principalmente pais e avós. Por ser voltado tanto a mulheres quanto a homens e outras identidades de gênero, a definição de bissexualidade pode muitas vezes ser considerada “complicada” para quem não está habituado. Obstáculos - Anna, que atualmente namora uma mulher, menciona as dificuldades de assumir sua sexualidaDepois de muitos obstáculos, Márcia Rios se sente realizada com a sua orientação para a bissexualidade de e o atual relacionamento. “Minha acredita que a família reagiria tran- independência antes de contar para mãe teve um pouco mais de dificuldade em entender as coisas.” Felizquilamente, só deseja conquistar sua todos e ser algo ainda mais calmo.

mente, hoje em dia a família lida bem com a questão, depois de muitas conversas e paciência da parte de Anna. Ela admite que houve situações em que amigos se distanciaram depois que ela assumiu a bissexualidade. Diz, ainda, que havia amigas que tinham dificuldade para aceitar o relacionamento, como se estivessem torcendo pela infelicidade dela por não entender sua sexualidade. “Tinha uma amiga que sempre me chamava pra sair, mas não queria que eu levasse minha namorada”. Anna conta que foi muito difícil lidar com esta situação e precisou se afastar, porque estava se tornando algo tóxico. Márcia, por sua vez, relata que sofreu situações semelhantes depois que se abriu para os amigos. “Percebi algumas amigas heterossexuais se afastarem e voltarem pedindo desculpas, mas foi horrível, eu pensava em suicídio o tempo todo.” Se assumir para a família também foi difícil para ela. Admite que sofreu muita pressão psicológica e brigas por parte da mãe.


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TRANSEXUALIDADE Transexual é a pessoa que não se identifica com o sexo biológico de nascimento. Muitos passam por uma transição social, que pode incluir tratamentos hormonais, cirúrgicos, de vestimenta e até comportamentais

Preconceito e orgulho marcam a realidade dos transexuais PAULO MACIEL

T

ransexuais são pessoas que apresentam uma identidade de gênero diferente da que foi designada no nascimento, como é o caso da história da mulher trans imperatrizense, Mayra Costa, de 17 anos. Mayra sentia desde a infância uma inadequação com o seu corpo. “Eu não me via como menino, me olhava no espelho e só me via como menina”. Aos cinco anos, Mayra já sentia atração por meninos e se comportava como menina. “Mesmo em um corpo de menino, eu nunca me identifiquei com aquele corpo. Eu sempre acreditei ser uma menina e eu vivia isso”. Ela conta que nunca gostou de jogar bola, brincar de carrinho, correr com os meninos na rua, sempre queria estar no meio das meninas. Por conta da naturalidade de Mayra em expor quem é, sua família logo a questionou sobre a sua identidade. “Minha família perguntou se eu queria virar uma menina e eu disse que sim, porque não me

identificava de forma alguma em ser um menino”. Na infância de Mayra, seus pais, muito bem resolvidos e “cabeça aberta”, ofereceram ajuda para ir ao psicólogo, para ter certeza que era isso que ela queria para sua vida. “Eu disse para os meus pais que ia fazer o acompanhamento psicológico, até porque se algum dia eu for fazer a cirur-

“Ser transexual vai muito além de hormônios e procedimentos cirúrgicos”

gia de mudança de sexo, é uma das exigências para realizar o procedimento”. Hoje, aos 17 anos, Mayra ainda não decidiu se fará algum dia a cirurgia de mudança de sexo, pois acredita que não é o momento certo. “Eu já me sinto uma mulher completa, como sempre me senti. A cirurgia, se eu fizer algum dia, será mais para complementar a mulher que eu já sou.”

Homem Trans - Muitos transexuais passam por uma transição social, que pode incluir tratamentos hormonais ou cirúrgicos, a fim de se assemelhar com sua identidade de gênero. É o caso do homem trans, Thaylon Morais, de 24 anos, de Estreito-Maranhão, que está organizando uma vaquinha virtual para fazer a cirurgia de mastectomia, a retirada dos seios. Na adolescência, antes da transição, Thaylon não se sentia bonito se vestindo como uma menina e nem queria parecer com elas. “No fundo eu acreditava que deveria ter músculos e cabelos bem cortados como os rapazes, com roupas largas sem marcar os seios, para me sentir bem e bonito.” Ainda na adolescência, Thaylon decidiu abandonar as roupas de menina e cortou o cabelo curto. Hoje na fase adulta, sendo um homem trans assumido, Thaylon pretende começar sua terapia hormonal. “Esse momento está sendo o mais empolgante, porque eu sinto que posso fazer isso sem medo ou culpa. Sinto que esse é o passo certeiro para eu me sentir bem com relação ao meu corpo”.

FERNANDO MATOS

“Eu já me sinto uma mulher completa, como sempre me senti”, afirma a mulher trans Mayra Costa

Thaylon está pesquisando os melhores médicos e cidades onde é realizada a cirurgia de mastectomia, já que em Estreito, não é possível fazer esse procedimento. “Eu sei

que a hora certa vai chegar e que eu não preciso me frustar, pois ser um homem trans vai muito além de hormônios e procedimentos cirúrgicos”.

A mulher trans que encontrou no esporte o seu lugar ARQUIVO PESSOAL RAYSSA RODRIGUES ROGÉRIO GOMES

A

paraense Raissa Rodrigues, mulher trans, negra, de 27 anos, fala da sua trajetória após se identificar como mulher, mesmo tendo vivido até os 23 anos como Diego, na capital, Belém. Neste primeiro momento da sua vida, Raissa convivia com os meninos na escola e sofria bastante preconceito por ser afeminada. No esporte, Raissa, quando ainda se chamava Diego, encontrou o que chama de seu lugar. Jogando handebol na escola e na faculdade, onde se formou professor (a) de Educação Física, a jovem era puro talento na modalidade, bolsista e um dos principais nomes dentro do time e do handebol no estado do Pará. Raissa fez do âmbito esportivo a sua família, pois tinha no esporte o apoio dos amigos e treinadores, como ela mesmo explica: “Eu tive muita sorte de ser apresentada ao handebol. Foi dentro do esporte onde me encontrei no mundo. Tive a aceitação que não tinha em casa”. Sobre hoje não atuar na sua área de formação, Raissa diz que não se sente incomodada. “Foi por opção mesmo”, explica ela, que há cerca de quatro anos trabalha como acompanhante de luxo na capital carioca. Mesmo com a escolha, ela afirma que deseja voltar a atuar na área de formação, quando já estiver com a sua transição completa, o que é o seu maior sonho e desejo. “Meu próximo passo é a Europa. Lá

Raissa Rodrigues (Diego Neves), vestindo a camisa número 13 do time de handebol da Faculdade Esmac, aos 18 anos, em Breves, Ilha do Marajó-PA

existem meios em que eu possa trabalhar e ganhar muito mais dinheiro com o que faço aqui. Pretendo fazer a cirurgia de mudança de sexo, para que assim eu me sinta verdadeiramente realizada”, declara Raissa. Ela já possui uma documentação legal com o seu novo nome social, desde os seus 23 anos, quando se mudou para o Rio de Janeiro. Também já fez implante capilar e de próteses de silicone nos seios. O que, para ela, é algo

que ajuda muito nesse novo trabalho e principalmente na sua

“Recebi muitas perguntas absurdas quando comecei minha transição. Choro só de lembrar” autoestima. Fazendo-a se enxergar como de fato ela se via desde

sempre, uma mulher. Sobre como a família lidou com a sua transição, Raissa comenta: “Nossa, foi e está sendo muito difícil. Sou filha de mãe solteira, nasci e cresci na periferia de Belém, no distrito de Icoaraci”. Sua mãe criou a ela e ao seu irmão gêmeo com muita luta. “Uma guerreira! Ela sempre me aceitou desde que me identifiquei gay na infância. Sempre me defendeu”. No entanto, seu irmão sofria

com os comentários na escola, principalmente por serem gêmeos idênticos. “Faziam chacota dele na escola, no grupo dos meninos. Ele às vezes tentava se excluir. Eu me sentia muito mal com isso. Sentia estar prejudicando ele de alguma maneira. Isso dói muito em mim”, desabafa. Hoje, Raissa afirma que está muito difícil ter a aceitação do irmão. “Ele nunca mais falou comigo depois que reapareci como Raissa. É muito duro você desagradar um irmão que esteve com você desde o ventre, pelo simples, e ao mesmo tempo complexo, fato de tentar ser realmente quem você é. Mas eu o entendo e lamento. Eu quero muito que ele viva comigo toda essa minha felicidade. Espero que ele mude de opinião sobre mim”, diz ela, emocionada. Perguntada sobre o futuro, após sua total transição, ela diz que, além de retomar a carreira, ter sua própria academia de ginástica e o handebol como prática. O que, segundo ela, será muito difícil, pois jogou quase toda a vida como e com meninos e se colocar no meio de outras mulheres cisgêneros, pode ser algo desagradável para elas. “Sabemos que aqui no Brasil ainda é muito difícil essa coisa de as pessoas lidarem com trans. Mas eu espero ser aceita por outras meninas. Eu quero ter esse direito e oportunidade de estar com elas, praticando o esporte que, sem dúvida, é o grande amor da minha vida”, explica Raissa.


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QUEER Mateus Figueredo conheceu a bandeira LGBTQIA+ aos 13 anos, se assumiu gay aos 15 para sua família evangélica, porém mais tarde viu que não se tratava disso, mas sim que era uma pessoa não binária, um ser queer

Tons da realidade de uma pessoa queer JAQUELINE EMANUELLE TIAGO LEITÃO

A

os 13 anos ouviu, pela primeira vez, de uma professora, a sigla LGBT, na época. Pediu para que ela explicasse o que significava. Como percebia que não se encaixava em nada do que já tinha escutado até aquele momento, entendeu que cabia muito bem naquele termo novo que acabara de conhecer. “Eu sou gay, eu sou isso aí”, declarou Mateus Figueredo da Silva, 21, o Batata, a Madson. O tempo passou, ele se aprofundou no conhecimento da causa e do ser. Mais letras foram acrescentadas. Viu que não era exatamente o L, G, B ou T. Porém, acabou se descobrindo como uma das letras mais recentes, o Q(ueer), uma pessoa não binária, um ser que flui. O termo Queer só passou a ganhar respeito e relevância quando os estudos sobre seu significado se intensificaram, na década de 1990. Nascia naquele momento a Teoria Queer. De acordo com um texto de 2018 do site americano Them, trata-se de um termo abrangente. “Refere-se a alguém que se alterna entre ser homem e ser mulher e a pessoas que se identificam como um terceiro gênero, gênero-fluido, andrógino, dois-espíritos, pangênero e agênero, apenas para citar alguns”, diz a publicação. Descoberta - Depois de se descobrir, agora Mateus teria que se revelar para a família, já que é nascido em um lar evangélico, com a mãe ex-cantora gospel e o pai obreiro. Quando tinha 15 anos, em uma noite em que sua mãe assistia a minissérie Rei Davi, da Record TV, ele se assumiu. Ela disse que já sabia, porque ele veio de uma cesariana “para não passar por lá”

Madson (Mateus Figueredo) exposto e sem vergonha das muitas cores de sua alma em uma pose para foto na escadaria da Torre de TV, em Brasília (DF)

(órgão sexual feminino). Seu pai, no começo, o tratava mal, hoje entende e o trato é leve. Chamado de Madson por uma

amiga, foi o seu ciclo de amizades que a salvou da situação mais tensa que enfrentou na vida. Ela estava em um shopping e foi usar

o banheiro masculino, por já ter tido uma experiência ruim no feminino. Foi fechada dentro de um box

por homens que ali estavam - a violência preconceituosa prestes a estourar. O namorado de sua amiga acabou aparecendo e a tirou daquele cubículo de medo e tensão. “Se ele não tivesse me tirado, não sei se eu estaria aqui”, contou, com alívio. Ela tem orgulho de ser, mas não queria sofrer. Não desejava virar mais um número na estatística do país que mais mata LGBTQIA+ no mundo, salpicando a bandeira de sangue. Desenvolveu gatilhos depois desse episódio. Por medo, prefere usar agora apenas o banheiro para pessoas com deficiência. Sai sempre acompanhada, não olha feio para ninguém. Pois diz que a qualquer agir descuidado ou passo em falso, pode levar uma “lampadada” do nada. Madson revela que há defeitos dentro do movimento LGBTQIA+. Que às vezes não se sente apoiada. A bandeira que deve aceitar pessoas fora do padrão acaba tendo padrões internos, em sua opinião. Mas ela também reafirmou as qualidades da causa: inserir os assuntos na sociedade, discutir, explicar e se fazer entender. Mateus se mudou do Maranhão para Brasília. Está no último semestre de Radiologia e quer trazer mais representatividade para a área. Ele manda um recado para quem considera Queer estranho. “Somos pessoas e cada pessoa tem a sua particularidade. Não deixa de ser pessoa. Sofremos igual, temos os boletos para pagar igual. Só mudam algumas questões, algumas características. Procure conhecer as pessoas por suas semelhanças e não por suas diferenças”, ensina e aconselha Madson.

“Desde criança ficava aquele ponto de interrogação sobre ser homem ou mulher” ALÊ GONÇALVES

KÁRITA RAMOS

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esde criança eu nunca entendi o que eu era masculino, feminino. Eu sempre ficava sem compreender isso dentro de mim, eu fui crescendo e, ao passar do tempo, eu fui sempre me questionando. Ficava sempre aquele ponto de interrogação sobre ser homem ou mulher”, explica Angel Martins, trans não binária agênero, 29 anos, moradora do município de Ribeirão das Neves, de Minas Gerais. Angel conta que foi ao entrar no teatro que teve oportunidade de conhecer pessoas de diversos gêneros e entender melhor sobre cada um deles. A não binariedade foi o gênero que ela se identificou. Pessoas não binárias são aquelas que não se identificam com o masculino ou com o feminino, não se vêem no gênero no qual foram designadas quando nasceram. “Lá no teatro conheci pessoas que se identificavam como não binárias e aí eu passei a ver que elas tinham tudo a ver comigo e eu tinha a ver com elas. Hoje em dia eu me sinto muito bem com quem

Estefane, Angel e Athos Cruz, da Aliança Nacional LGBTI+: “A aliança dá apoio a esse movimento”

eu sou porque eu me encontrei mesmo na não binariedade. Eu me identifiquei com essa questão de pessoas agêneros e me sinto confortável por isso”, conta Angel. A relação familiar entre essas pessoas nem sempre é de aceitação e isso é uma das consequên-

cias que afetam o universo LGBTQIA+. “Posso dizer que o que mais me afetou foi o período de adaptação, até mesmo da minha família. Quando eu me assumi LGBTQIA+, a minha família levou um choque muito grande, teve essa fase de explicação. Exemplo da

minha mãe, mas eu fui explicando oprime simplesmente por você ser para ela e ela foi entendendo, até quem você é. Pessoas que pregam mesmo a questão do movimento o preconceito não percebem que, LGBT. Inclusive hoje ela é super de ao exercer isso, elas fazem mal boa, ela me trata pelo nome que para elas mesmas”, lamenta ela, eu gosto e é super fã da Pabllo diante de uma realidade nada fácil Vittar”, descreve Angel. enfrentada pelos LGBTQIA+. Sobre o mercado de trabalho Mesmo assim, Angel deixa uma para a classe, Angel foi enfátimensagem: “Não se sintam sozica em afirmar nhos, sozinhas as dificuldades ou sozinhes enfrentadas neste mundo. “Não existe nada por esse grupo. Não existe de errado na nossa “Na questão da nada de erranatureza, ela é linda e empregabilidade, do na nossa colorida, assim como a posso dizer que natureza, ela é nossa bandeira” pelo lado das linda e coloriempresas existe, da, assim como sim, um certo a nossa bandespreparo de deira”. como tratar a pessoa, do lugar Angel faz parte de uma organização fundada recentemente daquela pessoa. Infelizmente, na sua cidade, conhecida como muitas empresas não contratam, “Movimento LGBTQIAP+ Neves”. não possuem um espaço para Receberam a nomeação de coordeaquele grupo e, claro, há também um certo preconceito diante dessa nação de representação municipal da Aliança Nacional LGBTI+ Ribeisituação”, desabafa Angel. rão das Neves - MG. “A aliança dá Ela destaca que o preconceito apoio, subsídio e ajuda para esse é percebido até mesmo diante movimento em diversos aspectos, do sistema de governo que nós estamos inseridos. “Um goverde diversas formas. Ela abraça a no totalmente opressor, que te população LGBTQIAP +”, conclui.


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INTERSEXO

Jovem intersexo atendida pela psicanalista Maria Antonia resolveu ser uma menina. Com o acompanhamento e consenso de um psiquiatra, fez a cirurgia que transformou o pênis em uma vagina, há cerca de 10 anos

Psicanalista apresenta as questões da intersexualidade MARCELA LIMA

“E

u já atendi uma pessoa intersexual, no tempo ela não se aceitava. Tinha o corpo de menina, mas tudo nela era menino”, afirma Maria Antônia Rodrigues, 55 anos, mestre em psicanálise clínica, especialista em sexualidade humana e psicopedagogia clínica, pedagoga e letróloga. Maria Antônia relata que a paciente tinha o pensamento suicida, porque não sabia definir se era menino ou menina. Mas houve um consenso junto com o psiquiatra e ela fez uma cirurgia, há dez anos, em São Paulo. Transformou a genitália masculina em feminina e hoje ela é uma menina. Existem diversas variações de pessoas intersexuais, a maioria só sabe porque é visível. “Essa paciente começou a descobrir quando ela menstruou, tinha o pênis no corpo de uma menina. As pessoas intersexuais mais comuns são essas”, explica a psicanalista. A especialista em sexualidade humana comenta que tentou buscar a paciente para esta reportagem, mas é um passado que ela não quer lembrar. ”Então a gente tem que respeitar”, diz. Hoje o ser intersexual não é raro, estatísticas apontam que 1,7% a 2% de pessoas no mundo são intersexuais. Mudanças - Para a psicanalista, uma pessoa intersexual não é rosa e nem

azul, elas não se encaixam nestas categorias. Por exemplo, uma pessoa pode nascer com uma aparência exterior feminina, mas a anatomia dela ser masculina. Outro exemplo citado pela especialista é quando uma criança nasce com a ausência da abertura da vagina e o rapaz com o pênis anormalmente pequeno ou com o escroto dividido, com o formato mais semelhante aos lábios vaginais.

“Essa paciente começou a descobrir quando ela menstruou, tinha o pênis no corpo de uma menina” No contexto da biologia, algumas células das pessoas intersexo podem ter cromossomos XX e outras XY. “A anatomia sempre se revela no nascimento, na puberdade, quando a pessoa se depara com a infertilidade, ou quando morre e fazem a autópsia”, explica a especialista. No Brasil, quando os bebês nascem intersexo, muitos deles são submetidos a um tratamento hormonal, para não precisar operar e começar a fazer todo processo de mudança no sentido de que o corpo se torne parecido com menina ou menino. Mas é uma prática que ain-

JAKELINE BERNARDO

da não é muito aprovada, segundo Maria Antônia. Marcas - Uma das principais dificuldades enfrentadas pelo intersexo é a estigmatização de serem taxados de uma forma que os machuca muito, como anormal, hermafrodita e monstro. “Hoje o preconceito ainda é muito grande no Brasil. Tanto é que quando eles descobrem que são intersexuais, se escondem”, relata Maria. Segundo a psicanalista, a família antigamente tentava esconder o filho, com medo. Percebia quais eram as suas características mais marcantes, afeminada ou masculina e os vestiam de acordo. “Hoje eles deixam crescer para decidir o que vão querer ser, porque até então eles não sabem o que são, se é menina ou menino”, conta. Operação - As cirurgias são benéficas para alguns. “Já ouvi casos de pessoas que se arrependem de ter escolhido ser mulher e depois de ter feito a cirurgia não ter mais como ela transformar em um pênis novamente. A partir de várias leituras também podemos ver situações que nos chocam”, comenta Maria Antônia. A psicanalista e especialista em sexualidade humana deixa uma mensagem para as pessoas intersexuais. “Se ela se sentir bem, mais como menino, pois ela deve levar a vida como menino. Porque a nossa visão hoje está bem diferente”.

Maria Antônia, psicanalista e especialista em sexualidade humana, atendeu a uma jovem intersexo

Menina de 15 anos se aceita como intersexo RAINARA FERREIRA

“A

gora sei porque não menstruo, já passei por vários perrengues”, disse a jovem que preferiu ser chamada de Ana Silva. Ela aceitou a sua identidade desde pequena e conta como descobriu ser uma pessoa intersexo. Até os seus 15 anos, Ana era levada ao médico pela sua mãe. Em seu histórico-clínico sempre foi classificada como “pseudo-hermafroditismo masculino”. Apesar de ter o físico feminino, seus hormônios eram masculinos. Nasceu com um par de cromossomos XY, que se relacionam ao desenvolvimento físico de um homem. Ana Silva cresceu com aparência feminina e, ainda quando era bebê, foi descoberto que em vez de ter ovários e útero, a menina possuía testículos internos. Mesmo assim, nunca foi tomada a decisão de se submeter à cirurgia.

Chamamos pessoas com características femininas e masculinas de intersexo e não hermafroditas

Definição - A letra I da sigla LGBTQIA+ é intersexual. São pessoas que nascem com variações biológicas reprodutivas, fazendo com que o indivíduo não se encaixe nos padrões anatômicos associados ao sexo feminino ou masculino. Essas variações podem ser

apenas alterações hormonais ou nascer com genitais ambíguos, ou seja, diferentes. Isso inclui o formato do sexo, a distribuição da gordura no corpo e a disposição dos órgãos reprodutivos internos. Há procedimentos médico-cirúrgicos para casos de intersexualidade, mas cabe ressaltar que em poucos relatos os bebês inter-

“Apesar de ter o físico feminino, seus hormônios eram masculinos”

sexuais podem precisar de cirurgia de emergência, por exemplo, para conseguir urinar, mas estes procedimentos algumas vezes envolvem riscos de morte. Para a sexóloga Paula Muniz, 35 anos, de São Paulo, o que maltrata as pessoas intersexuais é o preconceito que elas enfrentam por serem diferentes, ainda que o termo “hermafrodita” não seja mais usado para classificá-las. “O sofrimento não está no fato de ser um sexo dúbio e sim a consciência de que a percep-

ção social associa termos como inusitado e assustador”, explica a sexóloga Paula. A especialista também relata que existem algumas pessoas intersexuais com os dois órgãos genitais em funcionalidade normal, mas é necessário usar apenas o que o individuo se identifica, pois um fica mais aparente e o outro mais atrofiado. Sigilo - Maria Pereira, (pseudônimo), 42 anos, mãe da jovem intersexo, sempre manteve em sigilo o caso da filha. Evitou que desde criança ela sofresse problemas psicológicos ou algum tipo de preconceito, por medo dela crescer com uma aparência diferente. A mãe de Ana contou que se sentiu pressionada pelos médicos em 2005, assinou vários termos e optou por não autorizar a cirurgia da filha. Explicou que quando ela ficasse mais velha deixaria a escolha para Ana. O apoio familiar sempre é importante em casos delicados como este. “Foi um espanto, pois como mãe, não entendia o porquê da minha filha nascer assim. Passei por dolorosas buscas para ter respostas, foram situações de dor e sofrimento, mas nunca me passou em pensamentos de rejeitá-la”, expressou Maria Pereira.


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ENTREVISTAS CIENTISTA SOCIAL ADEILSON VIANA

MESTRANDA EM PSICOLOGIA FERNANDA BRAVO RODRIGUES

“Muitos não bebem no copo de uma pessoa travesti”

“Diminuir a desigualdade e esse abismo tão grande”

FOTOS: ARQUIVO PESSOAL DE ADEILSON VIANA

IRATUÃ FREITAS SILVA

Adeilson Viana em visita a Brasília, durante o Congresso da UNE e, no detalhe, junto da bandeira LGBTQIA+

Repórter: Jakeline Bernardo

Fernanda Bravo é trans e comemora a vitória de ter se graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará

Graduado em Licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão (Uemasul), Adeilson Viana pesquisa e desenvolve projetos de extensão na área de gênero e sexualidade. Embora tenha iniciado suas pesquisas com outra perspectiva em um presídio alternativo de São Luís, a Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac), ele decidiu migrar para a área de LGBTQIA+ em 2018. O marco desta mudança se deu com sua pesquisa no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, mas, por conta da pandemia, precisou novamente mudar o campo de pesquisa para desenvolver a iniciação científica.

JAKELINE BERNARDO

Nós sabemos as dificuldades que a comunidade LGBTQIA+ enfrenta aqui fora, mas dentro do sistema prisional, o que encontram assim que são inseridos nesse âmbito? Uma primeira impressão em relação ao preconceito. A gente que está nesse campo de estudos costuma muitas vezes argumentar que a pessoa LGBT, principalmente a sigla T, que são transexuais e travestis, têm um duplo encarceramento. Elas sofrem esse duplo isolamento porque vão encontrar duas instituições que estão funcionando dentro da prisão e são cruciais para a manutenção desse preconceito. Tem a própria gestão dos presos, que não querem esse contato com LGBTs. Então é por conta disso que se cria as alas e celas LGBTs como forma de inclusão, mas que a gente vê também como forma de resguardar um pouco da vida dessas pessoas a partir do momento que entram no sistema prisional. Além das regras da gestão, eles também precisam se-

guir ordens das facções criminosas que comandam as prisões? Eles não são aceitos, são excluídos junto com os outros? Em alguns casos, a gente vai observar em vários trabalhos como essas relações também mudam dependendo do estado e da cidade. Se a gente for olhar pra São Paulo, por exemplo, eles não aceitam pessoas LGBTs

“As pessoas trans e travestis têm um recorte maior dentro dos presídios’’

dentro da facção. Eles dizem que o crime não é gay, não é transexual. E o crime a gente não está falando só do delito, aqui ele passa a ser um status para as pessoas faccionadas. Essas pessoas também se sujeitam a estar um pouco afastadas delas, então muitos não bebem no copo de uma pessoa travesti

que eles acham que vai “pegar”. Algo assim do preconceito, que é estrutural da sociedade, que vai refletir até mesmo nessas coletividades, nesse mundo do crime. Ainda sobre a questão do preconceito, nós aqui fora temos uma visão de certa forma limitada sobre a comunidade LGBTQIA+ dentro do sistema prisional. Como foi, pra você, lidar com as histórias, as situações e o que você encontrou na pesquisa? Não é uma visão tão distante da realidade, porque geralmente de uns tempos atrás, antes da criação das alas LGBTs, essas pessoas ao chegarem no sistema prisional realmente eram estupradas, eram feitas de empregadas, serviam para o prazer desses detentos. E há relatos de pessoas que foram mortas por presos. A gente vê que, apesar de tudo, muitas coisas não são feitas para amenizar esse tipo de conduta, de violência. Muitas vezes é relevado pela própria gestão para não se meter nas brigas das pessoas faccionadas e na maneira como elas gerem a prisão. É realmente muito chocante, a gente vê como as pessoas são tratadas dentro desse sistema e como isso acontece corriqueiramente.

Fernanda Bravo Rodrigues, 42 anos, é uma mulher trans, graduada em Ciências Sociais e mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Fernanda Bravo faz parte do grupo de pesquisa interdisciplinar Paralaxe, que estuda narrativas de histórias de vida de mulheres trans e suas experiências de ingresso nas Instituições de Ensino Superior (IES). Na entrevista, aborda assuntos como a cota de travestis e transexuais como método de acesso ao ensino superior. Apresenta também os conteúdos discutidos no grupo do qual participa.

ANDRESSA ROCHA

Quais são as vantagens das políticas de ações afirmativas como a cota para pessoas travestis e transexuais no âmbito de Ensino Superior? As ações afirmativas eu diria que não seriam nenhuma vantagem propriamente dita, mas uma reparação em termos históricos, de todos esses tempos que a gente tem sido negado, os corpos trans como um todo. A vantagem seria, em termos sociais, diminuir a desigualdade e esse abismo tão grande que existe entre um centro acadêmico que se diz e que se pressupõe criar poder e saberes à população como um todo. Quais são as desvantagens que surgem ou podem vir a acontecer com as vagas ofertadas por meio de cotas para as pessoas travestis e transexuais? As desvantagens seriam as mesmas coisas que acontecem em virtude das outras cotas. Se a gente fosse pensar o que se é reconhecido socialmente hoje, travestis e transexuais, essas pessoas já começam a disputar políticas públicas a partir de movimentos sociais. No caso de outros grupos,

como os não-binários, ainda há um grande abismo para que a sociedade possa compreender. Nós temos a questão das pessoas que vão querer dizer que são de uma maneira para poder obter vantagens em relação àquela cota, àquela ação afirmativa. Então eu acredito que os editais teriam que ser muito específicos, para que realmente desse certo.

“Todos esses tempos que a gente tem sido negado, os corpos trans como um todo”

Como o grupo de pesquisa que você participa discute os temas como a transfobia no ambiente educacional e os desafios da permanência das pessoas trans nas instituições de ensino? Essa permanência ainda depende muito do sujeito. A questão de colocar em pauta todo esse questionamento em

relação às práticas das nossas vivências diz muito também dos nossos tensionamentos. O que eu estou fazendo parte agora, na pós-graduação, que é o Paralaxe, é um grupo aberto a uma discussão mais interdisciplinar, que possa envolver diversos tipos de feminismos, quiçá até o transfeminismo. Mostra a sua temática, demonstra como é que você vai estudar, como essa população está reagindo com a sua pesquisa. E você começa a afetar, em efeito dominó, as pessoas que estão dentro da academia. Quais os assuntos envolvendo pessoas trans no ambiente de ensino superior são abordados no grupo de pesquisa? A gente aborda muitas questões mesmo, do geral e depois para o específico, no que diz respeito às condições de classe, de raça. A gente tem um grupo de intersecção que é um curso de extensão. Ele é interseccional entre raça, gênero e classe. Dentro deste grupo maior, a gente vai estudando essas questões, vai debatendo e joga para o público e entram pessoas de fora da academia. Essa é a proposta da extensão.


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ASSEXUAL Kamilla Garcia, atualmente professora de informática, conta suas dificuldades de autoaceitação e como superou tudo. Hoje ela é noiva de Bianca, que a entende muito bem a respeito de sua assexualidade

Assexualidade, autoaceitação e muito amor KAMILLA GARCIA

CARLLOS ALCÂNTARA GUSTAVO VALE

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uita gente não sabe o que significa a última letra da sigla LGBTQIA+. Há quem ouse dizer que são os “adeptos”, em referência aqueles que se identificam fluidamente com qualquer outra comunidade do meio, o que não só é errado, como minimiza uma galera identificada com uma orientação que possui vários espectros. As pessoas que fazem parte da comunidade assexual não se distinguem das demais da sigla. O processo de aceitação, o ódio recebido gratuitamente, o preconceito vindo da família e a invisibilidade social são só uma parte do que os assexuais, aqueles que não sentem desejos sexuais, sofrem em seu cotidiano. Quem atesta isso é a professora Kamilla Garcia: “Penso que a maior dificuldade foi aceitação, mas não dos outros, de mim mesma. Na adolescência, eu não entendia porque as crianças estavam tão ansiosas para trocar saliva ou fazer coisas com seus corpos. Porque era tão importante ter relações físicas ou se estimular sozinho mesmo”. Ao conversar sobre o processo de autodescoberta, ela diz que durante o ensino médio foi a fase mais difícil. “Quando meus amigos amadureceram nesse lado, eu fiquei para trás. Nunca tive esse ‘estalo’”, comenta, lembrando o quanto era doloroso viver esse sentimento. Hoje Kamila afirma, tranquila, que “tá tudo bem assim”. Contextos - A maior visibilidade aos que se enquadram como letra A acaba humanizando uma orientação que muitos ainda vêem como uma anormalidade, ou uma questão de quem “ainda não conheceu a pessoa certa”. Hoje, o assunto ganha espaço nas

Kamilla e Bianca pretendem morar juntas logo. O relacionamento, fruto de uma coincidência no ambiente profissional, está prestes a se eternizar

Conheça a história da letra “A” contada por assexuais CARLLOS ALCÂNTARA GUSTAVO VALE

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m uma comunidade que é duramente minimizada até mesmo pelas outras letras do universo LGBTQIA+, equívocos acabam sendo uma experiência bem frequente para aqueles que vivem a chamada “sexualidade cinza”. O maior desses boatos é que pessoas assexuais não se relacionam amorosamente, apenas pelo fato de não desenvolverem o interesse em atividades sexuais. Quem pensou que esse boato é verdade, está enganado. Um bom exemplo é a professora de informática Kamilla Garcia, que agora está noiva. “Se tudo der certo, estaremos morando juntos em setembro”, afirma, com um sorriso contagiante. E esse é um outro assunto em que os “ace’s”, como são assim definidos internacionalmente, também sofrem bastante com o preconceito. “Namorei um cara que foi uma tortura, ficava se esfregando em mim, queria por todas as maneiras transar, tinha camisinha na carteira sempre”, diz a professora, que também é autista. A cuidadora de idosos Fernanda Martinez, também compactua do mesmo sentimento: “Eu me sinto muito

triste, porque não gosto nem um pouco de sexo e muitas das vezes eu me sexualizo ou prático o ato somente para me sentir aceita ou para não me sentir sozinha”. É importante destacar, ainda, a relação entre a família, que nem sempre é boa, o que é algo em comum entre Kamilla e Fernanda Martinez, que ouvem as mesmas coisas sobre o assunto: que “é frescura”, “não achei a pessoa certa”, ou um

“Fui descobrir minha assexualidade nesse ano mesmo, quando percebi que não sinto prazer” “trauma escondido”. “Eu não consigo ter afeto com a minha família também, mas com outras pessoas eu sinto muita falta. Só não quero ficar para o resto da vida sozinha, tenho medo disso”, diz Fernanda, preocupada e triste. Ela confessa que sempre acaba ficando sozinha para não fazer o que não tem vontade e isso a incomoda. “Por isso, às vezes fico um pouco triste, queria que as pessoas acreditassem em relacionamentos sem sexo”, comenta Fernanda.

Frustração - Fernanda também compartilha algo que todo adolescente do meio vive no processo de autodescoberta: “Perdi minha virgindade aos 14 anos, mas foi mais porque eu gostava pra caramba da pessoa, aí depois ela vacilou comigo. Fui descobrir minha assexualidade nesse ano mesmo, quando percebi que não sinto prazer em fazer e não é uma coisa que eu coloco em primeiro lugar na minha vida”. Com uma leve tristeza no olhar, a cuidadora conta as experiências que se assimilam aos colegas das outras letras, mas que infelizmente são invisibilizadas, como as outras da sigla. “Acho que é bem comum qualquer adulto assexual dizer que se sentiu frustrado por não se interessar por sexo durante a adolescência. É a fase escolar, quando é o assunto do momento e é onde quem não sente o tesão, se sente excluído, doente, anormal”, afirma Regina Santiago, nome fictício. Ela é uma mulher assexual que fica distante das atenções por medo do preconceito da família e dos colegas de trabalho. Regina comenta que é difícil encontrar um par que respeite ou corresponda aos seus ensejos sentimentais em relação a esse aspecto, mas destaca que não é impossível. E informa que grupos de redes sociais são um “ótimo gancho para ser fisgado”, como brinca.

pesquisas científicas, da Psicologia à Comunicação Social. Basta uma pesquisa no Google ou no YouTube, para conhecer mais sobre as áreas cinzas da comunidade LGBTQIA+. No ano passado, a série Sex Education da Netflix abordou em um episódio o assunto da assexualidade. A personagem Florence explica que é como se tivesse um banquete com tudo que ela gosta, porém, não sente vontade de comer. “Pesquisei sobre o assunto e me encontrei. Comecei a participar de grupos e a seguir páginas com outras pessoas como eu. Sempre acreditei que tivesse problemas ou traumas que não lembro, porém, hoje percebo que sou extremamente normal”, conta Fernanda Martinez, com um semblante tranquilo. Ela é participante do “Clube dos Assexuais”, um grupo no Facebook que reúne todos os que se identificam com esta condição, independente do seu espectro. O espaço virtual surge como a oportunidade daqueles que pensavam que eram doentes ou anormais, ou que estavam errados, e agora chegaram à comunidade para conhecer não apenas sobre a sexualidade, mas também sobre si. É um grande auxílio para quem deseja conhecer mais das comunidades minimizadas, bem como agora, no processo de apuração desta reportagem. “Esses grupos são um ótimo serviço não só para quem vive a nossa sexualidade, mas quem ainda não se descobriu ou quer saber mais. Afinal, são pessoas que vivem o desconhecido”, diz Regina Santiago, nome fictício, em uma conversa discreta, na qual preferiu não se identificar por ainda não ter expressado publicamente a sua orientação. Ela lembra, entretanto, que essa convivência interna “propicia a formação de uma rede de pessoas que auxiliam aqueles que estão perdidos com a orientação sexual”.

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Fernanda Martinez diz que os “aces” têm, sim, relacionamentos afetuosos, ainda que não tenham relações sexuais


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+ (Mais) Ao assumir a orientação sexual, os pansexuais são rotulados diariamente como indecisos, pelo fato de não precisarem escolher necessariamente o lado A ou B. Para eles, o mais importante é sentir o amor

Pansexuais: livres para amar e cegos aos estereótipos

BIANCA REIS

NAYRA MORAES

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ansexualidade? Há pessoas que na hora de se relacionar com outras, não levam em consideração a questão da identidade de gênero ou sexo biológico. “Para mim, o mais importante é sentir o amor sem ligar para estereótipo ou gênero”, explica Vanderlene Pereira, 22 anos, ao tratar da sua identificação com a orientação pansexual. Ela conta que a princípio se identificava como bissexual, por não ter conhecimento sobre o termo pansexual. “No início eu me sentia um pouco diferente das demais.” Devido ao fato de muitos famosos terem se identificado com a comunidade, gerando uma maior representatividade, o pansexualismo ganhou visibilidade, fazendo com que as pessoas tenham bases para se reconhecerem como tais. “Eu realmente me identifiquei muito. Sou esse tipo de pessoa, então não tem nada de errado comigo”, afirma Vanderlene. A visibilidade ainda é menor se comparada a outros gêneros. “Pansexuais sempre vivem na sombra dos bissexuais, a importância da

representatividade é para mudar isso”, explica Ana Carolina, 18 anos. Para a estudante, a identificação também não foi de imediato. A princípio, ela pensava que era lésbica, mas hoje, não tem mais dúvida em relação à sua orientação sexual. “Sou bem mais uma conversa e uma vibe boa, antes de saber do que a pessoa tem entre as pernas”, acredita Ana.

“Amor é amor e somos livres para sentir, ou pelo menos deveríamos ser”

Vanderlene, desde que nasceu, nunca viu problema em se relacionar com pessoas independente do gênero. “Amor é amor e somos livres para sentir, ou pelo menos deveríamos ser.” Ela diz que não houve a necessidade de contar para sua família sobre sua orientação sexual. “A família da gente sente isso, ela sabe desde quando a gente nasce.” Vanderlene explica que da mesma forma que um heterosexual não

anuncia que é hetero, ela também não precisa fazer essa revelação. Preconceito - Marya Eduarda, 21 anos, diz que pansexuais são vítimas de preconceito, até mesmo na comunidade LGBTQIA+. “Tem muita gente que não respeita e não gosta.” Bianca Reis, 21 anos, acrescenta que no contexto da classe, algumas pessoas entendem que os pansexuais devem ser classificados apenas como hetero ou lésbica. “Me chamavam muito de lésbica e diziam que eu queria inventar moda.” Bianca conta que pelo fato de ser mulher, o sofrimento ainda é maior, por ainda ser sexualizada envolvendo sua orientação sexual. Marya, por sua vez, explica que algo muito comum acontece com os pansexuais: o fato de serem confundidos com outras orientações de acordo com quem estão se relacionando no momento. “Não é porque namoro uma mulher que sou lésbica”, explica Marya. Por ter surgido por volta dos anos 1990, quando as pessoas não se viam incluídas em outras orientações, o conceito de pansexualidade, por muitas vezes, acaba não sendo levado a sério e costuma ser

Bianca Reis diz que nunca escondeu sua sexualidade, pois não liga para o que os outros dizem

visto como uma forma de chamar atenção. Bianca explica que a comunidade já esteve muito engajada nas causas que envolvem a classe, porém, já estão cansados de se explicar. Segundo ela, existe um grande número de pessoas que conhecem a causa e compartilham do mesmo sentimento, só que na medida que cresce o lado bom, o ruim também aumenta.

Em relação às pessoas que trocam o termo orientação sexual por escolha sexual, Ana afirma que “se fosse possível escolher, ninguém iria querer sofrer e sentir medo só em sair na rua”. Em junho de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou a criminalização da LGBTfobia, prática discriminatória contra a liberdade e os direitos fundamentais da comunidade.

Representação: apoio e escudo contra o preconceito DANILO CÂNDIDO

GIULLIANE ANDRADE

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Fotógrafo Jefferson Carvalho participa modelando para trabalho de colegas com o objetivo de dar mais visibilidade à comunidade LGBTQIA+

epresentatividade é uma palavra que tem um significado muito importante em qualquer sociedade na qual o indivíduo esteja inserido. E não seria diferente na comunidade LGBTQIA+, como conta o fotógrafo, cantor e compositor de 25 anos, Jefferson Carvalho. O fotógrafo, que é gay, relata que a representação de artistas e de pessoas da comunidade foi expressiva em seu processo de autoconhecimento, principalmente em sua vida profissional. “A representatividade, por si só, já tem uma força. Eu acho que é muito importante a gente se ver nos lugares. Eu sou um artista que sonha em cantar em grandes estádios e ganhar muitos prêmios. É muito importante ver pessoas como eu, que representam e são a imagem da minoria nesses lugares”, acredita Jefferson. O compositor expõe que às vezes sofre preconceito pelo que faz. “Desde o início da minha carreira eu venho sofrendo muitos boicotes. Primeiro por ser um homem gay, segundo por ser um artista que está fazendo um trabalho fora da caixinha”, diz Jefferson. Ele lançou um ensaio fotográfico intitulado “Gênero”, que aborda o direito de as pessoas vestirem a roupa que quiserem, independente de serem designadas para um público masculino ou feminino. Ele explica que essa foi uma das várias formas de representar a sociedade LGBTQIA+ com o seu trabalho. Jefferson acredita na importância de se fundar um grupo que seja voltado para comunidade LGB-

TQIA+ em Imperatriz. Segundo ele, a existência de grupos assim será útil para propagar a informação, porque existem muitas questões que o público em geral precisa ser esclarecido. “A gente se vê rodeado de preconceito, seja pela minha orientação sexual, pela minha roupa ou cabelo. Às vezes a gente quer um apoio, ou precisa de alguma informação que não está muito fácil aí, na nossa cara. E eu acho que um grupo voltado para a comunidade seria relevante para levar uma informação geral.” Visibilidade - O jornalista Kelver Padilha, de 28 anos, também resolveu usar o seu trabalho como forma de representar a comunidade LGBTQIA+. Ele é formado pela Universidade Federal do Maranhão e produziu um documentário chamado “Marginais-Vozes de resistência LGBT em Imperatriz”, para o seu trabalho de conclusão de curso. O audiovisual de 19 minutos relata histórias reais de pessoas LGBTQIA+. Como conta Kelver, esse foi um jeito de poder dar voz e visibilidade para uma comunidade a qual ele pertence e sempre sentiu que é silenciada nas grandes mídias. “Fazer um documentário falando sobre LGBTQIA+ foi um jeito de ao mesmo tempo me ver representado, representar nosso movimento e também, de algum modo, contribuir com esse debate, levando até as pessoas nosso ponto de vista. Que somos pessoas normais, temos nossos trabalhos, nossos relacionamentos e só queremos viver em paz e poder andar nas ruas sem medo de ser agredidos e assassinados”, afirma o jornalista.


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HOMOFOBIA E EXCLUSÃO Viver numa sociedade que possui uma bagagem cultural e religiosa conservadora é um desafio diário para a comunidade LGBTQIA+, que tem que lidar com o preconceito em todos os lugares, até dentro de casa CRISTINA ARAÚJO

Comunidade LGBTQIA+ sofre com a homofobia JAINARA OLIVEIRA

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titudes homofóbicas contra a comunidade LGBTQIA+ são praticadas por uma grande parcela da sociedade. Segundo o levantamento realizado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), em 2020, houve 237 vítimas da homotransfobia no Brasil. Ser quem é de verdade é um processo doloroso e difícil quando o preconceito está por todos os lados. É o caso de Cristina Araújo, 24 anos, que assumiu a sua sexualidade aos 14 e teve que lidar com as atitudes homofóbicas no seu âmbito familiar. Além da rejeição dos pais, Cristina sofreu com a reação de alguns amigos, que se afastaram. Desde que se assumiu, ela nunca parou de sofrer preconceito e homofobia. “A gente fica se assumindo o resto da vida, sempre tem olhares ou piadinhas indesejadas. Aprendemos a lidar com as situações de cabeça erguida, mas no início é difícil’’, diz Cristina. Por ser lésbica, ela teve que lidar com várias situações homofóbicas, como ser demitida do emprego, além de ter sido perseguida e ameaçada. “Pessoas desconhecidas me ligavam para me xingar de sapatão, e me desejar a morte”, relata Cristina. Por achar que ser lésbica era errado e pelas agressões verbais

e pressões psicológicas que sofreu, ela tentou suicídio. “Já chorei pedindo a Deus para tirar do meu peito sentimentos por uma garota”, diz Cristina. Hoje ela tem orgulho de ser quem é, por ter enfrentado o preconceito todos os dias. “Nunca vai ser fácil ser quem você é sem sofrer piadinhas e ser rejeitada. Deve ser por isso que a gente está sempre sorrindo. Ou a gente ri da desgraça ou a gente vai junto com ela'', desabafa Cristina.

“Já chorei pedindo a Deus para tirar do meu peito sentimentos por uma garota”

Violência - Jullyana Monteiro da Costa, 20 anos, também teve que lidar com a homofobia no seu âmbito familiar. Ela foi vítima de agressão verbal, psicológica e física. “Meu pai me espancava e já tentou me enforcar, falou que preferia me ver morta do que lésbica”, relata Jullyana. Em 2017, por não ver saída no relacionamento com seus pais, ela tentou suícidio. “Faz falta sentir vontade de conversar com os pais sobre coisas do dia a dia, mas nossa

orientação sexual está no nosso dia a dia. Então como é que vamos conversar sobre isso?”, desabafa. A religião conservadora contribui para as práticas homofóbicas. Como é o caso dos pais cristãos de João Miguel, como prefere ser identificado, de 21 anos, que veem a sexualidade do filho como algo errado e diabólico. “Eles diziam que eu poderia influenciar meus primos, ou outras pessoas, e que iria passar uma imagem negativa da família”. Os pais de João Miguel, convictos de que ele estava possuído por demônios, decidiram chamar dois pastores para “expulsar e libertá-lo” dos espíritos malignos. “Todo dia vinham dois pastores na minha casa e foi assim por um longo tempo”, diz ele. Sua família passou a lhe excluir e seu pai começou a praticar abusos psicológicos e agressões físicas, que só se intensificaram conforme as visitas dos pastores não tinham resultado. Por não ver saída para todas as situações homofóbicas que estava recebendo da família, João Miguel tentou o suicídio. “Eu achava que não tinha condição de suportar tudo aquilo”. Ele ressalta, no entanto, que, apesar de toda situação traumatizante que passou com sua família, hoje se considera uma pessoa muito feliz e que tem orgulho de fazer parte da comunidade LGBTQIA+”.

Cristina Araújo nunca desistiu de lutar por igualdade e paz para a comunidade LGBTQIA+

“Se os entrevistadores não fossem com a minha cara, já era” BRUNO CARVALHO MARCOS FEITOSA

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disputa por uma vaga de trabalho tem se tornado um desafio cada vez mais acirrado. Mas, para a comunidade LGBTQIA+, a inserção no mercado pode ser ainda mais difícil. Jéssica da Silva, 36 anos, transexual, sabe exatamente o que significa estar à margem da sociedade e não conseguir um emprego para satisfazer suas necessidades mais básicas. Desde os 15 anos, buscava por um ofício e somente 21 anos depois, conseguiu viver a experiência de estar no mercado de trabalho. “Por conta do preconceito e por ser trans, as portas se fecharam sem sequer eu ter uma chance de mostrar o que eu posso realizar”, afirma Jéssica. Após várias tentativas sem sucesso, ela teve que ir embora da sua cidade, São Raimundo do Doca Bezerra, para buscar uma oportunidade em Valparaíso de Goiás. Ela sempre acreditou no amanhã e hoje vive a melhor fase da sua vida, tendo conquistado a oportunidade do emprego e de estabelecer uma boa convivência com os colegas de trabalho. “As pessoas me tratam com respeito, me chamam de Jéssica. Uso o banheiro feminino e me sinto bem assim.”

Leis devem ser criadas em prol da inclusão no mercado de trabalho, acredita Bruno Carvalho

Desde os 16 anos, Matheus Rodrigues, bissexual, faz cursos técnicos em administração para ingressar no mercado de trabalho. Aos 20 anos surgiu a primeira vaga de jovem aprendiz e não pensou duas vezes, agarrou a oportunidade. Com o contrato de nove meses na modalidade, o jovem não esperava que a experiência seria tão dolorosa. Além do chefe ser homofóbico, foi destacado para um setor no qual os colegas de trabalho eram bastante preconceituosos. “Ouvia constantemente piadinhas sobre o meu jeito, sentia raiva por não bater de frente, porque eu necessitava do emprego.” Matheus sofreu diversos assédios psicológicos e, por ser bixessual, não conseguiu a efetivação. “A empresa optou por contratar uma pessoa não capacitada e acabou não me contratando por causa da minha sexualidade”. O transexual José Henrique (pseudônimo), 20 anos, se sente totalmente excluído e marginalizado. Sempre buscou por um emprego, mas nunca conseguiu passar nas entrevistas por ser da comunidade LGBTQIA+. Depois de várias tentativas, Henrique desistiu de ingressar no mercado de trabalho quando

percebeu que para entrar não era necessário somente o seu potencial. “Não importava minha capacitação, se os entrevistadores não fossem com minha cara, já era”, reclama José. Inclusão - Bruno Carvalho logo aos cinco anos soube que era gay, pois sempre se identificou como tal. “Sempre fui afeminado e sempre gostei de coisas que não eram denominadas para mim segundo o padrão social.” Família e amigos sempre o apoiaram e o acolheram com todo amor e carinho. Aos 22 anos, Bruno possui três experiências de emprego. E conta que em nenhum deles sofreu qualquer preconceito ou discriminação. “Sou bastante privilegiado, trabalhei nas empresas e sempre foram educados, respeitosos e acolhedores, nunca senti indiferenças”. Por mais que tenha sido favorecido, Bruno afirma que nem todos têm a mesma sorte. A realidade do mercado de trabalho para a comunidade é bastante precária. Bruno acredita que uma lei deve ser criada para garantir o acesso de pessoas LGBTQIA+ ao mercado trabalhista e que cada empresa possa ter no mínimo duas pessoas da comunidade.


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ESPIRITUALIDADE Algumas religiões costumam não apoiar a prática homossexual, enquanto outras recebem de braços abertos. Embora os fiéis LGBTQIA+ sejam acolhidos, os preconceitos e desconforto por parte de outras pessoas continuam

Orientação sexual não é obstáculo para exercer a espiritualidade púlpito. Eles não apontam o dedo, mas restringem”, explica Abmael. Apesar dos olhares e das restrições, ele deseja continuar em sua religião. “Eu gosto de ir para igreja e me sinto bem lá, não por causa das pessoas e sim pelo que acredito.”

LORRANY LOPES

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homossexualidade sempre foi visualizada e explorada por diferentes perspectivas nas diversas religiões. Para exemplificar um pouco dessa realidade, seguimos com duas diferentes histórias de fé e acolhimento. Acolhimento - Enquanto algumas Abmael Fernandes, de 22 anos, se religiões vão na contramão do que identifica como gay. Desde a infânse prega sobre o amor ao próximo, cia foi criado na igreja Adventista. existem outras que aceitam aberEm 2018, quando entrou para a fatamente a comunidade LGBTQIA+, culdade, descobriu como algumas de sua atração por hoorigem afro-brasimens, mas somente O candomblé “Quem pratica tal coisa leira. no início de 2020 se sempre acolheu não pode cantar, não a todos, indepenassumiu. pode ler lá na frente do dente de cor, raça, Quando contou para família gênero e orientapúlpito” surgiram várias ção sexual. perguntas e alguWalisson da mas relacionadas à religião. Embora Silva, de 19 anos, se identifica como tenha conhecimento da Bíblia sobre gay e é casado com Gabriel Pereira, a sexualidade, ele tem seu próprio de 23, desde 2019. Frequenta o canmodo de enxergar a questão. “Acredomblé desde os 15 e, antes de entrar dito no que tem escrito na Bíblia, para religião, já se identificava com que Deus criou a mulher para o hosua atual orientação sexual. mem. É verdade e está lá. Não que eu Quando se assumiu, houve reação esteja errado, apenas não sigo isso”, por parte da família, que ficou em diz Abmael. choque com a notícia. Mas em sua reSegundo ele, em sua igreja os ligião não aconteceu nenhum tipo de homossexuais são restringidos de mudança. “O candomblé é só amor e exercer atividades, por sua orientacarinho. Quando acolhem, não olham ção ser considerada pecado. Podem quem, independente do que a pessoa apenas frequentar, mas sem particifez ou deixou de fazer”, conta. par. “Quem pratica tal coisa não pode Recordando de algumas situações, cantar, não pode ler lá na frente do Walisson menciona os que não pos-

suem conhecimento sobre candomblé e homossexualidade. “As pessoas criticam dizendo que só adoramos espíritos e que somos gays por adorarmos espíritos.” Em resposta às críticas sobre o que passa fora de sua

comunidade e religião, Walisson esclarece que tanto no candomblé, quanto na umbanda ou na quimbanda, primeiramente vem Deus. “Da mesma forma que em outras religiões tem crisma e batismos, na nossa é do mesmo jeito, como as raspagens de cabeça e os pratos que guardamos para os santos realizarem limpezas”, explica. Em relação ao que as pessoas falam sobre o homem e a mulher que foram feitos um para o outro,

cada indivíduo tem sua interpretação, apesar não existir, de fato, uma regra universal. “Eles acreditam na Bíblia, falam pela reprodução, que é

só o homem e a mulher. Nós, LGBTQIA+, refletimos mais nos sentimentos, carinho, amor e união”, conta Gabriel, ao lado de Walisson.

Amar ao próximo é também viver e acolher as diversidades Oferenda a Oxossi é feita para agradecer e pedir fartura para o povo

ALINE MARINHO

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eguir uma religião não é muito comum na comunidade LGBTQIA+, pois preceitos escritos em alguns livros sagrados, como a Bíblia, não apoiam a prática. Na Umbanda e no Santo Daime, entretanto, a orientação sexual do indivíduo não é colocada como um impedimento para participar dos rituais. Mas prega uma paz de espírito que é necessária para todos.

O estudante, que prefere ser chamado de Pedro, 20 anos, frequenta a umbanda desde 2016. Para ele, é sua segunda família e fazer parte dela é superar o preconceito sobre sua orientação sexual e ter encontrado sua paz interior que tanto precisava. Desde os 7 anos, Pedro já se sentia atraído por meninos e meninas, mas para ele era normal. Com o passar do tempo, começou a sentir o preconceito por ser umbandista e bissexual, até

mesmo pelas pessoas próximas. Começou na umbanda, por influência da mãe, que já era praticante, e logo se encantou pela doutrina “zero preconceito”. A orientação sexual não é considerada algo importante ao ponto de ser julgada como errada ou certa para a Umbanda, pois as entidades podem ser sentidas por todos na cerimônia. Na família, além de Pedro, sua irmã também faz parte da comunidade LGBTQIA+ e assumiu logo após ter o contato com a religião. “Minha irmã sentiu a liberdade de se assumir, depois de entrar no terreiro. Inclusive começou a namorar uma menina do terreiro”. A sexualidade de Pedro ainda é um assunto delicado na família, já que a aceitação é a parte difícil. Porém, estar no terreiro, com pessoas que prestam suporte, faz com que ele não se sinta pressionado a mentir, mas uma sensação de liberdade para ser quem ele é. “Minha religião é muito perfeita, muito maravilhosa”, frisa. Daime - Já o estudante que prefere ser chamado de Lucas Sousa, 24 anos, é gay e participa da religião do Santo Daime. Segundo ele, nunca presenciou uma exclusão por parte dos outros seguidores. “Em nenhum momento sofri julgamentos e preconceito”, diz. Lucas já foi católico como sua família, que ainda são atuantes, mas não teve boas experiências no catolicismo. “Minhas vivências, até certo ponto, não foram tão positivas, chega aquele mo-

mento da idade que a gente começa a se descobrir”, destaca. Fundada no Acre pelo maranhense Raimundo Irineu Serra, a doutrina do Santo Daime é uma religião voltada ao

“O medo vem daqui de fora, quando você chega lá, você é quem você é”

crescimento e fortalecimento da espiritualidade. E também tem fortes ligações com religiões cristãs e conexão com o espiritismo e o xamanismo. O Santo Daime tem o seu ritual e uma força espiritual a ser seguida. Mas, antes, o participante passa por entrevista e preenche uma ficha de anamnese (exi-

gida por lei), pois não são todas as pessoas que podem participar do ritual do chá da Ayahuasca. Em algumas situações como gravidez, esquizofrenia e uso de medicamentos controlados, o chá pode provocar reações adversas. A família de Lucas sabe de sua orientação sexual, mas não chega a ser um assunto falado abertamente em casa. Já o Santo Daime a mãe sabe, embora o restante da família não. “Não tenho muito contato com eles”, diz. Apesar de se sentir seguro sobre quem é e o que pratica, Lucas diz que existem pessoas que não estão dispostas a respeitar. E na hora de falar sobre a religião e sexualidade, ele impõe limites, mas está sempre disposto a se abrir para as pessoas sobre sua realização.

Lucas Sousa em cerimônia do Daime: “Chega um momento da idade que a gente começa a se descobrir”


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FAMÍLIA E HOMOSSEXUALIDADE Casal se mantém unido diante das adversidades e, embora o preconceito seja algo constante, elas buscam superá-lo e ir atrás de direitos, como a inserção de seus sobrenomes no da futura neta, Helena

Descoberta, aceitação, amor e vida a dois WILLIANA COSTA

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halles Gabriel Ribeiro dos Santos, 24 anos, estudante de Direito, é casado há dois com Amanda Rayara, que está grávida de nove meses. E quando tinha apenas 7 anos viu sua mãe, a administradora Gercilene Ribeiro, já divorciada de seu pai, se casar novamente, desta vez com uma mulher. Amanda diz que no início do relacionamento com Thalles temia a reação de sua família, bastante religiosa, pois provavelmente reprovariam a união dos dois. Contudo, a atitude deles surpreendeu a todos. Ela conta que o relacionamento veio a se consolidar após ambos apresentarem seus pais. “Quando nos conhecemos, ele falou que tinha duas mães. Fiquei curiosa e ansiosa para conhecê-las. Elas me acolheram e hoje também são minha família”, conta Amanda. O casal explica que Helena, sua primeira filha, irá crescer com os mesmos princípios que eles, respeitando a individualidade e as diferenças de cada pessoa. Quanto às avós, são enfáticos em afirmar que esperam que o cotidiano mostre à “pequena” tudo o que ela

vai precisar saber sobre pluralidade no amor. “Acredito que será um processo natural”, pontua o filho Thalles. Gercilene conta que se descobriu lésbica aos 19 anos, assim que se separou do pai de Thalles. “Comecei a namorar com ele ainda muito jovem, tinha apenas 14 anos. Foi meu primeiro namorado”, relembra. Resistência - A partir de então, Gercilene recorda que passou a enxergar o mundo com outros olhos. Foi nessa fase que teve seu primeiro envolvimento com alguém do mesmo sexo. Ao partici-

par para a família sobre a descoberta em relação à sua orientação sexual, Gercilene enfrentou muita resistência. E de acordo com ela, enfrenta até hoje por parte de sua mãe, que embora não comente sobre o assunto e demonstre carinho, optou por manter certa distância. “Se você chegar na casa dela, em Belém, e perguntar por mim, ela irá responder o seguinte: ‘Tá morando lá em Imperatriz com uma amiga dela!’” Ainda sobre preconceito, ela desabafa que ao chegar com sua esposa em algumas lojas e estabelecimentos, os atendentes perguntam se as duas são amigas ou irmãs, e quando ouvem que são casadas perdem totalmente a fala. “É como se fosse um baque, muitos ainda se sentem surpresos ou não aceitam”. Já sua esposa Eliane, de família evangélica, temia principalmente a reação de seu pai, considerado bastante rígido. No entanto, ele abraçou e acolheu a companheira da filha. “Hoje eles brincam e meu pai diz: ‘Ela é meu genro preferido!’”. No hospital em que trabalha, Eliane conta que existem colegas que são reli-

Após 17 anos de casamento, casal homoafetivo constrói família e se consolida com a chegada de um novo membro

ELIANE RIBEIRO

Felicidade e ansiedade marca a espera de Helena, primeira netinha do casal Eliane e Gerssilene

giosas, e às vezes surgem piadinhas as quais busca relevar. “Gostaria que as pessoas tivessem mais respeito. Acredito que a abordagem do tema, embora bastante debatido, mas ainda considerado tabu, poderia começar nas escolas, para que tenhamos uma sociedade mais consciente”. O casal relatou, em meio às lágrimas de felicidade, sobre sua conquista em colocar seus sobrenomes na futura neta. “Isso, para nós, é uma grande vitória, pois eu

queria ter colocado o sobrenome da Eliane no meu filho, porque foi ela quem criou ele e deu o amor de pai”. No final do bate papo, Thales fez questão de externar seu sentimento sobre a madrasta, a qual carinhosamente chama de tia, e disse: “Tudo o que eu sou e quem sou devo e agradeço a ela. Foi ela quem me ensinou a ser íntegro. Ela é a minha base, juntamente com minha mãe. Sou grato por elas existirem em minha vida”!

“Sempre se referem ao meu casamento como se não existisse” WALLISSON SANTOS

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pesar de vermos histórias de superação relacionadas aos problemas históricos da nossa sociedade em razão do preconceito enraizado aos homossexuais, encontramos, em sua maioria, casos de pessoas traumatizadas e que preferem resguardar o relacionamento da sociedade e da própria família. Como no caso da especialista em design gráfico Luísa, 25 anos, e da educadora física Soraya, 27, nomes fictícios já que ambas não desejam expor seus nomes e os rostos devido aos problemas familiares pelo relacionamento. Luísa conta que a descoberta da sua orientação sexual se deu durante a adolescência, período em que os sonhos, convicções e desejos são questionados diariamente. “Descobri por volta dos 14 anos. Antes disso, não havia despertado interesse por nenhum gênero específico. Foi uma descoberta tranquila dentro de mim, mas conturbada em meio à minha família”, analisa. Ela ainda relata que essa descoberta pessoal não foi imposta por pessoas ou traumática como muitos pensam, mas sim, que floresceu na “idade de descoberta”. “Foi o mais natural possível. Nunca me incomodei ou achei que deveria ter atração pelo sexo oposto. Foi algo espontâneo e normal pra mim”, relembra.

Intolerância - Embora seja resolvida consigo mesma e com o modo de vida que leva, Luísa e sua parceira enfrentam o lado amargo do preconceito velado dos seus familiares e de pessoas do seu dia a dia. “A maior parte da minha família é de uma religiosidade extrema. Sofri e sofro muito com a intolerância. Sempre se referem ao meu casamento como se ele não existisse ou como se ele fosse acabar porque acreditam que eu vou ser ‘salva’ ou ser ‘curada’ da homossexualidade”, diz, emocionada. Ela ainda lamenta que o seu casamento seja tratado como nada. “Até hoje a minha família não aceita a minha esposa. Ela não vai a reuniões familiares ou a qualquer lugar que eles estejam”, desabafa. Luísa revela que o olhar que ela analisa o seu relacionamento é bem diferente daquele que a sociedade tem ou de pessoas da própria família. Ela desabafa e diz que vê uma relação legítima que existe e tem os mesmos direitos que um casal hétero e que carrega marcas pesadas como qualquer outra. Quando fala sobre a sua sexualidade e a opinião da sua família, logo aparecem em Luísa feridas da adolescência que deram frutos na personalidade e na mulher que hoje ela é. “Não carrego nenhum trauma da infância propriamente dito. Mas na adolescência existiram muitos comentários, como: ‘anda direito, tá andando igual macho’, ‘vista esse vestido’, ‘não

corta o cabelo’, o que querendo ou não acabou marcando negativamente minha vida”, recorda Luísa. Para deixar registrado, ela busca algo simples em definitivo. “Respeito a vida de cada um, então respeitem a minha. Se você não acha certo namorar com uma pessoa do mesmo sexo, então não namore. Não precisa opinar sobre a vida do outro”, aconselha, em tom de desabafo.

FOTOS: LUÍSA

Ensaio do casal Luisa e Soraya em um hotel para recordação da viagem comemorativa do relacionamento


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