Escritos, de Maria do Céu Diel

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Maria do Céu Diel

Escritos

1ª Edição Campinas

2011


Copyright © 2011 Maria do Céu Diel de Oliveira Todos os direitos reservados

ISBN

978-85-64741-00-3 imagem da capa

Esperança, de Alciato, em Emblemata, 1531 imagens do miolo

páginas 52,53 e 61 - fotografias e pinturas da autora páginas 69, 72 e 73 - fotografias da autora sobre obras de Milton de Almeida Direitos reservados a

Império do Livro Rua Padre Antônio Joaquim, 102 Bosque 13026-060 - Campinas - SP - Brasil Tel. (19) 2511 0544


Índice Sobre as viagens e suas memórias, ideias de deslocamento e cenografias da memória

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Desenho como texto de cultura: imagens estéticas como imagens políticas 20 El dibujo como texto cultural: imágenes estéticas como imágenes políticas 21 Notas sobre a criança: fantasia, educação e memória 36 Note sul bambino: fantasia, educazione e memoria 37 A pedagogia da escuta 48 A falsa doação de Constantino 55 Cartas 59 Epiderme da Memória nas pinturas de Milton de Almeida 61 Três quartos com vista 70 Para Julia Ziviani 76 Onde foi que eu vi essa ex-foto, onde foi que eu vivi? 84 Para Adriano e seus Jardins de Mistura 87 Catedrais para a memória 94 Cattedrali per la memoria 95



Sobre as viagens e suas memórias, ideias de deslocamento e cenografias da memória A propósito do convite do Prof. Antonio Hildebrando para uma conversa com alunos de Teatro - Belo Horizonte - 2011

Inicio aqui este encontro com um convite para uma viagem no universo das reminiscências e das memórias. Convidarei alguns autores e pensadores que, através de suas viagens como personagens ou peregrinos pelo mundo da vida após a morte - Dante - ou pelo país do amor - Collona - pela existência terrena, miserável e permeada de incessantes provações como em Larazilho de Tormes e pela vertigem ficcional de países inventados porém figurados na cartografia como o Preste João das Índias. Não poderia deixar de evocar entre nós Orfeu, o semideus dos pastores e sua terrifica viagem aos infernos,

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fracassada pela curiosidade, e seu retorno ao Olimpo, na versão dourada da ópera de Monteverdi. Com ele pretendo retornar à casa do pai, como um viajante transtornado, mas não transformado. Como escreve Onfray,1 “Viajar conduz inexoravelmente à subjetividade. Dividida, fragmentada, espalhada ou compacta, é sempre diante dela que acabamos por chegar, como diante de um espelho que nos convida a fazer um balanço de nosso trajeto socrático: o que aprendi de mim? O que posso saber com mais certeza do que antes da minha partida?” E ainda, “Os filósofos da Antiguidade grega sabiam a função formadora do deslocamento. Todos percorreram a bacia do Mediterrâneo, abandonaram a Europa pela África, viajaram até o Oriente Próximo, depois até o Extremo Oriente: Líbia, Egito, Mesopotâmia, China ou mesmo Índia. A Grécia, matriz do continete europeu, vai buscar nas águas do Mediterrâneo e trazer para Atenas a astronomia, as matemáticas, a filosofia, o comércio, a poesia, a geografia, a geometria, a arquitetura e o monoteísmo.” E conclui, evocando nobres conhecidos: “Pitágoras, Demócrito e Platão fabricam o Ocidente ao aclimatarem as cifras e os números egípicios, ao desdobrarem os mapas celestes caldeus, ao copiarem a sabedoria dos gimnosofistas indianos ou etíopes, ao dissertarem sobre as cosmogonias mesopotâmicas, ao vistarem os cirenaicos junto ao deserto da Líbia, ao reativarem ensinamentos recebidos talvez na China. (...) As redes da época funcionavam com capacidades consideráveis, os homens circulavam em quantidade ao mesmo tempo que os bens, as riquezas e também as ideias. Viajar supunha então seguir estas passagens, misturar-se às energias que irrigavam o território mediterrâneo a partir de países próximos e culturuas circunvizinhas. Ir de um ponto ao outro, ontem como hoje, depende menos da experiência histórica ou geográfica

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quantificável por um historiador com Braudel que da experiência antológica e metafísica mensurada por filósofos, poetas e artistas. Para além da história quantitativa revela-se, frágil e nova, uma geografia poética.” Tomo como mote a geografia poética proposta por Onfray para convocar os poetas que desejo que figurem entre nós, pois como ele acredito que “a viagem começa numa biblioteca.” O viajante arrisca perder-se ou retornar para um lugar que já não reconhece - estará tranformado. Sua metaformose pretende espelhar a quem pertenceu os emblemas de sua transformação. Narrar, mostrar, exemplificar, comparar e talvez, escrever, representar e falar por imagens: são as formas de preencher o inenarrável de uma viagem. Esta imagem ficcional de si revela-se quando transforma-se em personagem e peregrino de seu cenário de percurso. Inscreve seu corpo neste lugar memorável e delega a este corpo sua experiência de vida, desejando em cada detalhe vivido um desenho que permita a rememoração. Dentre estes viajantes - peregrinos-personagens está Dante, quando personagem de sua Commedia. Quem leu Dante, dele se recorda: após ter vencido seu temor e insegurança na floresta escura, Dante depara-se com o portal do Inferno, encimado pelas terríveis e conhecidas palavras. Metáfora do desconhecido e sublime, ameaça e chamado irresistível, Dante ultrapassa o portal e avança, abençoado pelo guia que emergiu do limbo - Virgílio e esperançoso de encontrar Beatriz. Porta, arco, portal, entrada, passagem... palavras-imagens que designam mudanças de estágio, escala, realidade, oposição e estranhamento. Dante mergulha trazendo unicamente sua memória e imagens de piedade, rancor, medo e pavor intensos, de justiça e verdade, palavras estas que serão seu único elo com o que deixou para trás. Sem isto, não poderá enfrentar o inferno e vagar pelas suas bolgie. Em cada passagem, ao encontrar figuras conhecidas da História, mitos e adversários políticos, Dante traz

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para junto de si o ar de sua cidade e com ela a luz, fraca divisória entre o que seu corpo ora ressente e o que abandonou. Com isto, o enfrentamento torna-se palpável, pois tem a lembrança viva, seu corpo como depositário da memória e sensações de um corpo vivo. Aos mortos do Inferno é dada a possibilidade de rememorar, mas a lembrança é usada como forma de aumentar a dor e a pena cingidas, quando a comparação da vida pregressa é acompanhada de um presente inalterável. A algumas almas é dado o poder de prever o futuro, mas a eternidade é o infinito, perdendo os pecadores a noção do tempo em que permanecem mergulhados. Dante precisa dessa realidade para perder-se no Inferno, pois ela é o fio de Ariadne que o trará de volta. Mais do que Virgílio, que o amparará diversas vezes em perigo seu corpo vivo, Dante recorrerá à memória de sua cidade natal. Vagas e indistintas comparações trarão a atmosfera do mundo vivo e impedirão, por todo o percurso do poeta, sua entrega à degeneração da razão e à insanidade daquela nova ordem. Sem a lufada de vida em meio à pestilência, sem poder encontrar-se com conhecidos, Dante esqueceria o motivo pelo qual aventurou-se no abismo: lembrar e escrever, criando um testamento moral que traga, de maneira inversa, o Inferno à superfície. Ao sacrificar sua memória, condensaria a imagem da insanidade, mantendo o corpo a salvo. Ao rememorar a superfície – mesmo em conflito, dando mostras da degeneração dos costumes – o poeta traz as sensações de beatitude e familiaridade, decorrentes dos elementos de contemplação descritos. Esses locais da memória, essas paisagens do mundo vivente são figuras amplas, como projeções. A ligação de Dante com a realidade da superfície mostra-se mais do que uma mera evocação; é uma prova de que a vida do corpo precisa de lembranças vivas. A memória dos mortos os reduz ainda mais à infinitude de suas desgraças. A de Dante o conduz mais e mais para o júbilo de estar vivo e vivendo, passando por cada cerchio [recinto] e o deixando para trás, como

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algo que deve ser esquecido como espaço, mas não como tempo. Assim, o inferno vivido passa ordinariamente a ser uma lembrança, pois somente assim pode ser encarado: sombra de si mesmo sem nunca ter existido, imagem que se imprime sem nunca ter-se realmente configurado. Dante, poeta e peregrino, apresenta-nos o Inferno visto somente na memória. Estando no Inferno sem nunca ter ido, saindo dele sem nunca nele ter entrado, enuncia um duplo: o reflexo sem origem. Dante viaja pelo país da mentira no Inferno, seguindo para a melancolia do Purgatório e para a luz refulgente e insuportável do Paraíso. Depois de permanecer três dias, emerge da viagem por este mundo além túmulo para escrever aos patrícios a moralia de sua viagem. Mas antes disto deverá transformar-se novamente em autor e inventor de sua obra, iluminado pela imaginação e pela virtude. Não fosse ele uma tríade - autor-personagem-peregrino - não poderia voltar e ser portador de imagens-narrações complexas e inequivocadamente fortes. Abandonando Dante, evoco uma viagem para outro país, para onde o viajante partirá em busca de entedimento sobre o amor. Na Hypnerotomachia Poliphili, Francesco Colonna descreve as aventuras transformadoras, eróticas e sobretudo emblemáticas de Poliphilo, que parte em busca de sua amada Polia. Parte texto ficcional, parte tratado de retórica, Colonna imagina o país do amor como um grande complexo de florestas, arquiteturas, personagens, virtudes, vícios e majestades, enquanto protagoniza encontros com deuses e semideuses. Também iniciando sua viagem adentrando em uma floresta, buscando a fonte da música, sonhando dentro de um sonho, descrevendo edifícios colossais e seus decorum discorrerá sobre as medidas e a proporção da arquitetura. Poliphilo agregará todos os eventos para seu conhecimento interior. Enfrentará um dragão e encontrará ninfas para finalmenteu unir-se a Polia, ardorosamente. Desta parte em diante, viajam a uma ilha, onde adentram a um templo sagrado, lugar em que Polia

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