Org. Maria do CĂŠu Diel
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1ª Edição Campinas
2012
Copyright © 2012 Maria do Céu Diel Todos os direitos reservados
Ficha Catalográfica Elaborada pelo Bibliotecário Carlos Eduardo Gianetti – CRB8/8604 L648 Linha : escritos sobre a imagem / Maria do Céu Diel, organizadora. - Campinas, SP : Império do Livro, 2012. 360p. ISBN: 978-85-64741-06-5 1. Arte e História 2. Memória - Arte 3. Arte – Estudo e ensino I. Diel, Maria do Céu (1962-) II. Título. CDD 701 Índice para Catálogo Sistemático 1. 2. 3.
Arte e História Memória - Arte Arte – Estudo e ensino
ISBN
978-85-64741-06-5 imagem da capa
Intermundo, de Maria do Céu Diel, 2012 imagem da página de rosto
Sonho de Joaquim, Cappella degli Scrovegni, Gioto
Direitos reservados a
Império do Livro Rua Padre Antônio Joaquim, 102 Bosque 13026-060 - Campinas - SP - Brasil Tel. (19) 2511 0544 www.imperiodolivro.com.br
701 701 707
Índice Escrever pelas imagens Maria do Céu Diel
11
159
Imagens Cerâmicas De Belo Horizonte: Manchas Márcia Norie Seo
Roupas: presença-ausência, lembrançaesquecimento, memória-arquivo Lucia Santiago
17
187
Por que paramos de desenhar quando vamos para a escola? Aroldo Dias Lacerda
Breve História (preter)Natural de Animais Inquietantes: Onde há um Cão que nos Observa, Aranhas que Sorriem, Criaturas sem Nome que Permanecem sem Nome, o Rei dos Gatos e Cavalos que Querem Entrar Adriana de Castro Dias Bicalho
25
231
Admirar Imagens Raquel Souza Borges
251
Anselm Kiefer: uma geografia para o infinito Tai Nunes
Notre Dame de Paris Encadernação, literatura e arquitetura na França do séc. XIX Ana Utsch
50
281
O lugar do discurso sobre a pós-modernidade na procura da forma moderna da obra de arte Thomaz Carvalho Lima
289
Antigos caminhos, novas inquietações Moema Nascimento Queiroz
81
Desenho, Ensino e Giotto Daniel Prudente
302
A imagem fragmento e a fragmentação da imagem Bruno Amarante
102
O Juízo Crítico na restauração do afresco de Andrea Mantegna na capela Ovetari Anamaria Ruegger Almeida Neves
Os elementos figurativos do Apocalipse no cinema: revelações, imagens e sons em Lições da Escuridão e Andrei Rublev Eduardo Antonio Jordão
115
321
O Livro dos Reis João Diel
335
Exegesis Secular Sebastião Miguel
Azulejo: lugares e imagens A imagem do azulejo, a memória como lugar, o lugar como memória João Augusto Cristeli de Oliveira
135
347
Cadernos Guilherme Franco
Sobre um trajeto Joice Saturnino
147
Escrever pelas imagens
Maria do Céu Diel
Quais são os influxos que percorrem um texto quando se escreve sobre o mundo das imagens? A língua e seu som percorrem o pensamento para encontrar descrições, encontros, desvios e sensações de semelhança, de profundidade e afastamento. Os artifícios da educação infiltram-se para sustentar a imagem e retira-la do mundo das idéias, fazendo-a aparecer entre palavras, números, história, memórias e lembranças. Enganosos são estes mecanismos, engenhos para conceber as imagens como fenômenos planares, vulgarizando suas aparições, encharcandoas com conceitos para depois sangrá-las, girando-as em todas as direções, aproximando e afastando-as dos olhos e do corpo sensível. As imagens assim tratadas respingam seus sentidos nos campos da filosofia, da psicologia, da história da arte e da antropologia, emprestando seus fluidos para alimentar uma legião de escritos sobre suas aparições. Esvaziadas, timbradas com outras cores e retiradas de seus mitos de origem, estas imagens seviciadas tornam-se servis e fracas; são como tecidos e peles que encapam pretextos a serviço da educação, da história das imagens e de estudos acadêmicos.
Para escrever pelas imagens, para escapar do cosmo enganador das palavras, há se mover em direção ao intermundoi, onde habita o Ilimitado. Neste lugar, sem principio ou fim, sem contração e retração de sua potência, a imagem segue o logos, ou o fogo inerente a sua criação. O mito nesta imagem criadora não suporta a genealogia e habita ali, numa forma pura. Evitando o caminho da aparência, o cosmos enganador das palavras, a imagem alimenta-se do fogo e o Uno imperecível. Ela é em si o que sabe de si e empresta sua pálida sombra quando é reclamada pelo mundo da linguagem. Vislumbrar este mundo sem o véu dos sentidos e da inteligência educada é destituir-se de próteses e regimentos para a explicação do surgimento das imagens no mundo material. A cada vez que escrevemos sobre as imagens, admitimos um melancólico fracasso, na certeza da impossibilidade de descrever o intangível. Daí invocarmos as outras ciências e suas irmãs, para de posse de uma genealogia estranha à imagem possamos ampará-la, enquanto i Cornford, F.M. in: Principium Sapientiae - As origens do Pensamento Filosófico Grego, Fundação Calouste Gulbenkian- Lisboa, 1952.
ela migra – não sem perdas ou ferimentos - de um mundo para outro. Estas ciências e suas origens emprestam também suas estruturas aparentes para que a imagem comporte-se de à maneira de, seguindo um gabarito emprestado de outras formas de ver e pensar o mundo. É desta forma que os estudiosos das imagens que habitam este livro esforçam-se em escrever sobre as imagens, multiformes, informes, assombrações, fantasmata. São acadêmicos, artistas, criadores, estudantes de arte, pintores, educadores e professores que estão agregados no LINHA: Grupo de Pesquisa sobre o Desenho e a Palavra e que espelham neste volume suas preocupações, inquietações e esforços para habitar no mundo das imagens. Cientes da força potencial e do esforço para escrever sem descrever, os pesquisadores que figuram neste volume apresentam textos nascidos de inquietações, desassossegos e incômodos, deslugares sempre incomuns para quem é assombrado por aparições. Por vezes as imagens estão travestidas de memórias, engenhos arquitetônicos, artefatos e até mesmo de outras imagens, das quais emprestam diferentes figurações, as quais chamamos de formas.
Roupas: presença-ausência, lembrança-esquecimento, memória-arquivo Lucia Santiago
O texto aqui apresentado tem como objetivo falar sobre a roupa como registro de uma presençaausência, objeto de uma lembrança-esquecimento e também como memória-arquivo. Os exemplos usados serão as roupas de pessoas famosas que tiveram seus guarda-roupas abertos ao público após suas mortes. E a romaria provocada pelo sonho de ver de perto as roupas de alguém que foi admirado e adorado por um grande número de pessoas. Roupas que representam o sonho, o desejo, a saudade, a tristeza. Lembranças dos ídolos ausentes. Registro de um tempo. São muitos famosos que poderíamos buscar em seus guarda-roupas um pouco de suas vidas. Mas escolhemos três personalidades: Elvis Presley, Evita Perón e Lady Diana. Onde estão hoje as roupas do cantor Elvis Presley, de Evita Perón e de Lady Diana? Quem ainda se interessa em ver de perto roupas e objetos dessas pessoas?
As roupas dos ídolos As roupas e objetos pessoais do grande Rei do Rock and Roll estão em Graceland, que se transformou em Museu. Suas roupas fazem parte de um arquivo infinito de objetos pessoais, guardados e vigiados por uma centena de funcionários diariamente. A mansão em Memphis se transformou em um local de peregrinação, frequentado por fãs de diversos lugares. O Museu está aberto à visitação durante todo o ano. Mas no mês de agosto, mês em que o Rei faleceu, há eventos em Graceland para receber as milhares de pessoas de todo o mundo, que visitam a mansão em busca de um contato com o Rei. As roupas, joias, guitarras, discos e tantos outros objetos se transformaram em um arquivo da vida pessoal e artística, dos conflitos e do sucesso de um homem, conhecido em todo o planeta. A dor da perda, da ausência se transformou em um rentável negócio de milhões de dólares a cada ano, para os herdeiros e administradores dos bens do Rei. Alguns dos vestidos de Evita Perón, que foram desenhados por grandes nomes da moda francesa, entre eles Pierre Balmain, Jacques Fath e Christian Dior, também foram para museus. Para Schmidt se no Brasil Getúlio era considerado ‘o pai dos pobres’, na Argentina Evita era a mãe. Os ‘descamisados’ adoravam os vestidos caros e assinados por nomes famosos do mundo da moda. No caso de Evita sua ascensão pessoal de alguma maneira confortava uma população frustrada e desejosa por riqueza e poder. Em novembro de 2002 no Memorial da América Latina, em São Paulo, houve a exposição Eva Perón: imagens de uma paixão. A exposição contava com inúmeros trabalhos de artistas argentinos das mais variadas tendências. Pinturas, instalações. E também roupas e objetos pessoais. Um verdadeiro culto 50 anos depois da morte de Evita Perón. A idolatria
dedicada a Eva Perón também se transformou em um Museo Evita mi vida, mi missión, mi destino, em Buenos Aires. Na história de Eva Perón, suas roupas e seus objetos pessoais, também se transformaram na possibilidade de materialização do corpo ausente, daquela que muitos amaram e outros tantos odiaram, e também em memória-arquivo. Arquivo que ainda mantém a chama da idolatria por Evita. Com as roupas, sapatos, joias, e outros objetos pessoais da Princesa Diana também não foi diferente. Exposições foram realizadas. E três anos depois da morte da Princesa seus vestidos e outros objetos foram leiloados, por quantias assustadoras. Versace, Valentino, Chanel e Azagury todos vaziam parte do guarda-roupa elegante, discreto e invejado, por muitas mulheres do mundo, da Princesa Diana. A família Spencer, em Althorp Estate, em 1998 criou a exposição Diana, uma celebração. A exposição é aberta todo ano no dia 1º de julho, dia do aniversário de Diana, e fecha em 31 de agosto, data em que morreu. E uma grande romaria acontece nesse período no local. Admiradores que tentam encontrar ao ver de perto as roupas e os objetos da Princesa, a presença da mulher que tanto adoraram. Nas três referências citadas acima as roupas sobreviveram aos seus donos, e estão repletas de marcas, de cheiros, de vestígios do uso, e de vazio. As mesmas foram transformadas em objetos de memória, de um corpo que é pura presença-ausência. E carregam consigo o passado de glória de seus donos. As roupas como lembrança de entes queridos De um modo geral já sabemos qual o destino das roupas das pessoas famosas. Elas são leiloadas por grandes quantias ou transformadas em peças de museus, guardadas por muitas chaves. E as roupas
de pessoas comuns? Como essas pessoas, que perdem filhos, irmãos e irmãs, amantes, amigos, agem diante das roupas e dos objetos pessoais dos seus entes queridos, agora ausentes? O que fazem com a lembrança, com a dor, com ausência? Quando nos lembramos de algum ente querido falecido logo imagens povoadas de gestos, sorrisos, cheiros e roupas invadem nossa memória. Imagens que não podemos tocar, sentir, cheirar. Percepções imateriais. De todas as lembranças que podem nos ocorrer, sobre alguém, a que mais nos aproxima do corpo ausente: é a roupa. É a roupa que traz o cheiro e a forma do corpo ausente. Para Stallybrass as roupas são preservadas; elas permanecem. São os corpos que as habitam que mudam. São os corpos que deixam vazias as roupas. E a roupa, mesmo vazia, permanece viva. Ela pode aos poucos ganhar um novo corpo, um novo dono, um novo armá rio, assim mesmo ela permanecerá, e não importa quão gasta estivesse, ela sobreviveu àqueles que a vestiram ( ... ) Ao pensar nas roupas como modas passageiras, nós expressamos apenas uma meiaverdade. Os corpos vêm e vão: as roupas que recebem esses corpos sobrevivem. Elas circulam através de lojas de roupas usadas, de brechós e de bazares de caridade. Ou são passadas de pais para filho, de irmã para irmã, de irmão para irmão, de amante para amante, de amigo para amigo”. As roupas usadas por alguém que não é seu primeiro dono abrem espaço para uma viagem pela imaginação e pelo passado. Vestir uma roupa que pertenceu a alguém antes de você, e uma tentativa de aproximação do corpo ausente. O que foi vivido por aquela pessoa, o seu cheiro e a sua forma agora fazem parte da urdidura do tecido da roupa, que irá se misturar às vivências do novo dono. É também recordação, lembrança e memória. A roupa está associada à memória ou, melhor dizendo, a roupa é
um tipo de memória. É claro que precisamos considerar que algumas pessoas jamais ficariam com as roupas de um parente falecido ou usariam roupas usadas, de alguém desconhecido. Ao mesmo tempo em que outras não abririam mão de possuir uma determinada roupa de um ente querido falecido. No caso da ausência por falecimento quem fica quer lembrar, daquele que está ausente, e esquecer o presente insuportável. De um lado está o não querer lembrar, uma forma de diminuir a dor da ausência. E do outro o querer lembrar para preencher a ausência. Quer dizer lembrar para esquecer e esquecer para lembrar. Para Seligmann-Silva, a memória só existe ao lado do esquecimento: um complementa e alimenta o outro, um é o fundo sobre o qual o outro se inscreve. Assim como lembrar e esquecer fazem parte da memória, a roupa tende pois a estar poderosamente associada com a memória ou, para dizer de forma mais forte, a roupa é um tipo de memória. É a presença-ausência que buscamos nas roupas de alguém querido que perdermos. Pois o outro está presente naquilo que lhe pertenceu, através do seu perfume, de suas joias, de seus objetos pessoais e do seu corpo, agora ausente, que impregnou a trama do tecido de suas roupas que conseguiu absorver a sua presença-ausência. Ao mesmo tempo em que essa busca nos distancia de um presente insuportável nos aproxima do passado. Se as roupas permanecem, elas se tornam arquivo de um tempo, e guardam de forma mais ou menos duradoura a memória humana. Assim a memória impressa nas roupas é como o conteúdo de um livro. E esse livro, ao ser aberto e folheado, nos conta histórias particulares. Podemos suspeitar quais foram os desejos e os sonhos, que passaram pela imaginação, daquele que adquiriu certa
roupa. Ultrapassamos as fronteiras entre o passado e o presente, mesmo que por pouco tempo, quando nós aproximamos dessa roupa vazia. Vazia do corpo. E repleta de presença e de marcas do outro ausente. O outro ficou eternizado ao imprimir em sua roupa suas marcas, seus traços, seu cheiro. Essas são lembranças que aquele que ficou deseja encontrar. A roupa é capaz de diminuir a distância entre a dor e a ausência. As roupas sobrevivem àqueles que as vestiram, pois seus corpos vão e as roupas permanecem com suas marcas e os desgastes do tecido, com um bolso levemente descosturado, um zíper estragado ou um botão que falta. Sobrevivem impregnadas de vestígio do uso. O vestígio do presente, que cita o uso, no passado, e presentifica, assim, o passado, causando o arrepio de um passado ressurreto, à maneira da Madeleine proustiana, sugerindo uma estranha duplicidade entre presença e ausência. E se quem ficou quiser, essa roupa o abrigará sem perguntas e o receberá, pois, as roupas têm vida própria: elas são presenças materiais e, ao mesmo tempo, servem de código para outras presenças materiais e imateriais (...). As roupas estabelecem o vínculo com o passado. E aproxima o outro ausente daquele que aqui ficou diante das suas roupas e de outros objetos pessoais. De um modo geral a moda é capaz de estabelecer vínculos com o passado, ou, como diz o filósofo alemão Walter Benjamin, de citar o passado, ela é ao mesmo tempo um lugar onde se preservam restos desse passado. Cada peça de roupa pode ser uma ruína, que lembra seu contexto passado, quer se trate de uma exposição de roupas antigas, quer se trate de uma experiência individual.
Quando uma determinada peça cita, por exemplo, um portador já falecido, nesse caso, ela passa a ser o invólucro de um passado que, quando usado no presente, conserva ou desperta esse passado – à maneira do famoso anjo da história do texto Sobre o conceito de história de Benjamin, que procura juntar os restos do passado. E são os restos do passado que desejamos juntar, trazer para perto, lembrar e ao mesmo tempo esquecer, quando nos deparamos com a ausência de alguém querido. Pois o outro ausente jamais voltará. Quem fica carregar consigo a dor, a ausência, a memória, a lembrança e o esquecimento. E de alguma maneira as roupas preenchem este vazio.
Bibliografia BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. I. Tradução Sérgio Paulo Rouanet et al. São Paulo: Brasiliense, 1985. SCHMIDT, Carlos von Schmidt. Eva Perón: imagens de uma paixão. Disponível em: <http://www. artesdoispontos.com>. Acesso em 02 de agosto de 2005. SELIGMANN-SILVA, Márcio. História, memória, literatura. O testemunho na era das catástrofes. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx: roupas, memória, dor. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. – Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
Breve História (preter)Natural de Animais Inquietantes: Onde há um Cão que nos Observa, Aranhas que Sorriem, Criaturas sem Nome que Permanecem sem Nome, o Rei dos Gatos e Cavalos que Querem Entrar Adriana de Castro Dias Bicalho
Onde Aldrovandi Conta Histórias de Cães e Galos Apesar da proeminência das criaturas de Monstrorum Historia, publicado em 1642, cães domésticos (Figura 01) também habitam o exorbitante empreendimento enciclopédico do virtuoso Ulisse Aldrovandi (15221605). Camadas de ruídos se depositaram ao longo de quase quatrocentos anos e agora mediam os juízos acerca dessas representações: há algo de risível, há algo de aterrador, há algo que não deveria estar lá e que se assemelha ao erro. Para além das considerações acerca das qualidades técnicas (é importante precaver, completamente condicionadas ao contexto do observador) dos elementos constitutivos desses desenhos científicos, lampeja o incômodo induzido por um vestígio de uma expressão que tende a ser percebida como humana. Não está confinada à obra de Aldrovandi a presença desse ingrediente (que hoje nos parece) humano nas figuras de animais não humanos - ele era de fato quase um cânone na tarefa da descrição científica no período e deriva de uma longa linhagem que se desdobra e alcança até mesmo Buffon (1706-1788), mais de um século depois (Figura 02).i Mas no olhar que devolvem a quem hoje as observa, essas imagens manifestam a discrepância entre aquele modo de representação e a maneira aparentemente distante e inócua, ou quase indiferente e higiênica, presente agora na construção e na apreensão das ilustrações científicas. Assim, a figura de British dogs: their varieties, history, characteristics, breeding, i Nas obras de Buffon publicadas ainda no século XVIII (especialmente naquelas ilustradas por Jacques de Sève) prevalecem as gravuras antropomorfizadas de animais. Embora algumas edições lançadas a partir do século XIX ainda mantenham as figuras originais (especialmente as destinadas a jovens e crianças como Le petit Buffon des enfants, de 1829 e Le Buffon illustré de la jeunesse, de 1893), outras já as substituem por versões que excluem o elemento antropomorfizante (Figura 03).
management and exhibition, de 1879 (Figura 04), quase faz crer que esse é o único modo de representação possível, o único modo de apreender objetivamente o cão, que não mais é indivíduo, e sim um padrão, incapaz de devolver o olhar ao observador. Imagens como essa do cão bloodhound, esse outro modo de representar, tão familiar agora, mais que mero reflexo desse desaparecimento dos animais não humanos, nutrem ativamente o abismo que se abre entre humanidade e animalidade, isto é, constituem pedagogicamente o que hoje se pode ver e o que se pode saber dessa relação. O afastamento se dá de modo decisivo a partir das proposições de Descartesi, por meio da separação entre corpo mecânico e alma imortal, o que acabou por reduzir os animais não humanos a autômatos desalmados e ampliar extraordinariamente as possibilidades de sua sujeição aos homens.ii Esse desvio parece tomar parte em um quadro mais amplo, que é o da descontinuidade entre a epistemêiii do renascimento e a clássica. No início da Era Moderna, as palavras estavam emaranhadas nas criaturas e nas coisas, em complexos sistemas de semelhanças e analogias, assim
i BERGER, 2003, Sobre o olhar, p. 18. ii Talvez o divórcio proposto pelo pensamento cartesiano tenha sido o mais severo até então, mas de forma alguma foi evento único. Para que os humanos se concebessem como humanos, um extenso percurso de construção e afirmação da ideia de humanidade através da negação da animalidade e da sujeição dos não humanos foi trilhado – os vestígios dessa trajetória figuram, por exemplo, na Bíblia, na História dos Animais de Aristóteles ou nos bestiários da Idade Média. iii FOUCAULT, 2002, As palavras e as coisas, p. XVIII. Fundou Foucault a noção chamada de epistémê, que descreve a existência de um solo epistemológico ou um a priori histórico que oferece as condições necessárias para o florescimento de determinados conhecimentos e teorias, e que também afere a sua legitimidade.
escrever um tratado sobre galináceos, serpentes ou dragões no século XVI significava ajuntar todo o conhecimento disponível sobre os tais bichos (o que incluía suas características antropomórficas) - no livro XIV do segundo volume de seu Ornithologiae, Ulisse Aldrovandi agrupa tudo o que se sabia até então sobre galinhas domésticas: anatomia e comportamento; presságios e interpretações místicas e morais; usos na medicina; usos nos rituais pagãos; métodos para capturar; terminologia e sinônimos; usos como alimento; significados em sonhos; emblemas, insígnias e moedas; simpatias e antipatias; provérbios e fábulas; galinhas turcas, persas, índias; outras galinhas estrangeiras peludas como os gatos ou lanosas como as ovelhasi. Essa sobreposição cíclica de elementos está encarnada por exemplo nas ilustrações de Joris Hoefnagel (1542-1601) encomendadas pelo Imperador Rodolfo II para o Mira Calligraphiae Monumentaii (Figura 05) ou nas afamadas cabeças alegóricas pintadas por Giuseppe Arcimboldo (1527-1593): em ambos os casos as figuras desdobram-se em textos que manifestam e encenam a linguagem secreta do theatrum mundi. Assim como os homens, os não humanos são marcas ou estão marcados por insígnias que estabelecem suas simpatias e antipatias, o seu lugar e as suas relações no mundo. Mas a partir do século XVII, o conhecimento deixa de ser constituído de acumulações, aproximações, marcas e estigmas e passa a fundar-se na exclusão i BICALHO, 2007, O unheimliche wunderkammer da Bibliotheca Abscondita, p. 112. ii Criado em 1561-62 por Georg Bocskay, calígrafo da corte do Imperador Ferdinando I, o Mira Calligraphiae Monumenta é uma espécie de livro modelo de caligrafia, que demonstrava a extraordinária habilidade de seu autor. Por volta de 1590, o Imperador Rodolfo II, então dono do livro, contratou o miniaturista Joris Hoefnagel para acrescentar ilustrações aos alfabetos de Bocskay. A naturalia desenhada de Hoefnagel comenta e amplia o texto do livro, bem como espelha os interesses e as coleções do Imperador.
e na investigação das diferenças - coisas e criaturas começam a se apartar de seus signos, que se tornam modos de representação e o saber compartimenta-se em Observação, Documento e Fábulai. Antes de serem definitivamente banidos, os jogos da semelhança vão se avizinhar à ilusão: é o período barrocoii. A partir de então, o território antes central das similitudes desloca-se paulatinamente para as margens do saber, aparenta-se ao erro – e transmutase portanto em uma área de exclusão, um limbo que se alarga e se aprofunda e cujas bordas (porosas) não se anunciam. Nesse lugar, na penumbra das multiplicidades ingovernáveis, eclodem os mitos e falham as taxonomias, as ferramentas da diferenciação, a assepsia. Lá, onde convivem promiscuamente realidades e imaginações, prevalecem os que não têm nome, os que nascem ou os que se tornam monstros, os híbridos, os ornitorrincos e, indistintamente, o que mais se inventar ou escorregar dos sistemas de classificação. É para lá portanto que migram as figuras como as de Aldrovandi; é de lá que agora nos olham. Onde Odilon Redon Sorri com as Aranhas Nas fendas da racionalidade mora a aranha vitoriana (Figura 06) de Odilon Redon (1840-1916). A figura não trata de uma aranha objetiva, inerte sob o microscópio; é uma aranha da experiência cotidiana, dessas que recuam para os cantos quando percebem que as percebemos. É portanto constituída de impressões genéricas de aranha: um excesso de pernas (ao contrário dos demais aracnídeos, tem cinco pares ao invés de quatro), um vulto escuro e amorfo a mover-se na instabilidade de um domínio espacialmente indiferente a chão e teto. Da textura aveludada do carvão, que reproduz uma sensação peluda, emerge um semblante risonho. É certo i FOUCAULT, op. Cit., p. 176-177. ii Ibid., p. 70.
que a aranha de Redon não pertence à ciência – de fato, já está definitivamente apartada daquele modo de representar e conhecer. Mas por mais que nos equipemos de todo o saber objetivo sobre as aranhas, Redon induz a suspeita das limitações desse conhecimento. Por essa razão, a figura não é definitivamente cômica ou ameaçadora – é antes inquietante. Só foi possível formular o conceito de inquietante no início do século XX, embora, como efeito estético, pareça surgir abundantemente na produção artística e literária do século XIX. O primeiro texto a nomeá-lo data de 1906 e foi escrito pelo psiquiatra alemão Ernst Jentsch.i As linhas gerais da posterior elaboração freudiana já estão esboçadas: a impressão nasce da falta de orientação provocada, por exemplo, pela reconfiguração de eventos ordinários, pelos autômatos, figuras de cera ou pela incerteza de que algo está vivo, assim como pelo antropomorfismo, pela visão dos ataques epilépticos, pelas superstições e pelo medo dos mortos; é abundante na arte e na literatura ( Jentsch já aponta o trabalho de E.T.A. Hoffmann); e como é suscitada por razões bastante individuais, não permite estabelecer sua essência. A partir dessa formulação, Freud (1856-1939) ampliou o conceito e suas causas em seu escrito Das Unheimliche,ii datado de 1919. Emprestou de i JENTSCH, 1995, On the psychology of the uncanny. ii FREUD, 2010, História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920), p.328-376. Em Das unheimliche (traduzido para o português primeiramente como O estranho, em seguida como Estranhamento familiar e finalmente como O inquietante, em espanhol como El sinistro, em inglês como The uncanny, em francês como L’Inquiétante Etrangeté), as dificuldades de tradução do termo já são sublinhadas pelo psicanalista: “de fato, temos a impressão de que muitas línguas não têm palavra para essa particular nuance do que é assustador” (ibid., p. 332).
Schelling a ideia de que o inquietante é tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto mas veio à luzi - não seria portanto a angústia do encontro com o novo e com o desconhecido, ao contrário, seria o resultado do ressurgimento do que é bastante conhecido mas que por alguma razão foi esquecido. Assim, Freud elencaii como causas das impressões inquietantes dois núcleos (que ora são claramente diversos, ora indistinguíveis) de catalisadores: conteúdos infantis reprimidos e crenças primitivas superadas. Dentro desse último núcleo, lista o medo dos mortos, do duplo, da vida secreta dos objetos, da onipotência do pensamento, dos pressentimentos, das coincidências, dos autômatos, do animismo e da dissolução dos limites da realidade – medos esses que não ameaçavam o homem primitivo. Mais frequente na ficção do que na realidade, o inquietante literário irrompe da combinação entre uma realidade próxima a do leitor e algo que a transcende - nessa cisão se instala um conflito de julgamentoiii. Assim, como Jentsch, Freud aponta diretamente a incerteza intelectual, tanto na ficção quanto na realidade, como causadora do inquietante relacionado às crenças superadas. Como exemplo, Freud menciona na segunda parte de Das Unheimliche um contoiv no qual a incerteza é o catalisador de impressões inquietantes: um casal se muda para uma casa antiga e empoeirada, onde uma pequena mesa ricamente entalhada com figuras de crocodilos foi abandonada pelo morador anterior. O encantamento i Ibid., p. 338. ii Ibid., p. 346-365. iii Ibid., p. 371-376. iv Ibid., p. 364-365. No texto de Freud não há indicação de título ou autor. O conto é Inexplicável (Inexplicable), escrito por Lucy Gertrude Mobely e pubicado primeiramente na revista The Strand, em dezembro de 1917. No Brasil, foi publicado em 2007 na coletânia Freud e o estranho: contos fantásticos do inconsciente.
inicial com o virtuosismo do entalhe desfaz-se em uma angústia gradual, alimentada por estalos na madeira, vultos reptilianos que percorrem os tapetes e um mau cheiro suspeito - e ao casal, parecem sorrir maliciosamente os crocodilos - paira no conto o espectro da desordem entre criaturas e signos. Tão inquietante quanto a possibilidade de vida dos objetos é a presença da animalidade nos animais humanos e da humanidade nos animais não humanos e também a incerteza acerca das fronteiras entre uns e outros – esse lugar é, em boa parte, o domínio dos monstros. É no inquietante que Eduardo Jorge situa os híbridos e a metamorfose: “diante da presença de corpos híbridos de homens e animais existe um incômodo que está na ordem de algo que é familiar, mas ao mesmo tempo estranho”,i - há algo que falta ou que está em excesso, os elementos familiares estão reconfigurados - o que não impede que, de algum modo, o espírito seja capaz de reconhecê-los, ainda que talvez esse reconhecimento não seja consciente. Seja lá onde se estabelece a fronteira, esse estado de monstro (não pertence ao que é compreendido como humanidade, tampouco com o que entendese por animalidade), não a ultrapassa – para José Gil “o monstro não se situa fora do domínio humano: encontra-se no seu limite […] surge por aproximação do que deve ser mantido à distância (divindade/ homem; natureza;homem) […] o monstro assinala o limite interno da humanidade do homem”.ii Este campo de aproximações, cujos limites se estabelecem de um lado naquilo que é homem e por oposição naquilo que é um outro-não-homem, é a província dos excluídos, uma vasta região que acena com possíveis devires-animais, onde não há forma estável, tampouco há residência fixa ou comportamento i JORGE, 2011, Lobisomem, sem ameaças. In: Pensar/ escrever o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica, p.177. ii GIL, 2006, Monstros, p. 14-17.
previsível. Deleuze e Guatarri assim definem o deviranimal: Os devires-animais não são sonhos nem fantasmas. Eles são perfeitamente reais. [...] Pois se o devir animal não consiste em se fazer de animal ou de imitá-lo, é evidente também que o homem não se torna ‘realmente’ animal, tampouco o animal se torna ‘realmente’ outra coisa. O devir não produz outra coisa senão ele próprio. É uma falsa alternativa que nos faz dizer: ou imitamos, ou somos. O que é real é o próprio devir, o bloco de devir, e não os termos supostamente fixos pelos quais passaria aquele que se torna. O devir pode e deve ser qualificado como devir animal sem ter um termo que seria o animal que se tornou. O devir-animal do homem é real sem que seja real o animal que ele se torna; e, simultaneamente, o devir-outro do animal é real sem que esse outro o seja. […] O homem não se torna lobo, nem vampiro, como se mudasse de espécie molar; mas o vampiro e o lobisomem são devires do homem, isto é, vizinhanças entre moléculas compostas, relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, entre partículas emitidas. É claro que há lobisomens, vampiros, dizê-mo-lo de todo coração, mas não procure aí a semelhança ou a analogia com o animal, pois trata-se do devir animal em ato, trata-se da produção do animal molecular [...] É em nós que o animal mostra os dentes como o rato de Hoffmanstahal i. Os resultados dessas aproximações, desses devires, com frequência são inquietantes, isto é, produzem animais inquietantes porque frequentar as vizinhanças perdidas com esses outros tão outros é encontrá-los residindo em nós mesmos. Os efeitos inquietantes que derivam de devires estão amplamente presentes na ficção visual e escrita (especialmente a partir do século XIX). Em Kafka (1883-1924) por exemplo, parece existir um deviri DELEUZE; GUATTARI, 1996, Mil capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4, p. 18; p. 67.
platôs:
animal cujas consequências não são menos que inquietantes. Os híbridos nutridos pela incerteza que habitam seus escritos inflamam certos saberes que sufocamos. Assim como a figura de Redon é constituída de impressões da experiência-aranha, a criatura indescritível na qual Gregor Samsa acorda transformado em A Metamorfosei, publicado em 1915, constitui-se de um apanhado de aflitivas impressões do devir-artrópode (reforça a estranheza do texto o fato de que a família Samsa parece julgar o evento muito mais um inconveniente do que algo preocupante e extraordinário). Celso Cruzii comenta que Kafka, por ocasião da primeira impressão da obra, recomendou expressamente que a capa não contivesse qualquer figura de inseto ou de inseto-homem, – a ilustração que foi publicada é de um homem com as mãos na cabeça ao lado de uma porta semiaberta – o autor parecia ciente do efeito de inquietação produzido pelo que é incerto. Em A Construçãoiii, publicado em 1931, uma criatura subterrânea, em permanente estado de vigilância, da qual só se sabe das garras, presas e pêlos (tal como um vislumbre de um espécime das profundezas que ocasionalmente emerge de seu buraco – é uma impressão-toupeira) narra (é preciso um devir-toupeira) suas crescentes aflições enquanto se enterra em um elaborado labirinto. Já no conto Um cruzamentoiv, escrito entre 1914 e 1924, há um híbrido de gato e cordeiro capaz de verter lágrimas humanas - embora a sua condição interespécie seja um espetáculo para as crianças, sua monstruosidade vulnerável é o cerne da inquietação do narrador e do leitor. Há nesse gato-cordeiro algo das criaturas maravilhosas dos compêndios de monstros e das histórias naturais dos séculos XVI e XVII – ele estaria perfeitamente confortável nesses i KAFKA, 2001, A metamorfose. ii CRUZ, 2007, Metamorfoses de Kafka, p. 60. iii KAFKA, 2002a, Um artista da fome/a construção. iv Id., 2002b.
textos - mas no século XX está tão deslocado quanto os animais antropomórficos das descrições científicas renascentistas e barrocas: ou se infantiliza ou não tem autorização para existir. Não apenas monstros germinam a inquietação não há híbridos monstruosos ou cenários oníricos suspeitos no conto Verãoi de Julio Cortázar (19141984), talvez por isso mesmo o efeito inquietante que produz seja tão poderoso. Um casal hospeda uma jovem em sua chácara. Enquanto o casal se prepara para dormir percebe que há um animal do lado de fora da casa. A menina não acorda. Mas esse não é um daqueles animais que habitualmente rondam as casas humanas como lobos, onças ou ursos. É um trivial cavalo branco, que não apenas ronda a casa e bufa nas janelas mas também decide que quer entrar pela porta da frente. O querer entrar desse animal, esse comportamento insólito e nada equino faz duvidar sobre o que se sabe sobre os cavalos e é tão possível que adquire as densidades do real. E se cavalos não são mais dóceis e previsíveis, se não mais se atém as suas coisas de cavalos, o que mais pode acontecer, o que mais na ordem do mundo pode sair do lugar? A esposa, mais aflita que o marido, acusa a menina que não acorda de aliança com o cavalo, de abrir a porta para que ele entre. Aqui toma forma uma outra suspeita arraigada: o devir animal em forma de aliança, isto é, o receio de que certas pessoas travem contratos silenciosos com os animais e que esses contratos sejam algo como uma conspiração contra a sua própria espécie. Devires inquietantes também se alastram pelas obras de Balthus (1908-2001) – há um conjunto deles a produzir resultados pouco confortáveis nas suas pinturas: figuras que parecem bonecos de cera, autômatos ou epiléticos; erotismo infantil; ambientes domésticos oníricos; e gatos antropomorfizados. Um i CORTÁZAR, 2000, Verão. In: Octaedro, p. 57-68.
devir-gato parece tomar o pintor desde cedo – Gilles Neret conta que “Balthus mostra bem que pertence à família dos gatos. Ele vangloria-se disso e diz que foi gato desde a infância”.i Quando Balthus lança em 1921 seu precoce livro de gravuras Mitsou, sobre seu gato, Rainer Maria Rilke escreve no prefácio: Quem conhece o gato? Será possível que vocês pensem que o conhecem? Eu confesso que, no que me diz respeito, a sua existência foi sempre para mim uma hipótese bastante rebuscada... Para que os animais pertençam ao nosso mundo, é necessário que entrem um pouco nele, não é? É preciso que consintam, por pouco que seja, no nosso estilo de vida, que a tolerem: senão, eles medirão, hostis ou receosos, a distância que os separa de nós e será essa a sua maneira de se relacionarem conosco... O homem foi alguma vez contemporâneo deles? Duvido. E garantovos que por vezes, ao crepúsculo, o gato do vizinho salta através do meu corpo, ignorando-me, ou para provar aos espantados objetos que eu não existo.ii Nas pinturas protagonizadas por meninas e gatos como Sala de estar II, de 1942, há adolescentes em incômodos êxtases assistidas por gatos que ora sorriem, ora observam o observador, ora são apenas estranhamente humanos. A presença dos gatos nas saletas íntimas e nos quartos das meninas parece ser a presença do próprio pintor, que em um autorretrato de 1935 se faz de rei dos gatos. Onde Homens Primitivos e Poetas Ficam Curiosos Na conclusão de Das Unheimliche, Freud reitera iii que a emersão das crenças superadas do homem primitivo, junto dos temores e desejos infantis reprimidos, são i NERET, 2004, Balthus, p. 21.
as principais motivações das impressões inquietantes. Mas quem é, e a que distância de Freud está esse homem que não superou suas crenças, para quem muitos dos eventos (agora) inquietantes não seriam fonte de angústia? A distância não é tão grande como o adjetivo primitivo faz supor. Note-se que os exemplos literários de Freud não retrocedem além do século XVIII, isto é, apontam “para sua localização numa conjuntura histórica específica, para a ruptura histórica particular trazida pelo Iluminismo”.i Assim, tal homem primitivo que mistura fato e fábula está a uma proximidade aflitiva, logo antes da episteme clássica - por isso o inquietante parece não existir nos séculos anteriores, o que pode indicar que talvez a impressão seja um efeito colateral da apoteose da razãoii. Não só fato e ficção amalgamam esses primitivos até o período barroco, mas também combinam ou aproximam animalidades e humanidades sem que isso constitua uma ameaça à ordem do mundo. Era então possível ver qualidades humanas nos animais e vice-versa e fazer disso exaustivos estudos como a Fisiognomonia humana de Giambattista della Porta (1586) e os desenhos de Charles Le Brun (1678)iii (Figura 07). Um sintoma do afastamento entre humanidade e animalidade, e do estranho efeito que sua eventual proximidade vem a produzir, é o colapso da tradição da zoofisiognomonia, que progressivamente se torna inquietante, e a ascensão, no século XIX, das seguras caricaturas de animais, como as de Grandvilleiv (Figura 08). Assim como as antigas figuras antropomórficas de Jacques de Sève i DOLAR, 1991, I shall be with you on your wedding-night: Lacan and the uncanny, p. 7. ii CASTLE, 1995, The female thermometer: 18th century cuture and the invention of the uncanny, p. 8-9.
ii RILKE apud NERET, 2004, Balthus, p.31.
iii Ver BAUTRUSAITIS, 1999, Aberrações: ensaio sobre a lenda das formas., p.13-84.
iii FREUD, op. Cit., p. 371.
iv Ver BERGER, op. Cit., p. 24.
para Buffon que vão então ilustrar livros infantis, os animais em pele de humanos de Grandville sinalizam a inauguração de um novo reduto para as ambiguidades que poderiam ameaçar com vultos de dúvida a edificação da ideia de humanidade – parece que desde o século XIX estão seguramente encobertas e trancafiadas na fantasia infantil, no humor inofensivo ou na insanidade. Mas testemunham Redon, Kafka, Cortàzar e Balthus, entre tantos outros homens primitivos que se devotam a crenças superadas, que a luz da razão, ainda que ofuscante, não foi capaz de dissipar todas as sombras de onde emanam os saberes antigos e marginais. Atestam nas suas obras que não há exatamente uma lacuna no lugar que já foi outrora habitado pelo sagrado medieval, pela admiração renascentista ou pela ilusão barroca. Portanto, mesmo quando imersos nas nossas mais pantanosas certezas cotidianas, essas obras operam como mapas a pavimentar trajetórias evasivas e reiteram as suspeitas que irrompem quando nos olham, por detrás dos quatrocentos anos de ruído, os cães de Aldrovandi.
Figura 01
ALDROVANDI, Ulisse. Le tavole acquerellate di Ulisse Aldrovandi. Tavole vol. 001-2 Animali. Fondo Ulisse Aldrovandi. Bolonha: Università di Bologna, Século XVI, p. 95. Disponível em: http://goo.gl/rjgpU
Figura 03 Figura 02 BUFFON, Georges-Louis Leclerc. Collection des animaux quadrupèdes : planches coloriées sans texte, 1754. Disponível em: http://goo.gl/u94fN
BUFFON, Georges-Louis Leclerc; DUPRÉ, A.Edouard (ed.). Morceaux choisis : nouvelle édition comprenant une notice sur la vie et les ouvrages de Buffon, les discours académiques et des extraits de l’Histoire naturelle annotés (Nouvelle éd.). Paris: Hachette, 1906, p.93. Disponível em: goo.gl/mFdAv
Figura 05
Figura 04
Caligrafia de Georg Bocskay e ilustrações de Joris Hoefnagel.
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Figura 07 Figura 06
Homens-coruja de Charles Le Brun,
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Notre Dame de Paris Encadernação, literatura e arquitetura na França do séc. XIX
Ana Utsch
Resumo: Inscrita em uma cultura literária, editorial e visual inaugurada no séc. XIX, a encadernação define campos de difusão e de recepção distintos, que têm em comum o fato de convocarem o pertencimento ao universo literário. A análise de diferentes encadernações concebidas em torno da obra de Victor Hugo – Notre Dame de Paris (1831) – nos conduz a uma reflexão crítica sobre o processo de consolidação do gênero encadernação de editor no interior das rupturas que marcaram os sistemas de produção e de percepção da Belas Letras no séc. XIX. Este estudo confere ainda uma atenção particular às relações que a encadernação estabelece com diferentes formas de expressão da cultura. Palavras-chave: história da encadernação, edição francesa, catedral, Notre Dame de Paris, cultura literária e visual.
Muito frequentemente negligenciada pela história do livro e da literatura, a encadernação constitui, no entanto, um objeto privilegiado para a compreensão das formas que regulamentam os usos das imagens, dos textos e do livro na edição francesa do séc. XIX. Pela sua capacidade de expor, a encadernação – e notadamente a encadernação de editori – integra admiravelmente o conjunto de práticas literárias, arquitetônicas, artísticas e editoriais que inventam e veiculam os rituais de sociabilidade da vida cotidiana. Enquanto primeiro paratextoii do livro, a encadernação funda, pela imbricação de todas estas relações, um espaço inédito dentro do qual a imagem adquire uma nova forma de visibilidade, tanto em relação aos seus antigos protocolos estéticos pouco habituados aos dispositivos figurativos quanto em relação à topologia da página impressa e ilustrada, que ultrapassa seus limites tradicionais se projetando para fora do livro. Desenvolverei aqui um estudo sobre estas relações intersemióticas ao mesmo tempo forjadas e traduzidas pelos novos modelos técnicos e estéticos inaugurados pela encadernação no séc. XIX, identificando ainda a relevância destas aproximações nos processos de produção, difusão e recepção do livro. Para melhor apreender as afinidades que pontuam as ligações entre encadernação e literatura conduzirei este ensaio através de uma obra que exprime exemplarmente a complexidade do mundo editorial francês no séc. XIX. O romance de Victor Hugo, Notre Dame de Paris, encontra-se no centro das transformações reivindicadas pelo programa editorial romântico. i A encadernação de editor se define no interior de práticas editoriais que a partir do início do séc. XIX difundem diferentes modalidades técnicas e estéticas com o intuito de distinguir e de multiplicar as categorias de produção do impresso. Nós consideramos que no universo da reprodução a encadernação assegura o valor de distinção. ii Noção forjada por Gérard Genette no livro Seuils. Paris : Seuil, 1987.
Estudando duas edições ilustradas do romance (Renduel, 1835 e Perrotin, 1844) – para as quais foram propostas diferentes modalidades estruturais e decorativas do livro encadernado – analisarei as dimensões materiais e simbólicas que marcam a livraria francesa no séc. XIX. Inscritas no espaço democrático da edição industrial, que rompe com o antigo regime de distinção de formas textuais e materiais, as encadernações constituem “dispositivos ativos”i que nos convidam a refletir sobre a “função expressiva das formas”ii capazes de traduzir o diálogo estabelecido entre diferentes formas de expressão da cultura. Consignada pelo cotidiano sob o signo de uma “marginalidade massiva”iii e anônima, a encadernação de editor opera a apropriação selvagem dos antigos signos de distinção para simultaneamente contradizer o poder que estes veiculavam. As diferentes modalidades de encadernação concebidas em torno do romance de Victor Hugo atestam, nós veremos, que a história da difusão e da recepção das obras literárias não é somente verbal ou visual mas igualmente material. Uma sensibilidade partilhada: arquitetura e encadernação
literatura,
Os repertórios metafóricos construídos em torno das ligações estabelecidas entre o livro e a arquitetura são inúmeros e antigos. Eles mobilizam tanto os processos cognitivos de composição dos textos, quanto a construção da materialidade mais manifestamente apreensível, indo da letra e da página i Jacob, Christian (dir.). « introduction », in Lieux de savoir 2. Les mains de l’intellect. Paris : Albin Michel, 2010, p. 24. ii Trata-se da célebre expressão forjada por D. F. McKenzie na sua obra fundadora: Bibliography and the sociology of texts. London : The British Library, 1986. iii Certeau (de), Michel. L’invention du quotidien, I. Arts de faire. Paris : Gallimard, 1990, p. XLIII.
à tridimensionalidade do objeto. As metáforas que expressam mais propriamente a textualidade fixaram a tópica do texto como edifício bem antes do aparecimento da tipografia, constituindo o modelo recorrente dos sistemas de fabricação de conhecimento propostos pela Arte da Memória. Aquelas ligadas diretamente à materialidade do livro encontraram o seu lugar privilegiado nas peças liminares tipográficas, icônicas e iconográficas que definem os limites do texto e estabelecem progressivamente um aparelho protocolar que se dirige diretamente ao leitor. Se nos primeiros anos da tipografia a página de rosto se distingue por seu mutismo, herdeira que ainda era do célebre Incipt – o “aqui começa”–, a partir da segunda metade do século XVI – ornada com uma moldura que convoca toda a variedade de elementos arquitetônicos (pórticos, motivos vegetais, colunas, capitéis e grotescas) – ela se transforma no local privilegiado de expressão da arquitetura; local que o século XVII exacerba com o uso da perspectiva e com a sobreposição de motivos geométricos, cornucópias, cariátides e figuras monstruosas. Com efeito, as molduras ornadas com motivos arquiteturais impõem (na configuração visual construída num jogo estabelecido entre imagem e texto) uma perspectivação ornamental cujos dispositivos simbólicos e materiais insistem ainda hoje sobre a topografia da página. Nos dois casos, o livro, na sua textualidade e na sua materialidade, é percebido como um local que dispõe de um espaço essencialmente arquitetural para se movimentar.
Mas as ligações entre a decoração exterior dos livros e a arquitetura se dão a ver ainda mais frequentemente através da imensa gama de motivos decorativos inspirados nos entrelaces, cornucópias, grotescas, acantos e motivos vegetais diversos que compõem o repertório ornamental arquitetônico veiculado em diferentes períodos históricos. Trata-se pois de duas maneiras de se apropriar da arquitetura: o estabelecimento de um repertório decorativo submetido a um processo de estilização que, consciente da bidimensionalidade da imagem gravada, deve ser capaz de operar as transferências dos suportes impostas pela técnica (da pedra para o papel, do papel para o bronze, do bronze para o couro); mas também da representação figurativa da totalidade da portada ou do edifício que (mesmo ao aceitar os constrangimentos técnicos impostos pela bidimensionalidade da superfície sobre a qual ela é exposta) é capaz de afirmar metaforicamente a tridimensionalidade da encadernação, por sua vez tão cara à arquitetura. Investida de uma dimensão simbólica, esta segunda prática de apropriação da arquitetura pelo mundo da encadernação encontra-se em perfeita ressonância com a lógica de monumentalização do livro para a qual a literatura e a edição francesa do séc. XIX oferecem inúmeros exemplos.
Encadernação executada para o célebre colecionador Jean Grolier, séc. XVI, 29x18cm. (Devauchelle, Roger. La reliure en France des origines à nos jours, t.1. Paris, Rousseau-Girard, 1959).
Ao refletir sobre a maneira como a encadernação estabelece seus diálogos com a literatura três foram as formas de expressão cultural identificadas nas ligações estabelecidas entre a materialidade do livro e a arquitetura no séc. XIX: o gótico, o patrimônio e o pitoresco. Nós sabemos que esta imbricação de formas literárias, materiais e simbólicas são especialmente favorecidas pelo programa editorial e visual romântico e ela nos mostra ainda a maneira como o passado gótico é convocado para colocar em ordem os elementos visuais que afirmam a modernidade editorial e artística. Se o modelo arquitetural, com a comparação entre o texto e o
edifício, pode ser situado em um passado longínquo, a mesma analogia ganha uma nova dimensão no seio de uma sensibilidade capaz de reinventar as relações com o passado no século do historicismo. No mundo editorial esta união de formas para a afirmação de um programa visual comum se exprimiu particularmente através do gênero decorativo “à la cathédrale” (presente em frontispícios, vinhetas, encadernações, ilustrações diversas), mas ela se manifestou igualmente em todas as encadernações que colocaram as noções de patrimônio e de pitoresco a serviço de suas composições. A maneira como os elementos visuais são dispostos e associados variam de acordo com as distinções marcadas pelos usos sociais do livro e de acordo, também, com as tradições visuais que definem os espaços de atividade no interior do mundo da encadernação, contudo nenhum domínio de produção escapa à estética do monumento gótico – das encadernações mais luxuosas às mais humildes e efêmeras brochuras de papel. Apesar deste sucesso ao mesmo tempo nobre e popular, a voga da monumentalização das composições decorativas não se dá sem conflito. Inúmeros são os discursos – de encadernadores e bibliófilos – que desdenham a prática. Apenas o mundo da edição industrial recebe sem restrições este programa visual específico, seja ele traduzido pelo “museu de imagens”, pela “catedral de bolso”, pela “vitrine de imagens” ou pela desordem do “bazar de pechinchas”. À sua maneira, esta supremacia da imagem imposta às edições românticas, fundada pela conquista de um novo público, ancorada nas antigas tradições da gravura e da palavra impressa, mostra a emergência de uma sociedade que celebra a construção de uma cultura essencialmente gráfica. Ségolène Le Men já nos mostrou, em um belo trabalho consagrado à modernidade gótica própria
ao romantismo, que foi em Notre Dame de Paris, texto que ajuda a inventar esta modernidade fundada no passado, que a emergência dessa cultura gráfica aparece na sua forma mais determinante. Com efeito, logo após o seu aparecimento em 1831, a aliança entre a arquitetura e o livro ilustrado multiplica as discussões relativas às transformações estéticas ligadas às novas técnicas de impressão inauguradas no séc. XIX. Este encontro entre o livro e a arquitetura se dá a ver notadamente no célebre capítulo “Isto (a tipografia) matará aquilo (a arquitetura)” e ela é ainda sustentada por uma analogia capaz de aproximar os dois espaços: se a catedral pode ser lida como um livro, o livro ilustrado pode ser visto como catedral. Esta reciprocidade simbólica estabelecida entre o livro de pedra e o livro de chumbo encontra o seu lugar privilegiado de expressão na tridimensionalidade “sólida e massiva” i da encadernação “à la cathédrale”. A encadernação e a catedral Demonstrando uma extrema capacidade de reação, a encadernação se apropria prontamente das formas propostas pela nova sensibilidade romântica, e através de um duplo movimento, ao mesmo tempo técnico e estético, ela concebe um imenso repertório decorativo que convoca a imagem massiva da catedral assim como seus elementos arquitetônicos diversos: balaustradas, ogivas, arcobotantes, pináculos, flechas e rosáceas. A combinação destes elementos dão origem aos modelos de composição traduzidos, de acordo com o célebre bibliófilo Henri Béraldi, pela formalização de três gêneros: a decoração com rosácea, com pórtico e com três pináculosii. Apesar do desprezo incontestável que estes gêneros suscitam por i Le Men, Ségolène. La cathédrale illustrée de Hugo à Monet. Regard Romantique et modernité. Paris : Éditions CNRS, 1998, p.7. ii Béraldi, Henri. La reliure du XIXème siècle, t.1. Paris : L. Conquet, 1895, p.99.
parte da bibliofilia mantenedora da grande tradição, estas encadernações são inauguradas no interior de uma modalidade de produção aqui designada como “encadernação de autor”, em referência ao momento que pontua o início uma prática autoral caracterizada pela presença da assinatura dos encadernadores sobre as obras por eles executadas. Dois são os encadernadores que marcam este período: Simier, encadernador do Rei e mais tarde do Imperador, e Joseph Thouvenin, o artista-encadernador que será adorado pelas altas castas da bibliofilia. O primeiro funda a decoração com rosácea em um exemplar do Salon de 1822, o segundo concebe em 1825 a célebre composição com três pináculos.
Encadernação com decoração em “três pináculos” realizada pelo célebre Thouvenin. 23,5x15cm. Chefs-d’œuvre de Pierre et Thomas Corneille, avec les notes de tous les commentateurs. 1 vol. in-8°. Paris, Furne, 1829, (Catálogo : Livres Rares et anciens: http://livres-anciens-rares.com. br/2010/09/une-eclatante-reliure-de-joseph.html)
A moda propaga-se rapidamente e inúmeras encadernações fazem uso das composições neogóticas para a concepção de decorações executadas prioritariamente sobre romances de cavalaria, baladas, contos medievais, crônicas, cancioneiros e livros de amor reabilitados pela modernidade medievali. Tais edições eram muito frequentemente impressas em caracteres góticos, com ilustrações em litografia ou em talho doce, coloridas a mão, contornadas por motivos flamboyants e realçadas com ouro. Mas as composições neogóticas entram rapidamente no repertório formal da encadernação e os clássicos do séculos XVII e XVIII (as Fábulas de La Fontaine, o Telêmaco de Fénelon, as obras de Molière, Racine, Montesquieu) são também encadernados e decorados de acordo com a estética patrimonial traduzida pelo monumento exemplar medieval. Este anacronismo é alvo de críticas virulentas de muitos encadernadores e bibliófilos. Henri Béraldi, que via nestas composições a expressão de um “gótico de pêndulo” concretizado por catedrais de “pão de açúcar”, critica especialmente um exemplar de Rabelais executado por Thouvenin cuja composição ostentava um triforium com balaustradas e três pináculosii. Um tal julgamento é fortalecido por uma crítica situada em um contexto cultural mais amplo ligado a toda uma produção contemporânea literária e artística que se volta para o “estilo trovador”. Charles Nodier, o mesmo Nodier das Viagens Pitorescasiii, que despreza as composições i À guisa de exemplo: L’Historial du jongleur, par Ferdinand Langlé et Émile Morice. Paris : Firmin Didot et Lami-Denozan, 1829. – Les poésies de Clotilde de Surville, publiées par Vanderbourg, ornées de gravures d’après Colin. Paris : Nepveu, 1825. – Les contes du gay sçavoir. Ballades, fabliaux et traditions du Moyen Âge par Joseph Adolphe Ferdinand Langlé. Paris : Firmin Didot, 1828. ii Béraldi, Henri. La reliure du XIXème siècle, t.1, op. cit., t.1, p. 100. iii A obra monumental dirigida pelo Baron Taylor com a colaboração fundamental de Charles Nodier é publicada entre 1820 e 1878 (Gide fils et Firmin Didot).
“à la cathédrale” de Thouvenin antes do sucesso do estilo historicista marcado pela encadernação “à la fanfarre”i, mostra seu descontentamento pelo uso abusivo, mercantilista e ilícito do gótico: Manifestou-se recentemente uma propensão ao retorno assustador à perfectibilidade. Não sei onde esta perfectibilidade nos levará se persistirmos neste sentido oposto. O que é pior é que este esforço contrário à razão foi declarado no seio de homens nutridos de altos estudos. O pintor desenha os velhos monumentos, o arquiteto tenta levantá-lo, o poeta se nutre de inspiração ingênua e insolente que a tipografia reimprime. Há compradores para os móveis da Idade Média e leitores para as crônicas. [...] e os negócios prosperamii. A publicação que reúne o trabalho de inúmeros artistas, desenhistas e gravadores, constitui a primeira coletânea do patrimônio francês. A obra, que inaugura um novo olhar sobre a arquitetura e a paisagem, desempenha um papel fundamental na construção de uma nova sensibilidade em relação ao passado. i Estabelecida como gênero decorativo, a encadernação “à la fanfare” faz referência a um exemplar raríssimo da obra Fanfares et couvées abbadesques des Roule-Bontemps de la haute et basse cocquaigne, adquirida por Charles Nodier em 1829. O bibliófilo confia imediatamente o exemplar a Thouvenin – figura dominante da encadernação parisiense entre 1813 e 1834 – para a execução de uma encadernação realizada a partir de modelos decorativos recorrentes no séc. XVI. A decoração é situada como o ponto de partida do período historicista que marca a história da encadernação no séc. XIX sob o signo da emulação dos antigos. ii Citado por Béraldi, Henri. La reliure du XIXème siècle, op. cit. t. 1, p. 98. « Il s’est manifesté nouvellement une propension de retour effrayante pour la perfectibilité. Je ne sais où celle-ci nous mènera si nous persistons à aller en sens contraire. Ce qu’il y a de pis, c’est que c’est au milieu des hommes nourris de fortes études que s’est déclaré surtout cet essor inverse de la pensée. Le peintre dessine les vieux monuments, que l’architecte cherche à relever, et le poète se pénètre de l’inspiration naïve et hardie que la typographie réimprime. Il y a des acheteurs pour les meubles du Moyen Âge, et des lecteurs pour ses chroniques. [...] et les entreprises prospèrent ».
No que diz respeito à decoração de encadernações, este descontentamento se exprime sobretudo por um argumento técnico que constitui o pano de fundo dos debates capazes de opor duas modalidades técnicas de gravação que coexistem no séc. XIX. O interesse pelos “medievalismos” reabilita não somente os elementos arquitetônicos das catedrais, mas retém igualmente uma técnica de estampagem exercida sobre os couros utilizados para revestir as encadernações; técnica que já havia sido empregada para a realização das decorações medievais antes do aparecimento das virtuosas composições com “pequenos ferros” no séc. XVI. Trata-se da douração realizada com o auxílio de uma placa de madeira ou de bronze que desempenhava a função de um clichê. Estampadas sob pressão, como era o caso para as encadernações de manuscritos medievais, ou gravadas com calor a partir de uma prensa mecânica (balancier), as placas de douração favorecem a reutilização e a reprodução de uma base decorativa que pode ser posteriormente enriquecida com outros elementos ornamentais. Contrariamente às composições realizadas com o auxílio de pequenos ferros justapostos (o que impunha uma combinação cuidadosa dos elementos), as placas permitem a gravação de toda uma composição – previamente desenhada e gravada em bronze – através de um único golpe de prensa. É justamente esta eficácia própria a uma técnica que se presta facilmente à reprodução, que está na origem dos novos usos industriais e também das inúmeras críticas dirigidas às placas de douração. Ligadas intimamente à reabilitação de uma técnica medieval, as composições góticas, massivas e transbordantes, encontram um meio privilegiado de difusão de todo um programa visual triunfante. Ao permitir a sobreposição de outros elementos decorativos sobre uma base relativamente autônoma e reutilizável, a placa de douração favorece o sucesso das encadernações figuradas, concebidas como uma representação imagética do texto. Através
de um jogo de acumulação, as placas permitem a justaposição sobre uma mesma superfície, sobre um mesmo espaço, de toda a gama de fórmulas visuais que caracterizam, como assinala Ségolène Le Men, o sistema de ilustração romântico: o sítio, o tipo e a cena. “Enquanto que a cena e o tipo tratam da figura humana e do ser humano na vida social, o sítio revela o sentimento pitoresco da natureza e da história da arte”i. Como objeto editorial, a encadernação de editor se apropria das composições formais (rosácea, pórtico ou três pináculos) – que já haviam sido concebidas pela encadernação de luxo – para operar a criação de um novo gênero: a “catedral figurada”. Desta associação profunda entre uma decoração colocada em prática pela emergência da noção de sítio, e uma composição que revela as relações mantidas entre literatura e imagem, nasce este gênero decorativo que marca profundamente a longa tradição da encadernação francesa. Quanto à entrada da catedral nas práticas editoriais francesas do séc. XIX, os elementos decorativos neogóticos são inicialmente orientados a participar de uma produção ligada ao “livro de presente”, que, ostentando um certo luxo, são compostos principalmente por Keepsakes, álbuns de viagem, romances fantasistas, livros de casamento, histórias medievais e livros de oração. Contudo, os dispositivos praticados pelas composições figurativas “à la cathédrale” convocavam os elementos visuais veiculados pelo romance contemporâneo, que transforma-se, por sua vez, em um gênero textual também apto a receber as decorações neogóticas. No centro destes dispositivos, a figura da catedral, estilizada pela placa de douração, assegura a permanência de um sítio pitoresco sobre o qual as narrativas figuradas dos romances, representadas pelo tipo e pela cena, instalam-se e movimentam-se. Se, em um primeiro momento, o mundo da edição i Le Men, Ségolène. La cathédrale illustrée de Hugo à Monet. Regard Romantique et modernité, op.cit., p.112.
se limita à apropriação das composições elaboradas pela encadernação tradicional de luxo, ele saberá em seguida acrescentar os elementos figurativos que circulam no mesmo período sobre as pastas das encadernações figuradas. Notre Dame de Paris Todas estas questões colocadas pelos programas editoriais e visuais veiculados no séc. XIX emergem privilegiadamente na superfície textual e material do romance exemplar do romantismo triunfante: Notre Dame de Paris. Duas das edições ilustradasi do romance de Victor Hugo exprimem com precisão a maneira como a encadernação convoca a história, a arquitetura e a literatura para se impor como uma forma de visibilidade (política, ética e estética) no interior da democracia das letras apregoada pela edição francesa. As encadernações “à la cathédrale” propostas às edições hesitam entre as fórmulas praticadas no início dos anos 1820 e as inovações decorativas de 1840 ligadas à segunda fase do livro romântico, na qual o livro se transforma, pela abundância de vinhetas e ilustrações, em um “museu de imagens”ii.
as qualidades materiais das encadernações. Para a edição, que ainda não pode ser inscrita na fórmula do “museu de imagens”, o editor oferece uma vasta gama de encadernações que apresenta uma decoração “à la cathédrale” ainda tributária das composições “de pêndulo” realizadas por Simier e Thouvenin na primeira metade do século. Esta escolha é comentada pelo bibliófilo Henri Béraldi sob o signo de um grande desacordo estético: Nós encontramos o pórtico da catedral, placa veiculada comercialmente, sobre os exemplares da primeira edição ilustrada de Notre Dame de Paris, Renduel 1836. Mas a encadernação e o livro acordam-se menos do que poderíamos crer. Com efeito, o gótico da encadernação é ainda aqui o gótico da Restauração, o “gótico de pêndulo”. E o livro é o triunfo do gótico românticoi.
A edição Renduel, que começa a ser vendida em fascículos em 1835, é anunciada sob a forma de um luxuoso Keepsake no seio de práticas editoriais que dão continuidade à tradição de “livros de presente”, antiga tradição editorial francesa que sempre exaltou i Trata-se das edições Renduel (1836) e Perrotin (1844). Elas sucedem a edição original publicada por Gosselin em 1831 e sobre a qual figurava a célebre vinheta de título que representa a careta de Quasimodo dentro do oculus. A primeira edição Renduel (1832-1833) comporta o célebre frontispício “à la cathédrale” de Célestin Nanteuil. Entre as duas edições apresentadas se intercala a edição de Furne publicada em 1840. ii Le Men, Ségolène. La cathédrale illustrée de Hugo à Monet. Regard romantique et modernité, op. cit., p. 68.
i Béraldi, Henri. La reliure du XIXème siècle, t.1, op. cit., p. 102. « Nous retrouvons encore le portique de la cathédrale, plaque mise commercialement sur des exemplaires de la première édition illustrée de Notre Dame de Paris, Renduel, 1836. Mais la reliure et le livre s’accordent moins que l’on pourrait croire. En effet, le gothique de la reliure est encore ici du gothique de la Restauration, du gothique de pendule. Et le livre est le triomphe du gothique romantique ».
Para identificar este desacordo, Henri Béraldi opõe esta decoração às inúmeras apropriações que se manifestam nas composições “à la cathédrale” realizadas pela encadernação de edição. Carregadas de novos conteúdos semânticos, as composições provenientes destas apropriações são interpretadas pelo bibliófilo como o sinal maior do triunfo do gótico romântico, evento marcado, nós veremos, pela encadernação de editor proposta para a edição Perrotin de 1844. Mas ainda antes de apresentar a maneira como o gótico vitorioso da edição Perrotin se opõe à decoração de “pêndulo” da edição Renduel, gostaria de deter-me um instante sobre uma outra prática ligada às modalidades decorativas inscritas no domínio da encadernação de luxo, pois ela é capaz de exprimir – na recusa deliberada e atípica ao modelo da catedral – um outro tipo de relação estabelecida entre arquitetura, literatura e encadernação através da aliança construída entre um arquiteto, um dourador e um encadernador.
Encadernação de editor em plena basane dourada “a frio”, in-8°, 23,5x15cm. Victor Hugo. Notre Dame de Paris. Paris, Renduel, 1836, (Bibliothèque des arts décoratifs - Collection Maciet - Album : Reliure. France. XIXème siècle. 1ère moitié. Artistes. A-Z).
Trata-se de uma encadernação original concebida em 1848 para a edição Perrotin de Notre Dame e apresentada em 1849 na ocasião da Grande Exposição da Segunda República. Esta colaboração celebra a associação de Marius Michel (então no início de sua carreira autônoma como dourador e decorador), Charles Rossigneux (arquiteto, desenhista e projetista) e Charles François Capé (encadernador da Biblioteca do Louvre e respeitado nos meios da bibliofilia). Considerada por Charles Meunier (célebre encadernador ligado à voga das encadernações “emblemáticas” do final do séc. XIX) como uma das melhores composições do período, a decoração executada por Marius Michel e concebida por Rossigneux se afasta completamente dos modelos estéticos concebidos em torno da imagem da catedral, inaugurando um espaço visual no qual a arquitetura é convocada a partir de uma leitura filosófica do romance de Hugo.
Constituída sobre um fundo pontilhado que forma um grande compartimento oval sobre a pasta superior, a decoração comporta mosaicos e douração com motivos vegetais tendenciosamente góticos. No centro da composição encontramos uma bandeirola que anuncia solenemente as “maiúsculas gregas, negras de vetustade e profundamente entalhadas na pedra”i; as célebres maiúsculas a partir das quais Victor Hugo confessa ter “edificado” seu livro: “ANANKÈ”. Ao colocar em valor a pujança inalterável do destino e da fatalidade, a decoração comporta toda a carga enigmática do romance histórico de Victor Hugo. Assim, como anuncia o prólogo da obra, no qual o “anankè” aparece como a pedra fundadora da escrita hugoliana, todos os elementos decorativos da composição gravitam em torno da representação exemplar da fatalidade: as armas de França, os nomes das personagens gravados sobre os cantos das pastas e as sentenças latinas reforçam o valor dado à dimensão enigmática. Gravada no pé da pasta superior, uma sentença de Sêneca sugere o crime que condena Esmeralda ao enforcamento e anuncia o destino de Frollo apesar da aparente impunidade gozada pelo Arcediago. « Tuta scelera esse possunt secura non possunt » (Le crime peut être à l’abri du châtiment, mais jamais de la crainteii/ O crime pode permanecer impune, mas jamais estará livre do temor)iii.
i Hugo, Victor. Notre Dame de Paris. Paris : Perrotin, 1844, p.1.
Encadernação executada por Capé, decoração realizada por Marius Michel a partir de uma composição de Rossigneux, 1849, in-8°, 27x18,7cm. Victor Hugo, Notre Dame de Paris. Paris, Perrotin, 1844. (Béraldi, Henri. La reliure du XIXème siècle. t. 2, op.cit., p.97.)
ii Sénèque. « Il y a toujours eu de méchants. Du procès de Clodius. De la force de la conscience », in Les œuvres complètes de Sénèque, traduction nouvelle, t.7. Paris : Panckoucke, 1834, p. 153. iii O trabalho de identificação das sentenças latinas foi realizado com a amável colaboração de Janes Mendes Pinto.
Se levarmos em conta o período no qual a encadernação foi realizada, podemos abordar estes elementos decorativos sob o olhar da fatalidade histórica. Executada em 1849, a composição comporta igualmente as armas de França situadas no centro de uma sentença que corresponde à exclamação impotente do escravo Davus no primeiro ato da comédia de Terêncio, Phormion: « O ! regem me esse oportuit » (Oh ! si j’avais été roi ! i/ Oh ! Se eu tivesse sido rei). Inscrita no interior de um jogo dentro do qual os elementos são implacavelmente submetidos ao destino, mestre supremo da vida, as armas de França, envoltas pela sentença latina, são exaltadas no mesmo momento em que os horizontes da história se delimitam com a eclosão da crise econômica e política pontuada pela queda do regime em janeiro de 1848 e pela ascensão da Segunda República. Um último elemento aqui apontado, e que colabora com a exaltação da textualidade de Notre Dame, é apresentado pelo uso inesperado da palavra escrita e gravada, metamorfoseada em ornamento para exprimir a razão gráfica festejada pelo romance. Mesmo que a decoração concebida por Rossigneux anuncie uma certa liberdade em relação às composições formais – inscrevendo-se avant la lettre na voga das “encadernações emblemáticas” do fim do século – é curioso identificar o uso extremamente atípico da palavra escrita sobre uma composição decorativa deste período. Trata-se certamente de uma interpretação ao mesmo tempo ornamental e textual que faz referência às reflexões sobre a tipografia e a arquitetura discutidas pelo próprio romance. Para além da referência explícita à fatalidade da existência, anunciada pelo prólogo através do “anankè”, a decoração pode ser interpretada sob os auspícios do capítulo também fatalista “Ceci tuera i Térence. Phormion, in Les Comédies de Térence, traduction nouvelle par J. A. Amar, t. 2. Bibliothèque latine-française. Paris : Panckoucke, 1830, p.213.
cela” / “Isto matará aquilo”. Nós sabemos que este romance histórico – aclamado por um vasto público – suscitou inúmeras interpretações e leituras, mas as representações dadas pela encadernação de Marius Michel e Capé sugerem sem dúvida uma leitura que promove o romance filosófico. Recusando as composições figurativas e as representações massivas da catedral, a aliança do arquiteto e do dourador coloca em cena os personagens do romance através da inscrição de seus próprios nomes, que figuram sob a ameaça iminente do destino. As palavras gravadas sobre o couro e fixadas em bandeirolas emblematizam insistentemente “este poema em prosa dedicado à pedra, que pode apenas ser humanizada sob o preço de petrificar a palavra humana”i. Ora, nesta configuração visual dada pela decoração através da qual o ornamento se sobrepõe à escritura e para o qual a escritura mata o edifício, a metáfora arquitetural pode se traduzir em metáfora linguística, pois a tipografia (o livro de chumbo) opondo-se à arquitetura (o livro de pedra), se desdobra em uma analogia exemplar entre duas formas de linguagem que parecem ser simultaneamente representadas e predestinadas:
O livro vai matar o edifício [...] a arquitetura já não mais será uma arte social, uma arte coletiva, uma arte dominante. O grande poema, o grande edifício, a grande obra da humanidade não será edificada, será impressaii.
i Rancière, Jacques. La parole muette. Essai sur les contradictions de la littérature. Paris : Hachette, 1998, p.27. ii Hugo, Victor. Notre Dame de Paris, op. cit., p. 174 -178. « Le livre va tuer l’édifice [...] l’architecture ne sera plus l’art social, l’art collectif, l’art dominant. Le grand poème, le grand édifice, la grande œuvre de l’humanité ne se bâtira plus, elle s’imprimera ».
Vejamos finalmente a encadernação de editor que se acorda com o sucesso editorial do gótico romântico. Contrariamente à dimensão enigmática promulgada pela encadernação de Capé e àquela proposta pela edição Renduel que, seguindo os modelos formais da decoração “à la cathédrale”, promove a dimensão histórica do romance gótico, a encadernação de editor confeccionada para a edição Perrotin em 1844 articula-se perfeitamente com o triunfo do gótico romântico, pois ela opera a transformação dos elementos decorativos da catedral convidando os personagens do romance a integrar a base decorativa fornecida pelo pórtico. Trata-se desta vez de uma encadernação de editor que visa sua difusão para um público vasto e por isso mesmo apresenta na sua ornamentação uma composição que convoca uma leitura sustentada pelo romance de amor. Estamos aqui diante de um caso de ilustração (uma cena do romance) fundado sobre um elemento ornamental (o pórtico gótico) que colocam em questão a oposição tradicional entre o decorativo e o ilustrativo. Lembremos igualmente que é sob a base desta oposição que a vinheta romântica (ao mesmo tempo ornamento e ilustração) reivindica o equilíbrio entre as duas instâncias iconográficas.
Encadernação de editor em percalina. 26,7x17,5cm. Victor Hugo. Notre Dame de Paris. Paris, Perrotin, 1844. (Bibliothèque des arts décoratifs - Collection Maciet - Album : Reliure. France. XIXème siècle. 1ère moitié. Artistes. A-Z).
Nesta composição inspirada do frontispício da edição, o que está em jogo não é catedral, mas Esmeralda que, oposta espacialmente ao olhar melancólico de Quasimodo (representado no alto da torre central entre os dois sinos), encarna toda a sua origem cigana e aparece dourada sobre a pasta superior da encadernação como a heroína suprema do romance. Situada no centro do portal gótico entre Phoebus e Frollo, que estão por sua vez fixados no interior dos nichos que compõem a fachada, a cena dentro da qual se movimenta Esmeralda não é a mesma representada pelo frontispício, no qual a heroína melancólica aparece sob a ameaça da morte anunciada de Phoebus. Com efeito, a imagem central da decoração representa uma das cenas mais emblemáticas da narrativa: a dança de Esmeralda (Livro II, capítulo III), mais precisamente, a terceira parte do seu espetáculo, quando a cabra Djali entra em cena para um número de paródia. Trata-se do momento no qual a cigana é observada pelos olhos encantados daqueles que seriam mais tarde seus admiradores, “fascinados pela deslumbrante visão”. A importância atribuída à heroína hugoliana pode ser pontuada alguns anos antes do aparecimento da edição de Perrotin no interior da fortuna iconográfica que acompanha a obra de Victor Hugo, pois em 1833 Louis Boulanger apresenta uma série de aquarelas que deslocam a atenção dada a Quasimodo (notadamente centrada na célebre vinheta de título da primeira edição Gosselin de 1831 e que faz referência à cena do concurso de máscaras) em direção às cenas centradas em Esmeralda. A decoração da encadernação, centrada na heroína, opera uma síntese “que aproxima a obra hugoliana do gothic novel, respondendo os desejos de um vasto público – do dandy romântico ao porteiro”i. i Le Men, Ségolène. La cathédrale illustrée de Hugo à Monet. Regard romantique et modernité, op. cit., p. 67. A autora faz referência ao prefácio que Gautier oferece ao JeunesFrance : Romans goguenards (Renduel, 1833), no qual ele celebra a democracia romântica.
Frontispício e vinheta de título (gravura em madeira de topo) : Victor Hugo, Notre Dame de Paris. Perrotin, 1844. (Edição digital BnF - Gallica).
Certamente a placa de douração gravada por Haarhausi para a edição Perrotin foi inspirada do frontispício de Aimé de Lemud, mas ela desloca as cenas e propõe um novo tipo de visibilidade às personagens. Dourados sobre uma composição gótica estilizada (que já não é mais a catedral massiva mas o portal envolvido por motivos vegetais), Esmeralda, Frollo, Phoebus e Quasimodo são destacados da composição de origem, estilizados e recortados. Sendo igualmente separada dos outros elementos que compõem o frontispício, a composição assegura a individualidade de cada uma das personagens. Dispostas desta maneira sobre o sítio emblemático do romantismo (e do romance de Victor Hugo), local capaz de conferir toda a carga pitoresca convocada pela edição, as personagens recebem uma nova eficácia visual, que torna possível a constituição de verdadeiros “tipos humanos”. Através dos dispositivos técnicos que supõem a transferência da gravura para a placa, o sítio e o tipo encontram sua plena definição sobre a tridimensionalidade exposante da encadernação, promovendo assim um novo status à heroína hugoliana.
Ao colaborar com o estabelecimento do espaço anônimo da edição industrial, que coloca em questão o antigo sistema de distinção das formas textuais e materiais, a encadernação é, nós verificamos, uma imagem exposante, mas ela é também e de maneira ainda mais contundente uma “imagem errante” que, tal como a “palavra errante” da qual nos fala Jacques Rancièrei, avança sem saber a quem é permitido ou não se dirigir, apesar das distinções marcadas pelos programas editoriais. Mas este anonimato não é, de modo algum, símbolo de uma homogeneização das práticas de difusão da encadernação, pois, situados fora do espaço formal construído pela grande tradição que impunha um código preciso de interpretação, os elementos visuais (simbólicos, materiais ou estéticos) que compõem as encadernações estão aptos a reinventar seus percursos de apropriação. Em uma palavra: espaço público por excelência, o mundo da edição, ao integrar a atividade da encadernação, elimina os códigos de representação que legitimavam a circulação e a apropriação das formas tradicionais que viam no livro um objeto suscetível a integrar todo tipo de clivagem simbólica.
Na medida em que a encadernação “à la cathédrale” se vulgariza na segunda metade do séc. XIX, ela se transforma em um estereótipo que não é mais necessariamente ligado a uma produção editorial essencialmente gótica ou pitoresca, respondendo a demanda de edições ilustradas de todas as categorias editoriais – grande e pequenos formatos, ricos ou sóbrios, comportando, para além das narrativas de viagem, romances, história geral, geografia, clássicos franceses, traduções de clássicos estrangeiros, pequenos manuais morais de boa conduta, etc. – que preenchem os catálogos de editores em diferentes programas de difusão: religião, moral, história, ciência, literatura, belas artes e educação.
É sob a base desta indiferença silenciosa, inerente à democratização, que o mundo da edição desregula a partilha de espaço e de tempo própria ao mundo da encadernação. A partir de então, estando disponível a todos os olhares e inscrita em um triplo sistema de produção, difusão e recepção da literatura, a encadernação de editor concretiza materialmente a vulgarização das formas que estiveram muito tempo afastadas do grande público. Ao mesmo tempo ela torna-se visível no interior de um espaço de recepção formado por uma comunidade que, pouco habituada aos usos tradicionais do livro, não é necessariamente capaz de decifrar os códigos que definiam a hierarquia de gêneros que ela assegurava. Lembremos que antes desta tomada de consciência pelo mundo editorial,
i Haarhaus foi proprietário de um célebre atelier parisiense de gravura e placas de douração.
i Rancière, Jacques. Le partage du sensible. Esthétique et politique. Paris : La Fabrique, 2000, p.15.
a encadernação decorada se inscrevia no interior de práticas de leitura nobiliárias ou ligadas à bibliofilia, práticas que se amparavam na materialidade do livro para afirmar as posições de autoridade das diferentes comunidades de leitores. O exemplo mais emblemático é sem dúvida a longa tradição da decoração com brasões e armas que glorificavam o poder das grandes famílias. As normas de conveniência que ligam uma certa modalidade textual a um público pretensamente qualificado são, desta maneira, colocadas em questão. O romance, o gênero literário vitorioso que marca historicamente o aparecimento de uma nova arte de escrever capaz de fundar a concepção moderna de literatura, torna-se o local onde as posições de autoridade que governavam as partilhas da cultura escrita já não possuem os mesmos valores. Uma tal ruptura no sistema das Belas Letras é sem dúvida também marcada pelo novo regime de difusão da palavra escrita colocado em prática pela edição francesa e suas materialidades.
dos valores que definiam as posição de autoridade no interior do campo literário, pois a subversão das formas tradicionalmente associadas aos usos elitistas do livro celebra uma certa independência das formas de expressão traduzidas pela hierarquia social. Trata-se do desmantelamento de um sistema de hierarquização das formas que associava um gênero textual a uma modalidade estética determinada, visando um público que dava a cada livro uma indumentária própria a sua condição. Assim, a materialidade do livro, traduzida admiravelmente pela encadernação, é investida por uma “eficácia intelectual das formas de materialização da razão”i, participando do novo regime de “partilha do sensível”ii anunciado pelas práticas literárias no interior de um mesmo espaço (a edição), de um mesmo objeto (o livro), de uma mesma pluralidade de olhares e de gestos (o leitor anônimo).
Rompendo com as antigas normas que regiam o sistema de encadernação com o uso de novos dispositivos técnicos e estéticos, a atividade editorial colabora com a construção de uma nova “ordem dos livros”i, dentro da qual os antigos elementos materiais e simbólicos que hierarquizavam a materialidade do livro já não eram acolhidos. Estas novas práticas editoriais acordam-se perfeitamente com o princípio de igualdade dos gêneros textuais que transformam a “ordem dos discursos”ii no séc. XIX. Pelo mesmo caminho, elas colaboram também com a inversão i Faço, é claro, referência à noção forjada por Roger Chartier relativa à noção foucautiana apresentada pela “ordem dos discursos” no livro: Chartier, Roger. L’ordre des livres. Lecteurs, auteurs, bibliothèques en Europe entre XVIème et XVIIIème siècle. Aix-en-Provence : Alinéa, 1992. ii Foucault, Michel. L’ordre du discours. Paris, : Gallimard, NFR, 1971.
i Jacob, Christian. Lieux de Savoir 2. Les mains de l’intellect, op. cit., p. 24. ii Rancière, Jacques. Le partage du sensible. Esthétique et politique, op.cit..
Antigos caminhos, novas inquietações Moema Nascimento Queiroz
A pesquisa para o mestrado, por mim realizada entre 2001-2003, discorreu sobre processos de conservação e restauro e ações de educação patrimonial como instrumentos de preservação do Patrimônio. Com material escasso relativo ao tema Educação Patrimonial, apoiei-me em bibliografias afins e diversas experiências de outros profissionais atuantes na área, adaptando as metodologias existentes para a realidade que encontrei na comunidade com a qual atuei em dois anos de pesquisa-ação. Como desdobramento dessa pesquisa, dei início à realização de uma série de projetos de Educação Patrimonial, divulgando minha experiência por meio de conferências, oficinas, e para profissionais da educação (professores, pedagogos, orientadores e diretores de escolas das redes pública e privada), funcionários de instituições responsáveis pela guarda, manutenção e conservação de bens culturais, gestores e agentes culturais, objetivando a transmissão dos conceitos básicos sobre o universo que compreende o Patrimônio Cultural, sua preservação e a educação patrimonial. Contudo, ao largo dessas experiências, surgiram inquietações relativas ao tema. Como proposta de pesquisa, que oficializo através desse seminário, almejo buscar por meio da compreensão dos mecanismos da memória e suas construções (que fortalecem a sensação de pertencimento e existência), novas possibilidades para uma Educação Patrimonial que contribua efetivamente na transformação do pensamento preservacionista, mais abrangente e plural. Palavras chave: Patrimônio, educação patrimonial, memória, transformação.
“Ninguém entra num mesmo rio uma segunda vez. Pois quando isso acontece, já não se é o mesmo; assim como as águas, que já serão outras.” 2 Heráclito de Éfeso, séc.V a.C. Ao realizar o percurso rumo àquele lugar, foi-me impossível controlar um imediato deslocamento há outro tempo, como num filme em sépia, situado em dois enriquecedores anos de contato com aquela comunidade. Um caminho que realizei infinitas vezes, por uma estrada sinuosa, em declive, num asfalto que me conduzia por entre montanhas e suas paisagens exuberantes. Rumo a um vale, a um lugar onde pude experimentar diversas experiências que me proporcionaram novos olhares, grandes inquietações. E definitivas transformações. O trajeto parece o mesmo, com suas típicas sinuosidades e declives, algumas modificações na paisagem, sempre em constante reconstrução, destruição, remodelagem. Numa insistência metódica em apagar teimosos vestígios de tempos que ainda insistem em se fazerem presentes. Como se fosse insulto memorar. Impossível se deter o mergulho em reminiscências. Pois a memória é fogo vivo e astuto e que evoca poderosas imagens, mesmo que essas não mais existam em formas concretas. E nesse novelo, nove anos após a realização de meu mestrado, tendo como fonte de pesquisa e ações essa pequena comunidade, retomo ao mesmo portal que me conduziu a esse mundo e que, embora pareça haver paralisado no tempo, insiste em se manter vivo e dinâmico, num esforço de se reinventar através de suas memórias. E me conduz a redirecionar meu olhar, certamente mais amadurecido e mais crítico, a inúmeras inquietações. Entre 2001 e 2003 desenvolvi minha pesquisa de mestrado3 nesse pequeno distrito de Nova Lima/ Minas Gerais, São Sebastiao das Águas Claras (Macacos), tendo como proposta um projeto de
conservação e restauro da Capela de São Sebastião (Fig 01), fonte de fé, devoção e integração dos membros da comunidade e o elo primário de interação com a comunidade local, para os trabalhos de Educação Patrimonial, visando a revalorização e reafirmação da identidade cultural. Considero dois os momentos da pesquisa realizada. Oprimeiro-DesvelandoCaixas,abordaaspectosdarevitalização da Capela e o processo de restauração dos seus bens móveis e integrados. Como primeiro passo, busquei embasamentos teóricos para dar inicio à proposta, através de literatura referente à ciência da conservação nos aspectos referentes ao controle ambiental, ao desenvolvimento de estratégias, às normas e procedimentos para proteger o
patrimônio e experiências no campo da educação patrimonial como geradoras de novas posturas no processo de preservação patrimonial. Foi realizado o levantamento histórico e geográfico da região de Nova Lima em Minas Gerais, nela localizando São Sebastião das Águas Claras e sua capela. De fundamental importância foi compreender a Igreja como instituição, como pessoa jurídica, conhecendo seus aspectos administrativos, sua subordinação ao Direito Canônico no que se refere aos bens patrimoniais, dentre eles, a Capela de São Sebastião, sua rotina e o papel da Prefeitura de Nova Lima na gestão de recursos voltados a ela. De posse desses dados, foram analisados os aspectos formais e estilísticos da edificação e seus bens integrados, inserindo-os no contexto barroco de Minas Gerais, destacando sua importância histórica e artística que, depois de restaurada, teve restabelecida sua unidade potencial e garantida a sua continuidade em seus 300 anos de história. (Fig. 02 e 03) Nesta primeira fase da pesquisa, o ponto crítico estabelecido foi a difícil condição de gerenciamento e suas implicações na intervenção do patrimônio, bem como o complexo estabelecimento de uma conduta de real interação entre os diversos “setores” vinculados à sua recuperação, justamente pela ausência de uma visão conjunta mais abrangente quanto ao comprometimento com o patrimônio no contexto ao qual ele pertence. Dando prosseguimento, busquei entender a região em seus aspectos climáticos, estabelecendo as relações entre o edifício, seu entorno e toda a influência dos agentes externos no ambiente interno da Capela. Realizando a análise das condições do bem cultural em questão, baseada em diagnósticos anteriores e na avaliação atual das patologias recorrentes e suas possíveis causas, procurei elaborar uma linha de conduta visando soluções quanto aos problemas detectados, sem prejuízo à edificação e à sua comunidade mantenedora.
Detecto uma grande inquietação (que ainda persiste) quanto à minha atuação, como especialista em conservação e restauro e meu comprometimento profissional quanto à preservação do patrimônio cultural. Como atuar conscientemente num exercício de percepção entre o idealizado e a realidade encontrada, estabelecendo elos com a educação patrimonial que não seja por caminhos padronizados e pré-estabelecidos que provoquem a implantação, mesmo de forma não intencional, de uma memória fictícia, errônea, em detrimento dos reais valores desse grupo? E quais são esses valores? Certamente eu não os conhecia (muito provável que jamais os conheça em sua totalidade), contudo esse grupo os tem definidos? Como posso tentar evocar
suas informações arquivadas? Como posso não incorrer no perigoso caminho do implante de falsas memórias, evitando a manipulação de lembranças que podem criar uma falsa identidade?4 Ao considerar todos os aspectos mencionados, pude dar inicio às ações envolvendo os três grupos que considerei fundamentais para o desenvolvimento da pesquisa: o primeiro, membros da comunidade e mantenedores da Capela; o segundo, a Escola Municipal local e sua equipe de funcionários,
professores e alunos (turmas da 1ª a 4ª série do ensino fundamental) e o terceiro, o Conselho Consultivo Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico de Nova Lima, vigente na época do desenvolvimento da pesquisa. “[...] a memória não reside nos objetos. A memória está em quem está vivo. Os objetos, os textos e as outras coisas servem apenas para ativar essa memória, ou seja, um estado da Mnemônica: a reminiscência.” 5 Realizar uma pesquisa que nos propõe um percurso além dos paradigmas da Academia é árdua tarefa, pois inevitavelmente nos proporciona confrontos entre a
teoria, o planejamento estabelecido e as ações a serem implantadas, diante da realidade que se apresenta. Obriga-nos a irmos além de nossa zona de conforto. A pesquisa me proporcionou trabalhar com grupos diferenciados, de classe social e de formação diversas. Uma gama ampla de idades e concepções: crianças, jovens e idosos. Uma coletividade detentora de uma memória dinâmica, viva, maleável, em permanente processo de evolução e por isso mesmo frágil, vulnerável, por vezes insegura. Contudo, muito afetiva, acolhedora, mas com uma presente desconfiança. Como brilho instável e flutuante. (Fig. 04, 05 e 06) Para dar prosseguimento às ações propostas foi necessário reavaliar e readequar minha postura frente à realidade encontrada, revisitando e reestruturando os conceitos teóricos e práticos na concepção e aplicação das ações educativas, propondo-me a incorporar e vivenciar a tríade: interação – ensino – aprendizado, pela convivência que faz com que o outro se transforme de maneira natural, equivalendo seu modo de viver com o do outro num processo contínuo que o leva a coexistir de acordo com o conviver de seu meio.6 Atuando como educadores e educandos em sintonia e responsabilidade para com
o aprender e o ensinar. Interação com o nosso meio e sua possível transformação. Deste modo, assumindo novas posturas, restabeleci uma dinâmica mais afetiva e de confiança com os grupos, envolvendo-me no processo de reconhecimento de uma identidade cultural fragmentada, usando como ferramenta os bens culturais por eles mais considerados. As ações educativas aplicadas aos dois primeiros grupos tiveram como fonte seu cotidiano, seus relatos, a observação dos pequenos saberes e práticas habituais, considerando também os anseios e desejos pelo que não se conhece, mas se sabe existir. Por anseios percebidos nos gestos, no olhar, nas palavras soltas, nas reticências. Procurei assim, despertar o interesse dos grupos quanto à importância de seu patrimônio para a cidade e para suas vidas. Juntos, desenvolvemos caminhos para uma compreensão quanto à responsabilidade da preservação de sua cultura (em toda sua abrangência) e a importante participação de todos nesse processo, almejando proporcionar uma autonomia da comunidade, em relação ao poder público, no processo de conservação da Capela. Busquei estimular o resgate do sentido de identidade cultural local, através do sentimento de responsabilidade para com o patrimônio coletivo, sensibilizando-os quanto à ampliação
de seu comprometimento para todo o contexto em que vivem, desde seu patrimônio particular, individual, ampliando a visão para o patrimônio histórico-artístico e por fim ao patrimônio ecológico ambiental. (Fig. 07) A restauração dos bens integrados da Capela de São Sebastião gerou preocupações quanto ao quê fazer para impedir que o trabalho realizado se perdesse em pouco tempo. Como resposta, concluí que o caminho inicial seria o estímulo a ações integradoras, tentando “traduzir”, de forma compreensível à comunidade, a necessidade imperiosa de sua participação em um trabalho de conservação e educação. Baseando-me nas pesquisas referentes ao contexto histórico em que se formou o local e a edificação, compreendendo as questões administrativoeconômicas referentes à Capela, construí junto aos grupos planos de ações condizentes com a realidade local. Intencionava, desde o início, propor soluções e se possível implementá-las. Mas como realizá-las sem levar em consideração a sua manutenção? Qual sistema deveria sugerir, como medida conservativa, sem interferir na rotina de um templo com seus trabalhos e cultos pré-estabelecidos e com recursos
mínimos para sua manutenção? E a quem deveria me reportar para apresentar as propostas e decidir sobre elas? Em seu histórico administrativo, a Capela é uma fonte “geradora” de recursos apenas através da pontuação que ela fornece ao Município de Nova Lima, que junto a outros bens tombados sob sua tutela, precisa administrar os poucos recursos a ele destinado pelo Estado, para serem distribuídos entre todo o seu patrimônio, de acordo com as urgências que se apresentam, na medida do possível. Assim, todo o trabalho foi sendo desenvolvido com o surgimento de questões, discussões e ações por meio de decisões conjuntas e/ou sua aprovação. Ao sair em busca das soluções, a segunda etapa da pesquisa se revelou primordial para nossa compreensão sobre a edificação enquanto matéria e seus objetos integrados. Reconhecer suas técnicas construtivas e as vantagens e desvantagens oferecidas por elas, analisar os diagnósticos realizados nos períodos de sua intervenção e pontuar suas questões comuns e divergentes, levou-me a uma pesquisa em outros campos do saber e ao apoio de profissionais especializados numa tentativa de compreender a sutil e complexa relação entre o micro e o macro ambiente que a envolve. Não posso deixar de
pontuar a questão do gerenciamento, que é de fundamental importância quando da intervenção de um patrimônio, qualquer que seja ele. É inegável o esforço que vem sendo empreendido por órgãos da iniciativa privada e pública em promover a recuperação de bens patrimoniais. Graças a essas iniciativas, vimos conseguindo amenizar a perda de nossa memória material (e consequentemente imaterial) através da captação de recursos que extrapolam as verbas públicas, tão exíguas para esses fins. Falta ainda uma maior e melhor preparação, tanto dos gestores culturais, no gerenciamento desse tipo de empreendimento, quanto da equipe executora no que concerne a uma maior integração no processo do restauro. A área patrimonial requer
de seus agentes e dos órgãos federais, estaduais e municipais, cada vez mais, e de forma urgente, uma maior responsabilidade no que tange à implantação, divulgação e estimulo a novas abordagens sobre gerenciamento e gestão do Patrimônio, para que as parcerias continuem a ser incentivadas, porém readequadas a uma área que exige melhor preparação e especialização de seus profissionais, bem como daqueles que a ela se vinculam. Quanto à edificação, alguns de seus problemas originados pela própria técnica construtiva utilizada e por diversas intervenções ocorridas ao longo de sua história, culminando em uma restauração arquitetônica, que eliminou e corrigiu muitas dessas intervenções inadequadas. Ao compreender a técnica construtiva da edificação, os materiais constitutivos dos bens integrados e a correlação de ambos com o próprio meio, percebi que diversos aspectos considerados prejudiciais à sua conservação, como os altos índices de umidade relativa nesse contexto, tornaram-se fatores de equilíbrio para a conservação das obras, ao mesmo tempo em que provocaram, por falta de uma conservação adequada, suas patologias. O monitoramento realizado por alguns meses trouxe subsídios que confirmaram suposições existentes quanto à inércia térmica da edificação, seu sistema passivo de ventilação/aeração e sua eficiência. Essas constatações, no entanto, produziram uma
preocupação maior no que tange ao grupo humano mantenedor da capela. Nesse ponto, a pesquisa ganhou outro ritmo, quando se fez necessário estabelecer a devida compreensão da importância das ações a serem implantadas, tanto pelos responsáveis diretos pela Capela de São Sebastião – Padre, conselho consultivo, membros mantenedores e usuários – bem como pelos responsáveis indiretos da edificação – Conselho Consultivo do Patrimônio de Nova Lima/ MG. A oportunidade de repassar o conhecimento da pesquisa em diversos níveis de linguagem balizou o esforço de investigação proporcionou o encontro de soluções adequadas a todos. O resultado foi a aprovação, por parte dos responsáveis pelo patrimônio, para as implementações necessárias, sem onerar a sua comunidade mantenedora nem obrigála a mudar sua rotina diária. Tais ações proporcionaram uma melhor conservação da Capela, não somente através das medidas efetivas adotadas posteriormente à restauração da mesma e que vieram completar as ações voltadas à sua melhoria, como também pela autonomia proporcionada a seus responsáveis diretos e que foi conquistada através de constante permuta estabelecida entre as partes envolvidas. O convívio diário, as conversas individuais e coletivas, aliadas ao imenso carinho e devoção que essas pessoas conferem à Capela, estabeleceram os meios necessários para sua preservação.
Outro enfoque da pesquisa se delineou no decorrer do processo de restauração da Capela. As ações junto à Escola Municipal Rubem da Costa Lima propiciaram importantes reflexões quanto a Educação Patrimonial e sua aplicabilidade, por ter sido esta a primeira vez que atuei como mediadora no ensino fundamental. Em minhas experiências anteriores a esse projeto, atuei com adultos, que já possuíam uma vivência dentro de seu contexto social. No caso da escola, apliquei conceitos sobre patrimônio para um grupo ainda em formação, com uma realidade desconhecida para mim e que somente após o convívio diário, me permitiu perceber suas particularidades. E isso se deu, não somente pelas observações, mas pela cooperação generosa da própria equipe da escola que me conduziu carinhosamente às chaves que dariam o suporte necessário às práticas. Pude ampliar minha atuação, adequando a programação às solicitações da Direção da escola, frente às suas impossibilidades ou dificuldades, com um programa a ser realizado dentro do próprio ambiente escolar, por meio de atividades lúdicas que estimulassem os alunos a compreenderem o proposto. Cada encontro tornava-se uma surpresa (para os alunos e para mim), sendo trabalhados aspectos relativos ao Patrimônio como um todo, desde o mundo individual, particular, inseridos em seus universos pessoais, até a visão mais abrangente do sentido de pertencimento e de preservação como
uma nação, como habitantes do planeta Terra. As ações se voltaram à exploração de seu próprio contexto, trazendo para reflexão questões relativas à sua cidade e ao seu futuro. Inseri em nossas atividades a cultura em suas várias manifestações, como apoio ao tema preservação, por meio de variados recursos para sensibilizar as crianças (Fig. 08). No trabalho relacionado à memória pessoal de cada aluno,atravésdasCaixasdeMemórias7percebiquehaveriademudara abordagem se almejasse alguma resposta efetiva, pois muitas crianças não tinham como realizar minhas solicitações em suas casas pela simples condição de não possuírem mínimos recursos para tal (por exemplo, papel e lápis de cor). Suas vidas (a da maioria) estavam vinculadas à escola e a tarefas outras ligadas a seu contexto familiar. Algumas sequer possuíam pais alfabetizados. Assim, apostei na própria capacidade criativa de cada aluno e em seu poder de estabelecer os vínculos necessários para a compreensão de nossas atividades no âmbito escolar, criando momentos lúdicos e afastando a angústia pelas presumíveis impossibilidades (Fig. 09 e 10). A música, o teatro, a dança, materializaram-se na escola, através da interação com outros profissionais, todos amigos pessoais, que generosamente enriqueceram substancialmente as atividades. Outras perspectivas, visões de mundo variadas, aprendizado e criatividade pelo prazer e comprometimento. Não somente para as crianças, mas também às professoras, que poderão ampliar suas atuações através de seu círculo social e de sua criatividade. Nesse sentido, pontuo a valiosa contribuição dessas professoras, que foram companheiras em todas as ações, me permitindo atuar em seus ambientes e mesclando a todo instante seus conhecimentos aos meus, enriquecendo as atividades promovidas (Fig. 11, 12, 13, 14, 15). Ao encerramento de minhas ações educativas na
escola e na cidade, uma solenidade foi preparada reunindo a direção, professores e funcionários da escola, para a entrega das caixas de memória e os diplomas aos alunos, objetivando fortalecer o orgulho de cada um deles ao lhes outorgar a insígnia de “Senhores do Tempo e Guardiães da Memória”, com a incumbência de auxiliarem seu pequeno universo, como agentes atuantes de sua própria história, sulcando suas marcas em seu lugar e contexto. O que é pequeno desaparece. Em nossa época, só o que é grande parece poder sobreviver. As pequenas coisas modestas desaparecem, bem como as pequenas imagens modestas ou pequenos filmes modestos. Mas, se perdermos tudo o que é pequeno, perdemos também essa nossa orientação, nos tornamos vítimas do que é grande, impenetrável, superpotente. Deve-se lutar por tudo o que é pequeno e ainda existe. Aquilo que é pequeno confere ao que é grande um ponto de vista. Numa cidade, o que é pequeno, vazio, aberto, é a fonte de energia que nos permite recarregar as forças, que nos protege contra a hegemonia do que é grande.” - Wim Wenders Novamente me deparo com semelhante percurso. De sinuosidades e declives, paisagens modificadas e reminiscências. E me vejo diante de novos portais convidando-me a entrar como observadora de outro universo. Um sentimento de recomeço se faz e penso que me é ofertada outra oportunidade de coexistir com outras experiências, de outro tempo, outonais. Passado vivo, mestres de saberes, de tradições orais, memórias vivas de tempos dentro de outros tempos. Indivíduos que desfiam novelos através dos cantos, dos contos, das reminiscências. E também dos esquecimentos. Memórias perdidas nas próprias memórias,9 mas resgatadas pelo encontro de gerações. Mestres e discípulos, num exercício de afetos, recriações, resgates de cantigas, casos e mitos da própria história. Laços restaurados, vínculos restabelecidos. Livros vivos que se tornam
os lugares da memória, lugares palpáveis, pois tem a lembrança viva, seu corpo como depositário da memória e sensações de um corpo vivo.10 Memórias dos sentidos. E nesse contexto, novamente me sinto conduzida a um novo labirinto, na busca de outras histórias que, como o fio de Ariadne, possa me levar a pistas que me direcionem aos meus quartos de maravilhas, ordenando o fogo sagrado da inquietude. Diante do espelho, novamente, buscando a mim mesma. Nas reminiscências.
Notas 1 Moema Nascimento Queiroz é Especialista em Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis e Mestre em Artes Visuais pela EBA-UFMG. ConservadoraRestauradora (TNS) atuante no Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis CECOR/EBAUFMG desde 1995. Desenvolve e coordena projetos na área de Preservação, Educação Patrimonial, Conservação e Restauração de Acervos, além de ministra cursos e prestar consultorias nas áreas citadas. Pesquisadora independente. http://lattes.cnpq.br/3987049488519902 2 SPINELLI, Miguel. Filósofos Pré-Socráticos. Primeiros Mestres da Filosofia e da Ciência Grega. 2ª edição. Porto Alegre: Edipucrs, 2003, pp. 167–271. 3 QUEIROZ, Moema N. Rompendo os tapumes: uma proposta de interação vivenciada através da restauração na comunidade de São Sebastião das Águas Claras, MG. Rio de Janeiro: E-papers, 2008. 4 ROSSATO, Janine Inez. A vontade de lembrar e a vontade de esquecer. In: Museus nacionais e os desafios do contemporâneo. Org: Aline Montenegro Magalhães, Rafael Zamorano Bezerra. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2011, 296 p. 5 Maria do Céu Diel de Oliveira é graduada em Educação Artística pela Unicamp, mestre e doutora em Educação pela mesma instituição. Professora do Departamento de Desenho da Escola de Belas Artes da UFMG. Professora do Programa de Mestrado em Artes Visuais da UFMG. Líder do grupo Linha: Grupo de Pesquisa sobre o Desenho e a Palavra. Atualmente é Professora Residente no IEAT/ UFMG. Entrevista disponível em: https://www.ufmg. br/ieat/wp-content/uploads/2012/03/IEAT-Entrevistacom-Maria-do-Ceu-Diel-Prof-Residente-site.pdf 6 MATURANA, Humberto R. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. Tradução: José Fernando Campos Fortes. p. 29. 7 A Caixa de Memórias é uma vivência que estimula o participante a realizar uma arqueologia familiar. A ideia se desenvolveu a partir de uma reflexão sobre como
sensibilizar o aluno sobre a importância da preservação do Patrimônio. As experiências pessoais de resgate de referências familiares, busca pessoal de origens, reconhecimento das tradições familiares e reapropriação da memória material e imaterial familiar levaram-me a adaptar o conceito de arqueologia familiar e da caixa de memórias para aplicação em sala de aula propondo ao aluno o contato com sua memória pessoal e familiar criando laços afetivos com seu patrimônio pessoal. 8 WENDERS, Win. A Paisagem Urbana. In: Revista do IPHAN, 23, 1994:181. 9 “Quando a própria memória perde qualquer lembrança, como sucede quando nos esquecemos e procuramos lembrar-nos, onde é que, afinal a procuramos senão na mesma memória?” SANTO AGOSTINHO. Confissões (tradução de Maria Luiza Jardim Amarante). São Paulo: Paulus,, LX,19. 10 OLIVEIRA, Maria do Céu Diel de. Pedagogia visual e educação da memória. Arquitextos. 057.07. Ano 05, 2005. ISSN 18096298. Disponível em: http://www.vitruvius. com.br/revistas/read/arquitextos/05.057/503
Tabela de Imagens Todas as fotografias foram capturadas pela autora, Moema N. Queiroz. Figura 01 - Capela de São Sebastião Figuras 02 e 03 - Altar-Mor e imagens Figura 04 e 05 – Grupos da comunidade de São Sebastião das Claras Figura 06 - Alunos da Escola Municipal Figuras 07 – Semana do meio-ambiente Figuras 08 - Visita com os alunos da Escola Municipal ao Canteiro de Obras Figuras 09 e 10 – Confecção das Caixas de Memórias Figuras 11-15- Atividades
A imagem fragmento e a fragmentação da imagem Bruno Amarante
O iconoclasmo moderno não consiste mais em quebras as imagens, mas em fabricar as imagens, uma profusão de imagens em que não há nada pra ver. Baudrillard, 1997. Pensar a produção de imagens na contemporaneidade em sua excessiva profusão e correlacionar-la aos seus núcleos de produção, seja a arte, a publicidade, o design e arquitetura, é uma tarefa extensa e que depende de pontos de vista distintos. Não há a pretensão de ampliar nesta proporção o foco da discussão neste texto, mas é de interesse, relevar algumas considerações sobre dois grupos de imagens distintas que, pode-se acreditar coabitarem o profuso sistema imagético atual, pensando e correlacionando-os a um dado status fragmentário intrínseco a cada grupo e, observar suas distintas características atribuídas a valorações mnemônicas, estéticas e históricas. Por um lado seriam as imagens fragmentos e do outro as imagens fragmentadas.
A profusão imagética na contemporaneidade influi sobre o modo de percepção da própria imagem e acaba por incitar pensamentos múltiplos sobre o assunto. Dentre as possibilidades, suscito a reflexão sobre como se dão alguns processos de fragmentação das imagens, seja no meio midiático, arquitetônico, ou artístico e a diferenciação entre imagem fragmento e imagem fragmentada. A partir deste ponto, relativizo algumas questões sobre a imagem do próprio fragmento e sua relação com o processo de construção da memória, seja coletiva, ou particular. Esta proposta está inserida no desenvolvimento da minha pesquisa de dissertação que abarca a temática da “Ruína como expressão plástica e poética”. Palavras chave: Imagem, fragmento, ruína, memória.
Grosso modo, as imagens fragmentos se referenciam ao tipo de imagem que têm como característica o status de matéria e da fisicalidade tangível do próprio fragmento. Palpável, mas não só ao toque da mão, pois é capaz de permear o intelecto. Sua materialidade aflora ao espectador analogias mnemônicas, históricas e míticas, do que está às claras ou obscuro, do que é ancestral e ontológico. Imagem de, ou o próprio fragmento. Passível da pesquisa arqueológica, da descoberta, que sucinta à reflexão e carece do ato contemplativo. Já as imagens fragmentadas, pelo contrário, são imagens que passam depressa, que não necessitam muito tempo de observação e que não instigam uma reflexão mais profunda. Mesmo que detentoras de algum conceito, são rapidamente esquecidas e se fragmentam sem deixar registros, volatizam-se no tempo, são etéreas. O estatuto da imagem se alterou ao longo dos milênios e séculos, passando por temas ritualísticos
primitivos, ornamentais, religiosos, ideológicos, políticos e, claro, artísticos, e na atualidade praticamente todos coexistem. Genericamente, excetuando as culturas ainda primitivas, há o predomínio de imagens vinculadas às questões publicitárias, nada mais comum e aceitável para uma sociedade que tem como base e objetivo o desenvolvimento econômico através de operações mercadológicas. Sabe-se que esta situação é ordinal, que as imagens geradas através dos mecanismos publicitários cumprem um papel e são relevantes para tal sistema, mas independente de suas funções, são imagens fragmentadas - gostaria de deixar claro que não faço aqui uma crítica ao capitalismo, estou falando de suas imagens. Por mais elaborada seja uma campanha publicitária, com conceitos estruturados e pesquisas, elas sempre terão o objetivo mercadológico embutido e, concomitantemente, como neste sistema há sempre a busca pelo mais novo, mais moderno ou inovador, é normal destas imagens não durarem por muito tempo. Se desmancham. Elas são substituídas num curto espaço de tempo: alguns segundos, uma semana, um mês, suscitando desejos e conceitos relâmpagos, que se erigem e se fragmentam ciclicamente. Imagens fragmentárias, efêmeras, contrárias ao contemplativo. São imagens que pouco provoca o espectador, não infiltram ao intelecto, não instigam, não induzem e não acrescentam nenhum tipo de desejo ou sentimento, que não materiais. Imagens em fluxo e saturantes, que não se diferenciam umas das outras, atreladas a modismos e receitas. De certo modo, superficialidade e banalidade tornaram-se características da contemporaneidade. A televisão, a maior povoadora de imagens, é, também, uma fábrica de superficialidades, não só como veículo de mídia, onde circulam comerciais, mas através de sua própria programação. As imagens da TV em sua maioria não possuem caráter, pois são recriações de uma receita que independe da imagem propriamente
dita. Mesmo na ficção, em suas intermináveis novelas, as imagens não perduram, a não ser por uma agonizante e exaustiva reprodução. É quase que impossível não generalizar, mas toda a variedade de imagens, parece se reunir em um só fluxo veloz e indecifrável, se é que deva ser decifrado. Referindome a Baudrillard, transferindo analogamente seu pensamento à questão da imagem televisiva, ele, quando faz uma análise do fluxo imagético no percurso das artes na contemporaneidade, afirma que “o iconoclasmo moderno não consiste mais em quebras as imagens, mas em fabricar as imagens, uma profusão de imagens em que não há nada pra ver” (Baudrillard, 1997). Assim, dado esse fluxo imagético, análogo a uma enxurrada, o tempo contemplativo se esvai. O conteúdo não é relevante, pois o espectador troca de canais todo o tempo sem que haja prejuízo na absorção de informações. Por mais clichê que sejam estas considerações, elas são completamente aplicáveis e justificáveis na discussão da imagética contemporânea. Outra maneira de pensar a imagem fragmentada, sem apelar para as mídias referidas, seria através da observação da arquitetura. Pensamento que se materializa, não só pela observação das cidades num âmbito geral, mas na percepção do meu próprio espaço urbano e seu entorno. Para a condução deste pensamento, parece-me ser primordial perceber a topografia da cidade como paisagem e esta paisagem como imagem. Assim como no campo publicitário, as imagens da urbe são repostas e recicladas a todo instante e este processo de mutação topográfica leva a perceber que tais mudanças tornaram-se, não somente um ato de produção de uma nova imagem, mas uma fábrica de fragmentação constante da paisagem e de sua imagem como no fluxo televisivo. A imagem da cidade tornou-se veloz como o mundo. Imagem frenética, caótica e mutante.
É instigante pensar a imagem da cidade e sua constante mutação, a fragmentação de suas imagens, sua metamorfose, pois tal processo de transformação pode suscita indagações generalizadas sobre o assunto e é perceptível que estas questões podem esbarrar em pontos de vista contraditórios, como: esta constante fragmentação da imagem desconstrói a memória histórica da cidade impossibilitando sua materialização, ou, somente acrescenta novas perspectivas? Observando o discurso de Olgária Matos (1997), em “História Viajante”, ela referindo à “função social das lembranças”, diz que os edifícios fazem parte de um suporte fomentador e propiciador da construção e manutenção das lembranças. Assim, quando ela aborda o avanço da sociedade industrial que, por sua vez, transforma a paisagem urbana substituindo as velhas construções por novos empreendimentos imobiliários, ou mesmo por novas fábricas e seus aglomerados habitacionais, há a desconstrução ou a impossibilidade de construção duma memória regionalizada e afetiva. O crescimento da cidade, segundo Olgária, torna a mesma uma metrópole impessoal e sem memória. “O sufocamento da lembrança pelo desaparecimento de suportes materiais, abole o aspecto lúdico das recordações afetivas e abrange a memória política” (MATOS, 1997, pg. 124). Sobre essa escassez de registros, a autora faz uma referência às “narrativas dos velhos”, que, uma vez sem apoios para a memória, devido à desfiguração da paisagem, substituem as recordações afetivas por uma memória oficial, proveniente de uma história “oficial celebrativa”, que por sua vez, está presa aos acontecimentos políticos. “Ao recordarem acontecimentos políticos de que foram testemunhas, suas lembranças passadas e grupais são invadidas por outra memória, a oficial, que expropria o sentido e a verdade das primeiras” (MATOS, 1997, pg.125).
Como fora suscitado anteriormente se dá presente uma dicotomia sobre a transformação da paisagem da cidade pela renovação de sua arquitetura. Poderia a ação de construção e desconstrução arquitetônica, induzir um processo de desconstrução histórica regional? Por um lado, creio que as imagens arquitetônicas mais antigas da cidade, suas casas, vilas, parques e ruas, façam parte de um lastro histórico, detentor duma espessura temporal, que tem influência significativa no ato de erigir a memória da cidade. Mas por outro ponto de vista, também é de se perceber que as alterações da imagética da urbe, fazem parte do processo de transformação da mesma, ou seja, da sua própria história, dos almejos civis, governamentais e políticos que conduzem esta memória coletiva. Dado como exemplo à cidade de Belo Horizonte, pode-se observar que a construção de sua história através da imagem física, apesar de ser uma cidade absurdamente jovem, em boa parte já se perdeu mesmo neste curto espaço de tempo. A história da cidade, por um lado, se fragmentou junto à demolição de seus edifícios e por outro, acabou tornando-se uma história que se instaurou sobre a própria fragmentação. De início a ruína provocada do Curral del Rey com sua completa destruição, para abrigar a nova capital que não queria ter em sua história resquícios de um passado colonial e uma estética arcaica. Consolidado assim, materialmente, o projeto de Arão Reis este proveu o novo modelo estético político que representava o início daquela cidade que nascera como um monumento, como marco histórico de sua própria construção. Os fatos se materializaram sob a arquitetura e a cidade começou a viver. Mas ainda prematura, já iniciara sobre sua topografia visual o processo de escarificação e mutação do seu relevo imagético. A fragmentação se colocava novamente a serviço da história da cidade. A política de expansão da indústria almejada desde os anos trinta, mas que só crescera efetivamente
no decorrer das décadas subseqüentes - mais lentamente nos anos 40 e tendo seu “grande surto industrial” (Monte-Mor, 1994) nos anos sessenta, levou a transformação radical da imagem da capital e seu entorno. No início a clareza “racionalista” da arquitetura art déco, que “trazia a nova estética da geometria pura e da clareza funcional para o centro da cidade”. Depois a “modernização precoce da capital”, com Niemeyer e Kubitschek, realizando a construção do conjunto da Pampulha, com suas linhas modernas, que expressara novamente almejos duma nova identidade, institucional e idealizada para a imagem da cidade. Mudanças significativas na paisagem da capital, mudanças significativas do decorrer histórico e de sua condução. A imagem da cidade se fragmentou e ainda se fragmenta constantemente, e sua história, por uma via material, tangível, se perdeu e se perde em todos estes instantes. Pode-se perceber que as imagens construídas em todos estes tempos de mudanças, que representavam uma nova figuração, que surgiram como agentes de transformação da feição topográfica, paisagística, almejavam novos rumos para a materialização histórica e de ideais políticos da cidade. Mas a meu ver, o que ocorre é uma sedimentação histórica onde nenhum tipo de idealização se sobressai. Nossa história se faz pela fragmentação e pouquíssimos são os fragmentos que nos restam. O registro material expresso nas edificações vai sendo destruído e substituído por novas camadas. Modismos estilísticos e especulação imobiliária, necessidade de expansão e crescimento desordenado. A cidade passa por novas revoluções de imagem. Ecletismo arquitetônico contemporâneo, consequência “natural” do caminhar da cidade, da sua imagem e memória. No interior do estado de São Paulo, em Araçariguama a cinquenta quilômetros da Capital, a artista plástica Leyla Mattoso reuniu ao longo dos
anos centenas de resquícios arquitetônicos, vitrais, ferragens, emblemas, efígies, azulejaria, oriundos da demolição de casas e edifícios da cidade de São Paulo. Catalogando suas origens quando possível, referenciando estes fragmentos aos edifícios aos quais pertenciam, criou uma espécie de museu arquitetônico da cidade, chamado Casa dos Contos. Museu feito literalmente do entulho de demolições, de resquícios que constituíam a imagem topográfica de outrora. Testemunhas das transformações e fragmentações da paisagem da metrópole. Acervo, não só formal e material, mas que faz parte do arquivo simbólico da própria colecionadora: como fragmentos memoráveis à sua pessoa, à sua visão particular da cidade, do passado e de sua história. Subtraindo a função didática de arquivo, a Casa dos Contos de Araçariguama transpira o desejo do não apagamento duma origem. A fragmentação da imagem torna-se imagem fragmento, detentora e reveladora da memória, prova matérica e irrefutável, duma extinta existência. O acervo do Museu Casa dos Contos, coletado e reunido pela artista, é composto por imagens fragmentos reais com toda carga histórica e testemunhal intrínseca que revelam o passado. Mas as imagens fragmentos não são sempre percebidas através de fragmentos reais, elas podem existir de maneira inversa. Ou seja, não é o fragmento que revela a história, mas é a partir dela, da história, que estes são construídos. “Meu trabalho, nunca é sobre hoje.” (Anselm Kiefer, 2006, pg. 447. Tradução nossa) Esta afirmativa foi retirada de uma entrevista concedida pelo artista alemão Anselm Kiefer, que questionava uma nota feita por um jornalista, que quando, referindo ao trabalho de Kiefer, afirmou que as torres feitas em seu atelier em Barjac na França, foram construídas por causa do atentado de 11 de
setembro. O artista retificou a nota e explicou que o trabalho das torres já estava em andamento já há alguns anos e concluiu: “Existe uma extensa história das torres e de sua ostentação correndo sobre distintas civilizações... Eu não queria falar sobre política, eu queria falar sobre a mitologia das torres. Elas estão entre o céu e a terra...” (KIEFER, 2006, pg. 447. Tradução nossa). Assim como as torres, praticamente, todo o trabalho do artista parte de algo mitológico, ontológico, de origens ancestrais e históricas - Não que o “onze de setembro” não se configure como acontecimento histórico, claro que o é. Mas em Kiefer, se fosse seu motivo falar do atentado às Torres Gémeas, provavelmente o trabalho não seria tão literal e tão, historicamente recente. Acredito que ele, para falar da atualidade conflituosa entre ocidente e oriente, iria buscar fatos mais antigos, no mínimo acontecimentos precedentes entre os Estados Unidos e Iraque, na Guerra do Golfo, por exemplo. Estética fragmentária. Ruínas, paisagens devastadas, terra queimada e revolvida, túneis cavados no chão como abrigos antibombas, florestas que serviam de esconderijo, livros de chumbo que guardam o peso da história. Imagens irreais? Fragmentos falsos? Posso dizer que tão palpáveis quanto o acervo da Casa dos Contos. A carga histórica está embutida em ambos os casos e a arqueologia que era feita pelos entulhos da coleção de Araçariguama, agora é conduzida pelas obras do artista, revelando da mesma maneira, o passado por detrás da imagem fragmento, numa poética da memória. Seus trabalhos possuem “aura” (Kiefer, 2009, pg.40) e transcendem sua própria materialidade. Mesmo que passíveis ao toque, não será pelo tato que serão compreendidas, mas sim pela ação do intelecto, da imaginação. Eles emanam algo além do palpável. Com efeito de contextualização, Kiefer que nasceu
em 1945, ano derradeiro da última grande guerra, conviveu desde criança com as imagens oriundas da paisagem devastada. Assim como suas obras, um mundo de ruínas. Mas mesmo estando, ao longo de sua infância e juventude, diante dos testemunhos materiais daquele passado aterrorizador e recente, os assuntos referentes ao Terceiro Reich e holocausto, não eram muito comentados por seus educadores: “A história do Terceiro Reich, praticamente, nunca fora dada na escola. Eles falaram sobre isso talvez por um mês.” (KIEFER, 2006, pg. 404. Tradução nossa). A partir desta falta, da ocultação deste passado próximo e latente, posso crer e ver se revelar em suas obras, uma abordagem arqueológica, histórica e mitológica. A poética da imagem fragmento é, assim por ele, revelada e, à conexão historicista e mnemônica com o passado, se faz pelo simulacro do fragmento. O artista diz ser impossível viver, diante do mundo, sem o sentimento de culpa que acometeram os alemães as atrocidades cometidas pelo nazismo. “Está aí. A culpa é um fato. Não consigo me ver livre dos meus predecessores” (KIEFER, 2006). Pode ser possível imaginar o que sente, pois a passagem de Hitler na história da Alemanha, fora, não só para o país, mas para todo o mundo, um acontecimento histórico chocante. Sua política de saneamento racial quebrou com todas as perspectivas de um mundo que “acreditava” ser possível a instauração dos conceitos iluministas de Liberté, Egalité e Fraternité, já abalados pela primeira grande Guerra. O terceiro Reich mostrou a todos e rememorou a multiplicidade da face do homem e sua característica mais atroz. Com esta visão sobre o passado histórico e sua materialização, abarcada em conceitos afetivos, de preservação, de destruição, de repulsa e de memória, atrelados a representatividade da imagem, eu, também como produtor de imagens, em minha poética, percebo uma própria dialética dos
fragmentos. Seja pelo o que me é mais próximo: a percepção da imagem fragmentada que faz parte da minha história e da minha própria cidade, ou pelo o que me é mais abrangente: a visão que tenho sobre o próprio caminhar da humanidade, do indivíduo e sob seus ciclos de fragmentação. Percebo também, que é um assunto em voga na contemporaneidade, que muitos artistas trabalham e discutem a fragmentação da imagem em diversos campos e áreas.
Referências Bibliográficas
A partir destes correlatos e constatações historiográficas e estéticas, outras possibilidades de discussão e indagações podem surgir, como: seria toda essa preocupação com a memória e sua relação através dos fragmentos testemunhais, que explicitam a temporalidade das cidades, das civilizações, ou mesmo das relações afetivas e particulares das pessoas, uma preocupação com nosso próprio futuro e com o futuro do mundo? Posso dizer que não seja exatamente preocupação, mas a aceitação e compreensão de que tudo neste mundo é etéreo e volátil, por mais longo que perdure.
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Como se pode falar ou mostrar no cinema situações que nunca vimos ou que apenas permanecem em nosso imaginário? Andrei Tarkovski nos diz que o Apocalipse é a imagem do ânimo humano, com sua responsabilidade e seu dever. À luz disso, ocorre dizer que o homem está vivendo aquilo que era o tema da revelação do último livro que encerra o Código cristão. Essas vivências, ou situações, viram revelação cinematográfica ao saltar do texto e do mundo para aparecerem nos filmes, a ponto de podermos nos perguntar: como o filme refaz o texto, ou como o texto vira filme? Películas como Andrei Rublev (Andrei Tarkovski, Russia, 1966) ou Lições da Escuridão (Werner Herzog, Kuait, 1992) criam apocalipses cinematográficos ao usar elementos iconológicos que figuram e remetem ao texto bíblico. A recorrência de tais elementos que aparecem nos filmes faz com que o Apocalipse migre para os roteiros e, posteriormente, para as imagens e sons projetados/emitidos. Este trabalho pretende apresentar alguns desses elementos figurativos e mostrar como eles se revelam na composição e criação de apocalipses no cinema, a partir da intuição que Tarkovski e Herzog tiveram deste tema. Palavras-chave: Apocalipse – Cinema – Elementos figurativos
O que parece claro, mas nem sempre é dito Ao falar do Apocalipse, não me coloco como um teórico ou especialista no tema que pretende explicálo exaustivamente, mas sob o ponto de vista artístico e cultural. O Apocalipse é feito de imagens que o seu suposto autor as vê diante de si (nota com o texto), reveladas, mostradas; imagens que somos capazes de recebê-las, percebê-las, mas não explicá-las. A idéia é realizar uma viagem ao coração do imaginário apocaliptico. Um imaginário que não é fantasia, não é simbolismo, não é ficção, mas sim imagem, visão, visão como um ato de ver. Como se pode mostrar no cinema imagens e histórias que nunca ninguém as viu ou que permanecem apenas no nosso imaginário? O cinema é possível porque faz uso de um repertório de imagens já conhecido pelos homens. Trata-se de uma narrativa ou mesmo de um programa de educação visual que, para acontecer, precisa que sua imagem possa de alguma forma, ser identificada pelo público que a vê. O cinema é uma produção cultural e artística que se passa no presente; presente da sua exibição para aqueles que se dispõem a apreciá-lo, num tempo que se passa no agora, despertando as sensações dos expectadores ao serem confrontados com suas imagens, sons e enredos. O cinema, portanto, acontece no presente de cada um daquele que o vê, ainda que traga à lembrança momentos guardados na memória ou que permanecem vibrando após a exibição, fazendo-se, assim, sempre presente no tempo das pessoas. A projeção de um filme estabelece em cada um de nós um tipo de relação e de sentimento. Milton Almeida nos diz que: “Assistir a um filme é estar envolvido num processo de recriação de memória [...] O cinema, ao mesmo tempo, cria ficção e realidades históricas, em imagens agentes e potentes, produz
memória.” (1999, p. 56). A imagem me revela o que está acontecendo, ela me encaminha para as coisas. Portanto, por mais que não conheçamos uma história ou que jamais tenhamos visto seres ou lugares fantásticos e desconhecidos, é possível que se estabeleça um laço entre expectador e filme projetado devido à recorrência de repertórios e elementos visuais – cenografias – usados pelos diretores e produtores. Almeida segue nos dizendo: Imagens de catástrofes, imagens fantásticas, imagens violentas e ensanguentadas, imagens de ambientes aristocráticos, nobres, burgueses, plenos de decoração maravilhosa, imagens de seres extraterrestes, grotescos, híbridos, imagens angelicais, imagens infernais, povoam os afrescos em movimento do cinema. (Ibid., p. 55) Nosso olhar já foi educado para reconhecer um determinado enredo que compõe cenas e sequências, seja identificando a expressão facial dos envolvidos, seja identificando o tom da voz e a trilha sonora que acompanha as cenas, as passagens entre os cortes e os close-ups que confrontam os opostos, ou ainda percebendo tramas que de uma forma ou outra desembocarão em conflitos. A junção de vários recursos e elementos compõe um conjunto que pode ser perfeitamente inteligível ao expectador ainda que ele mesmo nunca tenha visto ao vivo ou experimentado uma determinada situação. Assim, é capaz de se sensibilizar, sentir repulsa, reprovar ou aprovar tal situação de acordo com o seu julgamento moral. O Apocalipse: um universo de imagens, um exercício da imaginação A partir dos argumentos dispostos até agora, entendemos ser possível falar que o apocalipse pode
aparecer no cinema, mesmo que este evento histórico nunca tivesse acontecido em sua literalidade ou ainda que nenhum dos seus prenúncios tivesse sido visto por qualquer vivente. Seguindo Pasolini, podemos inferir que o real do cinema é representado pelo real das coisas, ou seja, é possível representar um real pelo próprio real. (Cf. 1982, p. 109). O cinema, ao empregar e conjugar elementos isolados e reconhecidos pelos homens, pode contar uma história fantástica ou que apenas povoa nosso imaginário. Num primeiro momento por ligar elementos identificáveis, num segundo momento por mostrar uma história que está na raiz da nossa cultura e espiritualidade religiosas. Tarkovski percebe o Apocalipse como um universo de imagens. (2005, p.17). Quando nos dedicamos à leitura desse texto não conseguimos ficar presos somente às palavras, mas quase que imediatamente passamos a imaginar, a pensar com as imagens. O seu ator nos conta que o texto foi feito a partir das revelações que o anjo lhe mostrou, a fim de que registrasse tudo o que viu usando a escritai. Tratase de um livro visual, que organiza pela letra os acontecimentos revelados. Nisso o Apocalipse se assemelha a um roteiro, que na verdade é um texto daquilo que logo mais se aparecerá em imagens projetadas. O roteiro é uma estrutura de transição. Nos dizeres de Pasolini, temos o roteiro como um texto que quer se outra coisa: imagem. (Cf. 1982, p. 157-158). Do desejo de um filme, tenho uma ideia; desta, uma proposta e depois um roteiro que quer ser imagem; este, depois de produzido e filmado totalmente, será editado e apresentado em forma de produto cultural. Se fôssemos filmar um apocalipse, especialmente i “No dia do Senhor fui movido pelo Espírito, e ouvi atrás de mim uma voz forte, como de trombeta, ordenando: Escreve o que vês, num livro e envia-o às Sete Igrejas.” (Ap. 1, 10).
aquele bíblico, ou um filme que aborde esta temática numa figuração moderna, o que não poderia deixar de ser mostrado? O que caracteriza de fato uma figuração do Apocalipse? Dentro da lógica que até agora apresentamos os elementos para figurar um Apocalipse estão no próprio texto bíblico e no acervo de representações que foram feitas a partir desse tema. O que é propriamente apocalíptico? Experimentos Para a realização deste texto e para o entendimento do seu espírito deixo claro aquilo que os move: um exercício de imaginação. Imaginar é pensar com as imagens, a partir das imagens fortes, agentes, que ficam na memória e nos remetem a tantas outras imagens e sensações. E as imagens a que o Apocalipse nos leva são imagens potentes. Imaginar, pela intuição que orienta aquele que busca, requisitando deste tanto a sua sensibilidade aguçada e a razão que o permite ver. Uma das tentativas de se elencar quais seriam estes elementos imprescindíveis para se filmar o apocalipse podem ser feitas através da organização de um glossário, explicitando quais símbolos, figuras, cores e sons dão vida àquele roteiro. Segue abaixo uma amostra do glossário por nós organizado. A: Água que se transforma em absinto (8, 12); B: Besta que sobe do abismo (11, 7); C: Cavalo Vermelho com a grande espada, que virá tirar a paz e fazer os homens se matarem (6, 4); D: Dragão cor de fogo com sete cabeças e dez chifres (12, 3); E: Estrelas que caem do céu (6, 13); F: Fogo, enxofre e fumaça da tormenta (14, 10-11); G: Granizo misturado com sangue que cai do céu (8, 9); I: Ilhas removidas do seu lugar (6, 14); J: Julgamento (11, 18);
L: Lua com cor de sangue (6, 12); M: Mar transformado em sangue (8, 8); N: Noite que perde 1/3 da sua luz (8, 12); O: Oliveiras, árvores que se queimam (8, 7); P: Perseguição do Dragão à Mulher que deu à luz (12, 13); R: Relâmpago que sai do trono (4, 5); S: Sol se escureceu com a fumaça (9, 2); T: Terra que se queimou em 1/3 (8, 7); V: Voz retumbante, com aspecto de trovão (6, 1). Números: 04 (seres vivos, cavaleiros, anjos), 07 (anjos, trombetas, igrejas, candelabros, estrelas, lâmpadas de fogo, selos, trovões). A seguir, apresento como imagino ter sido o encontro e o encanto que Tarkovski sentiu ao se deparar com o Apocalipse bíblico. Escolhi um capítulo que nos relata a plasticidade de certos trechos do texto, como o da queda das estrelas, do céu que se rasga e se enrola feito um pergaminho, das ilhas que se movem dos seus lagos com a abertura do sétimo selo e também o que se seguiu a este evento. Faço o convite para que me sigam neste exercício junto ao capítulo 06: 1. Depois, vi o Cordeiro abrir o primeiro selo e ouvi um dos quatro Animais clamar com voz de trovão: Vem! [barulho do selo se rompendo; voz de trovão do animal]. 2. Vi aparecer então um cavalo branco. O seu cavaleiro tinha um arco; foi-lhe dada uma coroa e ele partiu como vencedor para tornar a vencer. [cavalgar dos cascos do cavalo branco, constante, ao fundo, ficando cada vez mais próximo, mais alto, relinchar cabisbaixo do cavalo antes que o cavaleiro recebesse a coroa; saída com cavalgada rápida para sua missão]. 3. Quando abriu o segundo selo, ouvi o segundo animal clamar: Vem! [barulho do selo se rompendo; voz de trovão do animal].
4. Partiu então outro cavalo, vermelho. Ao que o montava foi dado tirar a paz da terra, de modo que os homens se matassem uns aos outros; e foi-lhe dada uma grande espada. 5. Quando abriu o terceiro selo, ouvi o terceiro animal clamar: Vem! E vi aparecer um cavalo preto. Seu cavaleiro tinha uma balança na mão. [barulho do selo se rompendo; voz de trovão do animal]. 6. Ouvi então como que uma voz clamar no meio dos quatro Animais: Uma medida de trigo por um denário, e três medidas de cevada por um denário; mas não danifiques o azeite e o vinho! 7. Quando abriu o quarto selo, ouvi a voz do quarto animal, que clamava: Vem! [barulho do selo se rompendo; voz de trovão do animal]. 8. E vi aparecer um cavalo esverdeado. Seu cavaleiro tinha por nome Morte; e a região dos mortos o seguia. Foi-lhe dado poder sobre a quarta parte da terra, para matar pela espada, pela fome, pela peste e pelas feras. 9. Quando abriu o quinto selo, vi debaixo do altar as almas dos homens imolados por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho de que eram depositários. [barulho do selo se rompendo; movimento e murmúrio das almas]. 10. E clamavam em alta voz, dizendo: Até quando tu, que és o Senhor, o Santo, o Verdadeiro, ficarás sem fazer justiça e sem vingar o nosso sangue contra os habitantes da terra? [lamento das almas clamando por justiça e vingança; murmúrios]. 11. Foi então dada a cada um deles uma veste branca, e foi-lhes dito que aguardassem ainda um pouco, até que se completasse o número dos companheiros
de serviço e irmãos que estavam com eles para ser mortos. [murmúrios; voz de um anjo mensageiro se dirigindo a elas, entregando também, junto com outros mensageiros, as vestes brancas]. 12. Depois vi o Cordeiro abrir o sexto selo; e sobreveio então um grande terremoto. O sol se escureceu como um tecido de crina, a lua tornouse toda vermelha como sangue [barulho do selo se rompendo; som da terra sofrendo o terremoto, dos troncos de árvore que se rompem e são engolidos pelas fendas ou arrastadas pela terra; pedras que rolam, levando o que encontram pela frente]. 13. e as estrelas do céu caíram na terra, como frutos verdes que caem da figueira agitada por forte ventania. [som do desligamento das estrelas e da sua queda; vento; estrondo quando se chocam com a terra ou as construções; trovões que acompanham o evento]. 14. O céu desapareceu como um pedaço de papiro que se enrola e todos os montes e ilhas foram tirados dos seus lugares. [estrondo pelo desaparecimento do céu, como que um trovão, do qual se segue um som “vazio”, som de falta, de ausência após uma catástrofe; som dos montes sendo forçosamente deslocados, empurrando a terra e tudo o que o circunda; as ilhas se deslocam em silêncio, não se ouve o som das águas que se movimentam, apenas se vê suas ondulações, mantendo-se o “som vazio”]. 15. Então os reis da terra, os grandes, os chefes, os ricos, os poderosos, todos, tanto escravos como livres, esconderam-se nas cavernas e grutas das montanhas. [barulho de fuga, gritos ao longe, passos, correria, de coisas sendo guardadas em sacos às pressas, coisas sendo arrastadas, animais perdidos nesta confusão, pessoas perdidas sem saber onde ir, clamando por ajuda; carruagens, carroças, cavalos levando pessoas e pertences; pessoas tentando se agarrar e eles].
16. E diziam às montanhas e aos rochedos: Caí sobre nós e escondei-nos da face daquele que está sentado no trono e da ira do Cordeiro, 17. porque chegou o Grande Dia da sua ira, e quem poderá subsistir? [os que fogem gritam tais frases, clamando pelo fim antes do julgamento e da condenação; imagens e sons das montanhas caindo, descritas anteriormente]. As anotações ente colchetes e em itálico destacam o que procurei sentir do mundo que pulsa no Apocalipse, tentando imaginar a percepção que Tarkovski viu neste texto, a saber, um universo de imagens que representa uma das maiores obras do gênio humano. (Cf. 2005, p. 17). Tento entrar também em diálogo com Pasolini quando vejo neste texto uma estrutura que quer ser outra: palavras que evocam sons e imagens, que desejam ser figuradas de alguma forma. A leitura do Apocalipse nos convida e nos remete a imagens e a possíveis situações de sua concretização. Elementos figurativos do Apocalipse nos filmes escolhidos Os dois filmes por nós escolhidos não pretendem ser histórias sobre o Apocalipse, mas apresentam elementos que nos remetem a esta temática, como podemos ver nas imagens. Temos duas políticas visuais, dois pontos de vista a respeito da humanidade, duas mensagens sobre o Apocalipse, duas situações distintas também. A composição dos elementos e a maneira como as imagens conduzem e desejam coisas de quem com elas trabalha remetem necessariamente a diferentes modos de contar ou mostrar um enredo. Há uma intencionalidade naquilo que nos é mostrado, faz parte de um programa de educação dos sentidos e da memória.
A história contada por Andrei Tarkovski nos apresenta da empreitada de um grupo de pintores de ícones, que tem à frente Andrei Rublev, que parte para Moscou a fim de pintar a Catedral da Anunciação. Nesta mesma catedral uma das paredes estava reservada para a figurar o Juízo Final. O filme Andrei Rublev nos revela o juízo final como um grande banquete e não como o tradicional julgamento que salva os justos e condena à perdição os injustos. Ao final, nos resta a contemplação do famoso ícone sobre A Trindade, das pessoas divinas figuradas humanamente ao redor de uma mesa. Andrei Rublev Ícone: A Trindade, (ano: 1410). Galeria Tretyakov, Moscou, Rússia. Técnica: Têmpera sobre madeira; 1,42m x 1,14m.
Lições da Escuridão, de Werner Herzog, é um filme de poucas falas. As vozes que nele ouvimos são trechos narrados do Apocalipse bíblico. No mais, temos um passeio pelas imagens e pela trilha sonora, alguns sons das máquinas, do fogo, das águas, das explosões. Não há uma mensagem de esperança e podemos encará-lo como um Apocalipse profano: sem espiritualidade, sem um Deus que nos salva. Procuramos apresentar como elementos por nós conhecidos, rastros de uma narrativa que está nos nossos mitos de origem, que, conjugados, contam na tela uma história jamais vista ou vivida, mas capaz de prender nossa atenção, envolver nossos sentimentos e pensamentos, deixando deus ecos mesmo depois do final da exibição.
Andrei Rublev “Vi quando o Cordeiro abriu o primeiro dos sete selos, e ouvi o primeiro dos quatro Seres vivos dizer como um estrondo dum trovão: Vem! Vi então aparecer um cavalo branco, cujo montador tinha um arco. Deram-lhe uma coroa e ele partiu, vencedor e para vencer ainda.” (Ap. 6, 1-2)
Andrei Rublev
Andrei Rublev
“O Templo se encheu de fumaça por causa da glória de Deus e do seu poder, de modo que ninguém podia entrar no templo, até que estivessem consumadas as sete pragas dos sete Anjos.” (Ap. 15, 8)
“Caiu então sobre a Terra granizo e fogo, misturados com sangue: uma terça parte da terra se queimou, um terço das árvores se queimou e toda vegetação verde também.” (Ap. 8, 7)
Lições da Escuridão “Vi quando ele abriu o sexto selo e houve um grande terremoto; o sol tornou-se negro como um saco de crina, e a lua inteira como sangue; as estrelas do céu se precipitaram sobre a terra, como uma figueira que deixa cair seus frutos ainda verdes ao ser agitada pelo vento forte.” (Ap. 6, 12-13)
Lições da Escuridão “Caiu do céu uma grande estrela, ardendo em forma de tocha. E caiu sobre terça parte dos rios e sobre as fontes. [...] A terça parte da água se converteu em absinto, e muitos homens morreram por causa da água, que se tornou amarga.” (Ap. 8, 10-11)
Lições da Escuridão “Ao ver que fora expulso para a Terra, o Dragão pôs-se a perseguir a mulher que dera à luz o filho varão. [...] A Serpente, então, vomitou água como um rio atrás da Mulher, a fim de submergi-la. [...] Enfurecido por causa da Mulher, o Dragão foi então guerrear contra o resto dos seus descendentes.” (Ap. 12, 13;15;17)
Lições da Escuridão “Ela (estrela) abriu o poço do Abismo, e dali subiu uma fumaça, como a fumaça de uma grande fornalha, de modo que o sol e o ar ficaram escuros por causa da fumaça do poço.” (Ap. 9, 2)
Referências Bibliográficas ALMEIDA, Milton José de. Cinema, Arte da Memória. Campinas, SP: Autores Associados, 1999. BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Tradução sob coordenação de: Gilberto da silva Gorgulho, et alii. São Paulo, SP: Paulus, 2002. (2206 pp.). PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo Hereje. Lisboa: Assírio e Alvim, 1982. TARKOVSKIJ, Andrei. L’Apocalisse. Edizioni della Meridiana, 2005.
Firenze:
Referências Fílmicas ANDREI RUBLEV. Andrei Tarkovski, Rússia, 1966. DVD: ( 165 min.); preto & branco; legendado. LIÇÕES DA ESCURIDÃO. Werner Herzog, Alemnha/França/Inglaterra/Kuait, 1992. DVD: (50 min.); color; legendado.
Azulejo: lugares e imagens A imagem do azulejo, a memória como lugar, o lugar como memória João Augusto Cristeli de Oliveira
O lugar é que faz a localidade. Estar é ser. Fernando Pessoa
O texto trata de uma aproximação do azulejo com a arte da memóriai. As imagens aqui são consideradas como lugares da memória e a azulejaria parte de uma construção simbólica fixa, em torno da qual gravitam imagens e discursos. As relações históricas entre azulejaria, ornamentação e arquitetura foram recriadas, na Belo Horizonte de 1940, com o objetivo de construir uma noção de realidade voltada para a ideia de progresso e modernização. A arte da memória é uma parte da Retórica. É um artifício de memorização, uma máquina de recordar. O mecanismo da máquina de lembrar consiste em criar um lugar e ali depositar imagens relacionadas às lembranças que queremos evocar. À medida que as imagens são resgatadas produzem reminiscências que nos remetem, por associação, às lembranças. Consideramos aqui o azulejo como um local de construção de imagens; a memória e o azulejo são espaços de imaginação e representação. Dessa forma, podemos fazer uma analogia entre o azulejo e a memória como lugares de invenção de imagens.
de 1940, passaram a fazer parte do imaginário de Belo Horizonte. A iniciativa, no sentido de projetar no cenário nacional uma imagem de modernização, reflete uma determinação de se implantar um programa visual de grande significado político e conduzir o processo de transformação artística da sociedade. Lugar e imagem fazem parte desse programa visuali do projeto político cultural de Belo Horizonte, no início da década de 1940. A inauguração de espaços e imagens de expressiva carga simbólica na cidade são construções de acontecimentos que, incorporados ao cotidiano, passam a ser marcos de fundação vinculados ao ritual do mito de modernização. Dentro de uma visão ampliada, o azulejo, as imagens e o discurso são concomitantemente lugares e imagens, na concepção de método de lociii da arte da memória: são lugares mnemônicos. As imagens dos azulejos e as imagens sobre os azulejos são o ponto de interseção entre a memória como lugar e o lugar como memória. E é nesse espaço de confluência que situamos as imagens como discurso. Considero assim a imagem do azulejo uma imagem agenteiii capaz de evocar outras imagens e por associação induzir o espectador a um processo de em função de propriedades estruturais e características ornamentais quanto em função das relações simbólicas de suas imagens, compreendidas como textos visuais.
Os painéis cerâmicos de azulejos e pastilhasii, a partir
i Programa visual entendido como o repertório de imagens que constitui um discurso Ideológico.
i A arte da memória é uma parte da retórica. É um artifício de memorização, uma máquina de recordar. O mecanismo da máquina de lembrar consiste em criar um lugar e ali depositar imagens relacionadas às lembranças que queremos evocar. À medida que as imagens são resgatadas, produzem reminiscências que nos remetem às lembranças, por associação.
ii O Método de loci é uma técnica da mnemônica dos tratados de retórica. É um recurso para o desenvolvimento da memória artificial, baseado no sistema de lugares e imagens fictícios como auxiliar para a memorização.
ii Os painéis cerâmicos surgiriam junto com a Arquitetura Modernista de Belo Horizonte, inseridos nos espaços tanto
iii É um termo do tratado de retórica Ad Herennium, do século I, usado para designar as imagens fortes, com características marcantes, que na arte da memória são criadas para serem associadas a parte do discurso que o orador deseja lembrar.
reminiscências. Essa imagem invisível é o percurso histórico e os lugares que o azulejo frequentou até assumir a forma de uma placa cerâmica quadrada, vidrada em uma das faces. O azulejo em sua materialidade, ou como objeto imaginado, contém um universo coletivo e subjetivo de sentidos e significados. Frances Yates (2007) descreve o estudo de Beryl Smalley a respeito da utilização do método de lugares e imagens empregado pelos frades ingleses John Ridevall (franciscano) e Robert Holcot (dominicano) no séc. XIV. Os lugares e as imagens fortes por eles elaboradas eram como pinturas, mas pinturas imaginadas, ou seja, invisíveis, por serem imagens mentais com o propósito de rememorari. Através das construções na memória as ideias adquirem forma, se tornam imagens. Na arte da memória, com o objetivo de rememorar, essas imagens construídas são associadas a outras imagens, coisas e palavras. Pinturas invisíveis são pinturas imaginadas, são imagens do pensamento. O termo e objeto azulejo, independentemente da composição ou imagem impressa, evocam lembranças, reminiscências, produzidas a partir de visões subjetivas associadas a contextos históricos. Isso faz do azulejo uma imagem forte, imagem agente, tendo a arquitetura como lugar. Como suporte para impressão de imagens, o azulejo é também o lugar da imagem, assumindo a dupla função de imagem e lugar: Enquanto que a maioria da cerâmica sai acabada do forno, o azulejo é um objeto cerâmico que só se realiza (e pode ser devidamente avaliado) depois de ser devidamente aplicado à arquitetura a que se destina. Independente da decoração que suporta, o azulejo tem consigo o fabuloso poder de animar as superfícies em que se integra, atribuindo-lhe o ritmo e vivacidade que intervém decisivamente na própria i Para mais informações sobre este assunto ver a obra de Frances Yates, A Arte da Memória.
definição da arquitetura a que pertence (CALADO, 1998, p. 235). Uma das especificidades da cerâmica, o azulejo é um revestimento que tece uma malha nas superfícies das paredes, resultado de um processo técnico associado a um sistema construtivo. É uma categoria à parte dentro do universo amplo e complexo da cerâmica. Devido à sua materialidade, sua estrutura formal, forma de apresentação e composição em módulos planos (ou relevados), ele pode se desdobrar em panos de revestimento. Além da expressão material, o azulejo é também suporte espacial para imagens, textos visuais, diagramação e grafismo, relevo e pintura. Torna-se assim campo de confluência de técnica e de expressão. No universo da cerâmica, arte e técnica tem como limite uma linha tênue, que tanto podem coexistir como ser antagônicas. Na cerâmica, a fronteira entre arte e ciência é imprecisa. A cerâmica oca ou plana está relacionada ao uso que é feito dela, ou seja, a que se destina, tanto no campo das funções práticas quanto como forma de expressão, ou ambas. O revestimento de cerâmica vidrada está relacionado, desde as suas origens, com a arquitetura palaciana, templos e edificações emblemáticas, assim como aos acontecimentos, marcos históricos, ou seja, com a fundação de mitos de origem. A sua popularização, que hoje é generalizada, só teve início com a revolução industrial. Os azulejos nos remetem à cultura ibérica, às civilizações ceramistas do Levante espanhol e da Andaluzia, na sua constituição física e material e na sua concepção visual. A azulejaria portuguesa e colonial brasileira foi o substrato do azulejo neocolonial e posteriormente da azulejaria modernista, empregado como elemento simbólico da tradição luso-brasileira no contexto da política cultural da Era Vargas.
Partimos então do entendimento de que, independente das qualidades estéticas e funcionais, o aspecto central da questão está relacionado ao propósito da criação e da celebração de uma narrativa. Podemos relacionar assim, por analogia, a imagem do azulejo com a arte da memória, sob o aspecto da memória como construção de um lugar para lembrar. O azulejo, lugar e imagem, foi usado como uma forma de evocar o passado português.
1944 como em 1920 (e anos seguintes), a arte está sob o patrocínio do estado/prefeitura/governo. A corrente nacionalista a que muitos dos modernistas brasileiros se ligam seria facilmente absorvida pela política também “nacionalista” do governo desse período. Assim é que vemos surgir no Brasil uma política das artes, uma real preocupação de se manipular e proteger as artes e os artistas (ÁVILA, 1986,21).
Na década de 1930, o azulejo ganhou destaque na pauta das discussões nos momentos inaugurais da arquitetura modernista, por influência de Le Corbusier que, em 1936, recomendou a utilização dos elementos locais. Para Yves Bruand, dentre as recomendações feitas por Le Corbusier aos jovens arquitetos, relacionadas à valorização dos elementos locais, o emprego dos azulejos foi o aspecto mais significativo para a evolução da arquitetura contemporânea do Brasil (BRUAND, 2010:91).
O emprego dos painéis cerâmicos representou no período a utilização do texto visual como instrumento capaz de conferir ao espaço um valor simbólico. Os painéis vão além das funções técnicas, como revestimento, e estéticas, como ornamentação e ilustração do espaço. A utilização do azulejo no conjunto arquitetônico da Pampulha foi o marco inaugural, em Belo Horizonte, do surgimento da azulejaria historiada autoral, azul e branca, cobrindo toda a fachada do edifício.
O Conjunto Arquitetônico da Pampulha, projetado por Niemeyer, com obras de Burle Marx, Ceschiatti, Portinari e Paulo Werneck, foi inaugurado em 1943, pelo prefeito Juscelino Kubitschek em companhia do governador Benedito Valadares e do presidente Getúlio Vargas. O debate cultural, que girava então em torno da renovação das artes, foi inserido na proposta de um projeto político cultural para Belo Horizonte quase meio século depois de sua construção, dentro da concepção estética e ideológica da República. Toda essa articulação nos leva a crer que a consolidação do modernismo ocorreu efetivamente em BH na primeira metade da década de 1940. Nesse cenário, o ambiente artístico-cultural passaria então por transformações radicais, com a presença de nomes consagrados do modernismo do Rio e São Paulo que vieram à cidade para a I Exposição de Arte Moderna, em 1944.
Podemos considerar a conclusão do painel de azulejos um marco simbólico. Conforme afirma Morais, “enfim a história da azulejaria contemporânea no Brasil é, simultaneamente, a história de implantação do modernismo em nosso país nas décadas de 1940/50” (Morais in ALCANTARA, 1997:101). Ele se refere aos painéis de Portinari na Igreja de São Francisco como “sua mais importante obra no campo do azulejo. (...) no painel externo da capela da Pampulha, Portinari narra com vigor e eloquência expressionistas passagens da vida de São Francisco de Assis” (1997:94). Dada a visibilidade e o contexto de sua criação, no momento de consolidação do modernismo em Belo Horizonte, o painel assume uma carga simbólica que extrapola as suas qualidades funcionais e estéticas.
Uma anotação necessária e curiosa é a de que, em
É importante destacar que se trata de um conjunto de edifícios de grande significado simbólico inserido em uma paisagem artificial também altamente
significativa. Na memória como lugar e no lugar como memória, a paisagem e o lugar não são apenas o espaço exterior. No percurso histórico da arte da memória essas imagens participam, como agentes, na criação e ordenação do mundo. Assim, na primeira metade da década de 1940 os painéis cerâmicos foram associados à arquitetura modernista na criação do imaginário da modernização em Belo Horizonte. O azulejo foi o elemento visual integrado à arquitetura que, juntamente com o espaço, constituiu um lugar da memória. Assim a azulejaria, integrada à arquitetura modernista como um projeto político-cultural, surgiu concomitantemente com a consolidação do modernismo na cidade. No mesmo contexto surgiram em Minas nas décadas de 1940 e 1950 outros painéis cerâmicos autorais na arquitetura modernista em Belo Horizonte, Cataguases, Araxá e Juiz de Fora. Note-se que estas cidades mineiras, marcadas por obras de azulejaria e arquitetura modernistas, tinham em comum uma posição política estratégica ou um desenvolvimento econômico e industrial peculiar. As obras concebidas para estes espaços foram executadas com a participação de artistas, artesãos e ateliês de cerâmica. Elas possuem características diferenciadas dos painéis executados em técnicas diretas do muralismo ou de quadros à têmpera, óleo ou técnicas mistas, que poderiam ser descolados da arquitetura. Neste processo, a obra se vincula estreitamente aos princípios da arquitetura como elemento integrado, na qual cabe ao artista concebêla para um fim específico; a escultura, a pintura mural e os azulejos seriam um complemento quase obrigatório, de grande impacto visual. O arquiteto atribuiria ao pintor ou ao escultor o seu papel (BRUAND, 2010). Na arquitetura modernista as artes tinham uma função definida: foram
encomendadas com objetivos específicos. O painel em azulejaria é uma sequência de placas que compõem um espaço plano, cuja estrutura visual se altera à medida que nos afastamos ou nos aproximamos. Funciona também, nesse caso, como suporte para imagens. É um elemento integrado à arquitetura que, devido às suas características funcionais e estéticas e à sua capacidade de se adaptar aos diversos ambientes, pode ser usado com múltiplas finalidades. Mas, enfim, não são apenas as suas características que o definem, mas o uso que se faz delas. As imagens dos painéis de azulejos na arquitetura modernista são expressões simbólicas, assim como de discursos que precedem e acompanham a sua instauração e continuam atuando posteriormente. Jacques Aumont afirma: Toda representação é relacionada por seu espectador – ou melhor, por seus espectadores históricos e sucessivos – a enunciados ideológicos, culturais, em todo caso simbólicos, sem os quais ela não tem sentido [...].Tenhamos em mente que a imagem só tem dimensão simbólica tão importante porque é capaz de significar – sempre em relação com a linguagem verbal [...]. Todos sabem, por experiência direta, que as imagens, visíveis de modo aparentemente imediato e inato, nem por isso são compreendidas com facilidade, sobretudo se forem produzidas em um contexto afastado do nosso (AUMONT, 1993:248). Dessa forma a percepção do significado da imagem se processa através da articulação com outras linguagens. Sendo a azulejaria associada à arquitetura modernista, ela se situa nesse contexto, que por sua vez está vinculado a um programa visual de um projeto político-cultural. Assim como os lugares e imagens invisíveis da arte da memória, os espaços construídos para lembrar são revisitados nos exercícios de memorização e apagamento.
Neste universo de invenções e construções de imagens, questiono o que é real e o que é ficção. O que pode uma imagem revelar ou ocultar, ou mesmo como é percebido ou ocultado um programa visual.
REFERÊNCIAS ALCÂNTARA, Dora de (org.). Azulejos na cultura luso-brasileira. Rio de Janeiro: IPHAN, 1997. ALMEIDA, Milton José de. O teatro da memória de Giulio Camillo. Campinas: Ed. Unicamp, Ateliê Editorial, 2005. AUMONT, Jacques. A imagem. São Paulo: Papirus, 1993. ÁVILA, Cristina. Modernismo em Minas Literatura e artes plásticas: um paradoxo, uma questão em aberto. Anal. & Conj., Belo Horlzont, 1 (1): 165-200, jan./ abr. 198 6. Disponível em: ww.fjp.mg.gov.br/revista/ analiseeconjuntura/.../getdoc.php?...11...Acesso em: 14 de dezembro de 2011. BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo: Editora Perspectiva, 2010. CALADO, Rafael Salinas. Os OCEANOS 36/37- Outubro 1999. Comissão nacional para descobrimentos portugueses. 1998.
azulejos da rua. In: 1998/ março de comemorações dos Lisboa: Bertrand,
MORAIS, Frederico. Azulejaria contemporânea no Brasil. São Paulo: Ed. Publicações e Comunicações, 1988. OLIVEIRA, Maria do Céu Diel. Imagens do inferno: lugares da memória, palavras de Dante/Maria do Céu Diel Oliveira. – Campinas, SP: [s.n.], 2000. YATES, Frances A. A arte da memória. Campinas: Ed. Unicamp, 2010.
Sobre um trajeto Joice Saturnino
Falo aqui de um trajeto onde a busca do conhecimento leva ao encontro de verdadeiros livros vivos. Espaço de troca entre o popular e o cientifico. Um circulo que se fecha geograficamente e se abre pelo resgate e a valorização da cultura. Belo Horizonte – Santa Luzia – Jaboticatubas/Capão Grosso – Santana do Riacho/Serra do Cipó/Lapinha – Morro do Pilar – Conceição do Mato Dentro – Alvorada de Minas – Santo Antônio do Itambé – Serro/Milho Verde/São Gonçalo do Rio das Pedras – Diamantina – Gouveia – Inimutaba – Curvelo – Cordisburgo – Caetanópolis – Sete Lagoas - Belo Horizonte.
Contemplar esse mapa me faz transpor certos limites, me faz ter certeza de que o tempo não existe. Nada se acaba, e sim, transforma-se em sensações especialmente agradáveis. Meus limites se diluem e surgem imagens, memorias e significados. Todos os meus sentidos ficam alertas, se envolvem no intuito de armazenar e reviver a cor, o cheiro, o som, o caminhar, as pessoas. Tudo se transforma na matéria prima de uma busca. É como entrar em uma sala de espelhos e tudo ir se multiplicando em uma visão difícil de esquecer, impregnada de saberes. “A cada instante existe mais do que a vista alcança, mais do que o ouvido pode ouvir, uma composição ou um cenário à espera de ser analisado. Nada se conhece em si próprio, mas em relação ao seu meio ambiente, à cadeia precedente de acontecimentos, a recordação de experiências passadas.” (Kevin Lynch, 1990 p.11). A importância desse aprendizado é variável segundo pessoas e situações, evocamos nossas imagens mentais, nosso mundo de percepção. Traços vão abrindo trilhas que possibilitam excursões imaginarias, abrimos nosso caderno e vamos em busca da escrita de nosso livro. Tenho em minha frente um circulo que se fecha geograficamente e se abre pelo conhecimento. Fazer, refazer o percurso, andar por parte do espinhaço, local onde elegi meu mapa, área de busca, ou apenas um caminho onde, o conhecimento me é oferecido no fazer cotidiano de uma forma única e transformadora. Belo Horizonte é meu ponto de partida. Belo Horizonte é meu ponto de chegada. Recorte – Mapa de Minas Gerais / região do espinhaço
Nesse abraço uma biblioteca vai se formando, por
vários anos minhas andanças se concentraram neste circulo, e aqui encontrei verdadeiros livros vivos. Passei por algumas de suas veredas, penetrei em suas matas, vivi suas questões e fui ao encontro do inesperado tendo a certeza de que nunca estamos prontos, sempre a algo a descobrir. Uma viagem de exploração que me fez compreender os limites e as relações do mundo baseados no conhecimento construído em uma rede trançada pela sabedoria milenar. Tudo se enche de sentido. Haverá a vivencia, uma realidade autenticamente vivida. Uma visão do mundo que se relaciona com o saber cientifico, fazendo um intermeio desses saberes que se cruzam em determinados momentos e em outros se distanciam. A existência criou cenários com muitas portas para serem abertas, escancaradas. São tesouros preciosos trazidos pela história oral, informações essenciais para manter viva a alma. Nesse trajeto encontrei várias pessoas, donas de um conhecimento e uma sabedoria vinda da vida, algo de mágico com uma certa alquimia presente, unindo o fato à maneira de viver. Uma relação entre natureza e cultura. São livros vivos que fui encontrando. Um deles é Pedro Galo, um eremita morador da região do Jacinto em Jaboticatubas. A estrada segue, na frente a serra, uma poeira leve levanta, choveu há poucos dias, céu azul e de repente um ninho interfere no cenário, um amarrado, eles vão surgindo na beira da estrada, grandes, altos, pequenos, coloridos. Um protesto ecológico? Quem andou por ali? A estrada esta limpa, varrida como quintal de fundo de casa, o “lixo” organizado, pendurado.
Ninhos de Pedro Galo/1996
Ninhos de Pedro Galo/1996 Vamos seguindo, destino: seu Ari Taquara, figura rica em hist贸rias e est贸rias, sempre passando um telegrama para sua amada Criola. Preso a uma 谩rvore batia palmas e fazia sons que ela, na casinha logo abaixo, sabia o que ele queria, um c贸digo de cumplicidade.
Ninhos de Pedro Galo/1996
Chegando lá, seu Ari nos recebe com seu sorriso largo, cajado na mão. A cerveja tá gelada. Pergunto se algum grupo de ecologistas passou por ali e ele em sua sabedoria de Matusalém, primo seu como dizia, foi bem categórico: “não precisa ser essas coisas pra gostar de lugar limpo, esse caminho é a casa do Pedro Galo”.
oferece e com um meio sorriso deixa aparecer seus dentes brancos lavados com juá. Afasta-se, com cuidado arruma suas coisas e envereda por uma trilha em direção ao bambuzal. Passa por uma cerca onde florescia uma trepadeira de cacho azul, dessas que se você apanha murcha em dois tempos. Ele olhou para traz e me ofereceu o cacho azul no pé! Ele sabia.”
Curiosidade maior, logo pergunto:
Esse foi meu primeiro de alguns encontros com Pedro Galo.
- Quem é Pedro Galo? - Ele mora nesse caminho, pega o lixo e amarra. Dizem que é louco, mas não é não. - Mora no mato? - Não tem teto certo. Vez em quando passa por aqui. Hoje deve. Nesse dia a cerveja seria diferente e comecei uma espera. Figura baixa, negra, meio franzino, olhar ágil, um embornal de lado e um saco cheio, meio desconfiado arrodeia o lugar. Seu Ari avisa: É ele. Não precisava, havia algo de especial. Deixa seu saco, acomoda o embornal, balbucia alguma coisa, não consigo entender, Seu Ari faz o meio de campo e sabedor que é dos conhecimentos de mateiro de Pedro Galo, e meu interesse pelas plantas, ali me introduz na conversa. Não sei quanto tempo demorou, minutos, horas, algumas coisas trocadas. Esse homem se levanta, entra no mato. Será que vou encontrar com ele de novo? Percebo que, suas coisas ficaram ali. Ele vai voltar. Quando surge traz consigo um amarrado de sempre vivas, flor seca do serrado, que como o nome diz se entrega sempre viva. Vem em minha direção, me
São estas pessoas que por presente aparecem em nossas vidas, que, me possibilitam escrever o meu “livro”. Fui sendo presenteada neste caminho, coletando informações, preciosidades, que sempre me fizeram voltar. Precisava voltar. Entre as cidades emergem elementos de significados novos. Uma embaúba, o brejo com seu lírio que a distancia o perfuma se faz identificar, um vinhático majestoso, causando uma constante renovação do pensamento, que me captura, existe algo em comum em todo esse trajeto e nesse caminho uma linha chama a atenção. A estrada vai passando, as sombras se abandonam ao ar que tem vida tem movimento, as linhas do horizonte vão fazendo seus recortes separando céus e nuvens, cores claras e fluidas animam a paisagem com fragmentos coloridos, mais frios em alguns e mais quentes em outros, pequenos traços que ferem a rica monotonia da paisagem com seus múltiplos verdes. É a presença do homem marcada por seus varais que como um alinhavo unem essas cidades, são pontos de fuga que levam a imaginação para dentro do espaço onde habitam, criam enigmas, nos fazem sentir íntimos, imaginando conversas, aproximando-nos de uma verdade secreta muitas vezes nossa.
Varais Cada porção de matéria, por menor que possa parecer, cada energia gasta, vão modificando e formando o nosso olhar. Tornamo-nos buscadores insatisfeitos. Uma inquietude se estabelece, são inúmeras possibilidades.
Varais A paisagem se altera, a frente um traço colorido desce a colina, os varais vão se repetindo, uma leve mudança de direção vai desenhando e descrevendo espaços abertos que se expõe aos nossos olhos. Uma continuidade visível, uma costura de união que flutua formando um mosaico. A proximidade e o contraste da paisagem vão identificando cada cidade, realçando a temática de cada uma, sua matéria prima se apresenta e como no varal vão mostrando sua intimidade, para que possamos desmembra-la.
Fred Alan Wolf em seu livro espaço tempo e além nos fala desta inquietação da pesquisa e cita Albert SzentGyorgyii: “A textura básica da Pesquisa constitui-se de sonhos dentro dos quais os fios do raciocínio, da medição e do calculo são entrelaçados.” (SZENTGYORGYI, apud Wolf,1989,p.125)¹. Esse permitir sonhar, cruzar informações, divagar e desembaralhar os fios, é que me faz contemplar meu mapa, sem inicio nem fim. Um ponto precisando do outro para se completar, os conhecimentos vão sendo checados, acrescentados e enriquecidos. A atenção desperta. São pequenas coisas e pequenos detalhes que me acordam, e, é entre eles que caminho. i Albert Szent-Gyorgyi – 1893/1986 - Fisiologista húngaro, naturalizado norte americano, ganhador do premio Nobel de Fisiologia/Medicina – 1937.
Referências LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Rio de Janeiro: Edições 70,1990
Imagens Cerâmicas De Belo Horizonte: Manchas Márcia Norie Seoi
WOLF, Fred Alan; TOBEN, Bob. Espaço – Tempo e Além. São Paulo: Cultrix, 1989 Mapa de Estradas / Minas Gerais – São Paulo: Mapograf, 2011
Este artigo apresenta o projeto: Imagens cerâmicas de Belo Horizonte que teve como finalidade “incorporar” a cidade de Belo Horizonte através de diversos percursos pelas suas ruas, avenidas, parques e demais, em busca de “imagens agentes”, elementos a partir dos quais desenvolvemos um conjunto de peças cerâmicas. i Professora de cerâmica na Escola Guignard- UEMG. Neste trabalho apresenta-se os resultados preliminares de um projeto de pesquisa da Escola Guignard – Uemg, coordenado por Márcia Norie Seo. Neste projeto participou a estudante Lidia Lana Gatelois como bolsista de iniciação cientifica UEMG/ESTADO Edital 01/2011.
A cerâmica é o resultado material do trabalho, muito mais amplo, do ceramista. Um objeto fruto de nossa manipulação associado também a processos nem sempre controláveis, e que nos surpreendem. Assim partindo desta idéia de “contínua exploração” do ceramista, desenvolvemos estudos e provas para tentar direcionar mais os resultados. Lembremos que a argila é um material muito versátil, e portanto pode ser utilizada em diferentes estados: pó, líquida, pastosa, dura, enfim da maneira que for mais interessante ao propósito da obra concebida. Assim, partindo desta idéia de “contínua exploração” do ceramista, foi proposto um projeto (ver rodapé), com intuito de criar discursos e imagens sobre Belo Horizonte materializados em peças em argila, como emergência de uma linha paralela a da palavra escrita. Através destas peças, queremos apresentar aprendizagens, sensações, sentimentos e sensibilidades. Nossa intenção foi “in-corporar” a cidade, isto é “transformá-la em carne” fazendo-a parte de nosso ser. Para isto elaboramos uma proposta experimental para reinserir a experiência e as relações entre o corpo e o mundo circundante (Merleau-Ponty 2006). Eu e a estudante Lidia percorremos livremente a cidade em busca de “imagens agentes” (Yates 2007) que funcionaram como temas de inspiração para a produção de peças cerâmicas. É por isso que a proposta consistiu em uma conversação com imagens e estruturas de Belo Horizonte, pensando em como a cidade contém em suas aparições historias que nos atraem e repelem; e também como estas mostram brechas de outras historias que nos transportam a novos universos criativos em uma sorte de caleidoscópios infinitos. (Oliveira, ms) Desta historia também nascem historias: Espaço, lugar, historias e mundos criativos
O espaço onde se desenvolve a vida das pessoas compreende aspectos físicos e representacionais ( Johnson, 2007). A partir deste, é possível sustentar que os lugares e paisagens culturais integram uma sucessão de historias superpostas no decorrer do tempo (Potteiger e Purinton, 1998). Com a consolidação da pos modernidade a espacialidade começou a ser interpretada como uma metáfora destes discursos invisíveis. Reconstruir as historias associadas a lugares e paisagens representa um desafio para o artista. Por sua vez os lugares referem a formas culturalmente específicas de perceber, representar e referir-se a um espaço determinado (Thomas 1993; Hirsch 1995). Os lugares possuem significados e valores associados, que lhes conferem identidades dinâmicas ao longo do tempo (Rose 1995). Se então podemos pensar a paisagem como uma superposição de historias, porque não tentar a partir de nosso olhar como artistas dar voz a certas historias que até o momento haviam permanecido invisíveis? Atualmente diferente ao pensamento moderno, a pós-modernidade não concebe a existência de uma única forma de ver as coisas. Pelo contrario, entende que a realidade é demasiadamente complexa e heterogenia para negar a diversidade de seus entendimentos. Na busca da diversidade, a crítica pós-moderna permitiu que novos atores tivessem participação na construção da historia. Entre estes destaco a visão do artista como transformador e transgressor da realidade. O artista como aquela figura que não está obrigada a respeitar os rígidos limites de uma realidade insensível, senão, ele pode subverte-la em busca de sua própria linguagem. Estas formas nas quais o artista experimenta o mundo são subjetivas. As subjetividades não se encontram fechadas sobre si mesmas, sem estabelecer contato entre elas. Ao contrario, como artistas,
nossa participação em um universo criativo, pelo fato de compartilhar um certo contexto material e uma busca, nos permite tecer vínculos entre distintos pontos de vista por intermédio da intersubjetividade. A inter-subjetividade oferece a possibilidade de alcançar um certo grau de consenso sobre as formas nas quais percebemos o mundo, e a partir desta estabelecer diálogos que nos permitam gerar novas linguagens e visões artísticas. Imagens Agentes e pontos sensíveis Para efetuar estas recorridas e “in-corporações” de Belo Horizonte trabalhamos a partir das propostas de “pontos sensíveis” de Jean Marc Besse (2006) e “Imagens agentes” de Frances Yates (2007). Em ambos casos trata-se de pontos ou imagens que incitam os sentidos, ativando mecanismos emocionais que possuem um impacto na constituição da memória. Segundo Yates, na Arte da Memória, as imagens agentes “são imagens capazes de permanecer por mais tempo na memória” já que as imagens que melhor se fixam em nossa mente são as que foram transmitidas pelos sentidos, e que, portanto, ajudam a memória a estimular reações emocionais por meio destas imagens particulares. É precisamente através da construção ou familiarização destas, que as pessoas podem in-corporar o espaço que habitamos. Podemos dizer que somos “tocados” por certas imagens (não necessariamente visuais, podem ser também olfativas, sonoras ou táteis), e através destas organizamos nosso mundo. Assim, nosso trabalho tem produzido algo que poderíamos chamar de “ressonâncias” (Deleuze, 1998), que são fragmentos, contaminações de Belo Horizonte que atuam sobre nós em diferentes dimensões. Nossos percursos pela cidade através da combinação de memórias e imagens, foram materializados em uma “escrita” em argila, em cerâmica.
Memória O conceito “imagem agente” está associado diretamente ao de memória. Como foi dito, a maioria das vezes armazenamos e organizamos nossa memória a partir dessas imagens. Assim nosso percurso pela cidade de Belo Horizonte, em busca dessas imagens agentes, implica também uma viagem pelas nossas memórias. Mas o que é memória? Claramente trata-se de um conceito amplo e complexo. Frequentemente tem sido associada a capacidade de um sujeito relacionar-se com o passado ou a virtude de guardar coisas na mente como fonte para a retórica. Falar de memória é também referir-se ao esquecimento (Weinrich,2001). Esquecer é parte do processo de transformação contínua da memória. Lembrar não é um fenômeno estático, mas pelo contrário dinâmico. Fragmentos da memória são lembrados e outros esquecidos – às vezes, substituídos por outros imaginados que com o tempo irão se transformar em verdadeiros, para – quem sabe – mudar novamente. Memória e passado possuem uma relação direta. Esta relação está baseada no que podemos denominar um processo de recolhimento de traços ou vestígios. Assim, efetuamos um recorte do passado a partir da recordação, para construir uma seqüência narrativa - que seria um modelo subjetivo de “passado” – conectada com o presente. A memória é uma função curiosa, que provoca muitas conjeturas. Como nós, seres humanos, nos organizaríamos e funcionaríamos se não fôssemos dotados de memória? Teríamos que recriar cada instante. Percursos na Cidade O percurso pela cidade de Belo Horizonte se fez a partir de pontos que foram previamente
estabelecidos: Parque Municipal e arredores, Praça da Liberdade e arredores, Savassi, Mercado Municipal, Pampulha, bairro Mangabeiras e aglomerado Serra. Em cada um desses lugares buscamos imagens agentes para conduzir o trabalho na cerâmica. Com a maquina fotográfica na mão e olhos ávidos, as imagens que se apresentaram foram: a Serra do Curral, nuvens, arvores, galhos, texturas, o chão, manchas, sombras, água e reflexos, todas essas imagens me lançaram a uma sucessão de sensações e lembranças. A arquitetura não me capturou. Os prédios, monumentos e cartões postais pouco ressoaram em mim. Vivo em Belo Horizonte há seis anos e durante este tempo construí poucos vínculos ou historias ligadas aos lugares propostos a serem recorridos no projeto. Quando meu corpo e olhar percorreram a cidade, a natureza se apresentou fortemente assim como certos vestígios encontrados no chão. O homem não pode compreender sem as imagens (phantasmata); a imagem é um simulacro de uma coisa corporal, mas a compreensão é a dos universais, que devem ser abstraídos dos particulares. A memória recebe imagens das impressões dos sentidos, pertencendo então a parte sensorial e da imaginação e também a parte intelectual quando o intelecto abstraidor trabalha nela a partir de phantasmata. (Yates, 2007 p.95) Através deste percurso corporal, sensorial e intelectual elegi quatro Imagens agentes que me sensibilizaram e conduziram minha pesquisa plástica.
Nuvens na Serra do Curral – foto Márcia Seo
Detalhe da Serra do Curral - foto de Márcia Seo
Parque Municipal - Árvores – foto de Márcia Seo
Peças de Márcia Seo - foto da autora Percursos na Argila A Serra do Curral, montanha e minério, é uma imagem vigorosa em meu horizonte onde se apresentam natureza e textura. Diante da apreciação da textura bruta de rochas aparentes nas montanhas. Busquei na argila a possibilidade de trabalhar a brutalidade, explorando sua materialidade através de diferentes formas de modelagem e em estados distintos de umidade da argila.
Manchas no asfalto - foto Márcia Seo
A argila bem úmida acolhe gestos e os guarda, ela é macia e maleável. Quando mais seca me permite que a golpeie e a quebre retornando a mim uma matéria mais bruta com aspecto mais geológico.
Este percurso teve algumas linhas que ajudaram, não só a orientar a direção de meu olhar com também a buscar formas de materializar e apresentar as idéias que queria transmitir. Dentre vários artistas que vieram a minha cabeça, gostaria de ressaltar Claudi Casanovas. Ceramista catalão, que com sua obra traz a tona a terra com sua brutalidade, texturas ásperas, imagens de estruturas geológicas e estratigráficas. A argila trabalhada de forma alquímica revelando o espírito do material e as marcas do fogo. A presença da matéria é única em sua poética. Outra artista que me influenciou neste trabalho foi Clare Towmey, artista britânica, quem veio dialogarme trazendo sua delicadeza e poesia, fragilidade, permanência e ausência. A partir de todas essas vozes, os artistas que eu gosto, as imagens agentes, minha memória, a cidade e suas coisas explorei diversas possibilidades de trabalho. Dentre outros fiz testes com argila misturada com serragem em busca de uma superfície com outra textura, já que a serragem é consumida durante a queima deixando sua ausência como textura.
Peça de Márcia Seo
Peças de Márcia Seo – fotos da autora
Peças de Márcia Seo – fotos da autora
Certas imagens nos sensibilizam fortemente e aderem a alma, as manchas no chão, vestígios e sombras, me invocaram uma existência na argila. Surgiram peças com volume e concavidade, onde algumas carregam matizes-reflexos-memorias enquanto outras permanecem silenciosas. Imagens de sombras, restos. Marcas esquecidas tomam volume, refletem cor e memória.
Em busca de uma superfície mais fluida utilizei a argila de forma liquida misturada com papel para obter delicadeza e ainda resistência. Como suportes para as cores das arvores e terras ou registros de gestos.
Em um espaço de exposição fechado o trabalho pede mais quantidade e ocupação de espaço enquanto na rua junto de outras manchas se destacaram demasiadamente pelo volume. Então parti para a confecção de peças mais finas e delicadas.
Peças de Márcia Seo – fotos da autora
Peças de Márcia Seo – fotos da autora
Peças de Márcia Seo – fotos da autora
Estudo de montagem – foto Márcia Seo
Reflexos na mancha – foto Márcia Seo
Peças queimadas e não – Márcia Seo
Ressonâncias de Belo Horizonte Ainda lembro a primeira vez que contemplei ao vivo uma peça cerâmica surgir no torno pelas mãos de um artista: Ryoji Koie. Era difícil acreditar que um fragmento de argila sem forma podia se transformar num objeto carregado de gesto e alma após alguns giros e o contato do barro com a mão. Ele passou de ser uma idéia que o artista tinha na cabeça (e portanto que só ele podia enxergar) a um artefato que tem existência em nossa realidade, e que a partir de sua materialização pode ser contemplado por qualquer pessoa. Ainda que agora perceptível no mundo físico, o objeto visualizado é simplesmente um significante de um significado que continua dentro da cabeça do artista. Ainda que não exista um olhar certo (ou único) para enxergar uma obra o importante é que quem observa possa experimentar algo diferente, que a peça estimule sua própria sensibilidade, suas memórias, ou tocando e no melhor dos casos transformando-o.
Dissolução da mancha de argila – foto Márcia Seo Peças queimadas e resistentes, com cores, talvez imagens impressas e outras sem queimar quando a argila é frágil e vulnerável a ações do tempo e gestos das pessoas que interagem com elas. São tantas as possibilidades para as imagens cerâmicas de Belo Horizonte. Dessa forma a pesquisa continua em busca de melhores formas de materializar, de trazer a proximidade tátil as minhas reflexões.
Foi interessante como já mencionado em “percursos na cidade”, que tanto a estudante Lidia como eu fomos atraídas pelo universo das superfícies de Belo Horizonte. Lidia trabalhou sobre pedras, e eu sobre manchas no asfalto. Ambos temas são desde o senso comum, elementos sem muita graça e pouco estéticos, se comparados aos lugares e coisas bonitas da cidade e seus arredores. Porém, estas imagens agentes, escolhidas em função de nosso próprio mundo interior, de escolhas muitas vezes inconscientes, possibilitaram um olhar transformador que as colocou no centro do processes criativo. Manchas no asfalto remetem a memórias e historias que deixaram uma marca no mundo material. Estes vestígios me transportam a outros universos no tempo associados ao passado da cidade. Manchas que implicam movimento e portanto o resultado de algo que esta vivo. O mundo publico e o desejo das pessoas de interagir com outros. Manchas de óleo, de pintura,
de pneus, de tampinhas de bebida amassadas e integradas ao asfalto, marcas de golpes ou raspagens, buracos, dentre outras conformam a geografia das ruas e avenidas. Estas manchas também são vistas por mim como sombras distribuías aleatoriamente, como a prolongação das historias que representam , as que se a partir de efeitos de luz ou de perspectiva segundo desde onde as observemos, se cruzam num mínimo instante em que o tempo parece deter-se, como as manchas se conhecessem e juntas dessem sentido e sustento a cidade.
Agradecimentos À Pro-Reitoria de Pesquisa da UEMG. Ao Centro de Pesquisa da Escola Guignard, em especial a Raquel Viana por seu apoio. À bolsista Lidia por participar do projeto. À Junia pela assistência no ateliê de cerâmica. À Maria do Céu por orientações preciosas e inspiradoras. Pelo convite a participar do LINHA. Ao grupo LINHA.
Referências ALMEIDA, Milton José de. O teatro da memória de Giulio Camillo. Campinas: UNICAMP, 2005. CONNERTON, Paul. How societies remember. Cambridge: Cambridge Society Press, 1989. COOPER, Emmanuel. Contemporary London: Thames & Hudson Ltd, 2009.
ceramics.
BESSE, Jean Marc. Las cinco puertas del paisaje; ensayo de una cartografia de las problematicas paisajeras contemporanes. Em Paisaje y Pensamiento (editado por J. Maderuelo,). Madrid: Adaba. Pp 145-186. 2006 DELEUZE, Gilles. PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998. FRIGOLA, Maria Dolors Ros i. Cerámica artistica. Lisboa: Editorial Estampa Lda, 2006. HIRSCH, E. ‘Introduction; Landscape: Between place and space’, em E. Hirsch y M. O’Hanlon (eds.) The Anthropology of Landscape; Perspectives on Place and Space Oxford: Clarendon Press, 1995.
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Por que paramos de desenhar quando vamos para a escola?
Aroldo Dias Lacerda
Desenho, logo existo. (Guto Lacaz)
Se olharmos ao nosso redor, principalmente no contexto urbano, tudo o que é produzido pela indústria foi antes desenhado em escala: foi pensado e desenhado nas proporções para que se pudesse materializar a idéia ou o projeto, seja numa fábrica sofisticada ou numa simples marcenaria: de uma simples cadeira ou do menor parafuso a uma nave espacial, de um microchip a uma usina hidrelétrica2, tudo se ergue no mundo a partir de um desenho. Numa sociedade altamente tecnológica como a ocidental vivemos um paradoxo: o desenho estrutura tudo o que tem sido produzido pela técnica desde o século XV3, mas como forma expressiva das crianças ele sofre um esvanecimento na medida em que elas se escolarizam, chegando ao ponto em que apenas uma pequena fração4 (menos que 20%) destas crianças continua desenhando enquanto crescem. O esvanecimento do desenho que ocorre na escola tem muito a ver com a ênfase que a concepção de educação da atual LDBEN de 19965 coloca sobre a tecnociência, como princípio e requisito básico do saber, na sociedade e na cultura, ênfase essa que é reflexo de tendências já postas nas anteriores, indicando que tal esvanecimento tem origem mais longeva. Tenta-se contrabalançar tal ênfase pelo “conhecimento da arte”, compreendido como conhecimento “sensível-cognitivo, voltado para um fazer e apreciar artísticos e estéticos e para uma reflexão sobre a história e contextos na sociedade humana”6. No entanto, este contrabalanço acaba colocando uma série de questões sobre as fragilidades do ensino de Arte na escola, como aponta Favarettto (2010, p. 225), mas que, por extrapolarem o objetivo deste artigo, não serão tratadas aqui: (...) as propostas sobre a relação entre arte e educação,
consensuais até pouco tempo, vinculadas ao ideal de formação, não satisfazem mais as expectativas de uma educação que enfrenta a heterogeneidade do saber,da sensibilidade e da experiência contemporânea. Desta maneira, os princípios do talento e da criatividade, até agora hegemônicos, que informavam sobre as concepções e práticas da arte na educação, demonstram-se insatisfatórios. Entretanto, ainda não está claro o que pode ser associado a eles para se superar as dificuldades atuais. Se como na provocante atualização do cogito cartesiano feita pelo artista Guto Lacaz, desenhar é condição de existência, identificando-o com o pensar, qual tem sido o lugar dele na educação? Desenhar, formar uma idéia, idear, conhecer - assim também pensam outros artistas: para Amilcar de Castro “o desenho é uma forma de pensar, é um pensamento sobre o espaço”7; para Mário de Andrade “ [o desenho] é uma espécie de provérbio. Exprime, da mesma forma que o provérbio, uma experiência vivida e transformada numa definição eminentemente intelectual”8. E Derdyk (1989, p. 24) sintetiza: “desenhar objetos, pessoas, situações, animais, emoções, idéias são tentativas de aproximação com o mundo. Desenhar é conhecer, é apropriar-se”. Deste modo, ao enfatizar predominantemente o âmbito científico da cultura, a educação no Brasil tem oferecido ao desenho um lugar secundarizado como forma de conhecimento do mundo, ao mesmo tempo em que se propõe a fórmula: ‘formar’ cidadãos cooperativos, autônomos, críticos e criativos9. Por que paramos de desenhar quando vamos para a escola? Ou em outros termos: qual o papel do desenho na educação de crianças? Quais as razões que explicam esta interrupção da experiência de desenhar (doravante chamada de esvanecimento) ao longo da escolarização? De que forma algumas escolas e professoras garantem que a criança continue desenhante em sua formação escolar? Essas
Figura 1. Imagens agentes - O perguntas têm-nos mobilizado nos últimos anos esvanecimento da produção como professor de Arte, como artista desenhante gráfica infantil: e como mestrando em Educação10 e neste artigo partilharemos alguns pontos ou indícios – sem a a) (capa) Tinta acrílica s/ papel – pretensão de esgotá-los - e muitas perguntas que Menina de dois anos. Fotografia fomos recolhendo para tecer uma rede na tentativa do autor. 2001; b) Tinta guache de interpretar imaginativamente o que observamos. s/ papel – Menina de 4 anos. Fotografia do autor – 1989; c) Lápis de cor e Lápis grafite Nº 2 – Menino de cerca de 8 anos – 2º Ano, 2008. Fonte desta imagem: http://desenhos.fotoblog.uol. com.br/photo20090807185642. html
Na figura 1 trazemos algumas imagens agentes – aquelas que nos mobilizam para imaginar, a pensar com imagens, para desencadear os pensamentos que se seguirão. Nela podemos notar como ao longo dos anos a produção gráfica infantil passa por um esvanecimento, quando as formas inicialmente construídas com cores cedem lugar para desenhos ocos cujas formas nem sempre são plenamente preenchidas com cores; variam os materiais utilizados e já há sinais claros do processo de escolarização no último desenho (uso de lápis grafite, texto e folha pautada). A perspectiva linear, a educação visual e o esvanecimento do desenho infantil Edgerton (2006) na apresentação de seu ensaio indica a genealogia da perspectiva e a do aprimoramento do ‘desenho técnico’ na nossa cultura, desde os manuscritos islâmicos (Figura 2). Sinaliza que a perspectiva influencia decisivamente o lançamento das bases da tecnociência: O presente ensaio defende que não foi somente um acontecimento artístico o advento da perspectiva linear (c. 1425), quando Filippo Brunelleschi ao pintar um pequeno painel no Batistério Florentino lançou mão das regras geométricas da reflexão em espelho ótico. Esse acontecimento veio a exercer uma profunda e inesperada influência no surgimento da ciência moderna.(...) a original dependência do espelho que Brunelleschi desenvolveu dois séculos antes não almejava revelar uma realidade ‘científica’ objetiva, mas sim reforçar a realidade espiritual cristã. Em 1435-36, Leon Battista Alberti, ao codificar a perspectiva de Brunelleschi em seu famoso “Tratado de pintura”, substituiu o espelho de Brunelleschi por uma janela gradeada, assim redirecionando o propósito da arte da perspectiva, cujo intuito era não mais a revelação da ordem divina refletida na terra, mas sim de uma realidade física, mais secular, vista diretamente em sua relação com a ordem moral humana.
Figura 2. a) Desenho sem perspectiva a partir de um manuscrito islâmico do século XIV. b) Desenho de uma bomba de sucção de um ‘engenheiro’ italiano do início do século XV chamadoTaccola (1381ca.1453). Ele já conhece a nova perspectiva linear, e seu desenho de escala poderia efetivamente ser utilizado a fim de se construir a partir dele um modelo de trabalho tridimensional. Fonte destas imagens: Edgerton (2006,pp.154-155)
Na seqüência de sua divulgação realizada pelos tratadistas como Alberti, a perspectiva linear terá também importante papel na consolidação de uma educação visual da memória, através das imagens agentes que mobilizam uma maneira de ver e de compreender o mundo que se tornou hegemônica no ocidente imagens agentes são aquelas oriundas de um “processo secular de fabricação estética e política, feitas para se tornarem inesquecíveis, uma educação visual da memória. Essa arte [da memória] e essa educação se assentam num dos instrumentos mais importantes de fabricação de imagens: a perspectiva, um processo geométrico e matemático de ilusão visual, desenvolvido na Renascença e que persiste na tecnologia das atuais câmeras fotográficas e televisivas” (ALMEIDA, 2004). Um novo entendimento do mundo se funda e uma pedagogia visual que lhe corresponde é criada pela arte da memória, entendida aqui como uma doutrina para a montagem de uma machina memorialis, ou seja, a criação de um aparato visual e literário que, impregnado pelas doutrinas e tratados, cuidou de criar uma pedagogia visual, uma maneira de ver e compreender o mundo. Este entendimento do mundo visual, calcado nas idéias e nos tratados, além de afrescos, esculturas e projetos urbanos, influencia e perpetua nossa corrente arte contemporânea, que preserva e gerencia os modelos nascidos na descrição e nas idéias (OLIVEIRA,2007). Deste modo, vemos que a perspectiva não é apenas uma técnica: como uma construção histórica, ela é uma forma simbólica que identifica profundamente um conteúdo intelectual com um modo sensível de representação, segundo Panofsky. A variação na ordem sensível da representação quer dizer que a perspectiva não é a transposição das condições supostamente eternas do olhar ou ‘naturais’, mas
que tal variação está condicionada por escolhas que educam o olhar. Quem não foi educado pela perspectiva é incapaz de ‘ler’ uma fotografia. Para Arnheim (1992, p. 273), a perspectiva – este símbolo da racionalidade – “marcou uma preferência cientificamente orientada pela reprodução mecânica e construções geométricas, aos produtos da imaginação criadora”. ”Como somos capazes de entender uma pintura, um desenho em perspectiva ou mesmo uma fotografia?11 Certamente os entendemos porque fomos treinados para isso, por uma pedagogia visual paulatinamente construída historicamente: vemos a partir de um sistema de representação e interpretação que direciona o olhar”. No entanto, é preciso matizar aqui esta ideia de treino, uma vez que estaria fundamentada numa lógica mecânica: seria preferível recorrer à idéia de educação do olhar que envolve contextos mais amplos. A educação do olhar é entendida como a que se dá a partir do contato sistemático desde a infância com as mais variadas fontes de imagens: a da cultura de massa (gibis ou revistas em quadrinhos, cinema e televisão), livros de arte, coleções ilustradas de contos de fadas, o exemplo de familiares e de outras crianças que desenham, exposições de arte, grafite dos muros nas ruas etc No caso do desenho, a educação do olhar se conecta com a sua fatura e a uma noção de habilidade – aprendizagem de uma habilidade para o desenho. E em se tratando do desenho na escola, o papel da professora como espelho nos primeiros anos exerce uma influência fundamental: daí nossa ênfase no seu exemplo como desenhante como condição necessária para a sua permanência. Assim, notamos como essa educação do olhar orientada cientificamente pelas construções geométricas, secundarizou a imaginação criadora, indicando uma das raízes da ênfase dada à
tecnociência na atual concepção de educação no Brasil que valoriza a inteligência especulativa e não cuida da educação dos sentimentos e, para completar, ignora o papel do lado prático, do fazer na escola. Tal fato nos auxilia na compreensão de como as criações infantis não são consideradas como forma de conhecimento do mundo, pois, por sua própria natureza, não apresentam o grau de abstração daquelas construções geométricas. Exigem um outro olhar, o de uma formação estética docente que as considere como relevante produção cultural, concedendo assim ao desenho infantil as condições para que não sofra o recuo ou esvanecimento que será tratado a seguir. O esvanecimento do desenho infantil, materiais e controle dos corpos infantis Como é amplamente tratado em Lacerda (2011, p. 56-83), é fato que lidamos nos primeiros anos do Ensino Fundamental - e mesmo já na Educação Infantil - com o esvanecimento do desenho infantil. Constatamos que há um recuo (para Piaget) ou perda de força expressiva dessa produção das crianças que culmina mais tarde no abandono do desenho. Segundo o levantamento de Monteiro (2010, p. 48), o desenho produzido na escola é um tema que tem chamado a “atenção de várias pesquisadoras, tais como Faria, Demartini e Prado (2005), Silva (1998), Gobbi e Leite (1997, 1998, 2001, 2004, 2005, 2007), dentre outras”. No entanto, o seu esvanecimento não tem merecido a atenção das mesmas12, pois geralmente as análises dos desenhos são episódicas, ou seja, tomam-nos num dado momento - o momento presente de sua produção - e não consideram a sua produção ao longo do tempo, notadamente na transição da Educação Infantil para os primeiros anos do Ensino Fundamental. No entanto, devemos reconhecer os avanços que essas pesquisas têm trazido para a ampliação do entendimento do desenho
infantil, deslocando-o do arcabouço teórico fundado nas ideias de Piaget para os da Sociologia da Infância e da Antropologia da Criança. Este deslocamento também implicou em outro – o da abordagem do termo cultura -, o qual será tratado mais tarde, uma vez que a cada abordagem corresponde uma idéia de aprendizagem. Será que por sua formação acadêmica predominantemente em pedagogia, psicologia ou filosofia, os pesquisadores e pesquisadoras do desenho infantil também pararam de desenhar e, por isso, o interesse sobre as condições materiais de produção e o seu esvanecimento não surgiriam de forma evidente em suas falas? Pelo fato de ele não ser tratado explicitamente, há o risco de que esse silêncio a seu respeito faça com que ele se naturalize. Exceções -que confirmam a regra- devem ser feitas para Derdyk (1989) que trata do desenho infantil a partir da vivência de quem sempre desenhou e para a filósofa Márcia Tiburi que, por ser uma desenhante, em livro13 recente pensa também sobre este recuo ou desvanecimento do desenho, em diálogo com o músico e professor de desenho Fernando Chuí. Partimos ainda do pressuposto de que para uma interlocução mais efetiva com a produção gráfica infantil14 é necessário que o professor/pesquisador também realize ele próprio o trajeto pela experiência do desenho, como condição indispensável para aquele que ensina e/ou pesquise, condição apontada também tanto por Derdyk (1989, p.vii - viii) – “não dá para falar de processo e de resultado sem ter passado por ele” - como por Favaretto (2010, p. 234) –“ um requisito indispensável para aquele que ensina é que faça ele próprio o trajeto pela experiência da arte, simultaneamente como praticante, amador ou pensador das artes“. Estes autores deram-nos importantes indicações. Como pesquisador com formação em Artes Visuais e como desenhante (figura 3), pensamos que, por isso, as questões aqui
apresentadas são uma contribuição de nossa pesquisa em andamento em sua fase final. Alguns conhecimentos a respeito do ato de desenhar (como os ligados à sua fisiologia e às disposições corporais) e outros que são frutos dele (como falar a respeito da diferença que há entre desenhar com tijolo de cera e desenhar com pincel chinês macio e nanquim, quanto aos seus efeitos expressivos, se não se experimenta desenhar com estes materiais distintos?), só são possíveis a partir da relação direta entre o desenhante e os instrumentos [ “ferramentas culturais” como nomeados por Wertsch (2005)] ou materiais artísticos (como, por exemplo, carvão, tijolos de cera, pincéis, guache, nanquim etc) e suportes (vidro, parede, piso, madeira, papeis de diferentes gramaturas e diferentes fibras etc). Também podemos pensar na relação que o desenhante estabelece com outros desenhantes (os colegas, a professora, um desenhante convidado da escola, a biografia de um desenhante...) e na relação que o desenhante estabelece com as tradições de desenho (se as conhece, se tem afinidade com alguma delas etc). Podemos assinalar, então, que certos conhecimentos só podem ser construídos a partir do uso que se faz dos materiais e instrumentos mediadores, num relacionamento dialético entre agentes humanos e essas ferramentas culturais em que os mediadores transformam quem os utiliza e vice-versa. Como afirma Wertsch, segundo Freitas (2007), é nesta relação que se pode descrever e interpretar a ação humana. Um conceito central nesta investigação sobre o desenho é o de ação mediada – definida por Wertsch como a tensão irredutível entre agentes ativos e ferramentas culturais, o qual pode ser reforçado ao evocarmos a conhecida percepção (mas esquecida na escola de hoje) de que se aprende com as mãos: desde o filósofo grego Anaxágoras que já afirmava: “por ter mãos, o homem é o mais inteligente dos animais”; passando pela Idade Média :“o conhecimento mora na cabeça, mas entra pelas
mãos” ( para os Compagnons du Devoir – corporação de ofício francesa) e chegando até nós: “ a mão é a janela da mente” (Kant)15. A interpretação do desenho das crianças a partir da experiência de quem desenha, da sua fatura e da sua materialidade e a localização dele como forma de conhecimento do mundo, implicam conexões com conceito de cultura distintas do das análises com base na psicologia, que foram predominantes até recentemente. Dentre as várias formas de abordar o termo cultura, segundo Gomes (2007, p.30 e ss): 1) como conhecimento e formação, 2) como um termo científico (um conceito antropológico), 3) a idéia de cultura como norma, 4) cultura como um sistema simbólico e 5) cultura como habilidade (skill), é esta última abordagem proposta pelo antropólogo Tim Ingold que atende mais aos nossos pressupostos, na medida em que procura compreender os processos de aprendizagem enquanto processos situados que se dão na prática: ”aprender é compreender na prática”, segundo ele. Sendo assim, como a criança ampliaria as suas habilidades para desenhar num ambiente em que os adultos pararam de desenhar e onde o desenho não é valorizado, não havendo, portanto, oportunidades para compreender na prática? Não “seria aberrante que pretendêssemos iniciar nossas crianças na criatividade por meio da arte recorrendo a métodos pedagógicos inspirados pelos frutos ilusórios de nossa própria esterilidade?”, como diz Lévi-Strauss (apud Gomes, 2007, p.33). E esta exigência de mãos adultas mais experientes a guiar redescobertas infantis é assim sugerida por Ingold (idem, p.39): O crescimento do conhecimento prático na vida de uma pessoa é o resultado não da transmissão de informações mas de uma redescoberta guiada. Com isto quero dizer que, a cada geração, os aprendizes aprendem por meio de um estar situado
em determinados contextos nos quais, envolvidos com certas tarefas, é mostrado a eles o que fazer e em que prestar atenção, sob a tutela de mãos mais experientes (...) A contribuição de cada geração para a próxima não se dá através de regras e representações para a produção do comportamento apropriado, mas em lugar disso através da preparação de circunstâncias específicas nas quais os sucessores, crescendo em um mundo social, podem desenvolver as próprias habilidades e disposições incorporadas, e as próprias capacidades de consciência e sensibilidade. Desde o final do século XIX, ao mesmo tempo em que a produção gráfica infantil começava pela primeira vez a chamar sistematicamente a atenção dos pesquisadores ou artistas atentos a ela, acontecia a constatação de que seu poder criador minguava na medida em que a criança crescia e/ou se escolarizava: O homem atual é um ser imperfeitamente desenvolvido, pois a educação e o meio a que é submetido lhe embotam o desenvolvimento espontâneo da visão, dos outros sentidos, da sensibilidade. Por isso já Cizek verificava que à medida que o menino cresce, o seu poder criador míngua. ((PEDROSA,1996, p.68) Esta última constatação é feita também por Piaget (1954) e Strauss (1996) - a partir de análises baseadas na obra de Rudolf Steiner-, quando ambos em suas pesquisas sobre o desenvolvimento cognitivo infantil se debruçaram sobre a produção gráfica das crianças que começam a freqüentar a escola de seu tempo para serem alfabetizadas. Piaget (1954) deixa isto bem claro: Dois fatos paradoxais são capazes de espantar as pessoas habituadas a observar o desenvolvimento das funções mentais e das aptidões na criança. O primeiro dos fatos consiste em que, freqüentemente, a criança pequena16
parece melhor dotada do que a criança de mais idade, nos domínios do desenho, da expressão simbólica (representações plásticas, papéis representados nas cenas coletivas organizados espontaneamente, etc.) e por vezes na música. Quando se estuda as funções intelectuais ou os sentimentos sociais contata-se um progresso mais ou menos continuado, enquanto que no domínio da expressão artística, ao contrário, a impressão freqüente é de um recuo. O segundo fato (e que se reduz em parte ao primeiro) consiste em que é muito mais difícil estabelecer estágios regulares de desenvolvimento no caso das tendências artísticas do que no caso das outras funções mentais. Qualquer [uma] destas observações conduz a uma conclusão evidente: a criança pequena começa espontaneamente a exteriorizar sua personalidade e suas experiências inter-individuais graças aos diferentes meios de expressão que estão a sua disposição: desenho e a modelagem, o simbolismo do jogo, a representação teatral (que procede imperceptivelmente do jogo simbólico coletivo), do canto, etc.; mas que, sem uma educação artística apropriada que consiga cultivar estes meios de expressão e encorajar as primeiras manifestações estéticas, a ação do adulto e os constrangimentos do meio familiar ou escolar tendem em geral a frear ou contrapor-se às tendências artísticas ao invés de enriquecê-las. Por sua vez, Strauss (1996, p. 42) escreve a este respeito: A conseqüência do novo estado de consciência da criança em idade escolar17 : começa a desvanecer o impulso espontâneo criador pictórico. Os que se entusiasmam pelos desenhos infantis, têm a triste experiência de que vai minguando a intensidade da mensagem infantil. Com o passo para o segundo setênio, desvanece a capacidade de reproduzir, sem resistência, os processos vitais. Uma apreciação atenta das produções gráficas da figura 1, indica-nos como a suas qualidades expressivas podem estar conectadas com o processo de escolarização, com os materiais e os suportes
utilizados como mediadores da expressão gráfica infantil (pincéis chatos X lápis de ponta fina, folha sem pauta X folha pautada), ao mesmo tempo em que se pode observar que o modelo hegemônico de escolarização pode trazer formas sutis de controle do espaço da folha e de seu uso como margens vermelhas e linhas azuis, além do esvaziamento das formas pela presença da linha gerada pela ponta fina do instrumento de desenho.
didático, toda vez que define o espaço em que se dá a Educação formal e constitui um referente pragmático que é utilizado como realidade ou como símbolo em diversos aspectos do desenvolvimento curricular. Em algumas metodologias, como a montessoriana, o planejamento do ambiente e do espaço é parte constitutiva e irrenunciável de um novo modo de considerar a criança, de tal maneira que os objetos e o projeto educativo guardam, entre si, uma íntima relação (FRAGO e ECOLANO, 2001, p.47).
Este controle exercido pelo espaço da folha e pelo uso de determinados instrumentos de escrever e de desenhar, pode-nos indicar muito mais: tratase de um controle do corpo da criança, submetido a condições que restringem a expressão de corpo inteiro, exigindo um controle da força nas pontas dos dedos que a criança até os dez anos (veja nota nº. 22) ainda não é capaz de exercer sem um sofrimento raramente percebido ou denunciado nas dinâmicas que envolvem o desenho e o aprendizado da escrita, sob aquelas referidas condições.
Para ilustrar esta interpretação do espaço da folha do caderno como forma de controle do corpo infantil que subtrai da criança oportunidades diárias de aquisição de autonomia para dispor do espaço que se lhe oferece para desenhar ou para escrever, comparemos agora o desenho da figura 1c com o da figura 4. Que tipo de memórias são criadas quando uma criança desenha sentada numa carteira ou numa mesa, tendo à sua frente um espaço equivalente a uma folha A4 e pautada, enquanto outra desenha de corpo inteiro na calçada num espaço sem contornos que permite que ela entre dentro do próprio desenho? O que dizer de suas disposições corporais? E da ambiência para o desenho?
Estes pensamentos derivam dos estudos sobre a dimensão espacial da educação de Frago e Escolano (2001): “qualquer atividade humana precisa de um espaço e de um tempo determinados. Assim acontece com o ensinar e o aprender, com a educação. Resulta disso que a educação possui uma dimensão espacial e que, também, o espaço seja, junto com o tempo, um elemento básico, constitutivo, da atividade educativa”. Os autores espanhóis afirmam que a arquitetura escolar é um programa invisível e silencioso – como a pedagogia visual tratada anteriormente - que cumpre determinadas funções que, podemos concluir, implicam em controle dos corpos das crianças em muitas concepções de educação: A arquitetura escolar, além de ser um programa invisível e silencioso que cumpre determinadas funções culturais e pedagógicas, pode ser instrumentada também no plano
Quando se trata do aprendizado da escrita, as linhas azuis dos cadernos pautados oferecem prontas as referências padronizadas -o tamanho das letras de todas as crianças tem o mesmo limite máximo definido pela produção industrial dos cadernos – para o escrever alinhado do modo ocidental que se orienta temporalmente da esquerda (passado) para a direita (futuro) e de cima para baixo: não se conquista o alinhamento por esforço próprio, ele é dado. Qual desses exercícios carregados de concepções de educação e de infância tão distintas favoreceria mais a permanência do desenho? Um mal estar, o processo criativo das professoras e o esvanecimento do desenho
Você desenha? Por que esta pergunta feita a professoras da Educação Básica durante oficinas de formação em Artes Visuais18 causa tanto mal estar? É provável que o mesmo aconteceria se a pergunta fosse dirigida a adultos de outras profissões que não as ligadas ao campo da arte (como arquitetura, artes gráficas e design, por exemplo), ou seria percebida de outro modo pelos profissionais do desenho técnico. E o que dizer do constrangimento que surge quando propomos a elas que realizem desenhos de observação de um objeto escolhido criteriosamente (Figura 5)? Figura 5 Afinal, não é usual pedirem para as crianças ilustrarem uma história contada ou para fazerem um desenho após uma visita fora do ambiente escolar ou mesmo um ‘desenho livre’? Que concepção de desenho elas trazem em suas memórias do tempo em que eram alunas? Por que pensam que desenhar um objeto, uma paisagem, um animal ou a figura humana significa desenhar como um renascentista ou realizar uma representação mimética do observado? Quando questionamos esta concepção que pode estar associada mais à memória dos conteúdos dos livros didáticos de História com suas ilustrações trazendo obras de Michelangelo, Dürer ou Da Vinci do que aos das poucas aulas de Arte, um alívio pode ser sentido no ar. Atualizar o que seja desenhar é preciso: “(...) o tempo e o espaço são as coordenadas básicas de todos os sistemas de representação. Assim, (...) os sistemas visuais de representação traduzem objetos tridimensionais em duas dimensões. Diferentes épocas culturais têm diferentes formas de combinar essas coordenadas espaço-tempo.” (HALL, 1997, p.74) Associada à resposta negativa das professoras à primeira pergunta (menos que 20% delas afirma continuar desenhando depois de adulta), vem outro incômodo - narrado por algumas delas - de que muitas crianças de quatro a nove anos dizem que não
sabem desenhar. Como isto se constrói na escola, já que as crianças desde que se erguem e se equilibram na posição ereta desenham o tempo todo como uma necessidade quase vital (figura 6), de modo atávico, sem nenhum aprendizado por imitação de um modelo adulto? Afinal, que porcentagem das crianças convivem com adultos desenhantes em casa? Pela observação das crianças em ação, é possível constatar que a habilidade de desenhar nos primeiros anos não é aprendida ao observarem os adultos, uma vez que eles pararam de desenhar. Aprende-se com outras crianças desenhantes e, sobretudo, o ato de desenhar surge do atavismo referido anteriormente desde que a ambiência em que elas se encontram seja propiciadora da produção do desenho: a oferta ou disponibilidade de materiais e suportes mediadores e estímulo afetuoso. As crianças desenham as suas garatujas e os primeiros esquemas inicialmente a partir do atavismo e as formas gráficas surgem como extensão do corpo que dança no espaço; depois, paulatinamente, passam a desenhar de memória “não o que veem, mas o que conhecem” (Vygotsky, 1994, p. 148) Percebemos que esta força do atavismo está mais evidente nos seis primeiros anos da criança, quando ela ainda não foi submetida à escolarização. Quando isso se dá, neste novo espaço de socialização acontece um mistério: este desenhar esmorece, perde a força. Tudo indica que o vínculo afetivo que se estabelece com uma professora que não é modelo a ser imitado como desenhante, passa a carrear os esforços infantis para imitá-la nas iniciativas relacionadas a processos mais ligados ao letramento e ao numeramento e à racionalidade científica. A imaginação criadora é secundarizada, como já foi dito. Além disso, o brincar na Educação Infantil passa a ser cada vez mais dirigido, ‘pedagogizado’, controlador de corpos em espaços cada vez menores ou improvisados com seus móveis e brinquedos de plástico e em cenários que
pouco valoriza a produção infantil. O desenho passa a ocupar determinados tempos bem marcados, a hora do ‘desenho livre’. Isso pode indicar no discurso escolar que se reconhece um momento necessário para afrouxar o controle dos corpos ou oferecer um tempo para a imaginação criadora. No entanto, se a professora não cria a ambiência estimuladora nesta hora, principalmente pelo seu exemplo, o ‘desenho livre’ pode significar uma espécie de tortura para muitas crianças diante da folha em branco, daí a declaração: Eu não sei desenhar! Deste modo, verificamos que há relações desta produção infantil que vai minguando cada vez mais cedo com o processo de escolarização da criança cada vez maior: nas grandes cidades, ela tem cada vez menos tempo e espaço para brincar livremente e para compartilhar com os seus iguais, a seu modo e à margem do mundo dos adultos, os conhecimentos que vai construindo com os cacos que dele recolhe e coleciona, como bem percebeu Walter Benjamin. E mais ainda: a criança não tem geralmente em casa ou na sua professora da Educação infantil um exemplo a ser imitado de fazedora de desenhos, de desenhante, pois sua formação estética não tem dado conta de promover a permanência de seu próprio desenho. Daí também deriva o uso acrítico das listas de materiais artísticos escolares.
Figura 7 – Exemplos de desenhos a carvão de professoras de oficinas do Lecampo e da SMED em 2011, a partir da observação do objeto da Figura 5. Fotografias do autor.
Em se tratando do desenho das professoras, constatamos através daquelas oficinas que elas procuram trocar experiências com outras que fazem um trabalho em arte que julgam relevante, que não são incompetentes, mas que possuem uma formação estética cheia de lacunas em sua trajetória escolar que não valoriza o fazer com as mãos. Criada a ambiência motivadora por nós como mediadores com formação específica e prática docente na Educação Básica, ao longo destes seis anos observamos centenas de
professoras se surpreenderem com sua capacidade para construir as próprias imagens através do desenho (Figura 7). Isto sinaliza que é possível a construção de uma ponte entre a produção delas e as das crianças desde a Educação Infantil. Sem perder de vista a busca por melhores condições materiais de trabalho (reconhecimento, salários dignos, sala-ambiente adequada para a disciplina Arte, carga horária digna na rede curricular etc) e da formação em serviço, precisamos focar, então,nos aspectos trazidos anteriormente para fazer avançar o pensamento sobre este paradoxo: a escolarização favorece o esvanecimento do desenho infantil. Iniciativas dos gestores públicos como a oferta de formação em serviço (veja nota nº 18) sinalizam para a necessidade de se repensarem as práticas e as idéias que fundamentam o modo como o desenho é tratado na Educação Infantil e nos primeiros anos do Ensino Fundamental. Isto é feito à luz das grandes transformações porque passa o ensino de Arte, apesar das fragilidades apontadas por Favaretto (2010), dentro de uma discussão mais ampla que se faz necessária do que seria uma formação estética mais abrangente19 nestes últimos trinta anos, marcadamente após a edição da citada LDBEN/96, considerando que no processo de constituição e organização curricular da Educação Básica, os aspectos estéticos têm, historicamente, recebido o tratamento menos cuidadoso. Na definição das disciplinas, a educação artística tem sido esquecida ou secundarizada em relação às demais. Desde há muito, essa desvalorização é insistentemente denunciada por pesquisadores e docentes da área. (TROJAN, 2004, p. 426)
O lugar do desenho na Educação Básica O fazer tem muito a ensinar à pedagogia. (INGOLD)
Figura 8. Cartões Postais da EBCT. SÉRIE PINTURAS RUPESTRES. 1986. Desenhos de Álvaro Alves Martins:a) Lapa do Caboclo -Januária -MG e b) Grande Abrigo de Santa do Riacho –MG
Nossos ancestrais, os primeiros habitantes que ocuparam a região de Belo Horizonte e o Estado de Minas Gerais nos legaram uma produção de pinturas e grafismos parietais tão rica como as de Altamira e de Lascaux que formaram nosso imaginário a partir dos livros didáticos de História e de Arte. Basta que se pesquise, por exemplo, os registros das cavernas da região de Confins (que não mais existem – foram destruídas para a construção do Aeroporto Internacional), da Lapa do Caboclo -Januária-MG e do Grande Abrigo de Santana do Riacho- MG. Fica claro, então, que temos uma tradição de produção de imagens consistente (Figura 8), cara às pesquisas de artistas, arqueólogos e antropólogos, mas que não tem sido valorizada pela cultura escolar. Esta desvalorização pode estar ligada à ausência da antropologia na formação dos pedagogos: segundo a professora Ana Maria Rabelo Gomes do Programa de Pós-Graduação da FaE-UFMG, a antropologia fazia parte da formação dos pedagogos até 1968, mas com a reforma militar do ensino universitário (Acordos MEC-USAID20) cedeu seu espaço para a psicologia, que trouxe para a pedagogia uma visão mais tecnicista, em sintonia com a ideologia dominante na época. Isto fica evidente no caso das pesquisas sobre o desenho infantil e na prática das professoras da Educação Infantil: predominam análises de cunho psicológico em detrimento do estético ou antropológico. Fato confirmado pelas dúvidas e usos que as pedagogas tendem a fazer do desenho infantil durante aquelas oficinas de formação: o desenho serviria para analisar a capacidade da criança de adequação ao mundo normativo ou de enquadramento em fases de desenvolvimento, tão criticadas pelas pesquisas mais recentes que denunciam a lógica etapista, conseqüência da “forte influência que a teoria de
Piaget sobre o desenvolvimento humano passou a exercer no cotidiano escolar” (MONTEIRO, 2010: 45-46). A ativação dos cunhos antropológico e estético e da imaginação criadora, proposta aqui como mudança de paradigma do lugar do desenho na escola, implica em pensarmos nele como forma de conhecimento do mundo: O desenho, enquanto linguagem, requisita uma postura global. Desenhar não é copiar formas, figuras, não é simplesmente proporção, escala. A visão parcial de um objeto nos revelará um conhecimento parcial desse mesmo objeto. Desenhar objetos, pessoas, situações, animais, emoções, idéias são tentativas de aproximação com o mundo. Desenhar é conhecer, é apropriar-se. (DERDYK, 1989,p.24) (grifos nossos) Qual pode ser o seu lugar nos primeiros anos do Ensino Fundamental, quando se constata aquele esvanecimento e a de que não se sabe desenhar mais por parte de algumas crianças? “O desenho reclama a sua autonomia e sua capacidade de abrangência como um meio de comunicação, expressão e conhecimento”(DERDYK, 1989, p. 29). Esta proposta que reivindica um lugar para o desenho (e para a arte) como forma de conhecimento do mundo pelos seus próprios meios, além de estimular a capacidade de construção e a cognição das crianças e adolescentes, ajudando-os a desenvolver outras áreas de conhecimento, está em sintonia com as idéias de Derdyk e de outras pesquisadoras que desenvolvem estudos que fortalecem a necessidade de dispensar à arte um tratamento sistemático e organizado na escola. (...) Nesse âmbito, atribui-se ao desenho uma dimensão artística, e sua produção se dá na e por meio da linguagem gráfica, que é concebida histórica, social,
cultural e simbolicamente. Para estas autoras, portanto, o desenho é linguagem gráfica que nasce em determinados contextos sociais e passa por um processo sócio-histórico de construção de conhecimento, no qual o aluno, como sujeito, utiliza a sua capacidade de intuir, compreender, relacionar, ordenar, configurar, interagir, e significar (MONTEIRO, 2010, p.47).
a psicologização dos processos artísticos o resolve: através da análise da produção infantil e não da experimentação conjunta. As listas dos materiais escolares e o esvanecimento do desenho infantil
Como conseqüência deste novo lugar, surge o questionamento sobre o fazer da professora, aquele que tem muito a ensinar à pedagogia, segundo Ingold: como dito anteriormente, pressupomos como Favaretto (2010) e Derdyk (1989) que para dar conta da produção imagética infantil e dialogar com ela é condição necessária que a professora (re)ative seu processo criativo, que se coloque inicialmente na condição de investigadora do processo de construção de imagens e retome seu desenho ou qualquer outra forma de construção de imagens, segundo seus próprios interesses e afinidades (monotipia, bordado, colagem, gravura, pintura, fotografia etc). Pesquisar é uma condição da profissão docente como já preconizava Paulo Freire, em sua Pedagogia da autonomia.
Se há pouca experimentação artística na Educação Básica por parte das professoras, as listas de materiais tendem a se naturalizar e a qualidade dos materiais ofertados sofre pouca crítica e a que se ouve relatada pelas professoras parte geralmente das próprias crianças que se utilizam deles e que reclamam da má qualidade do giz de cera (de “cores anêmicas” e quebradiços), dos lápis de cor (idem), do simulacro de tinta guache etc. Como conhecer os efeitos dos diferentes materiais mediadores da produção gráfica infantil sem experimentá-los? Como ativar a produção infantil sem a vivência de se utilizar os mais diversos materiais como mediadores? O que se observa é que os portfolios das crianças apresentam pouca variação da qualidade expressiva do seu desenho e pintura ao longo do ano quando não tendem já a apontar para o tão referido desvanecimento.
Neste quesito, é notório como não se questiona o fato de que na Educação Infantil – onde isto é mais crítico – é raro o exemplo de professora que investiga o seu próprio processo como desenhante (aquela que continua desenhando quando adulta, exemplo de “sobrevivente da alfabetização”).No entanto, é exigência dos PCNs para a formação integral das crianças a ativação de seus potenciais artísticos. Como isso seria possível nestas condições reais da escola atual?
É certo que o advento do lápis de grafite como ferramenta de escrever e os cadernos de folhas pautadas como suportes, como nós os conhecemos hoje, representaram um avanço e uma democratização do acesso aos modos de escrever. Basta citar que em 1853, na cidade de São Paulo, o número de alunos nas classes de escrita era limitado pelo número de lousas individuais e canetas de latão para os lápis de pedra:
Estamos diante de outro paradoxo: pensa-se ser possível ativar os processos criativos ou as habilidades das crianças educandas, notadamente do seu desenho, quando a professora tem o seu processo estagnado no tempo como fazedora. Podemos compreender como
A presença de apenas um areieiro e um tinteiro reduzia ainda mais o número de alunos para as classes iniciais e finais de escrita. É preciso lembrar que a escrita se fazia inicialmente nas caixas de areia, utilizando o aluno do dedo como instrumento. Depois passava-se à lousa, escrevendo-se com lápis de pedra. E por fim aprendia-se
a usar a pena, a tinta e o papel.(VIDAL, 2009,p.35). Esse fato, no entanto, não deveria nos impedir de questionar: seriam as ferramentas de escrever e desenhar com pontas as mais adequadas para o manuseio das crianças menores de dez anos21, uma vez que exigem delas um controle motor fino que ainda está em desenvolvimento? Se duvidarmos disso, basta uma acurada observação do esforço exigido pelo manuseio dos lápis de ponta fina que requer força muscular concentrada no ato de pegar, força esta que irradia pelos feixes de nervos das mãos até o cérebro, retesando-os. Este é um indício que merece uma investigação mais aprofundada com base na neurofisiologia22: Charles Bell fala da ‘mão inteligente’. De fato, descobriuse que a mão se comunica com o cérebro por múltiplos circuitos neuronais, enleando-se promiscuamente com os da inteligência. Ou seja, foi mapeado um acesso privilegiado da mão ao pensamento. Alguns pesquisadores afirmam que, dispondo de um instrumento tão sofisticado e sensível, a mão do homem fez o cérebro evoluir. Quem não se lembra de já ter observado crianças pequenas mordendo a língua nas ocasiões em que se põem a desenhar ou a escrever, sinal do esforço motor exigido pela ação? Este esforço que contrai os nervos do caminho das mãos ao cérebro não tem merecido a devida consideração nas pesquisas sobre o desenho infantil. Se esta ação gera um sofrimento sutil, quase invisível, parar de desenhar não seria uma reação do corpo infantil para mitigá-lo, já que parar de escrever não é possível? Vidal (2009, p. 31) ainda faz uma análise dessa materialidade da escrita em que fica evidente a presença dos materiais de escrita com ponta: Tomados em sua materialidade, os objetos da escrita
permitem não apenas a percepção dos conteúdos ensinados, mas o entendimento do conjunto de fazeres ativados no interior da escola. Para além dos enunciados, registrados em cadernos, planos de aula, exercícios e anotações administrativas, assume destaque, a maneira como o espaço gráfico da folha de papel é organizado, determinando usos (folha impressa, papel pautado, caderno, folha lisa), utilizando-se de fórmulas indicativas de início ou encerramento de atividades, definindo uma classificação e uma hierarquia de saberes e sujeitos, solicitando informações que visam à identificação (como data, nome, local), apartando o espaço de escrita do aluno, do professor e do administrador pelo recurso a margens e campos específicos, remetendo a diferentes habilidades, usos e posições de poder. Despontam como importante as dimensões físicas dos vários suportes da escrita escolar, como número de páginas e formato de quadros-negros, ardósias ou lousas individuais, cadernos, trabalhos escolares, cartazes, faixas, barras, quadros, processos administrativos, fichas de aluno, prontuários de professores; bem como a associação do papel a outros materiais. Emerge como relevante a referência aos vários objetos de escrita como giz, lápis, caneta, giz de cera, lápis de cor, canetas coloridas, bem como os códigos constituídos para seu uso, como, por exemplo, a cor vermelha utilizada para a correção, enquanto a azul serve à realização do exercício. E continua a autora: “se a escola se produziu (e se produz) como correlato da disseminação da cultura escrita, as relações pedagógicas se efetivam pelo recurso à oralidade. É por meio dela que professoras e alunos tramam seu cotidiano”. E no caso do desenho na escola, é significativo que predomine este recurso, sendo raros os exemplos em que as crianças podem assistir cotidianamente à uma professora desenhando num quadro-negro também cada vez mais raro e, mais raro ainda, usando gizes de cores vivas e de qualidade. A imitação que desempenha papel reconhecidamente importante na relação de ensinoaprendizagem entre o adulto e a criança pequena não está presente no que se refere ao desenho.
Como interferir no processo de seleção e compra dos materiais artísticos escolares, uma vez que o critério adotado pelos gestores tem sido o econômico (compra-se através de uma lista de licitação e a escolha é do fornecedor que oferece o menor preço, quando a qualidade do material não é considerada). Quando se pesquisa a produção gráfica infantil, o que os filósofos, sociólogos, biólogos, antropólogos, psicólogos, pedagogos e gestores têm a nos dizer sobre a mediação exercida pela materialidade23 nesta produção cultural das crianças e sobre a qualidade dos materiais? Uma questão que logo se coloca é: em que medida uma atuação docente sensível, criadora e compreensiva do desenho como forma de conhecimento articulada com uma discussão a respeito da lista de materiais artísticos utilizada pode favorecer a sua permanência e transformação? As listas de materiais artísticos estão diretamente ligadas à concepção de desenho e à concepção de ensino de desenho que fundamentam o pensamento pedagógico. Ainda segundo Derdyk (1989, p. 35), havia uma potente matriz barroca disseminada através de práticas mestiças, populares, quando a matriz neoclássica de origem francesa foi implantada através da criação da ENBA, no primeiro quartel do século XIX. Com seu viés elitista, o ensino a partir daí ignorou toda esta tradição barroca. Em certa medida, isto determinou a valorização da linha em contraponto às outras formas de desenhar, com as respectivas reverberações na educação do olhar e na escolha dos materiais: lápis de grafite, lápis de cor, canetas hidrocor e giz de cera que favorecem com suas pontas o precoce aparecimento das linhas. Materiais de formas variadas como cacos de tijolo, pedaços de carvão, tijolos de cera, giz em forma de bastões etc mediam outras formas de desenhar que
se filiam mais ao desenho de superfície e da mancha, realizado pelo encontro de áreas plenas de cor, sem o contorno feito de linhas (que leva à realização de desenhos ocos, vazios de cor), além de exigirem menos força nas pontas dos dedos e menor controle motor fino em sua manipulação, evitando aquele retesamento dos feixes nervosos. A partir desta constatação, propomos uma nova categoria para análise das listas: a de material artístico escolar de largo alcance24 que pode ser assim definido: é todo instrumento de mediação pouco especializado (especializados aqui seriam os lápis de cor e de grafite Nº2 de pontas finas, canetas hidrográficas etc) que se torna mais adequado por respeitar a capacidade motora e expressiva das crianças a partir de um ano e meio em seu manuseio e que segue a gênese histórica dos materiais e de seus usos e que proporciona resultados gráficos mais expressivos (verificáveis empiricamente) do que os materiais com ponta tradicionalmente oferecidos a elas. Imagino que o entendimento desta distinção entre os materiais de ponta fina e os de largo alcance, pode estar diretamente relacionada com a distinção feita por Heinrich Wölfflin entre a representação linear e a pictórica que refletem visões fundamentalmente diferentes: segundo ele, “são duas visões de mundo orientadas de forma diversa quanto ao gosto e interesse pelo mundo”(WÖLFFLIN, 2000, p. 25). Esse autor associa a representação linear - do contorno, da linha e do limite das formas – a um estilo tátil; e a representação pictórica – da massa, da mancha e do volume das formas – a um estilo visual. No entanto, não podemos deixar de nos referir à grande influência que a cultura de massa exerceu ao longo do século XX sobre as crianças que continuam a desenhar, através dos desenhos animados e das revistas em quadrinhos em que o desenho de linha é a regra. Seria exagero afirmar que estes
produtos culturais resultam também da valorização neoclássica da linha? Notamos que muitas crianças tentam emular desenhos animados e de revistas em quadrinhos, propondo a si mesmas este exercício para apropriação da forma ou do contorno, já que o contato com outros modos de desenhar não acontece, com raras exceções como é o caso das escolas Waldorf. Entre aquelas crianças, há então as que reclamam de ‘instrumentos grosseiros’ que as professoras insistem em dar na Educação Infantil. Querem materiais de controle mais fino. Os gizões de cera se tornam um pesadelo! Algumas hipóteses: 1ª) são exceção, já que desde muito cedo desenhavam com pontas e tinham controle do desenho a ponto de poder copiar desenhos de revistas. 2ª) como consequência da primeira, poderiam já estar vinculadas a uma vertente “linha” do desenho, e assim se frustram quando tentam fazer linhas com materiais mais massivos. Esta constatação, conduz-nos a um esclarecimento necessário: não se trata de propor a generalização do uso do materiais que levam ao desenho de áreas de cor em detrimento do desenho de linha com a substituição dos materiais de ponta fina pelos de largo alcance, contrapondo-os, mas se trata mais de propor uma plurarização a ampliação da oferta de materiais que possam oferecer uma experimentação mais rica e atender às demandas distintas das crianças que desenham, mesclando-os, para que estejam disponíveis conforme a exigência expressiva das crianças. Ao considerar aquele retesamento dos nervos que conectam as mãos ao cérebro, ele seria desse modo mitigado pelo uso dos mais variados instrumentos de desenhar e de escrever. Formação estética e atuação docente e considerações finais25 Finalmente, a partir do que já foi exposto, podemos pensar que para que este novo lugar do desenho na
Educação Básica se efetive e favoreça a permanência do desenho, implica pensarmos também na atuação e formação estética docente vinculada com o exercício de sua autonomia que não pode ser analisada de uma perspectiva individualista ou psicologicista, como se fosse uma capacidade que os indivíduos possuem. (...) Não é uma capacidade individual, não é um estado ou atributo das pessoas, mas um exercício, uma qualidade da vida que vivem. Teremos de falar, portanto, de processos e situações sociais nas quais as pessoas se conduzem autonomamente e, nesses processos, constroem sua identidade ética. (CONTRERAS, 2002, p. 197) É a partir desta posição ciosa que podemos estabelecer um vínculo entre escolhas de materiais escolares, confecção de listas e de seu uso em sala e a atuação docente, considerando que uma formação mais abrangente que inclua a dimensão estética e criadora que orienta estes processos é uma decorrência da construção social desta autonomia que a reivindicaria como uma demanda ética por parte dos docentes. A ampliação do conhecimento a respeito dos materiais, seus usos e efeitos na produção gráfica infantil por parte das professoras e das famílias26, quando constituir uma massa crítica e efetiva o suficiente para mobilizar a indústria que os produz e também os gestores, poderá ter como efeito no futuro o deslocamento do aspecto econômico predominante na escolha dos referidos materiais para outros como o expressivo e a qualidade. Poderá resultar daí uma ampliação da autonomia social, por sua atuação conjunta. A formação estética mais abrangente que pode decorrer do exercício desta autonomia docente, poderá levar a uma escolha e oferta mais ampla de materiais adequados nas escolas e sua pluralização, a partir da introdução da categoria material artístico escolar de largo alcance.
Uma formação estética apropriada reivindicada pelo exercício da autonomia docente conseguiria enriquecer e cultivar os meios de expressão e encorajar as primeiras manifestações estéticas das crianças, como parte de suas vidas e não vinculado a um ensino disciplinar, evitando que a ação do adulto e os constrangimentos do meio familiar e/ou escolar freiem ou se contraponham às suas tendências artísticas no que se refere ao desenho. Ao mesmo tempo em que fazemos todo esse movimento para relacionar o desenho e a escrita com os efeitos da ação mediada de diferentes ferramentas culturais como os lápis de ponta e os materiais de largo alcance e com o controle dos corpos infantis, chega-nos a notícia em julho de 2011 de que a Coreia do Sul substituirá de modo gradativo até 201527 nas escolas do país todo material impresso (livros didáticos, cadernos etc) por tablets. Em setembro daquele ano, seguindo nessa mesma direção, o MEC (Ministério da Educação) já anunciava que distribuirá tablets para as escolas públicas a partir de 201228. Pensar nos efeitos dessa nova mediação, além da evidente e propalada economia de papel, extrapola nossos objetivos aqui, posto que projetos de uso massivo dos tablets estão apenas se iniciando e seus efeitos só se farão notar a médio prazo, mas o fato nos instiga desde já a passar a considerá-lo como uma nova tendência da tecnociência refletindo na educação, que certamente mobilizará cada vez mais governos e gestores adeptos pelo mundo a fora. Passar a escrever e a desenhar numa superfície de tablet (de formato A4 ou menor) sem ter vivenciado intensamente estas ações de corpo inteiro usando materiais que exigem variadas habilidades manuais em suportes ou superfícies mais amplos como paredes e pisos, poderá vir a reforçar ou renovar aquele controle dos corpos infantis referido anteriormente. E exigirá por partes dos pesquisadores a preparação de arcabouços teóricos adequados para interpretar seus efeitos.
Figura 9 – Crianças coreanas usando tablet. Fonte da imagem: The Chosun Ilbo
Precisamos considerar ainda o que as novas tecnologias presentes em instrumentos/ferramentas culturais como os tablets têm a nos trazer a respeito do futuro da tecnologia da escrita e do desenho infantil feito com os dedos diretamente na tela. De que modo os tablets usados como extensões das pontas dos dedos afetarão os feixes neuronais que conectam as mãos ao cérebro e as habilidades para a escrita e para o desenho?
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Notas 1 Mestrando em Educação do Programa de PósGraduação da Faculdade de Educação da UFMG, professor de Arte na Educação Básica com graduação em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da UFMG. Trabalha com formação de professores em Arte. Membro dos grupos de pesquisa LINHAEBA -UFMG e Labepeh -FaE UFMG. Bolsista da FAPEMIG. E-mail: varaldecores@yahoo.com.br 2 “Nenhum foguete enviado à Lua poderia ter sido inventado, e muito menos ter sido construído, sem a humilde herança da perspectiva linear do Renascimento” (EDGERTON, 2006,p. 157) 3 “Na história da tecnologia em todo o mundo, incluindo a do Ocidente, antes do século XV, aparelhos mecânicos de qualquer tipo nunca foram construídos a partir de planos de escala. Às vezes imagens foram utilizadas (...), mas apenas para sugerirem o objetivo geral da máquina (...) de modo que um artesão habilidoso, que já sabia como construir tais dispositivos, poderia simplesmente ser lembrado de como que ele iria construir, com pouco mais do que um olhar para a imagem” (EDGERTON,2006,p. 152) 4 Levantamento feito pelo autor ao longo dos anos de atuação como professor de Arte. 5 Lei 9394 de 20 de dezembro de 1996 que estabeleceu as diretrizes e bases da educação nacional. 6 Parâmetros Curriculares Nacionais. Ensino Médio. Linguagens, Códigos e suasTecnologias. Brasília: Ministério da Educação/Secretaria de Educação Média e Tecnológica,1999, p. 90. 7 Frase de Amilcar. In: NAVES, Rodrigo. Amilcar
de Castro. Belo Horizonte: Editora AD2, 2010, p. 211 8 ANDRADE, Mário de. Aspectos das artes plásticas no Brasil. São Paulo:Martins; Brasília: INL, 1975, p. 75-76 9 Esse discurso é recorrente em muitos documentos produzido pelos gestores da Educação, como, por exemplo, no Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (BRASIL, 1998, vol.2, p.13 e ss.) 10 Pesquisa sob a orientação da Profª. Dra. Júnia Sales Pereira da FaE UFMG intitulada provisoriamente: O desenho infantil nos primeiros anos do Ensino Fundamental frente à atuação docente. 11 “As pinturas em perspectiva, assim como quaisquer outras, têm de ser lidas; e a habilidade de leitura deve ser adquirida” [GOODMAN, Nelson. Languages of art, p. 14] 12 No levantamento feito pelo autor para sua pesquisa de Mestrado junto aos bancos de dados -Artigos, Dissertações e Teses - das principais universidades brasileiras (USP, Unicamp, UFMG, UERJ,UFRJ, PUC-Rio,PUC-SP, UFRGS), cujos programas de Pós-Graduação em Educação são referência, ao usar as palavras-chave ‘recuo’ -conforme Piaget- e ‘esvanecimento’ ou a expressõeschave ‘recuo do desenho infantil’ e ‘esvanecimento do desenho infantil’ ou seus sinônimos não foram encontradas pesquisas que tratem do tema ou de correlatos. 13 TIBURI, Marcia. Diálogo/Desenho/ Marcia Tiburi, Fernando Chuí. São Paulo:Ed. Senac S P, 2010.
14 Num sentido mais amplo, seria a produção que inclui desde as primeiras garatujas da criança -verdadeiros exercícios motores- até os desenhos propriamente ditos realizados nos mais variados suportes (parede, chão, papel etc) e materiais (carvão, giz, pincéis, lápis, tinta etc) que já indicariam aquilo que a criança já conhece do mundo. 15 Citado do artigo de Cláudio de Moura Castro intitulado A mão inteligente, publicado em 14 de dezembro de 2011 no jornal O Estado de São Paulo.Disponível em: http://www.estadao.com. br/noticias/impresso,a-mao--inteligente-,810784,0. htm 16 Criança pequena no contexto da década de 1950 na Europa e da fala de Piaget deve ser compreendida aqui como a que tem menos de sete anos e que ainda não se escolarizou. Na década de 1920, em contexto semelhante (Suíça, Alemanha) Steiner também não estimulava a freqüência das crianças pequenas aos Kindergarden se as mães pudessem cuidar delas em casa até os sete anos (marcados pela preparação da segunda dentição). Geralmente os Jardins de infância eram para os filhos das mães operárias que não podiam se dar a este luxo. Nesta década de 2010, por outro lado, pais e mães no Brasil têm de se esforçar, sem muito êxito, para não começarem a escolarização de seus filhos logo aos dois anos de idade, sinal dos tempos que correm. Que conseqüências tal escolarização trará em suas produções gráficas? Esta é uma idéia para uma pesquisa sincrônica, acompanhando um grupo de crianças dos dois aos doze anos de idade. 17 Criança em idade escolar no contexto em que o livro foi produzido se refere à criança a partir dos sete anos: a autora se baseia em material coletado por seu pai Hanns Strauss (1883 – 1946) em mais de quarenta anos na Europa (Alemanha) e que ele começou a sistematizar no final dos anos 1920. Importavam-lhe
eram as expressões gráficas espontâneas das crianças, não influenciadas pelos adultos ou professores. 18 2007 – Oficinas teórico-práticas ocorridas no Centro Cultural UFMG para as professoras (pois as mulheres são a maioria) do Ensino Fundamental que visitavam as exposições que lá ocorriam em que se discutiam sua importância formativa e modos de incrementar o desenho em sala de aula; 2007 - cursos de extensão com o mesmo foco ocorridos no teatro Universitário da UFMG; 2008 – 2009 – recebendo turmas e professores nas exposições ocorridas na Casa Fiat de Cultura como mediador de Visitas Orientadas; 2010 – oficinas de formação no LASEB –FaE UFMG; 2011 – curso de Cerâmica no LeCampo –FaE UFMG; oficinas de formação de Arte (com o foco no desenho) para professoras da Educação Infantil e Ensino Fundamental para a SMED - Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte, via GERED – Nordeste e Norte. 2010 e 2012 – A relação Família-Escola-Comunidade e a Educação Infantil para professoras do curso de PósGraduação Latu Sensu (Infância, Cultura e Práticas Formativas) da FUMEC. 19 Formação sensível que não se restringiria somente à arte e a questão de seu ensino na escola, que deixaria de lado toda e qualquer idéia de modelo estético pré-estabelecido, mas atentaria para a educação da sensibilidade do sujeito que apreende o mundo. Uma formação estética que não poderia “dissociar-se da educação ética e da educação heurística, muito menos poderia ser pensada fora de condições culturais específicas e históricas. (...) Portanto, a estética na formação docente que vise ultrapassar o horizonte pedagógico instituído e regular deveria atender ao primado da diferença ontológica como seu horizonte compreensivo e fundante.” (GALEFFI, 2003) 20
Série de acordos produzidos, nos anos
1960, entre o Ministério da Educação brasileiro (MEC) e a United States Agency for International Development (USAID). Os MEC-USAID inseriamse num contexto histórico fortemente marcado pelo tecnicismo educacional da teoria do capital humano, isto é, pela concepção de educação como pressuposto do desenvolvimento econômico. Fonte: http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/ glossario/verb_c_mec-usaid%20.htm
24 Sua fundamentação a partir de indicações de Leontiev , Water Benjamin e James Wertsch foge aos limites deste artigo, mas consta da referida dissertação em processo.
21 Referência tirada da pedagogia Waldorf: numa escola que se orienta pelas idéias de Rudolf Steiner -que propõe um currículo baseado na antropologia e que acompanha o desenvolvimento dos âmbitos físico, anímico e espiritual da criança - esta só passa a escrever com o lápis grafite Nº.2 no primeiro semestre do quarto ano, após passar três anos desenhando letras e palavras com tijolo de cera, bastão de cera, passando depois para o lápis-jumbo de cor, pela pena de escrever e caneta tinteiro para somente aí experimentar o lápis de ponta fina de grafite. Tratase de acompanhar e respeitar o amadurecimento das funções motoras das crianças.
26 A ampliação do conhecimento das famílias a este respeito é importante na medida em que é no contexto doméstico que os primeiros desenhos infantis acontecem, realizados nas superfícies de paredes, mesas, portas etc com marcadores que em casa se encontram (lápis, canetas, batom, giz de cera, carvão etc), quando não são desestimulados já na sua gênese por serem considerados como sujeira, ou chamados pejorativamente de ‘rabiscos’ que incomodam os adultos, avós, pais e mães. A importância de se oferecerem materiais e espaços adequados - e com limites - para o desenho das crianças se faz notar tão logo elas se erguem e se mantenham de pé, geralmente por volta de um ano e meio de idade. Uma postura mais atenta, menos controladora e mais libertária por parte dos adultos traz grandes efeitos positivos na produção gráfica infantil, gerando memórias que depois repercutirão na atuação de futuros pais e mães e professoras. Das sondagens biográficas que realizamos em oficinas de formação é notório o fato recorrente de que professoras, mães e pais que hoje reprimem os desenhos parietais de alunos e filhos na escola e em casa se lembram de que também não puderam desenhar nas paredes etc , tendendo a reproduzir um esquema de obliteração do desenho que se naturaliza de geração para geração e do qual não tinham consciência. A rememoração crítica que propomos põe em cheque este círculo vicioso.
22 Citado do artigo de Cláudio de Moura Castro (veja nota rodapé nº. 16). 23 No ocidente, um dos importantes representantes dos estudos socioculturais é o professor da Washington University (St. Louis, USA) James V. Wertsch, um dos teóricos mais expressivos da psicologia sociocultural. “Ele defende que a chave para a conduta proveitosa da ciência humana é o foco no relacionamento dialético entre agentes humanos e ferramentas culturais. É nesta relação que se pode descrever e interpretar a ação humana. Segundo ele, os instrumentos de mediação e os indivíduos estão inerentemente implicados de tal maneira que o agir é definido como indivíduos –operado-comindtrumentos-de-mediação.” (FREITAS, 2007)
25 Agradeço a Elias Mol - desenhante desde criança – e a minha orientadora Profª Júnia Sales Pereira pelas leituras críticas deste artigo e por suas preciosas contribuições.
27
A matéria Até 2015, Coréia do Sul deve
substituir cadernos por tablets está disponível em: http://www.tecmundo.com.br/tablet/11232-ate2015-coreia-do-sul-deve-substituir-cadernos-portablets.htm 28 Matéria disponível em : http://info.abril.com. br/noticias/tecnologia-pessoal/mec-distribuiratablets-para-escolas-em-2012-01092011-41.shl
Admirar Imagens
Raquel Souza Borges
Mas a pintura, para mim, gira em torno de uma figura onipresente: a figura humana. A figura humana enquanto ponteiro, apontando alguma direção ou simplesmente anunciando sua própria presença. Meu artigo percorrerá então os caminhos de imagens povoadas, procurando identificar a maneira pela qual se comunicam, como narram ou como interferem na narrativa do que tem a nos dizer. Meu primeiro artista é Goya. O diálogo que proponho se dará principalmente entre ele e o artista belga Michaël Borremans, artista contemporâneo cujas belíssimas pinturas e desenhos se tornaram um valioso exemplo para meu próprio trabalho. A imagem de Goya que inicia o diálogo é ‘El sueno de la razon produce monstruos’. Uma das gravuras da série Los Caprichos, mostra uma figura citada como a figura de um artista ou como a figura do próprio Goya, deitada de bruços sobre uma superfície e cercada de criaturas. Pela inscrição na imagem, entendo que estas criaturas são o fruto da imaginação da figura adormecida que, justamente por se encontrar desacordada, liberta da razão a imaginação. Tendo colocado a imagem de Goya, colocarei agora uma de Borremans. ‘The Pupils’, três personagens de jaleco, em um ambiente não identificável, que parecem examinar ou transferir alguma coisa de seus olhos para os olhos de outras três personagens que estão aparentemente deitadas.
Meu objetivo para este artigo é propor um diálogo entre imagens de artistas cujos trabalhos são referências para o meu próprio e, através disto, refletir sobre questões relacionadas à prática da pintura que dizem respeito também ao meu processo criativo. Embora sem adornos, este objetivo é importante porque minha pesquisa nasce da minha prática. É assim, portanto, que alcançarei pensar e falar sobre a pintura, meu maior estímulo.
As imagens de Borremans, para mim, demonstram tanta liberdade de imaginação quanto as imagens dos Caprichos de Goya e carregam também uma mesma qualidade de um comentário sombrio. Em seu livro, Sarah Symmons (1998, p. 164) descreve a Espanha que aparece nos Caprichos como um lugar “repleto de males de todos os tipos: hipocrisia, mentiras, crueldade e corrupção moral” (tradução minha)i. i [...] rife with evils of all kinds: hypocrisy, mendacity, cruelty and moral corruption.
Ao publicar a série, de acordo com Symmnons (1998, p. 180), Goya esclarece que suas imagens não eram caricaturas de pessoas específicas ou uma censura explícita à acontecimentos da época mas sim que constituíam parte de uma ‘linguagem visual experimental.’ Goya anunciou a série no Diario de Madrid em 6 de Fevereiro de 1799 e escreveu que, de toda estupidez e erros presentes na sociedade, ele havia selecionado aquilo que parecia mais apto a lhe proporcionar material para o ridículo e a fantasia. Observo também nas imagens de Borremans o ridículo e a fantasia. Com facilidade a palavra ‘absurdo’ aparece para descrevê-las. São imagens absurdas de pessoas, ações e acontecimentos improváveis os quais, em alguns casos sugerem a violência; são mesmo imagens que se tornam reais na imaginação. [...] estamos acostumados a que as imagens nos deem uma ilustração, nos deem um significado, que tornem as coisas claras. E o que eu tento fazer é inventar imagens que não podem ser definidas, que são independentes em um contexto artístico e você não pode preenchê-la. Ela permanece aberta, é como uma ferida. Mas no momento em que você define uma imagem ela está morta. Então eu acho que a pintura deveria ser, ou uma imagem deve ser uma coisa viva. Não é apenas algo representado ou algo assim, não é apenas uma imagem. (Borremans em conversa com Mario Rossi, 2010, transcrição e tradução minhas).i
i [...]we are used to it that the image gives us an illustration of something, gives us a meaning, makes things clear. And what I try to do is invent images that cannot be defined, that stand on their own in an artistic context and you cannot fill it in. It leaves open, it’s like a wound. But the moment you can define an image, it’s dead. So I think painting should be, or an image should be a living thing. It’s not just something that is depicted or something, it’s not just an image.
Nas pinturas de Borremans, o que é visível pode ser identificado em uma primeira instância: figuras exercendo algum tipo de atividade. Mas o que significam estas ações? A imagem move o observador a questionar-se sobre o que se passa na cena, sobre sua composição, sobre as possibilidades sugeridas pela imagem. Assim, a imagem não permite um olhar vazio por parte do observador. Pelo contrário, há um incentivo para que esta falta de coesão narrativa seja questionada. Há uma tensão intencional provocada sobre a narrativa, na maneira como a figura humana, por costume e tradição tornada figurante tão conhecida na pintura, nos atrai para revelar uma mensagem que não podemos definir com segurança, abrindo assim, a possibilidade de interpretações inesperadas. Nesta tarefa, então, as figuras humanas cumprem com grave responsabilidade uma função simbólica. E enquanto figuras simbólicas, para mim, dialogam com uma forma específica: a figura alegórica. A alegoria existe também dentro da literatura e tem uma longa história que eu ainda não conheço com toda confiança. Mas para as artes visuais, uma das obras mais influentes para o estudo da alegoria, pela relevância que esta obra teve até o século XVIII, é a Iconologia, de 1593, de Césare Ripa. Ripa descreve a necessidade de buscar na sabedoria de fontes históricas antigas e medievais a base para suas alegorias. Elas aparecem em Iconologia em ordem alfabética e se compõem de descrições de figuras humanas que personificam conceitos abstratos. São acompanhadas por atributos simbólicos que se referem às qualidades essenciais dos conceitos em questão. O texto introdutório da edição inglesa de Iconologia de 1709 expõe a relevância de se ter conhecimento destas imagens uma vez que serviam para instruir a mente, inspirar o amor pela virtude e o ódio pelo
vício e, portanto, esta seria uma obra tanto para os amantes da arte quanto para todos os homens. Separo aqui a alegoria da Razão, desta mesma edição inglesa, para exemplificar o trabalho de Ripa. Ela é descrita da seguinte forma: Ela está armada como Pallas; sobre seu Capacete está uma Coroa de Ouro; uma Espada desembainhada na sua Mão direita; um Leão com rédeas na sua esquerda; ante seu Estômago uma Couraça com as Cifras numéricas. A Coroa ensina que a Razão sozinha pode trazer Homens valentes para o Palco e dar-lhes Crédito. A Espada confidencia o Vício extirpador que guerreia contra a Alma. A Rédea, o Comando sobre as Paixões selvagens. As Cifras, que por elas, Coisas reais são provadas, então pela Razão, nós adquirimos aquelas relacionadas ao Bem Estar Comum. (tradução minha). i Olhando para a figura adormecida de Goya, posso dizer que sem a consciência, sem a razão com suas rédeas, as paixões selvagens aparecem livres e sem comando. Este exercício de ver uma imagem através de outra não é em essência um procedimento inusitado. Borremans acredita, por exemplo, que não é possível que uma pintura feita hoje não tenha um componente romântico pois a imagem pintada carrega consigo todo o peso da história da tradição da pintura. Mas o que este exercício mostra é como as imagens de Ripa i She is arm’d like Pallas; upon her Helmet is a Crown of gold; a drawn Sword in her right Hand; a Lion bridled in her left; before her Stomach a Breast-plate, with the numeral Cyphers. The Crown teaches that Reason alone can bring valiant Men upon the Stage, and into Credit. The Sword intimates the extirpating Vice, that wars against the Soul. The Bridle, the Command over wild Passions. The Cyphers, that as by them real Things are prov’d, so by Reason, we acquire those that relate to the Common Welfare.
e de Goya se oferecem vivas ao olhar ainda hoje, como podem se ligar à pintura contemporânea, às imagens de um artista como Borremans, e continuam a ampliar suas redes de significação. E me parece que a imagem simbólica não pode ser guiada pela rigidez. Engana-se quem imagina que Ripa objetivava reproduzir um código ditatorial para o reconhecimento de imagens alegóricas. O historiador Gombrich, no livro Symbolic Images. Studies in the art of the renaissance, contextualiza a obra de Ripa chamando a atenção para a ênfase do próprio autor no fato de suas personificações serem “metáforas ilustradas.” Símbolos, coloca Gombrich (1972, p. 12), não podem ser tomados como uma espécie de código com uma relação exclusiva entre signo e significado. Isto quer dizer que, seguindo o próprio exemplo de Gombrich (1972, p.13), embora Ripa tenha incluído uma lebre e um pardal como atributos da personificação da Solidão, isto não significa que uma lebre ou um pardal serão sempre símbolos de solidão em toda e qualquer imagem da Renascençai. A lebre e o pardal poderiam aparecer em outros contextos associadas a valores ou características diferentes. Nasce desta liberdade de se aproximar da concepção de uma figura alegórica sua união com um nome. O nome ou título das personificações era essencial para Ripa: A meu ver, a inscrição dos nomes sobe as imagens deve ser i Para Ripa, uma imagem alegórica poderia ser concebida de acordo com qualquer uma dos quarto tipos de causas de Aristóteles: a causa material, eficiente, formal e final. Por isto, um mesmo conceito aparecia caracterizado de maneiras diferentes nas fontes históricas consultadas por Ripa. Para elaborar as suas representações, como aponta Gombrich (1972), Ripa se baseia na teoria da ‘metáfora da proporção’, também de Aristóteles, para descrever a semelhança ideal a ser buscada entre as coisas materiais e os atributos a serem representados acompanhando as figuras humanas.
observada, exceto quando cumpre que elas se mantenham na forma de enigmas, porque sem o conhecimento do nome não é possível chegar ao conhecimento da coisa significada, a menos que se trate de imagens triviais, que pelo hábito qualquer um reconheça à primeira vista. (RIPA, 1593 apud LICHTENSTEIN, 2005, p. 33) Inclusive Gombrich (1972, p. 135) deixa claro as origens verbais das imagens de personificações herdadas pela Renascença: “Antes do séc. XIV, de fato, a predominância da palavra na alegoria medieval não é contestada. Diagramas inscritos e figuras legendadas eram considerados mais eficientes do que uma ideia encarnada de forma puramente visual.” (tradução minha)i Foram as figuras de Iconologia, acompanhadas de seus nomes, atuando como guias para a memória que deseja visualizar o que a figura e seus gestos e seu universo podem significar, que despertaram minha atenção para a importância da relação palavraimagem. Ora, a palavra, geradora de imagens mentais e a imagem gráfica constituem a essência da receita de Goya para Los Caprichos. Nem mais nem menos; ao que a imagem revela, a palavra complementa e ao que a palavra revela, a imagem complementa. Mas me preocupa o que fazer a partir da consciência desta relação descrita muitas vezes como fraternal, entre às artes irmãs. Michaël Borremans frequentemente utiliza texto nos seus desenhos. Mas até agora, em todas as fontes que pude acessar, não vi nenhuma pintura de Borremans que literalmente tivesse algum texto ou palavra escrita na tela. O que isto me diz sobre a percepção de Borremans a respeito da natureza de sua pintura e i Before the fourteenth century, in fact, the predominance of the word in medieval allegory is unchallenged. The inscribed diagram and the labelled figure were considered more effective than the purely visual embodiment of an idea.
do seu desenho? Em entrevista à Art in America, Borremans explica a diferente função que desenho e pintura executam para ele. Enquanto o desenho serve para formular várias ideias e não tem o mesmo peso da pintura, nesta última, há uma afirmaçãoi e a técnica é percebida com mais seriedade. A pintura, diz Borremans, é um palco. É assim que ele quer usar a pintura, como Manet, um palco. O teatro é antes de mais nada, o espaço da visibilidade da fala, o espaço de traduções problemáticas entre o que é dito no que é visto. De maneira concordante, é bem verdade, é o local da expressão da impureza da arte, o ‘meio’ que claramente mostra que não há uma peculiaridade da arte ou de qualquer arte, que as formas não procedem sem as palavras que as instalam em visibilidade. (RANCIÈRE, 2007, p. 88, tradução minha)ii Por coincidência ou não, o filósofo francês Jacques Rancière fala do teatro, do que ocorre em um palco, para falar sobre a relação palavra-imagem. Seu texto Paitning in the Text me permite pensar na natureza da pintura no sentido de que propõe a convivência da palavra e da imagem existindo inevitavelmente na superfície da pintura. Para se ver a arte, diz Rancière, é necessário que ela seja mostrada como arte. E tem, então, grande importância para seu argumento a definição do que é um ‘medium’, o que é um ‘meio’. É uma ‘superfície de conversão’, coloca Rancière, um espaço onde são articuladas diferentes maneiras de fazer e formas de ver, de entender, o que implicará também a forma como a arte é concebida. Desde o séc. XIX a maneira de ver a arte, a pintura, esteve i Grifo meu. ii Theatre is first and foremost the space of visibility of speech, the space of problematic translations of what is said into what is seen. Accordingly, it is quite true, it is the site of expression of the impurity of art, the ‘medium’ which clearly shows that there is no peculiarity of art or of any art; that forms do not proceed without the words that install them in visibility.
condicionada à maneira como o texto crítico, a palavra interpretativa, revela algo mais na superfície da pintura; revela o que está expresso pelas formas e temas representativos. O verdadeiro ‘meio’ da pintura, para Rancière, é uma superfície na qual cabe à palavra interpretar as formas representativas: através de uma leitura figurativa, de uma linguagem metafórica que altera o status dos elementos pictóricos, ou revelando uma ideia, sendo então as formas representativas os sinais através dos quais ela pode ser expressa. O que ocorre no ‘meio’ da pintura, segundo Rancirère, é o resultado da ação das palavras que tornam as formas figurativas visíveis de uma nova maneira, em um novo espaço. Este ‘meio’, para Ranciére, será sempre um teatro de ‘defiguração’ no qual as formas figurativas são retiradas do espaço da representação, justamente pelas palavras, que alteram o que é visível e, desta forma, reconfiguram as formas representativas e mudam a maneira como são compreendidas e maneira como são vistas como arte. (RANCIÈRE, 2007) Bem, a impureza da arte, a não especificidade da pintura enquanto um ‘meio’ que vive através da sua irmã poesia. Se as pinturas de Borremans não carregam texto literalmente em sua superfície, isto não quer dizer que a palavra esteja ausente daquela imagem. Esta relação entre a palavra e a imagem, colocada como uma ‘superfície de conversão’ por Rancière, esclarece para mim a importante função expressiva que a figura humana pode ocupar no palco da pintura, exatamente como eu sempre me interessei por ela. Symmons (1998, p.285) comenta sobre a importância de cadernos de rascunho e anotações dentro da obra de Goya como um todo: “A figura encapuzada, mulheres jovens e velhas, a bruxa, o monstro devorador, a multidão grotesca que pinoteia assombraram sua
imaginação até o fim da sua vida.” (tradução minha).i Para mim, isto demonstra o comprometimento de Goya com uma experimentação, com a renovação de suas imagens. Um trabalho constante, recriando e adaptando suas figuras. Assim, elas aparecem uma e outra vez e se tornam verdadeiros elementos expressivos dentro do conjunto da obra do pintor. As personagens dos Caprichos são personagens corruptas, imorais e decadentes. Pensando nas imagens de Borremans então, na insistência de uma não definição da narrativa para que as imagens possam permanecer abertas, como em uma ferida; as suas figuras, que compõem a sua linguagem artística, são o que? São, sem dúvida, simbólicas. Volto ao fato de a pintura conter uma afirmação. Dada a renúncia de Borremans em especificar através da narrativa, através das suas figuras, que afirmação é esta, ela se torna, para mim, principalmente uma afirmação do gesto de pintar. E, em consequência, uma afirmação de que este gesto não é mudo. Ele carrega comentários sobre o ato de pintar, sobre a presença da figura humana em representações pictóricas e ele carrega todo um vocabulário que é inerente à pintura. O que fiz até agora foi identificar modos de fazer, modos de expressão e definir a importância deste modo para mim, para minha prática artística. Interessa-me a visão de Borremans de que para sobreviver uma imagem não pode ser definida. A imagem vive nas suas várias possibilidades de interpretação. É semelhante ao que diz também Rancière, ao propor o plano ideal da pintura como um palco de ‘de-figuração’: a expressividade da imagem não se restringe ao que aparece literalmente representado na tela mas se desdobra e se expande para fora e além daquela representação. Minha prática só agora está aprendendo com alguma fluência a i The hooded figure, young and old women, the witch, the devouring monster, the grotesque cavorting crowd, haunted his imagination to the end of his life.
linguagem própria da sua técnica. É somente com o tempo, com exercício, que poderei observar como as minhas imagens passarão a fazer parte de diálogos como o que propus neste artigo.
Referências COGGINS, D. Interview: Michael Borremans. Art in America. 3 jan. 2009. Disponível em: <http:// www.artinamericamagazine.com/features/michaelborremans > Acesso em: 9 mai. 2012 GOMBRICH, E.H. Symbolic Images. Studies in the art of the Renaissance. London: Phaidon, 1972. GOYA, F. Los Caprichos. New York: Dover Publications, 1969 LICHTENSTEIN, J. A pintura – Vol.8: Descrição e interpretação / organização de Jacqueline Lichtenstein; apresentação de Jean-François Groulier; coordenação da tradução de Magnólia Costa. – São Paulo:Ed. 34, 2005. Michaël Borremans in conversation with Mario Rossi, 27 de Maio, 2010, Art Workers Guild, Univerisity of the arts London & Paint Club. Disponível em: <http://www.youtube.com/ watch?v=sO1HXwKtO3g> Acesso em: 12 set. 2010. RANCIÈRE, J. Painting in the text. In: ___. The Future of the image. London: Verso, 2007, p.69-89 RIPA, C. Iconologia or Moral Emblems. London: Benj. Motte., 1709. Disponível em: <http://emblem. libraries.psu.edu/Ripa/Images/ripa0ii.htm.> Acesso em: 12 set. 2010 SYMMONS, S. Goya. London: Phaidon, 1998
Anselm Kiefer: uma geografia para o infinito Tai Nunes
Este artigo pretende identificar a relação entre os diferentes espaços que circundam e fundam a obra do artista Anselm Kiefer, desde a influência da geografia alemã perpassando também os espaços de seu atelier em Barjac, no sul da França, bem como a ideia de uma geografia cosmológica na obra do alquimista inglês Robert Fludd. Palavras-chave: Kiefer.
geografia,
paisagem,
alquimia,
Introdução No sul da França, na cidade de Barjac, onde uma antiga fábrica e criadouro do bicho-da-seda funcionavam , uma estranha disposição de edifícios, ruínas, cavernas, túneis e torres compõem um projeto estético que ascende do subterrâneo à superfície como um território a ser explorado. No ano de 1992 o artista alemão Anselm Kiefer deu início a este projeto a partir de uma intensa coleção de materiais que se amontoavam como se esperassem para viver a utopia de seu mundo imaginal: palhas, chumbo, ferro, terra, entre outros, dialogavam com a natureza nativa presente no local, incluindo um imenso campo de girassóis. Kiefer denomina seu atelier em Barjac de A Ribalta e, numa entrevista ao jornalista Duplat, da revista Lelibre, assume que anda em seu atelier, cercado por todos os seus trabalhos, sejam eles antigos e novos, assim como anda dentro de seu cérebro.1 Na relação que os habitantes deste lugar estabelecem com seu entorno, especificamente sua família, equipe de trabalho e visitantes, estão presentes extensas caminhadas que, vez ou outra, são substituídas pelo uso de bicicletas. No percurso, as obras do artista se apresentam como estranhas vozes do silêncio, uma arquitetura do impossível que, se por um lado grita em sua imponência tendo o céu como luz , por outro faz emanar uma proliferação claustrofóbica de cheiros, sensações e percepções em meio às galerias escuras que avançam como labirintos para dentro da terra nas quais repousam suas obras. Há uma evidente ordenação espacial , assim definida por Kiefer: “Expor minha obra em uma galeria ou museu me parece
algo que não é natural. A condição que eu sugiro, cada vez mais, é que as pinturas se vendam juntas ou como parte de um pavilhão inteiro. Minhas obras são muito frágeis, não só no sentido literal. Se forem colocadas juntas, em circunstâncias equivocadas, podem perder completamente seu poder. Por isso que lhes dou em Barjac, um espaço próprio, quero dar um espaço à pintura. Primeiro a pintura e em seguida o espaço.”2 Penso que simbolicamente, para Kiefer, habitar não é apenas ocupar espaços, mas reconhecê-los e transferir a estes espaços uma intimidade encerrada nas experiências, nos pensamentos, nos sonhos e na memória. A Ribalta de Kiefer, seu mágico palco de luz, apresenta-se, portanto, como um convite. Esta pesquisa revela apenas uma das camadas entre as muitas sobreposições possíveis, é uma impressão sensível de significados que emanam de conceitos, formas e influências circundantes e fundadoras de sua obra, entre elas, os cenários da geografia alemã e a geografia cosmológica do alquimista inglês Robert Fludd. A geografia alemã, seus mitos e a obra de Kiefer Na série Occupations, usando pinturas e fotografias, Kiefer insere sua própria imagem em diferentes paisagens da Alemanha. Seu corpo aparece dentro destes lugares repetindo o mesmo movimento de saudação imortalizado pelo Nazismo. Eu sou um fascista? ele se pergunta. E continua: Eu sou um dos açougueiros, mesmo que num nível teórico, porque eu nunca poderei saber hoje o que eu teria feito naquele tempo. A humanidade é capaz de tudo. Isto explica a minha aflição. 3
Ao usar como instrumento a arte e seu próprio corpo inserido nesta série, Kiefer constrói uma crítica do Nazismo enquanto ocupação, violência, contaminação ou doença cultural e dentro dela uma crítica de si mesmo enquanto artista inserido no contexto de sua obra: ditador ou demiurgo? Esta apropriação de lugares denota a preocupação de Kiefer em relação à sua própria identidade como se perguntasse a si mesmo: - Qual é o lugar que me cabe? A busca por este pertencimento talvez denote o contexto de toda uma existência, no entanto, é possível, ao percorrer os espaços pulsantes de Kiefer, compreender a proximidade e a coerência destas questões manifestas no conjunto de sua obra. Após a guerra, Kiefer faz parte de uma geração de artistas que intenciona olhar atentamente para os mitos alemães de origem e tentar colocar cada coisa em seu lugar, resgatando o que de bom e justo eles continham, de modo a regenerar também a dignidade perdida. Por outro lado, era necessário enterrar de vez as lacunas originadas nestes mesmos mitos cuja origem mais remota de que se tem notícia está registrada nas histórias contidas em Germânia, documento que foi escrito pelo historiador romano Cornélio Tácito por volta do ano 98 d.C. Em sua obra, Tácito reconhece o quanto era difícil para os romanos vencer as batalhas contra o germanos - raça de guerreiros extremamente fortes que não apreciava repouso, habitante dos pântanos e florestas.4
Figura 1 - Fotografia da série Occupations - Anselm Kiefer. Fonte: LAUTERWEIN, Andrea. Anselm Kiefer/Paul Celan: Myth, mourning and memory. New York: Thames and Hudson, 2005. p 35.
Esta descrição era o avesso de tudo o que representava os romanos em sua luxúria, dissimulação, posses, sensualidade, escravidão. Além disto, os germanos viviam de forma livre nas florestas e ainda assim mantinham hábitos nobres para um romano, tais como a fidelidade matrimonial e a amamentação natural de seus filhos. Eram rotulados pelos antigos latinos de incivilizados porque mantinham um respeito sagrado pelo seu habitat natural enquanto os romanos pensavam ser essencial intervir de forma organizada na estrutura da paisagem original de modo a torná-la habitável. A descrição de Tácito sobre a Alemanha causava sentimentos ambíguos de admiração e repulsa: “As criaturas, quando não estavam guerreando, dedicavam seu tempo à caça, porém ainda mais ao ócio (...) a dormir e a comer. (...) Sequer aprenderam a empregar ladrilhos ou telhas, a madeira que usam para todos os fins é informe e desprovida de qualquer ornamento ou atrativo. Suas moradas são distantes uma das outras e esparças, revelando a predileção de cada homem por uma fonte, um prado ou um arvoredo. (...) Todos tem um espaço ao redor da casa.” 5 A floresta era sem dúvida a grande fundadora da identidade nórdica. Tácito acreditava que a raça germana havia surgido como uma planta brotando do húmus escuro e esponjoso e a memória de suas origens renovava-se em rituais que perpetuavam sua gênese selvagem
Figura 2 - Ice and Blood - Anselm Kiefer. Fonte: LAUTERWEIN, Andrea. Anselm Kiefer/Paul Celan: Myth, mourning and memory. New York: Thames and Hudson, 2005. p 135.
Um dos rituais expunha corpos humanos sacrificados ao Deus Wotan /Odin6 presos em troncos de árvores a fim de restaurar algum aspecto da vida tribal conforme o mesmo Deus Wotan havia feito. Outro ritual está representado pelo costume de amarrar pés e mãos do visitante antes que ele entrasse na floresta.
Se, por acaso, acontecesse um tropeço, ele deveria se contorcer pelo chão sob as árvores como um verme mortal. Os rituais de morte também estão vinculados às árvores. Eram sepultados na maior simplicidade num monte de terra e os nobres eram queimados com determinado tipo de lenha reafirmando até a morte seu elo com a floresta.7 As guerras entre os romanos e germanos foram muitas. A batalha de Varo representou uma derrota humilhante para as tropas romanas, resultando em todo tipo de crueldades praticadas pelos alemães tais como cabeças penduradas em árvores ou corpos de centuriões imolados em altares. Este cenário foi relatado 15 anos mais tarde quando os romanos enfim conseguiram sua vingança na batalha conhecida por Teutoburg, liderada pelo general romano Germânico, sobrinho do imperador Tibério. Ao penetrarem na floresta, testemunharam ultrajados os restos de seus compatriotas apodrecendo nas árvores germanas. Nota-se que até então todo discurso sobre a identidade alemã fora construído externamente, a partir de uma visão romana dos costumes e atitudes de seus inimigos. Quando acontece a vitória romana sobre os germanos em Teutoburg, a superioridade de uma civilização organizada sobre um povo bárbaro vê-se renovada no imaginário coletivo das duas nações e as ideias discriminatórias com que Tácito havia descrito a Alemanha estão acesas novamente. Tais descrições confirmam-se também, cada vez mais, no que diz respeito ao desprezo recebido pelos chamados bárbaros pela Igreja Romana - contrários
em tudo aos cristãos civilizados. Não foram poucos os poetas, escritores e artistas alemães a tentar romper com tais preconceitos e reestruturar dentro da própria Alemanha a autoestima do povo antes que estas ideias chegassem a configurar as bases do nazismo numa espécie de contraprova a Tácito. Um deles foi o escritor Conrad Celtis. Afirmava ter nascido bárbaro e bêbado mas incitava seus compatriotas a constituir sua própria consciência a respeito de seus vínculos com a natureza e a herança que tal vínculo representara na antiguidade. Seus seguidores, como por exemplo Ultrich von Hutten, chamava a a atenção para o fato de que a nação alemã havia sucumbido aos modelos romanos e vinha irresponsavelmente destruindo suas florestas em nome do desenvolvimento urbano. No século XVI, o renascimento da história alemã vem seguido de perto de uma nova visão quanto à sua geografia - um novo mapeamento da pátria deveria ser feito a partir da ideia de não domesticação de suas florestas. O homem rude das florestas passa a dar lugar a uma certa idealização romântica do alemão. A sua bestialidade estereotipada era agora representada nas obras de Albrecht Altdorf como modelo de vida virtuosa e natural ocupada entre cuidados com os rebanhos e o cultivo dos campos. Apesar de todos estes esforços a ideia de uma nova Germânia não se concretizou.A Guerra dos Trinta Anos que chega ao fim no ano de 1648 deixa seu território devastado com suas florestas incendiadas povoadas de pobres e saqueadores. As poucas árvores que restaram serviam a interesses vinculados ao lucro
da construção de navios. Então uma nova onda de mitos emerge na tentativa de resgatar a origem do povo alemão. Um deles diz respeito à árvore murcha que segundo a profecia recuperava o verdor quando o imperador medieval Frederico Barbarruiva retornasse de seu sono secular nas cavernas de Kyffhauser. Nesse grande dia, ele desenrolaria sua grande barba que dava três voltas sobre a mesa de pedra existente na montanha e ressurgido como Cristo e Wotan penduraria seu escudo nos ramos de carvalho, verde com o vigor da nova vida alemã.8 Outra referência literária importante neste contexto é a dos Irmãos Grimm com suas florestas místicas, cheias de carvalhos habitados por seres ancestrais como druidas e gnomos, cuja vivacidade se estende às próprias árvores, na maioria de seus contos, seres animados que possuem vida própria. No século XX, fim da Primeira Guerra Mundial, questões políticas que envolvem os acordos firmados entre as nações vitoriosas - França, Inglaterra e EUA - impõem sanções severas à Alemanha, que perde recursos bélicos e colônias mas que, em contrapartida, tem exacerbado seu nacionalismo enquanto uma nação independente do poder monárquico e confiante na sua força militar.
Figura 3 - What Odin Said to the Dead Balder Anselm Kiefer. Fonte: LAUTERWEIN, Andrea. Anselm Kiefer/Paul Celan: Myth, mourning and memory. New York: Thames and Hudson, 2005. p 215.
Então, na II Guerra Mundial, novamente a história, ironicamente, contribui para que os mitos alemães se manifestem. A expressão Sangue e Solo (Blut und Boden) foi um tema nazista de autoria de Walter Darré que lutou para que uma das filosofias do governo fosse a de proteção à natureza. Seu conceito estende-se também ao mito da raça pura como eram vistos os alemães - pois originalmente sendo habitantes da floresta estariam isolados, impossibilitados de cruzamentos interraciais.
Figura 4 - Kyffhauser- Anselm Kiefer. Fonte: CELANT, Massimo Cacciari Germano. Anselm Kiefer. Catalogo della mostra Venezia,: Museo Correr, 1997. Milano: Charta, 1997. 425p. p.260.
Figura 5 - The secret life of the plants - Anselm Kiefer. Fonte: http://artsearch.nga.gov.au/Detail. cfm?IRN=127617. Visitado em 01/06/2012
Kiefer, exímio conhecedor destes mitos, busca manifestá-los ao mesmo tempo como essência e catarse. Age na contramão da vanguarda artística disseminada pelas tropas aliadas em seu país logo após o fim da II Guerra e mergulha suas obras nas raízes do expressionismo alemão: materialidade, agressividade, poesia, intensidade, profundidade. Abandona o discurso imperativo da arte pela arte, contra a representação, e busca sua essência criativa. Cria grandes espaços com acontecimentos que tendem ao infinito, perpassa mitos cristãos e, sobretudo, os mitos da Alemanha. Expurga fantasmas enquanto elege para eles um Panteão. Escolhe dar visibilidade a uma concepção cruel das paisagens alemãs contaminadas de sangue pelos vestígios das guerras. Não é de se estranhar, então, o fato de que ele desagrade. Afinal não é de bom grado ver-nos a nós mesmos representados em todos os recortes mais purulentos e podres. A paisagem nas pinturas de Kiefer está longe de ser uma representação inocente. Imaginar-se in loco é uma das primeiras formas de abstração que definem o homem enquanto potência criativa e formadora, daí que representar o espaço é, de certa forma, ver-se inserido nele. Kiefer como pintor é um escultor que cava, corta, esculpe, convida o espectador a caminhar dentro da obra, a constituir em si uma paisagem psicológica, a responder ao convite de uma imersão.
Figura 6 - Os três céus e as pirâmides interpenetrantes da matéria – Robert Fludd. Fonte: HUFFMAN,William. Robert Fludd, 1574-1637. Tradução Saulo Alencastre. São Paulo: Madras, 2007. p.93
Deste modo, sinto que a interpretação de suas paisagens não estão restritas a suas próprias narrativas, suscitam ruídos coletivos de interpretação, inauguram uma interpretação subjetiva na qual percorrer a imagem faz disparar elementos que constituem uma imagem interna, por isto, intensa.
Robert Fludd e Anselm Kiefer No dia 26 de abril de 2008, o The Guardian publicou uma entrevista que Anselm Kiefer concedeu ao jornalista americano Sean O’Hagan enquanto acontecia a exposição “Blood On Paper: The art of the book” no Museu Victoria & Albert em Nova York. Fizeram parte desta exposição, grandes artistas do século XX e XXI que produziram livros ou realizaram trabalhos sobre os livros, entre eles Matisse, Miró, Picasso, Damien Hirst and Anish Kapoor, mas Kiefer foi convidado a produzir uma obra especialmente para a ocasião. Pesando trezentos quilos e contendo doze páginas de chumbo, um dos livros gigantes de Kiefer medindo dois metros de altura estava postado de pé, no hall de entrada do museu. Nele Kiefer gravou os contornos das constelações, com os números correspondentes ao sistema numérico aplicado pela Nasa para identificar as estrelas. Assim escreve Sean O’Hagan: Este livro, a última das muitas criações desse tipo, é chamado de “A Vida Secreta das Plantas”, mas, tanto quanto eu sei, não tem conexão com o álbum de Stevie Wonder com o mesmo nome. Em vez disso, ela é inspirada por um dos heróis de Kiefer, Robert Fludd, um obscuro e excêntrico pensador do século XVII que acreditava que toda a planta na terra, e na verdade todo ser humano, tinha uma estrela correspondente nos céus. “Sua escrita é simplesmente extraordinário”, entusiasma-se Kiefer. “Ele combina o macrocosmo e o microcosmo. É o que Einstein queria fazer de uma forma: combinar as leis do cosmos universal com as menores coisas da vida: um broto, uma folha, uma folha de grama.”9 É na década de 90 que Kiefer inicia uma série de obras nas quais faz referência a Robert Fludd, o alquimista
inglês que em 1592, inscreveu-se na Universidade de Oxford a fim de graduar-se pela Faculdade de Artes. Mais tarde, ele concluiria também o curso de Medicina com grau de Doutor em ambos. No ano de 1617, Fludd publica o primeiro volume do mais importante livro escrito por ele, intitulado Utriusque Cosmi: História Técnica, Física e Metafísica do Macrocosmos e do Microcosmos, onde tece curiosos argumentos sobre as relações estabelecidas no encontro entre forças criadoras do universo com a Matéria Primordial, aquela cuja essência é formadora de todas as coisas. Para Fludd, Os dois princípios polares fundamentais do universo são forma como princípio de luz, vindo de cima, e matéria como princípio de trevas, habitando a terra.Todos os seres, de anjos a minerais, diferenciam-se somente de acordo com seu conteúdo de mais ou menos luz. Um constante embate se passa entre esses opostos polares: de baixo, a pirâmide material cresce para cima a partir da terra como uma árvore, a matéria tornando-se mais fina em direção ao topo; ao mesmo tempo, a pirâmide formal cresce para baixo com seu ápice na terra espelhando exatamente a pirâmide material.10 Do mais alto ao mais baixo nível, a designação de escalas diferenciadas de ascensão da matéria, entremeados que estão pela terra, é antes um movimento do que uma classificação de juízo ou valor pois, para os alquimistas tudo no universo está a serviço de uma ascensão espiritual e o mundo é a mesma substância única por toda a parte - não há poder nem é possível fazer menção a qualquer tipo de disputa pautada em interesses de qualquer espécie. Nesta cosmogonia, o que existe é uma integração absoluta entre o homem e o mundo através de
uma transmutação material formadora de todas as coisas, sendo assim, a mente humana, seu intelecto, é retirado do próprio Deus e o próprio mundo é uma extensão desta fusão - microcosmo (homem) e macrocosmo (Deus/universo) numa só forma e essência. Fludd expressa sua concepção do microcosmos, a mente humana, num sistema visual elaborado por ele inserido no Utriusque Cosmi: História Técnica, Física e Metafísica do Macrocosmos e do Microcosmos, assim descrito: À esquerda, , flutua o diagrama circular do universo tal como é perceptível pelos sentidos. Está subdividido em cinco círculos elementares relacionados com os cinco sentidos do homem, em que a terra corresponde ao tato, a água ao paladar, o ar ao olfato, o éter ao ouvido, e o fogo à vista. Este mundo sensitivo é imaginado na primeira cavidade cerebral, pelo poder transmutador da alma, num duplo sombrio, e em seguida transcendido, na cavidade seguinte, a da capacidade de juízo ou de conhecimento: graças à sutileza do espírito, a alma penetra o mundo divino do intelecto. A última cavidade é o centro da memória e do movimento. 11 Uma obra de Kiefer, datada de 1992 e intitulada Robert Fludd parece ser a imagem fundadora de tudo o que Kiefer viria a produzir depois. Nela, o artista parece fazer uma estreita referência ao desenho A Correspondência microcosmos-macrocosmos relacionada aos três céus de Robert Fludd na qual o alquimista inglês realiza uma fusão do seu esquema visual Os três céus e as pirâmides interpenetrantes da matéria com o homem. Macro e microcosmos constituem uma correspondência equivalente e Kiefer manifesta esta relação numa transposição simbólica particular na qual aproxima o homem e o girassol.
Figura 7 - Utriusque Cosmi – Robert Fludd. Fonte: ROOB, Alexander. Alquimia e Misticismo. TASCHEN, 2006.p 437.
Figura 8 - Utriusque cosmi – Robert Fludd – Oppenheim – 1619. Fonte: ROOB, Alexander. Alquimia e Misticismo. TASCHEN, 2006. p. 459.
Figura 9 - Robert Fludd - Anselm Kiefer, 1992. Fonte: http://www.artvalue.com/auctionresult--kieferanselm-1945-germany-robert-fludd-2132234.htm. Visitado em 29/04/2012.
Für Robert Fludd é o título de outra obra dedicada a Fludd elaborada por Kiefer ano de 1996, um livro com 16 páginas medindo 103,5 x 81,5 x 11 cm. O livro, hoje no Museu Guggenheim de Bilbao, contém uma série de fotografias que ilustram o processo de crescimento em um campo de girassol. Segundo a descrição da obra elaborada pelo museu Guggenheim, para Kiefer, os girassóis oferecem uma analogia ideal para o pensamento Fludd sobre a relação entre o microcosmo e o macrocosmo. A capa do livro é composta por uma fotografia em preto-e-branco de um girassol. No interior, fotografias apresentam girassóis crescendo, amadurecimento, e perdendo as suas sementes representados com sementes de girassol reais coladas nas páginas. Os girassóis em última análise, murcham e desaparecem até que restem apenas as sementes mas não é o fim, em seguida, na folha posterior, as mesmas dispersas sementes compõem agora a imagem de um céu estrelado. Outros espaços: Enquanto Fludd constrói seus tratados alquímicos, no mesmo período, Johannes Kepler12 desenvolve a teoria da imagem retininiana na obra Ad Vitellionem paralipomena, quibus astronomiae pars optica traditur onde discute as relações possíveis entre a ótica, através da câmera escura, e a formação da imagem no olho humano . Os termos da imagem, definidos por Kepler, imago rerum (enquanto imagem exterior) e pictura (quando interior, projetada na tela retiniana) resultam na idéia de que ver é pintar, ut pictura, ita visio - a vista é como uma pintura.13
Estes estudos sugerem a existência de um movimento sincrônico entre o objeto visto e o olho que observa – uma vez que olhar um objeto é capturá-lo para dentro através dos olhos, também é possível neste exercício transportarmo-nos ao objeto e tornarmonos um com ele através da imagem. As teorias de Kepler são observadas como uma influência nas pinturas de paisagem da Holanda no século XVII seguidas de perto pela cartografia - a arte de desenhar mapas. Tais concepções são indissociáveis e apresentam-se como possibilidade já nos escritos do matemático egípcio Ptolomeu: A geografia está preocupada com a representação de toda a cabeça, a corografia com os aspectos individuais de um olho ou uma orelha.(...) o treinamento e as habilidades do matemático estão associados à geografia e as do artista à corografia. 14 A única palavra grega de que Ptolomeu dispunha para se referir a um criador pictórico era graphikos, diversamente do latim pictor. O que tal sufixo sugere ou evoca é o sentido da escrita, do desenho, do registro - grapho - em oposição ao conceito retórico de narrativa, o que leva inevitavelmente a palavra pintura a ser substituída pelo termo descrição. O uso gráfico do termo descriptio é apropriado não apenas para mapas - que de fato inscrevem o mundo sobre uma superfície - mas também para as pinturas setentrionais que compartilham esse interesse. Com a ajuda das palavras que se aplicavam aos mapas, podemos sugerir que as pinturas do Norte estavam relacionadas mais com a descrição gráfica do que com a persuasão retórica, o que sucedia com as pinturas na Itália.15 Pensar a paisagem enquanto descrição seria uma
forma de ter acesso irrestrito ao conhecimento, à história e à memória, os lugares, e não as ações ou os acontecimentos, é que são a sua base, e o espaço, e não o tempo, é que deve ser transposto. 16 A paisagem assume, desta forma, o sentido ambíguo de distanciamento e imersão ao mesmo tempo. O artista, enquanto pintor de paisagem, retém a imagem de uma vista geral da superfície da terra num plano bidimensional, mas, enquanto observador, não está limitado a uma determinada localização. Não registra uma realidade individual, ao contrário, amplia e convida à expansão, à coletividade. Sabe e reconhece que mesmo sendo apenas um microcosmos constitui-se em essência de tudo o que compõe o macrocosmos. Em torno do ano de 1619, o mesmo Kepler desenvolvia pesquisas e cálculos matemáticos que resultariam em seu Harmonices mundi no qual expunha também suas ideias sobre o universo. Foi neste período que Kepler teve acesso a uma cópia do Utriusque Cosmi de Fludd e acrescentou um apêndice criticando o fato de que o mesmo argumentava de forma mística sobre assuntos que deveriam ser comprovados qualitativamente, ao que, assim Fludd respondeu: “O que ele (Kepler) expressou em muitas palavras e em uma longa discussão, eu comprimi em umas poucas palavras e expliquei por meio de figuras hieroglíficas e excessivamente significativas, não para deixar claro, pela razão de que me delicio com figuras (como ele diz em outras partes), mas porque eu decidi juntar muito em pouco e, à moda dos alquimistas, coletar a essência extraída, rejeitar a substância sedimentária e derramar o que é bom em seu vaso adequado; de modo que o mistério da ciência tendo sido revelado, aquilo que está escondido possa tornar-se manifesto; e que a natureza interior da coisa, após as vestimentas externas terem sido arrancadas, possa ser encerrada, como uma gema preciosa colocada em um anel de ouro, em uma forma mais
Figuras 11 e 12 - Für Robert Fludd - Anselm Kiefer, 1995/1996. Fonte:http://www.guggenheimbilbao. es/secciones/la_coleccion/nombre_obra_version_ imprimible.php?idioma=en&id_obra=44. Visitado em 29/04/2012.
adequada à sua natureza - uma figura, isto é, na qual sua essência possa ser contemplada pelo olho e pela mente como em um espelho e sem uma circunlocução de muitas palavras.”17 Esta citação parece conter a essência da relação entre Kiefer e Fludd, não enquanto discurso, mas enquanto obra. É sempre na obra que mais uma vez o espaço é transposto a fim de que um encontro entre eles fosse possível. Durante todo o ano de 2010 centenas de caminhões transportaram o atelier de Kiefer em Barjac para a região de Croissy-Beaubourg, a leste de Paris, onde um novo atelier foi elaborado em função de facilitar os estudos de seus filhos numa região próxima a um antigo aeroporto. Os últimos dias do artista em A Ribalta estão no documentário “Over your cities grass will grow” realizado por Sophie Fiennes e apresentado em Cannes no ano de 2010. Atualmente uma grande negociação envolve a cessão de uma extensa área na região perto da Comporta, no conselho de Alcácer do Sal, em Portugal, onde uma Floresta Cultural, contendo toda a obra de Kiefer, vai ser criada. Tudo apenas está; e o silêncio evidencia o repouso do qual podem eclodir acontecimentos a qualquer momento, de forma espontânea e natural, obedecendo ao princípio formador que os mantém tal como o florescer de um projeto estético no qual uma infinidade de pontos estão entrelaçados num universo do qual já me sinto parte.
Referências Bibliográficas DUPLAT, Guy. L’atelier XXL d’Anselm Kiefer. In: http://www.lalibre.be/culture/arts-visuels/ article/612256/l-atelier-xxl-d-anselm-kiefer.html. Visitado em 31/03/2012. GUGENHEIM. Bilbao. In.: http:// www.guggenheim-bilbao.es/secciones/ la_coleccion/nombre_obra_ficha_tecnica. php?idioma=en&id_obra=44&anterior=buscar_ obra&busquedaPorArtista=104 HUFFMAN, William. Robert Fludd, 1574-1637. Tradução Saulo Alencastre. São Paulo: Madras, 2007. LAUTERWEIN, Andrea. Anselm Kiefer/Paul Celan: Myth, mourning and memory. New York: Thames and Hudson, 2005. NUNES, Tai. Kiefer e eu. Dissertação de mestrado concluído no ano de 2009 na Escola de Belas Artes da UFMG. O`HAGAN, Sean. ‘When I was four I wanted to be Jesus. It was only a short step to becoming an artist’. The Guardian. In http://www.guardian.co.uk/ artanddesign/2008/apr/27/art. Visitado em 29/04/2012. ROOB, Alexander. TASCHEN, 2006.
Alquimia
e
Misticismo.
SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. TOSSATO, Claudemir Roque. Os Fundamentos da óptica geométrica de Johannes Kepler. In. http://www.
scientiaestudia.org.br/revista/PDF/05_04_03.pdf. Visitado em 10/10/2008. YATES, Frances A. A arte da Memória. trad. de Flávia Bancher. Campinas: Editora Unicamp, 2007. Notas: 1 DUPLAT, Guy. L’atelier XXL d’Anselm Kiefer. In:http://www.lalibre.be/culture/arts-visuels/ article/612256/l-atelier-xxl-d-anselm-kiefer.html. Visitado em 31/03/2012. 2
ibid
3 “I am one of the butchers, at least on a theoretical level, because I cannot know today what I would have done at time. Mankind is capable of anything. That is the explanation of my affliction.” In. LAUTERWEIN, Andrea. Anselm Kiefer/Paul Celan: Myth, mourning and memory. New York: Thames and Hudson, 2005. p 37. 4 SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 86. 5
Ibid. p. 93.
6 Odin (Wotan) é o Deus da Guerra e da morte na tradição nórdica, mas também o Deus da sabedoria e da poesia. Em uma destas histórias, Odin feriu a si mesmo com sua lança e ficou pendurado por nove dias e nove noites na Árvore do Mundo sob a agitação do vento. Isto propiciou a ele conhecer as runas e as nove canções que governam o mundo. O filho de Odin, Balder, é o Deus da luz e da alegria, símbolo da sabedoria e beleza. 7
Ibid. p. 96.
8
Ibid. p. 112.
9 O’HAGAN, Sean. ‘When I was four I wanted to be Jesus. It was only a short step to becoming an artist’. The Guardian. In. http://www.guardian.co.uk/ artanddesign/2008/apr/27/art. Visitado em 29/04/2012. 10 HUFFMAN,William. Robert Fludd, 1574-1637. Tradução Saulo Alencastre. São Paulo: Madras, 2007. p.111. 11 YATES, Francis. A Arte da Memória. Tradução de Flávia Bancher. Campinas: Editora Unicamp,2007.p 421.
12 “Johannes Kepler (1571 - 1630) é conhecido mais em função da descoberta das leis dos movimentos planetários do que pelos seus trabalhos em outros campos do conhecimento humano. Um desses campos é a ótica. (...) A ótica do início do séc. XVII contava com progressos satisfatórios a partir da anatomia, principalmente com Félix Plater.(...) Kepler elaborou teorias que ajustavam de um modo mais satisfatório a aplicação do cone visual euclidiano à descrição dos fenômenos óticos. Também seus estudos sobre perspectiva renascentista, especificamente Alberti e Brunelleschi, motivaram a aplicação de técnicas de representação de figuras tridimensionais em espaços planos, o que se mostrou profícuo para a compreensão do procedimento da visão. Além disso, como astrônomo e ótico, tinha grande interesse pelo funcionamento e uso da câmera escura, o que o conduziu a associação deste instrumento com o olho.” TOSSATO, Claudemir Roque. Os Fundamentos da óptica geométrica de Johannes Kepler.In. http://www.scientiaestudia.org.br/revista/ PDF/05_04_03.pdf. Visitado em 10/10/2008. Kepler nasceu em Weil, Württemberg, atual Alemanha, a 27 de dezembro de 1571, e morreu em Regensburg, também na Alemanha, a 15 de novembro de 1630. Graduou-se pela Universidade de Tübingen. Professor de matemática na Universidade de Graz, foi forçado a deixar a cidade em 1600 para fugir à perseguição dos protestantes. Radicouse, então, na cidade de Praga, tornando-se assistente de Tycho Brahe, a quem sucedeu como astrônomo e matemático da corte de Rodolfo II. Em 1612 foi nomeado professor de matemática em Linz.
O lugar do discurso sobre a pósmodernidade na procura da forma moderna da obra de arte Thomaz Carvalho Limai
Seu interesse pela astronomia surgiu em Tübingen. De formação religiosa, pretendia tornar-se pastor protestante, mas acabou aceitando a cadeira de matemática em Graz, fato que, mais tarde, ele atribuiria à providência divina. 13 Conceito abordado por Svetlana Alpers In. ALPERS, Svetlana. A Arte de Descrever: A Arte Holandesa no Séc. XVII. Tradução Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: EDUSP, 1999. p. 100 - 101. 14
Ibid., p. 263-264.
15
Ibid., p. 268.
16 Conceito abordado por Svetlana Alpers In. ALPERS, Svetlana. A Arte de Descrever: A Arte Holandesa no Séc. XVII. Tradução Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: EDUSP, 1999. p. 303 17
Ibid. p.112.
i Bolsista de Iniciação Científica CNPQ e integrante do Grupo de Pesquisa LINHA.
O presente trabalho tem como objetivo discutir a criação artística moderna a partir dos escritos de Subirats (1998) e Debord (1997), dois teóricos da arte que evidenciam o domínio e a influência do modo de produção capitalista no desenvolvimento e consolidação de movimentos de vanguarda e elaboração do pensamento artístico contemporâneo que se transforma na sociedade do espetáculo. O entendimento da Arte e da estética moderna pressupõe estudo necessário do significado que o simbólico tem na realidade imediata em que está inserido. Na elaboração do conceito de Arte na sociedade contemporânea a expressão pessoal e individual não poderá sucumbir à cópia e à produção em série de objetos ou desenhos que signifiquem a morte da elaboração individual como construção original e única da expressão criativa do sujeito histórico e capaz de produzir significados para a sua realidade. Assim, a Arte está ligada à produção do sagrado único e real de cada indivíduo na constituição de sua relação estética com o mundo. Subirats (1998) preconiza que a Arte tem que ser a manifestação de um olhar único e criativo no mundo e que o contrário disso é a decretação de sua morte. Segundo ele, a manifestação artística tem que evidenciar a exata união entre conhecimento técnico e intuição para que assim anuncie a criação de uma nova estética da realidade e da expressão subjetiva. Para Debord (1997), a ideia de sociedade moderna está fundada na indústria e se caracteriza por ser fundamentalmente espetaculosa. Para ele, no espetáculo reina a imagem da economia dominante em que o fim não é nada e o desenvolvimento é tudo. O espetáculo não quer chegar à outra coisa senão a si próprio. O espetáculo submete a si os homens vivos, na medida em que a economia já os submeteu totalmente. Ele não é nada mais do que a economia desenvolvendo-se para si própria. É o reflexo fiel
da produção das coisas, e a objetivação infiel dos produtores. Sendo assim, “toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos” (DEBORD, 1997, p. 13) Dessa forma, a sociedade do espetáculo e a produção artística moderna estão atreladas ao movimento hegemônico da dominação do capital sob a criatividade e a subjetividade transformando-se em produto de consumo em si mesmo não servindo ao espírito revolucionário da arte de preconizar uma nova sociedade e uma nova relação entre os homens com aquilo que sonham e buscam construir. O diálogo entre Subirats (1998) e Debord (1997) é estabelecido no sentido em que ambos criticam a elaboração da arte como instrumento de massificação e difusão do olhar hegemônico e único na sociedade. Tanto as obras de arte quanto os espetáculos produzidos servem a um arranjo social calcado no capital e no modo de produção em série em que o artista produz aquilo que a sociedade tecnológica precisa, não olhando a sociedade com um olhar subjetivo e transformador. Mas olhando-a como um espaço de adaptação de objetos, coisas e espetáculos que obedecem à lógica dominante da coisificação e da retirada do sentido subjetivo da arte e do espetáculo, uma vez que esses servem ao arranjo social da estabilização e da acomodação. O ideário estético que é forjado nesse contexto reflete e é remetido ao momento histórico de sua concepção ou ao movimento de reflexões e produções artísticas e culturais que são realizadas de acordo com as premissas, crenças e significados que são definidos pelos artistas e pensadores. São eles que os fazem emanar e terem sentido estético na prática realizada na constituição do fazer artístico criativo. E essa produção é difundida em momentos de
exposição coletiva como feiras, bienais e trienais que utilizam a marca de um espaço de tempo para captar, organizar e expor obras que são produzidas nesse período. Esses momentos de exposição coletiva são de grande importância no sentido de divulgar e marcar a qual referência artística a obra pertence e muitas vezes marcam o início de um movimento artístico que se estabelece em princípios e maneiras de representar o mundo. Debord (1997) considera que o espetáculo na sociedade corresponde à uma manifestação concreta de alienação. A expansão econômica é principalmente a expansão da produção industrial precisa. O que cresce com a economia, movendo-se para si própria e não pode ser senão a alienação que estava justamente no seu núcleo original. Com isso, o autor propõe que há uma tensão do conflito entre a constituição de um fazer artístico e cultural subjetivo e significativo com princípios individuais e simbólicos, a superação parece como um padrão baseado na sociedade técnico industrial. Essa sociedade estabelecida na racionalidade instrumental da máquina é exemplificada pela produção tecnológica que suplanta a originalidade criativa individual pelos artefatos tecnológicos que definem o espaço da convivência humana na contemporaneidade. A frieza objetiva dos artefatos tecnológicos ocupa o espaço que antes era ocupado pela produção cultural individual, estética e ética fundada na construção de uma ordem subjetiva e marcada por valores simbólicos de uma sociedade humana e alinhada com o indivíduo criativo e artífice de sua cultura. A Arte foi suplantada pela cultura tecno-industrial que preconiza um padrão estético do fazer sem sentido individual e sem valores simbólicos. Ela não é mais definida como manifestação da criação e mensagem de uma nova ordem social ou síntese da busca de redefinições e vanguardas que sempre auxiliam as alterações de conduta e posicionamentos que dão
aos fazeres artísticos e aos artistas a qualidade de anunciadores de um novo mundo mais humano, criativo e original. A utilização da Arte como confirmação do discurso ideológico e dominante da sociedade do espetáculo, faz dela uma das linguagens que dão suporte à continuidade da ordem social estabelecida. Sendo assim, a arte e o espetáculo são concebidos como formas de manifestações artísticas que servem como elementos de manutenção do estabelecido, construído pelo modo de ser e pensar da sociedade moderna e industrial. Nesta mesma linha de argumentação caminha Walter Benjamin (1955) no texto intitulado A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. E de acordo com ele, um exemplo que pode ser citado é o da reprodutibilidade técnica que permite a reprodução de uma obra de arte para que essa possa ser vista por mais pessoas. E no campo do espetáculo pode-se citar o cinema como a reprodução da imagem que perde o conceito de única e ganha o movimento e a intervenção de quem o organiza através de fragmentos tirando da imagem ou da obra de arte a unicidade do momento em que é produzido. Outros conceitos que são utilizados como forma de confirmação do discurso da sociedade espetacular são os de modernidade e moderno. A modernidade se inicia nos séculos XVI e XVII, no contexto do Renascimento, da expansão marítima e colonial e quando as noções de indivíduo e razão são formuladas claramente. Todavia, é somente no século XIX, ainda que em estágio embrionário, que as instituições modernas se estabelecem nos países da Europa e no resto do mundo, entrando em um processo de expansão que pode ser detectado até nos dias atuais. Esses conceitos dão à cultura a possibilidade ou a qualidade de elemento transformador da realidade social, mas que na sociedade espetacular velam a condição de mantenedores da ordem social
estabelecida no sentido de que cada elemento deve servir a seu objetivo, assim a perda da linguagem da comunicação significa a decomposição moderna de toda a Arte. A contradição entre a ordem mecânica da sociedade moderna e o fazer artístico fundado na ordem estética fez surgir a estética expressionista a última utopia moderna que foi fundada na base do conflito estético entre a sociedade mecânica, técnica e funcional e a comunidade cultural baseada em valores estéticos e éticos de um fazer artístico que emana do desejo de se constituir em um novo paradigma social. A Arte tem a condição de suplantar a categoria de elemento descontextualizado da engrenagem social fazendose elemento fundamental da constituição de um movimento de consciência e fazer estético, artístico e social que define seu rumo assim como interfere nos padrões e movimentos da sociedade. Segundo Debord (1997), a Arte em suas múltiplas linguagens e possibilidades de informação serve à critica social e à defesa do poder de classe fazendo sua manutenção histórica total e sua superação, ocasionando com que aconteça a sua contemplação espetacular. Ainda, coloca que a sociedade se baseia no pensamento ideológico, ou seja, a consciência deformada da sociedade, onde a ideologia expõe e manifesta a essência de todo o sistema ideológico que é manifestado pelo seu empobrecimento, a sujeição e a negação da vida real, causando o afastamento entre o homem e o homem na consciência de si mesmo. Posto isso, conclui se que o discurso modernista impõe à Arte a submissão à ordem e à realidade, colocando esta como instância de alteração da sociedade, o que realmente não acontece, pois a política funciona como aparato de controle não permitindo transformações no sistema civilizatório, apenas possibilitando mudanças que são compatíveis com seus objetivos. A modernidade traz consigo
a instrumentalização da técnica e o discurso do planejamento onde cidades são criadas e espaços são construídos em nome do moderno e do novo. Referências Bibliográficas BENJAMIN,Walter. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. In:GRÜNNEWALD,José Lino. A ideia do cinema. Rio de janeiro: Civilização Brasileira,1966. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução Estela dos Santos. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997 SUBIRATS, Eduardo. A flor e o cristal: ensaio dobre a arte e arquitetura moderna: em torno da utopia urbana de Hugh. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Nobel, 1988
Desenho, Ensino e Giotto Daniel Prudente
Depois de concluir o curso de graduação em Artes Visuais na UFMG, no final do ano de 2010, eu parti de regresso ao litoral do Sul da Bahia, de onde havia migrado fazia já cinco anos. Eu venho de uma família em que praticamente todos trabalham com educação em escolas públicas, particulares e em projetos sociais. No entanto, apesar de ser essa uma prática familiar, a educação sempre me pareceu coisa estranha, inescrutável, como se velasse o verdadeiro modo como se opera e sua real função e significado para o mundo. Foi desse modo que comecei a trabalhar dando oficinas em um projeto de complementação da educação básica para estudantes da rede municipal de ensino com idades de 11 a 14 anos. Eu não me formei professor. Sou bacharel em desenho e pintor, e como pesquisador em arte me instigavam as relações entre as artes da linguagem e da pintura. E foi assim mesmo, sem uma prática ou teoria para o ensino de arte, que esbocei um curso de desenho de observação para crianças, e deparei-me com algumas surpresas. Diante do objeto, eu não sei se o lápis ou superfície de papel lhes parecia mais distante; parecia na verdade que fossem instrumentos inadequados para aquela tarefa. Eles me perguntavam por onde começar, e por vezes já me diziam de antemão que determinado objeto não haviam aprendido a desenhar ainda, como se tratasse de uma palavra grande e difícil que não pertencesse ao vocabulário. Ora, bastava que olhassem o objeto, as arestas que delimitavam seu entorno, suas devidas proporções e a forma com que a luz criava o volume e a textura, para começar o traço pelo contorno que melhor lhes servisse de referência, distribuindo o desenho a fim de imprimir equilíbrio e ritmo sobre a superfície. Durante os primeiros exercícios, pedi às crianças
que desenhassem o ponto de vista de uma cadeira posicionada no centro da sala, mas não foi o que elas fizeram. O assento acolchoado era na maioria dos casos representado sob vista aérea, de onde brotavam dois pares de pernas esticados em direções opostas, acima e abaixo do assento; a fina estrutura que ligava o assento ao encosto era frequentemente desenhada de perfil; e finalmente, porque não mais me surpreendia, o encosto forçava a cadeira numa torção impossível, representado absurdamente em vista frontal; corriam os olhos rapidamente pela cadeira a fim de constatar que tinha sim tinha quatro pernas e um encosto, e logo descartavam o modelo para representar as partes da cadeira de modo que melhor fossem identificadas separadamente. Parecia mais um manual para carpinteiro, ou um “dizer” de que partes compõem uma cadeira, do que um desenho de observação. E parecia-me obvio demais olhar a cadeira e desenhar o que visse, que não lograva um jeito mais fácil de lhes explicar a tarefa. Por que não podiam simplesmente desenhar o objeto tal qual enxergavam? Ao exercício da cadeira seguiram outras proposições:pedi-lhes que desenhassem certa árvore, determinada pedra, um conjunto de casas que descia a rua; pedi-lhes que me desenhassem um senhor sentado num banco e lhes pedi também que me contassem uma história através de imagens. Mas os desenhos pareciam empacados num obstáculo que não se mostrava e que lhes impediam de ver adiante. Então, voltei ao primeiro desenho. E sem que me desse conta comecei eu a desenhar o mesmo ponto de vista de cada criança ao redor do objeto e mostrar-lhes, um a um, o que eu enxergava; e me viram transformar o contorno que circunscreve e separa o objeto do ar em linha. Aí parecia que eles começavam a entender, e queriam desenhar a partir daquele modelo, achavam tão mais fácil copiar as
linhas traçadas na minha prancheta, como se por ali escapasse a única possibilidade de trazer para o papel uma representação legal do objeto, que eu resolvi lhes negar, dizia que o desenho eu tinha feito olhando pelo mesmo ângulo, que não estava trancado dentro da minha cabeça, e que se eles olhassem com atenção, eles também poderiam desenhar o que vissem.
Fig.1. Desenho de observação (cadeira)
Foi como lhes ensinar a falar novamente, e eu me lembrei de Giotto. Giotto di Bondone (c.1267 - 1337) rompeu o conservadorismo da escrita pictórica bizantinai para “ver as coisas como são vistas as coisas”, um dos princípios de base do tratadista Leon Batista Albertiii, escrito um século depois de Giotto no livro II do tratado Da Pintura (1434). Nesse tratado, à maneira dos antigos Alberti reclamava uma pintura que afirmasse a natureza e tivesse a história como genuíno objeto, estabelecendo categorias retóricas e poéticas para a prática do pintor ao subdividir a pintura em três partes: Circunscrição, Composição e Recepção de Luzesiii. E por isso gosto de imaginar Giotto, um século mais moço, fazendo ele próprio a redescoberta de uma pintura filha da natureza, e que se deixa contar histórias.
a vida de São Francisco. Em Pádua, na Capela dos Scrovegni5, Giotto recobre as paredes com histórias inspiradas na vida de Cristo e de Nossa Senhora, seguidas abaixo pelas personificações de Virtudes e Vícios, restando na contra-fachada o Julgamento final.
Nascido nas proximidades de Florença, Giotto foi discípulo de Cimabueiv, de quem dominou a técnica do desenho, do mosaico e do afresco, eestabeleceu-se como pintor de murais empregando meia dúzia de ajudantes que lhe auxiliavam com o gesso molhado e a manipulação das cores.Trabalhou em Roma no fim dos Duzentos, de onde partiu para pintar na basílica superior de Assis, onde delineou em sentido histórico i O termo arte bizantina refere-se à expressão artística de caráter religioso do Império Bizantino, como foi chamad o Império Romano do Oriente durante a Antiguidade Tardia e a Idade Média. ii Leon Batista Alberti, Gênova, 1404-1472, foi um arquiteto e teórico da arte na renascença italiana, escreveu o tratado “Da Pintura” em 1434. iii Partes em que está dividida a pintura de acordo com o livro II do tratado Da Pintura de Alberti. Essa divisão seria análoga às partes do discurso Invenção, disposição e locução. iv Cennidi Petro (Giovanni)Cimabue (c.1240 – 1302) foi um pintor florentino e criador de mosaicos. Ele também é popular por ter descoberto Giotto e ser considerado o último grande pintor italiano a seguir a tradição bizantina.
Figura 2. Capella degli Strovegni, Pádua, Itália.i i A Cappella degli Scrovegni, também conhecida como Capela Arena é uma igreja em Pádua, na região do Vêneto, Itália.
Ele não obedecia aos modelos da escrita pictórica, sob os quais os pintores bizantinos arrumavam as figuras sobre a superfície de modo que a pintura pudesse substituir a palavra escrita. Segundo essa tradição, para que uma história fosse contada com total clareza, todas as figuras tinham de estar completamente expostas, de modo a facilitar a sua identificação, quase como ocorria na arte egípcia. Contemporâneo de Dantei, o poeta, ambos erigiram os pilares para uma nova cultura, consciente de suas raízes históricas latinas. Giotto enxergava na pintura possibilidades que ultrapassavam a palavra. Ele procurou visualizar a cena, desenhá-la tal como se apresentaria diante de seus olhos; sem medo do e scorço, distribuindo as figuras de modo a criar espaço, ar, e planos entre elas, Giotto redescobriu a arte de criar a ilusão de profundidade numa superfície plana. Segundo Argan, a tradição figurativa medieval dividia-se em duas funções: o ícone, ou seja, a apresentação da imagem sacra dada à veneração e a meditação, e a exposição dos fatos que sacralizam a imagem e que serve para a educação religiosa. Giotto destaca-se não apenas pela perícia na arte da pintura, mas por seu engenho inventivo: ele substitui a iconicidade, própria da pintura bizantina, pela narratividade. Dentro de um cenário ainda medieval Giotto religa-se à fonte clássica, cujos conteúdos essenciais eram a natureza e a história.
i Dante Alighieri, Florença, 1265 -1321, foi um escritor, poeta e político italian, autor de A Divina Comédia.
Figura 3. Giotto, Pregação aos pássaros, de A vida de São Francisco, 1296, afresco, 270 x 230 cm, basílica de São Francisco, igreja superior, Assis
Em Pregação aos pássaros, afresco de 1296 da basílica de São Francisco, a clareza formal do discurso prevalece sobre a tradição bizantina. Tão só olhamos e o espaço se divide em dois: abaixo de uma linha que decresce para a direita é uma massa azul escura que envolve a cena e lhe faz contraste, contra um céu azul-pálido para onde cresce a folhagem das árvores. É o disco branco ao redor da cabeça do santo que nos captura para a cena: São Francisco está curvado sobre as aves que pousam diante de seus pés descalços e ali permanecem. O santo tem um gesto doutrinário, o seu olhar decai numa linha para as aves ao pé da árvore, e cruza-se no meio do quadro com a direção do voo de um pássaro que ainda resta pousar. De suas vestes emana um brilho sobrenatural que delineia o panejado grosso do hábito face a sua sombra. É acompanhado de perto por outra figura também vestida de hábito, só que um hábito mais escuro, e diante do gesto de São Francisco de Assis as articulações dos braços do segundo monge contraem num escorço elegante e discreto. Atrás de si as árvores são muito menores que esta que se levanta diante do santo, e aí percebemos que a massa azul escura é uma extensão do solo para onde Giotto já precipita um olhar em perspectiva. Percebo que Giotto resgata uma linguagem que é da pintura, que não possui tradução exata, e que se me vi obrigado a desenhar diante de meus alunos, é que não dispunha de linguagem outra para lhes expressar o que via e fazer-me claro. Para ensinar-lhes a desenhar, primeiro tive que ensinar-lhes a ver, e apresentei-lhes Caravaggioi,
Tintorettoi, Leonardoii, e apresentei-lhes Giotto. E no decorrer das semanas as crianças aprendiam a ver. Descobriam que desenhar não era acumular um repertório de representações que identificavam diferentes objetos; elas de fato desenhavam, e me “diziam” que determinada perna da cadeira parecia coberta por outra, que elas pareciam menores a medida que se distanciavam, que o negro é mais escuro que o azul, que a passagem do claro para o escuro era mais facilmente percebida sobre superfícies texturadas, e que os contornos não se viam sob grande incidência de luz. Percebo também minha experiência com a educação como um desdobramento de minha pesquisa sobre a cópia de pintura e de como as categorias da retórica postuladas por Quintillianoiii na Roma antiga estendem uma comparação para os tratados de pintura do Renascimentoiv. Afinal, para ensinar as crianças a falar numa linguagem que era da pintura, tive eu também que oferecer-lhes uma gramática específica. O trabalho com educação não me parece menos misterioso, mas a pintura revela segredos diversos para quem se atreve a olhá-la e deixar-se assim. Desse modo, a experiência do ensino de desenho de observação me transportou para a oficina de Giotto, e pude, com ele, me aperceber do abecedário da i Tintoretto, como era conhecido JacopoComin, Veneza 1518-1594, foi um dos pintores mais radicais do Maneirismo, e por isso um dos principais precursores do estilo Barroco. ii Leonardo da Vinci,Cidade de Vinci,1452-1519,foi um artista italiano do Alto Renascimento.
i Michelangelo Merisi da Caravaggio, Milão, 15711610, foi um pintor Italiano do estilo Barroco atuante em Roma, Nápoles, Malta e Sicília.
iii Marco Fábio Quintiliano, Caaguris (Espanha) 35 d.C. 95 d.C (Roma) foi orador e escritor, autor de “Instituições Oratórias”. iv Termo utilizado para definir o período cultural europeu entre fins do século XIII e meados do século XVII.
pintura, e de como essa arte sendo irmã e antítese da poesia, carrega em si mesma todo o vasto mistério que é a representação do mundo e da história no espaço. Eu não me formei professor. Sou bacharel em desenho e pintor, e aprendi a ver que o traço do desenho é um verbo que se diz porque se vê. Eu vejo.
Referências Bibliográficas ALBERTI, LeonBattista. Da Pintura. Tradução de Antonio da Silveira Mendonça. – 3ª Ed. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009. Tradução de: De Pictura, Séc. XV – Itália.I.Título. ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte Italiana: De Giotto a Leonardo – v.2. São Paulo: Cosac &Naify, 2003. LICHTENSTEIN, Jaqueline (org.). A Pintura – vol.7: O Paralelo das artes. São Paulo: Ed.34, 2005. FERREIRA, Daniel. Lição para um Poema mudo: Relações entre a Pintura e a Retórica. Relatório final de iniciação científica PIBIC-CNPQ, 2010. QUINTILIANUS, Marcus Fabius. Instituições Oratórias v.1 e 2. Tradução de Jeronimo Soares Barbosa. São Paulo: Ed. Cultura, 1944.
O Juízo Crítico na restauração do afresco de Andrea Mantegna na capela Ovetari
Anamaria Ruegger Almeida Neves
Fui novamente convidada a participar do Banquete de Ideiasi, agora, com o grupo de pesquisa Linha. Reunimo-nos numa sala com uma grande mesa rodeada pelos pesquisadores do grupo. Senti: o Banquete se estabeleceu outra vez. Busquei na memória personagens para conduzir meu pensamento. O primeiro foi Funes O Memoriosoii: [...] Disse-me que o rapaz do beco era um tal Irineu Funes, mencionado por algumas excentricidades como a de não dar-se com ninguém e a de saber sempre a hora, como um relógio.[...] Irineu começou por enumerar, em latim e espanhol, os casos de memória prodigiosa, registrados pela Naturalis Historia: Ciro, rei dos persas, que sabia chamar pelo nome todos os soldados de seus exércitos; Mitridates Eupator, que administrava a Justiça nos 22 idiomas de seu império; Simônides, inventor da mnemotécnica; Metrodoro, que professava a arte de repetir com fidelidade o escutado uma única vez. Com evidente boa fé maravilhou-se de que tais casos maravilhassem. E assim entro na sala do banquete acompanhada de outros personagens para a apresentação da pesquisa sobre a restauração do afresco de Andrea Mantegna na Capela Ovetari em Pádua, Itália. Em pleno Renascimento Italiano Pádua se destaca como um lugar onde vão convergir vários artistas, entre eles Mantegna que em 1457 termina as pinturas na Capela Ovetari. A pintura foi destruída por um bombardeio durante a Segunda Guerra Mundial, mais precisamente no ano de 1944, transformando-a em mais de 80.000 fragmentos. A restauração realizada através de uma “anastilose informática” apresentou o resultado, em 2006, ano em que se comemoravam na i “Um Banquete de ideias: o juízo crítico na restauração do afresco de Andrea Mantegna.” Tese de doutorado defendida em 2010. Orientação de Maria do Céu Diel de Oliveira. ii Conto de BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. São.Paulo: Editora Globo, 1998.
Itália os 500 anos da morte do autor. Para tal, busco um equilíbrio entre o Pensamento e a Tecnociência. Paul Valéry (1871-1945) observa:i “Seria ingenuidade negar o grande avanço das pesquisas científicas; mas quanto mais elas aumentam seu poder, maior é o nosso sentimento de distância do entendimento: a velocidade das transformações é tamanha que o olho do espírito não pode mais seguir as leis e concentrar-se em algo que se conserve”. Como restauradora de obras de arte tenho a preocupação de que as decisões tomadas para as intervenções restaurativas, principalmente nos tratamentos pictóricos, precisam ser antecedidas e acompanhadas de um juízo crítico, pois as obras de arte estão representadas na nossa cultura, não só pela estética, mas também, pela sua historia como testemunhos de tempo e lugar. Neste momento é Kant (1724-1804) que com a sua terceira crítica, a “Crítica a faculdade de juízo” me ajuda a compreender e, a fortalecer meu pensamento para as tomadas de decisão. Na sua teoria destaco a questão do Desinteresse. Para ele, o desinteresse leva à universalidade e através dela somos conduzidos na direção de nosso poder de julgar para depois decidir. Está, entretanto, ligada à subjetividade que não pode estar fechada por princípios objetivos e assim podemos dizer que o juízo deve ser universal sem ser objetivo e subjetivo sem ser privado. Aqui faço minha reflexão sobre o objeto: o afresco com a sua estética do belo e o choque de ver o resultado alcançado pela restauração. Apresento a seguir duas fotografias da pintura de Mantegna na capela Ovetari, uma tirada antes da destruição pelo bombardeio (FIG. 01) e outra após a restauração que consistiu em colar os fragmentos da pintura sobre uma foto em preto e branco (FIG.02). i Artigo de Adauto Novaes em Mutações- novas configurações do mundo em 2006.
Como restauradora de obras de arte, trabalho no objeto, mas é nesse objeto que a imagem, o significado, a estética se apresentam. Quando toco no objeto não posso me esquecer de seus múltiplos significados e um deles é a sua história, a sua memória. Lembro-me nessa hora de Santo Agostinho no livro Confissões, quando ele conta a historia da dracma perdida. A mulher, que havia perdido a dracma e a procurava com lanterna acesa, não a teria encontrado se dela não se lembrasse. Tendo-a depois achado, como saberia se era aquela, se dela não se recordasse? Lembrome de ter perdido também muitos objetos e de têlos procurado e encontrado. Sei disto porque me perguntavam enquanto procurava: É isto? É aquilo? E eu continuava a responder não, enquanto não me fosse mencionado exatamente o que eu procurava. Se não me recordasse do objeto, qualquer que ele fosse, não o teria encontrado por não poder reconhecê-lo, mesmo que me fosse apresentado. É sempre assim que sucede, quando procuramos e encontramos alguma coisa perdida. Se um objeto – por exemplo, um corpo visível – nos desaparece dos olhos, e não da memória, sua imagem conserva-se dentro de nós, e o procuramos até que novamente o vejamos. Quando o encontramos, o reconhecemos, graças à imagem interior. Não poderíamos dizer que achamos um objeto perdido, se não o reconhecêssemos. Tinha de fato desaparecido de nossa vista, mas estava conservado na memória. (AGOSTINHO 197: 290, 291) Diz-nos que só poderemos achar o que nossa memória guardou e assim reconheceremos entre outros objetos aquele que procuramos. Olho, portanto, para a representação da figura 02 e pergunto: onde está a memória da pintura em afresco? Nos fragmentos salpicados ou está na fotografia? Como posso reconhecer a pintura se não tenho na memória como ela era antes da destruição? Uma fotografia seria um documento eficiente para se relacionar com a imagem fragmentada?
Fig. 01 Pintura antes da destruição
Fig. 02 Restauração
Fonte: FIOCCO,1962:19
Fonte:TONIOLO et all, 2006:19
Outro personagem que se apresenta agora em minha memória é Kurt Gödeli integrante do Círculo de Viena, que juntamente com outros matemáticos e filósofos são os iniciadores do Positivismo Lógico. Seus famosos estudos como os Teoremas da Incompletude, revolucionaram a Matemática, a Lógica, a Filosofia, a Lingüística e a Computação. A idéia simples e genial de Gödel é a possibilidade de expressar os paradoxos usando linguagem matemática. Como é natural, o Teorema de Gödel teve um efeito eletrizante nos lógicos, nos matemáticos e filósofos interessados nos fundamentos da matemática pois demonstrava que nenhum sistema fixo, por mais complicado que fosse podia representar a complexidade dos números inteiros: 0,1,2,3... Os leitores de hoje poderão não experimentar diante disto a mesma perplexidade que dos de 1931, já que neste ínterim nossa cultura absorveu o Teorema de Gödel, junto com as revoluções conceituais da relatividade e da mecânica quântica, e suas mensagens filosoficamente desorientadoras tem chegado até o grande público ainda que embotadas pelas várias traduções (e quase sempre de ofuscação). A atitude geral dos matemáticos de hoje consiste em não esperar resultados limitados; mas em 1931 a coisa caiu como um raio no seco. (HOLSTADTER, 1989:21)ii i Kart Godel (1906-1978) ii “Como es natural, el Teorema de Gödel tuvo um efecto electrizante em los lógicos, matemáticos y filósofos interesados em los fundamentos de la matemática, pues demonstraba que ningun sistema fijo, por complicado que fuera, podia representar la complejidad de los números enteros:0,1,2,3...Los lectores modernos podran no experimentar ante esto la misma perplejidad que los de 1931, ya que em el interin nuestra cultura há absorbido el teorema de Gödel, junto con las revoluciones conceptuales da la relatividad y de la mecanica cuántica, y sus mensajes filosóficamente desorientadores han llegado hasta el gran público, aunque sea embotados por varias capas de
Eu o conheci através de Holfstadteri em um estudo que inclui as fugas nas músicas de Bach e as xilogravuras de Escherii, quando analisa a questão de fundo e figura. Assim, Gödel entrou no banquete na busca de seus paradoxos matemáticos. Imagino se a fotografia que serve de suporte para os fragmentos do afresco estaria fazendo um jogo de figura e fundo e pergunto: Até onde vejo a pintura de Andréa Mantegna e o que está mais evidente, a pintura ou a fotografia da pintura? Um jogo interessante, pois a fotografia é em preto e branco e os fragmentos coloridos o que diferencia, e muito, do jogo de fundo e figura nas xilografias de Escher. E continuo imaginando se aí aplicava o seu famoso Teorema da Incompletude, que foi tão bem explicado para mim pelo Dr.Emmanuel Araújo Pereiraiii: Onde ele mostra que sistemas lógicos capazes de descrever a aritmética são incompletos e, dados os axiomas e as regras do sistema, sempre existe uma questão que não pode ser respondida (dizer sim ou não) a partir dessas regras e axiomas, mas que pode ser respondida numa extensão compatível desse sistema, por exemplo, num outro sistema com mais outras regras e axiomas, onde toda questão já respondida no antigo sistema menor continua com a mesma resposta nesse novo sistema - isso é o significado de compatibilidade. Mas acontece que nesse novo sistema ampliado, aparece uma nova questão que não pode ser respondida, mas que tem resposta numa nova extensão. E tudo se repete ad infinitum. Em resumo: um sistema sempre tem uma nova questão que traducción (y, casi siempre, de ofuscación). La atitud general de los matemáticos de hoy consiste en no esperar sino resultados “limitativos; pero em 1931 la cosa cayó como un rayo en seco”. (HOLSTADTER, 1989:21) i Douglas R. Hofstadter (1945) ii Escher (1898-1970) iii Professor do Departamento de Física da UFMG, que enviou por e-mail claras explicações sobre o Teorema da Incompletude.
não pode ser respondida dentro dele, mas pode numa extensão; no entanto aparece uma nova questão que não pode ser respondida nessa primeira extensão, mas pode ser respondida numa segunda extensão; mas..... (E-mail Pessoal) Com essa explicação, percebo que se a solução não foi encontrada numa primeira extensão: o afresco fragmentado, ter buscado a segunda extensão: a fotografia, que pudesse sustentar a solução, também não resolveu. Mas isso não invalida o processo de Anastilose Informática que foi desenvolvido na Universidade de Pádua pela equipe do Dr.Toniolo.i Esse procedimento pressupõe o uso de imagens de boa qualidade antes da destruição. Entretanto, não foi possível encontrar imagens coloridas, de boa resolução, que pudessem ser aproveitadas e, por isso, foi utilizada uma documentação fotográfica em preto e branco do início do século XX, mas que apresentava uma evidente distorção espectral e linear, devido às grandes dimensões na altura da pintura num espaço arquitetônico pequeno na largura e comprimento. A solução do problema passa através de variantes e, nesse caso, a valorização da maior ou menor aceitabilidade de uma solução em relação à outra pode rapidamente ser avaliada também sob os aspectos históricos, artísticos e outros tipos de análises físico-químicas, colorimétricas etc. A verificação da feitura dos vários métodos propostos pode ser conduzida de forma simples e sem demora. O objetivo da Anastilose Informática é de chegar a um mapeamento da posição dos fragmentos através da técnica informática e de reconhecimento das imagens com a finalidade de estabelecer quanto da i Coordenador do Progetto Mantegna que desenvolveu o processo de Anastilose Informática atreaves da Harmonia Circular.
parte original é possível de se reconstruir realmente e qual a qualidade do resultado final. Para aplicar o método de recomposição é necessário o uso de todos os fragmentos recolhidos do afresco da capela Ovetari, depois de terem sido fotografados digitalmente e catalogados e assim conduzir o processo de Anastilose Informática. Passando da recomposição virtual para a real na capela Ovetari, o laboratório teve uma participação determinante na orientação aos restauradores, nas interpretações dos dados da Anastilose Informática virtual e no reconhecimento dos fragmentos em suas caixas e bandejas. Deu-se início ao trabalho de restauração quando os fragmentos foram retirados das caixas, lixados para diminuir a espessura, impregnados de resina sintética, para dar maior rigidez e, depois colada no painel de aerolam· onde está impressa a fotografia em preto e branco, no tamanho natural do afresco. (FIG 03)
Começo a pensar porque selecionei essa pesquisa para desenvolver meu doutorado e não posso esquecer o longo caminho percorrido. Agora preciso ter as respostas para tantos questionamentos. Releio o que já escrevi e percebo que o mais importante no meu pensamento inicial e, que ainda continua, é a necessidade de se formar um juízo crítico abarcando não só os conhecimentos técnicos, mas também, a função social dos objetos restaurados. Entendo aqui, como função social, todos os contextos inerentes ao objeto, como também, os agregados no seu percurso de existência. Um juízo crítico que exercita o pensamento, que questiona a realidade ou a verdade da obra restaurada. O exemplo de uma recente restauração realizada com os mais avançados meios tecnológicos permitiume a possibilidade de exercitar meu pensamento com o objetivo de compreender o trabalho realizado. Um tratamento virtual que se pretendeu real. Para conviver com as teorias e meus próprios pensamentos, montei um local de memória, um banquete de artistas e teóricos que, observando o afresco emitiam sem tempo nem espaço seus juízos já homologados pela História. Eu mesma servi e degustei dos acepipes do Banquete. A imagem de uma mesa posta auxiliou-me a manter no espaço mental dessa escritura , os diversos e contrastantes escritos e imagens que se ofereceram no tempo da pesquisa.
FIG.03 - Foto da parede da Capela Ovetari com o afresco restaurado. Fonte:site do Progetto Mantegna.
Um diálogo imaginário, mas que instiga o conhecimento. Nesse Banquete flutuo permeando personagens e ideias, avaliando dogmas e preconceitos. E assim, nas asas do conhecimento, encontro o aquietamento da minha mente para a compreensão da evolução dos processos teóricopráticos na área da Conservação e Restauração de Bens Culturais.
Relembro a pedagogia visual da restauração. A visibilidade da pintura que Merleau-Pontyi afirma: Não importa a civilização em que surja, e as crenças, os motivos, os pensamentos, as cerimônias que a envolvam, e ainda que pareça votada a outra coisa, de Lascaux até hoje, pura ou impura, figurativa ou não, a pintura jamais celebra outro enigma senão o da visibilidade. (MERLEAU-PONTY, 2002:20) Busquei a visibilidade da pintura de Andrea Mantegna quando analisei a restauração dos afrescos da capela Ovetari. Encontrei na fotografia que hoje é o suporte para os fragmentos do afresco. Lembro-me de um artigo de Walter Benjamimii sobre a reprodutibilidade das obras de arte. Nele, o autor situa a fotografia, primeiro como um ruído no meio dos pintores provocando mudanças, mas aos poucos ela começa a se inserir como uma possibilidade artística e não somente como documento. A História da Arte dedicou grande tempo e espaço descrevendo as influências da fotografia principalmente na pintura do séc. XIX. Na atualidade, vários artistas contemporâneos utilizam-se da fotografia como objeto artístico e não somente como documento. Conversei com professores de fotografia da Escola de Belas Artesiii, e com eles aprendi que ao contrário do i Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) foi professor de Filosofia nas universidades de Lyon, Sorbonne e no Collège de France. ii Walter Benjamim nasceu em Berlim em 1892 e morreu em 1940, foi um dos mais notáveis intelectuais alemães do séc. XX. iii Conversei com os professores Alexandre Leão e Felipe Cabral, do departamento de Fotografia, Cinema e Teatro, da Escola de Belas Artes, que me esclareceram alguns
pintor que seleciona a priori, o que vai colocar dentro do espaço da tela; o fotógrafo seleciona justamente o que vai ficar de fora do campo visual e que vai ser captado pela câmera fotográfica e, desde a sua origem, alguns fotógrafos já faziam fotografias que não tinham a função documental, ou seja, retratar a realidade. Começo a compreender a analogia dos paradigmas: “A fotografia como arte” e “A arte como fotografia”. Na Restauração, a fotografia é utilizada como documento. Um importantíssimo documento que acompanha o relatório técnico dos tratamentos realizados nas obras de arte. Aqui, no exemplo que tenho para avaliar o resultado de uma inovadora tecnologia, a fotografia não só foi um importante documento que permitiu o desenvolvimento do processo da Anastilose Informática, mas também foi utilizada como substituição do suporte original, ou seja, o que antes era parede com reboco pintado a fresco, hoje é uma reprodução fotográfica da pintura, impressa num material sintético que está dependurada na parede onde anteriormente (antes de serem destruídas pelo bombardeio) estavam as pinturas. Mas ainda assim, a meu ver, continua como documento e não como arte, apesar de estar no lugar da pintura artística. E essa fotografia não está sozinha, estão colados sobre ela resíduos da pintura que não existe mais. Fragmentos solitários que não formam a imagem perdida Lembro-me de Giacomettii quando descreve sobre a solidão dos objetos artísticos e que gostaria de apreender simultaneamente a imagem que está sobre a tela e o objeto real que ela representa. Permaneço ainda com ele quando comenta que esse mundo visível é o que é, e nossa ação sobre ele não poderá nunca transformá-lo em outro. conceitos em fotografia. i Alberto Giacometti (1901-1966), pintor e escultor suíço que estudou e viveu na França.
Não compreendo bem o que em arte se chama um inovador. Uma obra de arte deveria ser compreendida pelas gerações futuras? Mas por quê? E o que isso significaria? Que elas poderiam utilizá-las? Para que? Não entendo. Mas entendo bem melhor, ainda que obscuramente, que toda obra de arte que queira alcançar as mais grandiosas proporções deve, com uma paciência e uma aplicação infinitas, desde os momentos de sua elaboração descer aos milênios, juntar-se se possível, à noite imemorial povoada de mortos que irão se reconhecer nessa obra. (GIACOMETTI apud GENET, 2000:14) E Giacometti continua : Respeito os objetos. Cada um tem sua própria beleza porque é único, nele há o insubstituível. (IDEM: 94) Termino aqui minhas citações, a palavra “insubstituível” permanece em minha mente. Lembro-me dos tratadistas que deram as receitas de como fazer um bom afresco e vejo que a fotografia do afresco dependurada na parede não o substitui. Busco na memória a Teoria e a Filosofia que selecionei para apoiar meu pensamento a formar um juízo crítico e percebo que agora posso dizer que o resultado da restauração dos afrescos pintados por Andrea Mantegna na capela Ovetari foi inadequado pois, da forma como se apresenta hoje, o objeto visível é um resultado da tecnologia utilizada, mas não uma obra de arte restaurada. Percebo como é difícil formar um juízo crítico sobre novos métodos e tecnologias que se impõem. Não posso me esquecer que juízos são subjetivos e há aí uma complexidade. Isto significa que tenho autonomia de julgamento e que posso escolher com referência às minhas necessidades e recursos e não pelo fato de ser restauradora. Quem me tranqüiliza é Kant que me ofereceu o juízo crítico desinteressado. Na Terceira Crítica, o
desinteresse ocupou um lugar de destaque nesta minha pesquisa, porque é universal, assim como a obra de arte. Acredito na importância da restauração que une de forma criativa a ciência e a arte fazendo uso da técnica, da estética e da política. O burburinho dos convidados ainda continua nos corredores após saírem da sala do Banquete. Lá as luzes foram apagadas e na quietude da penumbra o afresco restaurado permanece até que outras luzes se acendam.
do homem. Tradução Roberto Schwarz e Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1990. 162p.
Referências Bibliográficas BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Tradução Sérgio P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense S.A. 253p BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. São.Paulo: Editora Globo, 1998. 707p. FIOCCO, Giuseppe. Mantegna, la Cappella Ovetari nella chiesa degli Eremitani. Milão: Silvana editoriale d’arte, 1962. GENET, Jean. O ateliê de Giacometti. São Paulo: Cosac&Naify, 2000. 95p. HOLFSTADTER, Douglas R. Gödel, Escher e Bach. Barcelona: Tusquets, 1989. 548p KANT,Emmanuel. Crítica da faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. NEVES, Anamaria Ruegger Almeida. Um Banquete de ideias: o juízo crítico na restauração do afresco de Andrea Mantegna. Tese de doutorado defendida na Escola de Belas Artes da UFMG em2010 NOVAES, Adauto. Mutações, ensaios sobre as novas configurações do mundo. Rio de Janeiro: Agir, 2008. 419p. PROGETTO MANTEGNA. Disponível <http://www.progettomantegna.it>
em:
SANTO AGOSTINHO. Confissões. Tradução Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus, 1997. 401p. SCHILLER, Friedrich. Cartas sobre a educação estética
TONIOLO, Domenico et al. Andréa Mantegna e i Maestri della cappella Ovetari: La ricomposizione virtuale e il restauro. Milano: Skira editore, 2006. 325p. VALÉRY, Paul. Introdução ao Método de Leonardo Da Vinci. Tradução Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Editora 34, 2006.
O Livro dos Reis João Diel
O que o poeta persa diz sobre o primeiro homem a procurar a coroa da soberania sobre o mundo? Diz com versos rimados, no fim do século X e próximo do XI, e narra desde a criação do primeiro reino no mundo até a conquista árabe, que traria, entre outras coisas, uma nova religião. A religião antiga da qual falamos se assemelha muito ao zoroastrismo: há um emanador de honra e justiça, Ahura Mazda,
e sua força contrária, (e não opositora como num espelho, um inverso maligno: tanto quanto Ahura Mazda, o opositor também é uma unidade) que conhecemos como Ahriman. Quando pensamos na divindade cristã, temos um Deus, emanador de toda bondade, e sua ausência, que toma corpo como o Demônio. Nesse momento, precisamos pensar que Tanto Ahura Mazda quanto esses elementos divinos, Ahura Mazda e Ahriman não se dão pela ausência do primeiro, mas, como diz Ahriman são parte do Avesta. uma imagem mística: a gota de bálsamo atravessou a mão e chegou do côncavo para o convexo. Podemos pensar, então, que são dois elementos que existem ao mesmo tempo e até no mesmo lugar, mas em outro lugar. Voltaremos a esse pensamento mais tarde. De geração em geração, atravessamos reinados curtos e longos, de trinta a mil anos, contando como a pele de leopardo que envolve o rei se torna o brocado dourado bordado dos padrões árabes. Enquanto os épicos ocidentais narram basicamente uma geração, o Shahnameh conta a história do mundo, até seu eclipse, a derrota para os árabes. O grupo ao qual me refiro é o OLHO - Laboratório de Estudos Audio-Visuais, na Faculdade de Educação, UNICAMP.
Enquanto narro para meus colegas de orientação as histórias dos personagens, confundo-me com os nomes. Tento descobrir porque misturo o nome dos personagens, se sei com tantos detalhes os eventos: o rei que atira a pedra contra o demônio negro e o rei que manda cortar seu opositor na metade não deveriam ser misturados. Às vezes, culpei a memória. Amaldiçoei a leitura leve, da qual sou apóstolo (porque ler deveria ser para mim um algo misterioso) porque no final não fichei, não cataloguei nem desmembrei os personagens, não procurei as marcas do tempo de hoje no tempo passado: li. Agora, depois de confundir os nomes, penso: esse livro narra a história dos reis persas, que na verdade são apenas um: o rei persa, o que recebe o livro, o que irá, observando as imagens e os textos, lembrar-se do mundo. Hushang mata o Div negro
Quando Ferdowsi, o poeta, começa a escrever o livro, o império persa está sob o domínio dos Samanidas. Quando ele termina o poema, os turcos já haviam tomado o poder. Diz a lenda que o rei encomendara a Ferdowsi o mais lindo poema e, pelo poema, pagaria uma moeda de ouro por verso. Ferdowsi, que não era muito rico e precisava de dinheiro para pagar o dote de sua filha, aceitou a proposta do rei. Ao receber o poema de 50.000 linhas, o rei fica assustado e decide pagar a metade do valor a Ferdowsi, em moedas de prata. Quando Ferdowsi recebe o dinheiro, se entristece de tal maneira que decide ir ao barbeiro e à casa de banho, deixando metade do dinheiro em cada um desses lugares. É com essa imagem que começam muitos dos volumes ilustrados do Shahnameh: Ferdowsi, de cabeça baixa na casa de banho, rodeado de alguns serventes, descansa. Entretanto, o rei percebe o valor do poema logo ao começar a lê-lo. Ele decide reparar seu erro e, montando em seu cavalo, parte em direção à casa do poeta. Assim que o rei cruza os portões da cidade onde mora o poeta, o caixão de Ferdowsi o atravessa na outra direção. Falo das 1001 Noites, da Linguagem dos Pássaros, do Chacal e o Cão Mergulhador, o Gulistam, entre outros livros que se apresentam como compêndios de histórias curtas, quase aforismas místicos.
Agora, enquanto eu escrevo, tento resolver um problema que a literatura persa que tive contato me apresenta: como reunir as diversas histórias, seus djins, seus demônios, herdeiros e feitiços em uma única longa história, que valha-me 50.000 moedas de ouro? O Shahnameh lança uma armadilha: irá me contar desde o começo do mundo até os dias de hoje. Assim, as histórias se sucedem sem que eu me preocupe, porque sei que tudo caminhará na direção de hoje. E este hoje estará realinhado. Todo o texto se refaz porque o fim - que é hoje - o alinha, o termina, o costura. (ouço Pasolini porque o conheço: o que eu ouviria se
não soubesse o que ele disse?) Traduzo um livro incompleto: a primeira parte, e sempre para mim a mais misteriosa, está incompleta. A tradução de Dick Davis, que está em inglês e é a que uso, ignora o início do poema, que enaltece Deus, o senhor da Sabedoria e da Alma, incompreensível, senhor de Saturno e das estrelas de noite, que dá luz à lua e a Vênus. Na edição que realizei do Shahnameh, tive de incluir trechos de outra tradução, pois penso que a introdução aponta em direções importantes para o entendimento da mística persa. Isso me lembra outra idéia: o poema foi traduzido do persa para o inglês. E agora eu o traduzo para o português. Tenho consciência: o texto não passará incólume em minhas mãos, assim como não passou pelas mãos de Dick Davis, ainda bem. Uma das alterações que Dick Davis fez foi suprimir o início do poema, onde Ferdowsi narra a criação do mundo, dos quatro elementos, levanta algumas questões sobre os desígnios ocultos de Deus, exorta o profeta dos árabes (vale lembrar que agora, quando Ferdowsi termina o seu trabalho, é um rei turco quem está no poder). Ele também decidiu que usaria outra forma, ao invés do verso, para a tradução do Shahnameh. O poema foi escrito em persa em versos (couplets) heróicos. Entretanto, as histórias do Shahnameh sempre tiveram uma vida muito ativa, sendo contadas por bardos, contadores de histórias itinerantes chamados naqqals. Dessa maneira, a encarnação dessas histórias foi realizada em grande parte em prosa, somente em alguns episódios (fechamentos morais, momentos onde a narrativa deveria se tornar mais estética ou somente para salientar efeitos dramáticos ...) sendo narrada em verso. Essa forma é chamada de prosimetrum, que é uma forma comum para os persas (podemos citar como exemplo o Gulistan, ou O Jardim das Rosas). Se quiséssemos alguns exemplares de prosimetrum para
Me refiro à edição brasileira pela Attar Editorial, traduzida por Omar Ali-Shah. Este livro é uma reunião de contos e alegorias para leitura sufi, ou seja, não pode ser lida sem a imaginação.
Ouço Pasolini dizendo que a vida é um plano-seqüência que só é editado ao seu fim, da maneira que a pessoa que o edita deseja. Assim, o texto de Ferdowsi é o fim da história persa, e assim o realinha.
nós, os Rumi, Ocidentais, poderíamos citar La Vita Nuova de Dante e De Consolatione Philosophiae, de Boécio. Não acredito na noção de texto original e nem nas disputas acerca da originalidade ou ancestralidade de um texto. Posso sempre recorrer a um texto mais antigo para revelar a farsa de outro: Gilgamesh destruiria a Arca de Noé se eu pudesse acreditar na noção de original. Como não consigo, a Arca e Gilgamesh convivem, pesados em uma balança imaterial. Ela será comentada mais tarde no texto.
Consulto uma edição transcrita do Avesta de 1879 que consegui por meio digital, uma vez que a edição se encontra esgotada.
Da mesma maneira, Dick Davis também omitiu partes que considerou repetitivas. Quando lemos a Odisséia, por exemplo, muitas vezes a aurora é descrita como “a aurora com suas tranças douradas”. O Shahnameh também apresenta várias formas repetidas: dizer que os futuros e atuais reis são “altos como um cipreste coroado pela lua cheia” é, não somente uma imagem, mas também uma figura retórica, típica da prosa oral, que marca algumas descrições de maneira repetida para facilitar o trabalho daquele que irá contar a história. Auxiliará sua memória. E, para mim, fará uma certa amálgama entre todos os reis, transformando-os, em minha confusão, em apenas um rei. Dick Davis traduz o Shahnameh inteiro; eu traduzo só seu primeiro terço, da criação do mundo até o nascimento de Zal. Quem quiser, pode dividir o livro em três partes: a parte mítica, que narra a criação do mundo, as descobertas dos reis (às vezes prometeicas, como a história de Hushang, que descobre o fogo e que é punido por orgulho), a luta entre a honra e a injustiça e a batalha entre tribos e povos. Após o nascimento de Rostam, a segunda parte, a que seria a parte lendária, narra as aventuras de Rostam, seus feitos, o governo dos incapazes sobre os bem-capacitados, as brigas familiares e o reinado de Kavus; a terceira parte, chamada histórica, narra a sucessão quase factual dos reis da Pérsia, antes da queda do império sob mãos árabes. O poema narra a ascensão e queda de cinquenta monarcas (três deles são mulheres), passando de reinado a reinado. Isso não se dá de maneira homogênea: alguns reis recebem alguns versos, e
outro, Kavus, por exemplo, recebe um terço do poema. Se pensarmos como, no meio do século IX, um Essa análise histórica e mitolópoema de 50.000 versos surge para contar a história gica retiro da própria tradução de Dick Davis, que cria um pamítica de seu povo, posso apontar algumas idéias. norama da história do império Para termos uma noção da idade deste império, persa antes da tomada pelos quando o poder passou dos gregos para os romanos, a árabes. Escolho essa interprePérsia continou quase constante. Sua conquista pelos tação como um artifício e com árabes só se daria no século VII. Portanto, desde o ele costuro o texto. século IV a.C. até esta derrota, a Pérsia se manteve. Um zoroastra da época narra a derrota desta maneira: “... a fé estava arruinada e o Rei dos Reis morto como um cão... Eles roubaram a soberania dos Khosrows. Não por valor ou habilidade, mas por gozação e desdém eles a tomaram. Pela força eles tiram as mulheres de seus maridos e suas doces posses e jardins... Pense sobre a quantidade de mal que estes malditos lançaram sobre o mundo, e não há doença pior. O mundo é tomado de nós.” A dinastia Umayaad (661-750) não considerou a cultura dos conquistados como relevante e tratou até aqueles que se convertessem ao islã como cidadãos de segunda classe. Os Abássidas, que sucederam os Umaiyyads aproximadamente em 750 através de revolta, moveram a capital para Bagdá, muito próxima das ruínas da capital Sassaniana de Ctesiphon. Eles eram abertamente sunitas e se aproximavam da cultura persa. Apesar de haver uma capital, o governo se dava de forma local, com três regiões principais, governadas por três grupos diferentes. No século X, ao oeste governavam os Buyidas, uma dinastia que dizia descender dos Sassânios, revivendo o título de “Rei dos Reis” que. através de alianças culturais, tentavam se diferenciar dos Abássidas. Eram particularmente xiitas, mas sua corte celebrava os festivais zoroastras. O nordeste era governado pelos Samânidas, uma dinastia
Traduzo da tradução de H.W. Bailey, uma passagem do “The Great Bundahishn, em seu “Zoroastrian Problems in the 9th Century Books”, 1943, p.195, citado por V. Minorsky em “Iranica”, 1964, p.257. Um texto passa de um para outro, de um autor para outro, e assim conto para você o que descubro; recolhi pedaços; às vezes tenho vontade de ler mais, e caminho pelas dicas ou lampejos que aparecem. Sobre esses lampejos, há o texto completo da dissertação.
culturalmente sofisticada que se dizia descendente de Bahram Chubineh, um general Sassaniano que Ferdowsi elogia. Digo culturalmente sofisticada porque promove uma renascença do saber persa, comissionando traduções e criando certo interesse antiquário no passado do reino. Exatamente por isso se diziam estar com direito de governar. Essa dinastia usava o novo persa (a língua desenvolvida após a conquista árabe) ao invés do árabe como língua de corte. Por esse motivo, poesia e literatura em persa começam a aparecer na região de Khorasam e Transoxiana. Ferdowsi nasce em 940, sob o comando dos Samânidas, perto da cidade de Tus. Nessa atmosfera de renascimento da cultura persa, Ferdowsi encontra incentivo para escrever sobre a história do mundo que é a história dos persas. Ele pode ter tido como fontes materiais escritos e orais; diziam que Bagdá era o maior centro editorial do mundo. É também importante dizer que, desde o século V a.C até aproximadamente a derrota dos persas pelos árabes no século VII d.C, o grande movimento religioso era o dos Parsis, que deixaram um livro: o Avesta. Alguns personagens de sua poesia Ferdowsi retira das narrativas do Avesta, como o próprio Ahriman como força destruidora, o primeiro opositor de Kayumars; particularmente, Ferdowsi toma do Avesta os reis que figuram no trecho do texto que traduzi. Há algumas outras referências. Por exemplo, Jamshid é identificado com Yama, hindu, o Senhor do Submundo. Esse paralelo se dá entre duas culturas orientais, muito próximas neste sentido; mas há também comparações entre a história de Jamshid e de Zahhak com o mito prometeico: o rei que vai introduzir as artes da civilização à humanidade é exatamente aquele que será partido ao meio e destronado pela sua contraparte, Zahhak, o rei
que possui duas serpentes em seus ombros. Desta maneira, podemos perceber um paralelo numérico entre Jamshid e Zahhak dado pelo número dois. Nessa balança invisível, Zahhak divide Jamshid como a si; nessa balança invisível, podemos pensar diversas imagens. Quando essa oportunidade de interpretar aparece, é importante não optarmos por uma interpretação (ou imaginação) que paire sobre as outras: todas convivem, ao mesmo tempo, desiguais. Há também alguns paralelos políticos que podemos demarcar, como a soberania. Os Sassanianos acreditam que o rei está ligado à religião e à sanção divina, o elevando a um estado semi-divino como representante de Deus na terra que vem, em muito, das dinastias Babilônicas pré-iranianas. Essa noção de soberania prevalece no início do poema, mas se entrelaça a uma outra noção: de que o rei deve ser aclamado, deve ser aprovado por seus pares, que pode ser substituído se tornar-se incompetente e que, principalmente, governa por conta de suas habilidades e pela permissão dos nobres. Durante o poema, algumas vezes os reis “abdicam” de seu poder e isso parece estar ligado a essa noção de soberania.
Estou tecendo para que depois eu possa puxar o fio e tudo o que eu disser, desdizer. Tudo que digo pode ser contradito por mim mesmo. Atravessaremos como uma gota de bálsamo a palma da mão e tudo será outro. Cito como lembrança o filme Marat-Sade de Peter Brook. Sade conversa com Marat sobre a inutilidade da revolução.
Se eu não tivesse gasto todo o meu tempo me construindo e depois destruindo, eu poderia ter ou ser algo mais concreto ou inteiro ou poderia... o quanto eu poderia ter feito se não tivesse passado tanto tempo destruindo tudo o que faço! ***
Sobre este tema, recomendo Psicologia e Alquimia, de Jung, e O Deus Exilado, de Marília Fiorillo. As referências completas se encontram na bibliografia.
Conforme leio e escrevo, consulto também alguns textos sobre a gnose. Menciono isso porque, algumas vezes digo que só li, durante toda a minha vida (digo com leveza), aquilo que disse respeito a mim. Procurei nos textos da graduação aquilo que me falaria sobre mim. Que apontaria com o dedo invisível e haveria aquela sinfonia silenciosa (que é como uma cor). Não me lembro do que li e que nada me disse sobre mim. Esqueço-me do nome dos autores e daquilo que foi consagrado. Me perguntaram sobre o que estudei e descobri que estudei a mim. Egoísta, nada mais me importa nos livros. (estou no mundo. e se descubro algum segredo sobre mim, descubro um segredo sobre o mundo. só posso ver aquilo que sou.) (quem não ficaria inseguro, sabendo que tudo o que constrói será destruído por si mesmo?) ***
ATTAR, Farid ud-Din. A Linguagem dos Pássaros. Attar Editorial. São Paulo: 1991. Página 29
O poço está cheio de sangue, e não há água. Mohâmmed disse: Creio que é porque Ali, cheio da dor que experimenta, contou seus segredos a este poço.
Haverá uma chave, o Talwil, que tocará o que vemos e tudo passará do côncavo para o convexo. Detalhe do quadro de Milton José de Almeida.
AD-DIN, Abu Bakr Siraj. El Libro de La Certeza. Madrid: Sophia Perennis. Arte Islâmica. Firenze: Scala Group S.p.A: 2009. ATTAR, Farid ud-Din. A Linguagem dos Pássaros. São Paulo: Attar, 1991. ALMEIDA, Milton José de. O Teatro da Memória de Giulio Camillo. Cotia: Ateliê Editorial:Campinas:Editora da Unicamp, 2005. CATTABIANI, Alfredo. Planetario. Simboli, miti e misteri di astri, pianiti e costellazioni. Milano: Arnoldo Mondadori Editore S.p.A, 1998. CATTABIANI, Alfredo. Volario. Simboli, miti e misteri degli esseri alati: uccelli, insetti e creature fantastiche. Milano: Arnoldo Mondadori Editore S.p.A, 1998. CHEBEL, Malek. Dictionnaire des Symboles Musulmans. Paris: Éditions Albin Michel, 1995. CORBIN, Henry. Inside Iranian Islam. Trad. Hugo M. Van Woerkom. CORBIN, Henry. La scienza della bilancia e le corrispondenze fra i mondi nella gnosi islamica. Milano: SE SRL, 2009. CORBIN, Henry. L’uomo di luce nel sufismo iraniano. Roma: Edizioni Mediterranee, 1988. CORBIN, Henry. Cuerpo espiritual y Tierra celeste. Madrid: Ediciones Siruela. 2006. FERDOWSI, Abolqasem. Shahnameh. The persian book of kings. Trad. Dick Davis.Washington: Mage Publishers, 2006.
FIORILLO, Marilia. O Deus Exilado. Breve história de uma heresia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. JUNG, Carl Gustav. Psicologia e Alquimia. Petrópolis: Editora Vozes, 1994. SHIRAZ, Saadi de. Gulistan. O Jardim das Rosas. Trad. Omar Ali-Shah. São Paulo: Attar, 2000. SOHRAVARDI, Sihaboddin Yahna. El encuentro con el ángel. Madrid: Editorial Trotta, 2002. WELCH, Stuart Cary. Persian Painting. George Braziller. Nova Iorque: 1996. Sites Shahnameh Digital Index Project. http:// shahnama.caret.cam.ac.uk/new/jnama/page Acessado em 3 de Março de 2011.
Exegesis Secular
Sebastião Miguel
Série de imagens como um diário e anotações sobre a verdade das representações. 99 fotografias | 33 trípticos Fotografia digital, capturadas por celular | App básico Retro Camera. Original Details: Photography| Digital | Fine Art | 40x30x2 cm | printing on acrylic
Cadernos Guilherme Franco