Linha - Escritos sobre a imagem (2)

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Org. Maria do CĂŠu Diel

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escritos sobre a imagem (2)



Org. Maria do Céu Diel

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escritos sobre a imagem (2)

1ª Edição São Paulo

2013


Copyright © 2014 Maria do Céu Diel Todos os direitos reservados

Ficha Catalográfica Elaborada pelo Bibliotecário Carlos Eduardo Gianetti – CRB8/8604 L648 Linha : escritos sobre a imagem / Maria do Céu Diel, organizadora. - Campinas, SP : Império do Livro, 2013. 360p. ISBN: 978-85-64741-11-9 1. Arte e História 2. Memória - Arte 3. Arte – Estudo e ensino I. Diel, Maria do Céu (1962-) II. Título. CDD 701 Índice para Catálogo Sistemático 1. Arte e História 2. Memória - Arte 3. Arte – Estudo e ensino

ISBN

978-85-64741-11-9 imagem da capa

Intermundo, de Maria do Céu Diel, 2012

Direitos reservados a

Império do Livro Rua Clemente Pereira, 320 Ipiranga 04216-060 - São Paulo - SP - Brasil Tel. (11) 94501 7227 www.imperiodolivro.com.br

701 701 707



Índice Influência sem angústia Maria do Céu Diel

11

Da Primeira Assinatura: onde há o hydropythecus, a criatura de Feejee, melusinas, mulheres serpente e parturientes escamosas Adriana de Castro Dias Bicalho

15

Imago Agens: Um estudo da memória pelo viés do esquecimento Bruna Penna Mibielli

35

Objetos perdidos. Cultura editorial e visual na França do século XIX Ana Utsch

49


81

A estética da ruína como poética Bruno Amarante

107

O corpo recortado: O Bebê Santo de Mâcon de Peter Greenaway Lucia Aparecida Felisberto Santiago

119

Os Pescadores de Goeldi Daniel Prudente da Silva Ferreira

135

Sonho sobre imagens João Diel

141

Norte na Bilbioteca de Warburg Maria do Céu Diel



Influência sem angústia

Maria do Céu Diel


Clinâmen, Tessera, Kenosis, Demonização, Askesis Apófrades;

O artista que lê mal os outros artistas é o grande míope sobrevivente das imagens. Tateia na matéria bruta da técnica e da massa acumulada da história. Ele resvala pelas cacofonias, ruídos, manchas, brechas e pela infiltração de matéria poética, pelo escorrimento das imagens e de substâncias contaminadoras de sua própria vida até então. É deste artista lutar pela sua sobrevivência, na memória de quem está vivo, fazendo imagens. Este artista aproxima-se de outros cuidadosamente, num embate que entre arrebatamento e razão. Empilha as camadas de construção de entendimentos, aderindo e deslocando, fortalecido na troca imaginal. O artista admirador de artistas fortes torna-se uma fortaleza, emanando em suas imagens/textos/vozes direções e sentidos para onde outros seguirão, tateando, dedilhando, escarificando sua própria pele para nela perceber outros organismos, outras imagens corporificadas, fragmentos/células do artista forte vivo. Um quase cego feroz guia através de paredes. Escolhendo a estética como escolha política, o artista forte que lê/vê/ouve outros fortes enxerga-os astigmaticamente, em partículas líquidas e sobrepostas, para poder sobreviver e encontrar-se mais tarde, transformado, desviado.


Clinamen, Tessera, Kenosis, Demonization, Askesis Apophrades;

The artist who reads other artists badly is a great nearsighted survivor of images. He fumbles into the brute matter of technique and into the accumulated mass of history. He skids through cacophony, noises, taints, gaps and through the infiltration of poetic matter, through the leaking of images and substances that contaminate his own life up until now. It is an attitude from this artist to fight for survival, in the memory of those who are living, making images. This artist approaches others carefully, in a wrestle between rapture and reason. He piles the layers of construction of understandings, adhering and dislocating, strengthened by the imaginal exchange. The artist who admires strong artists becomes a fortress, emanating in its imag-es/texts/voices directions and meanings to where others will follow, fumbling, fingering, scarifying their own skin to perceive in it other organisms, other corporal images, fragments/cells of the strong living artist. A furious and almost blind guides through walls. Choosing esthetics as politics, the strong artist who sees/reads/ listens other strong ones do it astigmatically, in liquid, juxtaposed particles, to survive and later find himself transformed, deviant.



Da Primeira Assinatura: onde hรก o hydropythecus, a criatura de Feejee, melusinas, mulheres serpente e parturientes escamosas Adriana de Castro Dias Bicalho


Paramentadas como documentos científicos, as evidências fotográficas dos restos mortais do hydropithecus, da instalação Sereias (2000) de Joan Fontcuberta (Figura 01) na Reserva Geológica de Haute-Provence em Digne-les-Bains, sul da França, irrompem uma pequena angústia, ou uma inquietação1, no âmago da certeza da não existência de certas criaturas2. Nesse conjunto de imagens de despojos descarnados, Fontcuberta retoma o aspecto terrível e suspeito do híbrido humano-peixe, distante da ficção edulcorada de Hans Christian Andersen (A pequena sereia, 1836) e das sereias vitorianas lânguidas como as de John William Waterhouse (Figura 02), Fred Appleyard e John Collier, que por sua vez parecem preceder todo um conjunto de imagens populares dos séculos XX e XXI, cada vez mais infantis e domesticadas. O uso que Fontcuberta faz das ferramentas verbais e visuais dos discursos da verdade científica nesse trabalho (entre outros) é o que faz dele inquietante: em um dos museus do parque, montadas em vitrinas estão as evidências, principalmente fotográficas, 1  Na acepção freudiana de unheimlich. 2  De tempos em tempos esse conjunto de imagens de Fontcuberta frequenta websites de criptozoologia, teorias conspiratórias e jornais populares. Seu último ressurgimento parece ter acontecido por ocasião da exibição, em 2011, do mocumentário (ficção que utiliza o formato de documentário) Mermaids: the body found (e de sua sequência, Mermaids: the new evidence, em 2013), nos canais Discovery e Animal Planet. Os filmes amalgamavam eventos reais e ficção e, em tom de denúncia, apresentavam evidências da existência de hominídeos marinhos, ou dissidentes aquáticos de algum ancestral do Homo sapiens. Entre comentários raivosos de espectadores que se sentiram enganados ou ultrajados, as imagens e especulações sobre a existência de sereias se multiplicaram ao ponto em que foi necessário que a NOAA, Administração Oceânica e Atmosférica Nacional americana (National Oceanic and Atmospheric Administration), publicasse um comunicado em seu website informando que sereias definitivamente não existem.


Figura 01

FONTCUBERTA, Joan. Sirenas, 2000.


Figura 02

WATERHOUSE, John William. The Mermaid, 1900.


Figura 03

CRUIKSHANK, Isaac Robert. The mermaid! | Now exhibiting at the turf coffee house, St James’s Street, 1822.


do achado (que data de 1947 mas só em 2000 foi tornado público pelo governo francês) e também evidências documentais de sua legitimidade, como um exemplar da revista Science, que exibe o esqueleto na capa, além da biografia do descobridor, um certo Jean Fontana, geólogo jesuíta. Também o esqueleto está em exposição permanente no parque, no local onde foi encontrado (ou montado). Tais aparatos da razão, transformados em ornamentos pela arte, mobilizam terrores arraigados e esquecidos, para além de uma monstruosidade explícita, que já não tem mais tanto poder - o que comove na obra é a incerteza e a ameaça de uma eminente desordem do mundo. Como os aparatos da verdade científica são automaticamente admitidos, resta perguntar: se sereias existem, o que é o humano? E o que mais poderá existir? Como em grandes cataclismos, a natureza parece subitamente transbordar dos limites estabelecidos pelos homens. Esse espécime preternatural ergue-se sobre uma tradição de híbridos humanos-peixes, predominante femininos3, cuja porção animal está abaixo da cintura. O hydropithecus esqueletizado situa-se no limiar do humano (como as demais monstruosidades híbridas homem-animal) sem no entanto ultrapassálo - não é puramente divino ou animal, posto que ambos residem na alteridade radical (GIL, 2006: 14-17). Como monstro, conjura ao mesmo tempo as ameaçadoras forças da desordem que emanam da animalidade e da divindade. Assim parece-se pouco com as sereias quase sempre dóceis, translúcidas e prateadas do repertório imagético vitoriano. Os duplos de provável origem oriental (Figuras 03, 04, 05), dos quais o mais famoso exemplar é a sereia de Feejee (ou Fiji), que assombravam a graça pálida das sereias das pinturas pré-rafaelitas, apresentam-se como parentes mais viáveis, tanto na 3 Embora Fontana (ou Fontcuberta) declare na documentação da exposição que não foi possível determinar o sexo do espécime.


promiscuidade encarnada de fato e ficção, quanto na monstruosidade. Na Europa e nos Estados Unidos, nos espetáculos então vulgares nos circos, museus e espaços independentes, eram exibidos com muito alarde e comoção esses exemplares habilmente confeccionados de troncos de macacos e caudas de peixes, pele ressequida e enrugada, pêlos e dentes protuberantes. Ainda que não fossem completamente ignorados pela ciência do período, posto que alguns profissionais até se dispunham a examinar os espécimes esporádicos, o debate sobre a autenticidade e a existência das sereias já era então principalmente domínio dos amadores (BONDESON, 1999: 4546). A história da sereia exibida em Londres a partir de 1822 e que, acredita-se, tornou-se a sereia de Feejee (BONDESON, 1999: 49-50) alguns anos depois nos Estados Unidos, é quase uma fábula do homem seduzido pelo encanto do monstro marinho: seu primeiro dono ocidental, o Capitão Eades, maravilhado com a criatura que encontrou em viagem ao oriente, vendeu sem autorização o navio pelo qual era responsável para comprá-la. Ao retornar para Londres exibiu-a durante alguns anos até a banalização esgotar toda a aura de novidade e possibilidade de lucro, deixando-o à mercê do dono do navio vendido, que, ao que parece, o fez trabalhar de graça o resto da vida para quitar suas dívidas (BONDESON, 1999: 49-50). No ocidente, foram os séculos XVI e XVII a era dourada dos híbridos monstruosos confeccionados por virtuosos artesãos para abastecer o mercado de mirabilia - a confluência de novas técnicas de preservação e a abundância de imagens de referência asseguraram a encarnação de muitas criaturas imaginárias. Embora a autenticidade dessas criaturasimagem e criaturas-objeto já fosse debatida (bem como a veracidade dos relatos de avistamentos), a importância dessa discussão não era exatamente


Figura 04

CRUIKSHANK, Isaac Robert. The mermaid! | Now exhibiting at the turf coffee house, St James’s Street, 1822.


Figura 05

SCHOTT, Gaspar. Physica Curiosa, sive mirabilia naturae: 401, 1662.


Figura 06

The Ashmole Bestiary, SĂŠculo XIII.


Figura 07

Mélusine en son bain, épiée par son époux Raimondin. Roman de Mélusine par Jean d’Arras, 1450-1500.


central (FINDLEN; SMITH, 2002: 306-311). Foi a episteme clássica que encerrou a paixão por híbridos e separou, além de macacos e peixes, fatos de lendas. Na destituição de todas as camadas de histórias dos seres em direção a uma observação direta e plana, as sereias expostas perderam sua textura de invenção e delas pareceu restar só o ornamento e a fábula – é a partir de então que os aspectos pagãos das potências tectônicas e aquáticas das sereias principiam a inquietar. No início da era moderna, enquanto ainda frequentavam os mesmos espaços do saber e do ver as sereias, as hidras, os cavalos, as aves do paraíso, as mulheres barbadas, os rinocerontes, os unicórnios e as galinhas, parece prevalecer a forma-monstro (Figura 06), principalmente admitida como maravilha. Mas sob a tutela cristã, durante a Idade Média, as sereias ganharam pente e espelho e atuaram como figuras moralizantes para advertir especialmente sobre os perigos da vaidade, dos artifícios e dos encantos femininos (Figura 07). As sirenas gregas4, híbridos de mulheres e aves, que tentaram Ulisses e sua tripulação, parecem fornecer um modelo para o tormento das paixões descomedidas desencadeadas por mulheres sinistras. Em seus aspectos positivos, as sereias também aparecem como símbolos do mar, da eloquência e da sabedoria, nas iluminuras e na heráldica. O duplo da sereia sedutora parece ser a Melusina, personagem de lendas medievais descrita ora com cauda bipartida (sirena bicaudata) de serpente (e eventualmente asas de dragão) ora com cauda de peixe (Figuras 08 e 09). Contam as lendas que um cavaleiro encontra-se com a Melusina em uma floresta ou riacho e imediatamente apaixonase e propõe casamento. A Melusina só aceita a 4  Confundem-se as formas das sirenas gregas e das sereias.


proposta sob determinadas condições: em algumas versões, o cavaleiro não deve ver a esposa banharse; em outras, está proibido de vê-la banhar-se aos sábados; uma versão diferente conta que o esposo não deverá ver os partos da Melusina. Obviamente o cavaleiro desobedece a proibição e espia a esposa nessas situações para descobri-la metade serpente, ou serpente bipartida, ou metade peixe ou dragão. A punição do esposo é o abandono. Desenha-se aí uma relação subterrânea entre a água, serpentes, peixes e o parto, e segredos femininos aterrorizantes. Eventualmente são também mulheres-serpentes que tentam Eva e Adão (Figura 10). O projeto cristão de fabular e apaziguar as sereias certamente não apaga delas os rastros de suas existências como divindades pagãs - na sereia de Jean Fontana está a matriz da deusa síria Atargatis ou Afrodite Derceto (Figuras 11 e 12). Persiste no esqueleto contemporâneo a potência das antigas deusas da água e da terra, dos mistérios femininos da fertilidade, gravidez e parto, das criaturas das margens que conduzem o caos – é preciso criar sentido e ordem, atribuir humores e relações de causa e consequência à “maravilhosa indiferença da Natureza” (Figura 13).


Figura 08

JOFRÉ, Joan. Sirena de dues cues amb les inicials II. València, 1502-1530.


Figura 09

Michelangelo. Queda do Jardim do Éden e Expulsão do Paraíso, 1509-1510.


Figura 10

KIRCHER, Athanasius. Decerto, Oedipus Aegyptiacus, 1652.


Figura 11

Atargatis


Figura 12

Sirenomielia. Pathology specimen (1963) preserved in formaldehyde was provided by the Department of Clinical Laboratory Sciences at the University of Cape Town (UCT Digital Pathology Teaching Collection).


Figura 13

Sirenomielia. Pathology specimen (1963) preserved in formaldehyde was provided by the Department of Clinical Laboratory Sciences at the University of Cape Town (UCT Digital Pathology Teaching Collection).


Referências ASHWORTH, William B. Remarkable humans and singular beasts. In: The age of the marvelous. Hanover: Hood Museum of Art, 1991. Capítulo 6, p. 113144. BONDESON, Jan. The Feejee mermaid an other essays in natural and unnatural history. Ithaca: Cornell University Press, 1999. FINDLEN, Paula; SMITH, Pamela H. Merchants & marvels: commerce, science and art in early modern Europe. London: Routledge, 2002. GIL, José. Monstros. Lisboa: Relógio D’Água, 2006. Grizzly Man. Direção de Werner Herzog: Lions Gate, 2005. DVD. OCEAN Mysteries. In: MarineBio.org. MarineBio Conservation Society, 2013. Acesso em: setembro/2013. Disponível em: <http://marinebio. org/oceans/mysteries/index.asp>. WARBURG, Aby. A renovação da antiguidade pagã: contribuições científico-culturais para a história do Renascimento europeu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. I. Tradução Sérgio Paulo Rouanet et al. São Paulo: Brasiliense, 1985.


Imago Agens: Um estudo da memória pelo viés do esquecimento Bruna Penna Mibielli

Este artigo pretende refletir sobre a memória, o esquecimento e a invenção, buscando na filosofia, nas artes e na literatura inspiração e entendimento do universo das imagens. Dante, Aristóteles, Bergson, Bloom e outros autores fortes são evocados para apresentarem as suas teorias e entrelaçar este material é procurar um caminho para a prática artística e a pesquisa. Parece que pervagar pelas estâncias da memória é também visitar os lugares do esquecimento e deste movimento surgem brechas que possibilitam a manifestação da invenção. Será no inferno de Dante ou nas viagens do tempo de Aristóteles que se encontra a brecha da invenção? Pode ser que seja nas relações do homem com o mundo que o cerca por meio de imagens na teoria de Bergson ou na angústia da influência de Bloom. A memória está repleta de lembranças, algumas delas já veladas e opacas pelos efeitos do esquecimento. Quando surge no presente uma necessidade de busca de uma dessas lembranças, a memória abre uma brecha, a da invenção, que faz com que a lembrança opaca se transforme e se encaixe à necessidade do agora. Invenção! É com ela que a machina memorialis gira as suas engrenagens e renova a memória.


Aquele que se propuser a refletir sobre a memória, há de visitar a deusa da memória Mnemosyne (em latim, memória), que está próxima à luz, ao sol. Ao lado dela vê-se Lete, a deusa do esquecimento, que, em forma de rio, é escura como a noite. Os humanos estão sempre a caminho de seus santuários para evocarem as deusas com pedidos de ajuda para a lembrança e para o esquecimento. Dante Alighieri, no seu livro “A Divina Comédia”, relata no poema Inferno, a presença do rio Lete, mas de cujas águas as almas nesse estágio de penação não podem usufruir para esquecer de seus pecados, pois têm de lembrar seus erros e por eles sofrer. “E ainda eu: “Mestre, aonde se confina Letes ou Flegetonte? De um te calas, D’outro contas da chuva que o origina”. “Com tuas questões por certo me regalas”, disse, “mas desta rubra água a fervura uma devia solver das que me falas. Letes verás, mas fora deste lura, Lá onde se banha a alma penitente E, contrita, da culpa se depura”” (Alighieri, 2008, Canto: XIV, Estrofes: 130/133/136 - p.107) Partindo dessa abordagem alegórica se descobre a importância dos movimentos de reminiscência e de esquecimento que são apresentados de formas tão diversas no legado cultural literário, contudo este artigo pretende ressaltar ainda questões filosóficas e artísticas dentro do mesmo tema. Sobre os acessos à memória, fica claro o uso da machina memorialis, instrumento mental que une a lembrança pura, que é aquela ligada à percepção imediata das coisas, à lembrança imagem5, que é um 5  Lembrança Pura e lembrança imagem são termos trabalhados por Henri Bergson na obra Matéria e Memória


grande inventário de reconhecimentos do mundo. Visitando o edifício da memória, percebemos imagens agentes ou atuantes (imago agens) que fazem girar a máquina da memória. No processo de reminiscência (no latim reminiscentia), as lembranças aparecem devido às visitas aos lugares da memória (latim; permeare, pervagari, percurrere) e se apresentam como cintilações coloridas, phantasiai (imagens ícone, completas, que no grego entende-se por phantasmatha e no latim; imagines), que ultrapassam os véus do passado e aderem ao presente, agregando mais imagens a essa memória que se expande. “Há sempre algumas lembranças dominantes, verdadeiros pontos brilhantes em torno dos quais os outros formam uma vaga nebulosidade. Esses pontos brilhantes multiplicam-se à medida que se dilata nossa memória” (Bergson, 2010, p.200). Em latim, Inventio está relacionado a invenção e inventário. A invenção e a criação, por sua vez, estão ligadas à manifestação da memória em função de um inventário, uma organização, uma ordem que coloca as coisas em seus devidos lugares. A partir desse material organizado é que se cria. Do ponto de vista mnemotécnico, tudo no mundo é imagem e resta-nos identificar as relações entre elas. O corpo é uma imagem que se relaciona com outras imagens, que podem ser externas ou internas e é também um centro para qual as outras imagens convergem e onde buscam uma representação. A percepção é a manifestação da sensação, que liga a imagem externa ao nosso corpo e as sensações são um elo entre o externo e o interno, a que quase podemos desperceber do corpo que se mostra, nesse caso, sendo um mediador. As imagens internas são as imagens mentais, a memória, já o cérebro é um no capítulo III, Da sobrevivência da imagens. A memória e o espírito.


condutor, uma máquina, que faz a ligação entre as imagens externas e as internas. Não se sabe ao certo, contudo, onde é que a memória em si, a lembrança, habita.6 Parece existir dois tipos de memória: a memória de fatos do passado, que se apresenta sob a forma de imagens-lembranças e a memória relacionada a movimentos, exercícios, ligada às memórias do presente. Dessas duas memórias, uma é de caráter imaginativo e reminiscente, e a outra repetitiva, como algo que se decora. É possível, ainda, identificar dois tipos de lembrança: uma é a lembrança real, de fatos ou coisas marcantes, que é como um ponto brilhante e de coloração viva. A outra é a inventada, que nasce quando a lembrança real, em meio aos véus da memória, tenta se enganchar ao presente, mas fica um pouco turva por não ser uma lembrança forte, e acaba se transformando, muitas vezes, em invenção. Portanto, a invenção é grande amiga da memória. Elas peregrinam juntas pelo edifício da memória. É com a invenção que nos prevenimos do esquecimento. Quando se esquece algo muito importante do passado, procura-se por uma dica ou pequena lembrança, que leve a um de muitos enganchamentos possíveis e assim a memória se reinventa a cada acesso. Consideramos a amnésia de fatos importantes da nossa vida como um esquecimento do conhecimento que temos de nós mesmos, mas, por outro lado, esse esquecer, que lembra um arquivamento, também é importante, para que se dê espaço às novas memórias. Esse processo é a letotécnica, uma técnica do esquecimento fundada em Lete, o rio do esquecimento. O tratado “Memoria Artificial ou Modo para Acquirir Memoria per Arte” de Álvaro 6  As relações entre corpo e alma são tratadas mais profundamente por Bergson na obra Matéria e Memória nos capítulos I, II e IV e também no diagrama apresentado na página 178.


Ferreira de Vera aborda o esquecimento por meio de alegorias, no qual lemos: “Regras para nos esquecermos. Estes espaços hão de servir somente como de estalagem para uso daquelas coisas que depois de ditas e recitadas uma vez, em público ou em segredo, não são mais necessárias na memória. E porque umas se confundem com outras e as imagens que primeiro se puseram, impedem as que de novo queremos pôr, se necessário, lançar fora estas figuras, quando quisermos pôr outras em seu lugar. O primeiro remédio será imaginar que naqueles painéis estão umas cortinas negras e quando quiser esquecer-me, corre-las-ei com a imaginação (…)”7 (VÉRA, 1631, p.75) Sobre as técnicas do esquecimento, um ponto que parece se repetir é o esquecimento via escrita, pois atuando no suporte, a escrita aprisiona de certa forma uma memória. Será que o ato de escrever algo em um papel pode estimular a memória mas também ao contrário, favorecer o esquecimento? 8 O autor pode, mediante o exercício, reter o texto e jamais esquecêlo, ou tirada sua responsabilidade sobre ele, jamais lembrá-lo novamente. É claro que após a invenção da escrita passamos a ter acesso a uma enorme memória cultural, mas se formos relacionar à memória natural das pessoas, que passavam o conhecimento geração por geração via oral, claramente a escrita as dispensou dessa tarefa. Sobre as questões da invenção, parece que pervagar pelas estâncias da memória é também visitar os lugares do esquecimento. Ambos situados no passado, 7  Tradução minha do texto em português arcaico 8  Sobre o esquecimento via escrita grifo o capítulo IV do livro Lete: Arte e Crítica do Esquecimento de Harald Weinrich, mais especificamente o tópico 4: Por que é preciso esquecer completamente o nome Lampe? (Kant), no qual o autor descreve o caso de Immanuel Kant que escreveu em um papel o nome do criado Lampe na tentativa de esquecer.


só aparecem para aqueles que tenham consciência de seu lugar no tempo. “Corollaries. But for this, memory would not belong to animals lower than man, and perhaps to no mortal animals. Even as it is, it does not belong to those animals which lack perception of time.” (ARISTÓTELES, 2006, p. 49) A invenção é um processo que se dá quando, em um acesso à memória, só se consegue enganchar lembranças turvas ou veladas, ou seja, que já estão atordoadas pelos efeitos do esquecimento e é esquecendo que se cria. A criação não pode partir do nada, ela começa com o inventário de memórias veladas e misteriosas que, quando são percebidas assim, tentam trazer do presente novos brilhos para se adornarem e se tornarem fortes e brilhantes. No final do processo de invenção o que temos é uma lembrança inventada e ao longo da vida precisamos ir renovando a memória dessa forma, para que as antigas lembranças sejam úteis no reconhecimento do presente e este, por sua vez seja parte da memória em expansão. A invenção em si deve ser uma necessidade nascida no passado, já que o que nasce no presente é a necessidade do lembrar, e deve também partir deste material arquivado na memória que depois de recriado, passa a atuar no presente. “It is apparent, then, to which part of the soul memory belongs, namely the same part as that to which imagination belongs. And it is the objects of imagination that are remembered in their own right, whereas things that are not grasped without imagination are remembered in virtue of an incidental association” (ARISTÓTELES, 2006, p. 49) A imagem velada que vem da memória ocultada pelos véus do esquecimento pode ser chamada de


phantasmata, nome este que está diretamente ligado com a origem de outro termo grego: phantasia cujo entendimento em latim é dado pela palavra imaginatio, portanto, é possível se aceitar a relação entre as imagens phantasmata e o universo da invenção, imaginação e fantasia. A invenção, portanto, é um processo que recolore as lembranças veladas, que já sofreram atuação do esquecimento. Essa cor é trazida do presente, é uma atualização em relação às novas imagens que se apreende da experiência, da percepção do mundo que nos cerca. O nosso olhar sob o presente sofre sempre a influência do passado. O corpo que apreende a experiência no presente não é livre, pois precisa se remeter ao passado para conseguir entender o que está a sua frente. O presente sofre a angústia da influência9 do material arquivado na memória de experiências passadas. E o que acontece quando esse material está ocultado pelo esquecimento? Quando a experiência do presente só consegue se remeter a memórias turvas e enfraquecidas, abre-se uma brecha para o presente ter mais influência que o passado, sob a memória que está sendo construída no momento e o que surge aqui é a invenção. A invenção é portanto um processo de afastamento do passado e das experiências já vividas, mas por outro lado a invenção só acontece tendo como matéria prima o material do passado mesmo que este esteja parcialmente ou completamente velado. Estudar a memória é assumir um movimento constante no tempo de imagens da mente que deslizam do presente para o passado e vice e versa e agregando ocasionalmente imagens inventadas que 9  Termo cunhado por Harold Bloom no seu livro A Angústia da Influência, no qual ele defende para o campo literário a presença de uma influência poética entre autores mestres e seus sucessores. Na minha pesquisa eu desloco essa teoria para as questões da memória e a relação entre o passado e o presente e também para o campo artístico.


participam igualmente do processo de reminiscência. Ainda executamos o movimento no espaço, do corpo que se oferece ao seu entorno buscando representações e interiorizando-as. “(...) o espaço parecendo então conservar indefinidamente coisas que aí se justapõem, enquanto o tempo destruiria, pouco a pouco,estados que se sucedem nele.”(BERGSON, 2010, P.168) O passado impera portanto sob o presente, mas quando o esquecimento abre as brechas o material do presente consegue dar mais brilhos as memórias veladas, fazendo isso por meio da invenção. Esse parece ser um processo rotineiro, já que a memória está sempre sofrendo os efeitos do esquecimento e também com o mesmo peso ela se renova a cada instante. Além disso, as experiências do presente não poderiam criar uma nova lembrança a cada instante desvinculada das lembranças precedentes, porque desta forma possivelmente elas não se ligariam à memória e se perderiam. Por isso o esquecimento é necessário, para que a memória possa se renovar, se inclinar sobre o presente e também inventar, criar imagens para preencher as lacunas que o esquecimento criou. Na teoria da relação do corpo com a mente proposta por Bergson temos essencialmente uma relação entre imagens, na qual o nosso corpo é uma imagem central para a qual as imagens externas se convergem, acessando por meio da percepção as memóriasimagem que descem de encontro às imagens do presente, se unindo, se modificando e se ampliando em função da utilidade atual e subindo novamente aos confins da memória, em um movimento contínuo e idas e vindas.10 Concluindo, o material 10  Consultar o livro Matéria e Memória de Henri Bergson entre as páginas 173 e 191, nas quais o autor apresenta os movimentos da memória e do corpo em relação ao universo e ainda apresenta dois diagramas


que se encontra na memória deve ser composto pelas experiências anteriores, pelas atuais e pela invenção, tudo se unindo e se transformando em novas imagens, em lembranças atualizadas. Deve ser um conteúdo múltiplo e rico em detalhes que modificam seus elos de união e também a si próprias. Caminhamos para o futuro nos inclinando sobre o passado e o presente quase não se percebe pois é um instante muito rápido. Fazemos este movimento no tempo, misturando as novas experiências vividas no presente, buscando entendimento no passado e quando se depara com memórias veladas, fracas e esquecidas, ativamos o potencial inventivo para conseguir jogar essas imagens no presente a fim de torná-las parte da experiência e adorná-las com novos brilhos, para quando elas retornarem ao passado sejam novamente memórias fortes e cintilantes. As imagens e os movimentos mnemônicos são uma bela metáfora para a prática artística e literária. As imagens que o artista cria ou os textos que o autor escreve, são fruto de um esforço incansável por misturar o material do passado com o do presente. São resultado de um apelo que parte do presente, corre até à coleção de imagens do passado, se depara eventualmente com o esquecimento e dispara o potencial inventivo, criativo. O artista está sempre em débito com os seus predecessores e sob a angústia da influência da obra desses últimos. Isso porque percebe que só se inclinando sobre o passado e entendendo os seus mestres é que vai conseguir achar a brecha para a criação. Na teoria de Bloom, essa brecha é o desvio, é quando o artista autor, já se entregou para o seu mestre a ponto de “entender mal” os seus ensinamentos, como que um processo de generalização11 ou esquecimento da sua esquematizando a sua teoria. 11  Aqui faço uma aproximação entre os conceitos de “interpretação errônea” ou o “ler mal” sugerido por


teoria e só depois de se entregar é que ele consegue se desviar do mestre. “A Influência Poética – quando diz respeito a dois poetas fortes, autênticos -, processa-se sempre através de uma leitura má do poeta anterior, um acto de correção criativa que é realmente e necessariamente uma interpretação errônea.” (BLOOM, 1991, p.43 e 44) Caso o artista-autor não se desvia, morre com o mestre, com a teoria e as imagens desse último, pois não foi capaz de achar um novo caminho. Academicamente ele ficaria preso ao revisionismo eterno da obra do mestre. Portanto a prática artística possivelmente nasce do tumultuoso e incerto dialogo entre o passado e o presente, entre a memória e a experiência atual, das relações entre complexo corpo e mente. Caso o ponto de partida da experiência do viver e do criar seja um material previamente apreendido, estocado na memória em forma de imagens, este material deve ser a consciência que temos de nós e do mundo a nossa volta e poderíamos chamar todo o resto de inconsciente, este, por sua vez, formado por todo o material ainda não experenciado, aquilo que não percebemos com o nosso corpo e que não estabelece contato com a nossa mente. Se colocarmos porventura o nosso corpo em contato com as coisas do inconsciente, traremos as imagens que previamente estavam longe, para perto do nosso centro perceptivo e assim podemos começar a estabelecer o contato com o consciente que é aquela coleção que já se conhece e que se encontra no passado e portanto não mais no corpo, mas na mente, porque o corpo atua unicamente no presente. A imaginação deve nascer do movimento das imagens Bloom e os entendimentos entorno de generalização estabelecidos em Bergson.


do presente caminhando em direção às imagens do passado e assim o artista é capaz de realizar a obra ou o autor de escrever o texto. A obra criada, inventada, nasceu com certeza no passado e terá que percorrer o caminho inverso e vir se deparar com o presente novamente. Ou seja, o artista não só usa o potencial criativo para renovar suas memórias, mas também aprende a percorrer este caminho da criação e invenção para gerar suas obras e devolver ao mundo um material modificado pela sua criação. A invenção que acontece nos movimentos da memória pode ter então, relação com a invenção e a criação do universo do artista e, se o artista busca no passado suas influências e seus predecessores para descobrir o seu próprio caminho, ele faz exatamente o mesmo movimento de um corpo no presente buscando no passado entendimento. Ele se entrega totalmente ao legado de outro artista ou autor do passado, mas precisa se afastar pois senão será consumido por este autor forte. O afastamento é como um esquecimento da obra do predecessor. Assim é possível caminhar em direção à criação. Se este artista do presente se afasta, se desvia, ele achou a brecha para a invenção, para a criação da sua própria obra, quando ele pode misturar o passado com o presente e ser autor do seu futuro. Avaliada dessa forma, a criação é para o artista algo muito similar ao que a invenção é para a memória.


Bibliografia ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. São Paulo: Editora 34, 1998. ARISTÓTELES. De Memoria et Reminiscentia, traduzido para Aristotle on Memory. (trad.) R. Sorabji, 2a.ed. EUA: The University of Chicago Press, 2006. BERGSON, Henri. Matéria e Memória. (Trad) Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2010. BLOOM, Harold. A Angústia da Influência. Lisboa: Cotovia, 1991. BOLZONI, Lina. La Estancia de la Memoria. Modelos Literários e Iconográficos en la Época de la Imprenta. (Trad.) Giovanna Gabriele. 1a.ed. Madrid: Cátedra, 2007. CARRUTHERS, Mary. The Craft of Thought. Meditation, Rethoric, and the Making of Images, 400 – 1200. New York: Cambridge University Press, 2008. CICERO. De Inventione. De Optimo Genere Oratorum. Topica. (Trad.) H.M. Hubbell, Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press – London: William Heinemann Ltd, 1960. OLIVEIRA, Maria do Céu Diel. Escritos. Campinas: Império do livro, 2011. MACIEL, Maria Esther. A Memória das Coisas: Ensaios de Literatura, Cinema e Artes Plásticas. Rio de Janeiro: Lamparina Editora, 2004. ROSSI, Paolo. O Passado, a Memória, o Esquecimento - Seis Ensaios da História das Idéias. (Trad.) Nilson Moulin. São Paulo: Unesp, 2010.


VÉRA, Alvaro Ferreira de. Memoria Artificial ou Modo para Acquirir Memoria per Arte. Lisboa: Mathias Rodriguez, 1631. WEINRICH, Harald. Lete: Arte e Crítica do Esquecimento. (Trad.) Lya Luft. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.



Objetos perdidos. Cultura editorial e visual na França do sÊculo XIX Ana Utsch


Antes de penetrar mais uma vez os territórios do mundo editorial francês do séc. XIX, hoje através dos catálogos do editor Léon Curmer, eu gostaria, desta vez, de tentar expor uma aspiração que move meu trabalho de pesquisa e que pela sua dimensão tornar-se rapidamente em um sonho insano de totalidade. Neste sonho as mais diversas formas de manifestação da cultura – literatura, arquitetura, historiografia, tipografia, edição, gravura – se encaixariam perfeitamente em um único objeto, evidenciando seus modos de funcionamento ao leitor arguto, construtor de uma imagem ideal. Neste momento essa imagem se apresenta como um livro perfeitamente impresso em tipografia visualizado (com a profundidade imposta pela técnica) em uma mesa de luz sobre a qual cada uma das 42 linhas, que compõem cada uma das 600 páginas do objeto ideal, se encaixaria perfeitamente em uma sobreposição textual e contextual dispendiosa, mas finita, concreta e palpável. Talvez seja por isso que, movida pelo sonho de totalidade, eu tenha me interessado pelos objetos editoriais perdidos, mas que acumularam seus rastros em outro objeto: o catálogo de editor. E eu não poderia deixar de pensar, neste momento, em uma afirmação trágica de Judith Schlanger que diz: “Explorar a perda também significa mover-se no interior do interminável luto da totalidade”12. Vou tentar assim mover-me no interior deste luto, pois ao eleger como tema de pesquisa a materialidade dos objetos que nos dão a ler e a ver a palavra escrita, fui inúmeras vezes confrontada com o fenômeno irremediável da perda, do efêmero, do apagamento, do esquecimento, em uma palavra, da destruição dos objetos que compõem ou poderiam compor o que nomeamos patrimônio escrito. Este fenômeno é, ao 12  SCHLAGER, Judith. Présence des œuvres perdues. Paris: Hermann, coleção Savoir lettres, 2010, p. 172.


mesmo tempo, frequentemente acompanhado de seu oposto, representado, por sua vez, pela presença insistente dos objetos e das obras, pela multiplicação da palavra e dos rastros de suas materialidades ou textualidades, ou pela multiplicação vertiginosa, não menos problemática, de discursos sobre as obras que existem, deixaram de existir ou nem sequer chegaram a marcar presença corpórea no mundo das letras. A ausência destes objetos – que pode se dar pela destruição, pela adulteração ou pela indiferença – traz consigo a ameaça do apagamento dos sistemas de produção e circulação da cultura escrita. A produção editorial francesa do século XIX é marcada por esta contradição, pois apesar do acúmulo material e discursivo dado pela multiplicação vertiginosa da cultura impressa, muitos dos objetos forjados por esta produção editorial foram negligenciados pela cultura letrada. Contrapondose à enorme diversidade de elementos materiais, nós vamos ver, poucos são os objetos que resistiram à indiferença com a qual as formas de produção, que anunciam a indústria e o capitalismo editorial, são percebidas pela cultura letrada do mesmo período. Daí a dupla autoridade destes catálogos constituídos pela livraria francesa do século XIX: ao mesmo tempo em que eles reúnem o conjunto de elementos materiais que acompanham o aumento inédito de uma produção editorial (aparentemente fragmentada pela variação de estatutos e pelos diferentes usos que lhes foram conferidos), eles apontam, igualmente, o funcionamento dos objetos editoriais no interior do sistema de produção e de difusão das Belas Letras. Contrariamente à evidência imposta pela massificação, a industrialização do mundo editorial não se acompanha de uma estandardização das formas que lhe conferem realidade. A multiplicação desenfreada dos discursos é acompanhada pela multiplicação das modalidades de suas apresentações, que agem como elementos de distinção e de


classificação. Os poderes desta materialidade efêmera obliterada pela passagem do tempo são, portanto, traduzidos nitidamente pelos catálogos de editores. Sob o signo da democratização das letras e das formas, a edição francesa desenvolveu políticas de distinção e de classificação da cultura escrita para construir um fenômeno editorial sem precedentes históricos. E levada pelo luto da totalidade, o que eu gostaria de discutir– através da análise dos catálogos do célebre editor Léon Curmer – é a maneira como os rastros da materialidade das obras impressas no passado podem nos ajudar a identificar os programas literários, editoriais, arquitetônicos e visuais que contribuíram para a formação das diferentes políticas de difusão da palavra e da imagem impressa. Léon Curmer: o livro legível e o livro visível Uma palavra para tentar situar a produção deste editor, Léon Curmer, que marcou duplamente e fortemente a edição francesa do séc. XIX . Inicialmente, ele cria as bases do programa editorial romântico, que fracassou enquanto projeto editorial capitalista, mas que deixou uma forte herança visual. O programa é fundado na união impossível dos opostos: de um lado, a produção de belos livros encadernados e abundantemente ilustrados, amparada pelas novas técnicas de fabricação, e, de outro, o aumento sem precedentes das tiragens visando uma difusão em larga escala apoiada, por sua vez, na política de alfabetização universal. Em seguida, esta pretensão leva Curmer a definir também as novas funções exercidas pela figura do editor no seio da livraria francesa, figura que é, finalmente e oficialmente, desvinculada das atividades relativas à impressão e à venda do livro.


No período que vai de 1830 a 1860, Léon Curmer, é também o primeiro a caracterizar e a sistematizar a função editorial das diferentes materialidades do livro nos seus catálogos. Todos os elementos visuais e materiais são colocados em relevo pelas suas edições e pelos anúncios que as veiculavam: qualidade das gravuras, êxito da impressão tipográfica, variedade de papéis, símbolos decorativos e distintivos (brasões, emblemas, armas) e finalmente uma grande variedade de encadernações. Na célebre carta dirigida ao Júri da Exposição Industrial de 1839, na qual o editor redefine a atividade da edição, afastando-a definitivamente das tarefas exercidas pelos livreiros, o editor distingue e hierarquiza cada uma das funções que formam o conjunto dos ofícios da livraria francesa. Nesta carta, mesmo que Curmer reitere a partilha entre as “artes de pensar” e as “artes de fazer”, classificando as funções da atividade editorial no interior de duas rubricas designadas como a “parte intelectual” e a “parte material”, o editor assegura um local privilegiado à materialidade do livro13. Assim, mesmo que a “parte intelectual” esteja, é claro, distinta dos elementos ligados à manufatura do 13  O editor afirma : “Nós vamos expor aos membros do Júri a indicação de diferentes personagens, aos quais a confecção de um livro encadernado, tal como nós compreendemos, deve recorrer. O estudo consciencioso e aprofundado que nós fizemos de cada uma destas indústrias, nos seus mínimos detalhes, nos permite falar com um rigoroso conhecimento de causa”. (Tradução nossa) « Nous allons mettre sous les yeux de Messieurs les membres du jury l’indication des différentes personnes auxquelles la confection d’un livre relié, tel que nous le comprenons, doit avoir recours. L’étude consciencieuse et approfondie que nous avons faite de chacune de ces industries dans leurs plus minces détails nous permet d’en parler avec connaissance exacte. CURMER, Léon. « Note présentée à M.M. les membres du Jury central de l’Exposition des produits de l’industrie française sur la profession d’éditeur et le développement de cette industrie dans le commerce de la librairie française », 1839.


objeto, Curmer não concebe a produção da cultura impressa e literária sem a passagem irremediável por um processo essencialmente material que convoca inúmeros personagens capazes de concretizarem o etéreo mundo das letras. Todas estas reivindicações que unem incontestavelmente dois mundos que a cultura ocidental tende ainda hoje a separar fazem dos catálogos do editor francês verdadeiros florilégios das formas editoriais do passado. Partamos de um documento exemplar, o Catálogo da Livraria Léon Curmer de 1844, no qual uma rubrica especialmente concebida para expor as diferentes qualidades de encadernação propostas pela editora ganha a forma de um texto elogioso sobre as práticas editoriais por ela desenvolvidas: Os cuidados dados à encadernação exigem uma grande atenção. Nossos ateliês especiais nos permitem fornecer, em curtos prazos e a preços inferiores aos dos outros editores, os trabalhos mais variados. Sob a nossa direção, a joalheria dos livros transformou-se em uma necessidade. Nós contamos com a contribuição dos grandes talentos do nosso tempo e eles realizaram os mais ricos livros, os mais brilhantes que jamais foram vistos. Nós nos encarregamos ainda da apresentação de bibliotecas particulares e oferecemos assim os cuidados necessários ao acondicionamento de livros preciosos que nos são confiados, adicionando gravuras de primeira qualidade, vinhetas coloridas feitas pelos mais importantes artistas. Nós podemos ainda renovar as gravuras antigas manchadas ou tiradas em pequeno formato.14 Este texto, que ganha evidentemente a forma de uma autopromoção publicitária, cara aos editores românticos, indica claramente o status adquirido pelos inúmeros elementos que formam a materialidade do 14  CURMER, Léon(éd.). Catalogue de la librairie de Léon Curmer. Paris: Léon Curmer, 1844, p.6, (tradução nossa).


livro no seio da edição industrial. Além da atenção especial dada à encadernação, primeiro paratexto do livro que foi amplamente valorizado pela edição europeia do século XIX15, o editor convoca práticas de distinção dos exemplares até então reservadas ao mundo restrito da bibliofilia. Ao mesmo tempo em que ele exalta de forma contundente a qualidade de suas encadernações, joias que se transformam em uma necessidade no interior do programa editorial romântico, o editor coloca em relevo a modicidade dos preços e a rapidez da execução, dois predicados imediatamente opostos ao tradicional mundo das artes do livro.

15  UTSCH, Ana. La reliure en France au XIXème siècle. Programmes éditoriaux, marchés du livre et histoires des textes. Tese de doutorado, sob a direção de Roger Chartier. Paris : EHESS, 2012.


Imagem 1 - Anúncio relativo à fabricação de encadernações. Catalogue de la Librairie Léon Curmer, 1844. (Bibliothèque nationale de France, série Q10).


O mesmo catálogo, que se vangloria de seus preços acessíveis como apelo direto a um público mais vasto não necessariamente habituado aos usos tradicionais do livro, apresenta ainda uma rubrica destinada à venda de brasões, armas e atributos de diferentes valores simbólicos. Com este anúncio o editor se apropria de práticas ligadas à mais alta tradição da encadernação nobiliária, herdeira dos usos aristocráticos do livro. Lembremos que a singularização extrema do exemplar se estabelece através da inscrição dos brasões e das armas de grandes famílias sobre as pastas das encadernações, que são assim ligadas obrigatoriamente à imagem de seus proprietários ou de seus donatários. O editor Léon Curmer inaugura, com efeito, uma forma de industrialização dos signos seculares de distinção concebidos pela aristocracia e com o apoio de um atelier de “desenhistas especiais” (a expressão é do editor), ele propõe a reprodução de todo tipo de elemento distintivo.


Imagem 2 - Anúncio relativo à venda de brasões, emblemas, armas e atributos. Catalogue de la Librairie Léon Curmer, 1844. (Bibliothèque nationale de France, série Q10).


Esta prática pode ser lida como uma fórmula astuciosa de conquista de um novo mercado de colecionadores desejosos de se apropriarem dos elementos de distinção caros à esfera da bibliofilia, esfera que conhece uma expansão inédita no mesmo período16. Mas a contradição torna-se manifesta quando o editor utiliza um argumento econômico para colocar em valor a venda de símbolos próprios a uma prática nobiliária que tradicionalmente não é comercializada. O anúncio que figura no seu catálogo mostra que o argumento econômico impõe um desacordo inerente entre o luxo convocado pela prática e as aspirações democráticas que poderiam ser traduzidas, com uma evidente carga de ironia, pela palavra de ordem: “emblemas para todos!”: Nós nos encarregamos de gravar os emblemas e brasões para encadernações, de maneira que cada pessoa pode, a preços módicos, ter marcas e símbolos de distinção sobre todos os livros de suas bibliotecas. 17 Estas propostas situam-se sem dúvida na prorrogação direta de uma prática de distinção social capaz de reativar as fórmulas de afirmação de poder asseguradas pelo Antigo Regime. Contudo, investidas de uma nova dimensão social reivindicada pela edição industrial, estas fórmulas transformamse em elementos decorativos que já não garantem suas funções originais, mas solicitam a presença de um certo imaginário de luxo capaz de contrapor-se à mecanização imposta pela indústria. Como tão bem definiu Walter Benjamin, “a publicidade é o artifício

16  Pensemos às grandes obras bibliográficas que marcaram o século, sendo privilegiadamente representadas pela obra monumental de Charles Brunet. Ver notadamente: BRUNET, Charles. Nouvelles recherches bibliographiques. Paris. Silvestre libraire, 1834. 17  CURMER, Léon(éd.). Catalogue de la librairie de Léon Curmer. Paris: Léon Curmer, 1844, p.6, (tradução nossa).


que permite ao sonho impor-se à indústria”18. A inovação inerente ao modelo de Curmer reside justamente na radicalização da prática de singularização do exemplar no centro de um sistema de difusão que visa um vasto público. Estas estratégias desenvolvidas e codificadas pela esfera da bibliofilia não se limitavam à encadernação (o que era próprio de outros editores do mesmo período), mas convocavam igualmente outros elementos materiais apresentados sob a forma de papéis, selos, manuscritos, vinhetas, gravuras, brasões e emblemas. Curmer oferecia ainda a possibilidade de levar a mesma visualidade promovida pelo seu repertório ornamental-editorial às bibliotecas privadas que já haviam sido formadas, mas que poderiam receber um tratamento material em consonância com o projeto estético proposto pela edição romântica emblematizada pela editora. O editor propõe assim toda uma gama de serviços que não são necessariamente ligados à atividade editorial, encarregando-se, por exemplo, de inserir gravuras, desenhos, imagens diversas em volumes antigos que compunham uma biblioteca privada. Trata-se de colocar em prática um dispositivo editorial relativo ao ato de colecionar, pois o editor propõe a reunião de objetos (gravuras, desenhos, cartas, manuscritos, selos, brasões, etc.) – que não foram concebidos para compartilharem o mesmo espaço – no interior de uma mesma unidade material. Esta prática ilustra muito bem as ligações estreitas mantidas entre a edição e a “estética da coleção de objetos”19, pois o livro ganha o status de objeto-fetiche – de objeto-coleção –, podendo mesmo se destacar da coerência precedentemente 18  BENJAMIN, Walter. Paris capitale du XIXème siècle. Le livre des passages. Paris, Éditions du Cerf, 1986, p.190, (tradução nossa). 19  PETY, Dominique. Les Goncourt et la collection. De l’objet d’art à l’art d’écrire. Genève : Droz, 2003, p.165.


assegurada pelo seu conteúdo. Desta maneira o livro transforma-se em bibelô, em curiosidade integrada à sua forma que é por sua vez adulada pela especificidade simbólica de seus atributos materiais. Como materialidade privilegiada pelo ato de “reunir”, o livro se oferece ao sistema de organização da coleção de objetos curiosos. As práticas de justaposição supostas pela formação de um conjunto multiforme caro à coleção de objetos serão, desta maneira, transmitidas àquelas ligadas ao mundo editorial em um momento histórico no qual a coleção de objetos e de livros adquirem status equivalentes, tornando-se uma forma legítima de expressão cultural20. Com acepções adjacentes, estas práticas serão retidas como modelos para a realização de uma materialidade encarnada pela ideia do livro como coleção. O primeiro símbolo desta correspondência aparece precisamente no elogio da variedade das formas, dos títulos, mas também da multiplicidade de elementos decorativos que chegam a se destacar da materialidade do livro para serem apresentados, justapostos e vendidos separadamente dentro dos catálogos de editores. Se para Curmer esta apropriação pode ser traduzida através de uma prerrogativa mercantilista que organiza o novo mercado de bens simbólicos, no mundo da bibliofilia os mesmos dispositivos – inscritos na lógica da compilação que insiste em reunir os vestígios do passado para a composição de uma nova ordem imposta pelo novo objeto ou pelo olhar do colecionador – constituem as bases de um jogo sedutor que atribui valor aos objetos do “colecionável”21. 20  Sobre esta equivalência a obra de Edmond de Goncourt, La maison d’un artiste (1881), carrega os rastros precisos das relações estabelecidas entre o sistema da coleção de objetos e o tratamento material dado aos livros que integram a coleção. 21  Sobre a dinâmica de organização da coleção de objetos e livros estabelecida no século XIX francês e sobre a maneira como esta dinâmica se manifesta na literatura


Les Français peints par eux-mêmes Mas vejamos a maneira como esta justaposição de elementos ao mesmo tempo distintivos e democráticos pode ser traduzida em um anúncio relativo a uma única obra no interior de seus catálogos. Proponho partir da obra exemplar do editor: Les français peints par eux-mêmes. Trata-se de uma das maiores aventuras editoriais do século XIX que pode ser lida como um imenso edifício concebido por Curmer para acolher 140 escritores e uma centena de ilustradores que realizaram 100 monografias descritivas, oferecendo um panorama da sociedade parisiense da primeira metade do século XIX22. Sob a forma de um gênero em voga desde o início do século – a fisiologia ou a literatura de costumes – a obra oferece uma galeria de retratos humanos que ilustram a capital, podendo servir de guia para provincianos e estrangeiros. O livro – que encarna exemplarmente a reformulação das relações dadas entre a imagem e a palavra impressas no séc. XIX – caracteriza, de forma ao mesmo tempo paródica e circunspecta, toda uma sociedade através da criação de tipos humanos, cenas, trajes, retratos, paisagens, atributos, etc.

ver o magnífico ensaio de Dominique Pety: Poétique de la collection au XIXème siècle. Du document d’historien au bibelot de l’esthète. Paris: Presses universitaires de Paris Ouest, 2010. 22  LE MEN, Ségolène ; ABÉLÈS, Luce ; PREISS, Nathalie. Les Français peints par eux-mêmes : panorama social du XIXème siècle. [Exposition au musée d’Orsay, 23mars-13 juin, 1993]. Paris, Réunion des Musées Nationaux, 1993.


Imagens 3 e 4 - Frontispício e índice iconográfico de Les français peints par eux même: Encyclopédie morale du XIXème siècle. Paris : Léon Curmer, 1841. (Coleção particular)


Walter Benjamin, na sua história social da França no século XIX, concebida como uma féerie dialética nas célebres Passagens, designa como “literatura panorâmica” toda esta produção literária que se apropria do cotidiano no interior das mutações de uma escrita jornalístico-literária profundamente ligada à imagem23. A expressão faz, é claro, referência direta ao espetáculo homônimo de Daguerre, extremamente em voga na capital francesa. Assim como nos espetáculos de luz e sombra apresentados pelo diorama e pelo panorama, nos quais o expectador está no centro da cena, a literatura panorâmica, fundada na sua relação com a imagem, oferece um jogo de ilusão que não se inscreve apenas na narrativa da literatura de costumes, mas no ato de espelhamento do próprio expectador-leitor que se faz, privilegiadamente, figura central da ilusão óptica-moral fundada pela diversidade de quadros de costumes e de tipos humanos apresentados textualmente. O catálogo de 1842, que dedica uma página inteira à obra monumental editada em 8 volumes de 1840 a 1842, apresenta todas as modalidades materiais conferidas à edição. O primeiro elemento importante se traduz pela oposição de políticas editoriais que asseguram a própria ideologia da edição romântica: de um lado, as grandes tiragens a preços reduzidos e acessíveis graças ao artifício da venda em fascículo e, de outro lado, a exaltação do luxo e de formas materiais que transformam a edição em objeto precioso. Com efeito, a obra poderia ser adquirida pelos mais desfavorecidos a partir de uma assinatura mensal (50 meses) que variava de 30 a 50 centavos em virtude da qualidade da ilustração (preto e branco ou colorida). Mas cada volume completo poderia 23  Sobre as formas concebidas por uma escrita jornalístico-literária ver o excelente livro de Marie-Ève Thérenty. La littérature au quotidien. Poétiques journalistiques au XIXème siècle. Paris : Éditions du Seuil, coleção Poétique, 2007.


ser também adquirido sob a forma de uma brochura que variava de 15fr (gravuras em preto e branco) a 25 francos (gravuras coloridas). Além desta distinção cada exemplar poderia se guarnecido de uma das materialidades apresentadas igualmente no anúncio: uma “cartonagem elegante com grande opção de cores”, vendida a 17fr; uma “meia-encadernação tradicional” proposta a 20fr e finalmente uma luxuosa “encadernação em maroquin ou chagrin com cortes dourados” que poderia duplicar o preço do volume, sendo vendida a 25 fr. Curmer finaliza este anúncio da obra que celebra o sucesso de todo um programa editorial afiliado ao gênero inaugurado por Sébastien Mercier no final do século XVIII (Les tableaux de Paris), com um elogio da edição que mostra prematuramente o alcance simbólico do projeto editorial: Les français peints par eux-mêmes oferecem o quadro mais variado, verdadeiro e divertido da sociedade francesa atual. Se os nomes dos autores não fossem de antemão um elogio e uma garantia, nós diríamos que em nenhuma época uma obra foi desta maneira adotada com tanta unanimidade e em nenhuma outra época uma obra foi honrada com tanto sucesso. Em seis meses, 18 mil exemplares foram vendidos, uma tradução em inglês, uma em alemão e uma terceira em holandês, um estrondo imenso em Paris, na Bélgica, na Itália, na Espanha, nos Estados Unidos divulgou esta obra em todas as nações civilizadas da Europa; a variedade e originalidade dos desenhos, feitos pelos melhores observadores, entre os nossos artistas franceses, contribuíram energicamente para este sucesso sem precedentes.24

24  CURMER, Léon (éd.). Catalogue de la librairie de Léon Curmer. Paris: Léon Curmer, 1842, p.8, (tradução nossa).


Imagem 5 - Anúncio de Les français peints par euxmêmes. Catalogue de la librairie Léon Curmer. Paris, 1842. (Bibliothèque nationale de France, série Q10).


Esta multiplicação dos estados materiais do mesmo texto, no interior de uma mesma tiragem, cria diferentes horizontes de difusão para o impresso e se transforma em uma prática editorial partilhada por vários editores franceses até as primeiras décadas do séc. XX. Apesar deste acúmulo material de grande dimensão, capaz de oferecer seis ou doze modalidades de apresentação material para uma mesma impressão, estes objetos criados de acordo com a demanda do futuro leitor são hoje inapreensíveis e, como objetos pertencentes a uma produção que anuncia a indústria editoria, foram, durante muito tempo, negligenciados pela cultura letrada. Estas descrições, muitas vezes minuciosas, não nos oferecem a garantia da existência efetiva destes objetos no séc. XIX, mas elas atestam que cada um desses elementos integra um jogo estabelecido entre as formas do impresso e os procedimentos de distribuição dos discursos. Estes objeto perdidos, fragmentados por um sistema de difusão fundado no anonimato, podem ter, é claro, existido apenas potencialmente, mas a presença durável e multiplicada da descrição de diferentes elementos materiais no interior dos catálogos ao longo de todo o século afirma que eles foram favoravelmente recebidos por um vasto público. Catálogos, guias, calendários Mas estas práticas de justaposição de elementos visuais e materiais são ainda exacerbadas pelo mesmo editor em catálogos que assumem outras funções editoriais. Além de transformar estes instrumentos de difusão em verdadeiros florilégios das edições e das imagens anunciadas, Léon Curmer lhes confere uma autonomia como objetos editoriais específicos, metamorfoseando-os em calendários, em álbuns de gravuras ou em guias turísticos que se acordam perfeitamente com a estética convocada pelos conteúdos divulgados. O catálogo de 1844, já aqui analisado, nos oferece


igualmente um belo exemplo dos usos inesperados atribuídos a estes objetos, pois, coerente com o programa editorial apresentado, que tem boa parte de seus títulos dedicada aos textos religiosos de edificação moral, o catálogo transforma-se em um almanaque ilustrado que traz as datas de todas as festas religiosas do ano de 1844. Consciente de dirigir-se a uma burguesia católica afortunada, Curmer confere uma nova função ao seu catálogo que, além de afirmar sua afiliação com o programa editorial religioso, assegura também o uso constante do objeto pelo futuro leitor dos textos anunciados.


Imagem 6 - Calendário. Catalogue de la librairie Léon Curmer. Paris, 1844. (Bibliothèque nationale de France, série Q10)


Imagem 7 - Programa editorial. Catalogue de la librairie Léon Curmer. Paris, 1844. (Bibliothèque nationale de France, série Q10)


Alguns anos mais tarde, em 1858, Curmer opera com acuidade uma síntese dos diferentes usos e apropriações de fórmulas textuais e visuais próprias da sensibilidade romântica colocando em circulação um catálogo apresentado como um álbum de gravuras. Este documento nos oferece um excelente exemplo da maneira como a edição romântica atribui uma nova funcionalidade aos repertórios de imagens que circulavam no interior de seu corpus canônico. Mas ele se apresenta igualmente como um recurso interpretativo que nos ajuda a identificar a rede intrincada de relações estabelecidas entre diferentes formas de expressão da cultura. O catálogo se articula a partir de inúmeras ilustrações que tentam constituir um inventário imagético de todos os monumentos, paisagens e vistas pitorescas da cidade de Paris. As imagens são sempre apresentadas com uma legenda que, além das datas, traz menções sobre curiosidades históricas relativas aos locais e edifícios. Tais como eles se deixam apreender no interior do catálogo, os “monumentos de papel” carregam os rastros precisos da dimensão atingida pela estética do pitoresco no interior dos programas de difusão da livraria francesa do séc. XIX. Desta maneira, estas imagens são ainda mais interessantes quando identificamos que grande parte do conteúdo do programa editorial veiculado pelo catálogo contempla obras nas quais predominam os temas da viagem e da cidade de Paris, objetos privilegiados para uma narrativa ao mesmo tempo textual e imagética. Desta maneira, antes mesmo de oferecer o seu percurso ilustrado da cidade, que não por acaso funciona como um verdadeiro guia turístico, Curmer anuncia toda uma série de obras nas quais Paris é apresentada como a principal personagem: Paris historique, Promenade dans les rues de Paris (1838) de Charles Nodier, L’été à Paris e Un hiver à Paris (1843) de Jules Janin. O catálogo nos mostra ainda


que os locais eleitos pelo editor anunciam as ligações mantidas entre a atividade editorial, a arquitetura e as Exposições Universais, pois o percurso pitoresco faz diretamente referência a uma obra publicada na ocasião da Exposição Universal de 1855: Paris historique et monumental depuis son origine jusqu’à nos jours (1855).


Imagens 8 e 9 - Capa, página de rosto. Catalogue d’Étrennes. Paris, Curmer, 1858. (Bibliothèque nationale de France, série Q10).


Imagem 10 - Anúncio relativo à encadernação seguido de uma vista panorâmica de Paris. Catalogue d’Étrennes. Paris, Curmer, 1858. (Bibliothèque nationale de France, série Q10).


Imagem 11 - Monumentos parisienses. Catalogue d’Étrennes. Paris, Curmer, 1858. (Bibliothèque nationale de France, série Q10).


Imagem 12 - Monumentos parisienses. Catalogue d’Étrennes. Paris, Curmer, 1858. (Bibliothèque nationale de France, série Q10).


Com efeito, parte das ilustrações apresentadas por Curmer no seu catálogo constituíam inicialmente uma edição ricamente ilustrada de uma obra com ambições precisas, expressas notadamente pelo desejo de estabelecer um guia histórico dos monumentos que se encontravam, no mesmo momento, expostos aos olhares de turistas e visitantes de outras partes da França e do mundo. A dimensão pitoresca é afirmada também pela escolha material dos livros oferecidos pelo catálogo. Confrontado com uma paisagem panorâmica, um anúncio sobre a variedade das encadernações coloca em relevo o caráter fantasista dos modelos estéticos concebidos e assegurados pelo ateliê mantido pela editora. Todas estas estratégias editorias, que seriam dificilmente apreendidas fora do catálogo do editor, acordam-se perfeitamente com o corpus textual representado pela literatura de costumes (ou fisiologias) que privilegiou muitas vezes o espaço da cidade para operar a encenação e a listagem da realidade através da constituição de uma reserva de imagens que, partilhando uma sensibilidade comum, pode ser intercambiada entre diferentes instâncias de visibilidade (livros, cartazes, catálogos, gravuras, vinhetas, cartões postais, guias, etc.). Neste caso preciso a capital ilustrada cria uma dupla equivalência entre o legível e o visível, entre o espaço democrático do Livro e o espaço progressista da Exposição. Não é por acaso que Victor Hugo anuncia solenemente no prefácio de uma obra consagrada à Exposição de 1867 – o célebre Paris-Guide : “O livro é Paris”.


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A estética da ruína como poética Bruno Amarante

O texto que apresento confere como resumo da minha pesquisa de mestrado, através da qual a estética da ruína foi trabalhada pelo contexto poético de sua imagem. Referenciado assim o tema: “A Estética da Ruína como Poética”, pretendi a abordagem no campo das artes plásticas, pontuando algumas produções distintas que dialogam com a representação da ruína e, também, analisando meus próprios trabalhos plásticos - estes, adquirindo elevada importância para a pesquisa, pois, tratam-se do ponto germinativo do meu envolvimento com a estética ruinosa. Também ao longo da dissertação, coube-me discutir as semânticas do objeto, referenciando suas qualidades mnemônicas e temporais, apresentando a latência agente de sua imagem como conectores à reflexão da própria transitoriedade da vida.


Analisar a estética ruinosa em distintas produções artísticas e observar as próprias ruínas reais, que coabitam meu espaço, seja este urbano ou áreas rurais e naturais, faz parte do meu campo de interesse. Vejo que estas relações, que trafegam entre a sensibilidade da observação, fruição e as reações desencadeadas, acabaram por influenciar o desenvolvimento do meu trabalho plástico, transfigurando-se nos objetos, esculturas, dentre outras propostas, que venho desenvolvendo já alguns anos. Os trabalhos que apresentei junto à dissertação foram desenvolvidos ao longo destes anos, pelos quais a imagem da ruína tornou-se presente. Grande parte tange o campo da escultura, como objetos desenvolvidos em cerâmica e metal, por exemplo. Alguns trabalhos traduzem-se em instalações efêmeras, construídas com argila e barro. Outros passam ao campo da fotografia, onde a observação da estética ruinosa real, que coabita meu espaço de vivência, é registrada pela câmera e transposta em cartões postais.


O primeiro grupo de trabalho, as esculturas em metal e cerâmica, através de sua materialidade rota e ruinosa, dialoga de modo generalista com o tempo e com a memória. Também joga com a falsificação, fazendo crer que a matéria das peças apresente-se como real. Todas as peças são criações ou recriações de elementos arquiteturais caracterizados como fragmentos erodidos, permeados pela junção do real e do fictício. Sobre estes objetos observo a quase inexistência de títulos e creio que esta característica deve-se ao posicionamento de ter-los como um conjunto. Cada um detém suas particularidades formais (volume, desenho, texturas, cor, peso, forma, etc), mas entre si dividem a mesma simbologia característica que os fazem pertencer a um conjunto: apresentam-se como monumentos mnemônicos e temporais. Emblemas que podem incitar sentimentos quanto a um passado vivido, a uma origem, ou a reflexões sobre o decorrer do próprio tempo e da passagem da vida. Outra parte das propostas constitui-se pela criação de objetos pensados para sofrem reais modificações advindas do tempo, os quais podem ser percebidos como registros temporais. São esculturas, sistemas ou instalações, sujeitadas a ações reais de intemperismo. Estruturas feitas com argila ou tijolos crus provenientes da indústria cerâmica - que são expostas em ambientes abertos, ou integradas a um sistema de gotejamento de água que interfere na forma das peças, causando erosões e recriando a escultura. Estes registros dialogam diretamente com a relação entre o tempo do homem e o geológico, representada pela degradação e fadiga da matéria através das forças do intemperismo. Também fizeram parte, propostas nas quais os objetos criados suportavam em sua própria matéria constitutiva (terra e argila), elementos vivos, como plantas e sementes. Nestes trabalhos os quais






denominei meta-vidas, a ação de transformação da obra não pautou na deterioração estrutural da mesma. Mas na alusão à passagem do tempo cronológico – analogamente ao tempo biológico humano - pelo comportamento de nascer, crescer e morrer a que as plantas foram submetidas. Pensando estes trabalhos vejo que as esculturas feitas em cerâmica ou metal jogam com a dialética da falsificação, entre o que é real ou não. Os registros temporais jogam com a simulação, acelerando e registrando ações de intemperismo. Já os trabalhos meta-vidas jogam com a noção do próprio vir a ser, como Vanitas25 contemporâneos que aludem ao passar do tempo e da vida. Por último, ainda elencando as produções que apresentei na dissertação, os cartões postais, ou antipostais, foram trabalhos realizados através do registro fotográfico de alguns velhos edifícios e casarões abandonados na cidade de Belo Horizonte, que, posteriormente, foram formatados como cartões postais. Chamar-los de anti-postais parte da controvérsia destes locais. Apesar de encontrarem-se abandonados e largados, estes casarões possuem valor histórico para a cidade, seja pela importância arquitetônica seja pela ancianidade intrínseca de cada um. Chegam aos dias atuais como constituintes palpáveis da memória local, como arquivos desta memória. Estas edificações são fantásticas, pois mesmo reais e tangíveis, tornaram-se vácuos dentro da cidade. 25  Vanitas vanitatum memento mori – Vaidade das vaidades lembra-te que morrerás. Os vanitas são gêneros artísticos de simbologia moral. São trabalhados como naturezas mortas: com imagens de frutas, plantas, ampulhetas, relógios ou a própria imagem da caveira. Símbolos que expressam a efemeridade da vida. Que rememoram as futilidades dos excessos humanos diante da certeza do fim.


Não mais condizem com seu entorno, são rotas e decrépitas. Não são habitadas, não são reestruturadas, nem adaptadas, demolidas, não servem mais aos anseios políticos da cidade. Abandonadas, parecem que nem mais existem, ocupam um vazio. Assim, estes edifícios, como cartões postais, ironizam a própria história da cidade, que sempre foi construída sobre a dialética da destruição e construção. Desde sua fundação com a destruição da antiga vila Curral del Rey, aos processos de modernização que foi submetida ao longo do século e até os tempos atuais, com o constante arruinamento de suas antigas casas e edificações para a construção de novos empreendimentos imobiliários. A poética destas ruínas urbanas está expressa por este limiar. Entre o ser e o não ser. Entre a memória e o esquecimento. Dialética existencial que só terminará quando forem tocadas, seja pela demolição ou por adaptações arquitetônicas. Mas até lá continuarão expressando suas poéticas rotas, permanecendo como arquivos de memória da cidade, carregadas de lembranças, histórias e aguçando as reflexões. No desenvolvimento da dissertação, propus a percepção do objeto como espaço de memória. Vejo que as ruínas podem ser apreendidas como fragmentos testemunhais do transcorrer do tempo. Guardam através da própria existência, suas histórias, suas marcas. São imagens que servem à perpetuação e transmissão das memórias, sejam estas sociais ou particulares. Como escreveu Cesare Brandi, a “ruína será, pois, tudo aquilo que é testemunho da história humana, mas com aspecto bastante diverso e quase irreconhecível em relação àquele de que se revestia antes” (BRANDI. 2004, Pg.65). Assim, a memória do objeto, também, joga com esta ausência, com a falta. Sua imagem torna-se, então, estímulo à


imaginação, através do exercício de restituir aquele passado: seus ocupantes, suas histórias, sua estrutura física, etc. Advinda do latim, ruina refere-se ao ato ou efeito de ruir, de queda, de perda: material, ou perda moral, desmoralização. A priori, sentidos, adjetivos e referências que tangem o terrifico, o desolador, o sentimento do fim e do acabado. Mas por outra via a ruína leva à direção deste caminho investigativo que citei, do que pode ser passível à arqueologia, à memória, à ancestralidade dos povos, à história e a arte. Como objetos à memória, determinam níveis de interesses específicos e dividem-se quanto a importância histórica, arqueológica, memória social, individual e sentimental. A força testemunhal pode ligar estes fragmentos a questões ancestrais, vinculando-os a uma origem comum de uma determinada sociedade ou a um mito fundador. Alguns exemplos tornaram-se monumentos históricos, patrimônios culturais, como as ruínas jesuíticas do Sítio Arqueológico de São Miguel das Missões no Rio Grande do Sul. Outros fazem parte do cotidiano e nem se quer são notados. Estes exemplos, geralmente, são ruínas que povoam o meio urbano, constituídas por elementos que perderam sua função dentro do seu meio. Casas, parques, ruas e até cidades, abandonadas ao acaso. Edifícios que não mais servem às concepções econômicas do seu sítio, anacrônicos aos anseios de modismo e de funcionalidade, ou que não representam ou constituem significância às aspirações patrimoniais do meio sócio político que estão inseridos. Geralmente estas ruínas não incitam noções de uma


memória coletiva, como as ruínas de São Miguel. Mas não obstante, trabalharão a memória dos indivíduos íntimos às suas histórias e, também, de atentos e interessados observadores. Dar-se-á então por sentimentos individualizados, oriundos destes espectadores, a quem estas construções permanecem como lugares de memória ou agentes à imaginação. Espécie de sacralidade pagã, leiga e afetiva que é dada ao objeto. Poderia dizer que são como pequenos monumentos particulares, privatizados, de restritos universos pessoais. Observando estas potencialidades mnemônicas do objeto, sua imagem acaba por permear e influenciar criações poéticas no campo das artes plásticas. Assim percebo também a influência da estética da ruína como imagem agente, trabalhada como poética na produção de diferentes artistas. Como mencionei no início deste texto, a pesquisa também faz relação a algumas produções plásticas distintas que referenciam a estética ruinosa, sendo, cada uma, detentora de suas particularidades. Vejamos os trabalhos do arquiteto e gravador veneziano Giovanni Battista Piranesi. Por suas gravuras, percebe-se a magnitude da influência das ruínas romanas em suas águas fortes e a força que o objeto manteve sobre seu processo criativo. Como afirma Luigi Ficacci: “A prancha gravada por Piranesi dava uma imagem totalmente inédita e restituía um mundo inteiramente novo, onde cada elemento conhecido, mesmo dado de maneira exata, era exacerbado por um poder de sugestão extraordinário” (FICCACI, 2001. Pg.07). Memória e idealização, transfigurados para a gravura. Outro artista mencionado, que também manteve extrema força poética ao trabalhar motivos e paisagens ruinosas, mas partindo da herança imagética diferente das ruínas clássicas e romanas, foi o alemão






Caspar David Friedrich. Ele parte da observação do estilo gótico e medieval, e em suas telas e aquarelas a presença das ruínas góticas surgem repetidas vezes. O objeto carrega em sua poética romântica a representação idealizada das forças do pitoresco e do sublime.26 Forças da natureza vinculadas às forças divinas regem, em seu intelecto pictórico, o deslumbramento e reverência à contemplação das paisagens naturais. Suas pinturas, carregadas de exagerada e terrífica realidade, apresentam a criação idealizada e romantizada do passado, como constituinte do presente coletivo, cristão e nacionalista. Assim, como Piranesi formou seu inventário iconográfico a partir das ruínas romanas e criou o passado idealizado, Friedrich retoma o tempo medieval e explora o objeto, a ruína, como espaço nostálgico da memória. Como lembrança de um momento de glória, tanto do homem quanto da Igreja. Também analisei trabalhos de artistas contemporâneos que mantêm a estética de ruína presente em suas produções, como Anselm Kiefer, Claudi Casanovas, Tom Hayes e Marec Secula. Em Kiefer, a estética da ruína encontra-se presente e, novamente, referenciada a reflexões mnemônicas. Contudo, as memórias do passado que este artista trabalha não são saudosistas ou nostálgicas. Seu repertório explora o factual dos horrores da Guerra e do holocausto, como forma de construção e perpetuação de uma memória coletiva, que não deve ser esquecida. Como ele mesmo afirma: “Ninguém vive no vácuo. Há a existência de uma memória coletiva que vai muito além do indivíduo. Para se conhecer, você tem que conhecer sua nação, sua 26  BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo. Campinas, SP: Papirus: Ed. Da Universidade de Campinas, 1993.


história”. (2007 cat. Guggenheim Bilbao). De maneira similar, o ceramista espanhol Claudi Casanovas revive as terríficas memórias da Guerra Civil Espanhola. Cria um memorial em Girona (Espanha), e a estética da ruína torna-se monumento. Seu trabalho assimila as rachaduras e as trincas de um fragmento roto, de um corpo perfurado ou de um destroço. Este memorial consiste em na instalação de um enorme bloco de cerâmica, medindo aproximadamente três por três metros que encontrase no interior de um cubo de concreto. O cubo, feito em placas, deixa somente pequenas fissuras em cada um dos seus quatro lados, não permitindo que o espectador entre em contato com o bloco de cerâmica. Interrupção que se dá não só pelo contato físico com a obra, mas que impossibilita que tenhamos uma visão total da peça de cerâmica. Esta quebra da percepção global da escultura é proposital e segundo Casanovas trabalha a fragmentação da compreensão dos fatos da Guerra civil. Os ceramistas Tom Hayes da Inglaterra e Marec Cecula da Polônia transfiguraram em seus trabalhos o acúmulo da memória e da historia, criando esculturas e instalações que utilizam da estética fragmentária. Haeys relativiza o lastro milenar da cultura chinesa e sua relação com o fazer da cerâmica. A obra analisada encontra-se no Sanbao International Ceramic Art Museum, na China e apresenta-se como uma instalação permanente feita nos jardins do Instituto. Foram feitas algumas colunas constituídas com a mescla de argila local e fragmentos de cerâmica incrustados à massa. Estes fragmentos foram recolhidos no entorno do Instituto e compreendem um estudo arqueológico e de datação. Suas colunas se assimilam ao resultado do ato prospectivo, mostrando, camadas sob camadas, história e memória.


Cecula também expõe fragmentos de utensílios, mas não são exemplares legítimos e sim réplicas criadas pelo artista. A obra que apresentei na pesquisa é a instalação Klepisko, que ele realizou no Katonh Museum of Art nos EUA, em 2008. Foi criado dentro da galeria um segundo piso de terra batida, com cerca de 90cm de espessura, apresentando em sua superfície algumas fissuras semelhantes à erosões. Através destas aberturas podia-se ver amontoados das réplicas dos objetos - jarros, pratos e peças decorativas – como se tivessem sido revelados pela fissura no chão. Cecula diz que seu trabalho, mantém relação com o primitivo de sua cultura, com o lastro formativo do presente, como constituição do aterro histórico. Os fragmentos revelados pela erosão da superfície simulam objetos e artefatos recognitivos à cultura ocidental, representando a formação e sedimentação da história. Nestas manifestações distintas, o objeto é trabalhado de acordo com os motivos pertencentes às particularidades de cada artista. Mas no todo, o que vale considerar é a transfiguração da estética da ruína em propostas artísticas, oriundas do labor consciente entre inventividade e criatividade. Reminiscências e fragmentos que compõem o tempo e espaço de cada artista e proporcionam a relação entre suas obras e a ruína. Destaco a importância das confluências entre minha poética criativa à destes artistas, percebendo que tais pontos de junção, que dividem similitudes quanto à estética da ruína, reverberam em conjunto à discussão sobre esta estética como poética. Indissociável à questão mnemônica intrínseca à estética da ruína, coloquei em discussão durante todo o texto dissertativo, a relação simbiótica entre o tempo e o objeto. Creio que ela, a estética ruinosa, terá sempre aparente a carga da temporalidade, como latência temporal explicitada pela matéria. Compreensão fenomenológica, que exorta e induz à reflexão sobre o passado, presente e futuro.


O passado advém da falta, da incompletude do corpo que outrora estivera intacto. Da superfície danificada que acumula as marcas do tempo vivido. O presente da observação imediata, pela consciência da coexistência entre o objeto e o sujeito que observa, que tateia, coabita. O futuro é relativizado pela deterioração da matéria, ativando a consciência sobre a finitude e sobre nossa condição transitória. Observo que este diálogo entre o tempo e o objeto não mantém uma cronologia, pois a ruína desestabiliza o tempo e confunde esta sistemática linear: passado, presente, futuro. Concerne-se em um corpo que pertence e não pertence ao momento presente, da mesma maneira ao passado e ao futuro. Em cada observador a percepção temporal dar-se-á de acordo com suas singularidades. Vejo que em meus trabalhos o tempo a memória e a história, aglutinados ao mundo sensível da criação, jogam dialeticamente com a realidade e a inventividade. Estruturas sedimentares compõem o solo do agora e proporcionam a relação entre o ser atual, ancestral e futuro. Minhas cerâmicas e instalações apresentam-se como simulacros desta relação. A visualidade e a estética ruinosa dos trabalhos aludem ao trato temporal, ao devir. Sem ares melancólicos, com predileção ao factual, a ruína faz compreender o findável e a aceitação da força do tempo. Diante de sua imagem pode-se compreender que, na fração transitória do presente para o futuro, a vida tornar-se-á também sedimento. Minhas ruínas, geometricamente construídas e elaboradas, demarcam a presença do tempo antropo-


histórico e das obras dos homens no decorrer da história. Mas são, por simulação, interceptadas pelas ações do tempo extra-humano, natural e geológico, infinitamente maior. Esta relação do tempo geológico com o tempo do homem, da humanidade, referencia a exigüidade do segundo em comparação ao primeiro. Questão ordinal, mas ao mesmo momento instigante. Pois, pensar grandes frações de tempo me leva ao mundo de fragmentos. Seja pela estratificação histórica acumulada quando observo o passado ou, seja pela apreensão do futuro distante. Fragmentos sedimentados ou expostos, um campo arqueológico que não terá significado, abstrato, nunca mais revolvido. A visualidade ruinosa não deve ser compreendida em segundos, pois a ruína necessita de tateabilidade e coabitação. Como espectadores, devemos estender o tempo da observação deixando que os detalhes sejam apreendidos e possibilitando que as conexões temporais, mnemônicas ou históricas sejam trabalhadas pelo intelecto. A ruína é instrutiva, pois escancara as verdadeiras características do tempo. À sua visualidade estão intrínsecas as noções básicas do percurso da vida, do nascer ao morrer. Como observa Olgária Matos em O Sol Triste das RuÍnas: “Nela, tudo é inédito e ao mesmo tempo já acontecido, tudo já morreu e ainda não nasceu” (MATOS, 1998. Pg.81). Ela é testemunho de vivências passadas e espelha o tempo que há de chegar. Como um vácuo atrelado ao frenético tempo contemporâneo, a ruína, através da materialidade, afirma nossa condição transitória e, sabiamente, nos sugere paciência.


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O corpo recortado: O Bebê Santo de Mâcon de Peter Greenaway Lucia Aparecida Felisberto Santiago


Os filmes do diretor Peter Greenaway, um nomes da cinematografia contemporânea, podem conduzir às mais diversas possibilidades de estudo. Às vezes o espectador pode ter a impressão de estar diante de uma pintura, uma escultura, um cenário de teatro, um texto barroco ou, até mesmo, diante da obra de arte total (Gesamtkunst-werk), como nas festas barrocas onde todas as formas de expressão artística estão juntas. O olhar multifacetado de Greenaway deve-se à sua formação de artista plástico, montador, documentarista e cineasta experimental. No filme O Bebê Santo de Mâcon, uma produção entre a Alemanha, a Bélgica e a Inglaterra do ano de 1993. Greenaway conta a história de uma virgem que aparentemente deu à luz a um menino. Entre idas e vindas sobre o nascimento do bebê e sobre sua verdadeira mãe, um espetáculo se confunde com o outro, ao mesmo tempo em que o bebê é transformado em um santo. O Menino Santo é visto como uma intervenção de Deus sobre a sociedade de Mâcon, pois seu povo vive sob a praga da fome e da esterilidade. A santidade do menino é materializada através de um conjunto de objetos: as vestes, as sandálias e a coroa etc. Cada um desses objetos carrega significados diversos e são transformados em alegorias. Durante o desenvolvimento da trama em meio aos conflitos estabelecidos o Menino Santo é morto. Greenaway cria sobreposições imagéticas com múltiplos significados. O olhar do espectador diante das imagens finais do filme pode ser de absoluta incredulidade, principalmente frente aos acontecimentos ligados ao corpo, às vestes do pequeno santo, à morte e ao significado alegórico. Aqui meu olhar fixa-se nas cenas em que o bebê está morto sobre uma mesa, e o povo, cego pela desesperança, diz: “ele não se oporá a tocarmos sua roupa”27, as vestes do pequeno santo representam a 27 GREENAWAY, texto extraído do filme O bebê santo de


Prudência, a Piedade, a Humildade e a Castidade, as sandálias da Perseverança e a coroa da Força (Figura 1). Em seguida o bebê é desvestido e aos poucos suas vestes e seus objetos são retirados de seu corpo e distribuídos: Um botão do seu casaco, um fio... As contas da pobreza, as contas da pobreza. A coroa da força, a coroa da força. As sandálias da perseverança, perseverança. O Manto da piedade, o manto da piedade. O manto da prudência comprado dos turcos, Bagdá, Assurbanipal, Cadosa, Barbarossa. O manto da prudência. O manto da castidade, da castidade. O debrum da humildade, o debrum. 28 A criança fica desnuda, o povo levou suas vestes e seus objetos. Cada homem e mulher têm agora um fragmento das vestes, das sandálias, da coroa do Santo. O pequeno corpo nu sobre a mesa há muito tempo não reclama, ele está mudo, Benjamin diz que “a criatura muda pode ter esperança de salvarse através das coisas significadas”29, e o corpo mudo significa a morte e também a sua própria salvação. Os fragmentos das vestes e dos objetos são alegorias daquilo que está no fim, entretanto, a posse das vestes, dos objetos e dos seus significados não é Mâcon, 1993. 28  GREENAWAY, texto extraído do filme O bebê santo de Mâcon, 1993. 29  BENJAMIM, 1984, p. 250.






suficiente para o povo. Com a chegada da morte desaparece a promessa de dias melhores abençoados pelo bebê. Após a partilha das vestes, o povo toma para si o corpo do Menino Santo, mas não o corpo humano inteiro: Criança, abençoa-me com os dedinhos de tuas mãos. Abençoa-me com os pés que caminharam a Terra. Criança, abençoa-me com as pernas que andaram com Deus. Criança, abençoa-me com as mãos que rezaram para Deus. Abençoa-me com os braços que poderiam ter-me abraçado. Abençoa-me com os dedos dos pés. Criança, abençoa-me com a sua virilidade. Criança, abençoa-me com o seu corpo. 30 Para Benjamim “o martírio prepara (...) o corpo dos vivos para a sua metamorfose emblemática”31. O corpo do Menino Santo é recortado, pois “o corpo humano inteiro não pode entrar num ícone simbólico. Mas uma parte do corpo é apropriada para a constituição desse ícone”32 (Figuras 2, 3 e 4). A mesa vazia, não há mais um corpo, por todos os lugares há apenas fragmentos daquele que um dia foi um bebê, um corpo e um cadáver, que foi “se desprendendo do corpo, pedaço por pedaço”33. Com os fragmentos do pequeno corpo a “significação autêntica, fixa e escritural”34 tornou-se legível, o corpo recortado do Menino Santo, espalhado entre o povo, legitima a 30  GREENAWAY. Diálogo final do filme O bebê santo de Mâcon, l993. 31  BENJAMIN, 1984, p. 241. 32  “Integrum humanum corpus symbolicam iconem ingredi non posse, partem tamen corporis ei constituendae non esse ineptam”. BENJAMIN In Origem do drama barroco alemão, 1984, p. 240. 33  BENJAMIN, 1984, p.241. 34  Ibidem, 1984, p. 240.


sua entrada na pátria alegórica, o Bebê Santo tornouse uma alegoria de Mâcon, seu corpo foi então salvo. A estrutura alegórica do drama barroco é a possibilidade de leitura e assimilação dos conteúdos materiais, uma tentativa de recomposição das suas ruínas e uma maneira de ressuscitar seus mortos. Isto não quer dizer a salvação do drama barroco: O drama barroco como forma-limite (a partir) de uma esfera mais alta, a da teologia, (...) no sentido da história, de uma teologia da história, e não estaticamente, no sentido de uma economia da salvação, previamente assegurada (...)35. Dos elementos presentes na história como história mundial do sofrimento, a morte é o que interessa ao indivíduo, pois a “morte é o conteúdo mais geral da alegoria barroca”36 e é também o seu meio. Desta forma a morte é um elemento comum presente no cerne da alegoria e no cerne da história, e pode transitar entre os dois planos de forma comum, justificando “o papel central da alegoria como linguagem capaz de exprimir, no drama barroco, a concepção da história-destino”37. Lê-se em Benjamin: “do ponto de vista da morte, a vida é o processo de produção do cadáver”38, e a alegoria “significa a morte, e se organiza através da morte”39 e no drama barroco do século XVII “o cadáver é o supremo adereço cênico”40: 35  Ibidem, 1984, p. 240. 36  ROUANET, In Origem do drama barroco alemão, 1984, p. 38. 37  Ibidem, 1984, p. 40. 38  BENJAMIN, 1984, p. 241. 39  ROUANET, In Origem do drama barroco alemão, 1984, p. 38. 40  Ibidem, 1984, p. 242.


Se com a morte, portanto, o espírito se libera, o corpo atinge, nesse momento, a plenitude dos direitos. É evidente: a alegorização da physis só pode consumar-se em todo o seu vigor no cadáver. Se os personagens do drama barroco morrem, é porque somente assim, como cadáveres, têm acesso à pátria alegórica (...) para que acendam à condição de cadáver. 41 De acordo com as regras da emblemática “o organismo deveria ser despedaçado, para que em seus fragmentos a significação autêntica, fixa e escritural, se tornasse legível”42, isto quer dizer que somente o corpo em partes pode ser significado, e é como cadáver que o corpo recortado entra na pátria alegórica. Efetivada a entrada deste cadáver na pátria alegórica realiza-se também a salvação daquele que antes era um corpo, e que agora é alegoria. Para o filósofo alemão “a alegoria se instala mais duravelmente onde o efêmero e o eterno coexistem mais intimamente”43. Nos fotogramas finais, d’O Bebê Santo de Mâcon, essa transitoriedade é marcada pelo desejo de salvação do povo, uma sociedade que acredita tornar-se eterna ao recortar e tomar para si o corpo do pequeno santo.

41  BENJAMIN, 1984, p. 241. 42  Ibidem, 1984, p. 240. 43  Ibidem, 1984, p.247.


Referências BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984. O Bebê Santo de Mâcon. Peter Greenaway, 1993, 122 min., son., color., Alemanha, Bélgica, Inglaterra. Legendado. SANTIAGO, Lucia Aparecida Felisberto. As filhas da Caducidade: a moda e a morte. In Cadernos Benjaminianos, Belo Horizonte, volume 1, ano 1, jun.2009. Disponível em <http://www.letras.ufmg. br/cadernosbenjaminianos/data1/arquivos/08%20 Lucia%20Santiago.pdf> Acesso em: 26 abr. 2012. Imagens FIGURA 1 – O Menino Santo FIGURA 2 – O corpo recortado: os cabelos FIGURA 3 – O corpo recortado: os pés FIGURA 4 – O corpo recortado: a cabeça Fonte: Peter Greenaway. O Bebê Santo de Mâcon, 1993.



Os Pescadores de Goeldi Daniel Prudente da Silva Ferreira44

Resumo Ao longo de 40 anos, o xilogravador brasileiro Oswaldo Goeldi gravou uma série de gravuras sobre os pescadores e o mar. Essas gravuras constituem um recorte temático e estético na obra de Goeldi, em que a solidão, o abandono, a desgraça, a morte, recorrentes em toda sua obra encontram no mar e no cotidiano desses homens uma via de sublimação. Palavras-chaves: Oswaldo Goeldi, gravura, desenho, pescadores. 44  Mestrando no curso de Artes Visuais do PPGAVUFBA.


Ainda há homens no mar. Aqueles na praia chegaram há pouco, e guardam vigília dos que ainda não voltaram. A rede e as cordas endureceram os músculos, e durante o descanso permanecem tesos debaixo da roupa. Estão juntos e sós, apenas o mar rumoreja longe, hora perto, enquanto os homens terminam o carregamento, remendam as velas e tornam os olhos na direção das embarcações. Atrás do cais, escorado junto ao mercado de peixe, outro homem está de pé, e é difícil saber se também é homem do mar, parece homem de lugar nenhum. Oswaldo Goeldi gravava o mar. Olhar uma gravura é estar em permanente recuo. A folha de papel foi embebida em água para amolecer a fibra e receber a tinta em camadas. O que vemos traz do fundo para a superfície rastros de uma construção de imagem que se elabora do trabalho – a lápis, a goiva, a prensa – e nos adverte de sua natureza. A placa de madeira, tal como se apresenta para o gravador, é áspera e está fechada. Desbastá-la é um ato íntimo. Ela oferece resistência, e o gravador experiente deve saber como adentrá-la pelos veios, cavando sulcos e raspando as lascas para que a madeira esteja concorde com a gravura. Goeldi, por prudência, planejava o percurso da goiva sobre a superfície. O desenho fora o recurso primeiro para todas as gravações. Desenhava muitas vezes sobre a chapa, inventado as formas e a composição, definindo os esquemas com massas de sombra, e somente com a ideia definida começava a gravar. Uma vez gravando, sabia fazer coincidir seu traçado na corrente dos veios naturais da madeira. Era um gravador de cenas urbanas. Do lixo acumulado, móveis despejados na calçada, urubus se amontoando pela rua enquanto passam os homens: bêbados, ladrões, prostitutas, transeuntes (fig.1), o silêncio ao redor dos corpos é o que parece movêlos, sempre para a margem. Goeldi desenhava


corpos que perambulam pelas ruas como errantes. Seus andarilhos estão sós, suspensos e esquivos no ermo da cidade, anônimos errando pela margem. E na margem Goeldi deparou-se num encontro.”[...] descobri os pescadores e toda madrugada ia para o mercado ver o desembarque do peixe e desenhava sem parar”45. Os pescadores de Goeldi anunciam um assunto diferente na sua gravura. O gravador está diante do mar, e de homens que convivem diariamente com a adversidade e com o trabalho. Na gravura Pescadores com rede (fig.2) de 1926, um grupo de homens se curva num esforço conjunto para puxar a rede até a praia, usam botas, capas e chapéus. No extremo oposto resta um único homem curvado sobre a embarcação recém-chegada. Um rasgo branco e grosseiro contra o céu escuro imita a mesma forma da vela do barco. Dezenas de traços brancos recortam o grupo de pescadores e se estende para atrás da embarcação, como se o sol recém rompido a madrugada iluminasse a nuvem acima de suas cabeças, e espalhasse a claridade sobre as águas e a umidade da areia. A luz é filtrada para o primeiro plano através dos espaços entre os corpos dos pescadores, e ilumina fracamente uma corda grossa amarrada ao cais do porto e perfis dos peixes capturados. Os corpos a que Goeldi dá forma e grava sobre a chapa são eclipses fugidios. Apenas percebemos o seu entorno: uma fina orla de uma luz que parece longínqua, e o espaço ao redor se cria como penumbra, sombra iluminada. Os personagens comuns de Goeldi se deslocam da paisagem, vacilam e se abandonam pelo caminho. Estão de costas, evitam o enfrentamento com o mundo e aguardam, enquanto o silêncio engrandece. Também há silêncio entre os pescadores, mas este se 45  GOELDI, 1957 apud NAVES, 1999, p. 98






adensa para o único nó conectivo entre suas figuras. Na gravura Em busca do peixe (fig.3) de 1940, dois pescadores contemplam uma rede vazia, recortados pelas bordas do contorno da asa de um urubu e do rabo de um peixe. O espaço não se desenha, apenas o urubu e o peixe em primeiro plano sugerem a ideia de um porto, e ainda sim, os pescadores estão solidamente firmes no chão; um deles, em posição frontal, curva-se estendendo a rede, e compõe com a ave uma atmosfera de agouro. A sensação de quietude compartilhada atravessa o espaço e imprime o mundo trágico de Goeldi. A desolação a que estão lançados seus personagens, o erro, o avesso, a verdade, tudo apenas está, sem causalidades; as desgraças são sabidas de muito tempo e caíram na força do hábito. Em Pescadores (fig.4) de 1940, um homem vestindo capa e chapéu está de pé junto à parede de um ambiente fechado, e sua presença parece ocupar todo o recinto; a seu lado outro homem está varrendo o chão, e por um momento se distrai enquanto olha para fora. Eles não parecem se importar com a presença um do outro, mas estão conscientes dela e sustentam isso. É assim também na gravura Nuvens (fig.5) de 1950, aqui, os pescadores estão lado a lado, mas virados em direções opostas. A aproximação entre ambos se dá na forma de um desvio, como duas embarcações que se cruzassem em alto mar. Por traz deles a fonte de luz é uma massa de nuvens verde-chumbo, que Goeldi intercalou cuidadosamente entre os personagens. Um silêncio imobiliza seus pescadores, como se o gravador registrasse o momento preciso em que o pulmão se esvazia de ar e se prepara para inflar novamente. Goeldi desenha a xilogravura com linhas brancas. O volume negro se adensa na imagem de onde vez ou outra se faz reluzir uma porção de traços, e as figuras se revelam como num relâmpago. Goeldi orientase para o mínimo, o mínimo de golpes de goiva


necessários para que se veja. A cor se reserva para as áreas de meio-tom, e não interferem na estrutura do branco e preto. Em Nuvens Pretas (fig.6) de 1953, um pescador se esforça para mover uma pequena embarcação sobre a areia e um segundo pescador se aproxima. A cor verde da água não parece determinar a atmosfera de iminente tempestade que Goeldi evoca com a goiva.


Assim também parece ser Pescador perdido (fig.7) de 1955, em que um pescador agita os braços no meio de uma tempestade enquanto um peixe vermelho e gigante salta a vista. Não sabemos o tamanho real do peixe, a cena é sobrenatural, junto a um fundo turbilhoado de massas claras e escuras, superfícies azul e verde, o gesto de desespero do pescador parece querer despertá-lo de um mal dormir. Os pescadores de Goeldi, diferente de seus andarilhos, parecem ter encontrado seu lugar num canto da paisagem. A solidão sufocante, a imensidão do espaço, a aspereza da vida, nada parece lhes mover do lugar que ocupam. Talvez vá por aí a teimosia de Goeldi em desenhar o cotidiano desses homens. Uma das últimas gravuras da temática dos pescadores é Crepúsculo (fig.8) de 1957. Quatro figuras parecem descansar enquanto miram longe o horizonte. Goeldi retoma aqui a velha sensação de um silêncio compartilhado. E por um momento, somos levados a crer que todos os errantes de seus becos e ruas molhadas, os bêbados e os transeuntes caminhavam para cá. Um deles está de cócoras, e a linha que lhes dá contorno é a mesma luz que vai sumindo com o fim da tarde por trás da paisagem, e se reflete na água do mar e aos pés dos pescadores. Goeldi via o mar, como eles. “Os fenômenos da natureza me empolgam – trovoadas, ventanias, nuvens pesadas, céu e mar, sol e chuva torrencial e noites cheias de mistério, pássaros e bichos. Os dramas da alma humana me comovem – sinto-me bem com os simples e às vezes me confundo com eles”46.

46

GOELDI, 1944 apud REIS JÚNIOR, 1966, p.28






Referências AMADO, Jorge. Mar Morto; ilustrações de Oswaldo Goeldi. 50ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1980. MACHADO, Aníbal. Goeldi. Rio de Janeiro: MEC, 1955. NAVES, Rodrigo. Goeldi. São Paulo: Cosac Naify, 1999. REIS JÚNIOR, José Maria dos. Goeldi, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. Índice de Imagens Fig.1 S/título,1950, xilogravura, sem numeração 20,8 x 26,9cm Fig.2 [Pescadores com rede] S/título, 1926, xilogravura, sem assinatura, 13 x 13,8 cm Fig.3 [Em busca do peixe] S/título, 1940, xilogravura, sem numeração 29,5 x 22cm Fig.4 [Pescadores] s/título, numeração,22,5 x 21,7cm

1940,

sem

Fig.5 Nuvens, 1950, xilogravura a cores, 5/12 21 x 25,5cm Fig.6 Nuvens pretas, 1953, xilogravura a cores, 7/12 22,2 x 29,8 cm Fig.7 Pescador perdido 1955, xilogravura a cores, 3/12 23 x 35 cm Fig.8 Crepúsculo 1957, xilogravura a cores, 5/12, 22,2 x 30 cm



Sonho sobre imagens Jo達o Diel


Sonhei uma coisa que me surpreendeu muito: eu estava explicando a uma banca imaginal como se estudava as imagens e explicava a essas duas mulheres como eu tinha feito para ver as imagens. Elas ouviram atentamente: e eu também. Eu dizia que era possível, conforme os meus olhos, olhar a mesma imagem de diversas maneiras. Primeiro, o primeiro jeito que aprendi, foi observálas como símbolos psicologizados de algo. E observava um prédio que estava ao contrário na paisagem. Eu dizia: para este olhar, o prédio é o corpo. Para compreender essa imagem, eu vou aprender sobre quem a criou, e preciso procurar na imagem os segredos dessa pessoa. O que as pessoas na janela estão fazendo, esta televisão que mostra um incêndio e no andar de cima uma pessoa que aguarda são parte do significado oculto do ser da pessoa, que se manifesta por esta imagem para que seja conhecido. Esse jeito de olhar então me diz: as pessoas são desconhecidas de si mesmas e, mesmo que observem os sonhos atentamente, não poderão descobrirse inteiras, porque há sempre algo misterioso que desconheço sobre mim e, como desconheço, não posso ver. Assim, a interpretação de sonhos me atira na direção oposta a da reconciliação com o meu eu, dizendo que eu me sei tão pouco que o que há de oculto em mim precisa se comunicar com imagens do sonho. E que existe uma profundeza em mim que, apesar de ser profunda, fala. Tenho a impressão de que ao alcançar-se o conhecimento de si, os sonhos cessariam. Assim, se a imagem for um material onírico, ela está falando para nós em uma linguagem que desconhecemos, e que entenderemos sempre muito pouco, forçando-a a redizer, reformar e gritar seus conteúdos recalcados, ou esquecidos... Depois, trocava meu olho. Dizia: também posso


dizer que esta imagem deste prédio é uma alegoria ou um emblema alquímico. Ele me fala sobre a transformação e a purificação. Ao mesmo tempo que ao observá-lo penso que não sou iniciado na alquimia, tenho uma fé de que apenas por olhar esta imagem eu estarei trabalhando a mim e ao mundo para que eu obtenha o ouro alquímico, a pedra. Observando este prédio, precisarei destruí-lo e voltar a construí-lo. E também sei que, como nem os alquimistas poderiam compreender-se totalmente, sempre haverá um símbolo de algo que desconheço: nessas janelas, o fogo de um andar purifica o homem que está no andar de cima, como as imagens do Mutus Liber mudo e de caminhos de purificação. Essa imagem estará me mostrando um estágio da minha purificação, mas sempre esbarrarei na minha própria ignorância em ver o que não é. O que esta imagem ensina eu não saberei por completo e sinto que minha experiência alquímica de purificação se dará incompleta, ou perderei a matéria que estou trabalhando. E me tornarei um monstro? Há algo que está ao mesmo tempo atrás e na imagem, ela me diz como me tornar inteiro, mas não posso compreendêla: ela fala pela linguagem dos que tiveram uma experiência de purificação real e que a esconderam. Sei que eu estou em mim, neste momento, e que ao mesmo tempo minha alma está nesta imagem, e que as coisas todas estão em todas as coisas. Assim, sinto, não preciso buscar nada, pois tudo está em tudo e posso aprender sobre minha alma neste texto... Troco meu olho: este prédio de cabeça para baixo pode ser uma imagem poderosa para a memória, uma imagem agente que se gravará no palco, no espaço da minha mente e me ensinará e me lembrará sobre coisas que não posso esquecer. Estará esse prédio me ensinando a não esquecer este sonho que tive? Tenho a sensação de que essas imagens gostariam de me lembrar de coisas que também não aprendi. Assim, a propaganda nazista ou a de margarina (que apontam na mesma direção) e o prédio de ponta-cabeça


estão me ensinando coisas, bebendo das águas do imaginário, de todas as imagens e a relação entre as imagens que conheço, para me conduzir, me educar. Haveria, então, uma casta de pessoas (os jornalistas críticos?) que apontariam em direção às imagens e revelariam esse sentido secreto (e malévolo) das imagens; e precisamos sempre nos apoiar e procurar estas pessoas que observam os pedaços que constróem o passado dessas imagens e o seu presente. E o que esta orquestra está querendo dizer. Também tenho uma outra sensação: de que durante esse tempo todo no qual estudei o belo horrível pelas literaturas românticas eu estava estudando não o horroroso que se torna (sadicamente? terrivelmente? monstruosamente? perversamente?) bonito, mas sim um grito das imagens para que sejam lembradas, um grito das imagens desgastadas em direção a sua permanência. Não me assusta que ao mesmo tempo eu encontre na pintura e literatura do século XIX tantas imagens de edifícios arruinados e esquecidos. Para mim, apontam na mesma direção. Teríamos, então, ao olhar para as imagens, sempre estar armados e perguntar: de onde você vem, e vem para me dizer o que? Quer me convencer do que, em seu silêncio? E para nós não haveria mais descanso... Havia uma outra maneira, também, de olhar a imagem, e sobre esta eu ainda sei dizer pouco. Seria observá-la não com os olhos de carne, mas com os olhos de fogo. E estes olhos de fogo não poderiam ver apenas uma tabela de referências, uma imagem que quer dizer a outra, mas que possui uma melodia que atrai e movimenta outras imagens. Essa observação precisaria ser feita pelo espírito, e acho que posso chamá-la de contemplação (que não é apenas ficar parado diante de uma imagem, mas ao mesmo tempo é estar parado e em movimento diante de uma imagem, mas não é um movimento dos braços ou da boca que fala, mas do olho de fogo que vê). Ao mesmo tempo que uma imagem é, ela é novamente, mas ela


não é. Ela seria a revelação, o contato, onde a matéria deste mundo encontra a matéria de outros mundos. Então eu precisaria procurar imagens que fossem tão finas que me revelassem o próprio outro mundo. E que forma teriam elas? As árvores da existência da Cabala, que são impressas em cartazes e emolduradas, mas não me dizem nada? Formas geométricas? Imagens e sons? Imagens silenciosas? Imagens libertadas da perspectiva monoteísta? E por que não poderiam ser tão finas a ponto de revelar o deus único também? Poderiam. Nesse momento tenho um alívio, porque as imagens podem ser tão finas que revelarão a existência do que há. E ao mesmo tempo há o deus monoteísta e ao mesmo tempo há os deuses sem rosto e ao mesmo tempo não há deus nenhum. Então eu precisaria ser algo para poder descobrir o que esta imagem está me mostrando. Basicamente: ter fé de que as imagens são transparentes. Preciso ter fé mesmo para dizer que a imagem não diz nada a não ser atrocidades. Mas como se desperta o olho de fogo? Tenho a sensação de que ele precisa ser chamado de trás das imagens transparentes e isso nos atira num vale onde chamamos deus de acaso. E o despertar seria uma coincidência de algo com algo que (como um mistério) soará uma orquestra silenciosa. E a partir da qual será possível começar a ver. (e isso me parece importante e ao mesmo tempo cruel, porque é preciso querer o desconhecido, o invisível, para que se possa vê-lo) e quem desconhece o desconhecido não o verá. E todo dia, às oito da noite, no prédio invertido, vai ligar a televisão em chamas ou olhar pela janela sem ver o fogo. Assim, há uma casta de adormecidos e uma casta de iniciados, mas iniciados no que?, no mistério que pode ter qualquer nome e que são vários. E assim há sempre um terror: adormecer...



Norte na Bilbioteca de Warburg Maria do CĂŠu Diel


A busca pelo oriente é um dos temas principais da literatura e das artes. Trata-se, porém, de uma busca da qual se diz, ou ainda da qual se compreende no instante que não é situado ou situável nos nossos mapas geográficos. Uma primeira consequência que se observa nas aparências é o deslocamento dos contrastes que regulam a geografia e a antropologia. Desta forma quando escrevemos ex oriente lux enganam-se muito aqueles que entendem o orientamento como um voltar-se em direção do oriente geográfico. Quando falamos do sol que surge no oriente, nos referimos à luz do dia que vem depois da noite. O dia se alterna com a noite como se alternam os dois contrastes que, pela sua natureza, não podem coexistir. Assim, teremos um duplo crepúsculo: crepusculum vespertinum, que não é mais dia e não é ainda noite, e crepusculum matitinum, que não é mais noite e não é ainda dia. É sobre este lugar, o mundus imaginalis ou o intermundo, como dizia Henry Corbin, que quero falar aqui. Este lugar é o desdobramento e do desenraizamento em relação à história das nações. Seria esta uma má fronteira geografica? As cidades de esmeralda do escritor Tabarî não aparecem em nenhum mapa, nem nenhum dos sete climas que dividem o mundo. No entanto, “a submissão, trabalho e infortúnios são desconhecidos lá; seus habitantes não conhecem o drama de Adão; nutrem-se de vegetais e ignoram a diferença sexual: um mundo que secreta a própria luz, pois cubos de vidro são armados com folhas de ouro, um país sem sombra”. A cor esmeralda das cidades as situa fora do espaço geográfico. Equivale ao azul ultramarino dos contemplativos do Ocidente, é um simbolo de alteridade radical, como se o desejo de um mundo feliz reencontrasse enfim seu objetivo. Perto do


mundo simbólico e longe do alegórico - que explica e amplia o sentido da linguagem - quero imaginar um percurso ociente-oriente, através das conversações com imagens, tendo como guia o Atlas Mnemosine de Aby Warburg. Vejamos o afresco de Ghirlandaio, pintado na Igreja de Santa Maria Novela em Firenze, entre 1485 e 1490. É um fragmento da História da Virgem e de São João Batista. Vemos o nascimento do Batista, as parteiras, sua mãe e outras mulheres. Da direita surge esta jovem com sua ventilata veste, nos dizeres de Warburg. Ela traz um cesto de frutas e, ao que parece, seu próprio vento. Warburg escreve sobre a presença do paganismo no Renascimento, representado pelas figuras cujos trajes movem-se, alimentados por não se sabe qual vento. As dobras das roupas das outras mulheres figuradas obedecem à lassidão do tecido, imagem da servidão da matéria no renascimento. Os deuses antigos do oriente foram desvestidos de suas atribuições, remetidos ao empírio, figurando nos círculos zodiacais, retornando à terra em vestes aristocráticas. Deixaram de figurar nas regências de partes dos corpos humanos e nos climas. Nas figurações de afrescos, desenhos, esculturas, gravuras e efígies vemos os deuses bárbaros receberem seus atributos na forma de andrajos, para enfim desaparecerem do Ocidente, existindo apenas nas narrativas estáticas dos tradutores. A passagem das figuras em movimento do paganismo em direção ao Ocidente destronam as geografias comprometidas com a história da cultura. Será talvez vento o ar do passado, da pleiade de deuses, da filosofia nascida na Grécia mas também nas outras pátrias sucessivas do Oriente sírio e Oriente iraniano? Como nos recorda Chirstian Jambert: “a memória iraniana adora o conquistador Alexandre, transformando-o num herói persa, Iskandar, ela interioriza a herança grega, passada pelos mundos


árabe e sírio, pelas grandes escolas de tradutores de Bagdá.” Desta forma, o ato artístico coloca-se no meio do caminho entre a contemplação - ligada ao objeto - coagulando os aspectos empíricos do real dentro de uma forma única e precisa, mas também abandonando-se a esta como se faz diante de um ídolo: as fases deste processo são para Warburg um objeto provilegiado de estudos, transformando-se numa ‘ história psicológica das imagens’. As pranchas do Mnemosyne necessitam de poucas palavras de orientamento, por ter o leitor ou observador um desejo de mergulhar e ser possuído pelos conteúdos das obras, para produzir um real enriquecimento. Pista fundamental é o processo de desdemonização da gestualidade e do dinamismo humano em todas as suas gamas emotivas, re-percorrendo onde se pode delinear uma ‘imagem do homem ocidental’: esta temática manifesta-se na experiência exaltante mas arriscada dos intelectuais do Renascimento que se apropriam dos modos representativos proibiti ed empi, vistos na herança figurativa do mundo pagão. O “meio de transporte” dos valores expressivos foram, por sua mobilidade e reprodutibilidade, a tapeçaria flamenga e as páginas e imagens impressas, mas também, e sobretudo, as pinturas sobre tela. Como conteúdo, o ajuste formal para os temas antigos foi acompanhado pelo desejo consciente de uma espiritualidade pagã nostálgica, que foram precedidos por fórmulas clássicas “camufladas”, alegorizando-as no sentido cristão. O retorno à antiguidade pelos artistas do Renascimento não foi apenas o resultado da consciência histórica ou empatia estilística, mas também com uma profunda sintonia com a experiência instintiva do trágico, típico da exaltação orgiástica pagã.


Os engramas perturbadores trágicos que expressam “o humano fobicamente emocionado” foram assimilados desde a Renascença ambivalente, dando coragem ao artista que - acreditando em sua liberdade e contra o destino - queria comunicar o indizível, mas ao mesmo tempo limitando o intervalo de tempo entre Dionísio e Apolo - o reino espiritual - onde ele poderia evoluir para uma pessoal e independente linguagem formal, nas formas já armazenadas na memória. Assim, através das pinturas e imagens recolhidas por Warburg, pode-se pensar no estudo da configração do Ocidente versus Oriente, sua demonização e sua constrição e redução ao fraco norte geográfico. O “anjo com asas tingidas de púrpura”, como escreveu Soravardi, só pode ver visto entre o poente e o anoitecer. O homem fóbico - acovardado e em pânico - é re-orientado quando encontra a visão de sua própria existência. Assim, a imaginação passa a ser um instrumento do intelecto para vislumbrar o mundo imaginal e nele se inscrever, com um novo re-orientamento. Escreveu Salvattore Settis: A biblioteca deWarburg reflete o trabalho de seu fundador e foi concebida como um ITNERARIUM MENTIS que conduz o leitor por caminhos determinados- os problemas de Warburg - e também por atalhos predeterminados. O itinerário é concebido de modo que a passagem de um setor a outro seja visto como natural - é esta mesma natureza que transforma o labirinto numa prisão no sentido que captura a atenção, obrigando o leitor a prender-se a algum nó que não pertencia à sua espera, a percorrer um fio que parecia marginal, mas que pode conter informações vitais para a sua busca’. Deste itinerário proponho o norte como conhecimento, uma nova geografia das imagens e do universo do pensamento, da criação figurativa na vida das civilizações e do estudo das imagens como formas de compreender e auxiliar a imaginação criadora.


ReferĂŞncias Imagem 1 - Prancha do Mnemosyne, de Aby Warburg. Retirado de: www.engramma.it/eOS2/atlante/





Publicado em Bembo Book em plataforma virtual pela ImpĂŠrio do Livro. VersĂŁo 1.2 de Dezembro de 2014.


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