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Universidade Federal do ABC
Comissão Acadêmica Gabriel Santos Carneiro Nayara Mika Kussaba Kirihara Alessandra Pinheiro Micheletti João Garavelo
Comissão Estrutural Gabriel Santana Leiliane Pessoa da Silva Julia Tolentino Taymille Araújo Natália Cristine Dantas Costa
Comissão Imprensa Gabriele Bley Milena Almeida Marina Stephan Juliana Santos Amanda Cristina da Silva
Secretária Geral Bruna Belasques 2
Sumário
O Alto Comissariado Das Nações Unidas Para Refugiados ........................ 4
A Questão do Refúgio ..................................................................................... 4
Conceituação ................................................................................................... 6
O Terremoto no Haiti ....................................................................................... 9
Antes do Terremoto no Haiti: contexto ......................................................... 9
Sismicidade .................................................................................................... 11
Impacto Socioeconômico ............................................................................ 12
As Consequências do Terremoto de 2010 ................................................ 15
O Refúgio Ambiental e a questão dos Deslocados Ambientais pela
perspectiva das Relações Internacionais ................................................. 17
Projeções Futuras ...................................................................................... 23
Outro caso de crises de Refugiados Ambientais .................................... 24
Referências Bibliográficas ........................................................................ 24
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O Alto Comissariado Das Nações Unidas Para Refugiados Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o continente europeu encontrava-se devastado pela grande destruição causada pelo conflito e além de enfraquecidos economicamente, as nações europeias tinham um grande infortúnio pela frente: milhões de europeus refugiados encontravam-se sem lar. Notou-se então a necessidade da criação de um órgão capaz de solucionar este grave problema humanitário que vinha assolando essa população europeia, reassentando esta população. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados foi criado pela Assembleia Geral da ONU em 1950 justamente para proporcionar proteção e assistência aos refugiados europeus que se encontravam nesta situação angustiante. A princípio o ACNUR possuía um mandato de apenas três anos, porém após sucessivas crises humanitárias espalhadas pelo globo durante a década de 50, se fez necessária a permanência da organização que ampliou sua atuação, não mais se limitando a atender apenas à Europa. No ano de 1951 cria-se a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados. Esta Convenção reúne informações relativas aos refugiados estabelecendo parâmetros para o tratamento de refugiados, bem como seus direitos e deveres nos países que os acolhem. Novos conflitos aconteceram mundo afora, fazendo com que o número de refugiados aumentasse consideravelmente, e com diferentes situações de crise ocorrendo, acabaram por tornar a Convenção nula, já que esta apenas abrangia os casos que antecediam o ano de 1951. Foi submetido à Assembleia Geral das Nações Unidas em 1966, um Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados e na Resolução 2198 o mesmo foi ratificado, entrando em vigor no ano seguinte. Isto fez com que os países pudessem estender as demandas da Convenção de 1951 para todos refugiados sem delimitação de datas ou espaço geográfico. O ACNUR ao guiar suas ações de acordo com a Convenção de 1951 e do Protocolo de 1966, apoia-se em um caráter totalmente apolítico, sendo humanitário e social com os grupos de refugiados. Além disso, é categoricamente apresentado em seu Estatuto que os países que cooperem com o ACNUR no exercício de suas funções promovam a integração dos refugiados, especialmente facilitando a naturalização destes e que proporcionem os documentos que facilitem o reassentamento dos mesmos, demonstrando seu empenho em garantir que qualquer pessoa consiga refúgio em outro país. A Questão do Refúgio A migração é constante na história da humanidade, a variável está nas razões que levam os indivíduos a migrarem. A diferença essencial entre um imigrante e um refugiado é que o último não saiu de seu país de forma voluntária, mas é obrigado a fugir por medo de perseguição, como indicado na Convenção da ONU sobre o Estatuto dos Refugiados. Refugiados não tiveram, no entanto, seus direitos sempre reconhecidos pelo direito internacional. Essa foi uma construção histórica do conceito que pode, portanto, ser expandido para proteger um maior número de pessoas. Cabe, então, entender a história do refúgio para que se possa avançar no debate atual sobre a 4
ampliação do que significa ser um “refugiado”, que surge com a percepção de que indivíduos que foram forçados a deixar seu país de origem não encontravam respaldo jurídico para serem acolhidos em outros Estados, como o caso do que se convencionou chamar por “refugiados ambientais”. Pode-se dizer que o conceito de refugiado tal qual como conhecemos atualmente passou a ser construído com o fim da Segunda Guerra Mundial, quando milhões de pessoas foram deslocadas pelas consequências da guerra e dos regimes autoritários, criando uma crise humanitária. Assim, como forma de ajudar na solução da questão, foi criado o ACNUR em 1950, com a função de cuidar dos refugiados europeus. Isso acontece em um contexto de estabelecimento de um Regime Internacional de Direitos Humanos, que ganhou força com as tragédias deixadas pela guerra. (REIS; MOREIRA, 2010, p. 17 - 18). Como dito, nesse primeiro momento, considerava-se a necessidade de atender apenas às demandas dos indivíduos europeus, de modo que a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, adotada pela ONU, admite como refugiado apenas a pessoa Que, em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valerse da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele. (ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS, 1951, grifo nosso).
Dessa forma, entende-se que havia uma crença de que este seria um fenômeno temporário. Essa ideia, no entanto, foi confrontada pela realidade - mesmo com o fim da guerra, milhares de pessoas tinham motivos para fugir de seus países e buscar refúgio. Como esses indivíduos não eram reconhecidos como refugiados, ficavam fora da proteção internacional, tendo sido necessário, então, rever a Convenção estabelecida em 1951. With increasing numbers of refugees of non-European origin, UNHCR began to speak of 'durable' solutions, promoting voluntary repatriation as the most desirable solution, followed by integration in the country of first asylum, with resettlement and naturalization in a third (usually western) country being the least desirable 'solution', open normally only to a selected few. (HARRELLBOND; VOUTIRA, 1992, p. 7).
Com isso, foi elaborado um Protocolo Relativo ao Estatuto dos Refugiados, em 1967, “Considerando que, desde que a Convenção foi adotada, surgiram novas categorias de refugiados e que os refugiados em causa podem não cair no âmbito da Convenção”. (ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS, 1967). A partir desse momento, não existe mais uma especificação temporal, de modo que as pessoas que fugiram por temor fundado, mesmo após 1951, podem ser tidas como refugiadas. É importante observar que embora a Declaração Universal de 1948 e a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados reconheçam o direito a buscar asilo quando se é vítima de perseguição, esse direito não encontra espelhado o direito ao 5
asilo, ou seja, não se entende no direito internacional que os Estados têm o dever de conceder asilo aos solicitantes. However, this remains an asymmetrical right, as it it not complemented by a corresponding right to immigrate [...] any State has sovereign right to allow or not to allow migrant aliens to enter its territory and can adopt legislation limiting immigration flows. In the present situation of so-called globalization, goods and capitals move freely or almost freely, but not human beings. (SCOVAZZI, 2017, p. 1).
Conceituação Como dito, o direito a se deslocar não implica necessariamente no direito a imigrar. Por esse motivo, é importante que os indivíduos estejam respaldados juridicamente para que tenha acesso ao asilo. Daí a importância da conceituação do refúgio. A divisão dos migrantes em diferentes categorias leva a diferentes direitos perante os Estados e pode significar a concessão ou não de asilo. Para ser considerado refugiado alguns requisitos são exigidos: Ser um estrangeiro; provar ter fundado temor de perseguição (o que envolve elementos objetivos e subjetivos); análise das causas do temor fundado de perseguição (a Convenção estabelece como critérios raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um grupo social e opiniões políticas) e solicitar proteção. (FERNÁNDEZ, 2017). Sin duda alguna, el principal problema que presenta la Convención, más de medio siglo después, sigue girando en torno a la interpretación restrictiva del concepto de refugiado mencionado; así, resulta evidente que existe una zona gris de personas forzosamente desplazadas que no entran del todo en la categoría de refugiados protegidos por la Convención de Ginebra, ni pueden tampoco ser calificados como meros inmigrantes económicos. (FERNÁNDEZ, 2017, p. 18).
Como Fernández (2017) coloca, a Convenção não determina o que seria classificado como ‘perseguição’, de forma que, entende-se como ameaças à vida e à liberdade, estando justamente aí a porta para o debate da ampliação do conceito de refugiado, através de novas interpretações que incluam aqueles indivíduos que estão fora do âmbito da Convenção. O mesmo pode ser dito da categoria ‘perseguição por pertencimento a determinado grupo social ou opinião política’ que poderia incluir mais pessoas. No entanto, esta definição, já limitada, está sujeita a exclusões que abrangem os que têm direitos de nacionalidade num Estado não perseguidor (artigo 1E), são abrangidos pelo mandato da Agência de Socorro e Trabalho das Nações Unidas para os Refugiados da Palestina no Oriente Médio (UNRWA) (Artigo 1.º-D), não são considerados como tendo necessidade de proteção internacional (artigo 1.º-C), ou são considerados indignos de proteção internacional (artigo 1.º-F). (BARBOSA, 2017, p. 5).
Existe, portanto, um debate para entender se a conceituação de refugiados vem se expandindo ou não ao longo das décadas para ampliar a proteção dos indivíduos. The Refugee Convention is one of the cornerstones of the larger human rights system for protecting vulnerable persons and yet it is also a very narrow instrument, protecting a very specific group of persons [...] If we were
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motivated strictly by human-centered interests, we would find a broadening of the definition, although perhaps with limited state compliance. If we were motivated strictly by state-centered interests, we might find a narrowing of the definition, although perhaps abandoning desperate individuals truly in need. (WORSTER, 2012, p. 101).
Worster (2012) nota que ainda que não tenha tido uma nova formulação do conceito de refugiado que possa abranger mais pessoas, a Convenção é interpretada de tal forma que se pensa em seus objetivos e propósito, sendo assim, em certos casos é aplicada de modo que ultrapasse o que está realmente escrito. O autor cita como exemplo o fato de que muitas vezes as cláusulas que permitem excluir algumas pessoas - como as que colocam que aqueles que cometeram crimes graves não devem ser qualificados como refugiados - não são realmente aplicadas, considerando os riscos que essas pessoas enfrentariam se não concedido o refúgio. O autor considera que isso “exemplifica a aplicação dinâmica e orientada pelos direitos humanos da Convenção”. (WORSTER, 2012, p. 111, tradução nossa). Fica claro, no entanto, que a Convenção no momento que foi elaborada não considerou que outros tipos de crises poderiam surgir que não envolvessem explicitamente os motivos por elas destacados. O direito consuetudinário internacional, porém, segue em crescente expansão, sendo possível - e necessário - que os Estados aprendam lidar com esses novos fluxos. As the international relations of states evolves, so too does the law, at least customary international law. It has been observed that increasingly “refugee” flows have been more likely due to “civil wars, ethnic and communal conflicts and generalized violence, or natural disasters or famine—usually in combinations—than individually targeted persecution by an oppressive regime.” As states have shifted their behavior to respond to these crises, we must consider whether they have shifted their understanding of the definition of refugee under customary international law. (WORSTER, 2012, p. 114).
O autor cita como exemplos de contribuições para o direito internacional a Convenção da Organização da Unidade Africana (OUA) - atualmente União Africana - que coloca como refugiados também (...) qualquer pessoa que, devido a uma agressão, ocupação externa, dominação estrangeira ou a acontecimentos que perturbem gravemente a ordem pública numa parte ou na totalidade do seu país de origem ou do país de que tem nacionalidade, seja obrigada a deixar o lugar da residência habitual (ORGANIZAÇÃO DA UNIDADE AFRICANA, 1969).
O mesmo tipo de reconhecimento surgiu, em 2011, num acordo conhecido como ‘Princípios de Bangkok’, que recebeu a adesão de vários países que o autor coloca como ‘Estados particularmente afetados’. Estes seriam países que podem ser vistos como os Estados com as práticas mais significativas. Perhaps states that experience significant numbers of refugees are “specially affected” in the North Sea Continental Shelf sense and thus more crucial to and representative in establishing the widespread practice and opinio juris necessary. Those states actually deal with more cases and experience the effects of their policies more directly (or, conversely, consider that evidence of state practice and opinio juris is not necessarily widespread unless it is undertaken by states that are the major recipients of refugees). (WORSTER, 2012, p. 117)
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A Declaração de Cartagena sobre migrantes forçados na América Central e América, além de utilizar uma conceituação parecida, cita a Convenção da OUA como inspiração. A Declaração de Brasília também pode ser citada como importante para a expansão do conceito de refugiados na região. The Brasilia Declaration “highlighted” the expansive regional definition of refugee, suggesting that the participants at the Brasilia Declaration Conference understood that an expansive legal definition already existed in the region, due to the formally non-binding Cartagena Declaration and supporting instruments. Based on these participants and other factors, and notwithstanding the declaratory nature of the document, the Cartagena Declaration does further crystallize customary international law. (WORSTER, 2012, p. 120 - 121) .
Esses são alguns exemplos de acordos que podem ser importantes para complementar os propósitos da Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967, demonstrando que o direito internacional continua em constante mudança, assim como requerem os fluxos de refugiados que acabam por introduzir novas situações com as quais os Estados precisam lidar. Worster nota ainda que o próprio mandato do ACNUR acabou por se expandir Interestingly, this expansion of the mandate of the UNHCR closely tracks the expanded definition of refugee that has developed through regional agreements discussed above. It is important to note that the Refugee Convention itself was not amended to expand the refugee definition. The only expansion was in the UNHCR organizational mandate. However, the expansion of the mandate of the agency charged with ensuring the protections of the Refugee Convention might suggest an opinio juris of states that some supplementary “refugee” definition exists. (WORSTER, 2012, p. 143).
Ainda assim, o autor explica que a atuação do ACNUR ainda é limitada àqueles em situação de refúgio, assim como ao Estatuto que regula seu mandato para que possa assistir àqueles não reconhecidos como refugiados, assim, a prática da instituição não necessariamente amplia o conceito de refugiado. (WORSTER, 2012, p. 144) . Toda essa discussão poderia parecer sem propósito ou puramente conceitual, mas fica clara a necessidade de discutir sobre a expansão ou não do conceito de refugiados quando se é confrontado com novas situações para as quais não foram imaginadas soluções. O caso do Haiti, que trouxe atenção para a questão dos ‘refugiados ambientais’ e a falta de decisões concretas em nível internacional em torno do tema é um exemplo disso, já que a concessão de refúgio devido ao deslocamento forçado por questões ambientais não é prevista. Este caso e suas implicações serão analisados a seguir.
O terremoto no Haiti
Em 12 de janeiro de 2010, às 16h53 (hora local), um terremoto de magnitude 7.1 Richter devastou a República do Haiti, deixando cerca de 330.000 feridos, 230.000 mortos e 1,5 milhões de deslocados. Com o epicentro localizado a aproximadamente 25 km ao sul e ao oeste da capital Port-au-Prince, afetou toda a região metropolitana de 8
Port-au-Prince. Na cidade de Leógâne, estima-se que 80%-90% das construções foram criticamente danificadas ou destruídas. Carrefour, Pétion-Ville, Delmas, Tabarre, Cite Soleil e Kenscoff também foram severamente afetadas. De acordo com o Banco de Desenvolvimento Interamericano (IADB), o terremoto do Haiti foi o evento mais destrutivo que qualquer país já experimentou nos tempos modernos quando medido em termos de número de pessoas mortas em relação ao percentual da população do país (CAVALLO et al. 2010 apud DESROCHES et al. 2011). Antes do Terremoto no Haiti: Contexto A República do Haiti (Figura 1) ocupa a terça parte ocidental (27.750 km²) da ilha de Hispaniola, localizada no nordeste do Caribe, entre Porto Rico (a leste) e a Jamaica e Cuba (a oeste). Anteriormente ao terremoto, possuía uma população de aproximadamente 9,6 milhões de habitantes, sendo que a área próxima a Port-au-Prince possui uma população estimada de 3 milhões de pessoas. Após a rebelião escrava de 1804, o Haiti tornou-se uma das primeiras nações negras livres do mundo. Foi subsequentemente obrigada a pagar à França uma taxa altíssima, para indenizá-la pelas propriedades perdidas na rebelião e foi condenada ao ostracismo social e econômico por diversos países ao redor do globo. Assim, o Haiti tornou-se prisioneiro em um ciclo de pobreza e má governança do qual nunca se recuperou (HEINL 1996 apud DESROCHES et al. 2011).
Nas duas décadas anteriores ao terremoto de 2010, vinha sofrendo uma crise gerada pela luta pelo poder, com uma ameaça de guerra civil. A iminência da guerra se agravou quando o ex-presidente Aristides, legitimado à época por organismos internacionais, foi obrigado a fugir para a África ante a chegada dos rebeldes na capital de Porto Príncipe. Resultou em uma intervenção militar composta por estadunidenses, franceses e canadenses que, posteriormente, passou a ser comandada pelo Brasil. No 9
comando da Missão das Nações Unidas para a estabilização do Haiti – MINUSTAH, o Brasil tinha como objetivo a redemocratização do país. Focou, então, sua missão no auxílio para realização de novas eleições, com a confecção e distribuição de novos títulos de eleitores, e demais elementos necessários ao exercício da democracia. Realizadas as eleições, restou eleito o presidente René Préval (1943-2017), que tinha como primeiro desafio tirar o Haiti da condição de país mais pobre do mundo (SANTOS 2015). Ainda assim, o Haiti é o país mais pobre no ocidente, posicionando-se em 145º de 169º no Índice de Desenvolvimento Humano (UNDP 2010). Menos de 10% da população tem acesso à água potável encanada e menos de um terço possui acesso à eletricidade, mesmo intermitentemente (UNSD 2010). Mais de metade da população haitiana vive com menos de US$1 por dia e mais de três quartos vivem com menos de US$2. As exportações haitianas são diminutas, 10% do Produto Interno Bruto (PIB). A baixa performance econômica do Haiti deve-se, em parte, ao resultado do declínio do setor agrícola, principalmente devido à degradação do meio ambiente (DESROCHES et al. 2011). O Haiti também encontra-se na posição 155º de 163º entre os países no quesito degradação ambiental. Por anos, haitianos cortaram árvores como combustível culinário doméstico, o que resultou na sobrevivência de menos de 3% de cobertura florestal original do Haiti, um contraste claro com sua vizinha República Dominicana (DESROCHES et al. 2011). A vulnerabilidade a desastres naturais do Haiti cresce proporcionalmente à degradação ambiental. Em adição à sua posição econômica precária, o histórico limitado de terremotos de larga escala do país o deixou despreparado para 12 de janeiro de 2010. O Haiti possui poucos sismólogos e nenhuma rede de comunicação sísmica. Possuía apenas um mapa de perigo sísmico que estava ultrapassado e insuficiente em seus detalhes. O melhor mapa geológico datava de 1987 (LAMBERT et al. 1987 apud DESROCHES et al. 2011). O código de construção estava desatualizado, pouco utilizado e não era aplicado (CUBiC 1985). Não havia programas de prevenção ou planos contingências para terremotos. O currículo universitário padrão não incluía design sísmico, sismologia ou as geociências (DESROCHES et al. 2011)..
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Sismicidade
Pelas décadas anteriores ao terremoto de 12 de janeiro de 2010, as atividades sísmicas na ilha de Hispaniola concentraram-se principalmente nos dois terços ocidentais, na República Dominicana, e o Haiti permaneciam consideravelmente inativos sismicamente. Factualmente, desde o estabelecimento de uma rede sísmica global em 1964, a região do sul de Port-au-Prince havia experimentado apenas um terremoto de magnitude maior que 4.0, com diversos eventos adicionais ocorrendo a 100 km a oeste. Entretanto, estudos de sismicidade na história estabeleceram que abalos sísmicos daquela magnitude (7.0 ou maior) atingiram a região de Port-au-Prince no passado. Esses terremotos são atribuídos à movimentação na falha de Jardim EnriquilloPlatain de orientação leste para oeste (Figura 2). Os maiores abalos sísmicos ocorreram em 1751 (duas ocorrências), 1770 e 1860 (O’LOUGHLIN; LANDER 2003). Um dos dois terremotos de 1751 ocorreu próximo à longitude de Port-auPrince e destruiu construções pela cidade. O abalo sísmico de 1770 ocorreu na estimativa de 30-50 km mais distante a oeste da falha de Enriquillo e resultou novamente na destruição de prédios em Port-au-Prince e Léogâne (O’LOUGHLIN; LANDER 2003). O terremoto de 1860 atingiu ainda mais a oeste de Port-au-Prince e elevou o fundo do mar. O terremoto de 2010 também ocorreu na zona da falha de Jardim EnriquilloPlantain e em suas proximidades. Seu epicentro foi localizado pelo Levantamento Geológico dos EUA U.S. Geological Survey (USGS) em 18.44 N, 72.57 W, ou seja, 25 km a oeste-sudoeste de Port-au-Prince, próximo à falha geológica de Enriquillo. A profundidade estimada é de 13 km, mas a falta de dados sísmicos locais torna estimativa da profundidade incerta (DESROCHES et al. 2011). A ruptura do terremoto foi extremamente abrupta e penetrante, o momento máximo de liberação sísmica ocorreu nos primeiros 12-14 segundos (HAYES et al. 11
2010). Vinte minutos depois, o choque principal foi seguido por dois choques massivos com magnitudes momentâneas de 6.0 e 5.7 respectivamente. Oito dias depois do evento principal, em 20 de janeiro de 2010, um tremor secundário de magnitude 5.9 ocorreu. Ao se considerar, a primeira sequência de tremores secundários teve três vezes mais consequências do que uma típica sequência de tremores secundários ocorridas na Califórnia. Impacto Socioeconômico O terremoto no Haiti pode ser certamente classificado como uma grande catástrofe, talvez a pior da história moderna. Não ocorreram apenas impactos físicos e sociais extremamente extensos em relação às áreas relacionadas, mas também relacionadas ao país como um todo (DESROCHES et al. 2011). Mais de 300.000 habitações desabaram ou foram altamente danificadas. O Governo do Haiti estima que mais de 60% da infraestrutura econômica e administrativa foi perdida, 80% das escolas e mais de 50% dos hospitais foram destruídos ou danificados (GOH 2010). Mais de 180 construções governamentais e 13 de 15 escritórios essenciais do governo colapsaram, incluindo o palácio presidencial e o parlamento. A destruição parcial do porto principal de Port-au-Prince e do bloqueio de estradas devido aos destroços dificultaram a resposta e recuperação por diversos meses após o terremoto (DESROCHES et al. 2011). Dado o extenso dano, o governo foi paralisado e uma resposta internacional lidou com enormes desafios - com acessos limitados ao porto e aeroporto danificados, e incertezas sobre quem deveria e poderia liderar. As Nações Unidas (UN), que possuía uma missão de manutenção de paz anterior ao terremoto no Haiti, perdeu um número significativo de sua equipe, assim como várias Organizações Não-Governamentais Internacionais que proviam uma amplitude de assistência médica, assistência habitacional, treinamento, e outros serviços. Com todos os segmentos da sociedade civil impactados - o governo, escolas, universidades, comércio, clínicas de saúde, orfanatos, ONGs internacionais e igrejas - era extremamente difícil entender quem poderia prover socorro e assistência para as vítimas do terremoto (DESROCHES et al. 2011).
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Inicialmente, as Forças Armadas dos EUA assumiram o controle das operações aéreas. Representantes da ONU e do Banco Mundial em parceria com os oficiais haitianos se tornaram líderes essenciais na gestão de serviços, coleta de dados, controle de danos e planejamento de acolhimento. Reuniões de diversos grupos foram coordenadas diariamente no Hotel Caribe (cujo lobby e salas de reunião não foram danificados) e na base de manutenção de paz da ONU perto do aeroporto de Port-auPrince. Os objetivos das semanas iniciais foram o fornecimento de comida e abrigo para as vítimas e também a coleta de dados confiáveis para o planejamento de recuperação (DESROCHES et al. 2011). Era claro que o governo do Haiti não iria comandar a reconstrução, parcialmente porque as organizações internacionais o fariam e também porque o já instável governo haitiano foi ainda mais enfraquecido pelo desastre, deixando um vácuo de poder. Dos US$1,8 bilhão enviado ao Haiti para auxílio após o terremoto em Julho de 2010, menos de 2,9% foram diretamente para o governo haitiano (FARMER 2010). Tendas e lonas foram providenciadas por uma variedade de grupos internacionais, mas muitos haitianos formaram campos de tendas informais com materiais retirados dos detritos, como mostrado na Figura 4.
Edmond Mulet, Representante Especial de Avaliação das Nações Unidas, realizou a seguinte avaliação logo após o evento: A escala desse desastre ainda é difícil de compreender. O terremoto destruiu a sede do governo e o núcleo da economia do Haiti. Arrasou a herança cultural do país e centros de aprendizados. Hospitais, escolas e clínicas colapsaram. Ministérios essenciais foram destruídos. Quase toda construção governamental que ainda permanece necessita de avaliação estrutural urgente. Menos de um terço da Polícia Haitiana Nacional continuam operantes e suas sedes estão em ruínas. Estradas estão inacessíveis e o porto principal está seriamente danificado. O terremoto do Haiti afetou um terço do país. Ele devastou um Estado (tradução própria, Haiti Earthquake, UN assessment, 2010).
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Dos 1,3 milhão de desabrigados, a UN Habitat e a USAID estimaram que mais de 500.000 deixaram Port-au-Prince para províncias mais distantes: 163.000 para Artibonite, 91.000 para Centre, 120.000 para Grand Anse e o restante para outras seis províncias (USAID 2010). 240.000 famílias necessitaram de reassentamento. Idealmente, o mais indicado para uma família deslocada seria retornar a uma casa segura em sua comunidade de origem e apenas ser assentada em outro local se nenhum outro estivesse disponível. Campos de transição com abrigos temporários foram utilizados para aqueles sem nenhuma outra opção (UN Habitat 2010). Quase um ano após o desastre, esse plano ainda enfrentava dificuldades para sua implementação por uma variedade de motivos. Pessoas permaneciam temerosas de retornar para os prédios que permaneceram e preferiam dormir em tendas. Apesar de ter sido documentado que famílias realmente retornavam para seus lares durante o dia, elas geralmente não permanecem durante a noite (DESROCHES et al. 2011). Os campos continuam a ser uma fonte de comida, água potável e facilidades sanitárias gratuitas. Em um testemunho para a Coligação Negra do Congresso dos EUA em 27 de julho de 2010, Dr. Paul Farmer notou que as doenças diarréicas caíram 12% após o terremoto devido ao fornecimento de garrafas de água potável engarrafada para a população deslocada por agências de ajuda. Ele reconheceu que embora uma faísca de ajuda possa trazer melhoramentos, a falta de segurança alimentar generalizado, saneamento, fontes de água limpa, empregos, educação, assistência de saúde e outros serviços básicos são necessidades imprescindíveis que destacam a necessidade de um setor governamental públicos funcionais, não apenas ajuda de ONGs internacionais (FARMER 2010).
As Consequências do Terremoto de 2010 A Comissão Interina de Reconstrução do Haiti em 12 de outubro de 2010 estimou que 1,3 milhão de pessoas ainda estavam deslocadas - seja um dos mais de 1.300 campos e outros assentamentos registrados pela Organização Internacional para a Migração (IOM) ou em uma das situações de alojamento temporário em áreas afetadas ou em regiões não afetadas (IHRC 2010). Estima-se que as perdas e danos totais do terremoto estão entre US$ 7 bilhões e US$ 14 bilhões (cerca de 100% - 200% do Produto Interno Bruto do Haiti), ou seja, foi o terremoto mais custos em termos de percentual do Produto Interno Bruto do país atingido (CAVALLO et al. 2010 apud DESROCHES et al. 2011). Conforme os efeitos do desastre natural são contabilizados até hoje no país, milhares de haitianos continuam migrando e, somente em 2015, cerca de 14.000 migraram para o Brasil. O Haiti já tinha sido atingido por outros desastres naturais nos anos anteriores. Em 2008, mais de 800 pessoas foram mortas por uma série de quatro furacões e tempestades tropicais que atingiram o país pelo período de dois meses (DESROCHES et al. 2011).. Porém, os deslocamentos não ficaram restritos dentro das fronteiras haitianas, pois a República Dominicana foi eleita como um dos principais destinos das vítimas 14
sobreviventes, agora caracterizadas como refugiados ambientais. O Brasil, também, protagonizou esse contexto como um destino viável e bem-visto desses refugiados, que o viam como uma oportunidade ímpar dado o auxílio prestado pelas tropas brasileiras no país (SANTOS 2015). O Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, Antônio Guterres, e a Alta Comissária das Nações Unidas para Direitos Humanos, Navanethem Pillay, fizeram um apelo para que tivessem complacência com os haitianos e não os enviassem de volta ao seu país contra a sua vontade: Apesar das recentes eleições e da boa perspectiva que elas trazem para a recuperação do país, o Estado Haitiano, abalou-se como terremoto, não podendo assegurar que as pessoas vulneráveis ou com deficiência, pessoas com problemas de saúde ou sexualmente abusadas receberiam a assistência necessária ou adequada do Estado se para lá retornassem. Nesse contexto, os governos devem se abster de conduzir retornos ao Haiti (tradução nossa, UNHCR, 2011).
Em razão do recente fluxo de haitianos para o território brasileiro, a repercussão do caso do Haiti no Brasil é emblemática. Há mais de mil solicitações de “refúgio” em curso formuladas por cidadãos haitianos cujos processos foram remetidos pelo Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) ao Conselho Nacional de Imigração (CNIg), já que não estariam qualificados para a obtenção do status de refugiado em razão da ausência de perseguição e da motivação prevista na Convenção de 1951 e respectivo Protocolo de 1967, admitida pelos próprios solicitantes. Não houve a caracterização dos imigrantes haitianos como refugiados ambientais ou similares, menos ainda de como refugiados pelo Estatuto dos Refugiados. Sendo caracterizados simploriamente como imigrantes. A solução do caso coube ao CNIg, que autorizou a permanência de um grupo de 199 (cento e noventa e nove) haitianos que já se encontravam em território brasileiro por “razões humanitárias”, considerando-se que sua saída compulsória do país poderia implicar em prejuízos ainda maiores à proteção de seus direitos humanos. Assim, firmou a expedição de “visto humanitário” como uma forma jurídica de justificar suas permanências no Brasil, transcendendo qualquer discussão acerca da natureza de suas entradas como refugiados, ao argumento de embora não gozarem desse status, isto é, de refugiados, suas situações não se apresentavam como menos grave, motivando a assistência necessária por meio de proteção com viés na política internacional, com fundamento nos direitos humanos, considerados a situação do país de origem, mergulhado no aumento de crimes referentes ao abuso de mulheres e meninas e do número de sequestros (RAMOS et al. apud RAMOS 2011). O CONARE buscou fundamentos jurídicos mediante instrumentos legais, de índole nacional e internacional, valendo-se do caráter humanitário, para encaminhar os haitianos para o Conselho Nacional de Imigração – CNIg . Permitiu, em realidade, a expedição de visto de permanência outorgado pelo Conselho Nacional de Imigração CNIg do Ministério do Trabalho e Emprego, instrumento jurídico que pode ser utilizado para conceder a permanência no país a qualquer estrangeiro solicitante de refúgio que tenha seu pedido rejeitado pela CONARE, fundamentado na inexistência ou não comprovação dos critérios firmados no conceito clássico de refugiado, previsto na Convenção de 1951 - Estatuto dos Refugiados, na Declaração de Cartagena, além da própria lei brasileira de refúgio. Essa medida solidária adotada pelo governo brasileiro acabou por causar desgaste político a partir do momento em que a imprensa começou a 15
reportar uma suposta invasão de imigrantes haitianos no país, o que levou a se adotar medidas ao desenvolvimento de uma política mais restritiva de acolhimento baseada em um sistema de cotas, que foi utilizado como critério para a concessão de visto (SANTOS 2015). Assim, as autoridades brasileiras já declararam abertamente a preocupação de que o processo de migração de haitianos para o Brasil não é sustentável a médio e longo prazo, não podendo se consolidar precedente sobre a questão, que se agrava com o passar do tempo. Há, portanto, diante do caso concreto, a preocupação real com a ausência de critérios mínimos para o tratamento da questão e em situações similares. No caso do Haiti, o processo de reconstrução do país demandará um tempo solidar tal precedente para casos futuros, havendo a necessidade de um posicionamento claro e considerável, do qual é possível confirmar a tendência ao crescimento do fluxo de “refugiados ambientais” (RAMOS 2011). Apesar disso, o visto humanitário permanece como uma opção de política solidária do Brasil na recepção de pessoas vítimas de desastres naturais que se submetem ao deslocamento compulsório de seu país de origem, apresentando-se como candidata à solução jurídica desse tipo de problema, inclusive a nível internacional. Portanto, a situação dos haitianos no Brasil demonstrou a necessidade de uma proteção internacional às pessoas que se deslocam de seus países de origem em razão de desastres naturais, bem como a fragilidade de se usar medidas alternativas para a solução desse problema, como o visto humanitário, sem que exista um suporte internacional para tanto, mas que poderá se objeto de estudo, aplicação e implantação no plano internacional em favor dos refugiados ambientais, como forma de proteção jurídica geradora, inclusive, de direitos (SANTOS 2015). A falta de proteção específica poderá gerar injustiça e discriminação em relação às pessoas deslocadas. A falta de amparo conferido pelos instrumentos gerais de proteção de direitos humanos, também, pode agravar ainda mais tal situação de precariedade e exposição a toda sorte de violações de direitos humanos. No caso do Haiti, também foi noticiada investigação acerca do possível envolvimento de uma rede internacional de tráfico de pessoas nesses fluxos migratórios. Apesar da evidência da existência de uma nova categoria de migrantes, denominada “refugiados ambientais”, essa categoria não é contemplada pelos instrumentos internacionais e pelo ordenamento interno dos Estados, como o Brasil. A situação concreta dos “refugiados ambientais” encontra-se entre as que requerem tratamento diferenciado pelo Direito Internacional, sendo necessária uma proteção especial, além da tipicamente conferida pelos instrumentos gerais de direitos humanos (RAMOS 2011). Dependendo das decisões que o Governo e atores internacionais tomadas durante essa fase de crise, as chances do Haiti de recuperação e desenvolvimento podem ser transformadas. O fornecimento de abrigo pode prover uma solução para a urbanização que minou a estabilidade por décadas. Isso pode criar novas comunidades, gerando empregos na economia rural e construir capacidades nacionais. Ou isso pode criar favelas, novas inseguranças, privações sociais e milhões de dólares desperdiçados. Essas são as escolhas reais. Ao fazê-las, nós devemos estar conscientes das nossas responsabilidades. Durante muito tempo, o Haiti enfrentou uma comunidade internacional inconstante. Intervenção seguida de intervenção vieram 16
e se foram e pouca atenção às causas enraizadas da estabilidade e pobreza, ou desejo de resolvê-las. A resposta à crise tem sido frequentemente terminada muito antes da recuperação acontecer (tradução nossa. MULLET, 2010).
O Refúgio Ambiental e a Questão dos Deslocados Ambientais pela Perspectiva das Relações Internacionais Apesar dos números dos deslocados ambientais serem difíceis de estimar, eles podem se equiparar ao de refugiados de conflitos. Mais recentemente, um estudo publicado pelo Centro de Monitoramento de Deslocamento Interno do Conselho Norueguês de Refugiados calculou que desastres naturais deslocaram aproximadamente 26,4 milhões de pessoas por ano desde 2008, enquanto o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) estima que há atualmente 22,5 milhões de refugiados mundialmente (VALLE 2017). A comparação entre refugiados e deslocados ambientais é cada vez mais comum. Os afetados por desastres naturais e degradação ambiental são frequentemente sujeitados a condições de vida extremas que ocasionam prejuízos comparáveis a perigos iguais ou maiores do que os sofridos pelos refugiados. Pessoas que enfrentam os impactos de perigos ambientais podem ter de lidar com contaminação de água potável, escassez de comida, proliferação de doenças, saneamento precário, falta de moradia e muitas outras dificuldades que causam a privação de direitos básicos. É principalmente em vista dessas adversidades que indivíduos afetados por fatores ambientais são comumente chamados de “refugiados ambientais” (VALLE 2011). E mesmo a utilização frequente do termo “refugiados ambientais” é criticada. Sua popularização começou nos anos 1970, mas apesar de seu uso comum, o conceito de refugiados ambientais não possui base legal sob a lei de refúgio internacional, especialmente na Convenção dos Refugiados; dado que é aceito que essas pessoas não se qualificam pela definição da Convenção de 1951 em relação ao Status de refugiados (“Refugee Convention”). Mesmo assim, o termo é frequentemente empregado com outro objetivo em mente: para argumentar que a proteção aos ambientalmente deslocados deve ser assegurada por meio de uma emenda à Convenção sobre Refugiados que inclua explicitamente uma categoria de refugiados ambientais A autora Mariana Ferolla Vallandro do Valle critica que as propostas de extensão das proteções oferecidas pela convenção não são a solução para “preencher a lacuna”. Assim, um dos principais obstáculos que envolve as migrações induzidas por causas ambientais é que, até hoje, não existe uma definição oficial para “refugiado ambiental”. Não há consenso sobre a expressão ou termo mais adequados e representativos para descrever o fenômeno. Há inúmeras sugestões constantes na literatura especializada, tais como, “refugiados ambientais”, “refugiados climáticos”, “migrantes ambientalmente forçados”, “migrantes ambientalmente induzidos”. No entanto, não há uma nomenclatura nem uma definição considerada oficial para a expressão “refugiado ambiental” (RAMOS 2011). Entre os estudiosos no tema, há uma divisão entre os que se posicionam a favor e contra a construção da categoria “refugiados ambientais”. A controvérsia é parte do debate e, ao conhecê-la, busca-se compreender como o tema vem sendo discutido e identificar quais as maiores dificuldades e desafios a serem enfrentados. 17
Segundo o autor Astri Suhrke, os autores dividem-se em “minimalistas” e “maximalistas”. Os minimalistas partem da premissa de que a degradação ambiental não seria a causa exclusiva determinante para as migrações em massa, não sendo possível isolá-la das causas econômicas, políticas e sociais, razão pela qual a construção “refugiados ambientais” não teria utilidade. O segundo grupo, em sentido contrário, extrai a variável ambiental desse conjunto de causas e considera a migração como resultado direto ou imediato da degradação ambiental. Este último grupo, segundo a autora, representa a literatura da primeira geração sobre “refugiados ambientais”. Olivia Dun e François Gemenne, por sua vez, denominam os minimalistas como “céticos” e os maximalistas como “alarmistas”: “Generally speaking, the former, who tend to isolate environmental factors as a major driving force of migration, can be described as ‘alarmists’ and the latter, who tend to insist on the complexity of the migration process, as “skeptics”. Interestingly, alarmists usually come from disciplines such as environmental, disaster and conflict studies, while skeptics belong almost exclusively to the field of forced migration and refugee studies. Unsurprisingly, reports linking climate change with security issues usually side with alarmists.” (DUN; GEMENNE; 2008.)
O tema ganhou notoriedade em 1985 com Essam El-Hinnawi, quando atuava junto ao Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), que é considerado pela maioria dos autores como pioneiro no tocante à definição do fenômeno “refugiados ambientais”, e popularizou o uso da expressão. Para o autor, a definição de refugiado não está totalmente fixada: Em um sentido amplo, todas as pessoas deslocadas podem ser descritas como refugiados ambientais, dado que foram forçadas a sair de seu habitat original (ou saíram voluntariamente) para se protegerem de danos e/ou para buscar uma maior qualidade de vida. Entretanto, para a finalidade deste livro, refugiados ambientais são definidos como aquelas pessoas forçadas a deixar seu habitat natural, temporária ou permanentemente, por causa de uma marcante perturbação ambiental (natural e/ou desencadeada pela ação humana), que colocou em risco sua existência e/ou seriamente afetou sua qualidade de vida. Por “perturbação ambiental”, nessa definição, entendemos quaisquer mudanças físicas, químicas, e/ou biológicas no ecossistema (ou na base de recursos), que o tornem, temporária ou permanentemente, impróprio para sustentar a vida humana. De acordo com esta definição, pessoas deslocadas por razões políticas ou por conflitos civis e migrantes em busca de melhores empregos (por motivos estritamente econômicos) não são consideradas refugiados ambientais. Existem três grandes categorias de refugiados ambientais. Primeiro, há aqueles que foram deslocados temporariamente por causa de um stress ambiental. [...] A segunda categoria de refugiados ambientais compreende aqueles que tiveram de ser permanentemente deslocados e restabelecidos em uma nova área. [...] A terceira categoria de refugiados ambientais é constituída de indivíduos ou grupos de pessoas que migram de seu habitat original, temporária ou permanentemente, para um novo dentro de suas fronteiras nacionais, ou no exterior, em busca de uma melhor qualidade de vida.
El-Hinnawi, com base em relatório elaborado pela Cruz Vermelha Sueca em 1984 sobre a ocorrência de desastres em países subdesenvolvidos e em desenvolvimento entre as décadas de 60 e 70, relaciona o crescente aumento dos desastres naturais (secas, inundações, ciclones e terremotos) com o número de pessoas afetadas em razão destas e de outras perturbações ou pressões ambientais (pobreza, fome, os impactos negativos do desenvolvimento, acidentes industriais). Sem a preocupação de isolar as causas dos 18
deslocamentos, reconhece a interação dos problemas ambientais com os aspectos políticos, econômicos, geográficos e sociais Em 1988, Jodi L. Jacobson, em um artigo elaborado para o Worldwatch Institute, também busca definir o tema: Aquelas pessoas temporariamente deslocadas devido a perturbações ambientais locais, como avalanches ou terremotos; aqueles que migram por causa da degradação ambiental que tem prejudicado a sua subsistência ou apresenta riscos inaceitáveis para a saúde; e aqueles reassentados porque a degradação da terra resultou em desertificação ou por causa de outras mudanças permanentes no habitat.
Observa-se uma noção geral de refugiado, sem distinguir as situações de deslocamentos internos e externos, de fundamental importância para o reconhecimento perante o Direito Internacional. No entanto, um dos méritos de análise de Jacobson é enfatizar o impacto das atividades humanas sobre a ocorrência de eventos que eram aceitos pela sociedade como fatalidade ou desastre natural (avalanches, ciclones, terremotos, inundações). Essas “pressões” sobre o ambiente natural e humano os tornam mais vulneráveis aos efeitos de tais eventos, contribuindo para o crescente aumento do número de “refugiados ambientais”, importante indicador da extensão e da gravidade do processo de degradação ambiental mundial. Em 1995, o cientista ambiental Norman Myers, vislumbrando um cenário alarmante de “êxodos ambientais” que se agravaria significativamente no futuro, destaca os impactos do aquecimento global nesse processo (aumento do nível do mar e inundações nas áreas costeiras), sem deixar de considerar outros fatores que, segundo o cientista, exacerbam os problemas ambientais. Myers ressalta a importância de uma definição que seja facilmente compreendida, passível de demonstração (documentação e quantificação) para tomadores de decisão, gestores e cientistas. Assim propôs a seguinte definição, visando separar os migrantes econômicos dos “refugiados ambientais”: Refugiados ambientais são pessoas que já não conseguem ter uma vida segura em sua terra natal por causa de fatores ambientais de âmbito incomum. Esses fatores incluem a seca, a desertificação, desmatamentos, erosão do solo e outras formas de degradação dos solos; déficits de recursos, tais como a escassez de água, o declínio dos habitats urbanos através da sobrecarga maciça dos sistemas de cidade, problemas emergentes, tais como as mudanças climáticas, especialmente o aquecimento global, e desastres naturais como ciclones, tempestades e inundações, terremotos, com impactos agravados pela má gestão humana. Pode haver fatores adicionais que exacerbam os problemas ambientais e que muitas vezes resultam, em parte, de problemas ambientais: o crescimento populacional, pobreza generalizada, fome e doença pandêmica. Ainda há outros fatores que incluem as políticas de desenvolvimento deficiente e sistemas de governo que marginalizam o povo em sentido econômico, político, social e jurídico. Em determinadas circunstâncias, um número de fatores pode servir de “gatilhos” imediatos da migração, por exemplo, grandes acidentes industriais e construção de grandes barragens. Desses fatores múltiplos, vários podem operar em conjunto, muitas vezes com impactos agravados. Diante dos problemas ambientais, pessoas envolvidas sentem que não tem alternativa senão a de buscar o sustento em outro lugar, dentro dos seus países ou em outros países, numa base semipermanente ou permanente. (MYERS; KENT; 1995)
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Especificamente quanto à questão da nomenclatura, ao analisar as inúmeras alternativas ao uso da expressão ‘refugiados ambientais’, tais como “pessoas ambientalmente deslocadas”, “migrantes ambientalmente forçados”, “ecorrefugiados”, “eco-migrantes”, “eco-evacuados”, “eco-vítimas”, Myers e Kent concluem que nenhuma delas está apta a demonstrar a força, a complexidade e a gravidade desse fenômeno. Assim, as categorizações e instituições deveriam acompanhar a dinâmica das transformações mundiais e não continuarem vinculadas às abordagens tradicionais. Neste quesito, o geógrafo William B. Wood opta pela expressão “eco-migrantes”, fundamentada na impropriedade jurídica do uso da expressão “refugiado ambiental” em face do Direito Internacional dos Refugiados na atualidade e na utilização do prefixo “eco” para demonstrar a profunda interação existente entre fatores ecológicos e econômicos como motivadores de deslocamentos forçados. Porém, apesar da intenção de parte dos estudos em demonstrar a complexidade das causas que geram os fluxos de migratórios ambientais, a designação “ecomigrantes” extrapola esse objetivo ao permitir que categorias distintas possam ser designadas pelo mesmo prefixo “eco”, como é o caso dos migrantes ecológicos e econômicos. Para a autora Luciana Durães Diniz Pereira, o novo status de migrante e sua respectiva proteção incluiriam os migrantes econômicos e os migrantes ambientais (internos ou externos). A suposta confusão entre migrantes econômicos e ambientais tem servido de argumento, inclusive, para não se adotar um estatuto específico para os “refugiados ambientais”, justamente em razão da sobrecarga excessiva, inclusive de ordem financeira, que traria aos organismos internacionais e aos próprios Estados. Para a autora, o novo status de migrante e sua respectiva proteção deveriam incluir, de forma abrangente, os migrantes econômicos e os migrantes ambientais (internos ou externos) e argumenta que a suposta confusão entre migrantes econômicos e ambientais tem servido de argumento, inclusive, para não se adotar um estatuto específico para os “refugiados ambientais”, justamente em razão da sobrecarga excessiva, inclusive de ordem financeira, que traria aos organismos internacionais e aos próprios Estados. Pereira afirma que uma categoria de pessoas em crescimento seria mera suposição, seja porque não há evidências sobre o nexo de causalidade necessário entre degradação ambiental e migração, em razão da multiplicidade de fatores intimamente ligados, seja pelo êxito improvável na elaboração de uma definição adequada para os “refugiados ambientais”, restando comprometidos os esforços das instituições e da comunidade acadêmica na defesa de um regime de proteção: Se a proteção e assistência internacionais forem oferecidas no futuro, através da Convenção de Genebra ou algum outro instrumento internacional para as supostamente crescentes fileiras de ‘refugiados ambientais’, a base para tal intervenção precisa ser muito mais clara do que é atualmente. Em que medida aqueles desalojados por desastre ambiental, seja temporária ou permanentemente, têm especial proteção ou precisam de assistência? Pode ser dito com toda confiança que lidar com as ‘causas-raiz’ da fuga (como o ACNUR tem procurado fazer pelos refugiados políticos) seria relevante na redução do ‘deslocamento ambiental’? Finalmente, se a proteção e a assistência fossem estendidas pelo regime internacional dos refugiados para os ‘refugiados ambientais’, ajudaria ou desviaria o foco da atenção mundial sobre os problemas das pressões ambientais?
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Richard Black, um dos mais críticos autores no debate sobre a temática dos “refugiados ambientais”, ressalta as dificuldades decorrentes da pluralidade de definições e tipologias que, segundo ele, revela a falta de precisão e a pouca utilidade nas tentativas de descrição do fenômeno propostas: Há abundantes tipologias de 'refugiados ambientais' e 'migrantes ambientais', mas pouco acordo ou compreensão do que essas categorias podem realmente significar. A preocupação prática com a situação das pessoas pobres saindo de ambientes frágeis não se traduz em provas concretas da extensão ou em causas fundamentais dos seus problemas. Além disso, há ainda o perigo de que os escritos acadêmicos e de políticas em ‘refugiados ambientais’ tenham mais a ver com agendas burocráticas de organizações internacionais e acadêmicas do que com qualquer conhecimento teórico ou empírico real (BLACK, 2001).
Atualmente, nem a expressão “refugiados ambientais”, nem a expressão “deslocados internos ambientais” encontram respaldo no Direito Internacional vigente, que não reconhece a categoria específica dos migrantes ambientais para efeito de proteção e assistência (Ramos 2011). Embora os Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos (1998) reconheçam as calamidades naturais ou provocadas pela ação humana como causas de deslocamentos internos forçados, além de identificar as necessidades, direitos e garantias às pessoas nessa condição, tais princípios consistem em recomendações aos Estados que enfrentam esse problema. Acrescenta-se ainda o fato de haver uma forte resistência dos Estados e de organizações intergovernamentais à ampliação do alcance do atual sistema internacional de proteção a refugiados e à criação de um novo instrumento normativo vinculante. A complexidade da interação entre causas que geram as migrações e o questionamento sobre a causalidade direta entre mudanças ambientais e migrações não podem representar obstáculos à busca de soluções. Nesse sentido, a corrente “maximalista” defende uma abertura na abordagem sobre os refugiados em geral para abranger os refugiados ambientais em particular (RAMOS 2011). No entanto, não desconhecem-se os desafios a serem enfrentados nesse processo, especialmente quanto à multiplicidade de fatores que contribuem para a formação dos fluxos migratórios ambientais: Em suma, existe uma gama de fatores em ação. De um lado estão aqueles que são movidos por problemas ambientais imediatos, e, no outro extremo estão os migrantes econômicos que são oportunistas voluntários em vez de refugiados. No meio está uma zona cinzenta em que uma categoria, por vezes, tende a se fundir a outra. A avaliação até o momento nada mais é que um primeiro esforço de corte, ainda que preliminar e exploratório, para vir a enfrentar um problema importante e de rápido crescimento que é muito real para aqueles que o suportam, por mais que os puristas possam argumentar sobre definições finais (MYERS, 2005)
A visibilidade dessa nova categoria de refugiados, decorrentes de fenômenos naturais não controlados, impôs a oficialização da sua existência e fez com que o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA viesse a defini-lo como: “[...] pessoas que foram obrigadas a abandonar temporária ou definitivamente a zona tradicional onde vivem, devido ao visível declínio do ambiente (por razões naturais ou humanas) perturbando a sua existência e/ou qualidade da mesma de tal maneira que a subsistência dessas pessoas entra em perigo.”
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Apesar do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA ter oficialmente reconhecido a existência dos refugiados ambientais, juntamente com os fenômenos provocadores do seu aparecimento e as suas respectivas causas, a repercussão dessa iniciativa não teve a recepção esperada, pois não despertou o interesse da comunidade internacional na mesma proporção da gravidade do problema. Essa especificidade de refugiados continuam desamparadas juridicamente no plano internacional pelo simples fato de não se encaixarem no conceito clássico ou na definição do gênero de sua categoria (BARROS, In. SANTOS, 2015). A realização de políticas internacionais e as tomadas de medidas eficazes para combater e inibir o aumento do número de refugiados ambientais, bem como para auxiliar os que já se encontram nessa situação, ficaram reservadas para serem enfrentadas e realizadas não de forma preventiva, mas talvez paliativa. A Organização das Nações Unidas (ONU) admite que os "refugiados ambientais" fazem parte de uma categoria em expansão e que necessitam de assistência. Especialistas da Universidade das Nações Unidas (UNU) estimam que, até o ano de 2050, poderão ser 200 milhões de pessoas que tiveram de abandonar os seus lares em razão de processos de degradação e desastres ambientais, especialmente em virtude das mudanças climáticas; e, em 2010, já haveria 50 milhões de pessoas nessa condição, superando o quantitativo referente à categoria dos refugiados tradicionais. Hoje, já se reconhece que os deslocamentos humanos vinculados a grandes projetos de desenvolvimento e a desastres naturais ocorrem de cinco a dez vezes mais do que os deslocamentos gerados por conflitos. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), por sua vez, estima que 25 milhões de pessoas já se encontrem em situação de “êxodo forçado” por catástrofes ambientais. Em vista dos dados apresentados, a UNU alerta: “Ao contrário de vítimas da turbulência política e violência, que têm acesso através de governos e organizações internacionais de assistência, tais como subsídios financeiros, alimentos, ferramentas, abrigos, escolas e clínicas, "refugiados ambientais" ainda não são reconhecidos nas convenções internacionais. [...] Essa é uma questão altamente complexa, com organizações mundiais já sobrecarregadas por demandas dos refugiados reconhecidos, como definido originalmente em 1951. Devemos nos preparar agora para definir, aceitar e acolher esta nova espécie de "refugiado" nos instrumentos internacionais [...]”. (United Nations University - Institute for Environment and Human Security [UNU - EHS]).
Apesar dos dados alarmantes, essa categoria de refugiados continua sem o devido reconhecimento pelo Direito Internacional e, embora já existam iniciativas elaboradas por juristas e representantes de governos de países afetados com os efeitos das mudanças climáticas e de outros processos de degradação ambiental, ainda há uma grande resistência à ampliação do conceito de refúgio para incluir o meio ambiente como fonte de “perseguição”, sob o argumento de que pessoas e grupos que migram por razões ambientais ainda podem procurar amparo de seus próprios governos. No entanto, esse argumento é questionável ao questionar-se a fragilidade ambiental de determinados Estados, especialmente os subdesenvolvidos e em desenvolvimento, que geralmente são mais suscetíveis aos desastres ambientais e carecem de recursos materiais suficientes para enfrentar os seus efeitos e para prestar assistência às populações afetadas. Também se observa que a complexidade do tema 22
ultrapassa a capacidade dos instrumentos internacionais existentes e atuais e dos organismos multilaterais em atividade em lidar com a questão dos "refugiados ambientais" com a abrangência, contemplando suas múltiplas dimensões, dentre elas a da proteção da pessoa humana e do ambiente afetado, que merecem uma atenção especial (RAMOS 2011). Projeções Futuras Há que se considerar a enorme pressão sobre o meio ambiente causada pelo crescimento acelerado da população mundial cujas taxas, em geral, são mais significativas nas localidades mais pobres e mais vulneráveis à degradação e ao esgotamento dos recursos ambientais, conjuntamente da crescente demanda mundial por recursos naturais como a água, fator que influencia diretamente no aumento considerável da mobilidade humana em tais regiões, onde os fluxos migratórios tendem a ser cada vez mais intensos (RAMOS 2011). Cientistas, organizações internacionais e acadêmicos sinalizam no sentido de uma crise humanitária sem precedentes no futuro, de proporções muito maiores do que as já vividas em razão de guerras e conflitos violentos, segundo observa Cláudio Tadeu Cardoso Fernandes: Muitos analistas têm argumentado ultimamente que a maior parte dos conflitos armados no futuro próximo estará relacionada a problemas ambientais, como mudanças climáticas, o aumento do nível dos mares, e a escassez de água potável, gerando uma acirrada disputa por recursos e territórios mais seguros. Assim, os países passariam a desenvolver poderosas armas para defender ou assegurar a posse de alimentos, água e estoques de energia, em que a estabilidade global estaria seriamente ameaçada.
Portanto, um dos grandes desafios atuais para as novas políticas de segurança global é a mudança climáticas dadas as evidências científicas que apontam para a participação humana neste processo. Analisando o movimento de “securitization” das mudanças climáticas no sistema internacional, Luciana Mendes Barbosa e Matilde Souza identificam o início dos debates sobre os potenciais impactos dos efeitos das mudanças climáticas e os riscos para a estabilidade e a segurança internacional no âmbito do Conselho de Segurança: Essa temática foi levada pela primeira vez ao Conselho de Segurança (CS) em 2007, com o propósito de debater as suas consequências para a paz e a segurança internacionais. Em documento, o Reino Unido afirmava que as mudanças climáticas ameaçavam a paz e a segurança internacionais em função de seus efeitos sobre litígios já existentes, envolvendo países fronteiriços, além de constituir um fator desencadeador de crises humanitárias, disputas por recursos escassos e tensões sociais (SECURITY COUNCIL, 2007a). Durante o debate, a então secretária de Relações Exteriores do Reino Unido, Margareth Beckett, declarou que as mudanças climáticas se referiam não à questão de segurança nacional, mas à “segurança coletiva em um mundo frágil e crescentemente interdependente”, transformando assim “o modo como a comunidade internacional pensa a segurança” (SECURITY COUNCIL, 2007b, p. 19).
No relatório elaborado pelo Conselho Consultivo Alemão sobre Mudança Global (German Advisory Council on Global Change) em 2007, identificam-se as seguintes ameaças à estabilidade e à segurança internacional resultante das mudanças climáticas: o possível aumento de Estados fracos e frágeis; os riscos para o 23
desenvolvimento econômico global; os riscos de crescimento de conflitos internacionais entre os principais impulsionadores da mudança climática e os mais afetados; o risco para os direitos humanos e para a legitimidade dos países industrializados como atores de governança global; o desencadeamento e intensificação da migração e o alargamento forçado da política de segurança clássica. Observaram-se "constelações de conflito" induzidas pelas mudanças climáticas que poderão levar à desestabilização social e à violência: degradação dos recursos hídricos, declínio na produção de alimentos, aumento nos desastres como tempestades e inundações e as migrações induzidas por fatores ambientais. By recognising environmental refugees you recognise the problem. By recognising the problem you start on the road to accepting responsibility and implementing solutions (LAMBERT, Jean. In. RAMOS 2011).
Outro Caso de Crise de Refugiados Ambientais De acordo com um estudo do Conselho Norueguês de Refugiados (Norwegian Refugee Council), atualmente, duas vezes mais pessoas perdem suas moradias para desastres do que na década de 1970 e cada vez mais pessoas entram em perigo a cada ano. Assim, tornam-se comuns os países acometidos pelas consequências das mudanças climáticas e do aquecimento global, o que resulta no deslocamento compulsório de vários de seus habitantes para fora de seus territórios nacionais. Destacam-se as Ilhas Vanuatu, localizada na Oceania, um complexo formado por aproximadamente 83 ilhas, que sofre com frequência devastadores ciclones, obrigando grande parte de seus habitantes a deixarem o país. Como se trata de um país basicamente agrícola, as Ilhas Vanuatu precisam do auxílio externo para lidar com as catástrofes naturais. Um dos mais destrutivos ciclones, o Uma, atingiu o país em 1987, deixando vários mortos e feridos, além de danificar ou arruinar a maioria das habitações locais e navios. Mais recentemente, em março de 2015, o Ciclone Pam chegou ao arquipélago, deixando uma completa devastação e o Estado em alerta vermelho, com 24 pessoas mortas e 3.300 desabrigadas. Contudo, o Ciclone Pam, e seus efeitos devastadores, não podem ser considerados surpreendentes, pois a capital de Porto Vila já tinha sido considerada pela empresa britânica Verisk Maplecroft, que atua na área de análises de riscos, como a cidade mais exposta a desastres naturais. Além de Porto Vila, a Verisk Maplecroft também considerou oito cidades filipinas como de alto risco a desastre ambientais. Localizada no sudeste da Ásia, as Filipinas, é um país composto por 7.107 ilhas e uma crescente economia que encontra impedimentos para o progresso ante a sua deficiente infraestrutura. Além dos ciclones, as Filipinas têm como grande desafio as tempestades e inundações que ocorrem com uma grande frequência e geram enorme índice de mortalidade e problemas econômicos. Só entre os anos de 2005 e 2014 foram 18 os eventos envolvendo esses desastres, que resultaram na morte de 1.817 pessoas e em uma perda econômica de 1.659.402 dólares. Referências Bibliográficas •
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ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951. Adotada em 28 de julho de 1951 pela Conferência das Nações Unidas de Plenipotenciários sobre o Estatuto dos Refugiados e Apátridas, convocada pela Resolução n. 429 (V) da
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