E N T R E V I S TA
A trégua “Falemos alto, os milagres são poucos”
A entrevista a seguir foi feita em três exaustivas sessões realizadas em dois dias – as últimas quarta e quinta-feira de julho passado. Quem, no entanto, visse Ferreira Gullar à vontade diante de seus interlocutores, os gestos largos, as mãos magras desanuviando os olhos ou contendo os cabelos, o riso espontâneo, o verbo alto, fácil, seria capaz de apostar que o autor de A luta corporal experimentava uma trégua em meio àquele debate de idéias. Da infância em São Luís e os primeiros versos à globalização e o uso de novas tecnologias nas artes – passando pelas crises (muitas) de linguagem, o sonho (curto) do socialismo, a amargura (longa) do exílio, o peso (bruto) da morte e o nascimento (calmo) do poema, que ninguém sabe como nasce – Ferreira Gullar revisita, na paz armada desta entrevista, uma trajetória de rara magnitude. Mais do que isso, afirma-se outra vez como um intelectual de muitas armas, que só se rende à poesia: “O poema, quando vem, de qualquer um de seus abismos, desconhece tudo, não reconhece pai nem mãe – não respeita nada”.
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O sr., como é sabido, passou a adotar o pseudônimo Ferreira Gullar depois que viu o seu verdadeiro nome, Ribamar Ferreira, assinando um poema – na página literária do Diário de São Luís, em 1948 – que na realidade era de um certo Ribamar Pereira. Além do incômodo de aparecer assinando algo que não era de sua autoria, o que o transtornou foi ter o seu nome ligado a um determinado tipo de poesia que o sr. rejeitava – carola, bem-comportada. Qual era exatamente a sua noção de poesia naquela época? De onde vinha o sentimento de que era necessário “transgredir”? CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA:
nessa época, começaram a aparecer nos jornais os primeiros poemas modernos. Lembro que O Imparcial publicou num domingo os sonetos brancos de Murilo Mendes. Achei-os estranhíssimos. Depois apareceu o livro do Drummond, Poesia até agora. Meu amigo Lago Burnett, que também começava sua vida literária, comprou um exemplar e me mostrou. Fiquei escandalizado. O curioso é que meu primeiro contato com a pintura moderna, já no Rio, não me chocou. Vi um quadro do Iberê Camargo – que depois se tornaria meu amigo – reproduzido na capa de uma revista e me apaixonei por aquelas pinceladas ásperas. Foi uma reação muito diferente de quando eu li pela primeira vez “Escrevo teu nome com letra de macarrão”. Aquilo, para mim, não era poesia.
Ferreira Gullar: Naquela época eu era um garoto, tinha 18 anos e o poeta referido aí, um senhor, bem mais velho do que eu. O poema dele era um soneto chamado “A monja” – uma coisa que não tinha nada a ver comigo. Mas o meu nome estava lá. No Maranhão, como vocês sabem, todo mundo se chama Ribamar. É a devoção a São José do Ribamar. Havia na minha época vários Ribamares que eram poetas: Ribamar Costa, Ribamar Galiza e outros. E existia esse Ribamar Pereira. Quando vi a confusão no jornal fiquei revoltado. Na qualidade de locutor [da Rádio Timbira], tive o privilégio de ler uma nota no ar, explicando o engano. A nota dizia que o poeta Ribamar Ferreira informava que o poema que saíra no Diário não era de sua autoria – e avisava que eu iria mudar de nome.
CADERNOS:
Seu desconforto com “A monja”, portanto, era mais pelo conteúdo que pela forma?
Ferreira Gullar: Sim. Eu estava tão familiarizado com o parnasianismo que chegava a falar em decassílabos. Quer dizer, o problema não era ser parnasiano. CADERNOS:
Ao que consta, o sr. vivia num ambiente onde havia pouco estímulo para a leitura. De onde veio, então, o interesse por livros?
CADERNOS:
Voltando à questão de seu conceito de poesia na época, qual era, naquele período, o seu universo de leitura? Eram leituras sugeridas por alguém? Ou foram autores descobertos na base da tentativa e erro?
Ferreira Gullar: Eu não sei explicar. De fato, na minha casa não tinha livros. É verdade que um dia, meu pai, que era comerciante, apareceu lá com um exemplar de Amor de perdição [de Camilo Castelo Branco]. Mas não tínhamos livros em casa. Não sei explicar, portanto, meu interesse literário. Aos 13 anos, entrei na Escola Técnica de São Luís e lá não se ensinava literatura. O negócio era aprender rudimentos de marcenaria e sapataria. Aquilo, é claro, não tinha nada a ver comigo. Quando o cara batia com martelo na bigorna, eu ficava com os ouvidos estourando. Mas ali aprendi algumas coisas. Se você duvidar, sou capaz, por exemplo, de te fazer um sapato. De qualquer maneira, nessa escola havia um jornalzinho e uma vez saiu um
Ferreira Gullar: Minha formação era parnasiana. Eu conhecia os poetas incluídos no final da Gramática expositiva de Eduardo Carlos Pereira. Tinha Camões, Bocage, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Castro Alves e, claro, os parnasianos Olavo Bilac e Raimundo Corrêa. Aprendi então a me dar muito bem com o decassílabo e o alexandrino. Eu lia os poemas e decorava. Em 1949 conheci a poesia moderna; 32
de letras e poetas vivos. Como lembro sempre, para mim, naquela época, todos os poetas já tinham morrido. Um dia, minha irmã me disse que o pai de uma amiga dela, chamada Iracema, era poeta. Eu fui lá e conheci Manuel Sobrinho. Ele estava com uma camisa simples e de tamanco. Não parecia um poeta. Não me lembrava as fotos que eu havia visto de autores como Byron. Comecei então a descobrir uma outra cidade – com autores vivos, jornais, revistas. No Centro Cultural Gonçalves Dias, por exemplo, declamavam-se poemas todos os domingos. Comecei a freqüentá-lo. Vestia meu único terno e ia para lá. Quando descobri a poesia moderna, passei a procurar autores que a explicassem – e assim fui ler livros de ensaios retirados da biblioteca municipal. Lia, então, sem parar, poetas e ensaístas. Eu chegava em casa, acabava de almoçar, ia para o meu quarto, deitava na rede, botava uma pilha de livros do lado e ia lendo: Otto Maria Carpeaux, Mário de An drade, Álvaro Lins, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade. Afinal, em 1950, como é sabido, escrevi o poema “O galo” e ganhei o concurso do Jornal de Letras. A essa altura eu já era moderno.
soneto de um dos alunos, – tolo evidentemente – que falava da chuva pingando. Eu li aquilo e achei que poderia escrever também. Depois fiz uma redação sobre o Dia do Trabalho que me deu fama – ganhei nota 95 e a diretora leu o texto diante da turma. A grande idéia da redação era que no Dia do Trabalho ninguém trabalhava. Só não ganhei 100 porque havia erros de português. Ao ouvir isso da professora, decidi estudar gramática para valer. Foi quando achei que seria escritor. Meu pai tinha uma quitanda, um primo trabalhava no Banco do Brasil – eu não queria saber de nada daquilo para a minha vida. CADERNOS:
O sr. já disse que, na infância e adolescência, passava horas na rua jogando bola com os amigos. A partir de uma determinada época, porém, passou a estudar gramática e escrever poesia. Como foi esse período?
Ferreira Gullar: Quando comecei a me dedicar aos estudos e à poesia, parei com a molecagem. Meus amigos iam para frente de casa e ficavam assobiando para me chamar (tinha um assobio para me chamar). Eu não ia. Depois de um tempo, eles começavam a jogar pedra e a me insultar. Mas eu tive uma ótima infância. Vivia pescando no rio e fazendo molecagem na rua. São Luís é uma cidade muito bonita, cheia de vento, de palmeiras. A vida era uma coisa maravilhosa do ponto de vista da experiência animal dela. Eu tinha horror de virar adulto. Quando minha mãe me deu a primeira cueca, entrei em crise. Não queria entrar no mundo dos adultos. Só que comecei a ler, estudar e um dia vi uma foto do Vinícius tocando violão e pensei que seria muito bom poder ganhar a vida fazendo algo assim.
Leandro Konder: Quase 50 anos depois, como você percebe o autor de Um pouco acima do chão (1949), que é outro, e no entanto, é você?
Ferreira Gullar: Eu era um garoto ingênuo que estava tateando um caminho com grande entusiasmo pela poesia, mas sem saber direito o que era poesia. Eu costumo dizer que para você chegar ao Piauí precisa saber onde fica o Piauí. Eu estava tateando para saber o que era poesia. CADERNOS: Por que o sr. não inclui Um pouco acima do chão em suas obras completas, preferindo colocar A luta corporal (1954) como seu “primeiro livro”?
CADERNOS:
As leituras dessa nova fase já tinham uma preocupação de “aprendizagem”?
Ferreira Gullar: Na verdade, eu lia muita coisa sem entender. Achava que precisava ler e pronto. Fiquei sócio do Clube do Livro, conheci Machado de Assis e Lima Barreto. Curioso é que, quando me envolvi com o mundo literário, eu não tinha noção de que existiam academias
Ferreira Gullar: Para mim, Um pouco acima do chão foi, como disse, um tateio inicial. É um livro ingênuo. Uma coisa sem valor. Se alguém gostar, ótimo. Mas foi depois que formei mesmo minha noção de poesia. 33
Como foi se formando o projeto do livro A luta corporal ? Naquela época, alguns dos poetas de maior visibilidade do país, caso de Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, encaravam um livro como uma reunião de poesias. E A luta corporal está longe de ser uma mera coletânea de poemas.
CADERNOS:
prometendo chegar ao centro da linguagem e não chegava nunca. Era como se fosse uma fruta: eu não queria me referir a ela, queria que o poema fosse a fruta. Foi assim que surgiu “há os trabalhos e (há) um sono inicial…” Faço uma frase toda para manter o tempo suspenso, não ter começo, meio… É um poema-impasse. Um dia, depois de ter jogado fora uma poesia que estava ficando parecida com um discurso, escrevi um poema louco, com uma linguagem desestruturada e deformada: era “Roçzeiral”.
Ferreira Gullar: Como eu tinha me formado lendo poesia parnasiana, lidando com métricas, sonetos e rimas, minha visão de mundo era parnasiana. Hoje eu entendo que você apreende o mundo de acordo com o seu instrumento de expressão. Meu instrumento era a linguagem parnasiana, era assim que eu traduzia a minha percepção da realidade. Eu posso sentir um cheiro, mas se a minha forma de expressão é parnasiana, a maneira de exprimir isso será parnasiana. Quando abandonei essa linguagem, fiquei sem instrumento. Recorri então à prosa, à linguagem coloquial. Eu tinha que chegar às formas, ao cerne da linguagem que não estava nas formas preestabelecidas. A luta corporal foi essa busca de como chegar à essência da linguagem. Percebi que para isso, era necessário que eu não me viciasse. Toda vez que se formava um certo domínio da linguagem, eu a arrebentava. Eu tinha que rejeitar a habilidade para chegar à essência.
CADERNOS: Quais foram as principais influências de A luta corporal ?
Ferreira Gullar: Eu tinha lido Rimbaud, Mallarmé. Mas não me lembro de uma relação causal. O livro era uma aventura. Eu me julgava uma pessoa vivendo uma aventura alucinada, reveladora. A sensação que eu tinha era de algo suicida e que estava disposto a me consumir. Naquele tempo eu não tinha família, nem uma vida regular, vivia sozinho num quarto perto da Praça da Cruz Vermelha. Era uma vida desligada da realidade comum de todos. Eu vivia, então, num clima de aventura. Parecia um sonho. Quando terminei o livro, não tinha mais para onde ir. CADERNOS:
CADERNOS:
Pode-se dizer que cada parte do livro corresponde a essa aquisição de habilidade, que lhe permite, então, partir para outra forma de linguagem?
O sr. acreditava que não escreve-
ria mais?
Ferreira Gullar: Sim. Eu dizia que tinha nojo de falar e escrever como antes. Então, estava tudo acabado.
Ferreira Gullar: O livro começa com um ajuste de contas em relação à poesia metrificada, rimada. Um ajuste de contas – quer dizer, para nunca mais fazer aquilo. E aí começam os poemas “Galo galo”, “A galinha” – que significam uma proximidade com a experiência de vida, sem vícios, sem habilidades. Chega, porém, uma hora em que aquele processo começa a ganhar uma forma e ficar abstrato. Aí eu rompo e começo a fase prosaica (“Um programa de homicídio”). O livro, como disse, é este caminhar até eu perceber que estava sempre
CADERNOS:
Esta idéia de “destruir” a poesia praticamente no primeiro livro, como surgiu? Não era muito pretensiosa para um jovem de 24 anos?
Ferreira Gullar: Mas eu não tinha a intenção de destruir a poesia. Eu, na verdade, me sentia um desastrado, alguém que tinha sido vítima – eu não me via como um vitorioso. Eu tinha me metido por um caminho que me levara ao desastre. Eu achava que não haveria saída. 34
CADERNOS: Em 1954 o sr. considerava A luta corporal um livro hermético?
pessoais, o existencial e o poético. Criei uma utopia para sair do impasse depois que rompi com a linguagem metrificada; ao fim desse processo, estava em novo impasse. Não passava pela minha cabeça: “Estou fazendo uma revolução”. Eu só fui suficientemente audacioso para não me importar com as conseqüências – como disse antes, havia algo de suicida na minha proposta. Estava disposto a ir até o fim, qualquer que fosse o preço. Eu queria que a poesia fosse uma revelação. Mas, quando falava, sentia que uma grande parte do discurso organizado era conseqüência de coisas que eu sabia anteriormente, as quais eu lera nos livros de escola. Era isso que eu procurava evitar. Do mesmo modo, quando eu escrevi o Poema sujo, não estava pensando em fazer algo curto ou longo: sentia necessidade de mergulhar em toda a minha vida, de fazer um balanço e trazer tudo à tona.
Ferreira Gullar: Eu não tinha idéia disso. Lembro que mostrava os poemas para alguns amigos próximos, como Oliveira Bastos, Mário Pedrosa e Lucy Teixeira. Quando escrevi “A carta do morto pobre”, o Mário disse que o que estava fazendo era muito sério e escreveu uma carta me recomendando aos seus amigos do Correio da Manhã, onde acabei publicando alguns textos. Mário também levou o livro para Murilo Mendes que, de Roma, me escreveu uma carta. Nela, dizia que meu livro tinha relações com o surrealismo. CADERNOS:
A escrita automática é um curtocircuito do impulso consciente. O sr. dizia naquela época que não podia perder o tempo que vai do surgimento da expressão à sua colocação no papel. Pois bem, isso é escrita automática.
CADERNOS:
Esse enlace fundamental entre poesia e vida é algo que sempre separou o sr. dos formalistas “puros”. Mesmo no período de experimentalismo intenso, como na época de A luta corporal, a referência à experiência sempre esteve presente em seu trabalho.
Ferreira Gullar: É, tem a ver com a idéia do automatismo psíquico de Breton. Mas eu nunca pratiquei isso de maneira deliberada. Eu era terrestre demais. Queria introduzir, na realidade, o delírio e o “deslimite”. Mas não queria sair do concreto. Não queria uma poesia de sonho. Apenas revelar o que há de delirante no real. Os textos da parte que chamei de “As revelações espúrias”, por exemplo, são dessa fase. O primeiro deles foi “Carta ao inventor da roda”. Depois escrevi uma série de textos assim, até esgotar também essa experiência.
Ferreira Gullar: No final de A luta corporal, eu estava experimentando, como disse antes, um dos períodos mais críticos de meu trabalho poético. Nesse momento, houve o encontro com o grupo paulista. Foi quando discutimos a possibilidade de fazer uma nova poesia. Mas nunca adotei, como já disse muitas vezes, a idéia de uma poesia que abdicasse da experiência da vida em favor de fórmulas matemáticas.
Zuenir Ventura: Em A luta corporal você se insurgiu contra os códigos vigentes, numa atitude poética revolucionária. Depois, quando questionar virou uma categoria estética consentida, você escreveu Poema sujo (1976), provando que a linguagem poética pode ser também criativa não só ao se negar. Hoje, qual seria a linguagem revolucionária possível?
CADERNOS:
Esse, na realidade, seria o principal motivo de seu rompimento com os concretos.
Ferreira Gullar: Sim. Em 1957, como se sabe, saíram lado a lado, no “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil, dois textos marcando nossas diferenças: “Da psicologia da composição à matemática da composição”, assinado pelo grupo paulista, e a minha resposta, “Poesia concreta: experiência fenomenológica”.
Ferreira Gullar: Eu nunca fiz nada visando ser revolucionário. Quando escrevi todas essas coisas, estava tentando apenas resolver meus impasses 35
CADERNOS: O sr. conhecia Un coup de dés (1897), de Stéphane Mallarmé, quando escreveu “O formigueiro” no final dos anos 50?
dita. Com o neoconcretismo foi diferente? Por quê?
Ferreira Gullar: Eu penso que sim. O neoconcretismo foi mais criativo do que teórico. Basta dizer que tanto o manifesto quanto o diálogo sobre o não-objeto foram conseqüências dos trabalhos que já existiam. Veja bem: como nasceu o Manifesto Neoconcreto ? Eu, Lygia Clark, Hélio, Amilcar, todos nós vínhamos trabalhando, conversávamos, trocávamos idéias. Quando decidimos fazer a exposição em 1959, não pensávamos em mudar o nome do movimento. Mas havia a clareza de que existiam dois movimentos dentro da arte concreta. Quando fui refletir sobre as obras que iam ser expostas, propus para os companheiros que não havia mais sentido em usar o nome de concreto. Foi aí que veio o nome neoconcreto. O trabalho continuou. Um dia, a Lygia Clark nos convidou para jantar na casa dela. Chegando lá, mostrou uma obra que não tinha nome. Não era uma escultura. Fiquei olhando, o Mário Pedrosa também. Ela falou: “Não sei que nome botar nisso”. Mário Pedrosa disse: “É uma espécie de relevo”. Eu contestei: “Não é isso – não tem superfície. Se não tem superfície não é relevo”. Ele saiu, o jantar já estava servido – e eu fiquei ali. Lembro que pensei: “Não é pintura, não é escultura; é um objeto. Mas, se eu disser que é um objeto, ora – a mesa é objeto, a cadeira é um objeto. Portanto, esse trabalho da Lygia não é um objeto”. Fui me sentar com os outros e disse: “Descobri o nome. É um não-objeto”. Mário Pedrosa ar gumentou: “Não-objeto não é nada. Objeto é objeto do conhecimento”. Expliquei que filosoficamente ele tinha razão. “Mas o problema”, argumentei, “é que isso é um objeto-não; não é mais uma obra de arte dentro das categorias individuais, mas continua a ser objeto”. No dia seguinte comecei a tomar notas e escrevi a Teoria do não-objeto. Em resumo: tudo nasceu de um trabalho novo; não foi uma coisa assim: olha, teremos que fazer isso ou aquilo.
Ferreira Gullar: Não. A idéia do poema é a seguinte: na minha terra existe um ditado que diz “onde tem formiga, tem dinheiro enterrado”. Esse é um dado. O outro é a desarticulação da linguagem. A semelhança entre as letras e as formigas. Então, juntei as duas coisas. A proposta foi pegar algo que vinha da minha ligação com os surrealistas. De alguma maneira, criar uma linguagem automática, que não fosse resultado da minha decisão: “A formiga trabalha a terra cega; na terra traça o mapa do tesouro”. Fui juntando essas palavras e criando um mapa, um mapa do ouro – onde tem formiga, tem ouro, tem dinheiro. Criado o mapa, todas as palavras saem de acordo com a posição das letras, determinadas pelo mapa, criado aleatoriamente. Mas a partir daí, o poema não é mais aleatório. Ele é rigorosamente determinado. CADERNOS:
O Manifesto Neoconcreto sustentava que um dos “problemas” do concretismo era ter reduzido a página a um “mero espaço gráfico e a palavra a um elemento desse espaço”. Argumentava que é “no tempo e não no espaço [que] a palavra desdobra a sua complexa natureza significativa”. Por isso, dizia ainda, “a página na poesia neoconcreta é a espacialização do tempo verbal: é pausa, silêncio, tempo”. E concluía: “Na poesia neoconcreta a linguagem não escorre: dura”. Qual o poema o sr. considera exemplar dessa teoria?
Ferreira Gullar: “O formigueiro”. Ele realmente não é um poema concreto. “O formigueiro” tem essa duração de que falaria mais tarde o Manifesto Neoconcreto. CADERNOS:
Outra diferença que o sr. sempre sustentou em relação aos concretos foi o fato de o movimento ter produzido, de acordo com sua análise, “muita teoria”, em comparação com a obra de criação propriamente
CADERNOS:
Isto é perfeitamente claro nas artes plásticas. E na poesia? 36
Ferreira Gullar: A poesia neoconcreta é muito desconhecida. Quando ela se transformou em “livro-poema” já virou uma coisa quase inviável. O próprio “O formigueiro”, que era mais simples de compor, eu não consegui publicar. Fui a uma gráfica, mas as pessoas não conseguiram fazer o que eu queria. Desisti. Os livros-poema eram piores, porque continham páginas cortadas. Não dava para imprimir e nem publicar em jornal. A saída era expor. Uma das características da inovação neoconcreta é a participação do espectador na obra de arte. De onde vem isso? Nasceu do livro. Em 1961, as exposições cessaram. O movimento acabou aí porque, ao mesmo tempo, o “Suplemento Dominical”
do Jornal do Brasil foi reduzido drasticamente de tamanho. Diziam que ele gastava papel inutilmente. Nessa altura, fui convidado para trabalhar em Brasília. E lá a minha cabeça começou a mudar. Armando Freitas Filho: Em uma de suas últimas crônicas, Oswald de Andrade, que morreu em 1954, ano de publicação d A luta corporal, ao falar sobre a poesia de autores novos, cita um único nome – o seu. Ele chegou a ler o livro? Gostaria que relembrasse como você conheceu Oswald, ignorado ou esquecido naquela época, até mesmo por aqueles que, depois, tentaram monopolizá-lo. 37
Mário, discordando de um trecho sobre a idéia da forma perfeita, a “boa forma”. Era uma audácia da minha parte fazer aquilo. Pois bem, quando mudei para o Rio, eu o conheci. Ele não concordava com meu ponto de vista e quis discutir o assunto, ou seja, acabou me colocando como uma pessoa do seu próprio nível. Fiquei fascinado com a generosidade do Mário e nos tornamos amigos. É verdade que eu já tinha uma tendência para ler textos reflexivos, como disse antes, mas quando falei ao Mário que gostaria de ler filosofia, ele disse que o melhor era começar pela História da filosofia ocidental, de Bertrand Russel. Achei uma edição em francês – uma língua que eu aprendi estudando sozinho ainda em São Luís – e comecei a ler. Foi um verdadeiro curso. Como eu não tinha formação filosófica, ia concordando com os filósofos mais contraditórios.
Ferreira Gullar: Um dia, conversando com Mário Pedrosa, falei que tinha saudades do modernismo, por causa da irreverência dos escritores. Então ele me perguntou se eu já tinha lido os poemas do Oswald. Respondi: “Alguns”. Então ele me deu um exemplar de Pau-Brasil. Fiquei encantado com aquela linguagem simples, despojada. Fui à Livraria José Olympio e, numa pilha de livros em promoção, encontrei Serafim Ponte Grande. Li e adorei. Acho que Crime na flora tem, a certa altura, algo do Serafim Ponte Grande. Fiquei com uma ótima impressão do Oswald. Comentei isso com meu amigo Oliveira Bastos que, certa vez, indo a São Paulo, levou os originais de A luta corporal para o Oswald. Pois bem: ele leu o livro e exatamente no dia 10 de setembro de 1953, data do meu aniversário de 23 anos, apareceu com o Oliveira na casa em que eu morava na época. Fiquei desconcertado. Tinham batido na porta e, quando fui abrir, vi que era ninguém menos do que Oswald de Andrade. “Vim te abraçar no seu aniversário, meu poeta”, ele disse. Atrás dele, o Oliveira Bastos ria. A partir daí, nos tornamos amigos. No final daquele ano, fui para São Paulo, a convite do Oswald, passar o reveillon na casa dele. Oswald disse que escreveria sobre o meu trabalho no Correio da Manhã e que, no curso sobre literatura brasileira que iria dar em Roma, a última aula seria dedicada a mim. Fiquei muito contente, porque àquela altura ninguém me conhecia e A luta corporal era um livro inédito. Isto me deu segurança e alegria. Foi uma noite agradável aquela, mas Oswald já estava adoentado. Meu livro acabaria saindo em março e ele morreria em outubro de 1954. CADERNOS:
CADERNOS:
Conforme ia lendo, o sr. discutia os pontos mais importantes com Mário Pedrosa?
Ferreira Gullar: Discutia. Conversávamos muito. Foi um período extraordinário para mim. CADERNOS:
Àquela altura, a sua inclinação para os textos teóricos deve ter se acentuado. Pois bem: o sr. era um poeta, enveredava pelo ensaio, pintava, começava a conviver com a crítica de artes plásticas. Em algum momento essas dimensões múltiplas entraram em conflito ou o sr. entendia que compunham um todo?
Ferreira Gullar: Bem, quando vim para o Rio parei de pintar. Comecei a estudar história da arte. Apanhava livros sobre o assunto na casa do Mário Pedrosa. Ele me ensinou a analisar a gramática e a visualidade da pintura. Mais tarde, adquiri uma postura totalmente distinta da dele. Com a ditadura, fomos para o exílio e tivemos que rever tudo. Mário, como eu disse, era uma pessoa generosa, íntegra, realmente rara.
Como foi sua relação com Mário
Pedrosa?
Ferreira Gullar: Lucy Teixeira, maranhense que morava no Rio, era amiga do Mário Pedrosa. Em 1950, numa viagem a São Luís, ela me levou uma cópia da tese Da natureza afetiva na forma da obra de arte, que o Mário tinha defendido na Faculdade de Arquitetura. A Teoria da Gestalt era a base do trabalho. Li a tese e aprendi muito com ela. Mas escrevi uma carta ao
CADERNOS:
Depois de A luta corporal, o sr. estava certo de que não escreveria mais poesia. Foi quando nasceu Crime na flora, que 38
retomava a prosa poética que já se insinuara no livro anterior. Crime na flora só seria publicado em 1986, mas enquanto o escrevia, o sr. acreditava que ele significava a sua “salvação literária”? E por que existia esta necessidade de se salvar literariamente, já que o sr. considerava que a linguagem se esfacelara em A luta corporal ?
Voltando à sua atividade de pintor, gostaríamos de saber se o sr. também começou na pintura assumindo uma atitude convencional, como ocorrera com a literatura.
CADERNOS:
Ferreira Gullar: Sim, era uma pintura convencional, pois, como disse, comecei ainda em São Luís. Em 1946 ou 47, não me lembro, houve no Maranhão uma grande feira; nela tinha um pintor que ficava pintando figuras, coisas alegóricas. Toda a tarde eu ia para a feira e ficava vendo o homem pintar. Resolvi comprar um pano de saco, montei um chassi e comecei a pintar. Naturalmente, o pano chupou toda a tinta, ficou uma coisa horrível. Meu pai então me colocou num curso de pintura de um rapaz que estudava na Escola Técnica. O problema é que o professor era relapso. De qualquer maneira, aprendi alguma coisa e cheguei a pintar um quadro figurativo, um túnel de uma estrada de ferro, que ficou muito tempo na sala da minha mãe. Mudei para o Rio e larguei a pintura por um tempo. Voltei a pintar na época da repressão.
Ferreira Gullar: Eu não tinha certeza se aquilo era uma salvação. Sabia só que aquela era a única saída possível. Eu queria tentar – e fui tentando. Quanto a não publicar, bem, escrevi muita coisa que nunca publiquei; eram coisas que iam se acumulando e depois perdiam o interesse. Aconteceu isso em função do concretismo e do neoconcretismo; depois os poemas dessa fase perderam o interesse em função da militância política – era assim. CADERNOS: Quando o sr. teve a sensação de que a crise iniciada após a conclusão de A luta corporal havia terminado?
Ferreira Gullar: Na verdade, os poemas concretos e neoconcretos foram uma continuação da crise, de uma outra maneira. Eu conseguia falar, mas não usava o discurso nem o reconstituía. Continuava a buscar a saída. Escrevi um poema, “verde verde verde verde”, formando um bloco, um quadrado com essa repetição e o publiquei no Jornal do Brasil. Um amigo achou interessante e eu perguntei se ele tinha percebido que a palavra erva nascia da repetição da palavra verde. Não tinha. Daí eu pensei: “Fracassei. Como posso fazer um poema que tenha estrutura geométrica e seja lido no tempo da sucessão das palavras?” Quando inventei o livro-poema foi para resolver esse impasse. No livro-poema, o espaço não é mais o espaço da página, mas sim silêncio; a própria página diz respeito ao que está sendo construído ali. Há integração total entre espaço, página e palavra. O livro-poema não tem capa, só miolo. É um objeto no espaço. Daí nasceu o poema espacial: peguei uma placa de madeira branca, outra em cima cortada. Embaixo escrevi a palavra “ara”. Ao fechar, aquilo não era mais só duas placas, era uma coisa chamada “ara”.
CADERNOS:
Como eram essas pinturas?
Ferreira Gullar: Bem, primeiro fiz uma cópia do Goya (aquele quadro do fuzilamento). Depois, uma coisa minha, um búzio, em seguida um auto-retrato. CADERNOS:
Não são poucos os escritores que, como Henry Miller e Lúcio Cardoso, após construírem uma obra literária, passaram a dedicar-se à pintura. O sr. considera essa perspectiva possível no seu caso?
Ferreira Gullar: Não. Eu continuo a pintar. Mas veja bem: jamais serei um pintor de verdade. Para ser um pintor de verdade é preciso jogar a vida inteira nisso. É como a poesia. A poesia é minha vida. Eu joguei toda a minha vida na poesia. Não poderia me mobilizar do mesmo modo para outra arte. A arte não existe em si mesma. Ela é fundada pelo artista com essa entrega. O homem inventa a arte através dessa paixão. Eu não tenho isso em relação à pintura. 39
CADERNOS: A opção pelo figurativo na sua pintura se deve a uma rejeição da arte mais formal, mais abstrata?
que não viu nada que o tivesse convencido. O sr. terá visto algo de fato surpreendente em termos artísticos no âmbito das novas tecnologias?
Ferreira Gullar: Eu não rejeito a pintura abstrata. A pintura que faço hoje é bastante abstrata. Não é não-figurativa, mas é bastante abstrata. Na entrada da minha casa tem um falso Mondrian. Como eu não posso comprar um, falsifiquei… Mas veja você, aquelas camadas de tinta do Mondrian, aquele quadrado vermelho – não se trata de um quadro puro que ele encheu com uma cor. É outra coisa. Como o Morandi – aqueles objetos, aquelas garrafinhas; quanto de alma, de espírito humano, de sensibilidade e experiência existe naquilo. Mas há uma linguagem. Morandi cria então um mundo dele, com os objetos dele. É preciso entender que Duchamp, quando mostra um urinol como obra de arte, está fazendo algo sarcástico em relação aos conceitos artísticos. Não quer dizer que ele acredite que o urinol vá substituir a Mona Lisa.
Ferreira Gullar: Não. Eu me lembro que nos anos 50, em Paris, um artista apresentou o que ele chamava de esculturas eletrônicas. Eram estruturas de ferro, com placas, canos, luzes e movimento. Ora, era um robô tosco! Até mesmo parado ele tinha uma forma mais bonita do que em movimento. A verdade é a seguinte: o próprio Calder, quando começou a fazer os seus móbiles, experimentou a eletricidade. Desistiu. Os móbiles flutuando ao sabor dos ventos são mais expressivos. CADERNOS:
O sr. diria que, em sua fase concreta e neoconcreta, estava vivendo num mundo literário que não tinha o Brasil?
Ferreira Gullar: Ele não expressava o Brasil. O fato de eu estar num impasse é que havia pouco de realidade no que eu estava fazendo. Eu tinha chegado a um tal nível de depuração da experiência que a realidade sumira. Eu estava novamente sem linguagem, sem instrumento. Aí fui para o CPC da UNE, no Rio. Vianinha [Oduvaldo Viana Filho] me procurou: “Vamos fazer uma peça sobre reforma agrária e gostaríamos que você fizesse a estrutura dessa peça em versos, para usarmos um cantador do Nordeste”. Então escrevi Cabra marcado para morrer. Eu estava voltando para a forma mais primitiva da literatura, da poesia. Foi uma coisa difícil, que provocou reações contrárias a mim – que eu era louco, oportunista, não sabia o que queria.
CADERNOS:
Como o sr. avalia o uso de novas tecnologias nos processos artísticos?
Ferreira Gullar: Eu acho uma coisa legítima. A arte sempre utilizou as novas tecnologias. Até na caverna os homens foram descobrindo novas técnicas, novos meios para realizar suas pinturas, seus murais. Eu só coloco um problema: a Bienal, por exemplo, foi criada como Bienal de Artes Plásticas. De repente, você vai até lá e vê vídeo, videoarte. Ora, o vídeo é uma outra linguagem. Pois bem: cria-se uma categoria para isso, para dar oportunidade a quem se expressa desse modo. Só que essa abertura não pode eliminar os artistas que se utilizam dos meios tradicionais. Eu não posso dizer: “Morandi? Não, chega de Morandi!” Mesmo que surja um outro Morandi nos novos meios, o original não pode ser desprezado.
CADERNOS:
O sr. e seus companheiros do CPC acreditavam que apuro estético e engajamento não combinavam?
Ferreira Gullar: Havia uma percepção errada de que se você fizesse bem-feito, afastaria o público. Buscávamos uma forma simples de comunicação para atingir o maior número possível de pessoas. Mas, no meio disso, havia a TV. Era um instrumento de massa – e nós queríamos criar um outro instrumento de massa, que não fosse eletrônico.
CADERNOS: O artista plástico Arthur Luiz Piza, comentando sobre a utilização artística das novas mídias, disse que a TV e o vídeo realmente têm possibilidade de produzir arte; no entanto, até agora, ele assegura
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Na minha visão, não se tratava mais de fazer literatura. Tratava-se de politizar as pessoas, de levar a consciência da realidade brasileira.
que isso é uma coisa inerente ao ser humano. O senso de justiça é inerente ao ser humano. Eu não conheço ninguém, por mais injusto que seja, que diga: “Eu sou injusto e tenho orgulho disso”.
CADERNOS:
E hoje, o sr. diria que os dois pólos não são antagônicos?
CADERNOS:
Então o sr. vê com otimismo a possibilidade de se construir no Brasil uma sociedade mais justa?
Ferreira Gullar: Nós percebemos isso já no final de 63. A realidade mostrou que estávamos enganados. Nós íamos para a favela e ninguém ouvia o que a gente estava dizendo. Só ficavam as crianças. Decidimos então mudar – buscar a qualidade. Só que veio o golpe e impediu isso.
Ferreira Gullar: Eu não acho que seja uma coisa fácil e nem realizável a curto prazo. Eu na verdade nunca acreditei na realização plena da sociedade sem classes, aquelas coisas paradisíacas. Em Moscou, tive problemas nas aulas de marxismo por fazer objeções dessa natureza. Coisas assim: se Engels diz que a história é uma mudança permanente, quando chegar a sociedade perfeita como é que fica? Pára de mudar? Vai mudar para onde? De qualquer maneira, eu acreditava que, no dia em que os meios de produção deixassem de ser propriedade privada e passassem a ser propriedade social, de fato haveria possibilidade de uma distribuição mais justa da riqueza. Hoje, embora eu pense que teoricamente isso seja possível, acredito que na prática tornou-se inviável. O capitalismo não é algo nascido da teoria, mas da prática social; é uma coisa espontânea e como uma força da natureza é poderoso, vital e injusto. A natureza, por exemplo, não é ecológica; ela é injusta, destrói muitas coisas, mata pessoas numa enchente. O socialismo é uma tentativa de regularizar esse rio, mas na prática não se pode fazer isso completamente, como não se faz em relação à natureza. O tipo de planejamento que o socialismo propõe é determinado pela inserção de agentes sociais numa camisa-de-força – o que acaba levando a uma União Soviética. Seja como for, o que não se pode aceitar é o conformismo com a desigualdade e a injustiça.
CADERNOS:
Como era a rotina no CPC? Existiam grupos de trabalho, por exemplo, para estudar textos teóricos?
Ferreira Gullar: Não, a coisa não era tão organizada assim. Existia um grupo que dirigia o CPC e esse grupo discutia as tarefas – era uma coisa meio espontânea. A gente reagia ao que estava acontecendo. Por exemplo: um dia, num comício contra o governo Lacerda, a polícia apareceu, espancou todo mundo e prendeu alguns. À noite, nós nos reunimos e decidimos fazer o Auto do cacetete para responder imediatamente àquela agressão. Ficamos na madrugada escrevendo e no dia seguinte estávamos na rua mostrando o Auto do cacetete. CADERNOS:
Como o sr. vê hoje a questão do papel do intelectual na sociedade?
Ferreira Gullar: Algum tempo atrás existia um sistema socialista em contraposição a um sistema capitalista e dentro do sistema socialista uma visão de que aquilo era o futuro, de que o mundo caminhava necessariamente para o socialismo. Gerações inteiras viveram essa experiência de uma forma apaixonada e conquistaram muitas coisas. Nossas ilusões não eram tolas: existiam conquistas no âmbito da organização sindical, da jornada de trabalho etc. Agora que o mundo mudou, ninguém em sã consciência vai dizer que mobilizará o Brasil para fazer a revolução socialista. Mas isso não significa que o intelectual ou quem quer que seja esteja impedido de criticar as desigualdades da sociedade ou desejar que ela se torne mais justa. Eu acho
Leandro Konder: Num de seus poemas de cordel, História de um valente, você evoca a figura extraordinária de Gregório Bezerra, o revolucionário “feito de ferro e flor”, que participou “da luta [comunista] de 35” e chegou à Câmara Federal em 1945 pelo Partido Comunista Brasileiro. Como foi o seu contato pessoal com ele? 41
pos aconselhavam a burlar o voto, votar em branco – e assim a ditadura ganhava as eleições. Depois, com a morte de [Carlos] Marighella, a luta armada praticamente acabou. Em 74, quando todo mundo votou contra a ditadura, os militares foram derrotados na maioria dos estados.
Ferreira Gullar: Eu o conheci em Moscou, durante o período em que estive exilado e morando lá. Ele não era um intelectual, um homem de teoria, e naturalmente absorveu uma visão um pouco simplificada das coisas, das questões sociais, mas o que conta é o que leva um homem, um menino criado no interior plantando mandioca, a mudar para a cidade, vender jornal e acabar descobrindo que tem que lutar por um mundo melhor. Gregório era generoso, por isso eu dizia que ele era feito de ferro e flor. Uma vez a polícia o prendeu e o colocou dentro de um cofre. Ele ficou respirando pelo buraco da fechadura e quando um guarda apareceu e abriu a porta ele o agarrou, puxou-o para dentro do cofre e disse que ou o guarda o soltava, ou morria no cofre com ele. Mas o curioso desse poema é que foi escrito com o pseudônimo de José Salgueiro, porque eu não podia assinar meu nome. Depois, um escritor de Pernambuco citou num livro que o poema sobre Gregório tinha sido escrito “pelo poeta popular José Salgueiro”. E José Salgueiro virou um poeta popular. Quando foi publicada uma biografia do Gregório pela Civilização Brasileira, eu fui convidado a ler o poema. Fui e falei a verdade: “Eu quero dizer que tenho a honra de revelar que sou o autor desse poema”. Foi uma sensação.
CADERNOS:
Em Rabo de foguete, seu livro de memórias do exílio lançado neste ano, o sr. conta como se filiou ao Partido Comunista. Poderia comentar essa passagem?
Ferreira Gullar: Eu me filiei ao PC no dia 1º. de abril de 1964. Achava que era um momento em que tudo despencava e por isso mesmo eu tinha que entrar para alguma organização a fim de continuar a luta. CADERNOS: Em algum momento o sr. foi convidado a participar da guerrilha por um dos vários grupos que se formaram no país naquela ocasião?
Ferreira Gullar: Fui, pelo Mário Alves [um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário], que era meu amigo. Ele tinha sido preso e, ao sair, quis me encontrar. Chegou e me deu um documento para ler, curto. Li e disse: “Lamento, mas acho que você está entrando por um caminho equivocado”. Ele aceitou minha posição e foi embora.
CADERNOS:
Qual a sua lembrança de outros líderes de esquerda daquele período, como Francisco Julião, dirigente das Ligas Camponesas?
Ferreira Gullar: Eu conheci Julião antes de entrar para o PCB. Ele me “cooptou” para as Ligas Camponesas. Disse que tinha 300 mil homens e armas. “Vamos fazer a revolução”, garantia. No fim, como se sabe, não era nada disso. Acabei saindo das Ligas e me aproximei do partido, que acabou tendo uma posição muito coerente em todo esse processo. Eu me lembro que no dia 31 de dezembro de 1963, o Giocondo Dias me disse: “Esse troço está caminhando para um desastre, vem um golpe aí. Ou a gente muda o rumo desse navio ou não vamos ter como segurar”. Um mês depois do golpe, o partido disse o seguinte: “Só há um caminho agora – aproveitar todas as brechas que o regime militar deixou para o trabalho democrático. Se é para votar, vamos votar; se ainda resta o sindicato ou organização estudantil, vamos até lá”. Alguns gru-
CADERNOS: O sr. foi cobrado por recusar esse tipo de engajamento?
Ferreira Gullar: O partido foi cobrado. Nós não tínhamos dúvida do que estávamos fazendo, mas por conta disso o partido passou a ser visto como burocrático. Os radicais não compreendiam que seria uma bobagem travar uma luta num terreno onde o inimigo era mais forte. Além disso, supunham que contavam com o apoio do povo, que bastaria precipitar o conflito e a população viria atrás. Não era nada disso, como se viu. Quer dizer: estava tudo errado. CADERNOS:
Jorge Amado declarou neste mesmo espaço que, apesar dos sofrimentos evidentes, sempre é possível tirar vantagens da 42
condição de exilado. Pelo que se lê em Rabo de foguete, o sr. estaria propenso a discordar do autor de Gabriela. É isso mesmo?
minha cidade. Uma coisa que eu aprendi no exílio (eu sei que é uma coisa minha) foi o seguinte: em todas as cidades por onde passava, poste era poste, casa era casa, parede era parede e na minha terra, não. O poste é o poste da rua tal, por onde eu passei uma noite, conversando com um amigo; a casa, é a casa de um conhecido etc. O exílio, na minha opinião, é um mundo hostil, um mundo que não é nada, um mundo que é matéria só. Eu não nasci para isso.
Ferreira Gullar: Eu fiz o que pude no exílio. Não ia me render, não ia me deixar destruir. Eu procurava sobreviver, mas aquilo para mim era um castigo permanente. Eu só pensava em voltar. Minha obsessão era tão grande que eu alugava apartamento nas cidades por onde passava, mas não montava uma casa, como se diz. Eu improvisava. O apartamento era uma tenda, um acampamento para mim. Eu não aceitava a idéia de me instalar. Confesso para vocês que eu não agüentava viver longe da minha família, dos amigos, da
Zuenir Ventura: Apesar dos esforços do jornalista Elio Gaspari junto ao general Golbery do Couto e Silva, a sua volta do exílio não foi tranqüila como se esperava, não? 43
Ferreira Gullar: O Zuenir, por modéstia, está dizendo que o esforço foi só do Elio Gaspari, mas foi dele também. Zuenir e Elio levaram o Poema sujo para o Golbery e ele disse: “Isso é uma obscenidade, esse poeta é um pornógrafo! Mas eu não me oponho a ele voltar, não. Por mim, ele pode voltar, mas tenho que falar com o Figueiredo, chefe do SNI”. Falou. Aí, segundo informações que recebi em Buenos Aires, Figueiredo teria declarado: “Não quero este comunista aqui”. Foi essa a resposta que recebi: “Olha, Gullar, você não vai poder voltar porque o Figueiredo disse que não quer você lá”. Eu me tomei de fúria: “Como esse sujeito se atreve a falar isso? Ele é o dono do Brasil? Eu vou voltar, vou voltar, não aceito isso, vou voltar”. Eu queria voltar, precisava voltar, tinha um filho doente, internado numa clínica psiquiátrica, o outro entrando pelo mesmo caminho. Se o regime argentino descobrisse quem eu era, eu estava perdido. Eu tinha que voltar. Tracei um plano: escrevi para a ABI e a OAB e pedi que entrassem em contato com o ministro da Justiça e o comandante do Exército avisando que eu ia voltar; se me prendessem ou me matassem, teriam que assumir a responsabilidade.
dos poetas, dos amigos, da vida, dos ventos, do Brasil – não era um poema individualista. CADERNOS: O sr. esteve na iminência de ser preso várias vezes, e, quem sabe, de sofrer conseqüências ainda mais graves pelo fato de contestar regimes de força no momento em que eles se implantavam em alguns países da América Latina, nas décadas de 60 e 70. Isso aconteceu no Brasil e depois em seu exílio no Chile e na Argentina. Era como se o sr. es ti vesse submetido a uma espécie de tropismo perverso, que o arrastava sempre para o olho do furacão. Sem essas coincidências diabólicas, como o sr. acredita que poderia ter sido sua experiência no exílio?
Ferreira Gullar: Se eu tivesse vivido num Chile menos conflituoso, eu teria menos ansiedade, menos angústias. Você lê no meu livro Rabo de foguete que a minha saída do Chile é um desespero só. De qualquer maneira, eu acredito que jamais me adaptaria ao exílio. O Poema sujo é conseqüência do meu momento literário, mas também dessas circunstâncias.
CADERNOS:
O sr. está descrevendo um processo de amadurecimento, que teve um ponto de inflexão nessa coisa brutal do general Figueiredo. O seu processo então passou a ser todo de preparação da volta? O próprio Poema sujo se encaixaria nisso?
CADERNOS:
Se não é apenas um “poema do exílio”, ao menos ele se encaixa no âmbito da literatura do desterro.
Ferreira Gullar: Bem, possivelmente eu não teria escrito o Poema sujo se não tivesse sido exilado.
Ferreira Gullar: O Poema sujo foi escrito quando a ditadura tinha se instalado na Argentina. Meus amigos desapareciam, ou eram presos, ou fugiam. O meu passaporte estava cancelado pelo Itamarati. Senti o cerco se fechando. Quem sabe estaria chegando ao final. Pensei: “Vou ter que escrever essa coisa final, o testemunho final, o depoimento final. Eu vou ter que escrever isso”. Então fui escrever esse poema, que era a experiência da vida toda; não era só um poema do exílio, mas um poema da memória, da perda, da recomposição do mundo perdido e do amor à vida. Escrevi esse poema como um poema-limite. Nele tem de tudo: formalismo, infância, as aventuras. Quando escrevi o poema sentia como se estivesse rodeado de outras vozes,
CADERNOS:
Naquela fase o sr. teve medo de morrer, não?
Ferreira Gullar: É verdade. Eu nunca pensei em me suicidar, mas tive medo que pudesse acontecer comigo o que vinha ocorrendo com meus amigos. CADERNOS:Rabo
de foguete dá a entender que, do ponto de vista literário, graças ao Poema sujo, suas contas com o exílio estão em dia; o mesmo não ocorreria no plano familiar. O sr. concorda com essa leitura? 44
CADERNOS:
Sua posição remete à dos teóricos da Escola de Frankfurt.
Ferreira Gullar: Eu fiz uma opção que mudou a vida das pessoas. Eu estava me expondo e me sacrificando numa coisa que eu acreditava que traria benefícios para o país. O que eu ia lucrar com isso? Se eu tivesse ficado quieto, no meu canto, estaria trabalhando no jornal, seria promovido, estaria melhor de vida. Mas eu acreditava que era meu dever fazer alguma coisa. Eu sabia que meus filhos não tinham nada a ver com isso. E para eles o pai iria se tornar um perseguido, obrigado a abandoná-los. Um deles me disse: “Foi brincar com fogo, agora agüente”. Foi uma coisa que me atingiu profundamente.
Ferreira Gullar: Eu já discordei, numa certa época, da posição da Escola de Frankfurt. Até escrevi ensaios mais otimistas com relação à cultura de massa. Eu reconheço que ela tem aspectos positivos, como a difusão da informação. Agora, quando se trata do problema da valorização da arte, dos valores artísticos, há uma grande defasagem. Isso explica um pouco também essa coisa da arte que está aí, desse experimentalismo sem limite. Se você fizer uma exposição de gravura ninguém toma conhecimento, mas se você ficar nu no museu, é notícia. Você manda para a galeria um tubarão cortado ao meio e todo mundo fala de você, mas se pegar e pintar um quadro, não chama a atenção. Para a mídia, pouco importa o valor intrínseco da obra, mas sim se ela é notícia ou não.
CADERNOS:
O sr. passou necessidades por falta de dinheiro durante o exílio?
Ferreira Gullar: Não, isso não. Leandro Konder: Há um momento no magnífico Poema sujo em que você diz: “Prego a subversão da ordem/poética, me pagam. Prego/a subversão da ordem política, me enforcam”. Mas não há um nível no qual a subversão da ordem poética também pode ter implicações na subversão da ordem política?
Esther Góes: Desde a primeira vez que o li, o Poema sujo me pareceu uma obra bifurcada – de um lado, a leveza, um certo encantamento de criança que descobre o mundo; de outro, a matéria dura, rochosa. Você acredita que isso seja um reflexo de sua própria personalidade ou seria uma circunstância do momento que você vivia: uma fragilidade decorrente da condição de exilado e ao mesmo tempo, a necessidade de ser forte para resistir a tudo aquilo?
Ferreira Gullar: Como a subversão poética não atinge os interesses das classes dominantes, ela nunca alcançará a ordem política. São interesses concretos, embora eu ache a subversão da ordem poética uma coisa muito importante. Hoje, depois de tudo o que aconteceu, eu acho que a poesia é muito mais importante do que eu supunha. Mas havia uma superestimação do que se podia fazer através dela no plano da revolução política e social. Era uma utopia, portanto uma coisa que estava acima da realidade, embora eu reconheça que teve uma conseqüência, não foi inútil.
Ferreira Gullar: Realmente eu tenho essas duas coisas. Quer dizer, eu sou sempre contraditório. Tenho aquele poema, “Traduzir-se”, que fala disso. Não era, portanto, algo ligado apenas à condição de exilado. Isso faz parte do meu cotidiano. Por exemplo, faço uma poesia baseada na captação direta das minhas experiências e, ao mesmo tempo, sou um teórico, tenho capacidade de analisar (a poesia, uma obra de arte) de um modo objetivo, racional.
CADERNOS:
Essa importância da poesia é reconhecida?
CADERNOS:
Voltando um pouco, de que maneira o sr. lida atualmente com a idéia da morte, própria ou alheia – um tema recorrente na sua poesia?
Ferreira Gullar: Não. Na sociedade de massa de hoje, sob o domínio da mídia, é cada vez menos reconhecida. 45
dele é outro. Há uma associação entre memória e reflexão. Foi um estado de espírito que durou meses e meses e nunca mais voltou a acontecer.
Ferreira Gullar: Bem, a morte é mesmo um tema permanente da minha poesia. No próximo livro, que devo publicar dentro de um ano ou dois, ela está muito presente. Depois de uma certa altura da vida, é natural que a morte se torne um problema presente, não só em termos individuais, mas também devido ao fato de que você começa a perder as pessoas. Eu às vezes fico pensando como a morte que aparece n’A luta corporal é quase uma teoria, uma morte possível, adivinhada, imaginada, porque na verdade eu não tinha na minha vida uma experiência efetiva da morte. Depois que você começa a perder as pessoas a morte ganha uma outra dimensão, ganha uma concretude. Perder um filho, como aconteceu comigo, é uma coisa que não tem medida, um negócio que eu nunca imaginei, eu jamais me curei disso. É uma coisa de uma violência inaceitável. Não é mais uma coisa teórica, não – é uma coisa real, uma perda real, a vida te mostrando o seu lado duro. Aquela pessoa amada, que você criou, que estava ali do teu lado não existe mais. A vida é de um absurdo esmagador. Milhões de pessoas já morreram, mas não é possível aceitar a morte. CADERNOS:
CADERNOS:
Mas n’A luta corporal parece existir uma dinâmica que se reproduz, que dura o livro inteiro.
Ferreira Gullar: Era diferente. Na Luta essa força durava uma hora, às vezes alguns minutos. No caso do Poema sujo, não: eu me sentia um Midas. Durante meses, tudo se transformava em poesia. CADERNOS: O sr. está falando de uma dimensão quase divina, uma visão grega da poesia.
Ferreira Gullar: Bem, eles acreditavam na inspiração dos deuses, visão que eu absolutamente não tenho. Mas é um estado de espírito, sem dúvida. Eu não duvido que haja poetas que escrevam a frio – não vou discutir isso agora. No meu caso, não consigo. Tenho que entrar num estado em que se cria uma espécie de liberdade interior; eu me solto dos meus conceitos e das minhas limitações – e então meu relacionamento com a realidade muda. É, portanto, uma coisa do estado da alma, do estado de espírito, que torna possível que as palavras se comuniquem de uma maneira inesperada, que as imagens e as lembranças venham e se liguem às reflexões. É uma consciência ampliada. Eu lembro que na época do Poema sujo, durante cinco meses, fiquei nesse estado. Eu saía para comprar pão, fazia café, andava pela rua – e continuava no mesmo estado. De repente, parou, sem que o poema estivesse terminado. Então, a última parte do Poema sujo é construída. Eu passei um tempo sem escrever e de repente, sem que eu soubesse como, veio o fecho do poema. Ele parte de uma frase de Hegel que diz algo como “a folha da árvore já contém o universal e o particular”. Fiquei pensando nisso: “Por que há ali o universal e o particular?” – eu me perguntava. Pensei então que uma coisa está em outra, mas de maneira distinta; veio daí a idéia de que uma árvore está em qualquer uma de suas folhas, a cidade está no homem que está em outra cidade, enfim. Nasceu disso o final do poema.
O sr. hoje tem medo da morte?
Ferreira Gullar: Não, porque é a ordem natural das coisas. Não quero morrer, absolutamente, não vivo desejando a morte, ao contrário. Atualmente estou bastante feliz por ter conhecido uma pessoa, a poeta Cláudia Ahimsa, que veio iluminar minha vida depois que eu julgava que as coisas realmente estavam caminhando para o definitivo. Mas sei, é claro, que não se trata de querer. CADERNOS:
O sr. conta que escreveu as primeiras cinco páginas do Poema sujo de uma só vez. Este ritmo frenético dos versos iniciais acabariam contagiando todo o texto, aproximando-o estruturalmente da memória, que na verdade é sua matriz. Esta aproximação foi percebida pelo sr. enquanto escrevia?
Ferreira Gullar: Veja bem, não se trata de um poema, vamos dizer, rememorativo; o mecanismo 46
Armando Freitas Filho: Ouço, no Poema su jo, em alguns momentos, uma influência bem assimilada da dicção de João Cabral, principalmente do Cabral da fase do Cão sem plumas. A propósito, como você lida com a “influência”? Você a reconhece logo ou só quando alcança uma certa distância do seu próprio texto? E esta influência só ocorre com os poetas que lhe antecede ram ou também com os que vieram depois de você?
pode dizer: vou ler Augusto dos Anjos sob o viés da psicanálise. Pois bem: você, ao fazer isso, empobrece Augusto dos Anjos – sem contar que serão duvidosas as suas conclusões. Eu desconfio da psicanálise. CADERNOS: Ao que consta, o sr. jamais se submeteu à psicanálise; mas, como intelectual, o sr. foi ou é um leitor de Freud? O que pensa de sua teoria?
Ferreira Gullar: Eu li Freud, Jung, e acho que eles são intelectuais brilhantes. Mas, como disse, desconfio da psicanálise. Entidades como superego, id, insconsciente coletivo – tudo isso para mim são invenções.
Ferreira Gullar: Alguns poetas que li muito estão presentes na minha voz poética durante todo o tempo – e eu sei bem disso. Eu li e reli Bandeira, Drummond, Murilo, João Cabral; com eles aprendi a minha linguagem. A minha dicção poética nasceu desses autores. No Poema sujo, conforme eu disse antes, estão presentes muitas vozes. Algumas são citadas deliberadamente. Outras eu só percebi depois. Isso que estou dizendo é uma coisa da história da literatura, ou melhor, de todas as artes. Todos os escritores, pintores, músicos etc., aprenderam com outros escritores, pintores, músicos etc. Não por acaso, meu próximo livro de poesias vai se chamar Muitas vozes. CADERNOS:
CADERNOS:
Os problemas mentais de seu filho Paulo o aproximaram mais intelectualmente da psicologia ou da psiquiatria – ou de ambas? Como o sr. vê hoje estas ciências?
Ferreira Gullar: Sim, tive esse contato mais concreto. Até acho que para muitas pessoas essas ciências ajudam. São como o padre de antigamente. O que eu discuto, por exemplo, na psicanálise, é a questão conceitual.
Há angústia na influência? CADERNOS:
Qual é a sua relação com Deus? E com a religião?
Ferreira Gullar: Não, ao contrário. CADERNOS:
O sr. identifica influências de novos autores no seu trabalho?
Ferreira Gullar: Eu não acredito. Não tenho ne nhum misticismo comigo. Fui destituído dessa qualidade, ou melhor, nasci destituído dessa qualidade.
Ferreira Gullar: Não. E sabe por quê? Porque o que conta aí é a formação.
CADERNOS:
Tal como foi concebido e realizado, o Poema sujo se presta perfeitamente a análises de natureza psicanalítica. O sr. concorda com esta vertente crítica?
Sua família era religiosa?
CADERNOS:
Ferreira Gullar: Não era contra nem a favor. Simplesmente isso não existia. Minha mãe tinha lá uma santa, rezava às vezes, mas nunca ia à igreja. Embora reconheça que a religião tenha uma extraordinária importância para a humanidade – não foi por acaso que gerou obras maravilhosas, como templos, catedrais, pinturas, esculturas, música etc. – eu não sou nada místico.
Ferreira Gullar: Não. Eu acho que a leitura psicanalítica nada tem a ver com a literatura. Você pode fazer, claro, mas acho que é uma leitura não prevista pelo poeta. O poeta não escreve para ser objeto da análise psicanalítica. Você 47
CADERNOS: O sr. não sente falta da religião, da crença em Deus?
Esther Góes: Você voltaria a se entregar a uma ideologia? Reconhece na humanidade um potencial de transformação que justifique essa entrega? Ou tudo isso não passa de uma ilusão juvenil?
Ferreira Gullar: Sinto, mas não posso fingir que acredito, não é? Então, eu me conformo com a minha condição. A minha vida é essa que está aí. Um dia, ela acabará – e será indiferente para mim o que vai acontecer. Shakespeare morreu, aliás, nunca existiu, ou melhor: só existiu enquanto vivia. No momento em que morreu, é como se nunca tivesse existido. Hoje, Shakespeare somos nós. Nós é que sabemos da existência de alguém chamado Shakespeare.
Ferreira Gullar: Não, não é uma ilusão juvenil. Mas eu não posso, a priori, dizer que vou abraçar uma nova ideologia que não existe. O que eu considero de fato encerrado é a concepção de revolução marxista. Eu compreendo hoje que um Estado com uma filosofia é inviável, porque se o Estado tem filosofia ele é autoritário, excludente e repressivo.
Esther Góes: Em relação à sua vida, qual o pensamento que mais o tranqüiliza?
CADERNOS:
Isto significa que o sr. não é mais comunista?
Ferreira Gullar: Nenhum pensamento me tranqüiliza.
Ferreira Gullar: Não, porque não existe mais comunismo. Quer dizer, existem algumas pessoas que insistem nisso, mas não tem cabimento.
CADERNOS: Nem esta certeza de que um dia tudo acabará, a certeza da morte?
CADERNOS:
Ferreira Gullar: Não. Eu aceito porque é a fatalidade. Não me tranqüiliza. O que me tranqüiliza é ser feliz. E quando você é feliz, a morte está ausente. Não pense que eu sou uma pessoa pessimista, “fossenta”. Isso que estou dizendo é apenas uma aceitação consciente das coisas tal como elas são.
Cuba não tem cabimento?
Ferreira Gullar: Cuba não é mais, de fato, um país comunista, nem a China é. São países que estão se transformando. Agora, é claro que Cuba tem uma série de conquistas, extraordinárias para um país pequeno, indefeso. Hoje se encontra num impasse: não pode voltar atrás, não pode ir para a frente. Mas eu já me darei por feliz se as conquistas fundamentais da sociedade cubana se preservarem.
Zuenir Ventura: Você soube, como poucos, conciliar ética, estética e política, sendo que esta última, como se sabe, levou-o à prisão e ao exílio. Hoje, porém, você pa re ce distante da atividade política. Por quê? Desencanto?
Leandro Konder: No início dos anos 60, você escreveu belos poemas “engajados”. Num deles, entretanto, você chegou a escrever: “(…) não vejo na vida, amigo,/ nenhum sentido, senão/ lutarmos juntos por um mundo melhor”. Ao longo da sua obra, a perspectiva generosa da luta por um mundo melhor é constante. Mas em vários poemas aparecem expressões de reconhecimento dos múltiplos sentidos que a vida revela ao poeta (especialmente ao poeta apaixonado). Então eu indago: não houve um certo exagero, certa unilateralidade naquele “nenhum” sentido?
Ferreira Gullar: A palavra desencanto talvez não seja a correta. Num certo momento, eu me empenhei contra a ditadura. Hoje as coisas são bastante diferentes. Acho que é hora dos profissionais. Eu discuto, acompanho a política, leio os jornais. Mas militar nessa situação é para profissional. Se a ditadura voltasse, coisa que eu espero que não aconteça, eu estaria pronto para brigar de novo. Agora não, deixo para os profissionais. 48
Ferreira Gullar: Claro que houve. O pecado maior não é a unilateralidade, mas sim o fato de que não se trata de poesia. A poesia, quando verdadeira, não tem esse caráter estreito, unilateral de certos poemas engajados. Os meus primeiros poemas engajados são muito sectários; são mais um “recado” para a consciência das pessoas. Mais tarde, minha poesia engajada mudou. Um poema como “Dentro da noite veloz”, por exemplo, é ambíguo. A verdadeira poesia tem muitas faces. Quando deixei de fazer poesia metrificada, como disse, caí no coloquial, que foi se reelaborando até virar uma linguagem complexa, abstrata, que conduziu à desintegração. Entretanto, com os poemas de
cordel, voltei à linguagem banal, mas evidentemente politizada. No Poema sujo, a linguagem que vai aparecer resulta de todas essas experiências. Defendo, então, a tese de que não existe poesia pura. A poesia verdadeira não é sectária, não é unilateral. Leandro Konder: Num dos meus poemas preferidos, dentre os que você escreveu, fala-se do desafio de “traduzir-se”, quer dizer, de traduzir aquela parte do poeta que “é só vertigem” na outra parte que é “linguagem”. Mas há também, se não me engano, um efeito de “linguagem” capaz de produzir “vertigem”, não há? E esse efeito 49
não depende só do poeta, depende igualmente do leitor, da sensibilidade com que é feita a leitura. A pergunta é: qual a impor tância para o poeta de que os leitores o entendam verdadeiramente e se emocionem com inteligência? E mais: como o poeta pode verificar o grau de êxito na “recepção” de um poema seu?
Ferreira Gullar: A maioria das traduções que fiz foi encomendada. Só o Ubu roi [Ubu rei, de Alfred Jarry] é que fiz por minha espontânea vontade. Mas é um bom exercício. Na tradução do Cyrano, por exemplo, não obedeci à forma original de versos dodecassílabos. Existe uma tradução famosa dessa peça, feita no início do século, que é um esforço admirável de imitar a forma. Mas o resultado é praticamente ilegível. O dodecassílabo não é um verso que se ajuste ao coloquialismo brasileiro. Preferi então os decassílabos e também decidi colocar a rima onde ela soasse melhor e não apenas no fim do verso. Acabei ganhando um prêmio Molière de tradução – que aliás nem existia, foi criado para esse trabalho. Já as Fábulas foram uma encomenda da editora Revan. Muitas das traduções que estão por aí nessa área são ilegíveis para crianças; tive então, de novo, liberdade para traduzir, às vezes alterando até a moral da história. Por exemplo: numa das fábulas, um camponês sai de casa num inverno e vê uma serpente morrendo de frio no lado de fora. Cheio de pena, ele resolve colocar a cobra para dentro. Depois de se aquecer perto do fogão, a serpente avança para picar o homem. Aí ele pega o facão e corta a cobra em três. A moral dele é a seguinte: “Deve-se fazer o bem sem olhar a quem?” A minha ficou assim: “Fazer o bem está certo, mas tendo um facão por perto!” O que as crianças vão pensar disso, eu não sei… Bem, voltando à outra parte da pergunta: eu traduzi muitos poetas, mas nunca publiquei esses textos. Traduzi Rimbaud, Mallarmé, Ponge, mas para consumo próprio.
Ferreira Gullar: Eu não me preocupo assim deliberadamente com a compreensão ou incompreensão que o leitor venha a ter dos meus poemas. Procuro ser claro e atingir o leitor; o primeiro leitor, aliás, sou eu mesmo. Mas eu nunca renuncio à complexidade, eu jamais digo que não vou fazer isso ou aquilo porque ninguém vai entender. Vou fundo até encontrar a forma, mas não busco um entendimento lógico. CADERNOS:
Na verdade, essa é a questão do hermetismo. Existe um limite entre essa clareza que o sr. julga importante e o não empobrecimento da poesia?
Ferreira Gullar: Eu acho que o hermetismo é um produto do intelectualismo meio caprichado, é um preciosismo, é quase um esnobismo. É diferente quando você elabora a linguagem, cria um impacto, de modo que o leitor pode não entender aquilo do ponto de vista lógico, mas se identifica porque é atingido. Na poesia, eu procuro freqüentemente atingir o leitor, não pela lógica, mas pela emoção, pela surpresa, pelo impacto de uma imagem inesperada. Acho que aí se estabelece a comunicação. Agora, quando você fica caprichoso, substituindo palavras por outras que na verdade encobrem a significação, isso elimina a verdadeira emoção. Até num poema como “Roçzeiral”, que é hermético, o leitor, com um certo abandono, uma certa entrega, pode perceber não um sentido lógico – que aquilo não tem – mas a emoção que está inserida ali.
CADERNOS:
Foi, de alguma forma, uma apren-
dizagem?
Ferreira Gullar: Não, não fiz com essa intenção. Foi por prazer mesmo. CADERNOS:
É uma atividade ainda regular? Já houve proposta de publicação dessas traduções?
CADERNOS:
Qual o papel da tradução propriamente dita em sua obra? Por que o sr. tem se dedicado a traduzir teatro e até literatura infantil mas não poesia?
Ferreira Gullar: Não, não me propuseram, mas também são poucos poemas. E não é uma 50
CADERNOS:
atividade regular. No fundo, eu não gosto de traduzir poesia. Uma vez me propuseram traduzir o Canto general [Canto geral ], do [Pablo] Neruda. Pedi desculpas e recusei. É muito difícil traduzir poesia. Há coisas intraduzíveis. O poema não é apenas uma construção conceitual.
Esta peça está pronta?
Ferreira Gullar: Está. Tenho outras prontas: uma peça com estrutura de cordel e outra sobre os dias em que estive preso na Vila Militar, uma peça tragicômica. CADERNOS:
CADERNOS: O sr. acompanha a tradução dos seus livros de poesia?
O sr. freqüenta teatro?
Ferreira Gullar: Tenho ido pouco ao teatro.
Ferreira Gullar: Quando é numa língua que eu do mino, sim. Recentemente, por exemplo, o tra dutor do Poema sujo para o espanhol veio ao Brasil e aproveitou para corrigirmos a tradução.
CADERNOS:
Durante algum tempo, o teatro foi uma forma de resistência à ditadura, o que o colocou num nível de importância que talvez não tivesse em outras circunstâncias. E hoje, como o sr. vê o papel do teatro?
CADERNOS:
Ferreira Gullar: É claro que durante a ditadura o teatro cresceu em importância, passou a ter uma presença mais forte. A situação atual é outra, mas ainda assim creio que o teatro continua mantendo o seu papel de observação e crítica da vida social e de veículo de aprofundamento de reflexões sobre a existência. Apesar de todas as dificuldades que nós sabemos, da televisão etc., eu acho que o teatro continua a exercer o seu papel. E mais: continua a servir como um laboratório de formação de atores, de aprimoramento do trabalho do ator.
O teatro esteve muito presente em seu trabalho na fase militante e até um pouco depois de sua volta ao Brasil. No entanto, desde que o sr. passou a escrever para a televisão, parece ter perdido o interesse pelo palco. Por quê? Qual a importância do teatro para sua obra?
Ferreira Gullar: Antes de entrar para o CPC eu era apenas um espectador e um leitor de teatro. O teatro me fascinava, mas eu não tinha o co nhecimento de dramaturgia. Quando entrei para o CPC , eu me envolvi com teatro; depois ajudei a criar o Opinião, onde faria minha primeira peça. Aliás, o trabalho no Opinião foi um verdadeiro aprendizado: eu acompanhava os ensaios, discutia as cenas e aí consegui realmente dominar a técnica da dramaturgia, o instrumento da linguagem teatral mesmo. Escrevi Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, com Vianinha, A saída? Onde fica a saída?, com Armando Costa e o [Antônio Carlos] Fontoura, Dr. Getúlio, sua vida e sua glória, com Dias Gomes, até que em 1978, fiz sozinho Um rubi no umbigo. Fora daí tenho outras peças, algumas que nem dei por terminadas. Uma delas foi lida recentemente num ciclo que o grupo Casa Grande organizou. Chama-se Mal chegava a primavera. É uma história que se passa nos últimos dias do governo Allende.
CADERNOS:
O sr. teve dificuldades no início para escrever textos que iriam ser representados na TV? Enquanto poeta e intelectual, com histórico de militância política, qual era o seu conceito em relação ao “veículo” televisão antes de se dedicar à teledramaturgia? Ele se alterou a partir do momento em que o sr. passou a escrever para a TV?
Ferreira Gullar: Eu não era um escritor com preconceitos em relação à televisão. Fui talvez o primeiro intelectual brasileiro que deu um habeas-corpus para a TV. Em 1965 escrevi uma série de ensaios na Revista Civilização Brasileira intitulada “Problemas estéticos na sociedade de massa” e lá eu tratava da televisão de uma forma diferente da Escola de Frankfurt – reconhecendo, 51
chegou à página 100. O sr. poderia falar de sua experiência como ficcionista, que resultou no livro Cidades inventadas (1997)? E como está o projeto do romance?
como já disse, o caráter democrático do veículo, embora também chamando a atenção para a estereotipia, o esquematismo. Mas não havia preconceito, entende? Quando voltei do exílio, Dias Gomes me convidou para trabalhar com ele na Globo. Obviamente, era uma ótima oportunidade de trabalho para mim. E não tive qualquer dificuldade. A dramaturgia que aprendi no teatro me serviu e me serve para a TV. Aliás, comecei em televisão fazendo uma série de adaptações de peças teatrais num programa que se chamava Aplauso.
Ferreira Gullar: Bem, o romance virou o Poema sujo. Eu tinha escrito 70 páginas do livro e desisti. Pensei: “Não sou romancista”. Já Cidades inventadas é ficção. Nem acho que sejam contos, mas é ficção: eu escrevi aquelas histórias como se fosse um historiador de verdade, eu me fingi de historiador, fiz até notas. Curioso é que quando eu comecei a escrever aquilo, eu não conhecia Borges, nem Calvino. E outro dia, relendo Kafka, descobri que essa idéia de fazer uma cidade encantada tinha saído da história da muralha da China.
CADERNOS: Como o sr. analisaria a teledramaturgia brasileira atual?
Ferreira Gullar: Existem várias teledramaturgias. Quando você faz o que se chama em TV de especial, é como se fosse um curta-metragem ou uma peça, com 40, 45 minutos de duração; nesse caso, você tem muito mais possibilidades de usar com eficiência os recursos da dramaturgia. Já a minissérie é composta de capítulos – se você faz mais, o custo da unidade cai. E é claro que as emissoras pensam nisso, o que acaba provocando, muitas vezes, uma batalha entre elas e os autores. E há ainda as novelas, em que a coisa é louca: 180, 200 capítulos. A teledramaturgia naturalmente sofre então as conseqüências disso. De qualquer maneira, o rendimento do Brasil nesse campo tem sido bom: nem sempre pela teledramaturgia em si, mas pelos atores, os diretores. CADERNOS:
O sr. assiste à
CADERNOS: No texto “Adrixerlinus” há um eco de sua passagem pela União Soviética?
Ferreira Gullar: De certo modo, mas o básico ali é a crítica em geral a uma cidade utópica – a cidade perfeita. Há ali uma citação d’A República, de Platão. Eu não acredito nessas coisas. Como disse antes, nem na época em que estava no Partido Comunista eu acreditei numa sociedade futura perfeita, sem classes. Agora, a “cidade perfeita”, eu nem sei o que é isso, até porque, como diz a história, para viver numa cidade perfeita é preciso ser perfeito. CADERNOS:
Houve uma época em que o sr. escrevia crônicas, que foram reunidas em A estranha vida banal (1989). Como foi para o sr. manter uma produção textual regular?
TV?
Ferreira Gullar: Vejo, inclusive profissionalmente eu tenho necessidade de ver televisão para saber o que está acontecendo, o que está sendo feito. É verdade que me chateia, não tenho muita paciência. Mas é o meu ganha-pão; faço o melhor possível quando escrevo para a TV, procuro escrever com qualidade, me interesso mesmo.
Ferreira Gullar: Eu confesso a vocês que dei graças aos céus no dia em que me liberaram de escrever crônicas semanais no Jornal do Brasil. Muitas vezes você fica feliz por ter uma seção fixa para dizer o que pensa, mas, e quando não se tem nada para dizer? Já no exílio, como colaborador d’O Pasquim, eu não tinha essa obrigação. Escrevia quando tinha alguma coisa interessante para comentar.
CADERNOS:
O sr. já disse que a poesia nasce da prosa, o que ajuda a explicar uma espécie de fascinação que o sr. tem por textos ficcionais – a ponto de iniciar um romance, que nunca
CADERNOS:
O sr. trabalhou como jornalista durante muitos anos. A linguagem jornalísti52
ca influenciou, de algum modo, o seu trabalho criativo e/ou ensaístico?
meu último livro de poemas é de 87, já estamos em 98 e eu tenho apenas um livrinho, com poucos poemas, para publicar.
Ferreira Gullar: Claro. Trabalhei como copidesque durante anos a fio, como revisor, redator. Lembro que na Manchete, para onde fui convidado por Otto Lara Resende, eu era registrado como revisor, mas escrevi até crônica. Às vezes, o Otto chegava e dizia: “Gullar, o Rubem Braga não mandou a crônica dele. Escreve aí uma crônica”. Eu fazia – e assinava Rubem Braga. Nós nos divertíamos muito. Depois fui para o Diário Carioca, que era uma escola de formação da nova redação, a redação moderna. No Jornal do Brasil ajudei a fazer a reforma, com a colaboração na parte gráfica do Amilcar de Castro, que era meu amigo da fase concreta e neoconcreta. Essas coisas não se separam; toda essa experiência teve naturalmente reflexo no meu trabalho.
Alfredo Bosi: Em pleno vendaval da globalização, que leva ao extremo a mercantilização da cultura e da vida simbólica em geral, como você encara a possibilidade de a poesia resistir, ainda?
Ferreira Gullar: Eu acho que mais do que nunca a poesia se torna necessária, exatamente por isso, não é? A poesia nunca foi uma arte de grande público, mas quando você vê a vida se tornando essa coisa massificante, ameaçando dissolver as individualidades, acho que as pessoas têm que se defender – e a poesia é uma forma de resistência a isso tudo. Alfredo Bosi: O que lhe parece significativo na poesia brasileira recente, isto é, nos poetas que começaram a escrever depois do experimentalismo dos anos 60 e depois da “poesia marginal” dos anos 70?
Zuenir Ventura: Se você tivesse que escolher uma só de suas inúmeras atividades – poesia, teatro, literatura, jornalismo, crítica de arte e telenovela – qual escolheria? Por quê?
Ferreira Gullar: Em primeiro lugar, quero dizer que acho que essas experiências todas foram necessárias. O movimento da poesia concreta, por exemplo, foi necessário. Aquilo não foi uma invenção gratuita, não se trata de “vamos agora mudar a poesia brasileira”. A poesia brasileira que nasce com o modernismo amadurece, entra em crise com a geração de 45, adota uma postura formalista, volta à linguagem coloquial, até que surge a poesia marginal – muito interessante com aquela coisa do mimeógrafo, de levar o poema de mão em mão – que retoma o discurso poético, assimila o que foi criado. Hoje cada poeta busca o seu caminho. Não há um movimento – e é natural, porque não é obrigatório que hajam sempre movimentos. Em várias fases da história poetas criaram individualmente suas obras sem que estivessem inseridos em movimento algum. O que é significativo é que há um renascer da poesia. É cedo para dizer quais são os grandes poetas que estão surgindo. Eu recebo muitos livros de poesia; a maioria não é de boa qualidade.
Ferreira Gullar: A poesia. É nela que eu me realizo plenamente. Mas não poderia escolhê-la, porque nesse caso teria que morar na favela e ainda precisaria arrumar outra coisa para fazer, digo, para ganhar a vida. Na verdade, eu acho que tenho tantas atividades porque a poesia não é uma ocupação permanente. Eu só escrevo a poesia que merece nascer. Eu sei que não adianta forçar. Fazer um poema é uma grande experiência. É preciso estar dentro do clima – aquele em que você parece estar dentro do miolo da vida. Quando eu sinto que não entrei nesse clima, eu já sei que não vai dar certo, e a ansiedade de fazer o poema vira uma coisa insuportável. O ideal do artista seria viver sempre nesse clima, mas não é possível. Alguns vivem e por isso mesmo suas obras são maiores, quer dizer, eles produzem num volume maior. Eu, não. É como sempre digo: sou muito terrestre, tenho muito os pés no chão, e aí fica difícil levantar vôo. Por isso, quando me perguntam: “Você é o Ferreira Gullar?”, eu respondo: “Às vezes”. Vejam vocês, 53
CADERNOS: O sr. disse que uma das coisas que mais o impressionaram quando voltou do exílio foi a quantidade de publicações de livros de jovens poetas, do norte ao sul do país. Desde então, isso se intensificou – basta dizer que na Internet o Jornal de Poesia registra milhares de visitas. E são muitas as novas publicações, seminários e debates sobre a poesia jovem. O sr. recebe muitos originais de poetas jovens? Consegue lê-los? Responde aos autores?
surgiu a seguinte frase na minha cabeça: “Com raras exceções, os minerais não têm cheiro”. Quer dizer, não falava em tangerina, mas ao dizer isso, inseria o leitor num mundo conhe cido, ou capaz de reconhecer – com os mine rais rígidos, sem respirar – algo diferente da tangerina, que quando eu abro me lambuza. Eu estava então transmitindo uma vivência capaz de inserir o leitor nela. Essa ligação do poema com o concreto, com o vivido, com o “de todo mundo”, o prosaico, talvez isso me aproxime das pessoas. A minha poesia tem talo, está ligada ao chão.
Ferreira Gullar: Recebo muitos livros de poemas. E a maioria, como no caso dos livros, é de má qualidade. Até pouco tempo atrás eu res pondia aos poetas – ao menos para aqueles que tinham qualidade. Mas chega a um ponto em que você não consegue mais fazer isso, toma um tempo enorme. Eu respondia porque me sentia obrigado. Parei. Hoje é muito raro eu responder.
CADERNOS:
Numa fase assim, de gestação de um poema, como fica a sua relação com a literatura? O sr. lê?
Ferreira Gullar: Sim, eu não separo nenhuma parte da minha vida da poesia. Todo dia eu abro o jornal. Se estou lendo um livro, continuo a leitura. Pode ser até que na leitura desse livro surja uma palavra que me leve de volta ao delírio do poema, está entendendo?
CADERNOS:
Comenta-se, nos meios universitários, e até já foi publicado, que entre os poetas brasileiros vivos, Ferreira Gullar é um dos mais lidos e cultuados pelos jovens que estão se iniciando na poesia. O sr. sabia disso? E qual a sua explicação para essa preferência dos jovens?
CADERNOS:
No caso do poema sobre o cheiro da tangerina, não houve uma remissão à infância, a uma “experiência pri meira”?
Ferreira Gullar: Freqüentemente isso acontece. O cheiro muitas vezes me remete ao passado. Mas nesse caso, por estranho que pareça, não me remeti à infância, ao passado.
Ferreira Gullar: Bem, eu não sabia disso. Claro que fico contente. Quanto à explicação talvez seja o fato de que minha poesia sempre foi bastante ligada à vida. Por exemplo, meu poema “O cheiro da tangerina” [Barulhos, 1987]. Eu estava na minha sala e meu filho abriu uma tangerina. Embora eu sentisse o cheiro da tangerina desde que nasci, de repente aquele cheiro da tangerina aberta pelo meu filho me comunicou algo diferente. Achei que poderia fazer um poema, mas ia dizer o quê? Saí dali para trabalhar, aquele cheiro de tangerina dentro de mim. Passei semanas pensando no poema, fui ler numa enciclopédia a respeito da tangerina, procurei me misturar com a tange rina. Comecei escrevendo as coisas mais absurdas. Irracionais. Um dia, indo para a praia,
CADERNOS:
O sr. costuma dizer que só escreve os poemas necessários. Foi sempre assim? Como o sr. faz tal consideração? Poemas “desnecessários” não poderiam funcionar como “exercícios poéticos”?
Ferreira Gullar: Sempre foi assim. Eu nunca escrevi muito. Eu gosto de pensar, não gosto de escrever; mas só sei pensar escrevendo, então tenho que escrever. E só escrevo, como disse, quando sinto que aquilo renderá um poema. Eu sinto isso. E aí, custe o que custar, eu tenho que escrever. 54
Em poesia certamente não, mas em termos de prosa, o sr. tem alguma rotina quando está escrevendo, por exemplo, um ensaio?
CADERNOS:
que não é só a história de D. Pedro, do golpe de 64, é a história de alguém que estava em casa e ouviu o avião passar. CADERNOS:
Ao longo dos últimos 50 anos, sua poesia passou pela luta contra o formalismo da geração de 45, pelos movimentos concreto e neoconcreto, por uma dicção de matiz popular e politicamente engajada e até pelo verso lírico-coloquial de extração moder nista. Por trás dessa apa rente dispersão, seu percurso inquieto configurou, no entanto, um programa sempre coerente de procura da poesia e da expressão que, a cada momento, melhor lhe desse forma. A esta altura de sua carreira, tendo-se afirmado como um dos mais importantes poetas brasileiros de sua geração, o sr. considera que essa procura terminou?
Ferreira Gullar: Não. Em geral trabalho de dia, mas sem horário. O problema, como eu disse, é que não gosto de escrever. Mesmo poesia, eu só gosto quando entro naquele clima que já descrevi antes. CADERNOS:
Quando é que a poesia o convoca realmente?
Ferreira Gullar: Às vezes acontece na rua. Não é sempre, mas às vezes eu saio – tenho prazer em estar no meio das pessoas – e fico pensando nos poemas, elaborando mesmo. É um prazer saber que a poesia está nascendo no meio da multidão. Mas o momento do nascimento do poema, desse você não tem controle.
Ferreira Gullar: Esse livro que vou publicar tem vários momentos diferentes. Um deles traz textos que eu chamo de poemas prosaicos. Eles nasceram depois da última poesia de Barulhos, que se chama “Nasce um poema”. Depois que escrevi “Nasce um poema” passei meses sem produzir, fiquei achando que tinha entrado numa nova crise. Quando voltei a escrever, fiz poemas quase narrativos. Quer dizer, o poeta está sempre num impasse, numa situação de impasse. No meu caso, ainda acontece a mesma coisa que se vê n’A luta corporal : quando adquiro a habilidade, eu corto, rompo. Não consigo continuar, eu não quero continuar. Não é uma questão de buscar o novo simplesmente, mas porque ali tem que aflorar a coisa fresca; é que sou exigente e não quero a habilidade, como falei. Então, continuo buscando. Meu último poema, “Morrer no Rio de Janeiro”, que entreguei a vocês para sair nos CADERNOS, é feito em versos livres, enquanto os que eu vinha fazendo um pouco antes dele eram rimados. Ora, “Morrer no Rio de Janeiro” jamais poderia ter sido escrito com rimas, metrificado. Quer dizer, o poema também se impõe, entende? Quando ele vem, de qualquer um de seus abismos, ele desconhece tudo, não reconhece pai nem mãe, não adianta – ele não respeita nada.
CADERNOS:
Por que alguém deveria se dedicar à poesia nos dias atuais?
Ferreira Gullar: Eu acredito que as pessoas nasçam poetas. É o destino delas. Então, dificilmente deixam de fazer poesia. CADERNOS:
E os leitores?
Ferreira Gullar: Também. Eu acho que há pessoas que têm uma sensibilidade especial para a poesia. Não são capazes de escrever, mas são capazes de ler com sensibilidade um poema. Eu tenho recebido manifestações de leitores assim, que me encontram, me páram na rua e dizem: “Olha, eu li o seu livro inteiro, as suas poesias me ajudaram muito”. Isso é uma coisa que nasce com a pessoa. Para mim, o fato de ser um poeta da banalidade, do mundo real e ter esse retorno, para mim esse é o grande barato, está compreendendo? É comovente eu conseguir fazer um poema que é da vida do outro também. Eu falo da fotografia aérea da minha cidade e ele também pode sentir isso, ele tem a sua cidade, ouviu passar o avião sobre a cidade dele. Quer dizer: eu estou contando a história do meu país 55