fev.2025
destaques de fevereiro
Perseguido durante a cruzada anticomunista do governo estadunidense no pós-guerras, o ator Sterling Hayden marcou a história do cinema em colaborações com cineastas como Robert Altman e Stanley Kubrick.
A Sessão Mutual Films exibe um de seus trabalhos mais emblemáticos, o western de traços queer Johnny Guitar, de Nicholas Ray, junto a Farol do caos, documentário que visita Hayden na maturidade. Os dois filmes terão a estreia brasileira de suas restaurações no IMS.
Na iminência do Oscar e após um Globo de Ouro que mobilizou o público brasileiro, o Cinema do IMS exibe alguns dos títulos que mais se destacam na temporada de premiações. Em O brutalista, Brady Corbet e Mona Fastvold investigam as relações entre psicologia e arquitetura no pós-guerra em um filme que parece se perguntar: o que pode ser um cinema brutalista?
As dinâmicas complexas entre política e sexualidade são investigadas em obras que exploram o erótico e o pornográfico: em O intruso, o cinema de Bruce LaBruce lança mão de um olhar pasoliniano para pensar imigração e xenofobia na Europa. Já Ricardo Alves Jr. cria uma coreografia sexual que remonta a um período em que o Parque Municipal de Belo Horizonte servia como ponto de cruising ou pegação. Sean Baker segue sua investigação em torno de trabalhadores sexuais à margem do sonho americano com seus mais recentes filmes Anora e Red Rocket, exibidos em programa duplo. Em uma de suas últimas obras, John Cassavetes atua lado a lado com Gena Rowlands como dois irmãos emocionalmente instáveis que precisam se reconectar. Grande sucesso desses dois artistas, Amantes (Love Streams) poderá ser revisto no IMS Paulista.
[imagem da capa]
Johnny Guitar, de Nicholas Ray
(EUA | 1954, 110’, DCP, restauração 4K)
filmes de fevereiro
Em cartaz
Anora
Sean Baker | DCP
Parque de diversões
Ricardo Alves Jr. | DCP
Sessão Mutual Films
Baby
Marcelo Caetano | DCP
Kasa Branca
Luciano Vidigal | DCP
[imagem ao lado]
Malu
Pedro Freire | DCP
O brutalista (The Brutalist)
Brady Cobert | DCP
Sol de inverno (Boku No Ohisama)
Hiroshi Okuyama | DCP
Pré-estreia
Johnny Guitar
Nicholas Ray | DCP, restauração 4K
Farol do caos
(Leuchtturn des Chaos)
Wolf-Eckart Bühler e Manfred Blank | DCP, cópia restaurada
Sessão especial
O intruso (The Visitor)
Bruce LaBruce | DCP
Red Rocket
Sean Baker | DCP
Amantes (Love Streams)
John Cassavetes | DCP
É possível assistir a alguns dos filmes em cartaz no Cinema do IMS com recursos de acessibilidade em Libras, legendas descritivas e audiodescrição. Para retirar o equipamento com recursos, consulte a bilheteria do IMS Paulista. Em caso de dúvidas, entrar em contato pelo telefone (11) 2842-9120 ou pelo e-mail imspaulista@ims.com.br.
14:00 Sol de inverno (90')
15:50 Kasa Branca (95')
17:50 Parque de diversões (71')
19:20 Anora (139')
11
14:00 Sol de inverno (90')
16:00 Anora (139')
18:50 Parque de diversões (71')
20:20 Kasa Branca (95')
18
14:00 Anora (139')
16:40 Baby (107')
19:30 Sessão Mutual Films: Johnny Guitar (110'), sessão apresentada por Paulo Santos Lima
15:00 O intruso (101')
17:00 Anora (139')
19:45 Red Rocket (131') 5
14:00 Sol de inverno (90')
15:50 Kasa Branca (95')
17:50 Parque de diversões (71')
19:20 Anora (139') 12
14:00 Sol de inverno (90')
16:00 Anora (139')
18:40 Kasa Branca (95')
20:30 Parque de diversões (71')
19
15:45 Parque de diversões (71')
17:20 Kasa Branca (95')
19:30 Sessão Mutual Films: Farol do caos (119'), sessão apresentada por Aaron Cutler e Mariana Shellard 26
14:00 Baby (107')
16:20 O intruso (101')
18:20 O brutalista (215') 6
14:00 Kasa Branca (95')
15:50 Anora (139')
18:30 Parque de diversões (71')
20:00 Sol de inverno (90') 13
14:30 Anora (139')
17:30 Baby (107')
20:00 Garotos de programa (104') 20
14:20 Malu (103')
16:20 O intruso (101')
18:20 O brutalista (215') 27
14:00 Parque de diversões (71')
15:30 O brutalista (215')
19:30 Amantes (140')
14:00 Sol de inverno (90')
15:50 Anora (139')
18:30 Kasa Branca (95')
20:30 Parque de diversões (71')
22:00 Baby (107')
14
14:20 Kasa Branca (95')
16:20 Baby (107')
18:30 Parque de diversões (71')
20:00 O intruso (101')
22:00 Malu (103')
21
14:00 Malu (103')
16:00 Baby (107')
18:10 O brutalista (215')
22:00 O intruso (101')
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14:00 Baby (107')
16:10 O intruso (101')
18:10 O brutalista (215')
22:00 O intruso (101') 1
14:00 Sol de inverno (90')
15:50 Kasa Branca (95')
17:50 Parque de diversões (71')
19:20 Anora (139')
22:00 Baby (107') 8
14:45 Sol de inverno (90')
16:50 Red Rocket (131')
19:20 Anora (139')
22:00 Baby (107')
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14:20 Malu (103')
16:30 Anora (139')
19:20 Amantes (140')
22:00 O intruso (101')
22
19:30 O brutalista (215')
14:00 Sol de inverno (90')
15:50 Kasa Branca (95')
17:50 Parque de diversões (71')
19:20 Anora (139')
9
14:00 Anora (139')
16:40 Parque de diversões (71')
18:10 Kasa Branca (95')
20:00 Baby (107')
16
15:00 Kasa Branca (95')
17:00 Baby (107')
19:30 Anora (139') 23
19:30 O brutalista (215') 7
15:00 Sessão Mutual Films: Farol do caos (119')
17:20 Sessão Mutual Films: Johnny Guitar (110')
Programa sujeito a alterações. Eventuais mudanças serão informadas em ims.com.br.
de: Marcelo Caetano
para: Fábio Leal
data: 16 de jan. de 2025
assunto:
As leis do desejo
Este texto é uma resposta à carta de Fábio Leal a Marcelo Caetano veiculada na edição de janeiro da revista de programação do Cinema do IMS. O texto de Fábio Leal pode ser lido em: bit.ly/euseiqueeassimfl.
No final de 2023, eu trabalhava na montagem de Baby como se fizesse a cartografia de uma floresta. Media a distância entre uma árvore e outra. Catalogava a flora e a fauna. Desenhava o curso dos rios. Estava no meu modo obsessivo, preocupado com progressão, ritmo, duração, estrutura narrativa. Fabian Remy, o montador, vendo que o meu olhar se cansava, me propôs uma outra forma de caminhar pela floresta: ele sugeriu que eu olhasse para a copa das árvores, para o movimento do vento, para o voo errático dos pássaros. Que eu abandonasse a cartografia e vivesse o encantamento.
Foi assim que surgiu a cena final. Olhando para o alto. Decidimos ficar com Ronaldo sozinho no ônibus, lembrando do momento ápice da paixão: Baby dançando vogue e Ronaldo boxeando na laje da pensão. Ao fundo, o céu cinza-azulado de São Paulo, o Moinho abandonado, a linha do trem que corta o centro da cidade como uma cicatriz. É o que podia ser dito depois de um reencontro em que faltaram palavras.
Me lembra “Silêncio”, música de Flávia Wenceslau, que conheci na voz de Bethânia: “Silêncio, eu preciso tanto ouvir o céu/ Já não é mais urgente assim falar/ Meu coração precisa repousar.”
Eu tenho a impressão de que as relações amorosas são um pouco assim. Um tanto cartografia, um tanto encantamento. A gente quer entender o caminho que trouxe o outro até aqui, pra depois prever seus passos. Nós escutamos e fazemos anotações mentais, planos, projetos, cálculos. Pra depois deixar tudo cair por terra e se surpreender com um gesto, um sentimento inesperado. O outro é um abismo.
E a paixão é a cartografia de uma floresta em chamas. Você começa sua carta com “Baby”, de Caetano, e eu te digo que essa música existiu em todas as versões do roteiro, menos a da
filmagem. Nos primeiros tratamentos, Ronaldo apresentava a música para Wellington; nos últimos, era Alexandre, o candidato a sugar daddy. O protagonista chegava a comprar uma camisa onde se lia “Baby” em vermelho, a mesma que hoje virou merchan do filme. A música está ali, mas não está. Assim como o pai de Wellington está ali no filme, mas não está.
Quando escrevi o diálogo do reencontro de Baby e Ronaldo no ônibus, mandei a cena para o corroteirista Gabriel Domingues. Ao invés de dizer se gostou ou não, ele me enviou a canção “Foi mal”, de Urias, e me assustei. Parecia resumir o filme. Relutei em usá-la, porque era muito literal, explicava demais. Era melhor ficar com “Baby”, que celebrava São Paulo e seus amores pop.
Até que um dia ouvi o podcast da Mubi com a diretora de Aftersun, Charlotte Wells. Ela dizia que, quando teve a ideia de usar “Under Pressure”, de Queen e Bowie, no final do filme, todos tentaram dissuadi-la: explicava demais os sentimentos do personagem de Paul Mescal, matava o mistério. Mas aí ela tomou uma decisão, que, para mim, separam os filmes que voam para encontrar o público daqueles que permanecem como belas caixas impossíveis de abrir. Em algum momento do filme, você precisa ser claro. Precisa dar imagem, sentido e às vezes música aos sentimentos.
Em Baby, eu tentei propor a minha lei do desejo, e talvez ela tenha revelado demais as minhas cicatrizes. Eu penso que existem relações tão intensas que são impossíveis de mantê-las por um longo tempo em nossa vida, elas exigem muito do nosso coração. E talvez seja por isso que as grandes paixões não assentam, não duram. “Tudo que eu fiz foi pra te proteger de mim/ Chegamos nesse fim, que fim, foi mal.”
Em “Foi mal”, os autores dizem: “Tentando o meu melhor, eu mostrei o pior de mim”. Isso me lembra imediatamente A lei do desejo, de Almodóvar. Em O último sonho, o diretor espanhol explica o título de seu melhor filme: quando você estiver no ápice da intensidade amorosa por uma pessoa, ela não vai estar com a mesma intensidade. E quando for ela que estiver no ápice, você estará em outra frequência. A lei do desejo, para Almodóvar, é o desencontro das intensidades.
Adorei receber sua carta. Compartilhamos do mesmo amigo íntimo, Thales Junqueira, diretor de arte de Baby. Falo íntimo, porque é com ele que a gente fala todo dia, é nele que despejamos nosso humor absurdo, ele diz. E é engraçado que eu e você nunca caminhamos juntos pela floresta, sendo que nossos filmes estão lá: os amores desencontrados de Baby e Na sua companhia, os personagens cheios de desejo de O porteiro do dia, Reforma e Seguindo todos os protocolos. Curioso que as histórias de todos eles não duram.
Pelo menos, assim me parece ao fim de cada filme.
Maria Bethânia quando canta a música de Flávia Wenceslau, “Silêncio”, muda uma palavra. Ela já disse mil vezes que tem palavras que ela não canta. E nesse caso a palavra que ela muda é justamente “MUDAR”.
Flávia escreveu: “Silêncio, eu quero ouvir o que me diz a imensidão/ Quero saber se a minha alma tem razão/ Quando acredita que essas coisas vão mudar.” Pra Bethânia cantar: “Quando acredita que essas coisas vão DURAR”.
E aí eu pergunto para os nossos personagens, estes que ficam voando de árvore em árvore. O que a gente precisa mudar para que as coisas possam durar? Ou, em sentido oposto, quando será que a gente deixará o outro ser o que ele é, amá-lo em sua complexidade, sem que ele tenha que mudar para que a gente permaneça?
O forasteiro
Sterling Hayden: Johnny Guitar
+ Farol do caos
Aaron Cutler e Mariana Shellard
Na década após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos da América passaram por um clima particular de hostilidade. No pensamento popular da época, não era o suficiente ser o país mais rico e forte do mundo – esta força tinha de ser protegida a todo custo. Daí surgiu a fase mais intensa do movimento anticomunista norte-americano, que ganhou corpo através de entidades como o Comitê de Atividades Antiamericanas [HUAC], na Câmara dos Representantes dos Estados Unidos. Seus esforços bipartidários para proteger o país contra a então chamada “influência estrangeira” do comunismo representaram um projeto xenofóbico com fortes dimensões de racismo e antissemitismo. Porém, os mais prejudicados pelo trabalho do senador Joseph McCarthy e seus colegas não foram agentes da Rússia, mas artistas e ativistas da própria esquerda estadunidense, cujas iniciativas a favor de uma sociedade menos desigual e mais solidária foram esmagadas pelo medo e pela raiva do momento.
A Sessão Mutual Films de fevereiro de 2025 revisita esse período em dois filmes estrelados pelo ator norte-americano Sterling Hayden (1916-1986), um herói de combate na guerra e simpatizante da esquerda que delatou colegas ao comitê em 1951 e nunca se perdoou pela sua traição.
O filme mais emblemático de Hayden é o faroeste hollywoodiano Johnny Guitar (1954), dirigido por Nicholas Ray (1911-1979), no qual ele interpreta um cowboy ambivalente, preso entre o passado e o presente, em uma alegoria franca sobre o macartismo. Em contrapartida, no documentário Farol do caos (Leuchtturm des Chaos, 1983), uma produção alemã, codirigida pelos cineastas e críticos de cinema
Wolf-Eckart Bühler (1945-2020) e Manfred Blank (nascido em 1949), Hayden é entrevistado em seu barco-casa na França ao longo de alguns dias, durante os quais o ator revela sua personalidade frágil, porém rígida, que continua a prestar contas com seus atos passados.
Juntos, os filmes apresentam um forasteiro que trabalhou para trazer à luz os males de um momento histórico em seu país, apesar de sua contribuição direta para eles. Segundo o cineasta e roteirista Abraham Polonsky – que foi um dos melhores amigos de Hayden, e teve de trabalhar de forma anônima em Hollywood por duas décadas após o testemunho do ator que o colocou na Lista Negra –, “Hayden fez mais do que apenas se arrepender e buscar o perdão daqueles a quem ele tanto prejudicou. Ele fez a coisa mais radical possível: ele mudou.”
A jornada de Hayden é detalhada no texto a seguir, que foi originalmente escrito por Alf Mayer – um jornalista e crítico alemão de cinema e coeditor do site culturmag.de – e incluído em 2018 no folheto do lançamento em DVD de Farol do caos pelo selo Edition Filmmuseum. O texto foi revisado e traduzido do inglês para o português com o consentimento do autor e da Edition Filmmuseum, através do Museu de Cinema de Munique, que também digitalizou a filmografia de Wolf-Eckart Bühler. Agradecimentos adicionais vão a Manfred Blank e Hella Kothmann, por fornecer informações sobre a realização de Farol do caos.
A primeira edição da Sessão Mutual Films de 2025 é dedicada às memórias de todos os grandes atores de cinema que faleceram em 2024, entre eles, Alain Delon, Anouk Aimée, Donald Sutherland, Gena Rowlands, James Earl Jones, Jerzy Stuhr, Marisa Paredes, Paulo César Pereio, Silvia Pinal e Yoshiko Kuga. E, também, à memória da cineasta coreana-americana Christine Chang (1963-2024).
Uns destroços
sobre o ator,
escritor e marinheiro
Sterling Hayden
Alf Mayer
Nós, cinéfilos, o conhecemos como o personagem do filme Johnny Guitar – um cowboy cansado de brigar, armado apenas com a guitarra do título, parado entre duas mulheres no absurdamente belo faroeste em TruColor de Nicholas Ray, que parece ter sido imaginado pelo movimento surrealista. Nós o conhecemos por sua atuação como o general Jack D. Ripper, que lança uma bomba em direção ao apocalipse em Dr. Fantástico (Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb, 1964), dirigido por Stanley Kubrick, ou como o bandido varapau Dix Handley em O segredo das joias (The Asphalt Jungle, 1950), de John Huston, que morre de forma elegíaca nos prados de uma fazenda de cavalos em Kentucky. Talvez até nos lembremos dele como um baleeiro duelando com um arpão, em Reinado do terror (Terror in a Texas Town, 1958), de Joseph H. Lewis. A filmografia de Sterling Hayden abrange mais de 60 filmes – mas ele se orgulhava de apenas alguns papéis, sendo Dix Handley, de longe, o principal.
Frequentemente, Hayden expressava um arrependimento amargo por algo que fez durante seus anos em Hollywood, até se autonomeando “Shirley” [Temple] nos momentos de autorrecriminação. Ele foi um fuzileiro naval condecorado, o único
soldado norte-americano da II Guerra Mundial a receber congratulações do governo de seu país e do governo comunista liderado pelo marechal Tito, na ex-Iugoslávia. Como agente do serviço de inteligência (OSS), ele comandou um comboio de 400 barcos que levou suprimentos de Bari, na Itália, para os Partidários, e saltou de paraquedas na Iugoslávia ocupada atrás das linhas inimigas.
Hayden ficou impressionado com o espírito indomável dos Partidários dos Bálcãs, então, após a guerra, ele se associou ao Partido Comunista nos Estados Unidos. Ele foi membro por apenas seis meses, até as discussões teóricas começarem a entediá-lo.
No clima da “ameaça vermelha”, que incluiu o apelo da influente colunista de jornal Hedda Hopper pela criação de campos de concentração para comunistas “antes que seja tarde demais”, Hayden temeu perder a guarda de seus filhos. Ele foi persuadido a tomar uma “atitude patriótica” e, no dia 10 de abril de 1951, testemunhou diante do Comitê de Atividades Antiamericanas (HUAC). Ele “deu nome aos bois” – como o jornalista norte-americano Victor S. Navasky, em seu livro Naming Names (1980), escreveu ao caracterizar aquele período de suspeitas e
denúncias.1 Ronald Reagan, que na época era presidente apenas do Sindicado dos Atores (Screen Actor’s Guild), enviou um telegrama para ele dizendo: “Sterling, me orgulho de você!”. Mais de 2.000 matérias de jornal celebraram o novo herói, com manchetes como “Hayden desnuda seu passado comunista”.
Hollywood o recompensou com uma rápida série de filmes [33 em 7 anos]. Mas o próprio Hayden ficou quase destruído com sua traição. Como ele disse posteriormente [em sua autobiografia Wanderer]: “Não é com frequência que um homem se vê aclamado por algo que ele próprio despreza”. Não foi nos mares do mundo que ele passou a entender a desolação, mas em Hollywood. Sem o mar, onde Joseph
1. O livro premiado de Navasky, publicado no mesmo ano em que o ex-ator e político conservador Ronald Reagan assumiu a presidência dos Estados Unidos, analisou a época da Lista Negra de Hollywood principalmente ao contemplar os motivos dos delatores. O livro foi criticado em alguns círculos por minimizar a cumplicidade dos estúdios e sindicatos de cinema hollywoodianos ao trair os artistas de esquerda, cujo trabalho eles antes haviam apoiado. O trabalho do acadêmico norte-americano Thom Andersen valorizando as obras desses artistas – por exemplo, o filme Hollywood vermelha (Red Hollywood, 1996, codirigido com Noël Burch) – nasceu como uma resposta a Navasky. [N. T.]
Conrad disse que um homem prova sua coragem, Hayden, que frequentemente bebia de forma autodestrutiva, não teria vivido até os 70 anos. Talvez ele não tivesse atuado em 1900 (Novecento, 1976), de Bernardo Bertolucci, O perigoso adeus (The Long Goodbye, 1973), de Robert Altman, ou em O poderoso chefão (The Godfather, 1972), de Francis Ford Coppola. Talvez não tivesse escrito dois maravilhosos livros. Sterling Hayden, que perdeu o pai quando tinha 9 anos, ouviu o chamado das sereias do mar quando jovem.2 Ele leu extensamente sobre viagens marítimas, junto com muitas obras de Rudyard Kipling; muitas vezes ele viajou com centenas de livros em sua cabine. Em 1932, com 15 anos de idade, ele seguiu o caminho do viajante sobre o qual leu nos livros, até chegar em Portland, Maine, a 100 quilômetros de sua casa. Lá, alguns marinheiros o deixaram passar a noite na escuna Restless, antes de mandá-lo de volta para casa. Logo depois, ele conseguiu um trabalho de marinheiro na grande escuna Puritan, que navegou pelo canal do Panamá até San Pedro, na Califórnia.
2. Sterling Walter Hayden nasceu em Nova Jersey com o nome de Sterling Relyea Walter, mas, com o casamento da sua mãe, seu nome foi mudado legalmente para o sobrenome de seu padrasto. [N. T.]
Uma vez de volta à costa leste, na cidade de Gloucester, em Massachusetts, um capitão de navio chamado Benjamin Pine levou Hayden para baixo de suas asas. O jovem ganhou a vida de forma honesta, com frequência tripulando para escunas de pesca em Gloucester. A camaradagem e o trabalho pesado em barcos e arrastões totalmente carregados – havia muita competição para ser o primeiro no porto com a pesca – o atraíram como nenhum outro trabalho faria. Foi assim também que Hayden aprendeu sobre a produção e o capitalismo: ele percebeu que a tripulação ganhava dois centavos de dólar por libra de peixe, e, quando sua mãe comprava o peixe ao meio-dia, o preço havia subido para 11 centavos.
Com apenas 20 anos, Hayden serviu como primeiro-marinheiro na escuna Yankee, em uma viagem de volta ao mundo. No ano seguinte, a escuna Gertrude L. Thebaud, de Gloucester – com 37,8 metros de altura, 30,2 metros na linha d’água e 650 metros quadrados de navegação – ganhou a Copa dos Pescadores, vencendo a Bluenose, do Canadá, que por anos dominava as corridas. Entre os tripulantes da escuna vencedora, estava Sterling, que, com 21 anos de idade, já era navegador do navio (o capitão Ben Pine pilotava o leme). A corrida entre os barcos canadenses e americanos, que ocorreu
anualmente entre 1920 e 1938, era considerada “uma corrida para marinheiros de verdade”. Apenas escunas em atividade no mercado de peixes podiam participar. Em Gloucester, a volta dos vitoriosos foi celebrada com entusiasmo. A manchete de um jornal declarou: “Thebaud navegou como uma estrela de cinema”, sob a foto do belo e vitorioso Hayden.
Ele teve seu primeiro comando aos 22 anos, sendo o mais jovem a bordo, e velejou a bergantim Florence C. Robinson
7.000 milhas até o Taiti. Ele estava radiante e pensou que a vida seria sempre assim. Hayden recusou dois convites para testes de elenco de Hollywood, preferindo passar seu tempo com uma embarcação que havia acabado de comprar com um sócio e
rebatizar de Aldebaran, que havia pertencido ao kaiser alemão sob o nome de Meteor III. Mas, quando apareceu um vazamento no iate durante uma tempestade no cabo Hatteras, ele mudou de ideia.
A Paramount Pictures fechou com Hayden um contrato de sete anos. Seu primeiro filme foi o drama Virgínia romântica (Virginia, 1941), de Edward H. Griffith,
no qual contracenou com o também norte-americano Fred MacMurray e a estrela inglesa Madeleine Carroll. Ele disse depois que o trabalho foi ridiculamente bem pago e trivial, porque havia pouco envolvimento, e ninguém realmente se importava. Mas lhe rendeu o suficiente para comprar uma velha escuna, mais muitos outros barcos. E seu caso com Carroll se tornou seu primeiro casamento.
Sterling Hayden foi proprietário de 18 embarcações ao longo de sua vida, de uma escuna de três mastros a uma barcaça de canal. Ele comprou um barco no mesmo dia em que se associou ao Partido Comunista, batizando-o de Quest. (Em sua autobiografia, ele escreveu laconicamente: “Eu me pergunto: já houve um homem na Terra que comprou uma escuna e se associou ao Partido Comunista no mesmo dia?”) Entre seus outros barcos, havia o Horizon e o Brigadoon. Ele rebatizou uma embarcação que tinha o nome original de Gracie S., em homenagem à filha de um comerciante rico, porque disse nunca ter se importado com magnatas. Se tornaria o Wanderer, que, depois, daria o nome a sua autobiografia de 1963.
Esse livro, Wanderer [Viajante], é um implacável acerto de contas com sua vida, literatura de alta qualidade que deve tanto aos autores da geração beat quanto aos grandes
autores do mar. Mas mesmo hoje, na primavera de 2018, não foi traduzido para o alemão.
Também não foi Voyage: A Novel of 1896 [Viagem – Um romance de 1896], de 1976, o grande épico americano de Hayden sobre duas jornadas de barco contrastantes, uma pelos mares do sul até o Japão, e a outra em torno do cabo Horn.3 Este segundo livro é um retrato das diferenças de classe nos Estados
Unidos, assim como do movimento trabalhista do país. Com robustas 700 páginas, ele é o melhor livro sobre navegação marítima publicado desde Moby Dick, ou A baleia (Moby-Dick; or, The Whale, 1851), de Herman Melville, e foi escrito por um verdadeiro navegador do globo. Hayden circum-navegou o mundo três vezes à vela. As descrições dos barcos e portos em Voyage vibram com a vida, e o relato do contorno do cabo Horn é uma leitura assustadora.
Ele teve seis filhos com três esposas, casando-se com a do meio [Betty de Noon] três vezes. Era um tipo de “Holandês Voador”, que frequentemente naufragava nas margens, um vaguejante, um andarilho, um não conformista. Em 1959, durante uma batalha de custódia por seus filhos, ele desafiou a justiça
[que exigia não tirar as crianças dos Estados Unidos] e navegou com eles no Wanderer para o Taiti, onde planejou começar uma rota de correio entre as ilhas.4
Nos seus últimos anos, Hayden passou meses vivendo em rios europeus, onde o escritor e cineasta Wolf-Eckart Bühler o encontrou em 1981. O diretor alemão, vivendo há mais de 40 anos no boêmio bairro de Schwabing, em Munique, já havia viajado pelo mundo, mesmo quando jovem. Bühler estudou teatro e filosofia na faculdade e, no início de 1972, se tornou um dos editores da Filmkritik (1957-1984), a principal revista alemã para a crítica de cinema. Os textos de Bühler para a revista foram escritos com o coração e a mente, mais uma perspectiva treinada em dialética. Algumas de suas edições da Filmkritik se tornaram lendárias, por exemplo, as sobre
3. Pelo que sabemos, os dois livros de Hayden tampouco existem em traduções para português. [N. T.]
4. A viagem que Hayden fez com seus (então quatro) filhos por barco durou um ano. Na época, Hayden já tinha resolvido deixar Hollywood e ficou afastado das telas de cinema por quase uma década, com a exceção do seu papel em Dr. Fantástico. Ao voltar para o meio, ele evitou filmar nos grandes estúdios e participou de produções de caráter mais independente. Além das obras da década de 1970 já citadas no texto, um dos mais notáveis papéis de Hayden dessa fase tardia da sua filmografia foi como o patriarca de uma família isolada do mundo na coprodução franco-brasileira Ternos caçadores (Sweet Hunters, 1970), de Ruy Guerra. [N. T.]
os cinemas de John Ford e de Howard Hawks e o gênero de filmes de piratas.
Há uma edição que Bühler escreveu com Felix Hofmann sobre filmes policiais, com o longo texto “Tod und Mathematik” [Morte e matemática], sobre o cinema do pouco conhecido diretor norte-americano Irving Lerner. Bühler usou o filme noir Cilada mortífera (Murder by Contract, 1958), de Lerner, como a base para uma análise que foi muito além do próprio filme.5 Bühler estava interessado no lado obscuro da América, a era da caça às bruxas em Hollywood, a Lista Negra, e em pessoas que não podiam mais trabalhar na indústria. Ele se tornou um advogado do outro lado e dedicou sua obra a dar “nome aos bois” aos esquecidos e aos condenados ao ostracismo.
Werner Dütsch, um coordenador de projetos para a televisão pública alemã Westdeutscher Rundfunk (WDR), era um fã dos textos de Bühler e o convenceu a escrever roteiros. Juntos, eles fizeram o 5. O thriller de baixo orçamento de Lerner sobre os dilemas enfrentados por um assassino de aluguel urbano (interpretado por Vince Edwards) funciona como uma crítica franca da natureza brutal do capitalismo no Ocidente nos anos após a Segunda Guerra Mundial. Lerner nunca entrou na Lista Negra oficialmente, mas sua carreira foi prejudicada pelo clima da época, e ele muitas vezes trabalhou em filmes sem receber crédito. [N. T.]
retrato documental Leo T. Hurwitz: filmes para uma outra América (Leo T. Hurwitz: Filme für ein anderes America , 1980), sobre o então desconhecido documentarista marxista americano que dá nome ao título. Depois fizeram Segurança interna: Abraham Polonsky (Innere Sicherheit: Abraham Polonsky, 1981), sobre o roteirista e cineasta tido pelo diretor do FBI (J. Edgar Hoover) como “o homem mais perigoso dos Estados Unidos”, e que também foi estigmatizado e incluído na Lista Negra de Hollywood. Ambos os filmes dirigidos por Bühler são modelos do bom trabalho feito no passado pela televisão pública alemã. Os dois são protótipos de um olhar crítico que pôde enfrentar o teste do tempo, assim como os textos publicados de Bühler sobre cinema continuam sendo relevantes.6
No início dos anos 1980, Bühler estava trabalhando em um livro sobre o Comitê de Atividades Antiamericanas. Nem este, nem seu livro sobre Marx e a América foram concluídos. Mas o trabalho despertou seu interesse em Sterling Hayden e em Wanderer. Bühler ficou tão fascinado pelo livro que elaborou seu filme Der Havarist [O náufrago] (1984) a partir dele. O conceito e roteiro do filme tinham o objetivo de apresentar a voz de Hayden de forma tão séria quanto Jean-Marie Straub e Danièle Huillet fizeram em seus filmes com as obras de Cesare Pavese e os clássicos gregos –sendo que a vida turbulenta do ator, como retratada no filme, teria dimensões similares.7 Bühler sabia que teria que falar com Hayden pessoalmente para convencê-lo
6. Hurwitz é conhecido hoje por filmes híbridos sobre a presença nefasta do racismo nos Estados Unidos, como Native Land (1942, codirigido com Paul Strand) e Vitória estranha (Strange Victory, 1948), enquanto Polonsky é conhecido por seu longa de estreia, o filme noir Força do mal (Force of Evil, 1948), e outros trabalhos que atacam o capitalismo como uma instituição criminosa. Os filmes de Bühler sobre esses dois artistas judeus e norte-americanos são incluídos, junto a um curta sobre o também judeu Irving Lerner, na edição de DVD dos seus filmes que foi editada pelo Museu de Cinema de Munique: bit.ly/ims-web.
7. Bühler escreveu o roteiro de Der Havarist em parceria com um colega da Filmkritik, o crítico Manfred Blank, que trabalhou como assistente em vários filmes de Straub-Huillet. Blank também trabalhou nas produções dos primeiros documentários de Bühler e codirigiu Farol do caos. Ele era um especialista no cinema francês da sua época e desenvolveu um interesse pelo trabalho de Hayden após ler a crítica entusiasmada de Johnny Guitar que François Truffaut escreveu em 1955 para a Cahiers du Cinéma. Blank queria filmar Hayden para entender melhor “o único homem a expressar abertamente seu ódio em relação a sua presença amigável no comitê”, como ele se referiu a Hayden em um e-mail recente sobre Farol do caos. [N. T.]
a participar. Levou um ano para conseguir encontrar o ator. Hayden estava vivendo em sua barcaça holandesa Farol de Islândia no rio Doubs, perto de Besançon, na França. Ele leu o roteiro, ficou entusiasmado e deu a Bühler os direitos para adaptar Wanderer para o cinema. Na segunda noite da visita, Hayden disse que era uma pena que ninguém estivesse gravando o encontro. Bühler montou uma equipe que aceitou trabalhar fiado e voltou para lá uma semana mais tarde.
Havia dinheiro o suficiente apenas para uma semana de filmagem. Hayden estava bêbado ou chapado durante cada minuto desse período, mas, no documentário resultante, ele fala tão claramente quanto um arcanjo. É impressionante vê-lo com uma barba extraordinária, castigado pelo tempo, descalço, completamente embriagado e descabelado. Um rei sem país ou subordinados. Uma figura shakespeariana. Um sonhador e um pensador, algumas vezes um profeta fervoroso. Farol do caos, nome de um livro não terminado de Hayden, virou o título do inquietante filme-retrato. Hayden assistiu ao filme um ano depois, sozinho na sala de cinema. Ao encontrar Bühler em um restaurante após a sessão, ele passou um bom tempo em silêncio antes de dizer que achou o filme bom, muito
bom, e verdadeiro, mas que ele nunca mais queria assisti-lo novamente, pois nunca mais queria se ver em um ponto tão baixo de sua existência.8
Der Havarist, também um filme de baixo orçamento, foi realizado no final da era do Novo Cinema Alemão, quando o cinema autoral estava sendo substituído pelo cinema de produção. O diretor escalou três atores diferentes para o papel de Hayden – Rüdiger Vogler [uma presença constante nos primeiros longas de Wim Wenders] para as cenas com monólogos e momentos de reflexão; Burkhard Driest, uma figura controversa na época [que passou três anos na cadeia quando jovem por roubar um banco], para as passagens com diálogos; e o membro professo do Partido Comunista alemão e compositor Hannes Wader (para fazer narrativas e leituras diretas do livro Wanderer). Colocar Wader diante da câmera em uma época em que comunistas estavam banidos do trabalho profissional na Alemanha Ocidental era uma declaração política.
Bühler não estava interessado em tornar a vida de Hayden um melodrama. Assistir,
mesmo atualmente, à encenação literal do testemunho de Hayden na HUAC é opressivo. Der Havarist é um filme político – até mais hoje em dia do que na época em que foi feito. “A história de Hayden é uma oportunidade para nós todos nos questionarmos”, disse Bühler.
Sterling Hayden parecia estar sonambulando por seus filmes, até mais frio e distante do que seu contemporâneo Robert Mitchum. Os olhos de Hayden, muito pequenos para um homem de seu tamanho, muitas vezes pareciam olhar para alguma distância inatingível. Ele foi marcado por um profundo desenraizamento, em estranho contraste com sua força e presença física. No filme de Nicholas Ray, o personagem de John Carradine (Tom) diz a Johnny Guitar: “É muito homem que você está carregando nestas botas, estranho.” Hayden é muito homem e, ainda assim, é um homem profundamente vulnerável.
8. Hayden até pediu depois para a equipe de filmagem voltar a filmá-lo de novo na Califórnia, em condições mais sóbrias. Porém, Blank e Bühler recusaram.
Anora
Sean Baker | EUA | 2024, 139’, DCP (Universal Pictures do Brasil)
Anora, uma jovem profissional do sexo no bairro do Brooklyn, conquista sua grande chance de mudar de vida ao conhecer e se casar impulsivamente com o filho de um oligarca russo, Ivan. Assim que a notícia chega à Rússia, seu conto de fadas é ameaçado – os pais de Ivan partem para Nova York decididos a anular o casamento.
Mais uma vez, o diretor Sean Baker centra seu filme em personalidades que atuam no ramo do trabalho sexual ou erótico e, de certo modo, vivem à margem do sonho americano, como em Tangerine, Projeto Flórida e Red Rocket. Este último não teve distribuição nos cinemas brasileiros e será exibido no Cinema do IMS em programa duplo com Anora
Em entrevista ao portal The Verge, Baker comenta: “Meus filmes geralmente são apenas reações ao que não estou vendo o suficiente no cinema e na TV ou ao que quero ver mais. Não sou o primeiro a ter uma abordagem empática em relação ao trabalho sexual – definitivamente, não sou o primeiro –, mas não vejo muito disso, e são poucas obras e distantes entre si. Muitas vezes, quando vejo profissionais do sexo retratados, eles geralmente são personagens coadjuvantes ou caricaturas, e isso tem se tornado cada vez mais consciente. Tornou-se uma decisão consciente minha, a cada filme, contar uma história universal com um personagem tridimensional totalmente desenvolvido, que é uma profissional do sexo, para simplesmente... eu não diria normalizar, mas é isso, eu acho. Minha tática subversiva aqui é realmente fazer com que o público pense no trabalho sexual de uma forma diferente, para ajudar aqueles que o veem com esse olhar de estigma, para acabar com isso.”
Anora foi o vencedor da Palma de Ouro, prêmio principal do Festival de Cannes, em 2024. [Íntegra da entrevista, em inglês: bit.ly/anorasb]
Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).
Baby
Marcelo Caetano | Brasil, França | 2024, 107’, DCP (Vitrine Filmes)
Após ser liberado de um centro de detenção juvenil, Wellington se vê sozinho e perdido nas ruas de São Paulo, sem contato com seus pais e sem recursos para reconstruir sua vida. Durante uma visita a um cinema pornô, ele encontra Ronaldo, um homem mais velho, que lhe ensina novas formas de sobrevivência. Gradualmente, o relacionamento entre eles se transforma em uma paixão conflituosa, oscilando entre exploração e proteção, ciúmes e cumplicidade.
“Estamos falando do centro de São Paulo, do coração da cidade, da pulsação”, diz Marcelo Caetano em entrevista ao portal Metrópoles. “A gente tem a tendência de pensar o centro como margem, porque as pessoas ali são pobres. Muitos
textos críticos franceses falam de marginal, mas os personagens não estão à margem de. Será que não é o nosso olhar que os invisibiliza? Será que somos nós que não sabemos olhar? A tentativa desse filme é olhar para aquela multidão do centro e dar um zoom na vida de dois indivíduos e contar a história deles.”
Ao estrear na mostra competitiva da 63ª Semana da Crítica de Cannes em 2023, Baby recebeu o prêmio de Melhor Ator Revelação para Ricardo Teodoro, que interpreta Ronaldo. Na sequência, em sua estreia brasileira, foi um dos grandes vencedores do Festival do Rio, conquistando os prêmios de Melhor Longa de Ficção – junto a Malu, de Pedro Freire –, Melhor Ator, para João Pedro Mariano, que interpreta Wellington, Melhor Direção de Arte, para Thales Junqueira, e o Prêmio Especial do Júri.
[Íntegra da entrevista: bit.ly/babymc]
Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).
Kasa Branca
Luciano Vidigal | Brasil | 2024, 95’, DCP (Vitrine Filmes)
Dé é um adolescente negro da periferia da Chatuba, no Rio de Janeiro, que recebe a notícia de que a avó, Almerinda, está na fase terminal da doença de Alzheimer. Ele tem a ajuda de seus dois melhores amigos, Adrianim e Martins, para enfrentar o mundo e aproveitar os últimos dias de vida com ela.
“Eu sou nascido e criado numa favela no Brasil. E a favela é muito inspiradora”, declara Vidigal em entrevista à Fred Film Radio, em 2024, por ocasião da exibição do filme no Festival de Torino, na Itália.
“Tem muitas histórias potentes e singulares que eu, como cineasta, quero mostrar pro mundo. E esse filme nasceu a partir de uma observação minha de um jovem amigo do meu irmão que convivia com a avó que estava em eminência de morte por causa da doença de Alzheimer. E eu percebi que a relação deles ficou muito bonita através do afeto. E eu entendo e acredito que o afeto num lugar chamado favela e numa pele preta pode ser revolucionário. Essa história me tocou, e eu escrevo sobre o que me toca.”
No Festival do Rio, em 2024, Kasa Branca recebeu os prêmios de Melhor Direção em Ficção, Melhor Fotografia, Melhor Ator Coadjuvante, para Diego Francisco, e Melhor Trilha Sonora Original. [Íntegra da entrevista: bit.ly/kasabrancalv]
Ingressos: R$ 15 (inteira) e R$ 7,50 (meia).
Malu
Pedro Freire | Brasil | 2024, 103’, DCP (Filmes do Estação)
Malu é uma mulher com um passado glorioso na atuação, mas cuja carreira chegou ao ostracismo. Em um casarão em construção, afastado dos centros urbanos, vive com sua mãe conservadora e seu amigo Tibira. Eventualmente recebe visitas da filha. A complexa relação entre as três mulheres oscila entre momentos de carinho e ternura e rompantes de ressentimento e agressividade. No terraço de sua casa, Malu quer construir um teatro. Livremente inspirado na vida da atriz paulista Malu Rocha, mãe do diretor Pedro Freire, Malu faz um agudo e nuançado retrato de relações familiares e de uma atriz afastada da profissão. O diretor conta ao Jornal do Brasil: “Eu queria que meu primeiro longa fosse um filme inevitável para mim [...]. Então, ali por 2017, aos 36 anos, eu decidi que tinha chegado a hora de tomar uma decisão: que primeiro longa seria esse? Então me
conectei com as coisas mais importantes para mim, busquei o que seria tão profundo que só eu poderia fazer, e me encontrei com a pessoa mais importante e transformadora da minha vida, minha mãe, Malu Rocha. Digo com nome e sobrenome, porque ela foi além de uma mãe, ela era mãe e ao mesmo tempo tinha uma persona, ‘a atriz Malu Rocha’, que ela levava para dentro de casa o tempo todo. E aquela personagem dentro da minha casa não era simples, porque ao mesmo tempo era difícil a distância – imagina que a sua mãe está sempre atuando – e também era fascinante, porque era uma personagem maravilhosa, inteligentíssima, humana, corajosa, culta. Enfim decidi que tinha que contar a história dela e entendi que a parte de sua história que mais me marcou foi o momento em que ela ficou mais isolada do mundo, dos amigos, morando com a mãe numa casa semiconstruída numa favela do Rio de Janeiro, sempre dizendo que queria voltar para São Paulo”.
O longa conta com as interpretações de Yara de Novaes, Carol Duarte, Juliana Carneiro da Cunha e Átila Bee. Depois de passar pelo Festival de Sundance, em janeiro de 2024, Malu fez sua estreia brasileira no Festival do Rio, no qual recebeu os prêmios de Melhor Longa de Ficção –junto a Baby, de Marcelo Caetano –, Roteiro, Atriz (para Novaes) e Atriz Coadjuvante (dividido entre Carneiro e Duarte).
Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).
O brutalista
The Brutalist Brady Cobert | EUA, Reino Unido, Hungria | 2024, 215’, DCP (Universal Pictures do Brasil)
Em fuga da Europa do pós-Segunda Guerra, o arquiteto visionário László Tóth chega à América para reconstruir sua vida, seu trabalho e o casamento com sua esposa Erzsébet, depois da separação forçada durante a guerra por mudanças de fronteiras e regimes. Sozinho em um novo país estranho, László se estabelece na Pensilvânia, onde o rico e proeminente industrial Harrison Lee Van Buren reconhece seu talento para a construção. Mas poder e legado têm um custo muito alto.
Escrito por Brady Corbet junto a sua parceira criativa e esposa Mona Fastvold, O brutalista levou sete anos para ser desenvolvido, financiado e produzido de forma independente pela dupla. O filme foi vencedor do Leão de Prata no Festival de Veneza de 2024 e das categorias Melhor Filme de Drama, Melhor Ator em Drama, para Adrien Brody, e Melhor Direção no Globo de Ouro deste ano. Filmado em Vistavision 70 mm, as mais de três horas de filme resultam em centenas de quilos de película 70 mm, dividida em 26 rolos, o que Corbet define como “por si só um objeto brutalista”. Em entrevista ao portal The Hollywood Reporter, Corbet fala sobre suas motivações e os desafios em filmar arquitetura:
“O filme trata de como a experiência artística e a experiência do imigrante caminham em sintonia, ou seja, em geral, se alguém se muda para uma cidade suburbana nos Estados Unidos e não se parece com todo mundo – por causa da cor da pele ou por causa de suas crenças ou tradições –todo mundo quer que essa pessoa vá embora. Com o brutalismo na década de 1950, quando as pessoas estavam erguendo esses monumentos,
muitas pessoas queriam que eles fossem demolidos imediatamente. Agora, há uma coisa muito interessante que vem acontecendo, e não sei se as pessoas estão acompanhando. Tenho pesquisado essa área na última década, portanto, tenho prestado muita atenção. Donald Trump tem a missão de demolir todos os prédios burocráticos brutalistas de Washington – e acho que ele continuará a fazer isso se for eleito para um segundo mandato [entrevista concedida em 9 de setembro de 2024, antes das eleições]. Enquanto era o presidente em exercício, ele criou uma turnê que era uma celebração de toda a arquitetura neoclássica em Washington D.C. Ele regularmente fazia uma tagarelice sobre como queria que todos “os prédios feios, horríveis e modernos” fossem demolidos [referência ao projeto Make Federal Buildings Beautiful Again, de Donald Trump, a favor da implementação de arquitetura neoclássica].”
“[...] Portanto, para mim, a arquitetura brutalista é representativa de algo que as pessoas não entendem e que querem que seja demolido e arrancado. E acho que isso é realmente fascinante. Todo esse movimento surgiu da Bauhaus – Marcel Breuer, Paul Rudolph ou Louis Kahn, embora os edifícios de Louis sejam de um estilo muito diferente –, o trabalho deles estava lutando contra o que o mundo inteiro havia passado na primeira metade do século. Portanto, o filme trata de como a psicologia do pós-guerra moldou a arquitetura do pós-guerra. Até mesmo muitos dos materiais usados para construir esses edifícios –muitos deles foram desenvolvidos para o período de guerra. Esses edifícios não existiriam se não fosse o trauma pelo qual grande parte do mundo passou.”
“Acho que aprendi muito cedo que não podíamos filmar a arquitetura. Tínhamos que representar a arquitetura. Fizemos isso com a trilha sonora. Fizemos isso com o formato do filme. Com o VistaVision, o campo de visão é tal que você pode ficar bem na esquina de um prédio de seis andares e, com uma lente normal de 50 milímetros – que é a lente com a qual normalmente se filma um rosto humano –, é possível ver do topo do prédio até a base. Então, tivemos a ideia de que, para o brutalismo, nunca deveria haver nada ornamental na trilha sonora. Ela deveria ser tanto minimalista quanto maximalista. Mas também tinha que representar o movimento de alguma forma. E foi criada predominantemente com instrumentação do período. Estávamos falando sobre todas as coisas normais de que se fala quando se pensa em Nova York e Filadélfia na década de 1950 – muito jazz, o movimento Beat, o Nordeste etc. De alguma forma, esperávamos que o efeito cumulativo de todas essas decisões resultasse em algo que parecesse um filme brutalista. Acho que em todo o filme, como você disse, provavelmente são mostrados apenas quatro minutos de concreto.”
Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).
O intruso
The Visitor
Bruce LaBruce | Reino Unido | 2024, 101’, DCP (Imovision), pré-estreia
Londres, hoje. Um refugiado aparece nu dentro de uma mala na margem do rio Tâmisa. O enigmático visitante se apresenta a uma família burguesa de classe alta, onde é convidado a morar como funcionário. Ele passa a seduzir cada membro da família em uma série de encontros sexuais explícitos, virando o mundo deles de cabeça para baixo, permitindo que se redefinam de maneiras radicais.
Cineasta e escritor com uma obra de prolífica investigação em torno das imagens do erotismo, do sexo explícito e da pornografia, Bruce LaBruce terá sessões de pré-estreia de seu mais recente filme no Cinema do IMS Paulista.
“Sabe, esse filme é uma espécie de peça complementar ao [meu longa] L.A. Zombie [2010]”, conta o diretor em entrevista ao portal Loud and Clear, “que também é um filme maluco sobre um zumbi alienígena que chega a Los Angeles. Ele encontra pessoas mortas pela cidade e as faz voltar à vida, então elas são ressuscitadas. Há uma espécie de figura de Cristo em ambos os filmes. Em L.A. Zombie, tinha essa ideia imposta na era pós-aids. Eu senti que os gays – e o sexo gay – eram patologizados, de certa forma, por causa da aids e do sangue ‘contaminado’, ou sangue com HIV. Os gays se tornaram párias, então foi uma forma de reverter isso, e fazer esses personagens – os alienígenas, ou visitantes –que realmente dão vida com sexo em vez de criar a morte. De certa forma, é uma reversão dessa patologia.”
“No começo de O intruso, eu também tenho todo aquele texto que você ouve na narração [na primeira cena do filme], que é tirado de discursos reais de políticos e pensadores da direita. É muito racista, e eles meio que sexualizam os refugiados de uma forma estranha [...]. Então eu estava tentando reverter essa paranoia e também jogar com ela, tornando-o uma figura sexualmente potente, que é o que as pessoas projetam nele. Mas ele também é uma figura semelhante a Cristo, em certo sentido.”
“Eu fiz um projeto de teatro em Berlim em 2008 [Cheap Blacky], onde fiz referência a Pasolini: havia uma mala puxada para fora do palco, e um dos personagens emergiu dela, então eu meio que revisitei essa ideia. [...] Então foi uma maneira de representar essa desorientação e alienação que as pessoas sentem quando chegam a uma terra estranha, e é um filme de Pasolini, então é claro que coloquei muito conteúdo religioso. É isso que torna Pasolini tão fascinante: ele era um católico gay, marxista e ateu – ele incorpora todas essas contradições. [...] Pasolini, para mim, é um dos grandes mestres cineastas queer, junto com Fassbinder. [...] Eu estava tentando ser o mais reverente e fiel a Pasolini que eu pudesse, mas também ser um pouco travesso e brincar com o material, e fazer um pouco de sátira sobre isso também.”
O intruso estreou na seleção oficial do Festival de Berlim, em 2024.
[Íntegra da entrevista, em inglês: bit.ly/ointrusoblb]
Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).
Parque de diversões
Ricardo Alves Jr. | Brasil | 2024, 71’, DCP (Cajuína Audiovisual)
Figuras anônimas percorrem as ruas em busca de encontros, até que uma delas rompe o portão gradeado do parque da cidade e começa a explorar suas vias. Esse território proibido é, então, semeado pelo imperativo do desejo.
Um filme em torno do universo do cruising, ou pegação, Parque de diversões, de Ricardo Alves Jr., foi filmado ao longo de sete noites, sem captação de recursos públicos, logo na sequência de seu filme anterior, o longa Tudo o que você podia ser. O filme teve sua estreia mundial na competição internacional do FID Marseille, da França, em junho de 2024. Em entrevista a Elcio Ramalho para o podcast RFI Convida, o diretor conta:
“Normalmente o cruising se pratica em espaços públicos, onde esses desconhecidos se encontram e praticam a sua liberdade sexual, né? Esse filme de alguma maneira remonta também um pouco à história do Parque Municipal da cidade de Belo Horizonte, de onde venho. [...] É um parque bem no coração da cidade, onde um fluxo de pedestres e de passantes existia quase como uma conexão de pontos da cidade. E, na década de 1950, 1960, esse parque era um ponto de encontro dos homossexuais, principalmente no horário noturno. Sabe esses encontros, digamos, proibidos? Ali, numa sociedade muito conservadora, como é a sociedade mineira. E, na década de 1970, esse parque foi fechado. Foram colocadas grades, posso dizer que no sentido de ‘moralizar’ essas práticas ou esses encontros. E o filme um pouco remonta, não historicamente, mas em termos de poética, uma ideia desses encontros. [...] Ele remonta um pouco a uma ideia de que essa liberdade de fluidez entre esses corpos existia nesse lugar. [...] Eu penso que o trabalho de encenação desse filme, ele remonta muito proximamente à ideia de uma coreografia pornográfica.”
[Íntegra da entrevista: bit.ly/parquedediversoesrajr]
Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).
Sol de inverno
Boku No Ohisama Hiroshi Okuyama | Japão, França | 2024, 90’, DCP (Michiko Filmes)
Em uma pequena ilha japonesa, a vida gira em torno das mudanças das estações. O inverno é época de hóquei no gelo na escola, mas Takuya não demonstra muita animação com isso.
O verdadeiro interesse do garoto está em Sakura, uma estrela em ascensão da patinação artística de Tóquio, por quem ele desenvolve um fascínio genuíno. Arakawa, treinador e ex-campeão da modalidade, vê potencial em Takuya e decide orientá-lo para formar uma dupla com Sakura para uma competição que acontecerá em breve.
Em 2024, Sol de inverno integrou a seleção dos festivais de Cannes, Toronto e San Sebastián.
Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).
Sessão
O forasteiro Sterling Hayden
Johnny Guitar e Farol do caos
O ator norte-americano Sterling Hayden (1916-1986) é conhecido hoje por suas colaborações com cineastas como Robert Altman, John Huston e Stanley Kubrick. Em 1951, a estrela hollywoodiana, herói de guerra e velejador foi intimado a depor publicamente no Comitê de Atividades Antiamericanas (HUAC), em um período marcado por perseguições políticas contra membros da esquerda norte-americana, inclusive diversos diretores, atores, roteiristas e técnicos que foram banidos dos estúdios de Hollywood. A Sessão Mutual Films de fevereiro de 2025 traz dois filmes que fazem referência a esse período através da figura de Hayden, que havia se associado ao Partido Comunista americano por alguns meses após ter lutado junto aos Partidários iugoslavos durante a Segunda Guerra Mundial, e decidiu denunciar seus colegas de cinema ao comitê para não perder a guarda de seus filhos. O atípico e icônico faroeste Johnny Guitar (1954), dirigido por Nicholas Ray (1911-1979), que traz Hayden no papel de um cowboy em busca de uma nova vida, passará no IMS Paulista em uma cópia recém-restaurada em 4K. O retrato documental de Hayden Farol do caos (Leuchtturm des Chaos, 1983), dos críticos e cineastas alemães Wolf-Eckart Bühler (1945-2020) e Manfred Blank (nascido em 1949), retrata o ator no final de sua vida, morando em uma barcaça na França e amargurando o tormento dos seus atos passados. A exibição de Johnny Guitar no dia 18 será apresentada pelo crítico e curador Paulo Santos Lima, um especialista em estudos autorais de atores hollywoodianos.
Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia).
Johnny Guitar
Nicholas Ray | EUA | 1954, 110’, DCP, restauração 4K (Park Circus)
O personagem-título do nono longa-metragem de Nicholas Ray foi interpretado por Sterling Hayden no auge da fama do ator. O cowboy que uma vez foi conhecido como Johnny Logan trocou sua arma por uma guitarra e, no início do filme, chega aos confins do Arizona em busca de uma nova vida. Lá, ele se depara com uma figura do seu passado. No único bar e cassino da cidade, à espera da modernização com a promessa da construção da ferrovia, a proprietária Vienna (Joan Crawford, também uma produtora do filme) cuida do que é dela com os colhões de um homem, rodeada de ameaças de uma população local de criadores de gado que via o progresso como uma intimidação a seu estilo de vida puritano. O grupo –liderado de forma vocífera pela banqueira Emma Small (Mercedes McCambridge) – tenta banir Vienna da cidade, ao acusá-la de ficar na companhia do bandido Dancing Kid (Scott Brady), que havia sido acusado falsamente de
assassinato. No meio das intrigas que surgem, Vienna alista a ajuda de Johnny – o amor de sua vida, que ela abandonou cinco anos atrás e que agora reencontra com amargura e esperança. O cineasta norte-americano Ray fez o faroeste Johnny Guitar após realizar os emblemáticos filmes noir Amarga esperança (They Live By Night, 1948), No silêncio da noite (In a Lonely Place, 1950) e Cinzas que queimam (On Dangerous Ground, 1951). Como em muitos dos seus filmes –inclusive no faroeste contemporâneo Paixão de bravo (The Lusty Men, 1952) –, os protagonistas são pessoas feridas e marginalizadas, que buscam refúgio de uma sociedade ameaçadora. E, neste caso, a busca teve dimensões políticas, pois Ray e seus roteiristas Philip Yordan e Ben Maddow vislumbraram a história como uma alegoria para as perseguições anticomunistas então em voga nos Estados Unidos. (Maddow, inclusive, estava na Lista Negra de Hollywood e não recebeu crédito pela sua participação no roteiro do filme.)
Em Johnny Guitar, as forças da lei e do capitalismo são as mais destrutivas, capazes de incitar violência em massa. Enquanto isso, Vienna e Johnny são pessoas que cometem o pecado de valorizar amor e amizade. Crawford (a quem o romance de Roy Chanslor que deu origem ao filme foi dedicado), clássica estrela de Hollywood, preferiu não assumir posições políticas publicamente, apesar de sua formação conservadora. Ela exigiu que Vienna tivesse a força dos protagonistas masculinos dos faroestes e disse para o roteirista Yordan: “Deixe Sterling brincar sozinho no canto”.1 Por sua parte, Hayden, um ex-membro do Partido Comunista, publicamente denunciou colegas de Hollywood
como comunistas, mas depois continuou a se associar com artistas e causas de esquerda, muitas vezes de forma autocrítica. “Eu não entendo Johnny Guitar”, ele disse em 1982 para os documentaristas alemães mais jovens Manfred Blank e Wolf-Eckart Bühler. “Eu nunca soube o que eu estava fazendo no filme”.2
A crítica norte-americana também não entendeu Johnny Guitar, achando o estilo demasiado florido e a narrativa incompreensível. Porém, o filme foi um sucesso de bilheteria, algo que ajudou Ray posteriormente a fazer Juventude transviada (Rebel without a Cause, 1955) e outros filmes de maior estrutura. Johnny Guitar, realizado no pequeno estúdio Republic Pictures, foi o segundo filme colorido de Ray, e também sua primeira experiência com a janela widescreen, embora o filme tenha circulado durante anos na janela Academy.
A restauração em 4K de Johnny Guitar, que terá sua estreia brasileira no IMS Paulista, apresenta a versão widescreen do filme. A primeira exibição será apresentada pelo crítico, jornalista e historiador de cinema Paulo Santos Lima.
Farol do caos
Leuchtturm des Chaos
Wolf-Eckart Bühler e Manfred Blank | Alemanha Ocidental | 1983, 119’, DCP, cópia restaurada (Museu de Cinema de Munique)
um livro sobre a sensação de descobrir os veleiros aos 12 anos e perceber a existência de um outro mundo.
1. Citado em inglês no texto de Jonathan Rosenbaum “Johnny Guitar: The First Existential Western”: bit.ly/ johnnyguitarims.
2. A fala de Hayden se encontra no documentário de média-metragem de Blank e Bühler Da âncora, pouse abaixo: um filme estrelado por Sterling Hayden (Vor Anker, Land unter: Ein Film mit Sterling Hayden, 1982), que aparece como um extra na edição em DVD de Farol do caos que foi lançada pela Edition Filmmuseum em 2018.
Em sua fortaleza marítima, uma barcaça chamada Farol da Islândia estacionada perto da cidade francesa de Besançon, o ator semiaposentado representa seu último papel como protagonista. Embriagado, meio louco, ele conta suas histórias, suas ideias, conversa com uma equipe de filmagem que, salvo por alguns momentos, não se retrata para a câmera. O homem vive com os fantasmas de seu passado, incapaz de se perdoar por seus atos. “Meu mundo era o mar,” ele diz, “e o mar é penoso.” Os gestos repetitivos das mãos e da voz delatam a loucura, fruto do isolamento e da solidão. Os grandes escritores do mar, como Herman Melville e Robert Louis Stevenson, o acompanham, e passagens de livros são lidas como uma forma de passar o tempo. “Trata-se de um segundo nascimento.” Assim ele descreve o momento atual da sua vida, no qual tenta escrever
Com 65 anos, este ator norte-americano é Sterling Hayden, o emblemático navegador e herói de guerra que ajudou os comunistas iugoslavos durante a Segunda Guerra Mundial, e que, em 1951, denunciou seus colegas de Hollywood como comunistas para o Comitê de Atividades Antiamericanas (HUAC). Segundo a narração do documentário-retrato Farol do caos, os cinéfilos sempre identificaram Hayden com seu papel do ex-pistoleiro romântico em Johnny Guitar, o filme de Nicholas Ray que faz referência explícita àquele período de caça às bruxas e metamorfoseia a realidade em um faroeste. Mas, no momento das filmagens do documentário, quase 30 anos depois, Hayden se parece mais com o personagem do escritor alcoólatra no filme O perigoso adeus (The Long Goodbye, 1973), de Robert Altman: descalço, barbudo, solitário e angustiado, entrando e saindo de um estado de chocante lucidez.
Farol do caos intercala imagens de arquivo e uma narração simples e direta sobre Hayden com as reflexões do ator. Os codiretores do filme, Wolf-Eckart Bühler e Manfred Blank, foram críticos de cinema para a importante revista alemã Filmkritik e colaboraram em uma série de documentários sobre artistas que entraram na Lista Negra da indústria cinematográfica norteamericana sob suspeita de serem comunistas. Eles estavam trabalhando em uma adaptação para o cinema do livro autobiográfico de Hayden, Wanderer [Viajante], de 1963, que aborda o período dos depoimentos do comitê até seu
abandono de Hollywood no final da década de 1950, retornando ao mar. Ao encontrar com Hayden para pedir sua autorização para a adaptação cinematográfica (que virou o filme Der Havarist, de Bühler, em 1984), eles se deram conta de que havia um outro filme a ser feito naquele momento.
Farol do caos serve, então, como um registro intenso da semana do encontro. Hayden faleceu de câncer de próstata três anos após o lançamento do filme no Festival Internacional de Cinema de Berlim. Blank teve uma longa carreira subsequente como crítico e cineasta, inclusive em colaboração com artistas como Harun Farocki, Merlyn Solakhan e Straub-Huillet. E Bühler, além de Der Havarist, fez dois filmes potentes sobre o legado da Guerra do Vietnã (Amerasia, de 1985, e Viet Nam!, de 1994) e se dedicou ao gênero de literatura de viagem.
Farol do caos foi restaurado pelo Museu de Cinema de Munique em 2017 a partir dos seus negativos originais em 16 mm. Bühler e Blank fizeram duas versões do filme – uma com narração em inglês e a outra com narração em alemão. Pelo que se sabe, as exibições no IMS Paulista da versão em inglês marcam a estreia brasileira do filme.
Red Rocket
Sean Baker | EUA | 2021, 131’, DCP (Park Circus)
Por ocasião da estreia de Anora, o Cinema do IMS apresenta Red Rocket, um dos mais recentes filmes de Sean Baker, que não teve distribuição nos cinemas brasileiros. No filme, Mikey Saber é um astro pornô que retorna à sua pequena cidade natal no Texas. Mas não é como se alguém realmente o quisesse de volta.
“Conheci um punhado de homens como Mikey em Los Angeles nos últimos 10 anos, porque faço pesquisas para meus filmes e estava pesquisando sobre outro filme [Starlet, 2012] no mundo dos filmes adultos”, conta Baker em entrevista à Filmmaker Magazine. “O que percebi é que esse é essencialmente um arquétipo – você sabe, ‘suitcase pimp’, que é uma gíria real no mundo
dos filmes adultos [o termo pelo qual Mikey é chamado ironicamente se refere ao companheiro desempregado de uma atriz pornô que agencia sua vida pessoal e profissional]. Todos eles tinham algumas características semelhantes. Acho que é porque eles precisam delas para sobreviver nesse mundo: precisam atuar o tempo todo, precisam ser atraentes na superfície, precisam ser engraçados na superfície. Achei esses homens fascinantes, porque, sinceramente, fiquei perturbado com eles, mas também queria saber mais sobre eles. Há anos, eu sabia que acabaria fazendo um filme sobre um desses homens.”
“Entendo que ele é diferente de meus outros filmes. Entendo perfeitamente. Ainda assim, tentei mantê-lo fundamentado e humano, e acho que isso também contribui, talvez, para as reações conflitantes das pessoas em relação a ele. Como eu: estou confuso com esse cara. Então, era isso que eu estava tentando transmitir ao público, colocá-lo na mesma posição em que eu estava, mesmo que seja difícil de assistir.”
[Íntegra da entrevista, em inglês: bit.ly/redrocketsb]
Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia).
Amantes
Love Streams
John Cassavetes | EUA | 1984, 140’, DCP (Park Circus)
Robert (John Cassavetes) e Sarah (Gena Rowlands) são dois irmãos emocionalmente instáveis. Robert é um escritor decadente, afundado no álcool, cigarros e relacionamentos curtos, sendo irresponsável até em cuidar do seu filho. Por sua vez, Sarah é divorciada do marido e sofre porque a filha prefere ficar com o pai do que com ela. Com todos esses problemas, os dois acabam se reencontrando após anos sem se ver. Amantes é um dos últimos trabalhos de Cassavetes como diretor e como ator. O filme
originalmente seria estrelado por Jon Voight, que desistiu da produção dois dias antes do início das filmagens – segundo depoimento do diretor de fotografia Al Ruban. Diante do impasse e da falta de tempo em escalar outra pessoa, Cassavetes assumiu o papel de Robert.
Em entrevista de 2001 para a publicação LA Weekly, a atriz Gena Rowlands é questionada se aquele papel não seria o mais próximo possível da personalidade de Cassavetes, ao que ela responde: “Ele não planejava interpretar de jeito nenhum. Não, aquele personagem não era como o John que eu conhecia, um cara esgotado, desconectado de tudo o que importa. Mas aquela cena em que John acena para fora da janela com aquele chapéu estranho, é de morrer. Michael [Ventura] foi o primeiro a apontar isso, porque eu não conseguia nem olhar para isso de novo, e ele disse: ‘Sabe, Gena, quando John acena para fora da janela?’. Eu disse: ‘Sim’. Ele disse: ‘Acho que ele estava se despedindo de nós’. E eu disse: ‘Ai, merda’.”
Na mesma entrevista, Rowlands relata um desafio específico na cena em que sua personagem deveria tirar uma risada do marido e da filha: “Tudo o que John escreveu foi que ela chama o marido e tenta fazer ele e a filha rirem. E eu disse: ‘John, como eu vou fazê-los rir?’ E ele disse: ‘Eu não quero te contar. Nem pense nisso.’ Então chegou o dia, e nós estávamos lá, e eu disse: ‘John, se você não me contar o que vamos fazer, eu vou te matar.’ E ele disse: ‘Só vem’. Então ele me levou até uma grande mesa de piquenique
cheia de todas essas coisas que você encontra em lojas de fantasias, como dentes que batem e olhos saindo dos óculos e outras coisas. Ele disse: ‘Pronto. Use isso para fazê-los rir.’ Eu disse: ‘Espere, espere, espere! Quantos devo usar?’ Ele disse: ‘Todos eles. Certo? Certo? Enrole-os.’ Então eu simplesmente fui como doida em volta daquela mesa tentando fazê-los rir e fazendo tudo o que eu podia e, claro, ele tinha dito para eles não rirem, o que era o ponto principal da cena. Eu nunca fiquei tão apavorada na minha vida. Mas foi divertido.”
Exibido no 34º Festival de Cinema de Berlim, onde levou o Urso de Ouro, prêmio principal do evento.
[Depoimentos extraídos e traduzidos de: bit.ly/amantesgr]
Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia).
Garotos de programa
My Own Private Idaho
Gus Van Sant | EUA | 1991, 104’, DCP (Park Circus), restauração 2K
Por ocasião da estreia de Baby, de Marcelo Caetano, o Cinema do IMS exibe o clássico de Gus Van Sant, em um programa duplo.
Dois jovens vivem nas ruas de Portland aplicando pequenos golpes, em meio a drogas e prostituição. Scott, filho rebelde do prefeito, só quer envergonhar sua família. Mike sofre de narcolepsia e é apaixonado por Scott. Eles decidem viajar para a Itália em busca da mãe perdida de Mike.
Um marco no assim chamado New Queer Cinema, Garotos de programa é livremente inspirado em Henrique IV, de William Shakespeare, e conta com interpretações de Keanu Reeves e River Phoenix.
Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia).
Instituto Moreira Salles
Cinema
Curador
Kleber Mendonça Filho
Programadora
Marcia Vaz
Programador adjunto
Thiago Gallego
Produtora de programação
Quesia do Carmo
Assistente de programação
Lucas Gonçalves de Souza
Projeção
Ana Clara da Costa, Adriano Brito e Pedro Rehem
Serviço de legendagem eletrônica
Pilha Tradução
Revista de Cinema IMS
Produção de textos e edição
Thiago Gallego e Marcia Vaz
Diagramação
Marcela Souza e Taiane Brito
Revisão
Flávio Cintra do Amaral
Os filmes de fevereiro
A programação do mês tem apoio das distribuidoras Cajuína Audiovisual, Filmes do Estação, Imovision, Universal Pictures do Brasil, Vitrine Filmes e do projeto Sessão Vitrine Petrobras. Agradecemos a Aaron Cutler, Alf Mayer, Ashley Clark/The Criterion Collection, Carina Bueno, Chiara Marañon + Daniel Kasman/Mubi, Christophe Lecarpentier, Dani Patarra, Hannes Brühwiler, Hella Kothmann, Jonny Costantino, Jurij Meden/Österreichisches Filmmuseum, Lorenna Montenegro, Manfred Blank, Marcelo Caetano, Mariana Shellard, Matt Smith, Olaf Möller, Patrick Holzapfel/Jugend ohne Film, Paulo Santos Lima, Sandra Escribano Orpez, Sara García Villanueva/ Festival Internacional de Cinema Play-Doc, Stephanie Hausmann/Filmmuseum München, Thom Andersen.
Venda de ingressos
Ingressos à venda pelo site ingresso.com e na bilheteria do centro cultural, a partir das 12h, para sessões do mesmo dia. No ingresso.com, a venda é mensal, e os ingressos são liberados no primeiro dia do mês. Ingressos e senhas sujeitos à lotação da sala.
Capacidade da sala: 145 lugares.
Meia-entrada
Com apresentação de documentos comprobatórios para professores da rede pública, estudantes, crianças de 3 a 12 anos, pessoas com deficiência, portadores de Identidade Jovem, maiores de 60 anos e titulares do cartão Itaú (crédito ou débito).
Devolução de ingressos
Em casos de cancelamento de sessões por problemas técnicos e por falta de energia elétrica, os ingressos serão devolvidos. A devolução de entradas adquiridas pelo ingresso.com será feita pelo site Programa sujeito a alterações. Eventuais mudanças serão informadas no site ims.com.br e no Instagram @imoreirasalles. Não é permitido o acesso com mochilas ou bolsas grandes, guarda-chuvas, bebidas ou alimentos. Use nosso guarda-volumes gratuito. Confira as classificações indicativas no site do IMS.
Amantes (Love Streams), de John Cassavetes
(EUA | 1984, 140’, DCP)
Terça a quinta, domingos e feriados sessões de cinema até as 20h; sextas e sábados, até as 22h.
Visitação, Biblioteca, Balaio IMS Café e Livraria da Travessa
Terça a domingo, inclusive feriados das 10h às 20h. Fechado às segundas. Última admissão: 30 minutos antes do encerramento.
A entrada no IMS Paulista é gratuita.
Avenida Paulista 2424 CEP 01310-300
Bela Vista – São Paulo tel: (11) 2842-9120
imspaulista@ims.com.br ims.com.br
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