CADERNOS DE
LITERATURA B R A S I L E I R A
10 anos INSTITUTO MOREIRA SALLES
ISSN 1413-652X
CADERNOS DE
LITERATURA B R A S I L E I R A
CADERNOS DE
LITERATURA B R A S I L E I R A
Diretor Editorial Editor Executivo Editores Ensaios Fotográficos Edição de Arte Assistentes Editoriais Assistentes de Produção Circulação
Antonio Fernando De Franceschi Bernardo Ajzenberg Manuel da Costa Pinto, Michel Laub Edu Simões ˜ BEI Comunicação Flávio Cintra do Amaral, Helio Ponciano Acássia Correia da Silva, Cecília Harumi O. Niji, Fabiana Amorim, Priscila Oliveira Érica Ferreira
Capa: Marisa Moreira Salles, sobre desenho de Maria Eugênia
Edição especial – 10 anos dos CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA número 22 – Julho de 2007
FOLHA DE ROSTO, 4 ENSAIO, 10 GEOGRAFIAS PESSOAIS João Cabral de Melo Neto, 24 Raduan Nassar, 38 Jorge Amado, 52 Rachel de Queiroz, 66 Lygia Fagundes Telles, 80 Ferreira Gullar, 94 João Ubaldo Ribeiro, 108 Hilda Hilst, 122 Adélia Prado, 136 Ariano Suassuna, 150 Ignácio de Loyola Brandão, 164 Carlos Heitor Cony, 178 Euclides da Cunha, 192 Millôr Fernandes, 206 Erico Verissimo, 220 Clarice Lispector, 234 Márcio Souza, 248 João Guimarães Rosa, 262 DEPOIMENTO, 276 GUIA, 280
F O L H A D E R O S TO
A letra e a imagem ANTOLOGIA DOS CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPLA A DIVERSIDADE E A RIQUEZA DA PAISAGEM POÉTICA E FICCIONAL CONSTITUÍDA AO LONGO DE DEZ ANOS PELA PUBLICAÇÃO DO INSTITUTO MOREIRA SALLES
Reunindo ao longo de uma década um acervo único de entrevistas, ensaios, depoimentos, manuscritos inéditos e registros fotográficos, os CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA tornaram-se referência entre as publicações voltadas para a literatura contemporânea. Em suas 21 edições estiveram presentes nossos mais importantes escritores do século XX, seus intérpretes e interlocutores, inaugurando no Brasil um gênero de abordagem que encontra poucos paralelos mesmo em contextos de maior tradição cultural e editorial. Esta edição comemorativa de dez anos dos CLB é uma antologia que mostra como a amplitude e a permanência da publicação forneceram um instantâneo da diversidade da própria literatura brasileira – cujas vertentes poético-estilísticas amplificam diferentes formas de enraizamento na geografia e nos contextos históricos ou sociais de um país de dimensões superlativas. Ao mesmo tempo, esse número permite recapitular a história de como se definiu a singularidade do periódico, que consolida a atuação do Instituto Moreira Salles no âmbito da literatura. Os CADERNOS foram concebidos como um conjunto monográfico destinado a trazer, a cada número, entrevista com os escritores, textos analíticos, uma cronologia exaustiva e um minucioso levantamento bibliográfico de suas obras e de sua fortuna crítica. Ao longo do processo de elaboração dos dois primeiros números – que seriam dedicados ao poeta João Cabral de Melo Neto e ao romancista Raduan Nassar –, foi incorporada uma nova seção, que deveria conter um ensaio fotográfico. A idéia desse ensaio fotográfico surgiu durante visita a Raduan Nassar, na fazenda Lago do Sino, para uma proto-entrevista ou primeiro ensaio da conversa formal que aconteceria meses mais tarde. Nesse encontro, a imagem do escritor em seu ambiente, as referências em sua obra a uma visualidade indissociável de lugares e cidades – no caso do autor de Lavoura arcaica, sua Pindorama natal –, determinaram a necessidade de ampliar o escopo dos nascentes CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA.
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Quando efetivamente teve início o processo de edição dos primeiros CLB, portanto, a pauta já incluía a seção “Geografia pessoal” – um trabalho de co-autoria envolvendo o fotógrafo Edu Simões e os editores do IMS. Definia-se assim uma linha editorial em que, ao trabalho jornalístico, de pesquisa bibliográfica e interpretação textual sob os diferentes ângulos da crítica literária (poético, lingüístico, filosófico, sociocultural, antropológico etc.), soma-se a grande angular que procura compor um enredo icônico de imagens complementares à letra, reverberando na paisagem contemporânea do Brasil a atmosfera, os tipos humanos, os percursos urbanos e a variedade natural eternizados nas páginas da literatura. Tal estrutura se mantém estável na história dos CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA e corresponde às seções que o leitor encontra a cada edição. Na “Memória seletiva”, está contido, ano a ano, o percurso biográfico do escritor – cronologia à qual se agregam fotografias históricas e imagens de acervos pessoais e familiares. “Confluências” é um conjunto de depoimentos em que intelectuais, artistas e escritores que sempre mantiveram afinidades eletivas com o autor em pauta dão seu testemunho sobre o modo como se relacionam com seus livros e, sobretudo, com o autor por trás da obra. A “Entrevista” dos CLB é um esforço de reportagem que compreende diferentes encontros com o entrevistado e que, à diferença da maior parte das entrevistas feitas pelos órgãos de imprensa em geral, não está restrita às questões formuladas pelos editores. Todas as conversas com os escritores foram conduzidas por Antonio Fernando De Franceschi (diretor editorial dos CADERNOS) e Rinaldo Gama (jornalista e crítico literário que foi editor executivo da publicação até o número sobre Márcio Souza, de dezembro de 2005), mas na pauta das entrevistas são incorporadas questões formuladas por especialistas e estudiosos da obra do escritor – o que torna a seção permeável às diferentes maneiras de abordar uma trajetória literária. E essa trajetória se materializa visualmente no ensaio fotográfico “Geografia pessoal”, de Edu Simões, e também na seção “Manuscritos/Inéditos”, com reproduções fac-similares de originais que simultaneamente representam um retrato do processo criativo do escritor e agregam novas informações e textos ao repertório de suas obras. A parte dos CLB consagrada aos “Ensaios” traz contribuições que visam sintetizar e ampliar a recepção crítica do autor com o melhor do ensaísmo brasileiro e internacional – sendo complementada pelo serviço prestado pelo “Guia”, que fecha a edição com uma lista das diferentes edições e traduções de suas obras e uma fortuna crítica consolidada, incluindo livros, ensaios, teses acadêmicas, entrevistas, resenhas e artigos publicados na imprensa, adaptações teatrais e cinematográficas.
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A única grande mudança introduzida nos CADERNOS ao longo desses dez anos foi a inclusão de números dedicados a autores que já podem ser considerados clássicos da literatura brasileira. Até a edição sobre Carlos Heitor Cony, de 2001, todos os CLB enfocavam escritores presentes e atuantes em nossa cena literária. Em 2002, ano do centenário da publicação de Os sertões, o IMS celebrou Euclides da Cunha com uma edição dupla sobre o escritor – lançada simultaneamente com o primeiro número dos CADERNOS DE FOTOGRAFIA BRASILEIRA, dedicado ao registro histórico e contemporâneo de Canudos (projeto paralelo ao CLB, foram lançados na série dos CFB o número São Paulo: 450 anos, por ocasião do aniversário da cidade, e Georges Leuzinger, sobre o fotógrafo suíço que viveu no Rio de Janeiro). A partir daí, os CLB passaram a alternar edições sobre autores contemporâneos com números sobre clássicos modernos como Erico Verissimo (2003), Clarice Lispector (2004) e Guimarães Rosa (2006). Nestes, a seção “Entrevista” cedeu lugar a uma coletânea de frases em que o escritor fala de seu próprio trabalho, de suas experiências e de sua “filosofia da composição”. A presente edição, por seu caráter de antologia, não segue rigorosamente a estrutura consagrada pelos CADERNOS. Mantêm-se as características do projeto gráfico de Marisa Moreira Salles, responsável pelo design gráfico da publicação, embora a capa traga desenho da artista plástica Maria Eugênia – colaboradora desde o primeiro número – selecionado entre suas diversas vinhetas, concebidas para pontuar as seções e os textos dos CLB com ícones do mundo da literatura (livros, revistas, máquinas de escrever, blocos de notas, canetas etc.). Os capítulos dedicados a cada escritor aparecem na ordem em que os volumes sobre eles foram originalmente publicados e têm estrutura homogênea. Às páginas de abertura, com nome do autor e o mesmo retrato impresso na capa da edição original dos CLB, seguem-se quatro páginas contendo frases dispostas na forma de aforismos: no caso dos escritores que foram entrevistados pelos CLB, tais comentários foram extraídos da “Entrevista”; nos demais, foram tirados das seções “Erico por ele mesmo”, “Clarice por ela mesma” e “Guimarães Rosa por ele mesmo”. A única exceção é Euclides da Cunha, cujo número original não incluía uma seção desse gênero; para uniformizar seu capítulo em relação aos demais, foram selecionados trechos de sua autoria nas cartas reunidas por Walnice Nogueira Galvão e Oswaldo Galotti em Correspondência de Euclides da Cunha (Edusp, 1997). Fechando os capítulos, aparece uma antologia das fotografias de Edu Simões que, na grande maioria, já foram publicadas na “Geografia pessoal”. As únicas imagens que não são de sua autoria são os registros históricos de Verissimo, Lispector e
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Guimarães Rosa, além da escrivaninha em que Euclides da Cunha redigiu parte de Os sertões – imagens que finalizavam as respectivas edições dos CLB e que se repetem aqui. Além disso, o retrato final do capítulo sobre Jorge Amado é um inédito de Edu Simões e foi incluído em substituição à fotografia de Otto Stupakoff, que fechou o volume sobre o escritor baiano. Com isso, manteve-se nessa edição comemorativa uma coerência interna: todos os autores que foram entrevistados pelos CLB aparecem aqui apenas em retratos de Edu Simões. Essas “Geografias pessoais” fazem parte do imenso acervo produzido para os CADERNOS: cerca de 27 mil fotogramas, que serviram de base para o recorte seletivo utilizado nas edições. E esse universo de imagens, por sua vez, compreende diferentes mundos, uma constelação de regiões, cidades e rostos que compõe o caleidoscópio brasileiro. Sem que houvesse o projeto inicial de percorrer todo nosso mapa literário, a pluralidade de vozes e tradições da prosa e da poesia do país se impôs, por assim dizer, naturalmente: vistos em conjunto, os CLB perfazem um amplo afresco que se estende de norte a sul, de leste a oeste, deita raízes em diferentes microcosmos e compreende momentos decisivos da formação de nossa literatura recente. Iluminando essa multiplicidade em proliferação, temos no Nordeste a aspereza pernambucana de João Cabral de Melo Neto, a luz violenta do Maranhão de Ferreira Gullar e o mundo saborosamente arcaico em que se movimentam as personagens do paraibano Ariano Suassuna. O regionalismo, um dos marcos de nossa história literária, pulsa vivo na paisagem agreste da cearense Rachel de Queiroz e no ambiente portuário dos baianos Jorge Amado – que por sua vez ecoa mar de histórias de seu conterrâneo João Ubaldo Ribeiro. A terra devastada que o fluminense Euclides da Cunha encontra em Canudos, na Bahia, é o contraponto para as vastas planícies em que o gaúcho Erico Verissimo ambientou sua epopéia, assinalando a especificidade da história e das terras da região Sul. No extremo oposto, um escritor do Norte, o manauara Márcio Souza, toma o ciclo da borracha e o desbravamento da Amazônia como mote para uma ficção em que as forças da modernização se chocam contra a monumental inércia da floresta tropical e sua população suspensa no tempo. Esses três autores representam diferentes estágios de excelência da narrativa histórica no Brasil e contrastam com o sertão de fronteiras incertas (porque cosmológicas) recriado pelo mineiro Guimarães Rosa, ou com a paisagem ao mesmo tempo doméstica e metafísica de Clarice Lispector, que estabelece um veio subterrâneo entre o Recife de sua infância e o Rio de Janeiro de sua maturidade.
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A antiga capital brasileira, aliás, é um labirinto de veredas urbanas (e litorâneas) que conduzem ao centro histórico, aos subúrbios e aos bairros tradicionais presentes na ficção de Carlos Heitor Cony – mas também ao Rio boêmio e pequeno-burguês de Millôr Fernandes, o auto-intitulado “guru do Méier”, que foi viver na Zona Sul para glosar e gozar a comédia humana carioca. É em São Paulo que se consolida uma das tendências mais fortes da literatura contemporânea – a prosa urbana, com sua incontornável permeabilidade às tensões sociais e políticas. Com Lygia Fagundes Telles, esse pano de fundo se confunde com a dicção memorialística (corredores de escola, pátios) e com a atenção à música em surdina de uma vida afetiva passada nos jardins e cômodos da casa familiar. Com Ignácio de Loyola Brandão, a realidade asfixiante violenta os muros do realismo e aparece em chave alegórica, pop, numa São Paulo soturna, cujos submundos se chocam com reminiscências de sua Araraquara natal. A atmosfera do interior surge com o peso e a rudeza das relações ancestrais em Raduan Nassar – um Brasil profundo que, na Divinópolis da mineira Adélia Prado, mostra sua face religiosa, alternando o silêncio místico com o rumor das festas tradicionais. Com Hilda Hilst, finalmente, tais profundezas já não estão associadas a um lugar público, a uma cidade, a uma região: trata-se antes, de um eu profundo, fundido com o corpo, com os animais, com os móveis da casa no interior paulista onde a escritora viveu seu misticismo sem Deus, sua experiência de derrelição. Captar todas as nuances dessa geografia polimorfa, composta por espaços reais e ficcionais, é uma tarefa que Edu Simões descreve na seção “Depoimento” (que desempenha aqui função análoga às “Confluências” publicadas nas edições regulares dos CLB) e à qual Antonio Fernando De Franceschi dá a dimensão teórica em “Literatura e natureza ou A relação entre as formas da arte”. Publicada na seção “Ensaio”, essa reflexão coloca em perspectiva histórica o desafio crítico de realizar uma aproximação entre as diferentes formas de arte – um desafio que, pode-se acrescentar aqui, remonta ao topos Ut pictura poiesis, de Horácio, e passa pela tentativa de Goethe (a partir das reflexões de Winckelmann sobre a imitação dos antigos e da fisiognomia de Lavater) de buscar o nexo morfológico entre todas as formas do real. O ensaio de De Franceschi soma-se, assim, ao vasto repertório de colaboradores relacionado no “Guia” dessa edição, que discrimina as seções e os autores presentes em todos os números dos CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. Esta plêiade de escritores e ensaístas obviamente não esgota a diversidade da literatura brasileira – mas torna mais visível sua exuberante germinação.
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ENSAIO
Literatura e natureza OU
A relação entre as formas da arte Antonio Fernando De Franceschi
Há muito a questão do regionalismo deixou de freqüentar a pauta da crítica literária no Brasil. Desalojada do arquivo dos bens de primeira necessidade, poucos se lembram que o projeto cultural do Estado Novo, nas décadas de 1930 e 1940, serviu-se do romance nordestino como uma das bandeiras de nossa identidade nacional, ao lado da arquitetura barroca que floresceu no período colonial pelas mãos de artesãos nativos, sobretudo em Minas Gerais, Bahia e Pernambuco. O que estava no foco, então, era a afirmação do estatuto de autonomia de uma “arte brasileira” capaz de reivindicar sua singularidade em relação aos modelos importados. A busca da identidade nacional não era nova, mas durante o primeiro governo Vargas havia se transformado em artigo de fé da política cultural. Assim como se impunha adensar o perfil da indústria com a forte intervenção do Estado na economia, na perspectiva de emancipar o Brasil no contexto mundial, era igualmente necessário que, no plano superestrutural, a arte que aqui se produzia fosse, também, genuinamente brasileira. Passada essa singular afloração do élan nacionalista transformado em política pública, as décadas seguintes assistiram à perda de momentum da questão identitária e, com ela, ao fim do ciclo das teorias interpretativas do enigma chamado Brasil, plasmadas em textos canônicos pelo conteúdo e alguns, também, pela qualidade da forma. Fazem parte dessa categoria Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre; Retrato do Brasil, de Paulo Prado; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda; Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Júnior; Formação econômica do Brasil, de Celso Furtado; Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido; e Os donos do poder, de Raymundo Faoro. O fim desse ciclo virtuoso não pode ser atribuído a uma decalagem no interesse cognitivo pelo Brasil – do que é prova a farta produção historiográfi-
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ca recente –, mas sim ao esgotamento do modelo heurístico das “grandes teorias” e, mais ainda, por vaga que seja a expressão, no caso, à incoercível mudança do “espírito do tempo” (Zeitgeist). Contra tal pano de fundo, o folhear das edições dos CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA sugere uma fisionomia de nossa literatura contemporânea marcada por alguns traços distintivos, que a tornam de certo modo unívoca em relação às demais literaturas nacionais no momento. Não vai nessa aparente univocidade nenhuma idéia de valor, suposto que ela decorra mais das características geográficas do país e da sua unidade de língua do que de qualquer outro fator. Seria o caso de perguntar então: “Por que essa percepção não resultaria igualmente clara da leitura direta da obra dos autores até agora estudados pelos CADERNOS?” Talvez porque, nos CADERNOS, à literatura soma-se a imagem, na forma das fotografias da seção “Geografia pessoal”. E ainda pelo fato de que, em dez anos, a publicação teve tempo para focalizar autores das mais variadas regiões deste país gigantesco e vário, surpreendente por sua geografia física e humana, com a funcionalidade eficaz de nele se falar uma mesma língua, cujo retrato emerge da soma sinérgica de duas diferentes expressões artísticas: palavras e imagens. Embora com dimensões continentais e unidade lingüística, os Estados Unidos já não praticam a mesma diversidade literária que marcou suas letras na primeira metade do século XX, quando à produção dos autores da costa leste, herdeiros do padrão elevado da Nova Inglaterra, contrapunham-se talentosos escritores, principalmente do sul, da costa oeste e do meio oeste, matizando a literatura com a marca de seus lugares de origem. Na Rússia, país de igual variedade e porte, a excelência incomparável da literatura do final do século XIX e início do século XX foi ceifada com a subida de Stálin ao poder, em 1923, e somente se aproximou de sua anterior altitude com uns poucos escritores sobreviventes ao Gulag ou com a pena dos expatriados.1 Com cerca de 3,3 milhões de quilômetros quadrados e mais de um bilhão de habitantes, a Índia é o país que mais se aproxima do Brasil em diversidade étnica e cultural. Trata-se de uma civilização de mais de cinco mil anos que se tornou uma democracia independente da Inglaterra somente em 1947, constituída por 28 Estados dotados de grande autonomia política e cerca de 22 línguas oficiais, faladas e escritas, cujo denominador comum é o inglês e o híndi, idioma do norte do país e do governo central de Nova Délhi, capital do país desde 1912. A observar, no entanto, que os romancistas indianos mais conhecidos no Ocidente, como Salman Rushdie, Vikram Seth, Amitav Ghosh, Amit
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Chaudhuri e Shashi Tharoor, são escritores da diáspora, a maior parte vivendo na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos.2 Portanto, dentro dos padrões considerados – onde não cabe a China contemporânea, país ainda muito fechado culturalmente –, o Brasil ocupa, de fato, posição singular que não se limita à diversidade de sua literatura, estendendo-se a outras linguagens artísticas, como a música e as artes plásticas. Note-se, porém, que foi no marco das relações entre escrita e imagem ou, voltando aos CADERNOS, entre texto e fotografia, que se tornou possível a apreensão de uma nova Gestalt do mapa literário do Brasil, no qual a visualidade da natureza não pode ficar de fora. O que se vai discutir aqui, sem qualquer pretensão de aprofundamento, são as possíveis aproximações entre diferentes formas de arte que, no entanto, podem interagir numa espécie de polinização recíproca sem abrir mão de suas especificidades. Ao publicar, em 1951, o livro Arquitetura gótica e escolástica 3, Erwin Panofsky ampliou consideravelmente o campo das pesquisas sobre as analogias entre as linguagens artísticas, a filosofia e a teologia na Idade Média. A amplitude dos argumentos mobilizados pelo autor fez com que o interesse pela publicação ultrapassasse o âmbito da história da arte para alcançar o campo do estruturalismo e da semiótica. As várias releituras do livro realizadas em ambos esses campos trouxeram à luz coincidências conteudísticas e metodológicas que autorizam identificar Panofsky como um dos precursores dessas disciplinas.4 O autor parte do formalismo dos textos escolásticos estabelecido por São Tomás de Aquino na Suma teológica, formalismo sem o qual seria impossível “explicar a fé pela razão”. Assim foram esquematizadas pelo doutor da igreja três exigências básicas para uma correta argumentação textual: 1. completude (enumeração suficiente); 2. ordenamento segundo um sistema de partes equivalentes e partes das partes (estruturação suficiente); 3. clareza e força probatória (relação de reciprocidade suficiente). Tudo isso, acrescente-se, “ainda foi incrementado pela exigência relativa de expressão literária análoga às similitudines de Tomás de Aquino: escolha de palavras sugestivas, parallelismus membrorum e rima”.5 Daí Panofsky deriva que “independentemente do que examinamos – seja um tratado médico, um manual de mitologia clássica, seja um texto de propaganda política, um panegírico a um governante ou uma biografia de Ovídio – encontramos sempre a mesma predisposição obstinada à estruturação e à subdivisão
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sistemática, à composição metódica, à terminologia clara, ao parallelismo membrorum e à rima”. E prossegue observando que, na Vita nuova, Dante Alighieri “chega a desviar-se de seu tema para analisar a seqüência de idéias de todos os sonetos e canzioni, de maneira perfeitamente escolástica, como ‘partes’ e ‘partes das partes’, ao passo que, meio século depois, Petrarca iria pensar a estrutura de seus poemas antes do ponto de vista sonoro que lógico”.6 O relativo primado do sensório sobre a razão estrita na elaboração poética leva Panofsky a uma conclusão definitiva para o tema aqui tratado. Diz ele: “O que se observa na poesia aplica-se também às artes plásticas. A moderna psicologia da Gestalt recusa-se, ao contrário das doutrinas no século XX e em consonância com as do século XIII, a atribuir capacidade de síntese apenas às funções superiores da mente humana, e realça as forças configurativas dos processos sensoriais. A própria percepção é hoje considerada – cito textualmente – uma espécie de ‘inteligência’, que ‘organiza os objetos da percepção segundo o modelo de configurações simples e boas’, no ‘esforço do organismo de assimilar estímulos à sua própria estruturação’.7 Temos aí uma formulação moderna para o que Tomás de Aquino quis dizer quando escreveu: ‘Os sentidos exultam ante coisas bem proporcionadas, já que estas lhes assemelham; pois também os sentidos são uma espécie de razão, assim como qualquer força cognitiva’”.8 O reconhecimento tomista da possibilidade de haver, digamos, uma razão sensível e, portanto, empírica, capaz de ampliar o âmbito da razão pura no esforço de “clarear” a fé, teve influência indireta sobre a literatura filosófica e teológica. Mas, de outra parte, a prescrição imperativa da exigência de completude, ordenamento e clareza tanto na escrita, por meio de separações, parágrafos e itens numerados, quanto na fala, mediante o recurso a princípios expositivos e expressões padronizadas, logo se estendeu ao âmbito das artes. Dessa influência direta resultaram a divisão do tempo em intervalos variáveis, na música, e o rigoroso esquadrinhamento do espaço, nas artes plásticas e na arquitetura.
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Vista em perspectiva, a abertura da filosofia medieval ao empírico, na altura do século XIII, contrasta fortemente com o pressuposto da pureza do conhecimento racional sustentada por Descartes em suas Meditações, publicadas em 1641, quatro séculos depois da Suma teológica (iniciada em 1269 e inconclusa até a morte do autor, em 1274), onde o filósofo francês afirma: “Pensarei que sou eu mesmo desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, de sentido algum...”.9 A partir dessa espantosa sugestão automutilante em nome da invocação programática de uma razão cristalina, a derrogação dos sentidos como meio de conhecimento seria mantida, sob outras formas e modulações, tanto na filosofia crítica de Kant quanto no idealismo hegeliano.10 Importa observar nesse processo que a subalternidade cognitiva atribuída aos sentidos face ao império da razão implicou o questionamento do sujeito empírico, o que, por sua vez, significou questionar a própria necessidade de o homem manter relações harmônicas com a natureza. Somos cercados por coisas que não foram criadas por nós e possuem uma estrutura diferente da nossa: flores, prados, rios, montanhas, nuvens... Com o passar do tempo elas se tornaram objeto de nosso prazer, admiração ou terror. Sonhados pela imaginação como reflexo de nossa sensibilidade, esses objetos constituíram uma entidade à qual denominamos natureza.11 Foi através da cultura, especialmente das artes, que estabelecemos um estatuto de relacionamento com ela, que de outro modo permaneceria muda, irredutível à compreensão humana. Em seu livro Arte e mito12, o filósofo italiano Ernesto Grassi testemunhou uma instigante experiência de contato com uma natureza para ele estranha, durante sua estada na América do Sul na primeira metade dos anos 1950: “Encontramo-nos no Chile. Alvores da primavera: uma claridade difusa que atira tudo para o primeiro plano, fremente e quase sem sombras, irradia um implacável fulgor; não há um único recanto onde seja possível refugiarmo-nos; sentimo-nos expostos sem proteção, não àquilo que chamamos luz, mas a um fenômeno cósmico. Os choupos estremecem ao vento, acariciados por mão invisível, e o verde de sua folhagem torna-se prateado. A solidão intensifica a nossa impotência: não nos sentimos capazes de ‘ver’ esta paisagem numa perspectiva pictórica; aí está e desenrola perante nós as suas seduções, mas nenhum pintor a revelou. É certo que pintores provincianos tentaram grotescamente falseá-la, transmudando-a em paisagem européia. A consciência desse fra-
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casso deixou-nos perplexos. Enquanto realidade ainda não reconhecida e classificada pelo homem, a natureza revela-se como o puro Inóspito. Que acontece quando não há um projeto humano medianeiro entre nós e a natureza? É o reino da absoluta incomunicabilidade.” O depoimento do filósofo diante de uma natureza que o aturdiu por escapar dos padrões reconhecíveis da arte européia guarda curioso paralelismo com o que disse Cézanne numa de suas cartas a Gasquet: “Tudo quanto vemos... desconjunta-se, desaparece. A natureza é sempre a mesma, mas nada perdura dela, daquilo que nela é visível. Que está por detrás? Nada, talvez. Talvez tudo. Da direita, da esquerda, daqui, de acolá, de toda parte, agarro sons, cores, gradações da natureza, que prendo e relaciono... Formam linhas, tornam-se objetos, rochas, árvores, sem eu dar por isso. Adquirem peso, possuem um valor-cor. Quando este peso, estes valores correspondem no meu quadro, na minha sensibilidade, aos planos e às manchas que estão diante dos nossos olhos, então bem, então o meu quadro faz sentido... A paisagem espelha-se em mim, torna-se humana, torna-se possível. Concedo-lhe objetividade, traduzo-a, prendo-a na minha tela... O meu quadro, a paisagem, ambos estão fora de mim: uma, porém, caótica, transitória, confusa, sem existência lógica, alheia totalmente à razão; o outro, duradouro, acessível ao sentimento, ordenado segundo categorias, participando do ‘modo’, no drama das idéias...”.13 Cabe então a pergunta: Seria a arte uma tentativa, das mais eficazes, para aprisionar e delimitar a natureza e assim deter seu constante fluxo e evanescência? Não se trata disso, já que a arte – seja a pintura, a poesia, a literatura – não representa uma vitória sobre a natureza. Em sua carta, Cézanne usa a expressão “paisagem”; entretanto, é necessário distinguir a paisagem do conceito de natureza, por não haver uma identificação completa entre ambas. A paisagem é uma das dimensões da natureza visível, perceptível pelo olhar; trata-se, portanto, de um termo mais relacionado ao âmbito das artes plásticas, especialmente à pintura. Kenneth Clark sugere que foi “através da pintura de paisagem que nós pudemos compreender as diversas formas assumidas por nosso sentimento da natureza”.14 No entanto, somente ao longo do século XIII surgiram os primeiros capitéis encimados por folhagens e flo-
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res ornamentais, que também serviram como tema para iluminar os fioretti, nome dado aos episódios da vida de São Francisco, cujos manuscritos então começavam a circular entre seus discípulos. Mas para que a paisagem passasse a configurar o conceito que hoje temos dela, foi preciso uma operação radical: recortar na natureza áspera e caótica um conjunto limitado de seus componentes num pequeno espaço que sugerisse a idéia da perfeição. Esse espaço foi o jardim. A rigor, não foi uma criação se considerarmos a precedência de mitos como o Jardim do Éden ou o das Hespérides, mas a novidade veio da apropriação desse topos pela poesia (o Romance da rosa, por exemplo), como pela filosofia, a arquitetura e a pintura. Nascido no início do século XIV, mais exatamente no ano de 1304, Petrarca foi considerado o primeiro dos homens modernos. Fascinado por jardins, o poeta cuidava de plantar ele próprio suas flores e ervas preferidas, estudandoas como botânico e anotando num diário o desenvolvimento ou insucesso de suas semeaduras. Dizem os historiadores ter sido ele o primeiro homem a escalar montanhas pelo prazer de contemplar a vista que se descortina de seus cimos. Reverenciada, também, é a paisagem que se vê do quarto onde Petrarca trabalhava em Arquà, pequeno burgo na província vêneta de Pádua, onde morreu em 1374. Um pouco retirada da povoação, fica a modesta casa do poeta que, por um prodigioso acaso, se mantém intacta. Da sua mesa de trabalho avista-se, pela janela, a suave ondulação das colinas Euganei. Essa imagem exterior é como que o único vestígio visível do grande poeta, “porque somos capazes de ‘reconhecer’ como ‘sua’ essa paisagem”.15 Se Petrarca foi o primeiro homem a escalar uma montanha para sua própria fruição, Leonardo da Vinci foi igualmente precursor ao realizar estudos científicos de forma séria, sistemática, no sentido com que se concebe modernamente o procedimento da ciência. No livro homônimo que reúne seus 25 programas da série Histoires de peintures na rádio France Culture, no verão de 2003,16 Daniel Arasse informa ter estudado a obra pictórica de Leonardo ao mesmo tempo em que se debruçou sobre os mapas geográficos que o artista realizou entre 1503 e 1504. Nesse período, Leonardo estava pintando o retrato da Mona Lisa, sua obra mais famosa. Ao observar o retrato atentamente, Arasse percebeu que a paisagem no plano de fundo, com um lago muito elevado e um vale pantanoso na parte esquerda, coincidia praticamente com um dos mapas da Toscana que o artista havia desenhado naquele mesmo período. E um dos problemas que Leonardo se colocou, ao conceber esse mapa, era descobrir co-
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mo o lago Trasímeno pôde, num passado extremamente recuado, explicar o alagamento do vale do Arno, ao sul de Arezzo, na Toscana. Pode-se ver, nesse mapa, que ele desenhou um curso d’água não existente na realidade, ligando o lago Trasímeno ao vale do Arno. “O que me surpreendeu”, confessa Arasse, “foi ver que a construção da Mona Lisa se harmonizava plenamente com uma reflexão cartográfica e geológica de Leonardo da Vinci, se bem que a paisagem representada no plano de fundo do retrato fosse a de uma Toscana imemorial, a que existia antes que a humanidade tivesse criado a graça daquela região. No quadro, o curso d’água que liga o lago Trasímeno ao vale do Arno é o sorriso da Mona Lisa”.17 Outro exemplo de polinização recíproca ocorreu entre a poesia da antigüidade clássica e a pintura que se produziu, em maior parte, na Itália renascentista. Disso nos dá conta Kenneth Clark, novamente, ao lembrar que os poetas que mais mobilizaram a imaginação dos artistas do período foram Ovídio e Virgílio. O primeiro como poeta favorito dos pintores de cenas mitológicas, mas teria sido com o segundo que “a paisagem encontrou sua inspiração”. No caso, Clark reporta-se a pinturas de paisagens “idealizadas”, cuja referência era a poesia clássica do período romano, lembrando os empréstimos feitos pelos pintores à Eneida, com suas evocações da natureza, sobretudo porque Virgílio exprimiu de maneira incomparável o mito da vida rústica e simples como modelo ideal. Suas obras mostravam que o poeta conhecia o campo por experiência própria, “e mais de um bom humanista, depois de Petrarca, teria administrado suas terras inspirando-se nos preceitos das Geórgicas”.18 Vem nessa mesma linha a observação de André Malraux, quando sugere que o imaginário profano não atingiria a dignidade do imaginário religioso senão quando a literatura se tornou “um igual” da pintura, a ela se ombreando. Para ele, “os sucessores de Michelangelo e de Ticiano não serão os pintores, mas sim Shakespeare, Monteverdi e Corneille”.19 Na incessante analogia entre as formas da arte ao longo da história da humanidade, a preeminência momentânea de umas sobre as outras depende não apenas do Zeitgeist, como também da potencialidade ou predisposição que certas culturas teriam para manifestar o que possuem de melhor através de determinadas linguagens artísticas. Foi a esse fenômeno que Oswald Spengler se referiu ao sustentar que a música teria sido a melhor expressão da alma alemã, do mesmo modo como, num certo momento, os jardins o foram para a cultura francesa.20 A vocação, se pudermos dizer assim, que levou diferentes culturas
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a se identificar mais ampla e profundamente com determinada forma de arte sugere haver um símile desse processo de identificação entre duas ou mais artes. E não apenas isso, como também entre os estilos. Um bom exemplo de identificação estilística pode ser encontrado nas relações entre certo paisagismo, na pintura, e o naturalismo, na literatura. Em acepção ampla, por naturalismo se entende a corrente artística que, seja na literatura, música ou nas artes figurativas, tem a tendência de reproduzir a natureza de modo fiel. Em sentido estrito, o naturalismo foi mais identificado com a escola literária que, nascida do triunfo do positivismo, floresceu na França, sobretudo na segunda metade dos oitocentos. Tendo Zola como figura de maior relevo, ressalte-se que o naturalismo se confunde com o realismo, movimento que o precedeu, tão esfumada foi a passagem de um estilo para outro. As figuras de proa do realismo francês foram Balzac e Flaubert, mas, não obstante a repugnância do autor de Madame Bovary em assumir o papel de chef d’école, o fato é que ele influenciou profundamente os escritores das gerações imediatamente sucessivas. A expressão pittura di paesaggio teve origem na Itália para indicar um gênero pictórico que, nascido nos anos quinhentos, se afirmou como especialização no inicio do século seguinte, ao término de um processo gradual que levou a paisagem a assumir plena autonomia e dignidade temática. A palavra inglesa landscape tem uma origem histórica reveladora. Ela aparece na língua no fim do século XVI, no momento mesmo em que a Inglaterra importava arenques da Holanda, onde a expressão designadora da paisagem “era landschap, como sua raiz germânica landschaft se aplica a uma unidade de ocupação humana, uma jurisdição e, também, a um lugar agradável para pintar”.21 Não por acaso sobre os pôlderes holandeses, porção de terra sujeita a alagamentos, subtraída ao mar ou aos rios pela proteção de diques, uma comunidade desenvolveu a noção de paisagem. Nada casualmente, de novo, depois que o entusiasmo pela paisagem chegou à Inglaterra, ali nasceria, em 1775, aquele que veio a ser um dos maiores paisagistas de todos os tempos: Joseph William Turner. Com ele, a pintura de paisagem livrou-se da fidelidade estrita a seu objeto para tornar-se livre e imaginativa. A primeira viagem à Itália, em 1819, quando visitou Veneza, Roma e Nápoles, revelou-lhe a intensa, peculiar luminosidade da atmosfera peninsular. Retornou várias vezes a Veneza, onde produziu admiráveis vistas da laguna, entre as melhores de sua maturidade. Foi o período em que a questão da luz e da cor tornou-se o centro de sua pintura. Num espaço-luz livre de qualquer constrangimento perspectivo, as formas passam a
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perder consistência, contornos, e as cores puras tornam-se, com a luz, os protagonistas de uma nova interpretação do “real”. Quando se encerra com o brilho auspiciado pelo mistério luminescente da atmosfera italiana, o grande ciclo do paisagismo pictórico já se havia longamente distanciado, ao abrir mão da imitação da natureza, do realismo literário ainda fiel ao padrão descritivo. Nesse processo de aproximações e distanciamentos entre essas duas linguagens expressas por um mesmo estilo, durante mais de três séculos, talvez o ponto de equilíbrio seja o romance Salambô (1862), de Flaubert. Nele, a portentosa reconstituição imaginária de uma Cartago imemorial, com seus palácios, templos e leões crucificados vivos, é como um cenário produzido a quatro mãos, no qual pintura e literatura parecem estar simultaneamente presentes. Referindo-se ao cansaço do leitor comum diante do acúmulo de dados na linguagem descritiva da literatura oitocentista, Silviano Santiago aponta, não sem um grão de ironia, que, em seu romance Nadja, André Breton fez com que a “descrição lingüística do real fosse substituída pela fotografia correspondente. Pensavam os surrealistas: imagem por imagem, por que e para que buscá-las e compô-las com palavras? Recorramos à fotografia. Colemos a foto ao texto lingüístico. Ao estabelecer a poética do nouveau roman, que marca o retorno convulsivo da descrição realista à ficção, Alain Robbe-Grillet nomeou como seu mais feroz inimigo o preguiçoso André Breton, o do romance Nadja”.22 Embora não pelo mesmo motivo, é certo que Susan Sontag também discordaria de Breton quando este sugere o uso de fotos em lugar da descrição lingüística da realidade. Sontag proclama um estatuto próprio para a fotografia, dimensão que somente ela poderia ocupar por ser unívoco o seu registro: “Uma fotografia não é apenas uma imagem (como uma pintura é uma imagem), uma descrição do real; é também um traço, algo diretamente copiado do real, como uma pegada ou uma máscara mortuária”.23 Ao sustentar a singularidade da fotografia, a ensaísta americana não fez mais que confirmar a intuição de Marcel Proust. Em sua crítica da tradução francesa do livro de John Ruskin, As pedras de Veneza, em 1906, o autor de Em busca do tempo perdido afirma que “a fotografia é de fato uma arte”.24 Não obstante o precoce entusiasmo de Proust, a admissão da fotografia ao panteão das artes foi uma conquista contra o tempo. Sim, porque até hoje a ela é recusada, por muitos, a condição que lhe foi atribuída sem hesitação pelo grande romancista. O singular na fotografia é a ins-
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tauração da autenticidade do instante, como um átimo pontual, único por sua capacidade de recortá-lo do tempo. Salvá-lo da derrelição é algo impossível por qualquer outra forma de arte. Ao contrário da música, que a exemplo da literatura tem como referência o tempo (lembremo-nos da sucessividade dos sons ou da estrutura lógica e seqüencial das línguas cultas, em que se desdobram, um após outro, sujeito, verbo e complemento), a fotografia e a pintura são uma questão do olho. Mas o que isso significa senão que o espaço e o tempo – duas categorias inatas da filosofia kantiana – expressam-se nas linguagens artísticas mediante diferentes hierarquias de duração? Um diletante em visita ao museu não precisará mais do que uma visada para reconhecer uma pintura de sua afeição, assim como um lance de olhar basta para identificarmos a fotografia de um ente querido. Em ambos os casos, o olhar descortina instantaneamente uma forma (Gestalt) e a reconhece de pronto: este é o retrato da Dama do unicórnio, pintado por Rafael; esta é minha mãe retratada numa fotografia. Foi esse poder de constatar, inerente à fotografia, que levou Roland Barthes a afirmar: “O importante é que a foto possui uma força constativa, e que o constativo na fotografia incide, não sobre o objeto, mas sobre o tempo. Na fotografia, de um ponto de vista fenomenológico, o poder de autenticação sobrepõe-se ao poder de representação”.25 Por mais controversa que seja esta última afirmação, o fato é que a fotografia tem o poder de fixar o tempo e de aludir, simultaneamente, tanto ao passado quanto ao futuro: como era bela minha mãe aos 25 anos, tal como a vejo nesta foto; teria esses longos cabelos desde a infância? Com que rosto eu depararia tivesse ela vivido 80 anos? O grande fotógrafo Ansel Adams registrou sistematicamente as montanhas e os vales do parque nacional de Yosemite, nos Estados Unidos, com tal reverência que acabou por transformá-los em “ícones espetaculares”. Assim o fazia, revelou, para “santificar uma idéia religiosa” e para perguntar à sua alma “qual era verdadeiramente o sentido da paisagem primeva”.26 A reprodução e divulgação em ampla escala das imagens de Adams, no século XX, assim como as de Carleton Watkins, que também fotografou Yosemite, um século antes, tiveram papel decisivo na formação da consciência ecológica contemporânea, tanto quanto a concepção da filosofia da natureza em Schelling, Rousseau e Thoreau. O pleno efeito da arte, qualquer que seja sua forma – poesia, música, prosa, pintura, escultura, arquitetura, fotografia – depende, no entanto, da recepção por um sujeito atento, disposto a sensibilizar-se com ela. Essa disposi-
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ção pode ser algo latente no ser humano, mas sua ampla manifestação pressupõe a exigência de um aprendizado que a aperfeiçoe e refine. Na introdução de seu livro A poética do devaneio, Gaston Bachelard, ao discorrer sobre as imagens poéticas – algo que se refere à variada morfologia das artes e não apenas à poesia – alude a uma “psicologia do maravilhamento”, que nada mais seria senão a recepção imaginativa de uma obra de arte de inegável originalidade: “A exigência fenomenológica com relação às imagens poéticas, aliás, é simples: resume-se em acentuar-lhes a virtude de origem, em apreender o próprio ser de sua originalidade e em beneficiar-se, assim, da insigne produtividade psíquica que é a da imaginação... A sutileza de uma novidade reanima origens, renova e redobra a alegria de maravilhar-se”.27 A palavra novidade deve ser entendida aqui não apenas no sentido do que é novo (em acepção temporal), mas também, e sobretudo, daquilo que tenha singularidade. Por precário que seja o resultado, refletir sobre as relações analógicas entre as diversas formas da arte é um esforço por compreender a singularidade de cada uma das linguagens artísticas e, mais, as possíveis sinergias porventura existentes entre elas. Mesmo sendo um dado subjetivo, de natureza psicológica, a recepção generosa de uma obra de arte estimula e amplia a ressonância de um romance, de uma pintura, de uma música, de uma catedral, de um texto filosófico, tornando-os correspondentes no sentido estrito e no lato: coloca-os em comunhão. Foi isso, a comunhão de sentidos haurida da fruição de duas diferentes origens, que o escritor Henry James confessou numa carta a Henri Bergson, ao concluir a leitura de A evolução criadora, um dos mais conhecidos livros do filósofo francês: “Pode ser que você se divirta com a comparação; ao terminar a leitura deste livro, ficou-me o mesmo retro gosto que senti depois de haver lido Madame Bovary: um semelhante sabor de eufonia persistente”.28 Ora, a palavra eufonia (som agradável ao ouvido, escolha feliz de sons) remete ao domínio da música mais que à apreensão muda da leitura de um texto filosófico. É, portanto, pela sensibilidade que se dá o reconhecimento de uma obra “singular”, mesmo quando essa não transite rigorosamente no âmbito das artes. Para um romancista dotado de qualidade superior, como Henry James, a expressão utilizada – eufonia persistente – para consagrar o agrado ao ler um livro de filosofia não pode ter sido casual: fôra a “música” do texto, mais que a teoria ali exposta, que havia “maravilhado” o grande ro-
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mancista. Assim, para cada leitor atento, para cada ouvinte, para cada admirador das artes plásticas haverá sempre um ponto de confluência entre as linguagens da arte, variando em função do repertório, da sensibilidade e da disponibilidade de cada um de entregar-se à “maravilha”. É o caso, aqui, de darmos a palavra a Thomas Mann quando comenta o sentimento do inefável (a “maravilha”) experimentado por Hans Castorp, protagonista do romance A montanha mágica, ao ouvir um lied de Franz Schubert: “Mas tornar compreensível o que significava para ele essa canção, a velha Tília, é realmente empresa das mais complexas, que requer da nossa parte um tratamento de extraordinária delicadeza, porque o contrário nos levaria antes a comprometer do que esclarecer a questão. É assim que queremos colocá-la: um assunto espiritual, isto é, um assunto significativo torna-se ‘significativo’ precisamente porque designa algo fora de seus próprios limites, porque é expressão e expoente de uma esfera espiritual mais vasta, de um mundo inteiro de sentimentos e pensamentos, que encontrou nele um símbolo mais ou menos perfeito – o que dá então a medida de sua importância”. Mais até, talvez, que no Doutor Fausto, Thomas Mann atesta em A montanha mágica o poder inigualável da linguagem musical de aproximar-se da “maravilha”, ou seja, de expandir-se além de seus próprios limites.29 Antes de encerrar, é preciso salientar que a seção “Geografia pessoal” dos CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA jamais teve ambição maior do que proporcionar ao leitor, através das imagens produzidas pelo fotógrafo Edu Simões, uma informação visual da paisagem referencial de cada escritor. Assim o país foi esquadrinhado de norte a sul, de leste a oeste em busca de uma natureza indiciária da origem e da singularidade de cada autor retratado pela publicação. Esse “em torno” que está, queira-se ou não, na memória recuada de cada um deles ou mesmo nas suas configurações presentes, serve ao leitor na medida em que propicia uma moldura para a relação entre arte e paisagem. A língua inglesa cunhou a palavra townscape (paisagem urbana) em contraposição a paisagem rural (landscape). Paisagens campestres e urbanas se alternam nas páginas dos CADERNOS para pontuar com imagens aquilo que seria, de outra feita, apenas texto. Trata-se de um serviço ao leitor, ao sugerir a complementaridade entre ambas essas dimensões. Mais ainda, perdoando-se a pretensão, uma forma de conectar caminhos em benefício de uma leitura ampliada.
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O poeta norte-americano Wallace Stevens revelou sua insuficiência em traçar as relações entre as diferentes artes num texto preparado para a conferência que proferiu no Museu de Arte Moderna de Nova York, em 1951. Cauto, começou por realçar o caráter fragmentário de qualquer esforço sincero de compreendermos os entrelaçamentos mutantes, por vezes desequilibrados, existentes entre elas. Em compensação, deixou-nos uma pérola sob a forma de reflexão: “A relação suprema entre poesia e pintura hoje, entre o homem moderno e a arte moderna, é simplesmente a seguinte: numa época onde prevalece tão profundamente a incredulidade ou, pelo menos, senão a incredulidade, a indiferença para com as questões da crença, a poesia e a pintura, e as artes em geral, são, na medida em que lhes é própria, uma compensação por tudo aquilo que perdemos”.30
NOTAS 1 Para maiores informações sobre os escritores russos do Gulag, ver BERLIN, Isaiah. “Meetings with russian writers in 1945 and 1956”. In Personal impressions. Nova York: Penguin, 1982, pp. 156-208. 2 Para mais informações sobre a literatura da Índia, ver Le Magazine Littéraire, n. 462, mar. 2007 (“L’Inde de Mahabharata à Salman Rushdie”). 3 PANOFSKY, Erwin. Arquitetura gótica e escolástica. São Paulo: Martins Fontes, 1991. 4 Ibidem. Ver posfácio de Thomas Frangenberg, pp. 111 e seguintes. 5 Ibidem, p. 21. 6 Ibidem, pp. 25 e seguintes. 7 Panofsky cita aqui ARNHEIM, R. “Gestalt and art”. Journal of Aesthetics and Art Criticism. 1943, pp. 71 e seguintes. “Perceptual abstraction and art”. Psychological Review. 1947, pp. 66 e seguintes, especialmente p. 79. 8 PANOFSKY, Erwin. Op. cit. A referência a Tomás de Aquino pode ser encontrada em Suma teológica, I, qu. 5, art. 4, ad. 1. Tradução de Alexandre Corrêa. Porto Alegre: Sulinas, 1980. 9 DESCARTES, René. Meditações sobre filosofia primeira. 1ª meditação, 12. Tradução de Fausto Castilho. Campinas: Editora Unicamp, pp. 22 e 23. 10 Ver, também, “Razão e destruição”. In: SUBIRATIS, Eduardo. Paisagens da solidão. São Paulo: Duas Cidades, 1986. 11 Ver CLARK, Kenneth. L’art du paysage. Paris: Gérard Monfort, 1994. 12 GRASSI, Ernesto. Arte e mito. Lisboa: Livros do Brasil, 1955, pp. 10 e seguintes. 13 GASQUET, J. Gespräche mit Cézanne. Berlim, 1948, apud GRASSI, Ernesto. Op. cit. 14 CLARK, Kenneth. Op. cit., pp. 77 e seguintes. 15 GRASSI, Ernesto. Op. cit., p. 12. 16 ARASSE, Daniel. Histoire des peintures. Paris: Gallimard, 2006. 17 Ibidem, pp. 41 e 42. 18 CLARK, Kenneth. Op. cit., pp. 75 e 76. 19 MALRAUX, André. L’homme précaire et la litterature. Paris: Gallimard, 1977, pp. 74 e seguintes. 20 SPENGLER, Oswald. La decadencia de occidente. Madri: Espasa Calpe, 1958, p. 313. 21 SIMON, Schama. Landscape and memory. Nova York: Alfred A. Knopf, 1995, p. 17. 22 SANTIAGO, Silviano. “Amerika”. In Ora (direis) puxar conversa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, pp. 288 e 289. 23 SONTAG, Susan. Apud BERGER, John. Sobre o olhar. Barcelona: Gustavo Gilli, 1980, p. 55. 24 BRASSAI, Halasz Gyula. Proust e a fotografia. São Paulo: Jorge Zahar, 2005, p. 40. 25 BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 132. 26 SIMON, Schama. Op. cit., p. 16. 27 BACHELAR, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 2 e 3. 28 STEVENS, Wallace. L’ange nécessaire. Paris: Circé, 1997, p. 40. 29 MANN, Thomas. A montanha mágica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, pp. 728-729. 30 STEVENS, Wallace. Op. cit., p. 143.
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Jo達o Cabral de Melo Neto
Pedra de construção “A TEORIA IMPRESSIONA MAIS QUE A LITERATURA PROPRIAMENTE DITA”, DIZ O POETA QUE FAZ DA SECURA O SAL DO VERSO, PREFERE A GEOMETRIA À MÚSICA, E PARA QUEM “O MUNDO INTERIOR É UMA CHATICE” [sobre sua vida] Quando eu digo que não aconteceu nada, quero dizer nada de especialmente dramático que eu pudesse ter aproveitado em minha obra. Nunca matei ninguém, nem quis me matar. Foi uma vida normal, de diplomata, compreende? Nada que pudesse ter um grande impacto sobre a carreira literária. No máximo, minha poesia contempla um pouco das culturas dos países por onde passei a serviço do Itamaraty, só isso.
O escritor brasileiro ainda acredita muito na inspiração. Ele escreve por inspiração, acha que vai chegar a um encontro daqueles e falar bem baseado apenas no improviso, na inspiração. Eu não acredito nisso. Para mim, a poesia é uma construção, como uma casa. Isso eu aprendi com Le Corbusier. A poesia é uma composição. Quando digo composição, quero dizer uma coisa construída, planejada – de fora para dentro. Ninguém imagina que Picasso fez os quadros que fez porque estava inspirado. O problema dele era pegar a tela, estudar os espaços, os volumes. Eu só entendo o poético nesse sentido.
Os poetas metafísicos ingleses me impressionaram muito, até porque Londres foi meu segundo posto, logo depois de Barcelona. Eu estava em início de carreira. O que aprendi com eles foi basicamente a discussão da metáfora. Isso que você vê na minha poesia de apresentar uma metáfora e depois discuti-la, associá-la a outras, negá-la de novo, reafirmá-la, isso eu aprendi com eles. Claro que a substância das metáforas é diferente, mas a técnica eu aprendi com os metafísicos ingleses.
Os poetas que escrevem por escassez de ser, como eu, planejam os livros, têm um vazio a preencher. Os outros transbordam. Salvo O rio e Morte e vida severina, o resto de minha obra permite múltipla leitura.
A teoria da literatura sempre me impressionou mais do que a literatura propriamente dita. Mallarmé, por exemplo, me atrai mais como teórico do que como poeta. Quanto a mim, ocorreu o seguinte: na juventude, eu freqüentava um grupo de intelectuais no Recife, que se reunia no Café Lafayette, e tinha a ambição de ser crítico literário. Mas descobri que não possuía cultura suficiente para isso. Para poder continuar a freqüentar o grupo, passei a escrever poesia. Mas tentei fazer poesia crítica: de autores, de realidades. Outro fator que me afastou da possibilidade de ser crítico literário é que saí do Brasil aos 27 anos e acompanhava mal a produção literária daqui. Também nenhum jornal me convidou para escrever resenhas, de modo que desisti desse projeto.
A minha idéia racionalista de escrever é uma coisa que eu me imponho. Eu não escrevo ambigüidades, penso que todos vão ler da mesma maneira, mas não posso impedir que outras pessoas leiam de outra maneira. Você pensa que cria uma obra o mais racional possível, pensando que ela vai ser recebida daquela maneira. Mas não é o que acontece. É aquela história do soneto de Mallarmé lido para um grupo de pessoas. Cada um interpretou de um jeito. Houve até quem falasse em pôr-do-sol, e, na verdade, ele quis descrever apenas uma cômoda. Qualquer leitura é lícita, e quanto mais leituras diversas o poema suscitar, mais rico é o texto poético ou a pintura. Num quadro abstrato, podese ver o que se quiser. 26
Quem me falou dessa diferença [entre os carros de boi de Pernambuco e Rio de Janeiro] foi meu tio-avô Diogo Cabral de Melo, que era juiz e chegou a desembargador no estado do Rio. Eu já o conheci aposentado, morando em Santa Teresa, quando vim para o Rio. Um dia ele me disse: “Em Pernambuco os carros de boi são puxados por duas juntas de bois e no Rio são puxados por três juntas”. Pensei então em escrever um poema que falasse de “boi de coice e boi de cambão”. Os bois de cambão são os que puxam o carro, os de coice são os que o freiam, quando ele está descendo uma ladeira. Eu pensava num poema que fosse uma tipologia geral. Por exemplo, Manuel Bandeira é um boi de cambão, o Schmidt é um legítimo boi de coice. Sartre é um boi de cambão, o Camus é um boi de coice. Não há superioridade de um sobre o outro. É uma questão de tipologia. Auden era boi de cambão, Eliot era boi de coice.
Minha vocação, como já disse, era para crítico. A realidade, porém, e não um movimento subjetivo interior, me dava novos motivos para criticar, e então eu voltava a escrever poesia. Às vezes, podia ser também porque considerava que nem tudo a ser criticado numa determinada realidade havia se esgotado no livro que eu acabara de fazer. Então, fui continuando a escrever. Deve ter sido isso, não tenho muita certeza. É difícil explicar por que segui escrevendo. [sobre Antonio Candido e a análise de Pedra do sono] Essa crítica de Antonio Candido foi para mim uma revelação. Foi ela que me deu coragem de continuar escrevendo no início de minha carreira. A situação era a seguinte: aquele grupo que eu freqüentava no Recife era profundamente influenciado pelo surrealismo. Mas o surrealismo, na minha opinião, sempre foi o traumatismo da escrita. Como eu era absolutamente incapaz de fazer a tal escrita automática, com a qual eu não concordava, e, ao mesmo tempo, desejava continuar fazendo parte do grupo do Café Lafayette, eu forjei um tipo de surrealismo, quer dizer, meu surrealismo era algo construído. Quando li o artigo de Antonio Candido, me senti encorajado a escrever desenvolvendo meu construtivismo.
Manuel Bandeira ia sempre na frente, desbravando o caminho, sem pose, sem grandiosidade. Carlos Drummond, no princípio, era boi de cambão, acabou como boi de coice. Murilo Mendes tem pedaços de boi de coice e pedaços de boi de cambão. Walt Whitman era boi de cambão. Jorge Guillén é boi de coice. Dylan Thomas faz o possível para ser boi de cambão e só consegue ser boi de coice. Rimbaud é um misto, talvez o mais completo, de boi de coice e boi de cambão. Mallarmé é boi de coice. Baudelaire é boi de cambão. Théophile Gautier é boi de cambão. Mário de Andrade é boi de cambão. Augusto dos Anjos é boi de coice. Proust, boi de coice. Valéry, boi de cambão. Isso, como você vê, não é questão de valor, mas de approach da realidade. Inclassificável é o Shakespeare, capaz de escrever a comédia mais engraçada e a tragédia mais trágica.
Eu vivi no exterior desde os 27 anos de idade, de modo que nunca percebi inteiramente o eco de minha obra no meio crítico. Quanto aos limites, eu só poderia dizer que fiz o que pude. Para mim, é difícil dizer aonde estão minhas próprias limitações. Em todo caso, eu poderia falar que minha poesia é limitada do ponto de vista musical, por exemplo. Todo mundo sabe que eu sou o antimusical por excelência. Por isso evito fazer uma poesia cantante. Não é sequer uma poesia de oratória. Você tem exemplos demais no Brasil de poetas que cultivam o verso de oratória. É coisa para ser lida em voz alta, para ser declamada. Você vê, inclusive, a influência fantástica que teve sobre a obra de um homem como Carlos Drummond de Andrade a poesia de Pablo Neruda, que é uma poesia de oratória. A minha é o contrário disso.
Sempre tive a sensação de que estava escrevendo meu último livro. Como é que eu vou explicar isso? Acho que foi porque, no fundo, eu nunca me senti vocacionado para a poesia. Para ser sincero, essa idéia de que eu estava escrevendo meu derradeiro trabalho nunca me abandonou. Eu nunca tive uma necessidade interior de me expressar, de forma que, ao escrever, isto me custa muito, dá muito trabalho. Quando acabava, era um alívio enorme, compreende?
Eu tenho a impressão de que, se o artista se repete, não faz sentido que continue produzindo. Eu, se 27
quisesse, poderia ter feito mais dezenas de Morte e vida severina. Mas para quê? O intelectual brasileiro, por exemplo, que não vive de escrever, não tem nenhuma razão para ficar se repetindo. Isso não vai ser suficiente para garantir sua sobrevivência, mesmo que ele tenha feito sucesso com um determinado tipo de obra. De certo modo, acho que nós, escritores brasileiros, temos essa sorte de podermos produzir o que quisermos, sem compromisso.
Não há morte da arte. Ela vai apenas se adaptar aos novos meios de comunicação. E ao se adaptar, a arte não está renunciando a nada. Está apenas se tornando contemporânea. A crítica nunca se preocupou com o humor negro de minha poesia. Leia Dois parlamentos, por exemplo. É puro humor negro. Em Morte e vida severina, também existe humor negro. Você lembra daquele trecho: “Mais sorte tem o defunto/ irmão das almas/ pois já não fará na volta/ a caminhada?” Pois bem. A origem disso é uma história que me contaram na Espanha. Dizem que, na época de Franco, ele mandava fuzilar seus inimigos num lugar chamado Sória, que é o mais frio do país. Conta-se que, um dia, um condenado virou-se para os soldados que iriam executá-lo e disse: “Puxa, como faz frio neste lugar”. Ao que um dos soldados respondeu: “Sorte tem você, que não precisa fazer o caminho de volta”. Foi assim que essa frase foi parar no meio de Morte e vida severina. Há mais humor negro do que isso?
[sobre ser antecessor dos concretistas] Eu acho que eles fizeram uma coisa inteiramente nova. Talvez haja essa idéia por causa do rigor, da falta de lirismo, da ausência de imagens abstratas. Mas insisto que eles fizeram uma obra original estupenda, não devem nada a mim. Eu apenas posso ter contribuído para que os poetas escrevam mais conscientemente, com maior objetividade, de uma forma mais racional, só isso. De qualquer modo, eu não acredito que a poesia viva hoje uma falta de interesse, nem por parte dos escritores jovens, nem tampouco dos editores. Estes, aliás, sempre se comportaram do mesmo modo em relação à poesia. Eu, por exemplo, paguei a edição do meu primeiro livro; Manuel Bandeira fez isso até os 50 anos. Também não acho que a falta de revistas literárias seja um problema. No fundo, a poesia sempre foi um veículo de poucos, até porque ela é um autêntico laboratório da linguagem. O que é importante para os novos é a discussão, a convivência literária. Isso foi muito frutificante para mim quando eu era jovem e morava no Recife, e pelo que sei é algo que anda cada vez mais raro no Brasil. De todo modo, se você insiste na questão do herdeiro, eu diria que sinto uma extensão do meu trabalho em relação a Augusto de Campos, embora acredite que ele tenha feito, como seus companheiros, uma obra original estupenda.
O clique, já disse, é como um estojo fechando. Nesse momento eu digo: então basta. Isso não tem nada de intuitivo. Vem talvez da exaustão. Eu percebo que o poema está acabado, que já mexi nele de todas as formas possíveis, não há mais como trabalhá-lo. Isto é a conclusão, vem mesmo no fim. Eu não me lembro de nenhum poema, mesmo da fase inicial, que tenha vingado em sua primeira versão. Nunca escrevi um poema, digamos, espontaneamente, compreende? Eu parto de uma imagem, de um assunto, às vezes até de um ritmo. E aí fico trabalhando em cima. Assim, tenho poemas que demoram anos para serem escritos. É o caso de “Tecendo a manhã” . Eu comecei a escrevê-lo em Sevilha, depois fui para Genebra e então para Berna, e só lá eu o terminei. Foram quatro anos. E tudo começou com a idéia de que o canto de um galo anuncia a aurora, mas que esse canto, para se dar de fato o anúncio, precisou se cruzar com outros cantos, formando assim o que me pareceu um tecido. É claro que eu não escrevi e reescrevi o poema todos os dias ao longo daqueles quatro anos. Mas, da idéia até a forma que considerei satisfatória, foi gasto todo esse tempo. O
Eu não dei a contribuição original que os modernistas, Drummond ou os concretistas deram à poesia nacional. Acho que devo muito ao modernismo, como já deixei claro, mas depois de um Drummond, um Murilo, tentei fazer uma poesia construída, sem a espontaneidade do modernismo. 28
[sobre influência jornalística] A influência a que me referi há pouco se deu no plano do culto à palavra escrita. Eu quis ressaltar que isso não apareceu em mim somente através dos livros.
poema ficava lá na gaveta, aí um dia eu pegava, mudava um verso, uma palavra, deixava de lado, voltava uns meses depois e assim foi indo. [sobre Valéry] A pregação da lucidez na vontade de criar – isso me influenciou muito. Reconheço, porém, que ele era um grande poeta. No entanto, morreu blasfemando: “La vie, quelle merde!”, disse, quando soube que o Mauriac queria saber notícias dele para levar ao pai. Foi o cara que eu mais queria ter conhecido e acho que deve ter sido o ser mais inteligente que houve. Eu estive perto de conhecêlo. Valéry viria ao Brasil, e eu estava escalado para acompanhá-lo. Mas ele morreu antes disso.
Para mim o inconsciente não tem nada de metafísico. Ele faz parte do ser humano, como qualquer outra parte do corpo, como um braço ou uma perna. Noutras palavras, eu tenho uma visão materialista do inconsciente. Minha poesia é um esforço de “presentificação”, de “coisificação” da memória. Atualmente, as lembranças têm sido mais freqüentes, embora não mais fortes.
Eu fui influenciado por praticamente todo mundo que li. Mas se tivesse que escolher um nome, eu daria o de um arquiteto: Lincoln Pizzie. Além de grande arquiteto, ele foi pintor. Era cubista. Detestava o surrealismo. Um amigo meu, Antônio Baltazar, me passou alguns livros dele, e essas leituras foram fundamentais para mim.
Como disse Eliot em The waste land: “These fragments I have shored against my ruins”. Assim, a memória são fragmentos trazidos à praia contra minhas ruínas. Como você gosta de ouvir, falo de meu pai, de minha mãe, de meus avós, até do quarto onde nasci. Mas são sempre fragmentos, só fragmentos.
O mundo interior para mim é fonte de tormento, acho uma chatice.
Eu fiz o que podia. Mas insisto: não era uma vocação propriamente dita, como você pode falar em vocação religiosa, por exemplo. E se essa obra vai sobreviver ou não, eu não tenho a menor idéia.
[sobre “Espaço jornal”] Eu tive a idéia do poema vendo umas reproduções cubistas, de Picasso, Braque, trabalhos que usavam colagens com jornal.
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Nascido em Recife, em 1920, João Cabral de Melo Neto viveu até os 10 anos em engenhos de açúcar nos municípios de São Lourenço da Mata e de Moreno. Em viagem ao Rio, conhece Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade e Jorge de Lima em 1940. Dois anos depois, instala-se na cidade, mesmo ano em que publica Pedra do sono, custeado por ele próprio. Em 1945, lança O engenheiro e é aprovado e nomeado para a carreira diplomática, o que lhe permite estabelecer-se em diferentes cidades da Europa, África e Américas. No ano seguinte, casa-se com Stella Maria Barbosa de Oliveira, com quem tem cinco filhos. Na Catalunha, em 1949, conhece o pintor espanhol Joan Miró, sobre quem escreve um ensaio. A editora José Olympio lança em 1956 Duas águas, reunião dos seus livros publicados até então e os inéditos Uma faca só lâmina, Paisagens e figuras e o auto de Natal Morte e vida severina, sua obra mais famosa, encenada no Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Tuca) em 1966, com direção de Silnei Siqueira e música de Chico Buarque. Fica viúvo em 1986 e casa-se com a poeta Marly de Oliveira. É também autor de, entre outros, Psicologia da composição (1947), O cão sem plumas (1950), A educação pela pedra (1966), Auto do frade (1984) e Sevilha andando (1990). João Cabral morre no Rio de Janeiro em 9 de outubro de 1999.
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Raduan Nassar
A volta do filho pródigo ANOS DEPOIS DE TER ABANDONADO A LITERATURA, O AUTOR DE LAVOURA ARCAICA E UM COPO DE CÓLERA FALA DA INFÂNCIA, DA FAMÍLIA, DO BEM, DO MAL E DA VIDA, “O LIVRÃO QUE TODOS TEMOS DIANTE DOS OLHOS” cios visíveis demais, mas são deles as nossas leituras inesquecíveis.
[sobre seu projeto literário] O projeto era escrever, não ia além disso. Dei conta de repente de que gostava de palavras, de que queria mexer com palavras. Não só com a casca delas, mas com a gema também. Achava que isso bastava.
Por uns bons anos, certas leituras me fizeram bem. É do que me lembro. E tem isso: a leitura que mais eu procurava fazer era a do livrão que todos temos diante dos olhos, quero dizer, a vida acontecendo fora dos livros. Dessa leitura da vida não senti exatamente orgulho, embora achasse a leitura mais importante a fazer, como escritor. (...) Agora, apesar da importância que eu punha na leitura do Livrão (Livrão com maiúscula), é certo que muito do meu aprendizado foi feito também em cima de livros, especialmente de uns poucos autores, autores que iam ao encontro das minhas inquietações, mas não me pergunte quais que já não me lembro.
Trabalhei um pouco, com sons, grafias, sintaxes, pontuação, ritmo etc. Se em função disso tudo cheguei às vezes a violentar a semântica de algumas palavras, por outro lado trabalhava também com aquelas coordenadas em função dos significados. Era um trânsito de duas mãos, uma relação dinâmica entre os dois níveis. A casca das palavras, da proposta antidiscursiva, como a laranja que se passa num espremedor, certamente que não excluía resíduos de significados. Fosse então o caso de forjar uma escora, quando muito se poderia falar na estética do bagaço. Não vai aí qualquer conotação pejorativa, é só uma tentativa de adequação vocabular. Entre usar bagaço ou palavras em toda sua acepção possível, cada escritor que fizesse a sua escolha.
Valorizo livros que transmitam a vibração da vida, só que a vida nesses livros, por melhores que sejam, será sempre a vida percebida pelo olhar do outro. Valorizo o relato da experiência do outro e procuro até dialogar com ele sobre sua experiência vivida, mas posso sentir de modo diferente, se eu vier a viver uma experiência correspondente. Seria a vivência de um escritor, e não um olhar de empréstimo, o que poderia imprimir voz própria ao que ele escreve. Só isso.
Acredito que a boa prosa tenha sido sempre poética. Porque existe também a arte que se constrói com significados, e que se nutre no mundo inesgotável da semântica. Parte da crítica talvez tenha diminuído o conceito de estilo na literatura ao identificá-lo só no nível da casca. Kafka, que se valeu de um registro realista de linguagem, tem um estilo forte. Dürrenmatt, a mesma coisa. Alguns dos seus textos nos jogam pro espaço. De Dostoiévski, dizem até que ele escrevia mal em russo. As leituras que nos acompanham a vida toda foram as dos artistas dos significados. Poucas vezes eles trabalharam a frase com artifí-
[sobre o conto “Menina a caminho”] Acho que precisei exorcizar um episódio da minha infância, que nunca tinha contado a ninguém. Eu tinha sete ou oito anos e estava no alto de um pé de laranja, no fundo do nosso quintal, quando ouvi gritos de uma mulher que estava sendo surrada no quintal do vizinho, talvez junto ao fundo da casa dela. Eu ouvia o estalo das chicotadas, mas não 40
conseguia ver nada devido aos pés de mamona que se interpunham, do lado do vizinho. O fato de eu não conseguir ver a cena, nem identificar as pessoas, deve ter me traumatizado mais fundo. Eram só gritos e chicotadas. Eu não sabia naquela idade o que era angústia, mas foi com certeza angústia o que senti, pois desci da laranjeira, entrei em casa e me joguei na cama a tarde inteira.
quem não chore de nostalgia. O que prova que todo mundo tem pelo menos um pezinho bem plantado nela e de onde concluo que a família é ainda um porto seguro. Se o Lavoura passa a idéia de que a vida humana é uma danação sem fim, nesse caso a narrativa não é de se jogar fora. Só que essa danação poderia acontecer no âmbito de uma família patriarcal, em crise ou não. Seja como for, talvez a gente concorde nisso: nenhum grupo, familiar ou social, se organiza sem valores; como de resto, não há valores que não gerem excluídos. Na brecha larga desse desajuste é que o capeta deita e rola.
[sobre Um copo de cólera] Disse que escrevi a narrativa em 15 dias, mas esses 15 dias foram só o tempo de descarga. É que a novela deveria estar em estado de latência na cabeça, e sabe-se lá quanto tempo levou se carregando, ou se nutrindo – de coisas amenas, está claro e se organizando em certos níveis, até que aflorasse à consciência. Então, a inspiração de que você fala só teria a ver com o tempo curto da descarga, um tempo que teria sido tanto mais curto quanto mais trabalhado na cabeça, consciente ou inconscientemente, incluindo-se aí as nossas intuições, ou insights, se você preferir. Pra não falar dos seis meses de 1976 que fiquei em cima do texto.
Acho que uma camaradagem com o Anjo do Mal é um dos pressupostos da nossa suposta liberdade. Impossível deixá-lo de fora quando eu pensava em fazer literatura. Não se pode esquecer que ele é parte do Divino, a parte que justamente promove as mudanças. Seria mais este Anjo que está presente nos meus textos. Nunca escrevi poesia. Não cheguei nem mesmo a ensaiar qualquer coisa. Minhas gavetas têm a tranqueira das gavetas comuns.
No Lavoura arcaica eu cavoquei muito longe. Além disso, a coisa foi meio complicada, mesmo se só levei uns oito meses para escrever, tudo somado. Nos anos 1960, eu andava entusiasmado com o behaviorismo, por conta de um dos cursos de psicologia que eu fazia. Daí que tentava um romance numa linha bem objetiva. Só que em certo capítulo um dos personagens começou a falar em primeira pessoa, numa linguagem atropelada, meio delirante, e onde a família se insinuava como tema. Tudo isso implodia com o meu esqueminha de romance objetivo. Diante do impasse, abandonei o projeto, o que coincidia também com minha ida pro jornal. Quando deixei o jornal alguns anos depois, retomei aqueles originais, mas logo acabei me debruçando em cima daquele capítulo em primeira pessoa, e desprezando todo o resto. Sem hesitar, transformei um velho, que ouvia aquela fala delirante, em irmão mais velho do personagem que falava, e foi aí que começou a surgir o Lavoura.
Enquanto escritor, se há interesse em saber, tive sim três preocupações: desenvolver meu aprendizado da língua, um processo que não acaba nunca; fazer leituras pertinentes de alguns autores, segundo meus critérios; e fazer uma leitura atenta da vida que acontece fora dos livros. Tem mais isso, no que fui radical: não permitir que transformassem minha cabeça numa lata de lixo. Futurismo, cubismo, dadaísmo, surrealismo etc. Confesso que sou o exemplo mais acabado de ignorância de tudo isso, por consciente desinteresse. No bojo desse desinteresse se enunciava qualquer coisa assim: fui posto neste mundo sem ter sido consultado, não esperem que eu vá consultar alguém sobre como fazer, na hora de eu expressar minha rejeição a tudo que está aí. Uma rejeição, aqui entre nós, talvez ingênua, coisas do adolescente que fui.
A família continua sendo um filão e tanto para um escritor de ficção. Não tem quem não se toque, não tem quem não blasfeme contra a família, não tem
Me remetendo só ao fim dos anos 1950, quando eu já tinha mergulhado de cabeça nos meus obje41
tivos literários, havia, pelo menos em São Paulo, uma atmosfera cultural constrangedora, compatível em parte com o que ocorreria logo depois no plano político. Aliás, a prepotência veio a se instalar confortavelmente em muitas áreas, além da literatura. Tudo bem que o Brasil todo já tinha um perfil autoritário bem antes do golpe militar, mas na literatura também? Os jovens escritores que não cediam às propostas da época eram inibidos pela falta de espaço. Se saí inteiro daquele pega pra-capá é que eu não era lá muito sociável, era até um tanto rude, que não viessem pedir pro meu pessegueiro que produzisse pitangas. Daí que ignorei ostensivamente aquelas teorias todas que eram usadas como instrumento de proselitismo, resvalando inclusive no engraçado. Afinal, cruzadas literárias, por favor!
texto que consegue passar a vibração da vida é um texto que vale, na minha opinião. Nesse sentido, entre os antigos, que jamais poderiam imaginar a avalanche de publicações que ocorreria dois milênios mais tarde, há os que escreveram coisas mais interessantes que as vanguardas deste século, levando-se em conta que a espécie não mudou de lá até os nossos dias. Se são mais interessantes, é porque eles tiveram pouca experiência livresca, punham um olhinho nos pergaminhos e um baita Olhão na vida. Por onde ia passando, fui tirando uma lasquinha, de artigo de jornal, fisgava até idéia de um bom papo. Nunca pensei num escritor determinado, como se só nele é que estivesse a mina. É que achava que qualquer autor isolado era sempre muito pequeno perto da complexidade infinita da vida. Mas também não precisavam exagerar nas aproximações que já fizeram. Até dos concretos já me aproximaram, pode?
Suponho que exista em toda obra uma teoria subjacente do autor, podendo ser apreendida pelos que eventualmente se interessem por ela. Mas quando um escritor faz a exposição da sua teoria, para suprir de significados uma poética que não consegue falar por ela mesma, acontece aí um evidente desajuste. A poética pretende ser revolucionária por desestruturar a linguagem convencional, só que seu autor, para explicá-la, acaba se socorrendo da mesma linguagem que usamos pra pedir um copo d’água, o que é o fim da picada. Ou então a teoria tem cumulativamente caráter programático com o claro objetivo de arregimentar seguidores. Mas, nesse caso, o miolo da questão é outro. Seria mais sensato então que esse escritor fundasse um partido político. Sem rodeios.
Dos escritores que diziam cultuar a razão como instrumento asséptico, e até cirúrgico, capaz até de expurgar emocionalismos em seus trabalhos, quantos deles teriam alcançado o nível de reflexão, ou de racionalidade, de um autor de romances passionalíssimos como foi Dostoiévski? Aliás, de que razão estamos falando? Você está pensando nas matemáticas, da razão que atua nas chamadas ciências exatas? Se é nisso, caímos de novo no arremedo. Então, o sujeito, antes de escrever, coloca sobre sua mesa de trabalho a régua, o compasso, o transferidor, o esquadro, a tabelinha de raiz quadrada, tudo isso ao lado do computador, de última geração, claro. Não é nem arremedo, seria um procedimento caricato. Os temas que elegemos, o repertório de palavras que usamos, além de outros componentes da escrita, tudo isso passa pela triagem dos nossos afetos. A literatura não precisa rastrear as ciências exatas, nem vejo como, literatura é outro papo.
Por decisão mesmo, sempre me mantive à distância de toda especulação teorizante ou programática, sobretudo por uma questão de assepsia, quero dizer, para preservar alguma individualidade da minha voz. Não ia arrogância nisso. Se tivesse de me pautar pela leitura de manifestos literários, eu jamais teria escrito uma linha. Na época, já tinha sido decretada a morte do lirismo, e eu não ignorava essa presunção.
Suponho que até mesmo um executivo, por mais enquadrado que seja, tenha um instante em que ele pense em escapar de sua rotina burocrática, ou em que ele perca suas referências, ou mesmo que delire, ou lhe passe até pela cabeça atirar-se pela janela do apartamento. (...) Esses instantes de sen-
Seria um pressuposto falso achar que quem escreve deva fazer necessariamente certas leituras. O pressuposto correto seria a leitura da vida. Todo 42
ligadas ao espaço confinado da mesa. Me sentei poucas vezes para escrever, mas quando fazia isso, ia com muita sede ao pote. Eu vibrava quando chegava perto do que queria, tudo entremeado de idas e vindas.
timento de evasão, de delírio, de angústia exasperada em relação a uma ordem que enquadra e oprime, esses instantes ainda não abandonaram nosso imaginário. Pensando em situações como essas é que tenho dificuldade para entender certos procedimentos transplantados pra literatura, quando se recorre inclusive a cálculos de raiz quadrada, como fez um crítico na sua análise de um romance, tentando transferir pro seu trabalho o prestígio das matemáticas. No fundo, um burocrata como tantos outros, que ajudam a antecipar o dia em que teremos de sair às ruas com um número estampado no peito, restando a clandestinidade como único espaço onde poderemos exercer nosso humanismo agonizante.
[sobre ter parado de escrever] O Hamilton Trevisan dizia que continuamos na vida adulta a recitar “Batatinha quando nasce”, esperando por aplausos. Ele falava isso com muita graça, imitando a menina que puxa as pontas da saia para os lados e curvando o corpo pra frente com falsa modéstia ao agradecer os aplausos. A gente ria muito cada vez que ele imitava a menina, mas todos nós continuávamos a investir na nossa “batatinha”. E há quem diga também que a diferença entre o adulto e a criança está só no tamanho do brinquedo. Comecei a me perguntar num certo momento por que expor em público o meu brinquedo. O que há de lúdico numa atividade você transfere para outra com certa facilidade, desde que você seja sujeito do seu trabalho. E comecei a achar que podemos trabalhar também de modo mais adequado esse nosso lado narcisista. Mas talvez as coisas não sejam tão simples assim.
Os tormentos estavam ligados à falta de espaço para eu escrever. Éramos 12 morando num apartamento de três dormitórios, daí que eu lia ou estudava em bibliotecas. Fui dispor desse espaço só mais tarde, mas antes disso a mesa onde eu pudesse escrever acabou virando uma obsessão. Até que um dia minha situação econômica mudou e cheguei a esta mesa aqui, onde cabia toda minha tranqueira. Minhas alegrias, também, estão mais
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Pindorama
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Fazenda Lagoa do Sino
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Filho de libaneses que se mudam para o Brasil na década de 1920, Raduan nasce em 1935, na cidade de Pindorama, interior de São Paulo. Começa no ensino primário em 1943, e sempre será apoiado para os estudos pelo pai, que decide mudar duas vezes de cidade para dar mais comodidade ao filho: em 1949, para Catanduva, e em 1953, para São Paulo. A partir de 1955, freqüenta na Universidade de São Paulo os cursos de Direito, Letras Clássicas e Filosofia – concluiria somente este em 1963 em razão da preocupação que passa a ter com a literatura. Em 1961, escreve o conto “Menina a caminho”. Dedica-se à criação de coelhos e ao jornalismo em meados dos anos 1960. Conhece em 1973 a professora Heidrun Brückner, que viria a se tornar sua companheira. Seu maior êxito literário, Lavoura arcaica, é publicado em 1975, e recebe prêmios da Academia Brasileira de Letras e o Jabuti. Três anos depois, sai Um copo de cólera, premiado pela Associação Paulista de Críticos de Arte. Os dois romances geraram adaptações cinematográficas: Um copo de cólera (1999) foi dirigido por Aluizio Abranches, sendo protagonizado por Alexandre Borges e Julia Lemmertz; Lavoura arcaica estreou em 2001, com direção de Luiz Fernando Carvalho e os atores Raul Cortez e Selton Mello nos papéis principais. Em entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo, em 1984, Raduan Nassar afirma ter abandonado a literatura – não publicando novos livros desde então.
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Jorge Amado
Mar de histórias O INVENTOR DE GABRIELA NÃO VÊ RUPTURA ENTRE SEUS LIVROS IDENTIFICADOS COM O REGIONALISMO E OS ROMANCES QUE ENCARNAM O IMAGINÁRIO TROPICAL
O personagem é concebido e realizado aos poucos. Chega então uma hora em que ele se impõe e não fica mais na mão do autor. Ele ganha vida real, como uma pessoa mesmo, e é preciso respeitar isso.
Essa ligação da literatura com a realidade, com o tempo em que eu vivia, isto já estava em mim desde o princípio. A gente pensa que essas técnicas de escrever são parecidas. Não são. No caso do romance e do conto, eu digo que são técnicas opostas. Você, para escrever um romance, precisa ter o domínio de um espaço e de um tempo muito mais amplos. No conto acontece o contrário. Para mim é muito mais fácil dominar as grandes extensões do que fazer sínteses, que é o que o conto exige. É por isso que eu me aventurei pouco em outros gêneros. Eu sou mesmo um romancista.
A gente sabe ou não sabe fazer determinadas coisas. Argumento de cinema eu até cheguei a escrever. Mas telenovela eu não saberia. Qualquer adaptação de obra literária é uma violência contra o autor. Eu aceito que meus livros sejam adaptados até porque isso ajuda a difundi-los – as telenovelas têm uma popularidade imensa. Mas é uma violência. Gabriela, por exemplo. Eu parei de ver no terceiro ou quarto capítulo porque eles fizeram o Nacib saber que não era brasileiro. No livro ele nunca descobre isso. Eu me senti ofendido. Foi pior do que estabelecer uma ascendência italiana para ele. Para não passar por essas coisas, agora eu prefiro nem começar a ver as adaptações.
[sobre por que as pessoas têm necessidade de ler romances] Porque elas precisam sair da realidade estreita em que vivem e se lançar numa coisa mais ampla. O romance é uma oportunidade para isso. Eu acho que Dickens é uma leitura que a gente não abandona nunca. Ele está no princípio e no fim.
O romance ainda penetra mais fundo na realidade. De qualquer maneira, eu insisto que, em se tratando de uma adaptação, a telenovela ajuda a difundir o autor e sua obra.
O cinema, você vê, encheu a vida de todos nós. Charles Chaplin, por exemplo, é talvez o homem mais importante deste século [XX ] . Na verdade, ele transcendeu o cinema para transformar-se numa presença insubstituível no mundo atual. Eu nunca tomo notas. Como escrevo sobre aquilo que vivi, aquilo que conheço, uso muito minha memória. Quanto a métodos, sim, eu tento escrever todos os dias quando estou trabalhando num romance. Mas já aconteceu de interromper um livro para escrever outro.
Quando sinto dificuldades, eu interrompo o trabalho, quer dizer, paro de escrever, mas no fundo eu sei que a narrativa continua tentando fluir no meio das dificuldades. Uma hora, a saída aparece e eu então ponho no papel. Todo meu esforço é para que essa dificuldade não transpareça para o leitor. Ele não pode perceber as marcas desse processo. Para o leitor, a narrativa precisa fluir com naturalidade.
Os personagens vão surgindo e assumindo o comando da trama.
Eu acho que na minha obra a questão ficcional sempre predominou em relação à linguagem, que 54
de certo modo tem sido uma coisa secundária, se é que podemos falar assim, dentro do meu trabalho.
[sobre Capitães da areia] Com o tempo, fui acompanhando o agravamento da situação dos nossos meninos, mas na época em que lancei o romance eu não tinha consciência de que ali estava um problema que lamentavelmente se agravaria tanto.
Há uma preocupação, claro, com o leitor, mas isso não quer dizer que o leitor predomine, que o escritor deva obrigatoriamente fazer o que ele deseja. O escritor faz da maneira como acha que deve fazer e o leitor é arrastado a segui-lo.
Não é que o escritor brasileiro contemporâneo seja desatento. O fato é que a realidade nacional hoje é bem mais complexa.
Quando li Caetés, achei que ali estava um grande escritor e que eu precisava conhecê-lo, mostrá-lo para o mundo. Por isso fui até lá e iniciamos uma amizade que durou enquanto ele foi vivo. E minha admiração por Graciliano só tem feito é aumentar depois de sua morte.
Acho que é possível que o escritor brasileiro contemporâneo esteja dando conta da nossa realidade e a gente não esteja percebendo isso neste momento. Leio o que é possível. Aqui chegam muitos livros, muitos originais.
É verdade. Eu me identifico mais com o Alencar – aquela determinação dele em fazer um romance brasileiro; o Machado é mais universal – e volto sempre aos seus livros. Castro Alves é outro que costumo reler. Graciliano, claro. Guimarães Rosa é mais difícil. Não está tão próximo como Graciliano.
Eu evidentemente não posso ler tudo. Quer dizer, acompanho a produção contemporânea no que é possível. Zélia, em geral, é minha primeira leitora. Mas não fico pedindo avaliações nem sugestões a ninguém enquanto estou escrevendo um romance. Assim, se você me pergunta se eu já mudei alguma passagem de algum livro em função da sugestão de alguém eu lhe digo: pelo menos que eu lembre, não.
[sobre Guimarães Rosa] Era algo que a gente precisava ler e conhecer e não tapar a vista e dizer: “Isso não existe”. Foi preciso conhecer, “reconhecer” e discutir o Rosa. Eu acho que a obrigação do escritor é experimentar, buscar novas formas. O que não quer dizer que as formas anteriores sejam desprezíveis e que devam ser abandonadas. Mas a obrigação do autor é buscar novas formas.
A gente não escreve porque quer, escreve porque a idéia se impõe. No caso do Quincas Berro Dágua não foi diferente. Eu não diria que Quincas tenha algo de autobiográfico, embora, como em tudo o que escrevo, haja no livro alguma influência do que eu vivi e conheci.
[sobre experimentação literária] Ela aconteceu o tempo todo, não sei se de modo notável, mas foi acontecendo até o ponto em que se transformou numa afirmação, apesar de, na minha obra, como eu já disse, a linguagem assumir uma posição secundária em comparação com a questão ficcional.
[sobre ser popular] Tem o lado bom, porque você sempre se sente amparado. Agora mesmo, tive esse problema no coração e me chegaram caixas e caixas de remédios do Brasil todo, mandadas por pessoas simples, que só queriam me ajudar. Eu sou muito sensível a isso. Mas, esse reconhecimento também é algo que perturba bastante – isso de saber que qualquer coisa que eu disser ou fizer terá uma conseqüência maior, essa sensação de que os olhos de muita gente estão voltados para você. No final das contas, isto limita muito minha liberdade.
O que acontecia é que eu passava por um lugar, via determinadas coisas e isso me influenciava. Jamais eu me dirigia para uma região com uma proposta sistematizada de coletar dados para um romance. Eu viajava porque achava agradável e não com o propósito de que isso fosse útil para a minha obra. 55
A melhor tradução é aquela feita num idioma que você não entende, aquela que você não pode checar.
Acompanhar a crítica significa que você dá uma importância muito grande à sua obra. Como eu não tenho isso, não leio.
O Guimarães era um homem que tinha a sua obra na mais alta conta, o que era perfeitamente justo e válido. Ele tinha uma dimensão exata do valor da sua obra.
Vejo sim, muitas, muitas hesitações, o tempo todo, Deus me livre de dar a impressão de que faço algo sem hesitar, sem medo de errar. Tenho muito medo de errar e com certeza errei muito. Só que procurei me manter sempre dentro de uma mesma rota.
Eu não sou Guimarães Rosa. Eu tenho essa obra que está aí – gostosa para uns, para outros não. Ela já não é mais de minha propriedade. O Guimarães pertencia àquele grupo de autores que zela a vida toda por sua obra porque sabe que ela tem uma grandeza. Eu, não. No caso dele, eu insisto, era uma coisa mais do que justa. O Rosa é o mais importante, aquele que a gente olha, preza e se sente pequeno diante dele.
Eu continuo acreditando que haja possibilidade de os ideais de igualdade social avançarem. Acho, como disse antes, que há uma continuidade na minha obra, uma marca que eu persegui desde o início. Não existe essa interrupção de uma linha para se tomar um outro rumo, uma outra direção. Para mim, o que existe é uma continuidade.
Lenita não consta da relação das minhas obras completas porque é uma coisa de criança. Nós éramos meninos quando fizemos Lenita. Incluí-lo nas obras completas seria valorizar demais o livro.
Na juventude você não consegue realizar certas coisas. O humor, por exemplo. Para mim, ele faz parte da maturidade de um escritor. O jovem autor quase sempre não consegue atingir o humor com naturalidade. Ele não tem consciência da importância do humor. O escritor novato é “sério demais”. Eu precisei amadurecer para alcançar o humor. Ele é algo tão refinado que você só o domina quando viveu e compreendeu bem as coisas.
Para mim é mais fácil a coisa longa, o breve sempre me pareceu mais difícil. Tenho tendência à digressão – não é uma boa tendência – de modo que é sempre mais difícil para mim a concisão. Romance é como filho. Como escolher um e atestar – este é meu preferido? O que posso dizer é que em Tenda as coisas estão ditas de uma forma mais explícita, só isso.
Existe essa idéia de que eu só escrevi Gabriela porque tinha saído do Partido Comunista. Não é verdade. Eu teria escrito esse romance de qualquer maneira porque, como eu disse, na minha opinião Gabriela representa uma continuidade dentro da minha obra.
Fiz, escrevi, está pronto – acabou-se. Pra mim, é uma coisa que terminou. Por isso é que eu digo que nunca reescreveria qualquer um dos meus livros.
Já na Constituinte, em 1946, eu tinha uma certa liberdade de ação. Lá, por exemplo, eu apresentei muitos projetos que tinham a ver com minha área de atuação, a literatura. Ou seja, eu não estava na Constituinte para me limitar às exigências da bancada comunista. O mesmo acontecia em relação aos meus livros. Eu vou lhe dizer porque eles não se preocupavam com o que eu escrevia: porque aquilo para eles era muito pouco importante. Não queriam ler nada, saber de nada dos meus romances porque, na visão deles, era uma coisa sem importância. Eu, na verdade, me beneficiei disso, dessa pouca importância que eles davam para a literatura.
A crítica é assim. O que é que você vai fazer? Você escreve e está sujeito à crítica. Deve reconhecê-la e aceitá-la, o que não quer dizer que você esteja de acordo com ela. Você pode discordar do que a crítica diz, mas deve compreender que os críticos têm o direito de fazer as colocações que bem entenderem. Quer dizer: se eu escrevo, me exponho à crítica; tenho que aceitá-la, sem que isso signifique que eu esteja achando tudo o que ela diz correto. Em resumo, eu aceito a crítica no sentido de que ela se faça, ela se exerça. 56
cisar quando isto começou a acontecer. A coisa foi indo e, quando eu percebi, não estava mais fazendo coisas laterais – trabalhando em jornal, revista –, estava vivendo dos meus livros.
Gregório de Mattos certamente me influenciou, ele influenciou a Bahia inteira. Vieira também, mas de uma forma diferente. O Vieira teve um tempo determinado e marcado. O Gregório, não. A influência dele estendeu-se e estende-se até hoje, não é?
O escritor brasileiro tem que ouvir o Brasil. Às vezes você vê nos jovens autores nacionais uma preocupação em situar suas histórias em lugares até indeterminados. Mas para o leitor estrangeiro o interessante é justamente quando o autor nacional mostra o Brasil: como ele é e como nós somos. Acho que o escritor brasileiro antes de tudo precisa se interessar pelo Brasil. Não digo que haja exatamente um desinteresse, mas eu percebo uma certa desatenção para com as coisas nacionais.
Eu vou lhe dizer uma coisa – o exílio limita, mas existe nessa situação muita coisa positiva também. A gente não pode dizer apenas: “Eu estive exilado, foi uma desgraça”. É falso. Até mesmo para suportar você acaba procurando tirar vantagens daquela situação. Os meus sucessores estão por aí. O que pode estar acontecendo é que hoje o trabalho deles tem menos impacto do que na minha época. Pode-se até levar a sério as ambições dos novos, mas é evidente que o impacto já não é o mesmo. A literatura brasileira continua produzindo a nossa identidade. Mas o impacto de quando você diz as coisas pela primeira vez é naturalmente maior. E também é possível que ainda falte uma distância histórica para a gente compreender melhor o que está acontecendo hoje.
Acho que a língua portuguesa já deveria ter recebido o Nobel. Num certo sentido, é uma injustiça que isso nunca tenha ocorrido. Eu pessoalmente não faço nenhum movimento para ganhar o prêmio. Vários amigos, numa época, estiveram empenhados no lançamento de minha candidatura. É verdade, sim, que existem lobbies para o Nobel, mas também é verdade que o prêmio nunca foi dado em função deles.
O sincretismo é próprio do Brasil. Aqui existe essa mistura, de modo que não podemos deixar de pensar nela para pensarmos nessa afirmação de diferenças.
A literatura brasileira tem sofrido mesmo por causa do idioma. Isso porque circula a idéia de que se trata de uma língua muito difícil.
Não, eu não tenho crença nenhuma. Será uma felicidade ou uma infelicidade? Eu não sei lhe dizer. Mas a verdade é que não creio.
O problema é que a gente não escreve exatamente porque quer. Busque a verdade. Isso não quer dizer que você acertará na verdade sempre. Pode até não acertar nunca. Mas não deixe de ir atrás dela. E conte as coisas como elas são. Eu sou um contador de histórias, não sou outra coisa. Eu venho e conto a minha história. Aquilo que eu sei e como sei. Isso é o que importa. Não seja demasiado ambicioso. Escrever exige muito do escritor e nem assim ele consegue fazer a coisa como desejaria.
Nem o sentimento de ser ateu eu tenho. Enquanto se trata da vida, é muito boa. Quando se trata da morte, é um peso que você se vê obrigado a carregar. Não gosto muito de pensar nisso. É verdade, durante muito tempo eu fui o único a sobreviver apenas de literatura. Mas eu não sei pre-
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O baiano Jorge Amado nasceu em 1912, em Ferradas, distrito de Itabuna. Após passar a infância e a adolescência entre Ilhéus e Salvador, muda-se para o Rio de Janeiro. Em 1930, sai seu primeiro livro, a novela Lenita, escrita em parceria com Dias da Costa e Edison Carneiro. No ano seguinte, é publicado o primeiro romance, O país do carnaval. Seguem-se livros como Jubiabá, Capitães da areia e Terras do sem fim – que o colocam como figura central do regionalismo dos anos 1930, ao lado de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e José Lins do Rego. Teve intensa atuação política, com várias prisões a partir de meados da década de 1930. Em 1945, é eleito deputado federal pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), mas é cassado três anos depois, quando o registro de seu partido é cancelado. Parte para o exílio voluntário em Paris junto com Zélia Gattai, com quem vivia desde 1945, após a separação de sua primeira esposa, Matilde Garcia Rosa. Entre idas e vindas entre o Brasil e o exterior, conhece Pablo Neruda, Pierre Verger, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, entre outros. Ao longo da vida, escreve para vários jornais e revistas e é homenageado com alguns dos mais representativos prêmios literários internacionais. Romances como Gabriela, cravo e canela e Tenda dos milagres consagram o imaginário do Brasil tropical, marcado pela miscigenação racial e pelo sincretismo religioso. Sua obra foi traduzida em mais de 50 países e, no Brasil, adaptada para filmes, novelas e minisséries de TV. O escritor morreu em 6 de agosto de 2001, em Salvador.
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Rachel de Queiroz
Rachel, Rachéis ENTRE O ROMANCE E A CRÔNICA, A AUTORA CEARENSE PRESTA MAIOR TRIBUTO AO JORNALISMO. “MINHAS MULHERES SÃO DANADAS, NÃO SÃO?”, INDAGA A CRIADORA DE MARIA MOURA. E SUGERE: “TALVEZ EU TENHA UMA LINGUAGEM MASCULINA” Eu nasci numa casa de intelectuais, onde todo mundo lia muito. E por isso, naturalmente, eu comecei a ler também. Sempre conto o que se passou um dia, quando eu tinha 12 anos e estudava num colégio de freiras. Eu estava lendo em francês um desses livrinhos de moça, que contava a história de uma jovem que vê dois namorados se beijando e fica com aquele homem na cabeça; minha mãe se aproximou e disse: “Minha filha, não fique lendo esses livros que só falam de sexo. Venha cá que vou lhe dar coisa melhor”. E me botou na mão A cidade e as serras, de Eça de Queiroz. Foi assim que teve início, de fato, minha educação literária. Quando comecei a escrever em jornal, aos 16 anos de idade, eu já tinha uma enorme familiaridade com esse universo da literatura. Agora, O quinze foi escrito em circunstâncias especiais. Eu estava doente, uma congestão pulmonar, e minha mãe se apavorou. Me impôs um regime horrível, deitar às nove da noite e acordar bem cedo. Nós morávamos numa casa de campo, sem luz elétrica. Um lampião ficava aceso a noite inteira. Eu não tinha sono às nove horas. Resolvi então aproveitar a luz e, deitada de bruços, comecei a escrever, a lápis, num caderno, o romance.
lido antes. O Zé Américo não me perdoaria se soubesse que eu não tinha lido A bagaceira antes de escrever O quinze. Na época, eu tinha fixação pela seca porque este é um assunto permanente no Nordeste. O que eu já tinha lido a esse respeito eram aqueles livros do Rodolfo Teófilo e do Domingos Olímpio, aquela coisa pesada da escola realista de Zola – porcos comendo recém-nascidos abandonados, sofrimentos, enfim, esse tipo de visão. Eu queria fazer um romance mais light – não se usava, claro, este termo na época – sem ficar toda hora falando de gente morrendo de fome. Eu detesto os exageros sensacionalistas. Na época, aliás, bem antes de mim, já havia muitas mulheres escrevendo. E em Fortaleza tínhamos, sim, um ambiente intelectual. Como eu já trabalhava em jornal, conforme disse antes, tudo me parecia muito natural. Nos meios intelectuais, eu, Graciliano e alguns outros somos considerados clássicos da seca. Já o povo em geral, não sei. Nas escolas, onde O quinze é adotado, os meninos detestam. No colégio, tive que ler Os sertões, de Euclides da Cunha, e detestava. Com relação ao homem do Nordeste, eu acho que se romantiza muito o problema, mas é verdade que, se ele não for resistente, não sobrevive à violência da natureza na região. Mesmo nos bons anos, os anos em que dá aquela “chuva de caju” – a chuva para os cajueiros florirem, em outubro/novembro –, mesmo neles a seca está sempre na mente do nordestino.
Quando escrevi O quinze eu já era profissional – trabalhava em jornal e tinha feito até um romancinho em folhetim. Na minha casa, como eu disse, só se lia coisa boa, de modo que eu não ousaria escrever bobagem – sentimentalismos, essas coisas – porque sabia que teria a censura severa de meus familiares todos. Muita gente pensa que eu fui influenciada pelo livro de José Américo [de Almeida]. Como éramos muito amigos, deixei que ele pensasse que eu tinha
Eu sou a pessoa menos épica do mundo. Meus livros sempre foram muito condensados. 68
Acho que cada livro tem sua época e o seu público. É o livro que faz o público. O público não tem deveres para conosco. A gente tem que fazer o que o público quer, o que o momento literário quer. Se o romance do Nordeste não tem mais essa importância que o João [Cabral de Melo Neto] achava que deveria ter, é porque a gente é fraquinho mesmo.
Eu uso cenários típicos, discuto problemas, mas realmente não sou a regionalista típica. O Ariano [Suassuna] tem aquilo incorporado. Jorge [Amado] também, mas é diferente. O Ariano é quase um médium da tradição. Eu sou um produto da minha terra, não é? Não teria como ser diferente. E falo a linguagem que o povo fala na minha região; nesse sentido, estou longe daquele regionalismo fabricado que hoje já contamina até o cordel. Eu me louvo de ser espontânea.
Não podemos nos esquecer que o Brasil rural era o Brasil intelectual. De certo modo, ainda somos relíquia do Brasil Império. Os livros urbanos precisaram de um Machado de Assis, que era mulato e pobre. Mas acho que o “Guimarães Rosa da cidade” ainda pode aparecer. Vamos esperar, embora eu pense que a comunicação eletrônica tenha diminuído muito a força do livro.
Quando escrevi O quinze, eu não tinha ideologia. Depois, houve uma fase em que quase todos nós, escritores brasileiros, vivemos – aquele período de literatura militante. Não foi, portanto, uma característica do meu trabalho exclusivamente. O que aconteceu é que eu me “liberei” mais cedo, assim que pude, depois que o Partido Comunista, no qual eu militava, quis mudar João Miguel. Não aceitei e rompi com o PC.
A crítica sempre foi muito benevolente comigo. Hoje eu sinto que praticamente não existe mais aquela figura do grande crítico, que pontificava no jornal, cujos artigos eram quase sentenças. Sempre que posso, eu leio a crítica, sim, e não só por causa da minha obra, mas também para me orientar sobre os novos que eu não conheço. Quanto a influências, eu digo a você que tenho um coração muito humilde. Quando publiquei Maria Moura, a primeira crítica que li foi na Veja e falava muito mal do livro. Fiquei pensando no que o homem tinha escrito e achei que ele tinha toda a razão. É verdade que a crítica falava que o romance ficaria muito bem na televisão e, dois anos depois, a minissérie Memorial de Maria Moura foi um sucesso. Mas eu só via o lado negativo do artigo. Fiquei arrasada uma semana.
Poesia para mim é quase uma religião, é um gênero sagrado, inacessível, e tenho poucos santos dentro dele. O Bandeira é um. Eu o conheci quando vim pela primeira vez ao Rio e fomos amigos até a morte dele. Eu me dava muito bem com o Carlos [Drummond de Andrade], mas não tinha aquela intimidade, aquele carinho que sempre marcou minha relação com Bandeira. [sobre escrever poesia] Tentei, quando comecei. Era tão ruim que eu escondia, mas eu sempre li muita poesia. Até hoje.
Eu acredito numa escrita feminina, sim. O mundo da mulher não é o mundo masculino. As marcas da escrita feminina estariam principalmente na linguagem. O meu caso é diferente: talvez eu tenha uma linguagem masculina porque venho do jornal. Quando eu comecei a escrever, a literatura brasileira ainda se dividia entre o estilo açucarado das mocinhas e a literatura masculina. Hoje o estilo de muitas escritoras brasileiras se impõe. Clarice, por exemplo. Ela foi a maior de todas nós – e era absolutamente feminina.
De vez em quando a gente precisa voltar ao Machado, não é? Faz parte. Como eu já disse, devo ter sido muito influenciada mesmo pela literatura. De outras áreas, talvez eu pudesse citar a História, principalmente da Idade Média. Eu tenho dito que me sinto mais jornalista do que ficcionista. Sempre. Na verdade, minha profissão é esta: jornalista. Há 50 e tantos anos que todas as semanas eu escrevo pelo menos um artigo.
Minhas mulheres são danadas, não são? Talvez seja ressentimento do que não sou e gostaria de ser. 69
todas. Você precisa entregar não sei quantos capítulos por semana, os capítulos são enormes – é uma coisa terrível, uma trabalheira só. Sou um pouco preguiçosa. Meus artigos, por exemplo, só escrevo na última hora. Além do mais, a televisão nunca me seduziu porque sempre trabalhei sozinha, e a telenovela não deixa de ser um trabalho coletivo.
Eu não sou uma romancista nata. Os meus romances é que foram maneiras de eu exercitar meu oficio, o jornalismo. Eu sou muito otimista. Gosto muito do Brasil e dos brasileiros. Depois de tanto tempo de Rio de Janeiro, eu poderia dizer que sou carioca. Mas quando vou a São Paulo, me identifico com os paulistas. Goiás era a terra do meu segundo marido, portanto me sinto goiana também. E assim por diante. Em termos de Brasil, eu sou parcial. Não digo que seja patriota, mas não fale mal do Brasil, ou então estará me magoando.
Em geral escrevo à noite. Como reescrevo muitas vezes, acabo ficando enjoada do livro. No final de Maria Moura, eu não agüentava mais. Mas a Moura foi escrita mais de dia, aqui e no Ceará. [sobre quando um romance está pronto] Eu fico enjoada do livro, mas nunca acho que ele está pronto. Quem acha isso são os meus editores. Eles sempre me arrebataram os romances. Eles se juntam a Maria Luiza e me tomam o livro. Só com O quinze não aconteceu isso.
De um modo geral, eu não tenho prazer ao escrever. Eu escrevo porque vivo disso. [sobre como surge um romance] Uma determinada história começa a tomar conta dos meus pensamentos. A Moura, por exemplo, que é o meu romance mais recente. Eu estava fazendo um trabalho com minha irmã Maria Luiza sobre a seca do Nordeste. Fomos procurar livros antigos e descobrimos que a primeira grande seca registrada oficialmente aconteceu em Pernambuco em 1602. Nessa seca, uma mulher chamada Maria de Oliveira tornou-se conhecida, porque, juntamente com os filhos e uns cabras, saiu assaltando fazendas. Pois eu fiquei com essa mulher na cabeça. Uma mulher que saía com os filhos e um bando de homens assaltando fazendas – era a “Lampiona” da época, pensei. Ao mesmo tempo, eu sempre admirei muito a rainha Elisabeth I da Inglaterra, que morreu no início do século XVII; li várias biografias dela, a ponto de me sentir uma espécie de “amiga íntima”, dessas que conhecem todos os pensamentos e sofrimentos. A certa altura, eu pensei: “Essas mulheres se parecem de algum modo”. E comecei a misturar as duas. Estava pronto o esqueleto do romance. A partir daí fui desenvolvendo os episódios.
Revisão eu já não faço há tempos. Quando os editores me passavam provas para revisar, eu devolvia com um caminhão de alterações. Um dia, José Olympio disse: “Eu passei uma lei nesta casa – não se dá mais prova para Rachel de Queiroz. Sai muito caro. Ela fica mudando tudo”. A instrução foi passada para a Siciliano, minha atual editora, de modo que eu não vejo mais uma prova. Agora, depois que o livro foi publicado, não leio mais. Estou com uma máquina elétrica. Mas ainda corrijo à mão. Quem passa tudo para o computador é minha secretária, Letícia. Ela entende tudo, está ligada até na internet. Eu nem entendo direito o que é internet. Eu acho que esse negócio de inspiração é um pouco genético. O Graciliano Ramos saiu de Alagoas mas nunca fez obra que não fosse alagoana. No caso da crônica é diferente. Mas a ficção funciona assim, você não sai da sua origem, não importa onde você esteja.
O galo de ouro [folhetim dos anos 1950], eu escrevi para pagar uma viagem à Europa. Eu e meu marido queríamos viajar, tínhamos dinheiro para as passagens, mas precisávamos de mais, para as despesas. Quando veio a proposta de O Cruzeiro, eu não pensei duas vezes. Agora, escrever novela para a TV eu nunca aceitaria. Recebi várias propostas e recusei
Eu sou uma pessoa muito humilde. Eu não faço grande uso de mim mesma, e, portanto, da minha chamada “obra”. Mas numa coisa eu posso lhe garantir que estou tranqüila: percorra todo o meu trabalho, desde a adolescência, quando comecei a 70
trabalhar em jornal e você nunca encontrará uma só palavra contra a liberdade, contra os direitos humanos, contra a igualdade racial. Quer dizer, minha folha de serviço não é brilhante, mas é limpa.
crescer e você tem que expelir. Eu espero esse tempo, espero a concepção com naturalidade. Essas diferenças que você fala estão ligadas a isso. No começo eu tinha aquele entusiasmo, ou melhor, aquele exibicionismo de principiante – daí porque meus primeiros quatro romances saíram num espaço de tempo relativamente curto (de 1930 a 1939). Depois, só fui publicar Dôra, Doralina em 1975. É uma longa gestação. Neste meio tempo, como se sabe, fiz O galo de ouro, mas em forma de folhetim na revista O Cruzeiro. Não é a mesma coisa.
Eu gostaria de acreditar no ser humano, mas não acredito. [sobre a eficácia da literatura na transformação das pessoas] Eu acho que [não há] nenhuma. Quando eu era nova, acreditava nisso. Mas deixei de acreditar. No caso da crônica, eu domino melhor. Ficção é aquele transe. Dostoiévski, por exemplo, se sentia assim, possuído, quando escrevia. Guardadas as distâncias entre o meu trabalho e o de Dostoiévski, eu também me sinto como ele. Às vezes, à noite, eu acordo com a frase de um personagem na cabeça e tenho que levantar para anotar. É uma coisa obsessiva.
Eu não sou madrinha, sou apenas a mais velha, e velhice não é sinal de sabedoria. Pelo contrário. À medida que você vai envelhecendo, vai acompanhando menos. Eu não dou conselhos aos jovens. Eu leio o que eles escrevem, louvo o que deve ser louvado, mas não dou conselho. É preciso sempre ter muito cuidado, para não ferir vaidades; você sabe, todo artista é um pouco doente nesse sentido. Se não é uma pré-condição, pelo menos é uma constante. (...) Não gosto de dar conselho porque acho que cada um deve escrever o que quiser, sempre com a maior liberdade possível, sem se ater a isso ou aquilo – do contrário perderá a espontaneidade que a obra de arte deve ter. Se o sujeito é tão impregnado de Brasil que não consegue escrever sobre outra coisa, vá escrever sobre o Brasil. Se estiver interessado em outro tema, vá tratar dele. Se o artista se inspira num determinado assunto, então ele fará arte; se por acaso se impuser um tema, nunca dará certo. Sua obra vai sair como aquelas estátuas em série que a gente vê por aí: todas com a mãozinha na mesma posição.
Outro dia uma pessoa escreveu que os meus romances sempre acabam em trânsito. É verdade: no Quinze, eles vão tomar o navio; nas Três marias, tem o trem e assim por diante. Mas, em relação à proposta do João Cabral [de Melo Neto] – ele está me provocando –, eu respondo que não acredito nesse negócio de continuação. Não sei qual livro que o Zé Lins [do Rego] resolveu continuar e, a certa altura, ele mesmo dizia: “Não estou com a mesma força”. Eu digo sempre que romance é como gravidez. Aquilo entra em você e daqui a pouco começa a
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Rachel de Queiroz nasceu em 1910, em Fortaleza, Ceará. Sua alfabetização inicial se dá em família, com os cuidados do pai. Aos 5 anos, conseguiu ler Ubirajara, de José de Alencar. Sua formação escolar compreende o curso normal, concluído em 1925. Nesse período, a leitura entusiasmada dos clássicos e das novidades literárias nacionais é estimulada pela mãe. Em 1927, começa a colaborar para o jornal O Ceará, em que escreve um folhetim e organiza a página de literatura. Publica O quinze em 1930 e é elogiada por Augusto Frederico Schmidt e Mário de Andrade. Lança João Miguel em 1932, no mesmo ano em que se casa com o poeta bissexto José Auto da Cruz Oliveira. Trava amizade com os escritores Graciliano Ramos, Jorge de Lima e José Lins do Rego. Separa-se em 1939 e, no ano seguinte, passa a viver com Oyama de Macedo, seu primo. Começa a colaborar mais intensamente com a imprensa na década de 1940, com exclusividade para a revista O Cruzeiro entre 1944 e 1975. Em 1977, é a primeira mulher eleita para a Academia Brasileira de Letras. É autora de, entre outros, Caminho das pedras (1937), As três Marias (1939), A beata Maria do Egito (1958), O menino mágico (1969), Dôra, Doralina (1975), O galo de ouro (1985) e Memorial de Maria Moura (1992). Morreu em 4 de novembro de 2003, no Rio de Janeiro.
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Lygia Fagundes Telles
A invenção da memória DA INFÂNCIA, DAS LEITURAS, DO OFÍCIO E DOS AFETOS SEGUNDO A AUTORA QUE, POR MEIO DA PALAVRA, BUSCA “CONSEGUIR O AMOR DO PRÓXIMO” Meu pai não se importava com a realidade, e eu também não.
Eu sempre digo que comecei a escrever antes de saber escrever. Não é charminho de escritor, não. Falo assim porque antes de ser alfabetizada eu já contava histórias. Eram histórias que eu ouvia das minhas pajens. Essas pajens eram moças desgarradas que minha mãe arrebanhava. Eu gostava disso, uma coisa meio medieval, de princesa, ter pajem. Pois bem: eu comecei contando para as outras crianças as histórias que ouvia das pajens. Mas sempre mudava um pouco o que tinha escutado e, quando repetia, mudava de novo. A garotada protestava: “Não era assim! A caveira tinha outro nome!” (caveira porque eu contava sempre histórias de terror). Quando eu finalmente aprendi a escrever, achei que era importante “guardar” as histórias e aí passei a anotar tudo num caderno.
Morando em São Paulo, eu comecei a ler mais – livros, revistas – e comecei a perceber que aquelas histórias de horror que eu adorava na infância estavam fora de moda. Então fui mudando meus temas. Quando lancei o livro, como disse, eu o considerava o melhor do mundo. Mas isso durou pouco. Quando entrei na faculdade de Direito, eu comecei a não depender mais dele [de Porão e sobrado]. Fui desenvolvendo uma autocrítica muito forte, em relação ao meu trabalho e ao de outros autores. Por isso, não podia mais aceitar meu livro de estréia. A minha indisposição em relação a Porão e sobrado e Praia viva, a minha indisposição, eu dizia – essa é a palavra – decorre do seguinte: vivemos no Brasil, um país do Terceiro Mundo. Temos problemas demais. Fico aflita só de pensar nas novas gerações lendo esses meus livros que não têm importância. Eu não quero que os jovens percam tempo com eles. Quero que conheçam o melhor de mim mesma, o melhor que eu pude fazer, dentro das minhas possibilidades.
Por que organizar e publicar um livro? Bem, quando mudamos para São Paulo e eu entrei no Instituto Caetano de Campos, comecei a escrever os contos que depois reuniria em Porão e sobrado. Num determinado momento, eu me dei conta de que as pessoas que escreviam tinham livros publicados – e eu quis ter o meu. Quando eu estava no ginásio, lia minhas histórias para o meu pai. Ele gostava de dizer “está bom, está muito bom; o nome da personagem é que talvez você devesse mudar”. Eu ficava radiante com essa atenção dele. Eu me dava muito bem com meu pai. Ele era um sonhador. Gostava de jogar cartas e roleta e sempre me levava junto. Era um homem bonito, inteligentíssimo. Tinha uma especial predileção pelos escritores românticos. Nós éramos muito ligados. Eu me achava parecida com ele nessa coisa de sonhar, um certo desgarramento de tudo, eu também era uma desgarrada.
É verdade que desde o início eu já sei se vai sair um conto ou um romance. Escrevo primeiro tudo na cabeça. Não sou de ficar tomando notas. Eu escrevo na cabeça e deixo a coisa lá, amadurecendo, como uma fruta. Quando vou para o papel já tenho o trabalho pronto. Não tenho esta facilidade com a crônica, por exemplo. Eu não consigo escrever uma crônica direito. Logo começo a pôr elementos de ficção, de repente vira um conto. 82
Quando estou escrevendo um romance, eu tenho a impressão de que nunca fiz outra coisa na vida. Eu fico tão apaixonada pelo gênero que chego a achar que nunca mais vou escrever um conto. Os personagens de um romance exigem muito. A certa altura, eu chego a confundi-los com seres da vida real. Nesse ponto, eu e as personagens já formamos uma só matéria. Isso continua a ser um mistério para mim. Quando terminei As meninas, comecei a chorar – é que tinha acabado ali uma convivência encantadora, que me fazia feliz. Ao terminar o livro, me senti solitária.
mória é invenção. Como acredito que ética e estética sejam a mesma coisa.
Eu percebo que está começando a nascer um conto quando, ao analisar as personagens, vejo que elas são, de certo modo, limitadas. Elas têm que viver aquele instante com toda a força e a vitalidade que eu puder dar, porque nenhuma delas vai durar. Isso quer dizer que, com elas, eu preciso seduzir o leitor num tempo mínimo. Eu não vou ter a noite inteira para isso, com uísque, caviar, entende? Preciso ser rápida, infalível. O conto é, portanto, uma forma arrebatadora de sedução. É como um condenado à morte, que precisa aproveitar a última refeição, a última música, o último desejo, o último tudo.
Eu gosto muito de Edgar Allan Poe, dos contos de James Joyce, de Oscar Wilde, Henry James, D.H. Lawrence. É difícil lembrar de todos. Jorge Luis Borges, William Faulkner e, claro, de Machado de Assis.
A estética e a ética para mim não se separam. Eu acho péssimo, por exemplo, o paraíso dos nudistas. Mas não é um problema moral; é estético. Eu não quero ver aquela gente assim. Eu gosto da beleza. Eu não quero ver corpos deformados. Se estão deformados, devem ser escondidos. Não é por moral, portanto, mas motivos estéticos que eu não quero vê-los.
Eu li muito os nossos românticos – Fagundes Varela, Álvares de Azevedo. Aquela fixação por cemitérios, taças feitas de crânio, tavernas, embriaguês, a vontade de sair do cotidiano. Eu mesma, morando em pensão, levando uma vida pobre – eu tinha vontade de escapar para outra dimensão, para um mundo importante, um mundo fabuloso que eu adivinhava lá fora. Eu acho o nosso Romantismo da maior importância. Falei de Álvares de Azevedo. Ele é pouco conhecido; o Castro Alves ficou mais famoso do que todos os outros. Mas a lírica de Álvares de Azevedo é uma beleza, assim como a de Gonçalves Dias.
Não acho que um [gênero] tenha mais potencial que o outro. Se estou fazendo um conto, eu não acho nem mais fácil nem mais difícil que o romance e vice-versa. Os gêneros vivem dentro da vida em que foram criados.
Sim, tenho prazer em ler, mas os outros não me despertam vontade de escrever, não me estimulam. A vontade está em mim, e, parece, de uma forma independente das leituras que faço.
Como [o conto] se trata de um gênero mais rápido, surgem muitos falsos talentos, muitas falsas vocações. Os falsos escritores pegam o conto, como também pegam a poesia, porque acham mais fácil. Daí a desmoralização. O Mário de Andrade foi um pouco culpado por essa idéia de que o conto é um gênero fácil; isso porque ele disse que conto seria tudo aquilo que o autor considerasse conto. Não é bem assim. O resultado é essa avalanche de falsas vocações.
Quando eu era adolescente, um dia comecei a chorar porque tinha nascido no Brasil. Eu pensava: “Meu Deus, mal comecei a escrever e já estou sepultada, numa língua morta? Por que não nasci em outro país? Por que não nasci na França?” Eu estava com o Primeiro Mundo na cabeça. Depois, aos poucos, fui me comovendo de estar aqui e de escrever em português. Não era ufanismo: era consciência! Pois foi isso que tentei trazer para minha obra: a minha consciência do Brasil, escrita nessa língua que é nossa.
Eu tentei fazer poesia quando estava na faculdade de Direito. Mas logo percebi que era apenas um apelo de juventude. [sobre invenção e memória] Dentro da minha natureza mais profunda estou convencida de que me83
Tenho trabalhado ultimamente na revisão dos meus livros para novas edições e outro dia, no meio dessa tarefa, eu me comovi. Eu percebi que o que venho escrevendo nesses anos todos jamais poderia ter sido colocado no papel por uma autora portuguesa, inglesa ou francesa. Veja o caso de As meninas, por exemplo. Está lá, cravado nas minhas personagens, um instante da maior importância para a História do Brasil. É o registro, é o meu testemunho de uma época.
Ser atento à forma não significa ser um formalista. Se apenas a paixão, o derramamento, fosse suficiente, nenhum escritor precisaria ler o outro. E eu digo: tem que saber o que os outros fizeram. Tem que ler os outros. Tem que ler Camões, Fernando Pessoa, Gonçalves Dias, Drummond. Os grandes escritores, sem exceção, todos eles, foram atentíssimos aos outros grandes escritores – ao estilo deles, à linguagem deles. Machado, por exemplo. Conhecia tudo. Para começar, lia vários idiomas. O Machado não tinha aquela coisa de superficialidade, que é típica, infelizmente, do brasileiro.
Eu não sou anormal. Gosto que gostem de mim. Se minha obra não agrada a um ou a outro, muito bem – adeus. Se escrevo, eu estendo para você uma ponte, seja você um crítico ou um leitor comum. Nessa hora, é como se eu dissesse: “Venha”. A palavra é uma ponte através da qual eu tento conseguir o amor do próximo. Eu sempre digo que mais importante do que a compreensão é o amor. Eu prefiro ser amada a ser compreendida. A compreensão é muito difícil.
[sobre como organiza um volume de contos] Essa ordenação, ao menos para mim, faz parte da própria criação literária. Eu dou uma atenção especial a essa etapa do processo. Se a seqüência for malfeita, pode prejudicar a leitura. No fundo, você edita o livro antes de entregá-lo ao editor. Fazer isso, aliás, também se parece com um trabalho de crítico. Eu concordo que Ciranda de pedra tenha coisas demais. O livro é muito carregado (hoje eu cortaria várias passagens). Passados todos esses anos, eu vejo isso como resultado de uma certa aflição, de uma ansiedade que me faz lembrar a jovem que vai a um baile e começa a dançar sem parar porque não quer perder uma só música. Mas é verdade também que naquele momento eu tinha acumulado muitas experiências duras, difíceis. Aí saiu aquele turbilhão. Vejam que As meninas, apesar do tema, já é mais calmo.
Eu não tenho uma rotina literária. Mas gosto de me preparar para escrever. Eu não escrevo de qualquer jeito – de camisola, de pijama. Eu gosto de me arrumar! Escrever é o meu ofício e quero estar arrumada para ele. Dentes escovados, banho tomado, uma roupa, pronto: agora vou trabalhar. Mas é só isso. Nada de horários, jornada de trabalho. Tanto posso escrever pela manhã, quanto durante a tarde, à noite ou de madrugada, por uma ou muitas horas. Como qualquer ofício, escrever exige essa seriedade, exige competência e amor. Só competência não é suficiente. Eu posso ter 200 diplomas, mas mesmo que eu seja um marceneiro, se fizer a minha mesa sem amor, ela vai entortar. E o amor sozinho também não dá conta. O amor é a entrega, a doação, a paixão – e a paixão é a vocação. Se você for explicar a paixão, nunca conseguirá, ela é indefinível. Pois bem: para escrever é preciso ter a competência, que junta percepção e paciência, e o amor, aquela entrega total que significa convivência. E eu insisto: isso vale para qualquer ofício. Se o marceneiro, por exemplo, não convive com a madeira, não a alisa, não a sente enquanto faz a sua mesa, o seu trabalho será prejudicado, por mais técnica que ele possua. E o contrário também é verdadeiro.
[sobre Ciranda de pedra] O tema mais forte é mesmo o da rejeição. Eu vejo a rejeição como um dos maiores sofrimentos da condição humana. A personagem central é uma rejeitada. Sua família está destruída, um paraíso perdido, entende? Não penso em nenhum leitor quando estou escrevendo – nem homem nem mulher, nem rico nem pobre. Nessa hora, eu fico mesmo sozinha com minhas personagens. Pesquisa bibliográfica eu não faço, nunca fiz. Mas, por exemplo – desde pequena eu gosto de falar com exemplos –, quando precisei saber como era o ambiente em que trabalhava uma taxi 84
rar cair. Eu espero com paciência e felizmente tenho conseguido perceber a hora da colheita.
girl, fui conversar com meus irmãos. Eles eram muito boêmios e freqüentavam cabarés onde existiam as tais dançarinas de aluguel. Eu me lembro que um deles começou a me explicar e o outro, brincando, disse: “Ele sabe disso porque, sendo tão feio, nunca iria encontrar com quem dançar de graça. Precisa pagar.”
Acho que a literatura pode ter um efeito catártico, para quem escreve e para quem lê. Com relação à terapia, devo dizer a vocês que por três vezes eu tentei me submeter à análise. Mas sempre ficava com a sensação de que estava dizendo ou ouvindo coisas que eu já sabia. E, nesse caso, seria melhor procurar um amigo.
A Ana Clara, de As meninas (...), não queria morrer. Protestou. Era como se me dissesse: “Eu ainda tenho muito o que dizer, não posso morrer agora”. Mas eu precisava da cena dela morta, por overdose; não pude salvá-la. Às vezes, mesmo depois de mortas, algumas personagens voltam, mascaradas. Ana Clara já tentou. Como muitas pessoas, es sas per so na gens que rem uma vi da suplementar, uma vida além da morte. Com Clarice Lispector também acontecia de algumas personagens voltarem disfarçadas, trazendo no rosto máscaras que ela logo arrancava.
O que existe são mulheres e homens que escrevem bem e mulheres e homens que escrevem mal. A única distinção que faço é em relação à qualidade dos textos. Mas é claro que mulheres e homens têm vivências diferentes, e isso de algum modo vai aparecer na literatura. Ciranda de pedra é um romance que não poderia ter sido escrito por um homem. Se fosse, seria diferente, compreende? [a literatura] pode melhorar [as pessoas], sim. Pode desviar do vício, da loucura. Pode estancar a loucura por meio do sonho. Eu tenho um impulso, que talvez seja um impulso cristão, pelo próximo. Eu tenho vontade de servir ao próximo, verdadeiramente. E a literatura me proporciona isso. E o que eu faço, acredito, com o máximo da competência que me é possível e com amor, com paixão, acaba chegando, de algum modo, ao outro.
Às vezes as histórias estão verdes e aí é preciso guardá-las na gaveta, como frutas. Quando eu era criança, guardava muita fruta na gaveta para amadurecer. Pois bem: as histórias ficam lá, guardadas numa gaveta da minha cabeça, e, de repente, percebo que amadureceram. Se estivessem numa árvore, seria aquela hora de pôr a mão embaixo e espe-
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Lygia Fagundes Telles nasceu em 1923, em São Paulo. Vive os primeiros anos da infância em cidades do interior do Estado, em razão do trabalho do pai, delegado e promotor público. Habitua-se a ouvir histórias e a inventar as próprias narrativas para contar em rodas domésticas. Quando alfabetizada, em 1931, começa a escrever seus primeiros contos. Financiada pelo pai, em 1938 publica Porão e sobrado, reunião de 12 contos. Em São Paulo, ingressa em 1940 na Escola Superior de Educação Física e, no ano seguinte, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco – dois cursos que concluiria. Seu segundo livro de contos, Praia viva, é lançado em 1944. Casa-se em 1950 com o jurista Goffredo da Silva Telles Jr., com quem tem seu único filho, e separa-se em 1960. Três anos depois, passa a viver com o escritor e crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, com quem escreveria Capitu, roteiro baseado no romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Em 1961, começa a trabalhar como procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo. Seu terceiro romance, As meninas, sai em 1973 e conquista os prêmios literários mais importantes do país. Eleita para a Academia Brasileira de Letras em 1982, é autora de Ciranda de pedra, Verão no aquário, Antes do baile verde e Seminário dos ratos, entre outros livros de ficção.
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Ferreira Gullar
Todas as vozes COMO O POLÍGRAFO QUE NUNCA PRETENDEU REVOLUCIONAR A LITERATURA CRIOU UTOPIAS ESTÉTICAS PARA SUPERAR IMPASSES EXISTENCIAIS, NUMA VIAGEM DENSA AO CERNE DA POESIA
Minha formação era parnasiana. Eu conhecia os poetas incluídos no final da Gramática expositiva, de Eduardo Carlos Pereira. Tinha Camões, Bocage, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Castro Alves e, claro, os parnasianos Olavo Bilac e Raimundo Corrêa. Aprendi então a me dar muito bem com o decassílabo e o alexandrino. Eu lia os poemas e decorava. [...] Eu estava tão familiarizado com o parnasianismo que chegava a falar em decassílabos.
dela. Eu tinha horror de virar adulto. Quando minha mãe me deu a primeira cueca, entrei em crise. Não queria entrar no mundo dos adultos. Só que comecei a ler, estudar e um dia vi uma foto do Vinicius tocando violão e pensei que seria muito bom poder ganhar a vida fazendo algo assim. Como eu tinha me formado lendo poesia parnasiana, lidando com métricas, sonetos e rimas, minha visão de mundo era parnasiana. Hoje eu entendo que você apreende o mundo de acordo com o seu instrumento de expressão. Meu instrumento era a linguagem parnasiana, era assim que eu traduzia a minha percepção da realidade. Eu posso sentir um cheiro, mas, se a minha forma de expressão é parnasiana, a maneira de exprimir isso será parnasiana. Quando abandonei essa linguagem, fiquei sem instrumento. Recorri então à prosa, à linguagem coloquial. Eu tinha que chegar às formas, ao cerne da linguagem que não estava nas formas preestabelecidas. A luta corporal foi essa busca de como chegar à essência da linguagem. Percebi que, para isso, era necessário que eu não me viciasse. Toda vez que se formava um certo domínio da linguagem, eu a arrebentava. Eu tinha que rejeitar a habilidade para chegar à essência.
Em 1949 conheci a poesia moderna; nessa época, começaram a aparecer nos jornais os primeiros poemas modernos. Lembro que O Imparcial publicou num domingo os sonetos brancos de Murilo Mendes. Achei-os estranhíssimos. Depois apareceu o livro do Drummond, Poesia até agora. Meu amigo Lago Burnett, que também começava sua vida literária, comprou um exemplar e me mostrou. Fiquei escandalizado. O curioso é que meu primeiro contato com a pintura moderna, já no Rio, não me chocou. Vi um quadro do Iberê Camargo – que depois se tornaria meu amigo – reproduzido na capa de uma revista e me apaixonei por aquelas pinceladas ásperas. Foi uma reação muito diferente de quando eu li pela primeira vez “Escrevo teu nome com letra de macarrão”. Aquilo para mim, não era poesia.
[sobre A luta corporal] O livro começa com um ajuste de contas em relação à poesia metrificada, rimada. Um ajuste de contas – quer dizer, para nunca mais fazer aquilo. E aí começam os poemas “Galo galo”, “A galinha” – que significam uma proximidade com a experiência de vida, sem vícios, sem habilidades. Chega, porém, uma hora em que aquele processo começa a ganhar uma forma e ficar abstrato. Aí eu rompo e começo a fase prosaica (“Um programa de homicídio”). O livro, como disse, é este caminhar até eu perceber que estava sempre prome-
Quando comecei a me dedicar aos estudos e à poesia, parei com a molecagem. Meus amigos iam para frente de casa e ficavam assobiando para me chamar (tinha um assobio para me chamar). Eu não ia. Depois de um tempo, eles começavam a jogar pedra e a me insultar. Mas eu tive uma ótima infância. Vivia pescando no rio e fazendo molecagem na rua. São Luís é uma cidade muito bonita, cheia de vento, de palmeiras. A vida era uma coisa maravilhosa do ponto de vista da experiência animal 96
tendo chegar ao centro da linguagem e não chegava nunca. Era como se fosse uma fruta: eu não queria me referir a ela, queria que o poema fosse a fruta. Foi assim que surgiu “há os trabalhos e (há) um sono inicial...” Faço uma frase toda para manter o tempo suspenso, não ter começo, meio... É um poemaimpasse. Um dia, depois de ter jogado fora uma poesia que estava ficando parecida com um discurso, escrevi um poema louco, com uma linguagem desestruturada e deformada: era “Roçzeiral”.
uma poesia que abdicasse da experiência da vida em favor de fórmulas matemáticas. Os poemas concretos e neoconcretos foram uma continuação de uma crise, de uma outra maneira. Eu conseguia falar, mas não usava o discurso nem o reconstituía. Continuava a buscar a saída. Escrevi um poema, “verde verde verde verde”, formando um bloco, um quadrado com essa repetição e o publiquei no Jornal do Brasil. Um amigo achou interessante e eu perguntei se ele tinha percebido que a palavra erva nascia da repetição da palavra verde. Não tinha. Daí eu pensei: “Fracassei. Como posso fazer um poema que tenha estrutura geométrica e seja lido no tempo da sucessão das palavras?” Quando inventei o livro-poema foi para resolver esse impasse. No livro-poema, o espaço não é mais o espaço da página, mas sim silêncio; a própria página diz respeito ao que está sendo construído ali. Há integração total entre espaço, página e palavra. O livro-poema não tem capa, só miolo. É um objeto no espaço. Daí nasceu o poema espacial: peguei uma placa de madeira branca, outra em cima cortada. Embaixo escrevi a palavra “ara”. Ao fechar, aquilo não era mais só duas placas, era uma coisa chamada “ara”.
Eu era terrestre demais. Queria introduzir, na realidade, o delírio e o “deslimite”. Mas não queria sair do concreto. Não queria uma poesia de sonho. Apenas revelar o que há de delirante no real. Os textos da parte que chamei de “As revelações espúrias”, por exemplo, são dessa fase. O primeiro deles foi “Carta ao inventor da roda”. Depois escrevi uma série de textos assim, até esgotar também essa experiência. Eu nunca fiz nada visando ser revolucionário. Quando escrevi todas essas coisas, estava tentando apenas resolver meus impasses pessoais, o existencial e o poético. Criei uma utopia para sair do impasse depois que rompi com a linguagem metrificada; ao fim desse processo, estava em novo impasse. Não passava pela minha cabeça: “Estou fazendo uma revolução”. Eu só fui suficientemente audacioso para não me importar com as conseqüências – como disse antes, havia algo de suicida na minha proposta. Estava disposto a ir até o fim, qualquer que fosse o preço. Eu queria que a poesia fosse uma revelação. Mas, quando falava, sentia que uma grande parte do discurso organizado era conseqüência de coisas que eu sabia anteriormente, as quais eu lera nos livros de escola. Era isso que eu procurava evitar. Do mesmo modo, quando eu escrevi o Poema sujo, não estava pensando em fazer algo curto ou longo: sentia necessidade de mergulhar em toda a minha vida, de fazer um balanço e trazer tudo à tona.
[sobre o fim das fases concreta e neoconcreta] Eu tinha chegado a tal nível de depuração da experiência que a realidade sumira. Eu estava novamente sem linguagem, sem instrumento. Aí fui para o CPC da UNE, no Rio. Vianinha [Oduvaldo Vianna Filho] me procurou: “Vamos fazer uma peça sobre reforma agrária e gostaríamos que você fizesse a estrutura dessa peça em versos, para usarmos um cantador do Nordeste”. Então escrevi Cabra marcado para morrer. Eu estava voltando para a forma mais primitiva da literatura, da poesia. Foi uma coisa difícil, que provocou reações contrárias a mim – que eu era louco, oportunista, não sabia o que queria. [sobre o CPC] Havia uma percepção errada de que, se você fizesse bem-feito, afastaria o público. Buscávamos uma forma simples de comunicação para atingir o maior número possível de pessoas. Mas, no meio disso, havia a TV. Era um instrumento de massa – e nós queríamos criar um outro instrumento de massa, que não fosse eletrônico. Na minha visão, não se tratava mais de fazer literatura.
No final de A luta corporal, eu estava experimentando um dos períodos mais críticos de meu trabalho poético. Nesse momento, houve o encontro com o grupo paulista. Foi quando discutimos a possibilidade de fazer uma nova poesia. Mas nunca adotei, como já disse muitas vezes, a idéia de 97
Tratava-se de politizar as pessoas, de levar a consciência da realidade brasileira.
Eu sou sempre contraditório. Tenho aquele poema, “Traduzir-se”, que fala disso. Não era, portanto, algo ligado apenas à condição de exilado. Isso faz parte do meu cotidiano. Por exemplo, faço uma poesia baseada na captação direta das minhas experiências e, ao mesmo tempo, sou um teórico, tenho capacidade de analisar (a poesia, uma obra de arte) de um modo objetivo, racional.
A poesia, quando verdadeira, não tem esse caráter estreito, unilateral de certos poemas engajados. Os meus primeiros poemas engajados são muito sectários; são mais um “recado” para a consciência das pessoas. Mais tarde, minha poesia engajada mudou. Um poema como “Dentro da noite veloz”, por exemplo, é ambíguo. A verdadeira poesia tem muitas faces. Quando deixei de fazer poesia metrificada, como disse, caí no coloquial, que foi se reelaborando até virar uma linguagem complexa, abstrata, que conduziu à desintegração. Entretanto, com os poemas de cordel, voltei à linguagem banal, mas evidentemente politizada. No Poema sujo, a linguagem que vai aparecer resulta de todas essas experiências. Defendo, então, a tese de que não existe poesia pura. A poesia verdadeira não é sectária, não é unilateral. Como a subversão poética não atinge os interesses das classes dominantes, ela nunca alcançará a ordem política. São interesses concretos, embora eu ache a subversão da ordem poética uma coisa muito importante. Hoje, depois de tudo o que aconteceu, eu acho que a poesia é muito mais importante do que eu supunha. Mas havia uma superestimação do que se podia fazer por meio dela no plano da revolução política e social. Era uma utopia, portanto uma coisa que estava acima da realidade, embora eu reconheça que teve uma conseqüência, não foi inútil.
A morte é mesmo um tema permanente da minha poesia. No próximo livro [Muitas Vozes, que saiu em 1999], ela está muito presente. Depois de uma certa altura da vida, é natural que a morte se torne um problema presente, não só em termos individuais, mas também devido ao fato de que você começa a perder as pessoas. Eu às vezes fico pensando como a morte que aparece n’A luta corporal é quase uma teoria, uma morte possível, adivinhada, imaginada, porque na verdade eu não tinha na minha vida uma experiência efetiva da morte. Depois que você começa a perder as pessoas, a morte ganha uma outra dimensão, ganha uma concretude. Perder um filho, como aconteceu comigo, é uma coisa que não tem medida, um negócio que eu nunca imaginei, eu jamais me curei disso. É uma coisa de uma violência inaceitável. Não é mais uma coisa teórica, não – uma coisa real, uma perda real, a vida te mostrando o seu lado duro. Aquela pessoa amada, que você criou, que estava ali do teu lado não existe mais. A vida é de um absurdo esmagador. Milhões de pessoas já morreram, mas não é possível aceitar a morte.
Eu já discordei, numa certa época, da posição da Escola de Frankfurt. Até escrevi ensaios mais otimistas com relação à cultura de massa. Eu reconheço que ela tem aspectos positivos, como a difusão da informação. Agora, quando se trata do problema da valorização da arte, dos valores artísticos, há uma grande defasagem. Isso explica um pouco também essa coisa da arte que está aí, desse experimentalismo sem limite. Se você fizer uma exposição de gravura, ninguém toma conhecimento, mas, se você ficar nu no museu, é notícia. Você manda para a galeria um tubarão cortado ao meio e todo mundo fala de você, mas, se pegar e pintar um quadro, não chama a atenção. Para a mídia, pouco importa o valor intrínseco da obra, mas sim se ela é notícia ou não.
Eu não duvido que haja poetas que escrevam a frio – não vou discutir isso agora. No meu caso, não consigo. Tenho que entrar num estado em que se cria uma espécie de liberdade interior; eu me solto dos meus conceitos e das minhas limitações – e então meu relacionamento com a realidade muda. É, portanto, uma coisa do estado da alma, do estado de espírito, que torna possível que as palavras se comuniquem de uma maneira inesperada, que as imagens e as lembranças venham e se liguem às reflexões. É uma consciência ampliada. Eu lembro que na época do Poema sujo, durante cinco meses, fiquei nesse estado. Eu saía para comprar pão, fazia café, andava pela rua – e continuava no mesmo estado. De repente, parou, sem que o poema esti98
vesse terminado. Então, a última parte do Poema sujo é construída. Eu passei um tempo sem escrever e de repente, sem que eu soubesse como, veio o fecho do poema. Ele parte de uma frase de Hegel que diz algo como “a folha da árvore já contém o universal e o particular”. Fiquei pensando nisso: “Por que há ali o universal e o particular?” – eu me perguntava. Pensei então que uma coisa está em outra, mas de maneira distinta; veio daí a idéia de que uma árvore está em qualquer uma de suas folhas, a cidade está no homem que está em outra cidade, enfim. Nasceu disso o final do poema.
quase um esnobismo. É diferente quando você elabora a linguagem, cria um impacto, de modo que o leitor pode não entender aquilo do ponto de vista lógico, mas se identifica porque é atingido. Na poesia, eu procuro freqüentemente atingir o leitor, não pela lógica, mas pela emoção, pela surpresa, pelo impacto de uma imagem inesperada. Acho que aí se estabelece a comunicação. Agora, quando você fica caprichoso, substituindo palavras por outras que na verdade encobrem a significação, isso elimina a verdadeira emoção. Até num poema como “Roçzeiral”, que é hermético, o leitor, com um certo abandono, uma certa entrega, pode perceber não um sentido lógico – que aquilo não tem –, mas a emoção que está inserida ali.
Alguns poetas que li muito estão presentes na minha voz poética durante todo o tempo – e eu sei bem disso. Eu li e reli Bandeira, Drummond, Murilo, João Cabral; com eles aprendi a minha linguagem. A minha dicção poética nasceu desses autores. No Poema sujo, conforme eu disse antes, estão presentes muitas vozes. Algumas são citadas deliberadamente. Outras eu só percebi depois. Isso que estou dizendo é uma coisa da história da literatura, ou melhor, de todas as artes. Todos os escritores, pintores, músicos etc. aprenderam com outros escritores, pintores, músicos etc.
Minha poesia sempre foi bastante ligada à vida. Por exemplo, meu poema “O cheiro da tangerina” [Barulhos, 1987]. Eu estava na minha sala e meu filho abriu uma tangerina. Embora eu sentisse o cheiro da tangerina desde que nasci, de repente aquele cheiro da tangerina aberta pelo meu filho me comunicou algo diferente. Achei que poderia fazer um poema, mas ia dizer o quê? Saí dali para trabalhar, aquele cheiro de tangerina dentro de mim. Passei semanas pensando no poema, fui ler numa enciclopédia a respeito da tangerina, procurei me misturar com a tangerina. Comecei escrevendo as coisas mais absurdas. Irracionais. Um dia, indo para a praia, surgiu a seguinte frase na minha cabeça: “Com raras exceções, os minerais não têm cheiro”. Quer dizer, não falava em tangerina, mas ao dizer isso, inseria o leitor num mundo conhecido, ou capaz de reconhecer – com os minerais rígidos, sem respirar – algo diferente da tangerina, que, quando eu abro, me lambuza. Eu estava então transmitindo uma vivência capaz de inserir o leitor nela. Essa ligação do poema com o concreto, com o vivido, com o “de todo mundo”, o prosaico, talvez isso me aproxime das pessoas. A minha poesia tem talo, está ligada ao chão.
Eu acho que a leitura psicanalítica nada tem a ver com a literatura. Você pode fazer, claro, mas acho que é uma leitura não prevista pelo poeta. O poeta não escreve para ser objeto da análise psicanalítica. Você pode dizer: vou ler Augusto dos Anjos sob o viés da psicanálise. Pois bem: você, ao fazer isso, empobrece Augusto dos Anjos – sem contar que serão duvidosas as suas conclusões. Eu desconfio da psicanálise. Nenhum pensamento me tranqüiliza. Eu acho que o hermetismo é um produto do intelectualismo meio caprichado, é um preciosismo, é
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Ilha de São Luís e Alcântara
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Ferreira Gullar nasceu em São Luís, capital do Maranhão, em 10 de setembro de 1930, com o nome de José Ribamar Ferreira. A vida de poeta começa em 1948, quando o soneto “O trabalho” sai no jornal O Combate. No mesmo ano, começa a trabalhar como locutor e colabora com o Diário de São Luís. Com recursos próprios, publica seu primeiro livro, Um pouco acima do chão. Muda-se para o Rio de Janeiro, onde trabalha como revisor nas revistas O Cruzeiro e Manchete e no jornal Diário Carioca. Publica A luta corporal (1954). Entra em contato com os poetas Augusto e Haroldo de Campos e participa da I Exposição Nacional de Arte Concreta – mas rompe com o movimento e, em 1959, assina o Manifesto Neoconcreto. Na década de 1960, seus poemas passam a ter um engajamento político e social, e Gullar torna-se presidente do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC-UNE). Logo após o golpe militar de 1964, filia-se ao Partido Comunista Brasileiro e funda o Grupo Opinião. Escreve peças de teatro em parceria com Oduvaldo Vianna Filho, Antônio Carlos Fontoura e Dias Gomes. Preso após a assinatura do Ato Institucional n° 5, entra em um período de clandestinidade e dedica-se à pintura, antes de partir para o exílio, em 1971. Mora em Moscou, Santiago, Lima e Buenos Aires antes de voltar para o Brasil, em 1977. Entre as décadas de 1970 e 1990, colabora em programas da Rede Globo. Poema sujo – escrito em Buenos Aires em meio ao clima que levaria ao golpe militar argentino de 1976 – é uma de suas obras traduzidas no exterior. Sua bibliografia inclui contos, crônicas, memórias, ensaios, traduções e a biografia de Nise da Silveira, além de livros de poesia como Na vertigem do dia (1980) e Muitas vozes (1999).
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Jo達o Ubaldo Ribeiro
A exaltação do brasileiro AS LEITURAS PRECOCES, A INFLUÊNCIA DO JORNALISMO, O CARÁTER BARROCO DA ESCRITA E A DEFESA DA LÍNGUA SEGUNDO UM ROMANCISTA QUE NUNCA SABE ONDE SEUS LIVROS VÃO APORTAR
Meu pai me levou para trabalhar em jornal porque eu escrevia bem. De certa maneira, ele acertou: até hoje eu sou, de algum modo, ligado ao jornalismo.
A verdade é que passei realmente a maior parte de minha vida querendo um tapinha do meu pai nas costas – e ele nunca deu. Quando me elogiava, era por trás. E eu queria, sempre quis, um cumprimento dele. Depois de um certo tempo, esse tapinha deixou de ter importância para mim. Foi uma coisa que aconteceu.
[sobre jornalismo como influência da literatura] Eu acho que nem atrapalha nem ajuda. Talvez mais ajude do que atrapalhe. O jornalismo dá disciplina. A matéria precisa ter 28 linhas e ponto. 45 linhas e ponto. Com horário marcado: o jornal fecha às onze e meia. Não há saída: você tem que escrever.
[sobre como o pai analisava seus livros] Setembro não tem sentido foi olhado com uma certa indiferença. Quando publiquei Sargento Getúlio, ele disse simplesmente que eu não sabia contar histórias.
Eu sou uma invenção de Glauber Rocha. Glauber era dois anos mais velho do que eu. Nós nos conhecíamos desde a época em que cursávamos o clássico, no Colégio Central, mas nos tornamos amigos para valer na faculdade de Direito. Ele me adotou. Dizia coisas a meu respeito, que depois eu tinha que me virar para comprovar. Ele inventou, por exemplo, que eu entendia de literatura norteamericana. Ora, eu falava inglês muito bem porque desde pequeno decorava 50 palavras do dicionário por dia e tive a sorte de morar num prédio cheio de garotos norte-americanos, com quem eu falava inglês o tempo todo. Mas literatura norteamericana eu conhecia pouco. Pois Glauber espalhou na faculdade que eu era especialista e tive que ler Hemingway, Faulkner, Fitzgerald como louco para dar conta da fama. Pois bem: com essa mania de decretar coisas, Glauber passou a cobrar cada vez mais que eu escrevesse. Passava na minha casa e perguntava: “Quero saber o que você, que tem uma responsabilidade com o Brasil como escritor, vem fazendo; quero ler. O que é que tem aí?” Eu vivia preocupado, inseguro, sem saber se tinha vocação mesmo para a literatura. O que Glauber fazia era me estimular. Quando contei que estava
Lembro de uma maldita Histoire universale, de um certo Jacques Crozals, em dois volumes, que meu pai me fazia traduzir todos os dias pela manhã. Era um suplício. Fiquei com ódio do livro. Aliás, isto é curioso: meu pai também me obrigava a copiar sermões de Vieira, e eu nunca odiei Vieira, muito pelo contrário, é um autor que leio até hoje. Não quero ser radical, mas, apesar de ainda ter prazer em escrever, se eu pudesse passaria o resto da vida lendo. Eu li Homero pela primeira vez quando tinha mais ou menos 10 anos de idade na biblioteca de meu pai – e até hoje leio e releio. Apesar do trecho citado [de Viva o povo brasileiro] ser uma evidente paródia de Homero, já aconteceu de muitas pessoas me elogiarem por aquele capítulo de Viva o povo como se tudo fosse invenção minha. Aquilo é Homero; você pode, no máximo, me cumprimentar pela homenagem. Mas é claro que nunca falei para aquelas pessoas que eu tive apenas o mérito de citar Homero. 110
pensando em escrever um romance que se passava na Semana da Pátria, ele me incentivou muito. Comecei o livro e dava os capítulos para Glauber ler. Ele fazia pose enquanto lia e murmurava: “Demais... Genial...” Era o máximo, para mim, mesmo sabendo que ele estava exagerando. Inflava o meu ego. Às vezes, fazia críticas também. Lembro que cada capítulo de Setembro não tem sentido tinha uma epígrafe. Ele começou a ler aquilo e foi balançando a cabeça. “Não, não”, dizia. E eu: “O que foi, Glauber?”. “Que negócio é esse aqui, pô!?” “Epígrafes, Glauber. O Stendhal usa, não sei mais quem usa”. “Frescura, Ubaldo, tira isso daqui, frescura”. Tirei na hora e até hoje não uso esse recurso: no máximo, ponho uma só epígrafe, inventada por mim mesmo, no começo de cada livro.
no livro Panorama do conto bahiano [1959]. Pois essa história não saía da minha cabeça. Quando publiquei Setembro não tem sentido, pensei: “E agora? Será que eu sou romancista de um romance só?” Precisava provar para mim mesmo que não era. Comecei o livro meio atrapalhado, não sabia o que ia fazer. Hoje existem todas essas interpretações, o romance é isso, o romance é aquilo, mas, quando comecei, eu não sabia de nada, não sabia aonde aquilo iria parar.
[sobre Setembro não tem sentido] Na época eu era fascinado por alguns escritores – Sartre, Joyce. Já fui maníaco por Faulkner; isso aconteceu com Glauber também, nós éramos todos faulknerianos brabos. Depois, deixamos de ter aquele xodó. Mas é difícil apontar influências específicas. [...] Eu tinha essa intenção: fazer uma coisa nova, que mostrasse todas as bossas, que mostrasse que eu sabia, que eu era do ramo – coisa de adolescente mesmo. Nessa fase a gente pensa que pode tudo, que vai reformar o mundo.
No caso de Sargento Getúlio, o máximo que eu fazia era perguntar para minha mãe coisas do tipo: “O que é a gente comia em Sergipe?” Vocês sabem, a história se passa em Sergipe, onde eu vivi, e tem a ver com um episódio acontecido com meu pai. Minha mãe às vezes se aborrecia com as perguntas: “Pra que é que você quer saber isso agora, meu Deus?” Mas são coisas que tomam um tempo imenso do escritor. Como é aquela palavrinha? E alguém pode esclarecer na hora.
Eu invento poucas palavras; eu deturpo muito, isso sim. Existem palavras no livro, aliás, que eu nem sabia que conhecia – elas emergiram na hora em que eu estava escrevendo o romance. Eu às vezes até me assustava.
No livro [Sargento Getúlio], eu me preocupo mais com a trama. A linguagem é mais espontânea.
[sobre Viva o povo brasileiro] É certo que se minha formação acadêmica não foi decisiva, pelo menos ajudou a plasmar, a abordar certos temas que aparecem no livro. Sobre esse romance, aliás, é muito comum as pessoas pensarem que eu escrevi a história na ordem certa e depois desarrumei tudo. Não é verdade: ele foi publicado tal e qual saiu da minha máquina de escrever e com as emendas que fiz à caneta.
Eu já gostei mais do Joyce; agora ele é apenas uma admiração. Eu não acho o barroco inteiramente despido de simplicidade. Bach, que eu adoro, é de uma simplicidade... E ao mesmo tempo é tão elaborado. É aquela história da linha reta cheia de significados. Eu sou barroco pela própria natureza, ou pela própria formação. Nenhum baiano está imune ao barroco. É muito difícil. Nem que seja para reagir – o barroco está ali.
Sargento Getúlio começou porque eu queria saber se era romancista mesmo. Eu tinha ficado muito impressionado quando fui convidado por Nelson de Araújo para publicar em livro um conto que tinha saído num suplemento e ele disse para mim: “Até agora só li isso de você, Ubaldo, mas você não é galinha de um ovo só, é?” E eu, mais do que depressa: “Não, claro que não. Estou escrevendo umas coisas novas aí”; ele acreditou e me incluiu
Minas é entupido de barroco, mas há uma diferença de temperamento, eu acho. É curioso: eu me sinto completamente barroco. Eu sou chegado num tipo de escrita em que coloco o predicado aqui e o objeto lá longe. Meu pai, que era alagoa111
no, era meio barroco, mesmo falando. Lembro que ele começava a falar e jogava uma oração intercalada – e eu pensava: “Agora ele vai se danar” – e muito depois vinha a continuação, perfeita, você sentia o travessão na fala dele, intercalava e não repetia o sujeito. Quando isso é bem jogado é uma beleza. Mostra a riqueza da língua.
“Engraçado, estava lendo os teus contos e não tem mulher neles”. Fiquei com aquilo na cabeça: “É verdade, não tem mesmo. Mas existem mulheres na vida! Por que elas não aparecem nos meus textos?” A partir daí, eu mudei. Fui me educando, digamos assim, para incorporar as mulheres aos meus textos. Consegui e cheguei a escrever, de encomenda, na Alemanha, o conto “O estouro da boiada”, aquela história de uma família com sete mulheres, mulheres fortes.
Eu geralmente quero ser muito preciso no uso de determinada palavra. É quase uma compulsão: eu tenho vontade de usar a palavra certa. E o leitor, você sabe, não perdoa quando descobre que sabe mais que o autor. Quando um escritor está construindo um universozinho elaborado, digamos assim, artificial, ele está construindo um edificiozinho – se dá uma escorregada num tijolo, aquilo pode contaminar o livro inteiro. Se você está escrevendo um livro que tem um personagem médico e coloca o fígado do lado esquerdo, ou erra na hora de descrever a cavidade abdominal, adeus.
A expressividade da língua portuguesa pode ir sumindo. Um exemplo: até um certo tempo atrás, não se dizia em português “Um homem não aceita esse tipo de coisa”, era apenas “Homem não aceita esse tipo de coisa”. Mas, porque nos Estados Unidos se diz “A man...”, os brasileiros começaram a falar assim também. Eu detesto traduzir. Traduzi Sargento Getúlio e Viva o povo para não ter surpresas com as edições. Não é vaidade, mas é que só pelo fato de ser estrangeiro, o tradutor muitas vezes acha que eu não tenho o domínio completo da língua. No Sargento, por exemplo, tinha uma passagem em que eu falava de ponto fulminante em vez de culminante; como em inglês é possível fazer o mesmo trocadilho, eu pus fulminant point. Pois aí o editor mudou para culminant. Liguei para lá e disse que queria fulminant mesmo. Arrumaram, mas foi só porque eu fiquei em cima. Ora, no caso do inglês pelo menos, eu digo a você que sei mais esse idioma do que a maioria dos norte-americanos. Eu falo isso estatisticamente: não tenho, claro, melhor inglês do que o norte-americano culto, mas eles não são maioria.
Na época de Sargento Getúlio eu ainda bebia enquanto escrevia – depois deixei disso, porque bebendo você corre o risco de achar uma página deslumbrante e no dia seguinte vai ler e é uma droga. Com isso, aconteceram coisas engraçadas. Por exemplo: eu já vi muitas discussões sobre o final do livro, quando a linguagem se desconjunta, o sargento começa a falar incoerentemente. Na realidade, aquilo está lá pelo seguinte: eu tinha uma máquina elétrica muito boa, trazida dos Estados Unidos e como toda máquina elétrica ela era muito sensível. Ao menor toque ela já disparava. Pois no dia em que terminei o livro eu sabia que isso ia acontecer. Virei para minha mulher depois de chegar do jornal e falei: “Eu acabo hoje”. E comecei a beber antes do tempo, entende? Não calculei direito e, quando cheguei ao fim, já estava bem alto. Bati o dedo numa tecla e ela disparou. Escrevi um pouco mais e disparou de novo. Fiquei olhando aquilo e disse: “Isso está bom”. E ficou daquele modo, até sem ponto final. No dia seguinte, já em forma, fui ler o que tinha escrito e continuei achando bom: afinal, ele está morrendo, eu acho...
Existe um período anterior, de duração variável, em que eu converso muito com minha mulher, com meus amigos, fico contando a história para eles – na realidade, acho que fico contando para mim mesmo, é como se eu quisesse estruturar a história na minha cabeça. Como chega essa hora, como eu sei que ela chegou, não tenho a menor idéia. É como o momento do sono. Você nunca lembra do momento preciso em que caiu no sono. De qualquer maneira, durante o processo, essas coisas mudam. N’O sorriso do lagarto, por exemplo, eu pensava que o João Pedroso era homossexual.
Com relação a mulheres na minha obra, eu lembro que um dia, quando eu estava começando, uma professora amiga [...] virou para mim e disse: 112
Mas a história ia passando e nada do João Pedroso se revelar. No fim, eu me rendi: não era ele o homossexual da história.
Eu não sou contista. Escrevo histórias curtas sem ter a pretensão de contribuir para o gênero. Já os meus romances eu considero mais marcantes, digamos assim. Estou agora pensando em escrever um livro de contos chamado Noites lebloninas. Imagino criar um personagem que vai percorrer todas as histórias. Mas eu não tenho a pretensão de ser um artista do conto. E, como disse, não é porque considere o conto um gênero menor. Mas algo me move em direção ao romance.
Eu tenho brigas com meus personagens. Também tenho brigas com o Pequeno Ubaldo... Eu sou composto de dois: o Grande Ubaldo, um sujeito boa gente, relaxado, e o Pequeno Ubaldo, que está sempre me cobrando. Estou aqui e ele começa: “Como é? Quer dizer que não trabalhou hoje, hein?...”. Um dia, o pessoal de casa tomou um susto porque eu comecei a berrar com o Pequeno Ubaldo e saí correndo atrás dele pelo corredor.
Um dia eu estava escrevendo Viva o povo brasileiro, enlouquecido, já sem saber quem era avô de quem, quando entrou na minha casa meu amigo João Carlos Teixeira Gomes, hoje autor de uma biografia sobre Glauber [Glauber Rocha, esse vulcão, 1997]. Eu então virei para ele, já com vontade de jogar aquela papelada toda no lixo, e disse: “Joca, você vem aqui e eu estou escrevendo uma porção de coisas sobre gente que nunca existiu... Esse negócio é absurdo! Uma maluquice!” Ele virou pra mim e disse: “Pare com isso. Senta aí e escreva, porque, desde que mundo é mundo, tem sempre um cara para contar histórias. Por que eu não sei, mas alguma função deve ter”. Aí eu digo: bem pensado. Para alguma coisa há de servir. Então vou escrevendo e, realmente, não sei aonde vou chegar, o que é que eu quero. Eu não tenho método a defender, entendeu? Aparece um livro e eu escrevo. O que vai acontecer, eu não sei.
O país onde meus livros têm maior aceitação é a Alemanha. Há uma explicação para o sucesso dos meus romances no exterior que me parece parcial – para muita gente seria absoluta, para mim é parcial: lá fora, todo mundo acha que literatura brasileira deve ser exótica. Acho que eles vêem um livro do tipo Viva o povo como exótico. Mas eu não posso fazer nada: não sou parisiense, não posso escrever sobre Paris, só posso escrever sobre a Bahia ou sobre o Rio. Mas eu escrevo o livro que sai, não fico tentando ser exótico para impressionar os estrangeiros. O que procuro no começo do livro é deflagrar uma tensão qualquer, criar uma tensão qualquer. Também costumo terminar os capítulos com algum suspense: o que acontecerá? Eu gosto disso.
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Nascido em 1941, em Itaparica, na Bahia, João Ubaldo Ribeiro inicia seus estudos com professor particular e, em 1948, ingressa no primeiro dos vários colégios que freqüentaria. Por imposição do pai, terá de aplicar-se com empenho e prestar contas dos livros lidos, apresentando resumos e traduções de trechos importantes. Nas férias, pratica latim e copia sermões do padre Vieira. Em 1956, torna-se amigo de Glauber Rocha e, no ano seguinte, inicia-se no jornalismo. Matricula-se no curso de direito da Universidade Federal da Bahia em 1958 e participa do movimento estudantil e da edição de revistas e jornais da faculdade. Casa-se com Maria Beatriz Moreira Caldas, com quem viveria por nove anos. Em 1964, faz mestrado em Administração Pública e Ciência Política na Universidade da Califórnia do Sul, nos Estados Unidos. Leciona, no ano seguinte, na Universidade Federal da Bahia. Retorna ao jornalismo seis anos depois e desiste da carreira acadêmica. Publica em 1968 seu primeiro romance, escrito cinco anos antes, Setembro não tem sentido. Casa-se no ano seguinte com a historiadora Mônica Maria Roters, de quem separa em 1978 e com quem tem duas filhas. Sargento Getúlio sai em 1971 e o revela como autor. Tem mais dois filhos com a fisioterapeuta Berenice Batella, com quem se casa em 1980. Viva o povo brasileiro sai em 1984. Toma posse na Academia Brasileira de Letras em 1994. João Ubaldo Ribeiro é autor também de O sorriso do lagarto, A casa dos Budas ditosos e Diário do farol, entre outros.
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Hilda Hilst
Da obra e das sombras COMO AS LEITURAS, AS PAIXÕES E AS PERDAS FORJARAM UMA LITERATURA QUE, DA POESIA À PROSA, DO EXTÁTICO AO OBSCENO, É UMA PERMANENTE CELEBRAÇÃO DO INEFÁVEL Quase todo o meu trabalho está ligado ao meu pai porque eu quis. Eu pude fazer toda a minha obra através dele. Meu pai ficou louco, a obra dele acabou. E eu tentei fazer uma obra muito boa para que ele pudesse ter orgulho de mim [a voz embarga nas últimas palavras]. Eu estou ficando rouca, não é nada... Então eu me esforcei muito, trabalhei muito porque eu escrevia basicamente para ele.
procura de um Deus”. Eu tinha 18 anos e apesar disso Cecília Meireles escreveu para mim: “Quem disse isso precisa dizer mais”. Meu primeiro livro, Presságio, claro, não foi uma unanimidade. Não faltou quem dissesse novamente que menores de 25 anos não deveriam publicar seus poemas. Eu mesma demorei muito a me considerar uma grande poeta. Hoje eu gosto, por exemplo, de Alcoólicas [1990].
Eu acho que meu pai era um gênio. Só que ele vivia em Jaú, você entende?
Poesia é basicamente intuição. É aquilo que o Husserl falava. A fenomenologia é exatamente dar um valor deslumbrante para a intuição. A poesia não vem daqui, você recebe a poesia – ela vem de alguma coisa que você não conhece.
[sobre quem a teria influenciado] O Jorge de Lima. Não o da Nega fulô, mas o de Invenção de Orfeu, dos sonetos deslumbrantes. O Drummond, eu sempre gostei também, mas de um modo diferente. Ele me conheceu muito jovem, chegou a escrever um poema para mim, era tímido, admirável. Mas a afinidade literária que eu tinha com o Jorge de Lima era diferente do Drummond.
Quando veio aqui o editor da Gallimard, eu fiquei besta. Perguntei: “O sr. veio aqui só para me conhecer?” E ele: “Parfait, madame”. Por aqui, os editores não davam a mínima pra mim. Fui publicada na França, e aí esse editor me escreveu dizendo: “Hilda, eu não compreendo por que eles acham tão difícil ler você”. O jornal Libération publicou uma resenha de A obscena senhora D [1982], referindo-se a mim como “la cochonne hystérique”, a porca histérica. Me comparavam ao Bataille; eu sou muito ligada a ele mesmo. Mas me chamaram de porca histérica. Eu até chorei. Pensei: “Quer dizer que não é só no Brasil, na França também?”. O comentário todo era bonito, mas o título... “A porca e o histérico”.
Eu lembro que sempre que eu falava de Catulo pensavam que era o Catulo da Paixão Cearense. (...) Desde mocinha o meu negócio era ler. Esses autores foram surgindo aos poucos. (...) O Joyce e o Beckett, eu acho maravilhosos. O Joyce está na minha mesa. Mas é curioso mesmo essa linha mais recuada da poesia e mais moderna da prosa. Tem também uns espanhóis e mexicanos que eu admiro muito. Como aquele autor de A morte de Artêmio Cruz, Carlos Fuentes.
[sobre O caderno rosa de Lori Lamby, 1990] Eu quis me alegrar um pouco. Eu tinha uma certa alegria sabendo que escrevia muito bem, mesmo não sendo lida. Mas de repente eu quis me alegrar. Comecei a sentir um afastamento completo de todo mundo. Eles nunca me liam, nunca. Então decidi fazer o livro.
Eu tinha 18 anos quando escrevi: “Somos iguais à morte, ignorados e puros e bem depois o cansaço brotando nas asas seremos pássaros brancos, à 124
[sobre A obscena senhora D] A senhora D foi a única mulher com quem eu tentei conviver – quer dizer, tentei conviver comigo mesma, não é? As mulheres não são assim tão impressionantes, essa coisa de uma busca ininterrupta de Deus, como eu tive. Eu tenho uma certa diferença com as mulheres, porque sinto que elas não são profundas. Eu tenho um preconceito mesmo em relação à mulher. Nunca conheci mulheres muito excepcionais como, por exemplo, Edith Stein. Ela era uma mulher deslumbrante e uma santa também.
Do meu teatro, por exemplo, ninguém faz. Alguns críticos foram deslumbrantes comigo. Mas não acho que esse movimento todo que você diz em torno do meu trabalho desperte alguma coisa. Ninguém fala, por exemplo, em reeditar meus livros. É difícil hoje achar um livro meu. Eu acho que sou diferenciada, sim. Tem pouca gente que pensa e escreve como eu. Eu sempre digo isso e aí sou considerada megalômana. Mas eu sei quem sou.
A minha literatura fala basicamente do inefável, o tempo todo. Mesmo na pornografia, eu insisto nisso. Posso blasfemar muito, mas o meu negócio é o sagrado. É Deus mesmo, meu negócio é com Deus.
Esta casa é deslumbrante demais. Aqui já aconteceram muitas coisas. Mas aí vai depender de a pessoa acreditar ou não em mim. Aqui desceu um disco voador, já contei isso numa entrevista. Outra vez eu estava sentada, lendo um livro sobre empresas, um livro de uns norte-americanos – eu ainda vivia com o Dante [Casarini, seu marido], ele estava dormindo e eu lendo aquele livro –, e de repente eu vi um homem entrar aqui, um cara lindo, parecia com um ator do meu tempo que se chamava John Gavin. O Vintila Horia diz que houve um outro sujeito com esse nome, que era o maior conhecedor de Joyce de todos os tempos. Pois o que me apareceu aqui lembrava o ator. Ele era do tamanho dessa porta, 1 metro e 90. Ele entrou. Tinha uns amigos aqui. Só eu vi o homem. Ele olhou para mim e disse: “Enfim, cheguei”. Ele estava com uma valise, dessas de empresário, chapéu gelot. Estava vestido como um embaixador. Eu fiquei besta. Levantei para cumprimentar o homem. Foi aí que ele falou, rindo: “Enfim, cheguei”. Mal eu acabei de levantar, ele sumiu. Depois disso vi outras pessoas andando aqui. Às vezes eu pensava que era o Dante. Ia ver, não era. Eu ficava conversando com elas. Uma vez, o Dante perguntou: “Hilda, com quem você está conversando?” Eu via pessoas que não existiam. Um dia, andando com uma amiga aqui na alameda, de repente apareceu um homem entre nós. Muito bonito, devia ter uns 18 anos. Eu quase desmaiei. Tudo isso me asseverou que existe, sim, vida depois da morte. Por isso eu queria fazer a fundação. Aí viriam para cá escritores interessados nessas coisas, fariam estudos, conferências. Eu deixaria esta casa, alguns terrenos e tal para sustentar essa fundação.
O erótico não é a verdadeira revolução. O erótico, pra mim, é quase uma santidade. A verdadeira revolução é a santidade. Nós nos desprezamos, temos desprezo por nós mesmos. Quando eu penso nas “partes baixas do corpo”, eu penso: como sou miserável, como eu sou ninguém, como eu não sou nada. Eu adoraria estar apaixonada sempre. A minha mãe dizia uma frase que eu nunca esqueci: “Tens um inimigo, deseja-lhe uma paixão”. Eu não entendia o que ela queria dizer, mas agora eu entendo. A paixão é uma doença mesmo, uma doença total. E eu gostaria de, velha, ter uma paixão, de me apaixonar. Aí, o sujeito poderia até cuspir na minha cara! Só que as pessoas com quem eu combinava diziam: “Mas eu não consigo cuspir na sua cara!” Não dava certo. Eu já escrevi coisas deslumbrantes. Quem não entender, que se dane! Não tenho mais nada a ver com isso. Eu não sinto que esteja num mundo que seja o meu mundo. Devo ter caído aqui por acaso. Não entendo por que fui nascer aqui na Terra. Com raríssimas exceções, não tenho nada a ver com este mundo. [sobre o interesse universitário em sua obra] Esses estudos, essas teses, isso eu gosto quando fazem. Mas estão tratando principalmente das coisas eróticas. 125
Eu revi o Caio Fernando Abreu no dia da morte dele. Eu já contei isso. Ele morreu à uma hora e veio se despedir às dez da noite. A gente tinha combinado isso. Ele veio com um cachecol que tinha uma fita vermelha. A gente tinha combinado: o vermelho ia significar que estava tudo bem. Eu abracei o Caio, muito, e disse: “Nossa, como você está bonito! Está jovem!” Mas ninguém acredita. Falam: “A Hilda é uma bêbada, uma alcoólatra, está sempre louca”. É assim que falam.
Irma. Mas eu já tinha a mania de inventar coisas no meio das leituras. Sempre preferi inventar as minhas coisas a ficar traduzindo. Eu achava gostoso pintar. Mas agora não faço mais nada. Não escrevo nada, não pinto nada. O que é que vocês querem? Por que vocês ficam tristes de eu não escrever mais? Depois de eu ter escrito mais de 30 livros, e ninguém ter lido, vocês ainda ficam chateados de eu não escrever mais? O Flaubert dizia uma coisa que eu repito sempre: você perde a alacridade do corpo quando não quer mais nada.
Achavam que eu escrevia desse modo porque eu era drogada. Nunca experimentei droga. Eu tinha medo de ficar louca. Mas achavam que escrevia tudo aquilo porque era drogada. Eu não ligava. O Anatol é que ficava triste.
Eu fui atingida na minha possibilidade de falar. Lá do alto me mandam não falar. Por isso é que estou assim.
“Literário” é a mãe! Eu sei que falam que o meu teatro é de uma categoria menor. Categoria menor? É que as pessoas não são de urna categoria maior, né? Não adianta: eu sei que o meu teatro, como tudo o que escrevi, é lindo demais. Mas as pessoas não querem ouvir as coisas como elas são.
[sobre o sentido da própria poética] Aquele suposto desejo que um dia eu vi e senti em algum lugar. Eu vi Deus em algum lugar. É isso o que eu quero dizer. Deus é Deus. O tempo inteiro você vai ver isso no meu trabalho. Eu nem falo “minha obra” porque acho pedante. Prefiro falar “meu trabalho”. O tempo todo você vai encontrar isso no meu trabalho.
[sobre a experiência de escrever crônicas para o Correio Popular, de Campinas] Comecei a gostar, mas, como eu falava tudo o que pensava, as pessoas mandavam cartas medonhas para o jornal. Diziam coisas horríveis, ligavam pedindo para o Correio cortar minha coluna. Telefonei para o jornal perguntando se eles queriam que eu saísse. “Não, pelo amor de Deus. O Correio está vendendo muito só por causa do que você escreve”, me responderam. O jornal foi ótimo em tudo comigo. Eu deixei de colaborar porque estava escrevendo o Estar sendo. Ter sido [1997].
A vida é uma coisa absurda, que a gente não sabe como é. De uma certa forma nos deram uma compreensão para entender a vida, mas a gente não consegue. Então nos deram uma cabeça para poder compreender as coisas, mas sempre é a terra, né? É sempre o túmulo, sempre o sepulcro. Então, é por isso que eu fico impressionada com essa coisa de Deus. Eu tenho medo da solidão, do sepulcro. Mesmo sabendo que tem alguma coisa depois. Tenho medo de ser enterrada, por isso vou pedir para ser cremada.
A Lygia [Fagundes Telles] tem sido minha amiga a vida toda. Ela me liga todos os dias. Eu tive vários amigos, mas me meti aqui e eles não apareceram mais. Começou a crescer também um medo enorme em relação a mim. Então, quando as pessoas me telefonam, falam sempre assim: “Não posso continuar... um momento, que estou chorando de estar conversando com a senhora”. Eu fico besta de ouvir isso.
As pessoas querem resposta como se eu fosse uma sábia – e eu não sou. Eu leio Heidegger, Hegel, Kierkegaard, Wittgenstein e percebo que eles também não têm uma resposta acalentadora pra gente. Eu me interesso mesmo pelos físicos. Às vezes eu leio coisas tão complicadas que precisaria fazer um
Quando eu era menina, falava perfeitamente o alemão; estudava com uma professora chamada dona 126
curso de física para entender melhor. Os físicos, todos eles, são completamente loucos.
to da estrada, todo vestido de branco, com chapéu. Eu fiquei inteiramente branca.
[sobre a própria obra] Eu acho Qadós deslumbrante, esse livro que ninguém entende.
Nunca pensei no leitor. Eu não tenho nada a ver com o leitor.
A prosa vem de repente, assim. Subitamente. Até no chuveiro.
E literatura não é distração, entretenimento. É uma coisa séria, que você vai adquirindo. É dificílimo.
Toda a minha ficção é poesia. No teatro, em tudo, é sempre o texto poético, sempre.
Na experiência com a pornografia eu achava que podia dar certo, porque ela era engraçada; achei que os leitores gostariam. Mas, segundo o Jaguar, eles odiaram minha pornografia. Foi o único momento em que esperei algo do leitor. É como eu já falei aqui: eu acho que fiz um trabalho deslumbrante, se entendem ou não, se leram ou não, eu não tenho nada a ver com isso.
Eu não me interesso mais se me lêem ou não, eu não tenho mais interesse em saber. Pode ser chato para os outros, mas eu não tenho mais motivação. Eu só quero, até morrer, morar na minha casa e receber os amigos. Eu não tenho nenhuma expectativa de nada. Não me interessa mais o mundo da Terra. Teve uma vez que o meu pai se comunicou comigo. Ele tinha acabado de morrer. Eu estava lendo um artigo sobre Kafka no jornal; quando pus a mão em cima do texto, fiquei dura. Eu pensei: “Será que alguém está querendo falar comigo?” Fechei os olhos e li: “Loucura”. Então falei: “É você, meu pai?” E comecei a conversar. Perguntei: “O que é que está acontecendo agora?” Ele falou: “Vida na Terra, experiência inútil e dolorosa”. Eu disse: “Pai, será que algum dia eu vou conseguir ser alguém na literatura, ser entendida por alguém?” Ele falou: “Matéria. Muito mais matéria”. Um diálogo mesmo. Eu disse: “E a alma continua louca, pai?” Ele falou: “Hipótese absurda”. Hipótese absurda. Eu fiquei deslumbrada com isso. Um dia, quando saí à tarde, vi meu pai na colina, per-
Talvez daqui a 100 anos alguém me leia. Mas eu não tenho esperança. Eu continuo vivendo porque tenho que continuar vivendo. Tenho medo de morrer. Tenho medo de dar um tiro na cabeça, tenho medo demais do tiro. Eu fiz o que pude. Meu pai não pôde fazer isso, ficou louco. Eu pude. Minha mãe me contou que, quando eu nasci, ao saber que era uma menina, ele disse: “Que azar!” Eles, na verdade, se separaram porque minha mãe estava grávida. Ele não queria isso. Queria uma amante. Aí minha mãe engravidou. Quando ele soube que era uma menina, falou daquele jeito. Uma palavra que me impressionou demais: azar. Aí eu quis mostrar que eu era deslumbrante.
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Casa do Sol, Campinas
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Única filha do fazendeiro, poeta, jornalista e ensaísta Apolonio de Almeida Prado Hilst, a escritora Hilda Hilst nasce em Jaú (SP) em 1930. Com a separação dos pais, Hilda muda-se para Santos (SP) com a mãe, Bedecilda Vaz Cardoso. O pai é internado em um sanatório, com o diagnóstico de esquizofrenia, doença que o levaria a longos períodos em casas de tratamento. Após os estudos na capital paulista, entra na Faculdade de Direito do largo São Francisco. Considerada uma das mulheres mais bonitas de sua geração, leva uma vida boêmia e escandaliza a alta sociedade paulistana com seu comportamento. Em 1950, estréia na carreira literária com o livro de poemas Presságio. Na década de 1960, abandona a vida de intenso convívio social para se dedicar integralmente à literatura e passa a morar na fazenda da mãe, perto de Campinas, onde constrói a Casa do Sol. Escreve peças de teatro e, em 1970, publica Fluxo-Floema, sua primeira obra em prosa. Passa a gravar vozes que assegura serem de pessoas mortas e anuncia a visita de discos voadores à sua fazenda. Em 1990, anuncia o “adeus à literatura séria” e lança O caderno rosa de Lori Lamby, obra que consagra sua fase pornográfica. Entre 1992 e 1995, escreve crônicas para o Correio Popular, de Campinas, reunidas no livro Cascos & carícias: crônicas reunidas (1998). Em 4 de fevereiro de 2004, Hilda morre em Campinas. Escreveu 20 livros de poemas e 12 de prosa, laureados com alguns dos mais importantes prêmios literários do Brasil.
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AdĂŠlia Prado
Concerto em fé maior PARA A AUTORA MINEIRA, QUE NÃO VÊ DIFERENÇA ENTRE LITERATURA E EXPERIÊNCIA RELIGIOSA, A POESIA É REVELAÇÃO DO REAL, UM “FENÔMENO DA NATUREZA” REVELADO EM “LINGUAGEM DO JÚBILO” Para elaborar o que a gente chama de obra, eu busco tudo lá, meu tesouro está lá, na infância, uma experiência de natureza muito próxima das necessidades primeiras de todo o mundo, por causa da quase penúria material.
O real inclui necessariamente o sofrimento, porque essa é a nossa condição. De fato, estamos num vale de lágrimas, não há como fugir disso. Masoquismo é o prazer do sofrimento. Estou falando de uma constatação de que o mundo é dor, que o mundo é pura dor, que a condição humana é pura dor. Posso falar dor ou pecado, para mim é a mesma coisa.
Eu fazia uns poemas certinhos, rimadíssimos. Tinha um que se chamava “O sineiro apaixonado” – o cara subia e batia o sino para a amada dele, depois ela morre, imagine... Aí, eu devia ter uns 18 anos, alguém me deu Fala, amendoeira, do Drummond. Eu disse: “Puxa, que negócio bom”. Depois li a poesia dele. Pensei: “Assim, desse jeito, eu dou conta de escrever”. E achei meu caminho. Nessa época eu já namorava o Zé [José de Freitas, o marido] e mandava as poesias para ele. Eram uns poemas escritos em versos livres, mas pareciam salmos, dava um certo incômodo. Era um vezo, muito mais que um veio. A poesia que seria a base de Bagagem veio depois de 1973, com a morte do meu pai.
O júbilo é busca, quer dizer, é meta. Eu estou buscando. E esse júbilo, o que é? Seria a união com Deus, a superação da condição humana. A linguagem por excelência desse júbilo é a poética. Ela é realmente metafórica, simbólica, puro júbilo. Mas o “puro júbilo” é “poesia pura” também. Você vê no mais profundo sofrimento dos místicos, lembrados aí, obras do maior júbilo. É são Francisco, cego, dizendo: “Me vire na direção de Assis que eu quero abençoar a cidade”, e aí ele entoa o Canto do irmão sol. É incompreensível para nós, que não alcançamos essas coisas, uma pessoa doente, à beira da morte, entoar um canto de júbilo. Então, isso só se explica realmente por uma realidade que nos ultrapassa e que é o sustento da fé, que é o objeto da fé – que é, enfim, Deus.
Grande parte da poesia que eu fiz tem esse traço aí, ligado talvez a um caráter, a um aspecto melancólico do pessoal da minha parte, de Minas Gerais, da minha família do lado materno. Eles tinham uma melancolia, uma tristeza quase endócrina mesmo.
Para mim, a definição mais perfeita de poesia é: a revelação do real. Ela é uma abertura para o real. Isso é que é poesia para mim. Ela me tira da cegueira.
[sobre a “tristeza mineira”] É um acento maior que existe aqui na paixão e não na ressurreição de Cristo. Isso tem um apelo imagético, estético mesmo, muito forte: as procissões, a liturgia. É o nosso jeito de se relacionar com Deus. Nascemos para amar e servir a Deus e depois ser feliz com Ele no Céu – mas aqui isso tem um acento mesmo muito triste.
Eu acho que no mundo a gente experimenta felicidade. Você tem, como diz santo Inácio, momentos de consolação. Nesses “momentos de consolação” você experimenta exatamente uma plenitude, uma unidade, porque o sofrimento é divisão. 138
Para mim, experiência religiosa e experiência poética são uma coisa só. Isto porque a experiência que um poeta tem diante de uma árvore, por exemplo, que depois vai virar poema, é tão reveladora do real, do ser daquela árvore, que ela me remete necessariamente à fundação daquele ser. A origem, quer dizer, o aspecto fundante daquela experiência, que não é a árvore em si, é uma coisa que está atrás dela, que no fim é Deus, não é?
Eu nunca, jamais pensei que a poesia tivesse que dizer o seu tempo, porque ela já o diz aprioristicamente, necessariamente, ontologicamente, entende? Ela por si já revela o tempo. Se você faz um poema engajado, datado, é a coisa mais terrível do mundo, porque ele não sobra, ele não fica. Você não pode pegar a poesia e colocá-la a serviço de uma idéia; para isso existe o discurso político, o discurso filosófico. Então, enquanto o povo está se matando, eu falo do pôr-do-sol, porque no meio daquela luta é o pôr-do-sol que vai lembrar a quem está se matando que existe uma transcendência. Imagine Mozart querendo tocar uma sonata e está lá um Napoleão, que o obriga a fazer uma marcha triunfal... Eu acho que colocar a poesia a serviço de ideologias é vender o corpo – e aí paga-se o preço da alma. A única fidelidade que um poeta precisa ter é com a poesia. Agora, se der na telha de falar sobre a revolta de Canudos ou a greve dos ferroviários, a gente fala.
Poeta não tem função neste sentido de “utilidade” – ele vai ali, tem a experiência e tal. Eu acho que a poesia é um fenômeno da natureza, igual a tempestade, rio, montanha. Poesia não é algo que eu crio com as palavras; sento e falo: “Agora com estas palavras vou criar isso ou aquilo”. As palavras me servem na medida em que dão carne a uma experiência anterior. Eu só posso escrever porque existe essa experiência anterior. Eu posso até cutucar um pouquinho em alguma palavra e ela me despertar a coisa, mas essa coisa que a poesia desperta é que é o grande mistério. Para mim, é o corpo de Cristo; ela é uma encarnação da divindade, é um experimento do divino. E o máximo desse experimento é um Deus que tem carne, que no caso é Jesus. É o máximo de poesia possível.
Eu acho que os maiores santos são os maiores pecadores. (...) Veja o caso de são Francisco; ele sabia, ele tinha consciência disso. Às vezes você vê pessoas desagradabilíssimas, mas com cada livro... Agora, a grande tentativa da gente é ser igual à obra. Há pessoas que conseguem essa coerência na vida. Eu vejo os textos, não importa se são poemas ou prosa.
Não existe palavra, palavra é coisa, é sentido. Essa mesa aqui é mesa apenas por causa da coisa. Então, o que é a palavra? É a coisa. A que nós damos um nome, no caso, entre aspas, “arbitrário”.
Eu descobri que o erótico é sagrado; eles confirmaram. Toda poesia mística é sensual, não precisa dividir. O corpo é algo preciosíssimo, não é? Então, só é erótico por isso, para animar a divindade.
Na poesia, a palavra vira a coisa. Aí é que está a unidade consubstancial.
[sobre como ordena um livro] Os poemas são indivíduos, quer dizer, têm unidade própria. De repente você olha e diz – isso aqui é um corpo, tem cabeça, tronco e membros. Por isso depois de pronto é que, em geral, você dá o título. Mas às vezes eu tenho o título antes. (...) Para mim, um livro tem um perfil tão individual – com o seu título, suas partes – que eu não gosto quando saem traduções em forma de coletâneas.
A poesia revela aquilo que a gente não sabe que sabe. O maior sofrimento nosso é o tempo. Esse discurso, por exemplo, o próprio discurso da vida, do envelhecimento, esse discurso e essa experiência são extremamente dolorosos. A poesia me resgata do tempo – o Pai é eterno.
O que me interessa, no fundo, é que os livros sejam poéticos, não importa se eles estão em forma de prosa ou em versos.
A técnica constitui uma unidade tão indivisível que, se você tira um verso do poema, ele desmonta. 139
No caso de A faca no peito (...) eu estava numa euforia muito grande, aquele livro tinha sido uma alegria doida. E o crítico, Felipe Fortuna, tinha feito uma resenha muito boa de O pelicano, meu trabalho anterior. Pois bem: ele leu e não gostou de A faca no peito, disse que era repetitivo. Eu me senti muito atingida, sofri muito, era a primeira vez que levava uma bordoada. Fui relendo o livro e dizendo: “Meu Deus, que absurdo!” E tirava um poema. E mais outro, até o fim. O Pedro Paulo [de Sena Madureira, seu editor] era contra. Mas eu só pensava que ficaria muito envergonhada se as pessoas olhassem para mim e falassem: “Olha lá a Adélia Prado, aquela que pôs 12 poemas horrorosos num livro”. Anos depois, na hora de editar a Poesia reunida, eu fui rever as poesias. “Trindade” não devia ter saído; esse outro também não... Só teve um poema que eu disse: “Esse aqui precisa de um ato cirúrgico”. Cortei aqui e ali, pronto, ele caiu de pé. Fiquei feliz e agora posso até encarar o crítico de novo, mas com argumentos.
quei numa felicidade... Sabe por quê? Ela tinha percebido a natureza poética de estar com o marido na cozinha limpando os peixes, de madrugada, na hora em que ele chegou da pescaria, entende? O que acontece é que a poesia verdadeira vai levar só arroz com feijão para quem não conhece mais e algo além disso para as outras pessoas. Meu pai é que falava disso de um jeito interessante. Ele só tinha o terceiro ano primário; quando eu lia um poema que ele não entendia, meu pai falava assim: “Superior esse negócio aí”. Ele pegava a poesia, o poético, aquele conjunto, não é? É por isso que a gente dá conta de escutar poesia em outra língua sem entender nada. Eu escrevo na hora que dá vontade. Faço tudo a mão, num caderninho, depois o Zé passa a limpo pra mim no computador. Eu não sei como isso acontece com outros autores, mas, se eu pretender e fizer um esforço para libertar minha prosa de qualquer lírica, então vou escrever a coisa mais horrível do mundo. Minha prosa nasce assim, não é que eu inclua poesia nela.
O oráculo é aquela voz que fala pelo invisível, é o invisível falando através daquele instrumento. Mas tem profecia na poesia: você fala muito além do que você próprio está percebendo. Isso também eu acho espantoso.
Eu comecei a escrever O homem da mão seca com muito entusiasmo, sabia tudo o que queria. Fiz o primeiro capítulo e aí me deu um branco. Foi uma crise muito grande. Eu não sabia, mas era uma depressão forte. Estava muito deprimida e não percebia. Só via que não estava dando conta de escrever. (...) O livro saiu em 1994, mas eu acho que fiquei uns sete anos sem escrever. Quando entrei nessa dificuldade pessoal muito grande, resolvi buscar ajuda e, pela primeira vez, procurei um analista, em Belo Horizonte. Foi uma fase depressiva, eu nem sabia que era esse o nome. Fiz seis meses de análise. Eu mesma falei quando achei que dava para encerrar as sessões. Depois de um processo interior muito grande, eu acabei descobrindo que o “homem da mão seca” era eu. Isso foi a coisa mais espantosa do mundo. Quando eu descobri, acabei o livro.
Sim, a poesia é isto: revelação, epifania, parusia. Mas o poeta é um coitado. Então, sabe o que é? Um estado de graça. É um estado de graça. Percebo quando algum poeta, alguma poeta, fala de biscoito, de tomate etc. pensando que deste modo está fazendo uma poesia do cotidiano. Tem gente que chega para mim e fala: “Minha mãe escreveu um livro de poesia tão parecido com o seu, olha aqui”. E, quando eu leio, está lá cheio de pão de queijo, café às duas horas com broinha, tudo rimado, sabe, com manteiguinha. Aí eu digo: “Que beleza!” [ri]. Isso acontece demais da conta. Um dia, recitei na televisão aquele poema que fala “meu marido se quiser pescar, pesque, mas que limpe os peixes” [“Casamento”, de Terra de Santa Cruz]. Depois, encontrei uma senhora na rua, uma pessoa muito simples, uma dona Maria, que disse: “Adorei aquele negócio de arrumar peixe”. Eu fi-
O pecado para mim não é uma coisa que eu faço, é uma coisa que eu sou. Eu sou o próprio pecado. 140
A maturidade é a perda dessa ilusão de fogo-fátuo. A gente suporta, e até fica feliz, quando uma pessoa diz que você é importante demais por causa de tal livro; você aceita porque percebe que, através de você, a pessoa foi atingida naquilo que é vital.
Não são pequenos atos isolados. Quando eu falo “pecado”, significa a consciência de eu ter me desviado da minha destinação interior profunda, que é Deus. Se eu recuso isso, estou realmente pecando. Isso se configura às vezes em atos concretos. Mas o pecado é a minha condição, não é coisa que eu faça. Eu nasço pecador, eu nasço pecado.
[sobre a natureza da humildade] Aceitar com alegria que a pessoa te beije as mãos e diga: “Nossa! Aquele poema teu me salvou”. Eu sei intimamente que o que salvou foi o Espírito Santo, a pessoa está confundindo o vinho com a garrafa. Mas eu tenho que ficar “beleza”, quietinha [ri].
O escatológico é condição, quer dizer, passando por ele, você aceita ou não a sua condição. Você permanece orgulhoso ou aceita – e deita e rola. Se você não aceita isso, passa a vida inteira fingindo que é um anjo, e não é. Se você aceita, é um descanso danado. Agora, é uma luta até que você aceite.
À medida que você cresce na sua experiência com Deus, o horizonte da poesia se alarga. Não tem limite para isso, não. Tem o limite do humano, só. Mas, enquanto você existir, tem possibilidade de alargar esse horizonte, você não precisa pensar: “Falei tudo, esgotei-me”. É besteira isso, porque a poesia não se esgota. Quem se esgota sou eu, no tempo, ou pela morte, ou pela falta de talento. Ou seja, você precisa ter poemas novos para falar daquela experiência.
Bem antes das adaptações, eu escrevi autos religiosos. Fiz com um amigo, Lázaro Barreto, uma peça chamada O clarão. Nela, Jesus Cristo nascia na fila do INPS. Foi um sucesso porque era teatro, ainda que de catequese, era teatro de verdade. Outros textos eram mais litúrgicos. Mas nada disso valia publicação. Talvez O clarão, se a gente olhar direito.
Existe uma definição de poesia, que eu li muito tempo atrás, que pode responder a essa pergunta: a poesia é o ato criativo que mais se aproxima do ato criador divino. Li isso e falei: “Beleza!” Mas é só num sentido: o poeta não cria do nada, Deus cria do nada. É essa a pequena diferença, um detalhezinho...
Humildade é o reconhecimento da sua realidade. Não tem soberba. É aquela feminista verdadeira que não esconde nem exibe o seu fogão. Eu sou menor do que a obra, entende? Não posso tomar a glória da obra; posso aceitá-la, se for o caso: “Que maravilha isso, graças a Deus”. E só. Você não pode ficar bobo, confundir o livro com você. A boniteza do livro com a sua.
Eu posso até parar de escrever, mas seria uma dor muito grande. Eu não sei se agüentaria, não. Só se morrer.
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Mineira de Divinópolis, Adélia Prado nasceu em 13 de dezembro de 1935. Escreve seus primeiros poemas com cerca de 15 anos, após a morte da mãe. Em 1958, casa-se com o funcionário do Banco do Brasil José Assunção de Freitas, com quem teria cinco filhos. Junto com o marido, entra em 1965 no curso de Filosofia da faculdade de sua cidade natal para, segundo suas próprias palavras, “escovar o pensamento”. Envia seus poemas ao poeta e crítico literário Affonso Romano de Sant’Anna, que os mostra para Carlos Drummond de Andrade. O poeta itabirano aconselha o editor Pedro Paulo de Sena Madureira a publicar os poemas, e, em 1976, é lançado Bagagem, seu livro de estréia. Sua segunda obra, O coração disparado, ganha o Prêmio Jabuti. Em 1979, estréia na prosa com Solte os cachorros e abandona o magistério, após 24 anos de dedicação. Em 1987, estréia Dona doida: um interlúdio, peça de teatro baseada nas obras Bagagem, O coração disparado, Terra de Santa Cruz, Solte os cachorros, Os componentes da banda e O pelicano. Dirigida por Naum Alves de Souza e protagonizada por Fernanda Montenegro, a montagem tem grande repercussão, tornando sua obra ainda mais conhecida. Em 1994, publica o romance O homem da mão seca, após uma crise de depressão que a bloquearia literariamente por vários anos. Em 1999, sua obra é agrupada nas coletâneas Poesia reunida e Prosa reunida.
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Ariano Suassuna
Ao sol da prosa brasiliana UNINDO O “HEMISFÉRIO REI” E O “HEMISFÉRIO PALHAÇO”, O AUTOR DE A PEDRA DO REINO E AUTO DA COMPADECIDA FALA DE LITERATURA, ARTE, RELIGIÃO, ÉTICA E IDENTIDADE NACIONAL era estético, do mesmo jeito que o nosso. Pois bem, o arcaico permanece porque ele é contemporâneo e eterno, diferentemente dessas artes ditas de vanguarda e que não são – em dois anos, viram retaguarda.
No meu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, está dito claramente que, como escritor, eu sou aquele mesmo menino que lia na biblioteca do pai (...). Eu encaro a literatura como um esforço. E por isso me rebelo contra as pessoas que querem olhar o livro como um objeto de mercado. É claro que ele é um objeto de mercado, porque pode ser vendido, mas não é isso o que mais importa – pelo menos, não no meu caso. O que eu considero fundamental é o ato de escrever.
Eu tenho a maior convicção de que, com os elementos da chamada arte arcaica, a gente pode fazer uma arte que se projeta até para o futuro. O homem é igual em qualquer canto, em qualquer época. O que varia são as circunstâncias através das quais cada comunidade realiza o humano.
Eu acho que aí há uma comunicação que vem do meu teatro. O povo brasileiro entende o meu teatro – e não estou com isso fazendo um auto-elogio. Esse entendimento vem das histórias populares, nas quais me baseio. Eu pensava que essas histórias fossem locais. Mas não. São universais, simbólicas. Quando o Padre do Auto da compadecida se deixa subornar para fazer o enterro do cachorro em latim, o que é isso? É o velho mito de Fausto, não? Ele está vendendo a alma ao diabo. E esse não é um problema nordestino nem local – é humano.
Eu não acho que a presença feminina seja menos marcante na minha obra do que a masculina. Talvez – voltando a Freud – a forte presença masculina tenha a ver com a maneira como meu pai morreu [o pai do escritor foi assassinado]. Só isso. Mas a presença feminina também é forte. Minha mãe foi uma figura excepcional. Vocês vejam, ela ficou viúva aos 34 anos com nove filhos e assumiu de tal maneira a família que a gente nunca discordava dela. Todos nós tínhamos consciência da situação que ela enfrentava com coragem e, se quisesse dar um desgosto a minha mãe, era só chegar perto dela se lamuriando da vida. Ela foi muito forte. Mamãe era nordestina, profundamente enérgica e profundamente meiga.
Eu fui muito criticado porque afirmei aqui um dia que um grande artista de vanguarda do século XX como Joan Miró tinha a mesma visão estética dos pintores das cavernas. Mas o próprio Miró chegou a dizer, textualmente, que depois da arte das cavernas tudo é decadência. Eu não sou tão exagerado quanto ele; não creio que tudo seja decadência, mas acho que a arte das cavernas tem a mesma validade estética de qualquer outra arte. E não é como as pessoas dizem, às vezes, que aquela é uma pintura de valor mágico feita para capturar a caça. Não existe comunidade que não tenha arte. O problema do homem das cavernas
Quando li Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski, encontrei uma frase que foi decisiva para mim. Lá estava escrito que, se Deus não existisse, tudo era permitido. Eu achava que nem tudo era permitido, então, pensei, isso quer dizer que Deus existe. Comecei a olhar Deus de outro modo e, ao conhecer a obra de Miguel de Unamuno, me tomei 152
Pedra do Reino, pela primeira vez, consegui reunir duas delas. Fiz as gravuras que aparecem no livro. Originalmente, eu tinha pensado em pedir as gravuras para o [Gilvan] Samico, mas ele estava viajando. Lembrei também que, se as gravuras fossem dele, precisaria assinar “Samico”, e eu queria que elas aparecessem como sendo de autoria do personagem. Depois d’A Pedra, eu me aprofundei no trabalho e cheguei às iluminogravuras.
de admiração por ele, que era um católico heterodoxo, exatamente como eu precisava (pois Dostoiévski era um católico ortodoxo). Pois bem: protestante ou católico, ortodoxo ou heterodoxo, não importa, todos eles lidam com a morte do mesmo modo, quer dizer, aceitam porque acreditam na existência de Deus. Eu digo com franqueza: não foi fácil, para nenhum de nós, aceitar o assassinato do meu pai, mas minha mãe não queria que a gente se alimentasse de ódio. Ela não disse, irresponsavelmente, durante muito tempo, que perdoava o assassino de papai. Demorou muito para que ela um dia chegasse e dissesse que tinha perdoado o criminoso.
Além do cômico, eu tenho um interesse muito grande pelo humorístico, que talvez seja o mais difícil dos gêneros cômicos. As pessoas normalmente têm uma idéia errada do humorismo; elas falam dos “humoristas” da TV – ora, humorista foi Cervantes, era Machado de Assis. No humorismo, você funde a delicadeza poética mais refinada ao riso. Eu não posso ser o meu próprio crítico, mas digo a vocês que o que tentei n’A Pedra do Reino foi um romance humorístico, uma novela humorística, épica e humorística. Agora, na peça O santo e a porca, a gente passa o tempo todo rindo e o final é doloroso e triste.
Eu não sei se vocês repararam, mas eu acho que o Deus dos calvinistas é excessivamente parecido com o Deus dos judeus, quer dizer, é um Deus muito masculino e paterno. E eu sentia a falta da presença feminina e materna, da virgindade, está certo? Foi isso que eu procurei na Igreja Católica através da figura de Nossa Senhora – e é aí que eu digo a vocês que, numa peça como Auto da compadecida, a presença feminina é fundamental.
O circo ainda hoje é uma coisa muito importante para mim. Isso porque eu acho que existem, na alma humana, dois hemisférios: o hemisfério rei e o hemisfério palhaço. No hemisfério rei, eu coloco tudo o que há de mais elevado e nobre. Se a pessoa exacerbar o hemisfério rei, ela cai numa excessiva crueldade, torna-se uma pessoa autoritária.
[sobre o Romance d’A Pedra do Reino] Eu acho que é mesmo uma tentativa de recuperação. Por isso eu acho o nome Pedra muito importante. É como se eu encaixasse uma pedra angular para erguer um monumento ao meu pai. Eu senti necessidade de fazer um romance épico n’A Pedra do Reino. Falo, por exemplo, no galope épico do Euclides da Cunha em Os sertões; a presença do Euclides está lá, como o Vieira também, que é outra presença forte em toda a obra. Mas, voltando a Joyce, não vejo um parentesco profundo entre nós, como também não vejo entre ele e Rosa – ao contrário do que disseram muitos por aí. Identificação mesmo com Joyce eu tenho é em relação ao Retrato do artista quando jovem.
Eu tenho dentro de mim um cangaceiro manso, um palhaço frustrado, um frade sem burel, um mentiroso, um professor, um cantador sem repente e um profeta. E é claro que alguma coisa da personalidade, ou das personalidades de um autor, vai aparecer na sua obra. Eu não gosto de poesia muito clara. Então, a minha poesia é carregada de imagens, de metáforas, portanto, meio difícil. Schelling dizia que a poesia é feita dos melhores momentos e dos melhores espinhos. E não é?
Eu vi que não podia, no século XX, atuar como um artista da Renascença. Na juventude, eu fiz pintura, escultura, música – e aí percebi que precisava escolher. Descobri, então, que fundamental para mim é a literatura. Mas veja bem: nunca deixei totalmente de lado as outras artes. Com A
Eu comecei a discordar do regionalismo ainda na década de 1950. Mesmo sem ter formulado teoricamente a minha discordância, eu já me opunha 153
ao regionalismo, que a meu ver se apresentava como um neonaturalismo. Naquela época, eu estava escrevendo o Auto da Compadecida; as pessoas me perguntavam se era uma peça regionalista – e eu dizia que sim, só para facilitar.
um doido como personagem (e eu tenho uma enorme simpatia por doidos). Vocês lembram a hora em que o Rubião morre e o narrador diz que, no caso dele, não existia nenhum objeto palpável para se coroar, que não existia “nem uma bacia”? Isso é uma alusão a Dom Quixote; veja aonde chega esse livro. De qualquer maneira, se vocês me perguntassem qual escritor eu tenho como patrono, como modelo, diria Euclides da Cunha. Posso reconhecer, e reconheço, todos os defeitos de interpretação dele, mas vejo Os sertões como uma grande obra literária.
Eu tinha certeza, já em 1955, quando estava escrevendo o Auto, que a peça podia ter alguns pontos de contato com o nosso José Lins do Rego – o fato de a ação se passar no sertão, de aparecer um cangaceiro –, mas ao mesmo tempo eu tinha consciência de que era algo diferente, que a proposta era diferente. A peça tem um elemento mágico, circense, que não era regionalismo. Era uma herança que havia em mim do romanceiro popular. Então comecei a discordar do regionalismo. Eu acho, por exemplo, que meu romance A Pedra do Reino não é regionalista, como se diz por aí. Eu já ouvi que A Pedra é um romance rural. Discordo. Ele se passa numa cidadezinha do interior, porém os problemas que aparecem ali não são do romance rural. A Pedra saiu em 1971, e a ação se passa em 1938; pois bem: a certa altura no livro, um jovem padre, ligado ao arcebispo, é assassinado. Esse era um drama vivido pelos jovens padres ligados a dom Hélder Câmara, não tinha nada a ver com a década de 1930.
Eu estive recentemente em Fortaleza e percebi que falava para uma quantidade maciça de jovens. Fica até antipático eu dizer que é essa minha “resistência” que me aproxima da juventude, mas sinto isso mesmo. Quantas vezes eu já não ouvi, depois de uma aula-espetáculo, os jovens me dizerem que vão continuar meu trabalho, que eu me tranqüilize porque eles vão levar adiante essas minhas posições. Fico sinceramente comovido com isso. Eu não tenho nada contra a cultura universal, mas, como digo sempre, não posso admitir que se considere sinônimo de universal a cultura de massa que estão querendo impor aí. Ela é o contrário da universalidade, é a uniformização. Acho que cada país tem que contribuir com sua nota particular, singular, diferente. Você veja uma obra como Dom Quixote. Na partida, não é um romance universal; é uma obra que nasceu local – ninguém mais espanhol do que Cervantes – e atingiu a dimensão universal. Por quê? Porque Cervantes expressou, mais do que ninguém, a partir de circunstâncias locais, os problemas do ser humano.
Acho Guimarães Rosa um escritor de importância mundial. Quanto às aproximações propriamente literárias, digo o seguinte: houve um tempo em que as pessoas reclamavam porque eu não escrevia como Graciliano Ramos; depois reclamaram porque eu não escrevia como Rosa. Gosto profundamente dos dois, mas, naturalmente, não sou nenhum deles. No Grande sertão, eu acho que houve um equilíbrio muito grande entre a revelação daquele universo extraordinário e a linguagem. Em outras obras, acho que Rosa exagerou um pouco na linguagem. Tutaméia, por exemplo, me parece amaneirado. Mas Grande sertão é uma coisa extraordinária. Eu tenho minha personalidade, sou incapaz da concisão. Eu preciso de horizontes mais amplos – tanto assim que a maioria das pessoas considera Dom Casmurro a obra-prima de Machado, e eu não, prefiro o Quincas Borba. Para mim, não tem nada dele que chegue perto. É um livro mais amplo, ali ele se soltou – e há
Eu tenho um medo enorme de arte militante. Não gosto. Acho legítimo que as idéias políticas, religiosas, filosóficas etc. de um autor apareçam na obra, mas não como militância. Eu gosto muito de um romance que tenha problemas filosóficos, políticos e religiosos implícitos. Mas gosto menos de um romance filosófico, político ou religioso, está certo? Quando o escritor carrega muito na idéia, quem paga é a arte. Aliás, termina pagando também a própria idéia. Se você pega uma peça como Ricardo III, de Shakespeare, vai ver que lá existe política, claro, mas aquela não é 154
naturalismo, o neonaturalismo. Eu acho que a arte, por natureza, não é uma imitação do real, é uma recriação. É uma realidade magnificada. Não é a realidade do dia-a-dia. Se fosse para imitar a realidade do dia-a-dia, melhor seria ficar com a própria realidade.
uma obra política. Já das peças de Bertolt Brecht, eu gosto menos. A arte, enquanto criação, nada tem a ver com a moral, não é verdade? O camarada pode ter um péssimo caráter e ser um grande artista; pode ser um excelente caráter e um péssimo artista. A ética não tem poder condenatório nem mutilatório sobre a arte, mas tem o poder declaratório – ela pode declarar que determinadas obras não devem ser colocadas em contato com um público adolescente, por exemplo.
Fico sempre muito atrapalhado quando me perguntam por que eu escrevo. Ninguém pergunta a um amolador de tesouras por que é que ele gosta de amolar tesouras, mas a um escritor vivem perguntando isso. Certo, passei por muitos problemas na infância, mas muita gente passou e nem por isso se tornou escritor. Acredito que todos aqueles acontecimentos contribuíram para eu ser escritor, mas não sei realmente por que escrevo. Desde os 12 anos senti esse impulso de escrever. Quando comecei a ler, passei a admirar os escritores e a querer me tornar um deles. Quando fui escrever A Pedra do Reino, eu estava querendo escrever um livro, um romance que expressas se meu uni ver so in te rior, no qual eu me realizasse, só isso. A literatura é a minha festa, é ali que eu toco e danço.
Eu acho que aquilo que a pessoa tem a dizer é que determina a forma de dizê-lo. Dom Quixote, por exemplo, só poderia ter sido escrito daquele modo. Quanto a Euclides, as pessoas reclamam do estilo dele, mas aquela era a única maneira de erguer o áspero e estranho universo dos sertões. Guimarães Rosa, a mesma coisa – aquela era a linguagem pela qual se poderia expressar o universo dele. De certa maneira, a arte é, sim, um acerto de contas com a realidade. É por isso que sou contra o
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Taperoá, São José do Belmonte e outros impérios aventurados
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Ariano Suassuna nasceu em 1927, na cidade de Paraíba, nome à época da capital do estado paraibano, cujo presidente (governador) era seu pai, João Suassuna – assassinado em 1930 em razão de tensões políticas que levariam à Revolução de 1930. Com a mãe e os oito irmãos, vive os anos seguintes em localidades diferentes a fim de evitar os inimigos políticos. Ao se fixar em Recife em 1942, expande as leituras, que vão de folhetos de cordel a clássicos como Euclides da Cunha, Eça de Queiroz e Guerra Junqueiro. Quatro anos depois, ao ingressar na Faculdade de Direito do Recife, entra em contato com meios artísticos e publica seus primeiros poemas. Em 1947, escreve a peça teatral Uma mulher vestida de sol; no seguinte, é levada ao palco Cantam as harpas de Sião. O ano de 1957 é consagrador: seu Auto da Compadecida, escrito em 1955, é encenado e premiado no Rio de Janeiro; escreve O santo a porca e O casamento suspeitoso, montada em São Paulo. No mesmo ano, casa-se com Zélia de Andrade Lima, com quem tem seis filhos. Com outros artistas, lança em 1970 o Movimento Armorial, projeto de valorização da cultura popular nordestina que inspiraria a arte erudita brasileira. Um ano depois, publica o “romance armorial-popular brasileiro” A Pedra do Reino. Toma posse na Academia Brasileira de Letras em 1990. É também autor, entre outras obras, das peças A pena e a lei (1971), Farsa da boa preguiça (1974), dos romances História d’o rei degolado nas caatingas do sertão (1977) e Fernando e Isaura (1994), e do ensaio Iniciação à estética (1975). Seus poemas estão reunidos em antologias e seletas.
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Ignรกcio de Loyola Brandรฃo
O escritor é deus O AUTOR QUE SAIU DE ARARAQUARA PARA TRANSFORMAR SÃO PAULO EM PERSONAGEM DE FICÇÃO REJEITA O EXPERIMENTALISMO, MAS PRODUZIU ALGUNS DOS ROMANCES MAIS AUDACIOSOS DA LITERATURA URBANA BRASILEIRA
Sempre gosto que pensem que meus livros são autobiográficos. No fundo, as pessoas gostariam que os escritores escrevessem romances autobiográficos, porque assim mitificariam mais ainda a figura do autor. Então, mistifico. Finjo que são autobiográficos dados da minha imaginação; me coloco um pouco aqui, um pouco ali, para dar a cor do autor na personagem. Imaginem se eu tivesse vivido todas as situações que descrevi. Escrevo coisas que gostaria de ter vivido. Componho uma vida idealizada. Na verdade, se em cada livro eu fosse autobiográfico, a essa altura teria um livro de memórias. Monto personagens com alguns detalhes que recolho em mim. Só que o meu espelho me engana, é traiçoeiro, deformante. Monto personagens e situações com minha memória, minhas lembranças, meus sonhos, minhas observações (aqui, devem ser uns 60%), com o que escuto.
Todos os dias eu via meu pai lendo. Ele saía do trabalho por volta das 5 e meia, 6 horas da tarde. Vinha para casa e ia picar lenha – nosso fogão era a lenha; meu pai trabalhava o dia inteiro e, quando chegava, ainda precisava ir cortar lenha para minha mãe fazer o jantar. Depois disso, ele tomava banho e, enquanto esperava a hora de ir para a mesa, sentava e lia. No começo, ele não tinha uma sala, uma biblioteca; eram apenas umas estantezinhas, com uns poucos livros. Com o tempo, foi comprando mais e mais livros, sempre com um sacrifício tremendo, e reservando um lugar maior para as estantes. Enquanto esperava a hora de comer, meu pai ficava lendo, e eu percebia, primeiro, uma concentração enorme, ele realmente se desligava de tudo quando abria um livro. Eu via que ele estava em outro mundo e que esse era um mundo muito particular. Um dia eu perguntei: “É tão bom assim ler? O sr. gosta tanto, todo dia o sr. lê”. Ele respondeu: “Essa é a minha forma de viajar; já que eu não posso viajar de verdade, viajo pelos livros”. Isso nunca mais saiu de mim.
Sempre fui introvertido, tímido, calado. Na escola, eu me sentia “rejeitado”, entre aspas. Não sabia jogar futebol, não era bem vestido, não era muito bonito, não era nem o mais inteligente – então eu ficava olhando, olhando, olhando, e aí comecei a ver coisas que às vezes os outros não viam.
O jornal que chegava [a Araraquara] era o Diário de São Paulo. Meu pai lia, passava para o pai dele, que depois mandava para o barbeiro. O barbeiro lia e em seguida recortava o jornal inteiro em tiras, que ficavam no balcão para ele limpar a navalha. Meu avô paterno gostava muito de ler sobre política pra depois ir discutir com o barbeiro. Esse barbeiro era o Lazinho, homem de esquerda (naquele tempo, eu não tinha a menor idéia do que significava ser de esquerda). Foi o Lazinho que disse para mim mais tarde, muitas vezes: “Olha, vai embora, não fica aqui; aqui não é cidade para você”.
[sobre a literatura fantástica] Eu tenho a sensação de que tudo começou na igreja. Começou quando eu era coroinha, começou com as histórias de Cristo ressuscitando. Eu nunca entendi essa história de Cristo ressuscitando, subindo aos céus, vivo. Ninguém subia aos céus vivo; por que Cristo subiria aos céus vivo? Esse meu apego ao fantástico começou, então, com a leitura da Bíblia, dos Evangelhos – de repente o cego vê, o coxo anda. Os milagres, para mim, eram uma coisa fan166
tástica, e isso foi ficando guardado, até aparecer na minha ficção.
tos se referiram a um episódio que está no Zero, quando Rosa recebe um telefonema anônimo xingando-a de puta, e, em Dentes ao sol, a mesma cena é mostrada do outro lado: daqueles que xingaram Rosa de puta? Há dezenas de situações como essas que acabam formando um link, dando uma espécie de unidade à obra, ao meu mundo. E os personagens recorrentes? Quantos perceberam que o bar mais freqüentado de Arealva em O anjo do adeus se chama Noite de Cristal? Não parece familiar? Será que os críticos não deveriam ter uma idéia mais geral, ampla, abrangente, da obra de um autor? Será que não deveriam conhecer todos os seus livros para que pudessem expandir a avaliação, analisar mais profundamente sua literatura? Será que deste modo não auxiliariam mais o leitor e o próprio escritor, funcionando como uma ponte entre eles? A maioria dos autores brasileiros, da minha geração e os mais novos, não tem pontos de apoio para saber como se situam dentro da literatura ou da própria história da literatura. Claro que a nós cabe escrever, produzir, criar e aos teóricos, analisar. Mas nós, autores, nos sentimos órfãos, desamparados. Ou temos pela frente resenhas superficiais, inconseqüentes, que não auxiliam nem o leitor nem o autor, ou nos defrontamos com trabalhos herméticos, inacessíveis, produzidos para uma pequena confraria, criados para angariar pontos na carreira universitária. Claro que parte da culpa é da própria mídia, de onde muitos de nós saímos, que restringe o espaço e age inconseqüentemente diante da literatura. Pior do que isso, eu sinto nos meios de comunicação um terrível desprezo pela literatura brasileira em geral.
Depois do jantar, as pessoas colocavam cadeiras nas calçadas e conversavam, contavam histórias. Cada uma contava um caso de assombração maior do que o outro. Assim, tudo o que era fantástico ficava natural para nós, crianças. Isso, para não falar dos contos de fadas, reis, gnomos, duendes, princesas, magos, varinha de condão. Depois eu fui ler Monteiro Lobato – e lá você tinha o pó de pirlimpimpim, que podia levar a gente para onde se quisesse. Um dia, eu cheguei à conclusão de que tudo era permitido em literatura. E fui combinando essas fantasias com o mundo de hoje, com o caos urbano – violência, engarrafamentos, miséria. A minha geração veio do jornalismo. A geração anterior vinha do funcionalismo público, das autarquias. A minha geração rompeu com isso, ela veio dos meios de comunicação. Eu fiz Zero porque queria derrubar o governo. Para mim, era a mesma coisa que jogar uma bomba. Eu não era violento o suficiente para jogar uma bomba, para pegar um fuzil – mas eu achava que a minha literatura podia modificar cabeças, pôr armas nas mãos das pessoas. Eu nunca me identifiquei com experimentalismos. E não considero Zero um livro experimental. Ele foi pensado daquela forma porque era a única que eu acreditava capaz de exprimir um país que estava na minha cabeça, explodindo.
Eu nunca gostei da literatura do campo, aqueles personagens não tinham nada a ver comigo. Não estou rejeitando os bons livros escritos em cima dessa temática – aliás, acabei de comprar uma nova edição do José Lins do Rego. Mas sempre me interessei mais pelas coisas da cidade. Por que é que eu lia todos os romances policiais que me caíam nas mãos? Porque os autores falavam de detetives e bandidos da cidade. Essas eram coisas que eu conhecia; eu não conheço o campo.
[sobre a crítica] Eu gostaria, por exemplo, que a crítica estivesse atenta à intercomunicabilidade que existe entre meus livros. Há referências que passam de um texto para o outro. Há personagens de um livro que reaparecem rapidamente em outro. Há situações vistas de ângulos diferentes. Há ruas, casas, que se repetem. Quantos perceberam, quantos percebem? Quantos perceberam que o slogan “O trabalho liberta”, que surge nas prisões no final de Não verás país nenhum, é o mesmo que estava no portão de entrada de Auschwitz? E olhem que o livro foi criticado por um mundo de críticos. Quan-
[sobre a relação com São Paulo] Quando cheguei, a primeira coisa que tentei foi conquistar a cida167
de, coisa de caipira. Era tão bom ser paulistano, voltar para Araraquara e dizer: “Eu moro em São Paulo”. É muito difícil, hoje, perceber a dimensão do que estou falando. Mas, lembrem-se, vim para cá no final dos anos 1950. Pensem no que era São Paulo e no que era o interior naquela época. As cidades interioranas viviam como que sitiadas. Araraquara tinha trens que vinham para cá e mais nada (os ônibus só começaram a fazer o trajeto para São Paulo em meados dos anos 1960); televisão era rara, telefone era raro, os jornais chegavam apenas para alguns assinantes. O cinema era a única diversão. Numa cidade como Araraquara, São Carlos, Catanduva, Rio Preto, você ficava ilhado. Então, quando cheguei a esta cidade cheia de prédios, cinemas, teatros, livrarias, eu queria devorar tudo ao mesmo tempo. À medida que fui trabalhando no jornal, descobri que ser repórter aqui era também um meio de freqüentar todos os lugares, como acontecia em Araraquara. Comecei a fazer isso. Passei a freqüentar inclusive a noite – descobri que em São Paulo, ao contrário de Araraquara, a noite nunca fechava. Saía do jornal e ficava indo de um lado para outro até terminar às 4 da manhã na praça da República. Foi então que passei a me relacionar com mulheres da noite, lutadores de boxe, policiais, um mundo de gente decadente, e comecei a sentir necessidade de aproveitar todo esse universo na ficção. Foi assim que surgiu Depois do sol, meu primeiro livro. A cidade passou a ser personagem, a cidade e tudo o que tem dentro dela.
O escritor é Deus. O poder do ficcionista é imenso, é muito maior do que o de qualquer um desses políticos que estão aí. Quando você escreve, você dá vida, amor, morte, faz vento, tempestade, constrói cidades, você faz o que quiser – mas principalmente você faz os seres humanos se encontrarem, se reencontrarem, se odiarem, se amarem. No mundo de hoje, nós teríamos milhões de personagens, porque, mais do que nunca, as pessoas se transformaram em objeto. Mas talvez os escritores também tenham virado objeto. Se alguém quiser chamar minha literatura de antiintelectual, chame. Eu nunca penso nessas coisas, não sei me rotular. Só sei que estou escrevendo. Quanto à falta de romancistas de idéias no nosso país, penso que isso possa estar ligado à noção de que o romance de idéias é chato. Este é um preconceito que deve existir porque, no fundo, alguns romances de idéias que passaram por aqui eram, de fato, profundamente chatos. Não é um problema do gênero, porque o romance de idéias é, em geral, interessante. Acho poesia uma coisa tão difícil de fazer... É preciso ter uma capacidade enorme para colocar toda a carga simbólica numa palavra. Eu não tenho isso. Também não sou um grande leitor de poesia, sou médio. Houve uma fase em que eu, toda manhã, lia uma poesia do García Lorca, não sei bem o porquê. Bem, Lorca era um gênio, claro. Isso, infelizmente, eu não sou, já passei da idade. Nem gênio, nem mito – os mitos têm que morrer muito cedo.
No Brasil, todos querem escrever grandes livros, todos são compelidos a se transformar em Guimarães Rosa, a produzir o grande romance brasileiro. Essa ambição desmedida acaba inibindo os autores. Será que Rosa, um monumento, não acabou fazendo mal à literatura brasileira? Poucos autores brasileiros se dispõem a fazer histórias para serem digeridas rapidamente. Não existe aqui a literatura de entretenimento, tema de um magnífico estudo de José Paulo Paes (como ele faz falta!). Os escritores agora só querem conquistar os críticos, não querem conquistar o público, o país. Ninguém se preocupa mais em escrever como João Antônio, como Plínio Marcos. O grande problema é que as pessoas têm vergonha do Brasil.
O que me angustia é que eu gostaria de saber quem eu sou exatamente. O que represento? Vou ficar ou não? No fundo, você tem essa angústia dentro de si. Não adianta bancar o humilde: eu gostaria de ficar, mas quem determina isso não sou eu, ninguém sabe quem determina, de repente a obra morre comigo. Ou, quem sabe, a partir do ano que vem ninguém mais me leia, e eu chamo isso de purgatório do escritor. [sobre a militância ecológica] Eu gostaria de esclarecer que, em primeiro lugar, nunca fui militan168
me, está tudo quieto. Eu vejo o dia nascer daqui, é uma coisa muito boa, me dá paz. Quando volto, à noite, do trabalho, fico só com a família e vou dormir tarde. Se dormir quatro horas, está bom. Nunca escrevo nos fins de semana. Sábado e domingo são dias de lazer.
te e, em segundo, jamais fui nem sou um escritor ecológico. Por acaso, o tema entrou na minha vida e na minha obra. O que vejo hoje é uma consciência maior, sem que isso signifique radicalismo ou uma coisa fanática. Quando eu ando pelas cidades, percebo que os estudantes estão preocupados com o rio que está poluído, que as pessoas não querem as praias sujas. Chega uma hora que o homem entende que está se matando.
Não sou um escritor profissional. Fui durante um período, de 1980 a 1990. Mas acho que um dia será possível que alguns autores brasileiros, além de Jorge Amado, Verissimo e Paulo Coelho, vivam de literatura.
Queriam que eu militasse, que entrasse para a política com uma plataforma de defesa do meio ambiente. Minha política é escrever livros.
No fundo, eu chego à conclusão de que fiz literatura para mim; quero dizer, primeiro para mim. Mas, se ela começou a pegar nos outros, é porque os problemas, as neuroses, os conflitos eram os mesmos. Então, foi uma forma também de estar com os outros.
Quando estou fazendo um romance, eu começo às 5 da manhã e escrevo até as 9 e meia. Depois tomo banho, faço a barba e vou a pé para a Vogue. Gosto de começar cedo porque nessa hora não tem telefone, não tem fax, a família toda dor-
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Ignácio de Loyola Brandão nasceu em 1936, em Araraquara (SP). Nos primeiros anos de escola, as leituras apaixonadas de livros e dicionários rendem-lhe um vasto vocabulário, a ponto de vender sinônimos aos colegas de classe para a conclusão de trabalhos. Trocava por figurinhas e bolinhas de gude. Nessa passagem da vida se baseia o conto “O menino que vendia palavras”, o primeiro texto ficcional publicado, em 1965, na revista Cláudia. Inicia-se no jornalismo em 1952 como crítico de cinema em veículos de Araraquara. Muda-se para São Paulo em 1957 e torna-se repórter do Última Hora. Depois de passar uma temporada em Roma como correspondente e com a intenção de trabalhar como roteirista em Cinecittà, lança o livro de contos Depois do sol (1965). Em 1968, sai Bebel que a cidade comeu, adaptado no mesmo ano para o cinema por Maurice Capovilla. Publica na Itália, em 1974, o romance Zero, que seria lançado no Brasil em 1975 e censurado pelo Ministério da Justiça no ano seguinte. Ainda em 1976, saem Dentes ao sol e Cadeiras proibidas. Depois de uma experiência na Alemanha em que teve contato com o movimento verde, lança Não verás país nenhum (1981), romance de antecipação dos desastres ambientais que marcariam o mundo nas décadas seguintes. Sua experiência com um aneurisma cerebral, que o leva a uma cirurgia bem-sucedida em 1996, é relatada em Veia bailarina, publicado um ano depois. No mesmo ano, inaugura a série de encontros literários “O escritor por ele mesmo”, do Instituto Moreira Salles. Diretor de redação da revista Vogue, Ignácio de Loyola Brandão é também autor de O beijo não vem da boca (1985), O ganhador (1987), O homem que odiava a segunda-feira (1999) e O anônimo célebre (2002), entre outros.
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Carlos Heitor Cony
Em nome do pai AFASTADO DA LITERATURA EM PLENA CELEBRIDADE, O AUTOR FALA DAS QUASE MEMÓRIAS QUE MARCARAM SEU RETORNO À FICÇÃO DEPOIS DE 20 ANOS DE SILÊNCIO
tava felicíssimo mesmo – e aí descobri que só escrevia quando estava infeliz. Quando voltei a ficar infeliz, com a doença de Mila [cadela do escritor], fui escrever de novo.
[sobre a figura do pai em Quase memória] Ele não me influenciou em nada para que eu me tornasse escritor. No caso de Quase memória, percebi que ele era um personagem tão grande que eu só poderia entendê-lo – ou não entendê-lo –, só poderia captá-lo através de uma arte. Se eu fosse pintor, seria um quadro. Se eu fosse músico, teria saído uma sinfonia – jocosa, alegre. Como não dou nem para músico nem para pintor, achei que tinha de captá-lo através da palavra. Mas vejam que não fiz uma coisa pesada, macabra, pois o personagem que eu tinha na minha frente não permitia isso, diferentemente dos pais que aparecem nos meus outros romances – como O ventre [1958] e Matéria de memória [1962], por exemplo –, que são tratados com uma crueldade terrível.
[sobre a decisão de entrar para o seminário] Minha família não era tão religiosa assim. Mas, quando entrei no seminário, meu pai, mais do que minha mãe, passou a achar importante ter um filho que iria ser padre. Era uma coisa importante para ele dizer aos amigos. Por isso abraçou a causa com muito entusiasmo, em proveito próprio. Meu pai sempre misturou muito as coisas nesse ponto. Quando ele dizia “meu filho não mente”, estava elogiando não o filho, mas a si próprio. [sobre a obsessão pela figura paterna] Não sou ligado a Freud nem à psicanálise, mas de fato esse problema da paternidade despertou a atenção de psicólogos para a minha obra. O que eu digo sempre é o seguinte: na tradição da literatura ocidental, a mãe sempre teve muita importância, sempre foi beatificada. Isso, desde a mitologia grega. A mãe sempre foi colocada numa redoma especial, enquanto o pai não. Uma das conseqüências disso é que, em determinados países, uma pessoa que tinha a mãe ofendida, e mate por esse motivo, é absolvida. A mãe, portanto, na literatura ocidental, não é um ser humano que teve uma relação sexual com um homem e depois pariu uma criança. Ela é uma deusa, é Nossa Senhora. Já o pai não passa de um reprodutor. Pois bem, isso sempre me chamou a atenção. Eu nem pensava em escrever O ventre e já tinha uma cisma com essa tendência. Eu gosto muito do Kafka, é evidente, o Kafka de A metamorfose [1915], de O castelo [1926], mas há um livro dele, Carta ao pai [1919], que
Minha ligação com a escrita nasceu mesmo no dia em que eu, que tinha um problema de fala – trocava consoantes, como, por exemplo, o “g” pelo “d” –, fui gozado por um grupo de garotos que me pediram para falar uma frase com a palavra “fogão”. Escrevi, então, várias vezes a palavra “fogão”, mostrei para eles e descobri que daquele jeito ninguém ria de mim. Até Pilatos, que saiu em 1974 e marcou meu afastamento da literatura por mais de duas décadas, eu tinha escrito, a partir de 1958, nada menos do que nove romances – um depois do outro, na máquina de escrever. Além disso, havia feito três livros de crônicas e um de contos, uma biografia do Vargas. Quer dizer, tinha trabalhado muito. Aí parei, porque casei com uma mulher bem mais jovem, uma pessoa inteligente, advogada, mas que não gostava muito de vida intelectual, não tinha vida intelectual. Eu vivia muito bem com ela, es180
Era o romance que eu queria fazer. É verdade que alguns tentaram escapar do triângulo. Alain Robbe-Grillet, por exemplo. Mas tudo o que ele fez foi colocar um olho vendo esse triângulo – e não virou nada.
me impressionou demais. Eu li esse livro quando era jovem, com 22, 23 anos. Kafka tinha uma revolta muito grande contra o pai. Ele acusava o pai por ser judeu, por estar preso ao idioma alemão, por ficar tuberculoso. Eu reparei que a literatura do Ocidente sempre responsabilizava o pai pelos fracassos e enaltecia a figura da mãe.
Eu só fui procurar a literatura por deficiências e carências. A literatura teve sempre para mim esse lado de abrigo, de apoio.
A literatura não me torturou – ela me enojou.
Quando você escreve, acaba se traindo – coloca alguma coisa sua dentro do livro. (...) A respeito de Deus, digo o seguinte: existe aquela famosa máxima do Nietzsche de que Deus morreu. Eu nunca ia dizer “Deus morreu”. Não poderia afirmar isso, em primeiro lugar, porque, para morrer, Ele teria de ter existido. Eu considerava Deus um capital grande, ao qual eu tinha um acesso muito controlado. Esse capital eu havia ganho, me ensinaram que eu tinha uma conta em Deus, que eu podia sacar – e eu fui sacando. Saquei durante muitos anos; desde a minha infância, qualquer coisa eu apelava para Deus, Deus, Deus. Até que um dia vi que meus fundos tinham acabado. Recebi aquela cartinha do banco: saldo devedor. De repente eu soube que não tinha mais Deus. Por isso deixei o seminário. Não era a disciplina eclesiástica, por exemplo, que me incomodava. Não foi isso. É que de repente eu descobri que tinha esgotado o meu capital de Deus. Vamos pensar que Deus fosse medido em reais. Eu imaginava que tinha 2 milhões de reais em Deus. Fui gastando, gastando e um belo dia o banco me avisou: “Você está sem saldo; se passar cheque, será considerado estelionatário”. Então minha conta foi fechada. Eu não tinha mais Deus – portanto não podia sacá-lo. Agora, tem uma coisa: uns dez anos atrás, alguém, misteriosamente, fez um depósito no banco e eu recebi uma cartinha dizendo que tinham reaberto a minha conta, com um capitalzinho. Quer dizer, eu podia voltar a sacar; não muito, como antes, mas alguém havia posto alguma coisa lá em meu nome – um tio qualquer, uma leitora, um amigo –, e eu podia passar cheque de novo.
Em pouco tempo, tive tudo. Era totalmente desconhecido no meio literário, fiz o meu primeiro livro e comecei a ganhar prêmios. Veio o editor mais importante da época e quis publicar o primeiro romance que escrevi na vida. Depois veio o jornalismo. Em 1964 eu assumi uma posição extremamen te crí ti ca em re la ção ao re gi me mi li tar. Durante algum tempo, o Correio da Manhã, o jornal em que eu trabalhava, foi o único que se bateu contra a ditadura. Lá, eu era o opositor mais violento – acabei preso e processado pelo Costa e Silva [ministro da Guerra na época]. (...) Comecei a sentir um desprezo pela vida de escritor que foi se tornando cada vez maior. Quis então descarregar esse sentimento num livro antiliterário, num romance que demonstrasse esse desapego, esse nojo que eu estava sentindo pela literatura. Aí, como se sabe, escrevi Pilatos, que considero, conforme já falei tantas vezes, o meu melhor livro – e anunciei que abandonava a ficção. Nos anos 50, eu escrevi um artigo para o “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil chamado “Funeral do romance”. Nele, eu dizia que o romance no século XX tinha feito um ângulo reto, tendo na vertical Joyce e na horizontal Kafka. Na linha do Joyce, haveria uma linguagem toda desarticulada, com uma história articulada. Na vertente do Kafka, o contrário, uma linguagem articulada e um conteúdo completamente louco. Aí surgiu um William Faulkner, por exemplo, que fechou o triângulo, fez a hipotenusa. (...) Às vezes ele é Joyce e em outras é tipicamente Kafka. A partir daí, todo romance ficou preso nesse triângulo. Você não consegue sair disso. Pilatos é um romance com princípio, meio e fim, não tem nenhuma agressão ao tempo, mas a história é completamente louca, inviável. Meu limite estava ali.
Eu admito a transcendência, admito que é possível a gente superar a consciência humana, superar a miséria humana, através de uma concepção 181
de vida, de uma visão de mundo transcendente. Isso os santos fizeram maravilhosamente.
lar em companhias ilustres, Flaubert tem aquela frase famosíssima: “Madame Bovary c’est moi”.
[sobre o discurso de posse na Academia Brasileira de Letras] Pela tradição, o discurso de posse na Academia precisa ser dividido em três partes. Na primeira, o novo acadêmico fala dos ocupantes mais antigos, depois fala da pessoa que o precedeu na cadeira e por fim fala de si mesmo. Segui a regra, num discurso cronometrado. Na última parte, quando precisei falar de mim, tratei de esclarecer as coisas. Houve, inclusive, cobrança nesse sentido; queriam que eu me explicasse politicamente. Tinha gente que dizia: “Você é um comunista histórico!”. Eu respondia: “O que é isso?! Os comunistas me detestam”. Vinha outro: “Você é de direita”. Eu, na hora: “Como?! Fui preso seis vezes pelo regime militar!”. Percebi que precisava deixar a coisa às claras no meu discurso. Então, está lá: “Diante de tanta miséria, diante de tanto velho sem casa, tanta criança sem pão, diante da falência da ditadura, da democracia, da Monarquia e da República, de dar um pão para cada um, um teto para cada velho, só me restou me tornar vagamente anarquista”. E completei: “Não tenho disciplina bastante para ser de esquerda, não tenho firmeza ideológica para ser de direita e também não aceito a posição comodista e oportunista do centro. Sendo assim, só me resta ser um anarquista humilde, triste e inofensivo”. O pessoal levantou para bater palmas.
É impossível, claro, viver sem influências. Peguem aí os maiores sábios do mundo – todos eles sofreram influência de alguém. Agora, existem influências escolhidas e outras não. No meu caso, Sartre foi escolhido e Machado de Assis, Manuel Antônio de Almeida e Lima Barreto, três cariocas, não. [sobre ser um “escritor sem estilo”] Realmente acredito que estilo seja para gente grande. Vejam o Raul Pompéia. Eu fiz uma adaptação de O Ateneu [1888], trazendo-o para uma linguagem mais contemporânea. Pompéia tem estilo. No caso dele, em vez de dizer que o estilo é o homem, o correto seria falar que o homem era o estilo. Claro que eu gostaria de ser Flaubert, de ser alguém que, por exemplo, escrevesse um parágrafo por mês. Mas o meu DNA não dá para isso. (...) Se eu fosse buscar o estilo, teria de nascer outra vez; já a técnica me sai naturalmente, devido, talvez, à agilidade. [sobre a inclinação para a memorialística] Não vou dizer que tenha procurado a memorialística por uma questão de facilidade, por exemplo. A memorialística, no fundo, é uma questão de gosto – não é por acaso que tenho dois livros com a palavra memória no título, Matéria de memória e Quase memória. Realmente aprecio essa vertente, embora a memorialística seja acusada, por alguns, de subliteratura.
Todo escritor tem complexo de Adão, de dar nome às coisas. Deus fez o mundo e chamou Adão para dar nome às coisas. Isso é o que qualquer escritor gostaria de fazer.
Eu li muita poesia. Nunca fiz poesia. Quer dizer, em Informação ao crucificado há um poema meu, o hino oficial do seminário – são versos meus; mas nunca fui atraído pela idéia de me tornar poeta. Agora, antes de ler prosa, eu li muito Manuel Bandeira, meu poeta predileto, li Drummond, claro, García Lorca, Horácio (aliás, com Horácio eu me identifico, tem um lado dele que é muito meu). Mas o grande poeta para mim, realmente, é Manuel Bandeira.
Eu não digo que os personagens sejam clones do autor, mas são pastiches dele. É o autor se escondendo de uma coisa ou de outra. Você pode sentir isso em Dostoiévski. Vocês hão de convir que Ivan Karamazov é o Dostoiévski do passado. No meu caso, eu já tendo um pouco mesmo para o gênero memorialístico. Tenho modelos ilustres. O embrulho de Quase memória tem a mesma função da madeleine no chá de Proust (aliás, eu nem precisei abrir o embrulho para desembrulhar todas aquelas lembranças do pai em Quase memória). E, bem, por fa-
Quando a gente vai escrever, uma das primeiras coisas que acontecem é a perda do pudor – a me182
nos que você decida se colocar numa posição de cautela. Mas aí, fatalmente, você acaba se traindo.
Há determinados momentos em que a arte tem de ser engajada, pode e deve ser engajada. Mas isso não pode acontecer sempre. Em momentos críticos, por exemplo, na época do nazismo na Europa, compreende-se a posição de um Camus, de Sartre. Podese compreender Jorge Amado em Os subterrâneos da liberdade [1954], Graciliano e suas Memórias do cárcere [1955]. O fato de ser engajada não quer dizer que a arte seja melhor ou pior. A obra engajada pode ser uma maravilha ou uma porcaria. Eu considero Antes, o verão, que não tem nada de política, um dos meus melhores livros – e eu o escrevi em 1964.
O jornalismo me deu unicamente velocidade e concentração. Foi só isso – ele não me deu nada nem quanto à técnica nem em relação a temas. Eu sou do tipo que era o Jorge Amado. Passo um tempo sem fazer nada. E, de repente, não atendo ninguém – até acabar o novo romance. Tenho medo de interromper um livro. Romance interrompido é romance perdido. Às vezes acontece de eu estar cansado, comecei a escrever às 3 horas da tarde e são 3 da manhã. Parei para jantar, fumei um charuto. Estou cansado, não agüento mais. Aí, desligo o computador e vou dormir – mas vou dormir com medo. Será que vou terminar amanhã?
O jovem não tem de abraçar a literatura, é a literatura que tem de abraçá-lo. É ele que tem de ser escolhido pela carreira literária, e não o contrário. Você pode escolher uma roupa, mas não a literatura nem outra carreira artística.
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Rio de Janeiro
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Filho do jornalista Ernesto Cony Filho, Carlos Heitor Cony nasceu em 1926, no Rio de Janeiro. Com problemas de fala na infância, que o tornavam alvo constante de chacotas, percebe que deve se dedicar à palavra escrita. Entra no Seminário Arquidiocesano de São José, que abandona sete anos depois. Estréia na imprensa ao cobrir férias de seu pai no Jornal do Brasil. Casa-se com Maria Zélia Machado Velho, a primeira de suas seis uniões conjugais. Inscreve o romance O ventre no Prêmio Manuel Antônio de Almeida de 1956. A comissão julgadora afirma que a obra é muito boa, mas muito forte para ser premiada. Ganha o concurso nos dois anos seguintes, com A verdade de cada dia e Tijolo de segurança. O ventre é publicado pela Civilização Brasileira, editora com a qual assina um contrato para a entrega regular de obras de ficção. Começa a trabalhar no Correio da Manhã, do qual se demite em 1965, após uma crônica contra o Ato Institucional n. 2. No mesmo ano, é preso após uma manifestação, a primeira de suas seis prisões por motivos políticos. Colabora com as revistas do grupo Bloch e, mais tarde, com a Rede Manchete. Em 1974, publica Pilatos e afirma que não voltaria a escrever outro romance, mas lança, em 1995, Quase memória, inspirado em suas lembranças do pai. Em 1993, começa a escrever na Folha de S. Paulo. Recebe o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra. Volta a escrever romances com regularidade e publica A casa do poeta trágico e A tarde da sua ausência, entre outros.
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Euclides da Cunha
Um cânon entre a ciência e a arte CONFINADO AO COTIDIANO DE ENGENHEIRO, AO “CÍRCULO VICIOSO DE UMA FAINA INGRATA”, O ESCRITOR VISLUMBROU NA FUSÃO DA POESIA COM A TÉCNICA A “TENDÊNCIA MAIS ELEVADA DO PENSAMENTO HUMANO” Passo agora uma existência soberanamente monótona, uma vida marcada a relógio, mecânica e automática, como de uma máquina, oscilando indefinidamente, sem variantes, de casa para a Escola e da Escola para casa – com escalas pela rua do Ouvidor, aonde apanho um golpe de ar da existência comum, o qual porém pouca impressão me faz. Acredito porém que isto durará pouco, não dou para a vida sedentária, tenho alguma coisa de árabe – já vivo a idealizar uma vida mais movimentada, numa comissão qualquer arriscada, aí por estes sertões desertos e vastos de nossa terra, distraindome na convivência simples e feliz dos bugres.
A minha índole é contraposta ao meio tumultuoso em que estou, aonde a luta pela vida lembra, pela ferocidade e pelo bárbaro egoísmo – a agitação da idade das Cavernas. Estou entre trogloditas que vestem sobrecasacas, usam cartola e lêem Stuart Mill e Spencer – com a agravante de usarem armas mais perigosas e cortantes que os machados de Sílex ou rudes punhais de pedras lascadas. (Carta a João Luís Alves, 09.10.1895. Ibidem, p. 87)
Referindo-me ao mau estado das coisas da nossa terra se alguma mágoa me assalta é a mesma de fisiologista qualquer examinando a marcha da sífilis num organismo estragado.
(Carta a Reinaldo Porchat, 26.08.1892. Correspondência de Euclides da Cunha, org. de Walnice Nogueira Galvão e Oswaldo Galotti. São Paulo: Edusp, 1997, p. 38)
(Carta a João Luís Alves, 23.04.1896. Ibidem, p. 94) O que nos reserva o futuro? A nossa grande Pátria cindida pelas paixões decompor-se-á em minúsculos Estados? Resistirá, forte, amparada pela República, à sinistra conspiração, dos velhos devassos imperiais, emudecidos a 15 de novembro e rugidores hoje? (...) Nunca senti tão violento como hoje o que dantes era para mim um sentimento mau, traduzido por uma palavra que eu entendia não dever existir na linguagem humana – o nativismo. Tenho-o hoje, exageradamente. O estrangeiro, o estrangeiro que se diz civilizado – considero-o inimigo. É o inimigo pior e covarde, de luvas de pelica e sorridente, que nos mata e ao mesmo tempo avilta-nos. E eu pressinto que ele tem hoje o olhar cobiçoso sobre a nossa terra. O século XIX porém não testemunhará o desastre do aniquilamento de uma nacionalidade.
A nossa raça (?) está liquidada. Deu o que podia dar: a escravidão, alguns atos de heroísmo amalucado, uma república hilariante e por fim o que aí está – a bandalheira sistematizada. (Carta a Francisco de Escobar, 21.04.1902. Ibidem, p. 133)
[sobre os erros na primeira edição de Os sertões] Fui lê-lo com mais cuidado – e fiquei apavorado! Já não tenho coragem de o abrir mais. Em cada página o meu olhar fisga um erro, um acento importuno, uma vírgula vagabunda, um (;) impertinente... Um horror! Quem sabe se isto não irá destruir todo o valor daquele pobre e estremecido livro? (...) Quer isto dizer que estou à mercê de quanto meninote eru-
(Carta a Reinaldo Porchat, 15.12.1893. Ibidem, p. 57) 194
de compêndio ao livro que se escreve, mesmo porque em tal caso a feição sintética desapareceria e com ela a obra de arte.
dito brune as esquinas; e passível da férula brutal dos terríveis gramatiqueiros que passam por aí os dias a remascar preposições e a disciplinar pronomes! Felizmente disseram também que o Victor Hugo não sabia francês.
(Carta a José Veríssimo, 03.12.1902. Ibidem, pp. 143-144)
(Carta a Francisco de Escobar, 19.10.1902. Ibidem, p. 141) [sobre a celebridade graças a artigo que Araripe Júnior dedicou a Os sertões] No dia seguinte, eu – que até então era um engenheiro-letrado, com o defeito insanável de emparceirar às parcelas dos orçamentos as idealizações da Arte – era um escritor, apenas transitoriamente desgarrado na engenharia.
Nessa meia escravidão de engenheiro oficial a seguir e a voltar, a voltar e a seguir, as intermináveis viagens, para os mesmos pontos, tenho a miserável canseira de um Sísifo que é o fardo de si mesmo a rolar por essas estradas... ou então realizo cada dia aquela sombria tarefa siberiana de que nos fala Dostoiévski, consistindo em abrir todos os dias desmesurada vala e reenchê-la, depois, todos os dias. Assim vou, no círculo vicioso de uma faina ingrata.
(Carta a Araripe Júnior, 09.03.1903. Ibidem, p. 153)
Penso que a nossa Academia não ganhará grande coisa com a minha entrada. Sou um sacrificado a uma carreira que entre nós se faz à custa do olvido quase sistemático de todas as noções teóricas longamente adquiridas, porque se atém à prática ronceira imposta pela nossa atividade rudimentar, sem nada que recorde a opulência industrial e artística de outras terras. E como em má hora, obediente a minhas tendências de nômade, abracei francamente a engenharia ativa, entro a desconfiar que já estejam embotadas as faculdades que acaso possui para aprender a dominar assuntos de uma ordem mais elevada e ampla.
(Carta a Coelho Neto, 03.12.1902. Ibidem, p. 142)
[sobre o emprego de termos técnicos em Os sertões] Sagrados pela ciência e sendo de algum modo, permita-me a expressão, os aristocratas da linguagem, nada justifica o sistemático desprezo que lhes votam os homens de letras – sobretudo se considerarmos que o consórcio da ciência e da arte, sob qualquer de seus aspectos, é hoje a tendência mais elevada do pensamento humano. Um grande sábio e um notável escritor, igualmente notável como químico e como prosador, Berthelot, definiu, faz poucos anos, o fenômeno, no memorável discurso com que entrou na Academia Francesa. Segundo se colhe de suas deduções rigorosíssimas, o escritor do futuro será forçosamente um polígrafo; e qualquer trabalho literário se distinguirá dos estritamente científicos, apenas, por uma síntese mais delicada, excluída apenas a aridez característica das análises e das experiências. (...) Eu estou convencido que a verdadeira impressão artística exige, fundamentalmente, a noção científica do caso que a desperta – e que, nesse caso, a comedida intervenção de uma tecnografia própria se impõe obrigatoriamente – e é justo desde que se não exagere ao ponto de dar um aspecto
(Carta a João Ribeiro, 16.03.1903. Ibidem, p. 157)
[sobre Os sertões] Releve-me esta verdade, o Dante, para zurzir os desmandos de Florença, idealizou o inferno; eu, não, para bater de frente alguns vícios do nosso singular momento histórico, copiei, copiei apenas, incorruptivelmente, um dos seus aspectos... e não tive um Virgílio a amparar-me ante o furor dos condenados! (Carta a Joaquim Nabuco, 18.10.1903. Ibidem, p. 186)
[sobre o ateísmo] Rezo, sem palavras, no meu grande panteísmo, na perpétua adoração das coisas; e 195
anos de alarmante silêncio, a Academia fez uma coisa assombrosa: trabalhou! Trabalhou deveras durante umas três dúzias de quintas-feiras agitadas – e ao cabo expeliu a sua obra estranhamente mutilada, e penso que abortícia. Há ali coisas inviáveis: a exclusão sistemática do y, tão expressivo na sua forma de âncora a ligar-nos com a civilização antiga e a eliminação completa do k, do hierático k (kapa como dizemos cabalisticamente na Álgebra)... Como poderei eu, rude engenheiro, entender o quilômetro sem o k, o empertigado k, com as suas duas pernas de infatigável caminhante, a dominar distâncias? Quilômetro, recorda-me kilometro singularmente esmagado ou reduzido; alguma coisa como um relíssimo decímetro, ou grosseira polegada. Mas decretou a enormidade; e terei, doravante, de submeter-me aos ditames dos mestres.
na minha miserabilíssima e falha ciência sei, positivamente, que há alguma coisa que eu não sei... (Carta a Coelho Neto, 22.11.1903. Ibidem, p. 191)
Estou inteiramente embaraçado e preso numa rede... de esgotos! A comparação, tristemente realista, é tristemente verdadeira. Mesmo na ordem intelectual, a minha leitura exclusiva tem-se feito nuns pesados calhamaços, onde cada página faz o efeito de uma estrapada inquisitorial, no deslocar o espírito em sucessivas quedas. Durand-Clayde, Bechmann, Arnold (como estamos longe de Taine, Buckle, Comte, Renan...) estes bárbaros anônimos são os familiares deste Mau-Ofício... Mas já lhes paguei o meu tributo de resignação, aprendendo afinal algumas formulazinhas entre as mil que ensinam; e livre, em breve, dos grandes charlatas, que a ciência brutalmente utilitária transformou em beneméritos curandeiros de cidades, – julgo que poderei em breve dedicar-me à minha profissão real.
(Carta a Domício da Gama, 15.08.1907. Ibidem, p. 335)
Num país em que toda a gente acomoda a sua vidinha num cantinho de secretaria, ou numa aposentadoria, eu estou, depois de haver trabalhado tanto, galhardamente, sem posição definida! Reivindico, assim, o belo título de último dos românticos, não já do Brasil apenas, mas do mundo todo, nestes tempos utilitários!
(Carta a Machado de Assis, 15.02.1904. Ibidem, p. 197)
Os atos mais nobres são passíveis das interpretações mais deploráveis. A opinião está envenenada; e quem quer que se abalance à luta desinteressada por uma idéia arrisca-se aos mais deprimentes conceitos. Daí a minha mudez. Assalta-me o terror de ser emparceirado a não sei quantos vilões que toda a gente conhece toda a gente respeita. Em paz, portanto, esta rude pena de caboclo ladino. Ou melhor, que vá alinhando as primeiras páginas de Um paraíso perdido, o meu segundo livro vingador. Se o fizer, como o imagino, hei de ser (perdoa-me a incorrigível vaidade) hei de ser para a posteridade um ser enigmático, verdadeiramente incompreensível entre estes homens.
(Carta a Oliveira Lima, 25.05.1908. Ibidem, p. 362)
Planeei, embora numa síntese imperfeita, caracterizar o contraste até certo ponto providencial entre os dois aspectos preponderantes do espírito brasileiro – a refletir-se no binário constituído, de um lado, pela inteligência do Sul, mais bem aparelhada de um conceito orgânico da realidade; e de outro, pela fantasia poderosa dos nortistas, de onde lhes advém, essencialmente, o gênio poético incomparável. (...) Há, na verdade, um abismo entre as tábuas de logaritmos, ou os cálculos massudos das coordenadas astronômicas, e as rimas encantadoras dos nossos patrícios sertanejos; e até materialmente, as vistas abreviadas na contemplação dos traços quase apagados dos velhos mapas, ce-
(Carta a Francisco de Escobar, 13.06.1906. Ibidem, p. 306)
[sobre a Reforma orthográphica] Depois de tantos 196
força – é tão distante da maneira tranqüila pela qual considero hoje a vida, que eu mesmo às vezes custo a entendê-lo. Em todo o caso é o primogênito do meu espírito, e há críticos atrevidos que afirmam ser o meu único livro... Será verdade? Repugna-me, entretanto, admitir que tenha chegado a um ponto culminante, restando o resto da vida para descê-lo.
gam-se, ofuscadas, diante dos esplendores daquela natureza deslumbrante. (Carta a Osório Duque Estrada, 24.07.1908. Ibidem, p. 367)
Sou dos que pensam que as fronteiras no nosso belo e maravilhoso continente são mais expressadas geograficamente do que históricas, subordinadas em seu estado físico à altitude cada vez mais dominante da consciência sul-americana que as avassala. Chamo consciência sul-americana, na ordem política, o critério naturalmente elevado dos países como os nossos, que sendo jovens na história, sem a predisposição de se apropriarem dos melhores efeitos da cultura secular da Europa – sem os inconvenientes de velhos antagonismos que tanto separam ainda as nacionalidades de além-mar. Assim a civilização tem, entre nós, uma arena mais desafogada. Nas nossas terras virgens está a Pátria ideal dos espíritos que no Velho Mundo vivem incompreendidos ou vêem as suas melhores teorias destruídas pelo próprio jogo das rivalidades tradicionais que se não podem remover de pronto. Ora, esta faculdade eminente de podermos – nós, sul-americanos – aproveitarmos dos melhores frutos da evolução geral, sem carecermos de nos dobrar ao lastro de velhos erros ou preconceitos do passado, esta faculdade dá-nos uma capacidade maior de justiça, de paz e de liberdade.
(Carta a Agustín de Vedia, 13.10.1908. Ibidem, p. 384)
Quem definirá um dia essa Maldade obscura e misteriosa das coisas, que inspirou aos gregos a concepção indecisa da Fatalidade? Às vezes julgo necessário um Newton na ordem moral para fixar numa fórmula formidável o curso inflexível da Contrariedade. Mas, ponto. Sinto que vou escorregando por uma metafísica horrorosa abaixo, e cedendo ao declive não sei onde irei parar. (Carta a Vicente de Carvalho, 10.02.1909. Ibidem, p. 404)
[sobre a redução da vida pública às notícias de jornal ] Ninguém lê, ninguém escreve, ninguém pensa. A mofina literatura nacional traduz-se, naturalmente, numa vasta poliantéia, a 100 réis por linha, de mofinas. De todo absorvidos no presente, às voltas com os seus interessículos, estes homens, tão descuidados do futuro, ainda menos curam do passado (...). Entretanto, quero crer que ainda haverá meia dúzia de espíritos capazes do esforço heróico de um rompimento com tanta frivolidade. E entre estes me alinharei.
(Carta a Agustín de Vedia, 01.09.1908. Ibidem, p. 374)
[sobre Os Sertões] Aquele livro bárbaro de minha mocidade, monstruoso poema de brutalidade e de
(Carta a Oliveira Lima, 28.06.1909. Ibidem, p. 411)
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Canudos, Monte Santo e MacururĂŠ
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Mesa em que o escritor escreveu parte de Os sert천es. Acervo Casa de Cultura Euclides da Cunha
Euclides da Cunha nasceu em 1866, em Cantagalo, região serrana do Rio de Janeiro. Escreve seus primeiros poemas aos 17 anos. Ingressa no curso de Estado-Maior e Engenharia Militar da Escola Militar, de onde é desligado em 1888, após um ato de rebelião frente ao ministro da Guerra em defesa da República. Afastado do Exército, é convidado para escrever em A Província de São Paulo, jornal engajado na campanha republicana. Após a queda da Monarquia, é readmitido no Exército e entra na Escola Superior de Guerra, formando-se em 1892. Escreve artigos e cartas com críticas aos primeiros governos republicanos. Volta a escrever para O Estado de S. Paulo quatro anos após ter tido um artigo de sua autoria recusado. Em 1897, é convidado pelo jornal para cobrir a 4ª Expedição contra Canudos, que combateria o movimento liderado por Antônio Conselheiro no interior da Bahia. Acompanha a batalha que culminou com a destruição da cidade e a morte de Conselheiro e a maioria de seus seguidores. Entre 1898 e 1901, vive em São José do Rio Pardo e São Carlos do Pinhal, no interior paulista, onde escreve Os sertões, clássico sobre a Guerra de Canudos publicado em 1902. Vive na Amazônia entre 1904 e 1906; ao retornar, encontra sua esposa, Ana Ribeiro, grávida do cadete Dilermando de Assis – mas registra como seu filho a criança, que morre com sete dias de vida. Publica em Portugal Contrastes e confrontos, seleção de artigos escritos para os jornais O Estado de S. Paulo, O Paiz e O Comércio de São Paulo. Em 15 de agosto de 1909, troca tiros com Dilermando de Assis e o irmão deste, Dinorá. Atingido por três tiros, não resiste aos ferimentos e morre no mesmo dia.
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Mill么r Fernandes
A paz da descrença DA INFÂNCIA DICKENSIANA A UMA MATURIDADE “INDECENTEMENTE FELIZ”, A VERVE CÉTICA DO ESCRITOR E DESENHISTA QUE SONHA EM GANHAR O PRÊMIO NOBEL – “PARA PODER RECUSÁ-LO” [sobre a infância pobre no Méier] Para morar, naquela época, o subúrbio era um negócio maravilhoso – o terreno baldio, o futebol na frente de casa. Era maravilhoso.
apenas aquele negócio de desenhar objetos; nada de modelo vivo, mulher nua – era “modelo morto”. O fato de eu ter sido rejeitado aqui ou ali não faz de toda a minha infância um bloco de repulsa. Não sinto amargura, não, lembrando daquela fase. Quando minha mãe morreu, eu era menino. E menino, para sentir alguma coisa, precisa ser um troço muito violento. Eu fui ao cemitério; quando voltei para casa, me deitei embaixo de uma cama, numa esteira, e chorei feito um desgraçado. Eu chorei, chorei e senti um enorme alívio com aquilo, que depois designei como “a paz da descrença”. Achei, como já disse algumas vezes, que não tinha Deus coisa nenhuma. Foi como se eu tivesse concluído: agora é comigo.
Depois que minha mãe morreu [em 1935, dez anos depois de seu pai], fui morar com um irmão dela, que tinha uma casa num subúrbio mais pobre, Terra Nova. Ele assumiu a obrigação de me sustentar, mas pegava o dinheiro e fazia o que queria. Começou, então, o período que eu chamo de dickensiano. Como já contei outras vezes, na hora de comer, o que tinha de bom ia para os meus primos; se alguém ia ficar sem bife, claro, não eram eles. Chamo essa fase de dickensiana porque é aquele negócio: eu estava perto de ter as coisas, mas não tinha. A volta por cima foi ocasional. Eu estava terminando o curso primário – um curso magnífico, sempre digo isso, principalmente porque tive uma professora que admirei o resto da vida, Isabel Mendes, que me ensinou a gostar de estudar, de ler; daí em diante eu podia me tornar autodidata – e precisava trabalhar. Arrumei um emprego como distribuidor de remédio. Alguns meses depois, meu tio Viola, que era chefe da oficina d’O Cruzeiro, arrumou um emprego para mim lá – fui ajudar no que fosse preciso. Esse tio já tinha vendido um desenho meu para O Jornal quando eu estava com dez anos. Acho que a volta por cima começou naquele primeiro emprego em O Cruzeiro.
Quando eu escrevo, escrevo, ponto. Não vou ficar perguntando se devo ou não devo escrever isto ou aquilo, não importa qual seja o veículo ou de que lado eu me encontre do balcão. A experiência d’O Pasquim foi extraordinária pelo seguinte: houve realmente um negócio nacional de apoio, e a grande imprensa começou a se modificar por causa daquilo. Até hoje ser chamado de artista me faz mal, é engraçado. Mas nunca me senti mal com o trabalho que faço na imprensa.
Meu desenho começou com a história em quadrinhos, o Flash Gordon, do Alex Raymond. Ele era absolutamente extraordinário, de uma elegância, de uma clareza; minha irmã guardava páginas e páginas e eu copiava quadrinho por quadrinho. No Liceu de Artes e Ofícios, que eu freqüentei mais tarde, foi
Desde o início eu sempre procurei preservar minha liberdade; eu fazia o que quer que fosse, para o veículo que fosse, e não deixava ninguém mexer. Do ponto de vista das técnicas que utilizo, sempre me pautei também pela liberdade. Fui dos primei208
ros a usar o computador para desenhar. Aí, achei que a técnica estava me prendendo e voltei para o pincel. Eu brinco com os meus amigos: abri a tampa, botei um pouco de água e lá estava a tecnologia perfeita, o nanquim, feito há mais de 2.000 anos.
Foi por isso que no meu site, por exemplo, falei para tirarem a palavra charge para indicar alguns dos meus trabalhos. Charge é uma coisa vista com preconceito. Se eu estou fazendo um desenho com sentido filosófico – por exemplo, dois peixinhos conversando num aquário e um deles diz: “Ainda bem que Deus existe, mas quem troca a água?” –, é evidente que, se ele for chamado de charge, vai diminuir o trabalho.
Foi curiosa a minha infância. Ela não foi rodeada de gente letrada, por exemplo. Eu li, como se sabe, desde cedo, muita história em quadrinhos. Lembro que, quando eu tinha uns 11 anos, havia um cronista aqui no Rio de Janeiro muito conhecido, o Humberto de Campos. Então ganhei um livro chamado Memórias de Humberto de Campos. Eu li umas cinco vezes, achava genial. Bem, aos 20 anos caí na besteira de ler de novo e achei um lixo. De volta à infância: comecei a ler um livro chamado Imortalidade, do Coelho Neto, um escritor que era muito difícil naquela época. Depois dos 20 anos também voltei a ler a obra e não me decepcionei. Resultado: comecei então a ler furiosamente. Peguei Euclides da Cunha, Os sertões, e achei o máximo, mesmo a primeira parte, “A terra”, que todo mundo diz que é difícil. Eu tenho tendência a gostar do que é difícil. Depois vieram Romance d’A Pedra do Reino, do Ariano [Suassuna], dificílimo, Guimarães Rosa – ou seja, li tudo o que importa, não só em português mas também em francês, inglês. Um cara que eu não consegui entrar, que nunca me interessou foi [James] Joyce.
É muito difícil você escrever um texto que depois um ator leia conforme você imaginou. Em geral, os atores querem melhorar o autor – e pioram tudo. Em 1955 eu escrevi Um elefante no caos, uma obraprima, em que eu falo de uns terroristas barbados, de uma ilha. Ora, isso foi bem antes de Fidel Castro tomar conta de Cuba [1959]. Nunca fui pessimista na minha vida. Eu sou, se você quiser, cético – ou cínico, que acho mais alegre. Hoje eu digo uma coisa que as pessoas se surpreendem de ouvir: nós estamos vivendo no melhor período da humanidade. Nós temos, por exemplo, a comunicação universal. Se eu estou sentindo calor, ligo o ar-condicionado e aqui estamos nós, conversando sem que o clima lá de fora nos afete nem um pouco. Você quer comer, pega um telefone e em alguns minutos tem um almoço servido na sua frente. Vamos para o plano da cultura. Há algum tempo, o livro era uma coisa sagrada; culto era o cara que tinha livros e falava deles. Veio a televisão, inventou a novela e ela virou uma cultura universal. O que acontece? A dona-decasa de classe média vai para a fila do banco e a empregadinha semi-alfabetizada também e elas ficam ali conversando com a cultura que têm sobre a história da novela, os atores etc. Agora, o ser humano, de modo geral, não melhorou na mesma proporção. Mas é preciso admitir algum avanço. Querem ver uma coisa? O livro de Stephen Hawking sobre o tempo vendeu milhões de exemplares – ou seja, não é só auto-ajuda que vende; tem gente melhor no mundo, interessada em outras coisas.
Um dos autores de que mais gostei foi, naturalmente, o [Bernard] Shaw. Cheguei a traduzir algumas coisas dele, mas eu não sinto influência, apesar de o Shaw ter sido um cara brilhantíssimo e eu mesmo dizer: “Todo homem nasce original e morre plágio”. Entre os desenhistas, tem uma porção deles: (...) Edward Gorey, americano, morreu faz pouco tempo. [Saul] Steinberg, claro, André François. Na Argentina tem o Hemenegildo Sábat, que é um tremendo pintor. [sobre os preconceitos contra o humor] Voltando à origem da palavra preconceito, no caso do humor estamos diante de um autêntico pré-conceito. Existe o conceito antecipado de que o humor representa algo menor. Ele carrega uma carga pejorativa.
A história é uma ficção. Para começo de conversa, o título da minha peça é A história é uma istória, 209
sem h e com i – está aí a minha definição. Vejam a história antiga: está sendo toda reformada. As novas tecnologias têm sido fundamentais para isso. A história vai ser toda reformulada.
que estou fazendo. Não sou professor, não quero ser culto. Mas sei usar as palavras. Para mim não tem essa história de “expressão intraduzível”. Costumo dizer que não existem expressões intraduzíveis, principalmente em teatro e poesia.
Existem pessoas que para escrever um livro, uma peça de teatro, fazem um esquema. E aí sabem, de antemão, o que vão pôr no papel. Eu, literalmente, não sei. (...) Não sou como um Brecht, um Pirandello – cada um deles tinha uma noção exata do que queria dizer antes de começar a escrever uma peça. O meu teatro, como qualquer coisa minha, é eclético e livre por natureza; eu vou para lá, venho para cá, sem um esquema preconcebido.
Sempre desenho com liberdade, mas aquela coisa infantil, aquele colorido, às vezes você tenta, tenta e não consegue. E, de repente, quando você nem está prestando muita atenção, aquilo volta. Inúmeras vezes eu desenhei com a mão esquerda para recuperar o desenho infantil. Com o passar do tempo, evidentemente, você acaba criando um estilo. No texto é mais difícil. Na literatura, a temática pode arrastá-lo para um estilo que não é o seu. Mas, se você pegar o desenho, é muito marcante. Não tem jeito. É uma coisa natural.
Teatro é hierarquia. É verdade que ele mudou muito. Como é que você pode comparar, por exemplo, grandes atores do passado com os de hoje, se eles trabalhavam com ponto? Mas, voltando ao problema da hierarquia – ela existe e o que deve estar na frente de tudo é o texto. Se você decide por um texto, então tudo deve obedecer a ele – cenário, iluminação, tudo.
Uma vez eu encontrei o Mário Faustino na Cinelândia e ele me disse: “Millôr, aquele verso que você fez essa semana vale toda a obra de muitos poetas”. O verso era o seguinte: “Os sábios discutem sem certeza, os imbecis atacam de surpresa”. Vocês vêem que tem uma coisa filosófica aí. Mas eu apresentei como uma coisa engraçada, entendem? E é poesia.
Um dia, encontrei o Nelson Rodrigues na rua e ele me perguntou: “Millôr, é verdade que você melhora o Molière?” Eu respondi: “Nelson, olha aqui, eu já vivi quase 300 anos a mais que o Molière. Além disso, sou mais velho do que ele. Respeito tudo o que Molière escreveu – agora, deixou uma bola na porta do gol, o chute é certo”.
[sobre as formas poéticas fixas] Quando eu comecei com o negócio de soneto, tinha 20 anos e estava cansado dessa forma. Fazia porque achava ridículo. Eu não queria subverter o soneto; apenas estava cansado dele e queria ridicularizá-lo.
[sobre Hamlet em 15 minutos, de Tom Stoppard] Eu li isso e pensei: “Podia ser em dois minutos”. Fiz na hora. Primeiro ato: “To be or not to be”. Segundo ato: “O resto é silêncio”.
[sobre o haicai à moda brasileira] Eu comecei em 1956. Não sei onde eu descobri o haicai. Eu tinha que encher aquelas páginas e lembro que fiz seis de uma tacada. Depois fiz quatro, depois cinco, depois cansei. Passaram-se dois, três meses, fiz um. Depois passou um ano, fiz cinco. Não respeitava a métrica 5-7-5, botava rima. Quando vi, já tinha feito quase 400, igual ao Bashô.
Se eu tenho que mexer no Shakespeare, em Sófocles, no Molière ou no Harold Pinter, não faz a menor diferença. Para traduzir os textos do Shakespeare é preciso ter a liberdade e a competência de trabalhar, por exemplo, com os trocadilhos. Quando eu estava n’O Cruzeiro, tinha mania de fazer pastiche – ficava imitando o estilo dos autores. A habilidade de produzir pastiche faz, de certa maneira, com que você entre no mundo do autor. Na hora de traduzir, isso sempre foi muito útil para mim. Quem quiser que me esculhambe. Eu sei o
Minha visão de vida, não sei até quando vai durar isso, é a seguinte: eu sou indecentemente feliz. Tenho saúde, sempre tive dinheiro para viver. Qual foi o meu período de miséria relativa? Foi com 15 anos. Mas isso durou quanto tempo? Com 20 anos eu estava morando na avenida Atlântica, num 210
Eu não vivo no Brasil, eu vivo no Rio de Janeiro. (...) Nasci no Rio, que realmente era uma cidade maravilhosa. Quando eu tinha 20 anos, como é que era? Menos da metade da população de hoje. Eu andava de automóvel e parava para conversar com as meninas na rua. Eu acordava, lá na avenida Atlântica, ia à praia – ia muito com o Sérgio Porto. Uma vida de bar e praia. Lembro que um dia, às 11 horas, eu saí para trabalhar queimado de sol. Quando passei por Botafogo, comecei a me sentir desesperado, com um sentimento de que eu nunca mais ia ser feliz daquele modo.
apartamento que tinha cinco ou seis quartos, com o Fred Chateaubriand. Eu tinha um automóvel – ninguém tinha automóvel naquela época. Eu ganhava muito bem. Pagava o aluguel do meu apartamento e o da minha irmã, em Laranjeiras, e ainda fi ca va com bas tan te di nhei ro. Nun ca me incomodei com críticas. Eu só me importaria se fossem de gente importante. Não se amplia a voz dos idiotas. O cara está te esculhambando? Deixa esculhambar, ninguém vai ler mesmo. Agora, se é um cara importante, você tem que responder. É até engraçado responder. Então, como eu disse, não posso reclamar; tenho sido indecentemente feliz. Esse é o balanço que faço da minha vida.
Uma vez estava num avião com o Jaguar e comecei a ler no jornal os registros fúnebres. Ele virou para mim e disse: “Você lê isso?”. Respondi: “E você, Jaguar, deveria ler também; às vezes a gente tem surpresas agradabilíssimas”.
[sobre a sabedoria] Você a conquista porque Deus lhe deu a sabedoria – a começar, de não acreditar nele. [sobre o poder da imprensa] Sei que não tenho um poder real. Se eu entro em uma delegacia, por exemplo, entro intimidado, porque, para começo de conversa, essa glória que a gente tem funciona em determinados círculos, em determinado período; a que funciona de verdade é a do jogador de futebol, que é universal. Aliás, a única glória, de fato, que existe no mundo de hoje é a dos desportistas.
Eu quero continuar a viver para a frente e a compreender para trás. Eu quero continuar levando a vida que eu levo, se for possível. O que não significa ficar estagnado. Até hoje eu não perdi minhas ambições – em nenhum plano da existência. E meu maior sonho é ganhar o Prêmio Nobel – para poder recusá-lo.
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Rio de Janeiro
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O carioca Millôr Fernandes nasceu em 1923. Na certidão de nascimento, é registrado como “Milton”, mas a grafia imprecisa no documento sugere também “Millôr”. O nome aparece em uma carteirinha escolar de 1939 e ele passa a adotá-lo. Como contínuo em O Cruzeiro, revista para a qual colaboraria intensamente a partir da década de 1940, desempenha várias atividades e dá início à sua carreira jornalística. Em 1938, ganha um concurso de contos em A Cigarra e passa, no ano seguinte, a assinar como Vão Gôgo uma seção fixa na publicação, que dirigiria por três anos. O trabalho com o jornalismo inovador, que incluía também suas ilustrações e desenhos, se estenderia para outros veículos ao longo de décadas, como o lendário O Pasquim. O humor é a marca principal de sua produção. Publicou em 1988 The cow went to the swamp/A vaca foi pro brejo, com 600 versões literais para o inglês de expressões populares brasileiras; e, em 1994, Millôr definitivo – A bíblia do caos, compilação de 5 mil de suas frases de efeito, aforismos e máximas. Como tradutor, atividade que desempenha graças aos estudos como autodidata, verteu e adaptou uma vasta lista de clássicos, como Hamlet, de Shakespeare, Don Juan, de Molière, e Fedra, de Racine. Entre as peças de sua autoria estão Uma mulher em três atos, Por que me ufano de meu país, Pigmaleoa, É... e Órfãos de Jânio. Em prosa, lançou ainda, entre outros livros, as compilações Fábulas fabulosas, Lições de um ignorante, Compozissóis imfãtis e Que país é este?. Millôr teve dois filhos com a mulher, Wanda Rubino.
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Erico Verissimo
Palavras em arquipélago OS ROMANCES SÃO “ARTES” DO INSONDÁVEL INCONSCIENTE E DO DEMÔNIO QUE COSTUMA VISITAR OS NOVELISTAS: “O RESTO É MISTÉRIO”, DIZ O AUTOR DE O RESTO É SILÊNCIO tor e Guimarães Rosa, na minha opinião duas figuras literárias de estatura internacional).
Nos momentos escuros, minha tendência é considerar tudo quanto produzi até hoje medíocre ou mesmo mau. Nas horas claras, porém, olho com mais indulgência para a minha obra e concluo que, dentre os vinte e poucos livros que escrevi até hoje, uns três ou quatro possuem alguma importância e pelo menos um deles – creio que O continente – sobreviverá por algum tempo. Sei que não sou, nunca fui, um writer’s writer, um escritor para escritores. Não sou um inovador, não trouxe nenhuma contribuição original para a arte da ficção. Tenho di to e es cri to re pe ti da men te que me considero, antes de mais nada, um contador de histórias. Ora, nos tempos que correm, contar histórias parece ser aos olhos de certos críticos o grande pecado mortal literário. A chamada “boa crítica” considera a história ou estória, como queiram, uma forma inferior de arte. Na minha opinião isso é, por um lado, uma atitude esnobe e, por outro, um equívoco semântico segundo o qual a história passa a ser sinônimo de anedota, enredo, intriga.
Em geral quando termino um livro encontro-me numa confusão de sentimentos, um misto de alegria, alívio e vaga tristeza. Relendo a obra mais tarde, quase sempre penso: “Não era bem isto o que queria fazer”. (“Um escritor diante do espelho”, por Erico Verissimo. Realidade, São Paulo, novembro de 1966)
O tempo e o vento é o mais importante no meu rebanho. E Saga, a ovelha negra. Não sou meu autor favorito. O perigo que o sucesso me poderia trazer era o de me levar a repetir a receita que tanto agradara ao público. Nessa hora me valeu o bom senso de neto de tropeiro. Fiz uma parada voluntária, deixei de escrever durante quase cinco anos, para me observar melhor, de fora para dentro. Sim, e também para me submeter a um processo de desintoxicação de mim mesmo pelo silêncio.
Nota-se também hoje em dia uma grande preocupação com a busca de novos meios de expressão verbal. Nunca a linguagem literária foi tão importante como em nosso tempo. Fazem-se com as palavras e suas combinações sintáticas as mais estranhas experiências. Estou certo também de que nesse setor minha contribuição tem sido pobre ou nula. Não ignoro, porém, que para tentar descrever o indescritível, exprimir o inexprimível, transmitir ao leitor certos estados de espírito particulares – angústias, alucinações, sonhos, delírios e mesmo certos pensamentos e sentimentos sutis do cotidiano – o escritor é obrigado a esquecer a sintaxe gramatical e recorrer à sintaxe psicológica (no Brasil ninguém faz isso melhor que Clarice Lispec-
(“Um gaúcho sem esporas”, por Maria Ignez Corrêa da Costa. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21.12.1968)
Planejo, mas nunca obedeço rigorosamente ao plano traçado. Os romances (...) são artes do inconsciente. Por outro lado, estou quase a dizer que me considero mais um artesão do que um artista. E com isso você compreenderá melhor por que a crítica não me considera profundo. 222
(“Não sou profundo. Espero que me desculpem”, por Clarice Lispector. Manchete, Rio de Janeiro, 04.01.1969. Trecho extraído do livro A liberdade de escrever – Entrevistas sobre literatura e política. São Paulo: Globo, 1999)
Uma vez assisti, no Mills College de Oakland, Califórnia, a uma conferência do escritor Julien Green que, lá pelas tantas, disse: “O romancista é um alucinado que se assusta dos fantasmas que ele próprio cria”. Acho que isso, pelo menos em parte, é verdade. Jamais um “alucinado” será capaz de examinar-se objetivamente, com olho crítico, neutro e classificador. Ora, as palavras de Green me parecem verdadeiras só “em parte”, porque esse alucinado trabalha muitas vezes com método. Eu tenho o meu. Começo um romance fazendo um roteiro parecido com os de cinema e, às vezes, chego a desenhar a cara dos personagens... Mas, lá de repente, fico tomado por esse curioso demônio que costuma visitar os novelistas e lá se vai o método águas abaixo. O resto é mistério.
Talvez eu seja linear... e daí? O que é “não ser linear”? Escrever de maneira obscura? Inventar uma nova língua? Turvar as águas para dar uma idéia de profundidade? Não tenho talento nem paciência para essas coisas. [...] Há pessoas que na realidade deviam escrever ensaios psicológicos ou políticos, mas insistem em escrever romances. Prefiro a ficção americana, preocupada com os problemas do homem, no aqui e no agora, à francesa, tão formalista e fascinada por aventuras da técnica e da linguagem. O famoso nouveau roman me parece morto e enterrado. No entanto Georges Simenon está ainda vivo. Na minha opinião, é o melhor contador de histórias de nossa época, um verdadeiro Balzac moderno.
Não sou o que se costuma chamar “um romancista profundo”, e isso tem sido dito e escrito mil vezes nestes últimos quatro decênios. Os meus primeiros romances, digamos de Clarissa a Olhai os lírios do campo, mostram um autor apressado – o diabo do homem só podia escrever suas coisas nas tardes de sábado, pois tinha de ganhar a vida em outras atividades. Olhava o mundo dum ângulo lírico e plástico e, na sua boa vontade ingênua, achava que lhe bastava pedir aos homens que se amassem e não se destruíssem, para contribuir com algo para a paz e a felicidade do mundo. Está claro que era uma grande tolice. Havia, entretanto, nesses meus primeiros livros algo de aproveitável e eu quero crer que foi a capacidade do autor de contagiar o leitor com seu amor à vida, com a sua boa-vontade para com os outros homens que lhe valeu os leitores que teve para aqueles primeiros romances, muitos dos quais ainda lêem até hoje.
(“Erico Verissimo: ‘Sou engajado com a vida’”. O Globo, Rio de Janeiro, 24.01.1970)
Quando o consciente percebe (o consciente às vezes é meio lerdo em matéria de percepção de coisas sutis) que está correndo o risco de “copiar” uma pessoa da vida real, ele trata de “despistar” e usar apenas em parte – ou recuar totalmente – as informações do inconsciente. Um verdadeiro romancista não fotografa, quero dizer, não retrata conscientemente as pessoas que conheceu. Mesmo que queira fazer isso, verá que não é de todo possível. Muitas vezes fiz planos para um personagem meu, e lá de repente ele começou a dizer e fazer coisas que não estavam previstas. Isso era um sinal de que tinha vida própria, estava vivo. O remédio sensato foi deixá-lo livre. Isso aconteceu com Rodrigo Cambará, Ana Terra, Bibiana, Bio e dezenas de outros personagens.
(“Somos todos uns mentirosos”, por Celito De Gran di. Cor reio da Ma nhã, Rio de Ja nei ro, 19.11.1971)
Estou longe de ser um regionalista. Mesmo em O tempo e o vento usei o mínimo de vocábulos ou expressões regionais. (Noto que hoje em dia se escreve muito em mineiro, baiano, pernambucano.) Em certo ponto de minha atividade de ficcionista, sen-
(“Erico, retrato de um escritor”, por Maria Din o r a h . C o r r e i o d o Po v o , Po r t o A l e g r e , 07.06.1970. Trecho extraído do livro A liberdade de escrever – Entrevistas sobre literatura e política. São Paulo: Globo, 1999) 223
ti que devia ao Rio Grande do Sul um romance sobre sua gente, sua terra e sua história. Mas confesso que ainda me sinto atraído pela vida do homem moderno numa grande metrópole, com todos os problemas do nosso tempo. Outra coisa: um romancista que não é apenas um memorialista (e presumo ser este o meu caso) não deve ficar preso à sua querência (e aqui vai uma expressiva palavra gaúcha). Noite, novela que não foi compreendida por muitos críticos, mas que considero importante na minha obra – Noite se passa numa cidade que tanto pode ser Porto Alegre como Buenos Aires, Roma ou Madri.
Nunca estamos livres do perigo de ver as palavras usadas não como um meio de comunicação entre o autor e o leitor, mas como peças dum jogo esotérico hermético e, portanto, um fim em si mesmas. Creio que o enigma da vida é já tão complicado que o escritor não deve criar em torno dele outro enigma, nem mesmo de natureza verbal. A poesia, sim, é o reino das palavras, o campo próprio para experiências imagísticas, metafóricas, em suma, para toda essa metafísica ou alquimia da linguagem. E há estados de alma que nem a poesia consegue descrever ou mesmo sugerir, e é nesse ponto que a música pode ser chamada em seu socorro.
Sou fraco em matéria de pesquisas de qualquer natureza. Preguiça e falta de método. Um romancista é antes de tudo um intuitivo. Para O tempo e o vento fiz o mínimo de pesquisas. Não me arrependo disso. É muito perigoso para o romance quando o autor sabe demais sobre uma região ou uma época histórica. Sua tendência é usar tudo que sabe, isto é, atravancar as páginas do romance com móveis e utensílios etc.
(“Um escritor diante do espelho”, por Erico Verissimo. Realidade, São Paulo, novembro de 1966)
A sátira e a ironia dificilmente erram o alvo. Quem escolhe a arma é o próprio romancista... Ou pelo menos ele pensa que escolhe, pois continuo a afirmar que o processo de criação literária se opera no plano do inconsciente, repositório insondável de vivência, intuições, experiências...
O importante é a personagem. Repito que a intriga é apenas o veículo. E pode ser também a maneira melhor de retratar um ambiente. Não compreendo a má vontade da crítica e de certos leitores esnobes para com a estória. Quem quiser evitar “essa forma inferior de arte” que escreva poesia ou ensaio. Os que enchem a boca com a palavra História, com um imenso agá, esquecem-se de que ela é feita de estórias, intrigas, enredos. Como estudar a personalidade de Napoleão ou César sem as intrigas e as estórias de que eles foram personagens? Devo esclarecer que, no caso da ficção, estória é, como dis se E. M. Fors ter, “uma su ces são de acontecimentos na sua ordem de tempo” (Eu diria “ordem ou desordem”).
(“Somos todos uns mentirosos”, por Celito De Gran di. Cor reio da Ma nhã, Rio de Ja nei ro, 19.11.1971)
Se, por um lado, acredito na necessidade de todos os escritores e artistas terem uma consciência política e social que os torne responsáveis – e, portanto, merecedores da liberdade –, por outro lado estou cada vez mais convencido de que não cabe ao romancista apresentar soluções para as crises econômicas, políticas e sociais que nos atormentam. (“Um escritor diante do espelho”, por Erico Verissimo. Realidade, São Paulo, novembro de 1966)
Se me pedissem um adjetivo para me qualificar como contador de estórias, eu sugeriria engenhoso. Talvez este qualificativo possa ter conotação irônica ... mas que importa?
Não se pode negar que o romance atravessa um momento de crise. Mas não será principalmente porque ele procura refletir um mundo também em crise? Reconheço que os ficcionistas chegaram à conclusão de que não podem competir
(“Erico Verissimo: um solo de clarineta”, por Rosa Frei re d’Aguiar. Man che te, Rio de Ja nei ro, 04.08.1973) 224
com a vida em matéria de invenção, imprevisto, absurdo, violência, maravilhas e apocalipses. É por isso, parece, que certos escritores, como [...] Gabriel García Márquez, estão procurando competir com a vida, libertando-se das velhas regras do romance do século passado, da sua lógica e do verossímil, tão reclamado pelos críticos e mesmo pelos leitores. [...] De uma coisa, porém, estou certo, e isso me consola: eu morrerei primeiro que a ficção.
Está claro que vou continuar lutando. Quando o sol for embora, acenderei os meus lampiões, os meus tocos de vela e até as lamparinas que encontrar no fundo de esquecidas gavetas. Mas tenho de olhar a minha vida com o realismo que usei em Incidente em Antares e reconhecer que anoitece... (“Somos todos uns mentirosos”, por Celito De Grandi. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 19.11.1971)
(“Erico Verissimo: ‘Sou engajado com a vida’”. O Globo, Rio de Janeiro, 24.01.1970)
Acho que o homem é escravo do menino. E que de certo modo o menino continua no homem. É o que estou verificando ao escrever memórias. Tenho descoberto, em fatos, idéias e sugestões da meninice, a semente de algumas personagens de meus romances.
Sou de raro em raro assaltado pelo tédio, mas reajo com a maior energia, repelindo-o, pois me parece que se entregar a gente a esse inimigo cinzento é uma prova de falta de imaginação e senso comum – pois como pode aborrecer-se um homem que pensa num universo tão cheio de desafios ao seu espírito, à sua capacidade de fantasia e de iniciativa, aos seus desejos de aventura, um mundo onde há tanta coisa a aprender, descobrir, desfrutar e principalmente compreender?
Esbarramos em vários muros. Alguns dentro de nós, outros fora. A linguagem que usamos é em geral deficiente, incapaz de descrever certos estados de espírito. E existe dentro de cada um de nós um terrível censor, que nos acompanha desde a infância. Sou um sujeito que sofre agudamente dum complexo de culpa. Por quê? Se eu soubesse, ficaria livre dele! (“Erico Verissimo: um solo de clarineta”, por Rosa Frei re d’Aguiar. Man che te, Rio de Ja nei ro, 04.08.1973)
(“Um escritor diante do espelho”, por Erico Verissimo. Realidade, São Paulo, novembro de 1966)
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232 Osvaldo Maricato/Editora Abril
Gaúcho de Cruz Alta, Erico Verissimo nasceu em 17 de dezembro de 1905. Leitor de clássicos da literatura desde os 12 anos, trabalha como balconista e bancário e torna-se sócio de uma farmácia. Em 1929, publica seus primeiros contos no Cruz Alta em Revista, no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, e na Revista do Globo, periódico em que passaria a trabalhar no ano seguinte, após a falência de sua farmácia. Em 1931, lança suas primeiras traduções e passa a colaborar com o Diário de Notícias e o Correio do Povo. No ano seguinte, lança a coletânea de histórias intitulada Fantoches, seu livro de estréia. Clarissa, seu primeiro romance, é publicado em 1933, seguido de Caminhos cruzados e Música ao longe. Casado com Mafalda Halfen Volpe desde 1931, tem dois filhos – Clarissa, em 1935, e Luis Fernando, em 1936. Obtém grande êxito de público com Olhai os lírios do campo, lançado em 1938. Dividese entre a literatura, as traduções e o trabalho na editora Globo. Em 1944, leciona Literatura Brasileira na Universidade da Califórnia. Viaja aos Estados Unidos em diversas oportunidades e, em 1953, é nomeado para um cargo na Organização dos Estados Americanos (OEA). Em 1947, começa a colocar no papel O tempo e o vento. Planejada como um volume com cerca de 800 páginas que levaria 3 anos para ser escrita, a obra só foi concluída 15 anos depois, com mais de 2.200 páginas, divididas entre O continente (1949), O retrato (1951) e os três tomos de O arquipélago (1961-1962). Homenageado com o Prêmio Machado de Assis (1954), e o prêmio “Intelectual do Ano” (Troféu Juca Pato), em 1968, publica ainda a novela Noite, os romances Incidente em Antares e O senhor embaixador, livros infanto-juvenis, narrativas de viagem, autobiografias e ensaios, entre outros. Morre em Porto Alegre no dia 28 de novembro de 1975, após um infarto do miocárdio.
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Clarice Lispector
Em carne viva PARA A AUTORA DE PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM, A ESCRITA É UMA PULSAÇÃO QUE TRANSFORMA A PALAVRA ABSTRATA NUM SER EM LUTA PELA “TENTATIVA FRACASSADA DE ATINGIR O QUE EXISTE”
Não sei dizer que autores influíram no que eu escrevi ou na minha formação. Possivelmente me influenciaram mais os motivos dos escritores, mesmo que eu nada soubesse deles, do que os seus livros. Cercando a questão mais de perto, eu poderia dizer de fora para dentro, concordando com pessoas que escreveram sobre o meu trabalho, que eu tive influência de [Marcel] Proust e [James] Joyce, o que tem como obstáculo material apenas o fato de eu não ter lido Proust e Joyce antes de escrever o primeiro livro. Como para mim não tem tido importância consciente a questão da influência, é-me difícil sair dos meus verdadeiros problemas e analisá-la.
Eu admito a literatura claramente participante. Se não faço isso é porque não é do meu temperamento. A gente só pode tentar fazer bem as coisas que sente realmente. Os meus livros não se preocupam com os fatos em si, porque para mim o importante não são os fatos em si, mas a repercussão dos fatos no indivíduo. Isso é que tem muita importância mesmo para mim. É o que eu faço. Acho que, sob esse ponto de vista, eu também faço livros comprometidos com o homem e a realidade do homem, porque realidade não é um fenômeno puramente externo. (“Clarice, um mistério sem muito mistério”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 02.11.1971)
(“Clarice Lispector fala de Nápoles”, por Solena Be ne vi des Via na. A Noi te, Rio de Ja nei ro, 02.12.1945)
Na atividade de escrever o homem deve exercer a ação por desnudamento, revelar o mundo, o homem aos outros homens. E ao fazê-lo deverá escolher dizê-lo de um modo determinado, pessoal. Ele tem ou não a consciência de seu papel de “revelador” das coisas, o meio através do qual elas se manifestam e adquirem significado. Mas, apesar de ser o detector da realidade, a realidade não é seu produto, isto é, apesar de o escritor ser o revelador do mundo, isso não é essencial a ele, mas sim torna-se essencial à sua obra, pois que sua obra não existiria se não fosse ele. A literatura deve ter objetivos profundos e universalistas: deve fazer refletir e questionar sobre um sentido para a vida e, principalmente, deve interrogar sobre o destino do homem na vida. Há escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor.
Na adolescência eu não tinha a menor orientação literária. Pagava uma quantia por mês para uma biblioteca de aluguel e escolhia os livros pelos títulos. Foi assim que encontrei O lobo da estepe, foi assim que encontrei Crime e castigo. Lendo Dostoiévski tive febre, de tanta emoção. Quando recebi o meu primeiro ordenado como jornalista, entrei de cabeça levantada numa livraria para comprar um livro. Tudo o que folheava não me agradava. De repente vi o livro da editora Globo chamado Felicidade, abri-o e tomei um susto: “Isso sou eu!”. Era Katherine Mansfield. Gostei sem saber que ela era famosa. Quando expressava em palavras o meu entusiasmo pela obra, todos diziam: “Mas é claro que tem de ser bom!”. (“Clarice, pela última vez”, por Nevinha Pinheiro. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15.12.1977) 236
Escrevo simplesmente. Como quem vive. Por isso todas as vezes que fui tentada a deixar de escrever, não consegui. Não tenho vocação para o suicídio. Um jornalista me perguntou: Por que é que você escreve? Então eu lhe perguntei: Por que você bebe água? A honestidade é muitas vezes uma dor.
Penso que o escritor deve dirigir-se à liberdade de seus leitores, integrados ou não na mesma situação histórica e para quem as realidades descritas sejam ou não alheias. E, ao fazê-lo, o escritor deve mobilizá-los a uma identificação, questionamento ou possível resposta. (Apud BORELLI, Olga. Clarice Lispector – Esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, pp. 72-73)
(Apud BORELLI, Olga. Op. cit., p. 24)
[A minha obra é] uma tentativa fracassada de atingir o que existe.
Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo. Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado. Às vezes se assusta com o imprevisível de uma frase. Eu gosto de manejá-la – como gostava de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às vezes a galope. Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos. E este desejo todo os que escrevem têm. Um Camões e outros iguais não bastaram para nos dar para sempre uma herança de língua já feita. Todos nós que escrevemos estamos fazendo do “túmulo do pensamento” alguma coisa que lhe dê vida.
(“Encontro com cinco escritores”. Senhor, Rio de Janeiro, n. 29, julho de 1961)
Enquanto escrevo o bom é que não dou mostra da grande excitação de que sou às vezes tomada. E por mais difícil que seja o trabalho, sinto uma felicidade dolorosa pois, com os nervos todos aguçados, fico sem a cobertura de um cotidiano banal. E depois de pronto o livro, de entregue ao editor, posso dizer como Julio Cortázar: retesa o arco ao máximo enquanto escreve e depois o solta de um só golpe e vai beber vinho com os amigos. A flecha já anda pelo ar, e se cravará ou não se cravará no alvo; só os imbecis podem pretender modificar sua trajetória ou correr atrás dela para dar-lhe empurrões suplementares com vistas à eternidade e às edições internacionais. (Fragmento da crônica “Perguntas e respostas par a u m c a d e r n o e s c o l a r” , p u b l i c a d a e m 29.08.1970. In A descobeta do mundo, p. 309)
(“Declaração de amor”, crônica publicada em 11.05.1968. In A descoberta do mundo, pp. 100-101)
Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu. Como conseguirei saber do que nem ao menos sei? assim: como se me lembrasse. Com um esforço de “memória”, como se eu nunca tivesse nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é em carne viva.
Fala-se da dificuldade entre a forma e o conteúdo, em matéria de escrever; até se diz: o conteúdo é bom, mas a forma não etc. Mas, por Deus, o problema é que não há de um lado um conteúdo, e de outro a forma. Assim seria fácil: seria como relatar através de uma forma o que já existisse livre, o conteúdo. Mas a luta entre a forma e o conteúdo está no próprio pensamento: o conteúdo luta por se formar. Para falar a verdade, não se pode
(“Lembrar-se do que não existiu”, crônica publicada em 06.11.1971. In A descoberta do mundo, p. 385) 237
nha conhecidos escritores, não tinha nada. Por exemplo, de tarde no trabalho ou na faculdade, me ocorriam idéias e eu dizia: “Tá bem, amanhã de manhã eu escrevo”. Sem perceber ainda que, em mim, fundo e forma é uma coisa só. Já vem a frase feita. E assim, enquanto eu deixava “para amanhã”, continuava o desespero toda manhã diante do papel em branco. E a idéia? Não tinha mais. Então eu resolvi tomar nota de tudo o que me ocorria. E contei ao Lúcio Cardoso, que então eu conheci, que eu estava com um montão de notas assim, separadas, para um romance. Ele disse: “Depois faz sentido, uma está ligada a outra”. Aí eu fiz. Estas folhas “soltas” deram Perto do coração selvagem.
pensar num conteúdo sem sua forma. Só a intuição toca na verdade sem precisar nem de conteúdo nem de forma. A intuição é a funda reflexão inconsciente que prescinde de forma enquanto ela própria, antes de subir à tona, se trabalha. (Fragmento da crônica “Forma e conteúdo”, publicada em 20.12.1969. Ibidem, pp. 254-255)
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever “distraidamente”.
Agora eu aprendi a não rasgar nada. Minha empregada, por exemplo, tem ordem de deixar qualquer pedacinho de papel com alguma coisa escrita lá como está.
(“Escrever as entrelinhas”, crônica publicada em 06.11.1971. Ibidem, p. 385)
(Entrevista da autora ao MIS-RJ. Gravada em 20.10.1976 e publicada no volume 7 da coleção Depoimentos, editada pela instituição)
Comunicar é viver. Deram outro sentido à palavra. Como aquela frase: “Quem não comunica se trumbica”. É o oposto. Muita gente está se trumbicando pelo excesso de comunicação. Existe uma medida nas palavras. Permite a explicação dos fatos sem o uso de um vocabulário enorme. Comunicação é um sentido a mais. Uma expressão falada. Está presente no homem. Completa sua visão geral.
Eu creio na inspiração e creio no trabalho. Paul Valéry disse que os dois primeiros versos são dados pelos deuses e o resto é trabalho humano. Às vezes acordo no meio da noite com uma frase na cabeça, levanto-me, anoto-a e volto a dormir. Carlos Drummond de Andrade me disse uma vez que Manuel Bandeira não sei se escreveu ou disse que até para atravessar a rua no momento certo era preciso inspiração.
(“Autocrítica de Clarice Lispector, no momento exato”, por Telmo Martino. Jornal da Tarde, São Paulo, 22.07.1972)
(“Clarice, pela última vez”, por Nevinha Pinheiro. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15.12.1977)
Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro. (Apud BORELLI, Olga. Op. cit., p. 83)
Quando eu era pequena, eu olhava muito para uma galinha, por muito tempo, e sabia imitar o bicar do milho, imitar quando ela estava com doença, e isso sempre me impressionou tremendamente. Aliás, eu sou muito ligada a bicho, tremendamente. A vida de uma galinha é oca... uma galinha é oca!
Não se faz uma frase. A frase nasce. (“Escrever”, crônica publicada em 18.11.1972. In A descoberta do mundo, p. 433)
Eu tive que descobrir meu método sozinha. Não ti-
(Entrevista da autora ao 238
MIS - RJ .
Gravada em
20.10.1976 e publicada no volume 7 da coleção Depoimentos, editada pela instituição)
ma social com tanta intensidade que vivia de coração perplexo diante das grandes injustiças a que são submetidas as chamadas classes menos privilegiadas. No Recife eu ia aos domingos visitar a casa de nossa empregada nos mocambos. E o que eu via me fazia como que me prometer que eu não deixaria aquilo continuar. Eu queria agir. No Recife, onde morei até 12 anos de idade, havia muitas vezes nas ruas um aglomerado de pessoas diante das quais alguém discursava ardorosamente sobre a tragédia social. E lembro-me de como eu vibrava e de como eu me prometia que um dia esta seria a minha tarefa: a de defender os direitos dos outros. No entanto, o que terminei sendo, e tão cedo? Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima. É pouco, é muito pouco.
[Angústia] depende do angustiado. Para alguns incautos, inclusive é a palavra de que se orgulham como se com ela subissem de categoria, o que também é uma forma de angústia. Pode ser não ter esperança na esperança; conformar-se sem se resignar; não se confessar a si próprio; não ser o que realmente se é, e nunca se é; sentir o desamparo de estar vivo; pode ser não ter coragem de ter angústia. Angústia faz parte: o que é vivo, por ser vivo, se contrai. Alegria também faz parte: o que é vivo, por ser vivo, se descontrai. (“Yllen Kerr pergunta: Clarice Lispector responde – ‘Angústia depende do angustiado’”, por Yllen Kerr. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18.09.1963)
(“O que eu queria ter sido”, crônica publicada em 02.11.1968. In A descoberta do mundo, pp. 149-150)
O que procuro? Procuro o deslumbramento. O deslumbramento que eu só conseguirei através da abstração total de mim. Eu quero não a idéia e sim o nervo do sonho que resulta na única realidade onde posso encontrar uma verdade. É como se eu tivesse inventado a vida – e fiat lux. Mas o deslumbramento que eu tenho dura o espaço instantâneo de uma visão e eisme de novo no escuro.
Um nome para o que eu sou, importa muito pouco. Importa o que eu gostaria de ser. O que eu gostaria de ser era uma lutadora. Quero dizer, uma pessoa que luta pelo bem dos outros. Isso desde pequena eu quis. Por que foi o destino me levando a escrever o que já escrevi, em vez de também desenvolver em mim a qualidade de lutadora que eu tinha? Em pequena, minha família por brin ca dei ra cha ma va-me de “a pro te to ra dos animais”. Porque bastava acusarem uma pessoa para eu imediatamente defendê-la. E eu sentia o dra-
(Apud BORELLI, Olga. Op. cit., p. 79)
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Bluma Wainer/Acervo Paulo Gurgel Valente
Quando nasceu, em Tchetchelnik, pequena aldeia da Ucrânia, em 10 de dezembro de 1920, Clarice Lispector tinha o nome de Haia – que significa vida, ou clara. Recebeu o nome com o qual ficou conhecida ao desembarcar no Brasil com a família, com menos de dois anos. Morou em Maceió e no Recife, até se estabelecer no Rio de Janeiro aos 14 anos. Durante o curso de Direito, começou a carreira de jornalista, conheceu o futuro marido, Maury Gurgel Valente, e publicou seu primeiro livro, o romance Perto do coração selvagem (1943). Com o marido diplomata, teve dois filhos e viveu em várias cidades do mundo até a separação, em 1959. Passou a produzir colunas e artigos para jornais, como Correio da Manhã, Diário da Noite e Jornal do Brasil, e revistas, como a Manchete. Escreveu, entre outros, os romances A cidade sitiada (1949), A maçã no escuro (1961), A paixão segundo G.H. (1964) e Água viva (1973); a novela A hora da estrela (1977); os volumes de contos Laços de família (1960) e Felicidade clandestina (1971); além de crônicas, obras infantis e traduções. Morreu no Rio de Janeiro em 9 de dezembro de 1977, um dia antes de completar 57 anos.
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Mรกrcio Souza
Folias amazônicas ESCREVENDO EM DIÁLOGO COM O TEATRO E O CINEMA, UM MANAUARA AVESSO AO RÓTULO DE REGIONALISTA E AOS EXPERIMENTALISMOS METALINGÜÍSTICOS
quando era menino, aos sábados, meu pai me deixava, junto com os meus irmãos, na biblioteca, enquanto ele ia trabalhar na Imprensa Oficial. (...) Na adolescência, eu e o meu grupo chegávamos a influenciar o que o dono da Livraria Acadêmica, que existe até hoje, ia encomendar. Foi por insistência nossa que ele mandou vir Lolita [1955], de Vladimir Nabokov. (...) O livro era importante até por prestígio social; era preciso conhecer as obras para conversar, comentar. Quer dizer, tinha também esse lado de “pressão social”.
Meu projeto original era ser diretor de cinema. Sempre tive a maior paixão por essa arte. (....) Para situar melhor o que digo, precisamos entender como era Manaus na época da minha adolescência. Era uma cidade pequena, tinha pouco mais de 100 mil habitantes. O grande contato com o restante do mundo se dava por meio do cinema. Para um jovem brasileiro dos anos 1960, querer fazer cinema tinha o mesmo peso de pretender ser poeta na época da abolição da escravatura.
[sobre o mito da criação do universo narrado no espetáculo teatral Dessana, Dessana, de 1975] O mito com que trabalhamos, comum ali na região do rio Negro, tem muito a ver com as abordagens da física quântica. Há nele a idéia de uma grande explosão, que abre um nicho dentro do nada, uma explosão que cria o universo, como o Big Bang. Outra coisa: esse universo é entrópico, ele não caminha para a perfeição. Ele colapsa. A existência da humanidade como matéria pensante é crucial nesse contexto, pois coloca o debate, que existe na física, em torno da questão de se o universo encena para a gente, como observadores, ou não – aquelas sutilezas poéticas.
O cinema, afinal, era comunicação de massa. Eis aí a razão, digamos, política, do meu interesse pelo cinema. E a passagem pela literatura (...) iria se dar justamente por intermédio do cinema. Quando fiz A selva [em 1972, baseado no romance homônimo de Ferreira de Castro], percebi que de fato eu gostava mais de escrever do que de passar pela intensa carga emocional e de trabalho das quatro, cinco semanas de filmagem. [sobre a descoberta da Amazônia em São Paulo] Descobri que não sabia nada, que não fazia diferença o fato de eu ter nascido em Manaus. (...) Minha volta [para Manaus, em 1973], então, acabou tendo a ver também com essa necessidade de conhecer a Amazônia. Mas, do ponto de vista prático, eu voltei para Manaus porque não tinha mais ambiente aqui. Vivia sendo parado nas barreiras policiais. Como o meu nome constava das listas negras porque eu já havia sido preso, estava sendo processado, eu era um problema para os meus colegas de trabalho.
[sobre o “regionalismo do Norte”] Tomaria um certo cuidado com relação a esse problema do regionalismo, porque não é muito da tradição da Amazônia essa história de regionalismo. Isso é mais gaúcho, mais nordestino; eles é que sempre estiveram ligados a esse tipo de conceito que, aliás, começa, de certo modo, no Nordeste. Há uma insistência populista em tratar essa questão do regionalismo em contraposição com as tendências mais cosmopolitas, que não refutam as manifestações folclóricas e populares, ao contrário, mas a interação é diferente.
Manaus contava com uma boa biblioteca pública e aquele era um lugar que eu tinha aprendido a freqüentar desde muito criança. Eu me lembro de que 250
Todos nós, latino-americanos, ganhamos esse rótulo de exóticos, de primitivos. É que depois da Segunda Guerra havia uma expectativa enorme de que a América Latina viesse a ter um diálogo transformador da realidade mundial. Isso não aconteceu; foi uma das grandes decepções do pósguerra. No nosso lugar vieram os asiáticos. A América Latina ficou nesse mar de retórica revolucionária. A história é muito fabricada – então você não pode sucumbir ao que dizem que aconteceu no passado. Você tem de checar isso do ponto de vista crítico. Pois bem: A paixão de Ajuricaba, por exemplo, não é uma reedição romântica da idéia do índio; ali está denunciada a antropofagia, as guerras entre tribos. Mas, a certa altura, o protagonista da peça diz: “Mesmo que os pajés tivessem falado que eu seria derrotado, nós deveríamos ter feito o que fizemos para que no futuro não dissessem que herdaram a covardia de nós”. Isso é Demóstenes, entendem? Existem valores maiores do que o próprio “regionalismo”, digamos assim, indica. Não se deve temer o universal. Então, o que eu quero dizer é que o objetivo maior da nossa proposta é tirar esse rótulo de primitivo, de exótico, que nos impuseram. Quem disse que O anel dos nibelungos [de Richard Wagner] não é para amazonense? Voz é universal, não?
de uma estrutura explicitamente linear. Ou seja: mais do que o cinema, como se costuma supor, já que eu tinha a idéia de fazer um filme, foi o teatro que pesou de maneira decisiva na forma final de Galvez. No caso do Galvez, na realidade, o que você tem é um romance falsamente fragmentário; ele simula uma fragmentação que não existe: a história é linear. Agora, tem aquelas interrupções irônicas nos primeiros capítulos, que é uma proposta machadiana, e a justaposição igualmente irônica de cada título de capítulo. O que existe, no fundo, é a opção pelo sintético, a escrita meio telegráfica, herança do modernismo. Eu gosto dos leitores. Espero que os leitores leiam os meus livros. Isso não quer dizer que eu vá sucumbir e preparar uma literatura pasteurizada. [sobre a recusa do experimentalismo formal] Um romance exige que você envolva o leitor em diversas camadas. Usando uma metáfora do teatro, é a “narrativa” que aparece para o leitor; é ela que está em cena, no espaço cênico. Mas fora isso, o cenário está sendo amparado por andaimes, há refletores que não aparecem etc. e todo esse material ajuda a criar a atmosfera da cena. Pois bem: tudo isso deve estar “escondido” também no texto literário.
Acho que aí você tem de criar um movimento que eu chamaria de “Antiveias abertas da América Latina”. Vamos fechar as veias todas aqui, propor uma outra forma de diálogo. A primeira posição é evitar o carimbo, o rótulo.
[sobre fantasia e realidade no romance A ordem do dia, de 1983] Comecei a escrever o livro “a sério”. Queria fazer um thriller de espionagem que desnudasse a ditadura militar. Queria ver até onde ela agüentava. Mas não achava o tom. Então, entrei num impasse. Um dia, fui autografar A resistível ascensão do Boto Tucuxi em Brasília, numa feira do livro. Sentei ao lado de um general reformado do Exército, Alfredo Moacyr Uchôa, que era dono de uma universidade particular no DF e tinha se tornado conhecido como um dos maiores ufólogos do Brasil. Ficamos conversando durante oito horas – e essa conversa mudou a perspectiva de A ordem do dia. Depois dela, eu vislumbrei como pode ria des mon tar a di ta du ra, me vin gar da ditadura plenamente com a metáfora dos extraterrestres. O livro é debochado mesmo, de forma assumida. Quando ele saiu e vi que os militares
A paixão de Ajuricaba não tem esse lado exótico. O nosso Ajuricaba é um índio sofisticadíssimo. Poderia muito bem sentar no Le Procope e conversar com Voltaire por várias horas falando sobre o Iluminismo. Na época em que eu tentava terminar o Galvez estava envolvido com a peça As folias do látex. Era uma peça sobre o ciclo da borracha e eu vinha discutindo com o grupo como fazer o espetáculo. Inicialmente pensei em fazer o grande drama da família que enriquece (...) Aos poucos fomos chegando à conclusão de que a melhor forma de tratar o assunto era por meio de fragmentos e não 251
Eu reescrevo, mas não sou obsessivo; se sofresse ao escrever, já teria mudado de profissão. Escrevo com grande facilidade. É um prazer. Eu me divirto muito. Claro que tenho senso crítico também. Existe um tempo de maturação daquilo que você escreve. Eu faço e depois vou tratando. Mas não de modo obsessivo. Eu não perco a alegria, entendem? Para mim, isso de ficar retrabalhando o texto representa um outro tipo de felicidade. De qualquer maneira, sou disciplinado. Romance é muito trabalho braçal também.
não fizeram nada, percebi que a ditadura estava derrotada. (...) Por causa desse romance, até hoje recebo publicações ufológicas. Como sabemos, o nosso idioma parece feito para a poesia. Os poetas estão em casa com a língua portuguesa. Já o prosador precisa usar um detector de minas, para saber se pode pisar aqui ou ali. [sobre a oposição entre as questões subjetivas e a representação social na ficção] Um romance essencialmente político como Operação silêncio é, ao mesmo tempo, o livro mais reflexivo que já escrevi. Os contos de A caligrafia de Deus estão centrados em estados de espírito dos personagens. E, até na tetralogia [Crônicas do Grão-Pará e Rio Negro], a visão dos protagonistas é individual. Eu poderia ter optado, sobretudo nesse projeto, por fazer um painel, em que diversos grupos sociais se entrelaçassem, mas a estratégia acabou sendo a de narradores individuais. Então, eu acho que há, no meu trabalho, as duas coisas. Não tenho muita paciência para a literatura reflexiva, tenho respeito, mas não sou leitor desse tipo de literatura; ao mesmo tempo, reconheço que, se você fizer exclusivamente painéis históricos, colocará no papel algo frágil. O meu esforço é para que esses quadros históricos tenham um arcabouço psicológico, de maneira que o leitor possa perceber que ali há individualidades interagindo com as contingências daquele momento. Não são personagens-fantoches, que eu fico daqui manipulando para dizer algo. Os personagens-fantoches são monocórdios. Não são contraditórios, não são humanos.
Escrevo todo dia, nem que seja um pouco. É como se o escritor fosse instrumentista. Você tem de tocar todo dia um pouquinho, senão terá de começar do zero. Quando digo “um pouco”, estou falando até de cinco, seis linhas, antes de dormir. Se estou numa viagem longa, levo o meu notebook. Se for um trajeto curto, carrego o meu caderninho. [sobre a Cabanagem, revolta popular tematizada na tetralogia Crônicas do Grão-Pará e Rio Negro] Nós tínhamos ali, em luta, dois modelos: um, o do Vice-Reino do Brasil, depois Império do Brasil, que era uma sociedade monárquica, escravocrata, de grandes proprietários e com uma economia agroin dus trial de ex por ta ção; e o ou tro modelo era o do Grão-Pará, que tinha como proposta um país republicano, democrata, com uma economia baseada nos pequenos proprietários agrícolas e na indústria, especialmente a de manufatura de borracha. O choque era irreconciliável. A derrota dos cabanos, a derrota do Grão-Pará, tem um efeito para a formação do Brasil comparável ao que seria uma vitória do Sul na Guerra da Secessão americana. A derrota do Grão-Pará foi a derrota do Brasil moderno; se o Sul – escravocrata, latifundiário – tivesse vencido, os Estados Unidos estariam igual ao Brasil. Ou seja, com a derrota dos cabanos, o Brasil é que saiu derrotado.
O leitor do livro descartável é de “mão única” – dificilmente ele consegue sair desse patamar de “exigência literária”, digamos assim. Isso pode até acontecer, num caso ou outro, mas não é a regra. Seja como for, a inexistência de uma literatura brasileira de entretenimento, ou, pelo menos, a pouca produção nacional nessa frente se deve muito, eu acredito, a uma idéia do que seja o “texto literário” na América Latina. Você não tem escritores medianos de entretenimento, por exemplo, na Argentina. No México também não há. Nós estamos “condenados” à excelência na literatura.
Não existe um “problema da Amazônia”. O que há é um “problema nacional”: não se consegue estabelecer uma estratégia integral para o país, um projeto de nação. Sem isso, você não inclui nada, nem uma região. Se você aceita que exista um “problema na Amazônia”, tem de admitir um 252
no Rio de Janeiro, onde criou a primeira escola de teatro do país, a Martins Pena, que existe até hoje. Depois, a região produziu ficcionistas como Dalcídio Jurandir e Haroldo Maranhão, poetas do peso de Max Martins, Élson Farias, Tiago de Melo. Mais recentemente revelou um romancista como Milton Hatoum. Ou seja: sempre tivemos e ainda temos uma participação de alto nível. E reconhecida: sempre que surgem valores por lá, eles são muito bem recebidos pelo resto do país. Isolamento literário, portanto, não existe pelo menos desde o século XIX. Provavelmente, o próximo grande passo será a consagração das literaturas produzidas pelos escritores indígenas, que começam a aparecer. Por enquanto, eles estão reproduzindo os seus mitos, o seu universo mítico. Ainda estão na “fase homérica”. Mas no futuro estarão escrevendo romances, biografias.
“problema do Sudeste”, um “problema do Sul” e assim por diante. Temos diversas Amazônias. O que vale para o sul da Amazônia não vale para a região dos grandes rios, a região montanhosa. A Amazônia é um subcontinente de muitos contrastes, que tem geleiras eternas, o maior pico do Brasil, e ao mesmo tempo, o maior rio, a maior floresta equatorial. Sobre a literatura da Amazônia, o importante é entender que ela sempre teve uma participação de primeira grandeza na formação da literatura brasileira. Foi a Amazônia, por meio de Inglês de Sousa, que fez o Brasil conhecer o naturalismo. Aliás, o ciclo do cacau de Inglês de Sousa antecipa, de certo modo, o realismo nordestino. A Amazônia também contribuiu com a crítica – refiro-me principalmente ao trabalho de José Veríssimo. E, mais tarde, com o palco: Benjamin Lima foi encenado com sucesso
Não existe propriamente “literatura amazônica”; existe “literatura brasileira que é escrita na Amazônia”.
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Márcio Souza nasceu em 1946, em Manaus. Em 1959, escreve sobre cinema em O Trabalhista, jornal em que seu pai trabalhava como operário gráfico. O tema vai ocupá-lo nos anos seguintes: colabora na fundação do cineclube Grupo de Estudos Cinematográficos do Amazonas, escreve críticas em O Jornal e produz curtas-metragens de caráter experimental. O autor realizaria mais de uma dezena de obras desse gênero, como Prelúdio azul, com o qual participa da VIII Bienal de Arte de São Paulo. Assina roteiros de filmes como O país do futebol, de Hector Babenco, e Luar do sertão, de Oswaldo de Oliveira. Publica em 1976 seu primeiro romance, Galvez, imperador do Acre; o terceiro, Mad Maria, que sai em 1980, foi adaptado para uma minissérie da TV Globo em 2005. A partir dos anos 1980 – período em que se torna sócio da editora Marco Zero, que passa a publicar seus livros –, é constantemente convidado para palestras, cursos e seminários em diversas instituições pelo mundo. Em 1986, lança O brasileiro voador, biografia romanceada de Santos Dumont, originalmente concebida como argumento para um filme. Atuando também no teatro, as peças de Márcio Souza refletem a temática predominante em sua produção literária e cinematográfica: a cultura e a condição indígena, a história de sua região natal, as questões referentes à exploração da Amazônia – com uma obra dramatúrgica que inclui As folias do látex, A paixão de Ajuricaba, A maravilhosa história do sapo Tarô-Bequê e Tem piranha no pirarucu. Sua produção ensaística traz as mesmas preocupações e compreende livros como A expressão amazonense – Do colonialismo ao neocolonialismo, O palco verde, O empate contra Chico Mendes e Silvino Santos, o cineasta do ciclo da borracha.
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Jo達o Guimar達es Rosa
Passagem para a grande arte NA OBRA QUE TRANSFORMOU O COSMO EM SERTÃO E OS JAGUNÇOS EM HERÓIS METAFÍSICOS, O LABOR DA LÍNGUA CONVIVE COM MOMENTOS DE TRANSES E EPIFANIAS
penosa versão diversa, apenas também sobre viagem de carro-de-bois e que eu considerara como definitiva ao ir dormir na sexta. “A terceira margem do rio” (Primeiras estórias) veio-me, na rua, em inspiração pronta e brusca, tão “de fora” que instintivamente levantei as mãos para “pegá-la”, como se fosse uma bola vindo ao gol e eu o goleiro. “Campo geral” (Manuelzão e Miguilim) foi caindo já feita no papel, quando eu brincava com a máquina, por preguiça e receio de começar de fato um conto, para o qual só soubesse um menino morador à borda da mata e duas ou três caçadas de tamanduás e tatus; entretanto, logo me moveu e apertou, e, chegada ao fim, espantou-me a simetria e ligação de suas partes. O tema de “O recado do morro” (No Urubuquaquá, no Pinhém) se formou aos poucos, em 1950, no estrangeiro, avançando somente quando a saudade me obrigava, talvez também sob razoável ação do vinho ou do conhaque. Quanto ao Grande sertão: veredas, forte coisa e comprida demais seria tentar fazer crer como foi ditado, sustentado e protegido – por forças ou corrente muito estranhas.
Leio muito pouco, quase não tenho tempo. (...) Gosto mesmo é de ouvir conversas. Com pessoas estranhas, de preferência. Ouvir a vida para poder transmiti-la. Se a gente lê muito, em demasia, acaba contando coisas que todo mundo já sabe. É preciso dar coisas novas, há milhares de coisas novas para dar. É descobri-las. (“Guimarães Rosa fala aos jovens”. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 23.12.1967)
Nós, homens do sertão, somos fabulistas por natureza. (...) No sertão, o que pode uma pessoa fazer de seu tempo livre a não ser contar estórias? A única diferença é simplesmente que eu, em vez de contá-las, escrevia. (...) Eu trazia sempre os ouvidos atentos, escutava tudo o que podia e comecei a transformar em lenda o ambiente que me rodeava, porque este, em sua essência, era e continua sendo uma lenda.” (“Diálogo com Guimarães Rosa”, Günter Lorenz. Congresso de Escritores Latino-Americanos, Gênova, janeiro de 1965. In Ficção completa, Volume I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, pp. 31-61)
(Prefácio “Sobre a escova e a dúvida”. In Tutaméia)
Sagarana é um cordel com que amarrei um livro. Sagarana é o primeiro. A chave que abriria a porta de meus triunfos.
No plano da arte e criação – já de si em boa parte subliminar ou supraconsciente, entremeando-se nos bojos do mistério e equivalente às vezes quase à reza – decerto se propõem mais essas manifestações. Talvez seja correto eu confessar como tem sido que as estórias que apanho diferem entre si no modo de surgir. A “Buriti” (Noites do sertão), por exemplo, quase inteira, “assisti”, em 1948, num sonho duas noites repetido. “Conversa de bois” (Sagarana), recebi-a, em amanhecer de sábado, substituindo-se a
[sobre a história de Miguilim] Nela acho tudo o que já escrevi até agora e talvez mesmo tudo o que venha a escrever na minha vida. Nessa história está o germe, a semente de tudo. Todos os meus personagens existem. São criaturas de Minas: jagunços, vaqueiros, fazendeiros, pactá264
rios de Deus e do Diabo, meninos pobres, mulheres belas, moradores do Urucuia e redondezas.”
Eu carrego um sertão dentro de mim, e o mundo no qual eu vivo é também o sertão. As aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim. E meus livros são aventuras, para mim são a minha maior aventura. Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito, o momento não conta.
(“Guimarães Rosa segundo terceiros”. Realidade, São Paulo, julho de 1967)
Primeiras estórias é, ou pretende ser, um manual de metafísica e uma série de poemas modernos. Quase cada palavra, nele, assume pluralidade de direções e sentidos, tem uma dinâmica espiritual, filosófica, disfarçada. Tem de ser tomado de um ângulo poético, anti-racionalista e anti-realista (...). É um livro contra a lógica comum, e tudo nele parte disso. Só se apóia na lógica para transcendê-la, para destruí-la.
(“Viagens imaginárias – O sertão e as veredas de Guimarães Rosa”. Manchete, Rio de Janeiro, 20.07.1991)
Todos os meus livros são simples tentativas de rodear e devassar um pouquinho o mistério cósmico, esta coisa movente, impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, que é a chamada “realidade”, que é a gente mesmo, o mundo, a vida. Antes o obscuro que o óbvio, que o frouxo. Toda lógica contém inevitável dose de mistificação. Toda mistificação con tém boa do se de ine vi tá vel verda de. Precisamos também do obscuro.
(carta a J.-J. Villard, seu tradutor para o francês, 14.10.1963. Fundo João Guimarães Rosa – Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros – USP)
(Guimarães Rosa – Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason (1958-1967). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p. 238)
A gente do sertão, os homens de meus livros (...) vivem sem consciência do pecado original; portanto, não sabem o que é o bem e o mal. Em sua inocência, cometem tudo o que nós chamamos “crimes”, mas que para eles não o são. Alguma coisa deste modo de pensar se conservou até mesmo na justiça de muitos países civilizados. Pense na distinção entre assassinato premeditado e homicídio irrefletido, ou no que os franceses chamam “crime passional”, o assassinato por ciúmes etc. Isto marca limites. No sertão, cada homem pode se encontrar ou se perder. As duas coisas são possíveis. Como critério, ele tem apenas sua inteligência e sua capacidade de adivinhar. Nada mais. E assim se explica também aquele provérbio sertanejo que à primeira vista parece outro paradoxo, mas que expressa uma verdade muito simples: o diabo não existe, por isso ele é tão forte.
[sobre Grande sertão: veredas] Os caboclos “baixaram” em mim... Só escrevo altamente inspirado, como que “tomado”, em transe. Aquele livro me cansou fisicamente. Acabei extenuado. Deu-me, porém, um enorme prazer. Sensação igual só senti ao escrever “Miguilim”. Foi outro “clarão” que recebi na vida. (Sagarana emotiva: cartas de J. Guimarães Rosa a Paulo Dantas. São Paulo: Duas Cidades, 1975, pp. 25-29)
O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinza. (“Viagens imaginárias – O sertão e as veredas de Guimarães Rosa”. Manchete, Rio de Janeiro, 20.07.1991)
Riobaldo não é Fausto, e menos ainda um místico barroco. Riobaldo é o sertão feito homem e é meu irmão. (...) É mundano demais para ser místico, é místico demais para ser Fausto; o que chamam barroco é apenas a vida que toma forma na linguagem.
Eu não crio palavras. Elas todas estão nos clássicos, estão nos livros arcaicos portugueses. São expressões de muito valor que eu pretendo salvar. Em Sertão: veredas há palavras que nem em Portugal se falam mais.
(Apud Günter Lorenz. Op. cit., pp. 35-60) 265
nema! –, para colocar o leitor dentro da trama. O leitor precisa conviver com os personagens. Mas, para captar este momento é preciso que o autor esteja no momento. Por isso eu tenho meus caderninhos que me acompanham em todas minhas viagens. Eu amarro um lápis com duas pontas e, no sertão, até em cima do cavalo eu escrevo. É o momento. Um passarinho faz um movimento – eu capto o movimento. Na hora, e o escrevo como o vejo. Mas só naquele momento eu poderia registrá-lo. Jamais poderia guardá-lo na cabeça para dali a algumas horas ir me inspirar nele para compor. Não. Não teria valor.
Mas existem. Para determinadas passagens, entretanto, não existem palavras. Então é preciso criá-las, ou redescobri-las através de sons que a correspondam. (“Guimarães Rosa fala aos jovens”. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 23.12.1967)
Nosso português brasileiro é uma língua mais rica, inclusive metafisicamente, que o português falado na Europa. E, além de tudo, tem a vantagem de que seu desenvolvimento ainda não se deteve; ainda não está saturado.
Quando se está escrevendo tudo é um ímã. As palavras se atraem, os assuntos também. E vai-se escrevendo, sem parar (importante não parar). Se eu paro para olhar meu estilo, como vai indo, eu começo a me copiar (...). O segredo é pensar na coisa (impossível definir essa coisa).
A linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive; e como a vida é uma corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constantemente. Isso significa que, como escritor, devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo necessário para ela ser novamente vida.
(“Guimarães Rosa fala aos jovens”. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 23.12.1967)
Deus era a palavra e a palavra estava com Deus. Este é um problema demasiado sério para ser largado nas mãos de uns poucos ignorantes com vontade de fazer experiências. O que chamamos hoje de linguagem corrente é um monstro morto. A língua serve para expressar idéias, mas a linguagem corrente expressa apenas clichês e não idéias.
A poesia profissional, tal como se deve manejá-la na elaboração de poemas, pode ser a morte da poesia verdadeira. Por isso retornei à “saga”, à lenda, ao conto simples, pois quem escreve estes assuntos é a vida e não a lei das regras chamadas poéticas. Então comecei a escrever Sagarana.
(Apud Günter Lorenz. Op. cit., pp. 33-55) (Apud Günter Lorenz. Op. cit., pp. 34-57) Eu, quando escrevo um livro, vou fazendo como se o estivesse “traduzindo”, de algum alto original, existente alhures, no mundo astral ou no “plano das idéias”, dos arquétipos, por exemplo. Nunca sei se estou acertando ou falhando, nessa “tradução”. Assim, quando me “re”-traduzem para outro idioma, nunca sei, também, em casos de divergência, se não foi o tradutor quem, de fato, acertou, restabelecendo a verdade do “original ideal”, que eu desvirtuara...
Meus cadernos cheiram a suor de cavalo, de boi. Estão impregnados dos cheiros do sertão. (“Guimarães Rosa segundo terceiros”. Realidade, São Paulo, julho de 1967)
Em geral, quase toda frase minha tem de ser meditada. Quase todas, mesmo as aparentemente curtas, simplórias, comezinhas, trazem em si algo de meditação ou de aventura. Às vezes, juntas, as duas coisas: aventura e meditação. Uma pequena dialética religiosa, uma utilização, às vezes, do paradoxo.
(João Guimarães Rosa – Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri, p. 99)
Eu procuro captar o fato, o momento – como no ci266
cristã, mas muito crédula, o diabo é uma realidade no mundo. Está oculto na essência das coisas e faz ali suas brincadeiras. A ciência existe para expulsar o diabo. O homem sofre sempre o desespero metafísico, pois conhece a existência do diabo e pode assim liquidá-lo, superando-o até conseguir uma humanidade sem falsidades.
(Guimarães Rosa – Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason (1958-1967), pp. 238 e 239)
[sobre a ABL] Se tomar posse, eu morro (...). Que pena não ser como num jogo de futebol. Quando acaba, os jogadores estão a salvo, entram no buraco e somem.
Um gênio é um homem que não sabe pensar com lógica, mas apenas com a prudência. A lógica é a prudência convertida em ciência; por isso não serve para nada. Deixa de lado componentes importantes, pois, quer se queira quer não, o homem não é composto apenas de cérebro. Eu diria mesmo que, para a maioria das pessoas, e não me excetuo, o cérebro tem pouca importância no decorrer da vida. O contrário seria terrível: a vida ficaria limitada a uma única operação matemática, que não necessitaria da aventura do desconhecido e inconsciente, nem do irracional. Mas cada conta, segundo as regras da matemática, tem seu resultado. Estas regras não valem para o homem, a não ser que não se creia na sua ressurreição e no infinito. Eu creio firmemente. Por isso também espero uma literatura tão ilógica como a minha, que transforme o cosmo num sertão no qual a única realidade seja o inacreditável.
(“Viagens imaginárias – O sertão e as veredas de Guimarães Rosa”. Manchete, Rio de Janeiro, 20.07.1991)
As vacas e cavalos são seres maravilhosos. Minha casa é um museu de quadros de vacas e cavalos. Quem lida com eles aprende muito para a sua vida e a vida dos outros. (...) Quando alguém me narra algum acontecimento trágico, digo-lhe apenas isto: “Se olhares nos olhos de um cavalo, verás muito da tristeza do mundo”. Eu queria que o mundo fosse habitado apenas por vaqueiros. Então tudo andaria melhor. (Apud Günter Lorenz. Op. cit., p. 32)
Tenho de segredar que – embora por formação ou índole oponha escrúpulo crítico a fenômenos paranormais e em princípio rechace a experimentação metapsíquica – minha vida sempre e cedo se teceu de sutil gênero de fatos. Sonhos premonitórios, telepatia, intuições, séries encadeadas fortuitas, toda a sorte de avisos e pressentimentos. Dadas vezes, a chance de topar, sem busca, pessoas, coisas e informações urgentemente necessárias.
(Apud Günter Lorenz. Op. cit., pp. 37-57)
Sou profundamente, essencialmente religioso, ainda que fora do rótulo estrito e das fileiras de qualquer confissão ou seita; antes, talvez, como o Riobaldo do G.S.:V., pertença eu a todas. E especulativo, demais. Daí todas as minhas constantes preocupações religiosas, metafísicas, embeberem os meus livros. Talvez meio existencialista-cristão (alguns me classificam as sim), meio neo-pla tô ni co (ou tros me carimbam disto) e sempre impregnado de hinduísmo (conforme terceiros). Os livros são como eu sou.
(Sagarana emotiva: cartas de J. Guimarães Rosa a Paulo Dantas, pp. 25-29)
Apenas na solidão pode-se descobrir que o diabo não existe. E isto significa o infinito da felicidade. Esta é a minha mística.
(João Guimarães Rosa – Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri, p. 90)
Segundo nossa interpretação brasileira, não muito
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Minas Gerais
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Guimarães Rosa, à dir., na viagem de 1952 pelo sertão mineiro. Fundo João Guimarães Rosa – Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros – USP
O mineiro Guimarães Rosa nasceu em 1908, em Cordisburgo. Dos 10 aos 22 anos, vive em Belo Horizonte, onde conclui o colégio e o curso da faculdade de medicina. Casa-se em 1930, ano de sua formatura, com Lygia Cabral Penna – com quem teria duas filhas. Como médico, começa a percorrer o interior do seu estado, experiência que vai inspirar a produção literária futura. Em 1934, afasta-se da medicina ao ingressar numa longa carreira diplomática, mudando-se para o Rio de Janeiro. Seu volume de poemas Magma (escrito em 1936 e publicado apenas em 1997) ganha o Concurso Literário da Academia Brasileira de Letras. Em 1937, assinando como Viator, concorre com o volume Contos (que daria origem a Sagarana) ao Prêmio Humberto de Campos, da editora José Olympio – mas o livro, nessa primeira versão, não foi bem recebido por Graciliano Ramos, um dos jurados, ficando em segundo lugar. Trabalha como cônsul-adjunto em Hamburgo, na Alemanha, onde conhece Aracy Moebius de Carvalho, sua segunda mulher. Publica, em 1956, duas obras que são fruto da produção anterior e de sua pesquisa sobre o sertão de Minas Gerais, efetivada depois da publicação de Sagarana (1946): seu único romance, Grande sertão: veredas, e Corpo de baile, formado por três livros de contos – Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do sertão. É autor ainda das coletâneas de contos Primeiras estórias, Tutaméia (Terceiras estórias) e dos livros póstumos Estas estórias e Ave, palavra. Guimarães Rosa morreu em 19 de novembro de 1967, no Rio, três dias depois de tomar posse na Academia Brasileira de Letras.
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D E P O I M E N TO
Portfólio comentado AS PERIPÉCIAS DE UM FOTÓGRAFO EM BUSCA DOS CENÁRIOS DA LITERATURA BRASILEIRA
Edu Simões O roteiro e o “tom” da seção “Geografia pessoal” são estabelecidos previamente, em cada edição, com a equipe do IMS. Conversamos muito, e dela eu recebo informações sobre livros do autor, indicações sobre o conjunto da sua obra e seus significados mais marcantes. Definimos também os principais interlocutores a serem contatados nas áreas ou regiões focalizadas e todo o suporte logístico e material. Nessa fase preliminar, trabalho muito próximo da equipe.
No número sobre João Cabral, havia esse roteiro ligado ao Capibaribe, ao poema que descreve o rio chegando à Zona da Mata, até encontrar o cão sem plumas. E há a história dos catadores de caranguejos: eles foram comigo até o mangue, em Goiana, perto do Recife, contando histórias e remando. Remaram quase duas horas só para fazer as fotos. Cheguei a ficar atolado na lama até a cintura. Se não segurasse em uma árvore, não teria como fotografar – e tive de ser resgatado por eles.
Começo lendo a obra disponível do escritor sobre o qual vamos trabalhar. Li praticamente tudo o que Jorge Amado escreveu, os principais livros do João Ubaldo, Ignácio de Loyola Brandão, Lygia Fagundes Telles e assim com todos eles. Mas como não dá para ler exatamente tudo, conto com o apoio da equipe do Instituto para a seleção das obras mais significativas.
O trabalho é fruto do encontro desse roteiro, escrito há 60 anos, com a realidade de hoje. Ele faz essa junção, que não é nem reportagem contemporânea nem resgate daquilo que existiu. Não fico perseguindo ou eliminando da paisagem coisas que já não existem mais. Faço essa ponte entre o Brasil no qual o escritor vivia no momento em que escreveu os poemas e o Brasil de hoje – que é espantosamente semelhante.
O próximo passo é escolher quais romances serão meus guias. Nessa etapa, vou sublinhando todos os lugares citados no livro, as personagens e “tipos”. O tom do escritor também é uma referência para mim. O Rio de Janeiro do Millôr Fernandes tem um tom diferente do Rio do Cony ou da Clarice Lispector. O ensaio fotográfico tenta refletir essas diferenças.
Se o João Cabral tem esse elemento realista, ligado à pedra, a história da Clarice está toda vinculada à emoção interna, angustiada, a essa visão feminina das coisas. Tanto no Recife quanto no Rio de Janeiro. A sugestão da equipe do IMS, aqui, foi adotar Água viva como a linha mestra para iniciar o trabalho. Há também alguns contos específicos, como aqueles em que aparecem a galinha e o ovo, esse ambiente doméstico de classe média, tão raro na literatura.
A partir dessa troca de idéias, passo a usar a obra do escritor como se fosse um roteiro, seja ele físico (caso do rio São Francisco, na edição de Guimarães Rosa), seja ele subjetivo (o “cão sem plumas” de João Cabral, por exemplo, sugerido pela equipe do IMS como um símbolo fundamental).
Com Raduan Nassar, além de Lavoura arcaica e Um copo de cólera, foi importante o conto Menina a caminho, que é mais descritivo. Lavoura arcaica é um grande drama pessoal que não aparece na foto, mas as duas 276
de “coroa”), e as pessoas vão até lá para catar os mariscos. Fiz várias fotos de pessoas mariscando e de um tipo de pesca típica do local: eles criam uma pequena floresta de galhos nesses bancos de areia e a cercam com uma rede; quando a maré sobe, os peixes vão lá para se abrigar, ficando presos nela quando a maré baixa novamente. Essa é uma estratégia de pesca local, que eu nunca vi em lugar nenhum. Essas “jóias” da nossa cultura algumas vezes rendem fotos interessantes como, no caso, a fotografia de um pequeno barco tão carregado de galhos de árvores que parece uma pequena floresta no meio do oceano.
meninas diante de um velho silo, que aparecem numa das imagens que fiz na fazenda onde mora o escritor, bem poderiam estar no romance. Foi muito complicado fotografar Raduan. Para ele, que vive bastante recolhido, foi um grande sofrimento posar para os retratos. Quando acabou, estávamos esgotados. Um dos momentos mais difíceis de minha vida aconteceu quando tive de fotografar Hilda Hilst – uma senhora vivendo sob uma forte depressão quando a conheci, um ano antes de morrer. Visiteia muitas vezes e ela não se achava em condições de ser fotografada. Quando finalmente começamos a sessão para o retrato que foi publicado na capa dos CADERNOS, ela chegou a olhar nos meus olhos e dizer: “Se você tirar mais uma foto, vou começar a chorar na sua frente.” Optamos por fotografar a casa dela, que é um universo riquíssimo, mas que não passa exatamente pela obra. É como se a gente entrasse por uma porta lateral da Hilda. Não sei exatamente o que significa, mas deve significar alguma coisa você ter na estante uma coruja, uma foto do Freud, uma do Kafka e um vidro de Leite de Rosas [objetos de uma das fotografias publicadas na edição].
Para a edição da Rachel de Queiroz, as conversas iniciais de pauta me levaram direto ao Memorial de Maria Moura e, sobretudo, O quinze, que se passa em Quixadá, onde ela cresceu. Lugar maravilhoso, belíssimo, que na língua dos índios da região quer dizer “curral de pedra”. Há essas florações rochosas num ambiente de caatinga e há a casa entre Quixadá e a cidade que tem o nome do pai dela, Daniel de Queiroz. Entre as duas cidades, por dentro da caatinga, há uma estrada de terra com um casarão enorme: teria sido ali que Rachel ambientou a história de O quinze.
Jorge Amado, ao contrário, é um excesso. E a Bahia é um paraíso de cenário, uma festa de regionalidade, de coisas, paisagens. Vão aparecendo as personagens e os lugares: Gabriela e o universo do cacau, os garotos de Capitães da areia, o mercado de Água de Menino, o saveiro da Tereza Batista, as prostitutas.
Marquei com a irmã dela, que a secretariava, e combinei que iria a Quixadá quando a Rachel estivesse lá. Queria fotografá-la na casa que ela construiu na fazenda Não Me Deixes, com uma arquitetura sertaneja. Fiquei hospedado num motel em Quixadá, pois não havia vaga no único hotel da cidade, onde acontecia um congresso eucarístico. Cheguei lá e a irmã dela disse que Rachel estava com dores nas costas e não poderia me receber. Daí eu falei: “Vim aqui só para fotografar a Rachel. E gostaria de conhecê-la, pois ela de alguma maneira é minha parente”. Ela então se animou e se levantou da cama, pois queria saber quem era o parente que estava lá. Mesmo assim, não topou ser fotografada naquele dia. Voltei a Quixadá para registrar a fazenda, que tinha uns cactos maravilhoso, mas ela já não estava. O retrato acabou sendo feito no Rio de Janeiro.
No caso de João Ubaldo Ribeiro, o roteiro estava mesmo em Viva o povo brasileiro, um livro alegórico, que uso para tentar entender como são as personagens e por que diferem do universo do Jorge Amado. Fui traçando o roteiro no livro, marcando algumas características, principalmente lugares nos quais precisava estar. Em dado momento, já não tinha mais o que fotografar, já não sabia mais o que fazer. Estava diante de uma antiga igreja que o mar cobriu e fiquei parado num bar, olhando para o lugar por quatro horas. De repente, vejo homens tocando cavalos e passando por dentro do mar. Na foto, parece que os cavalos estão surgindo do mar.
Com alguns autores, tudo fluiu mais facilmente. O Cony foi maravilhoso, estava muito feliz. Ele mesmo fez o roteiro e me levou aos lugares que tinham a ver com sua obra – como o morro no Al-
O mar na ilha de Itaparica é muito plano e, quando a maré fica baixa, a areia aflora (é o que eles chamam 277
o Loyola, foi mais fácil, pois eu já estava mais à vontade com a linguagem e também porque a São Paulo dele é mais descritiva, me deu mais pistas. O ensaio tem muito do Zero, da praça Roosevelt (onde ele morou), do edifício Copan. Loyola fala do submundo da cidade, do largo do Paissandu, da pornografia, de garotas de programa.
to do Sumaré, ao qual o narrador de Quase memória é levado pelo pai. Fiz de lá uma fotografia muito bonita em que aparecem o Cristo Redentor, em primeiro plano, e, em segundo, o Pão de Açúcar. O Rio de Janeiro do Cony é o do Centro, da Lagoa, da arquitetura francesa do Rio antigo, palco da história do seminário que também aparece em Quase memória.
De todos os escritores, Ferreira Gullar é o que fica mais à vontade ao ser fotografado. Não preciso ir atrás, ele se oferece. Registrei Alcântara com o Poema sujo na cabeça. Como é um poema narrativo, facilitou um pouco. O Maranhão é muito forte. É um universo mal explorado. As pessoas são muito sérias e muito intensas.
Os fotógrafos reinventam o Rio porque a cidade é óbvia, é um universo fotograficamente fechado. Os romances de Cony não circulam pela Zona Sul, mas por um outro Rio de Janeiro, pelo Rio suburbano e pelo centro da cidade decadente. O Millôr é o contrário. Ele fala de um Rio folclórico, pois é um dos inventores desse imaginário, com suas frases, desenhos e comentários. Eu me dei o direito de ser satírico e sarcástico com o Rio. Tomo emprestados os comentários de Millôr, como ao fotografar o Cristo Redentor na condição de anão de jardim: aqui ele não aparece como símbolo religioso, mas do próprio Rio de Janeiro, do carioca que se autofolcloriza. É uma sátira que, como apaixonado pela cidade, eu me permiti.
Adélia Prado se dispôs a fazer coisas com as quais não está acostumada. A imagem dela caminhando na linha do trem, por exemplo, é uma referência a seu pai – o trem não está na obra, mas está na história pessoal dela. E há Divinópolis, cidade onde as igrejas e as máscaras da Festa do Divino falam de uma religiosidade que aparece em sua poesia. Estamos habituados a ver o sertão como a caatinga. Quando lemos Grande sertão: veredas, pensamos no Liso do Sussuarão quase como um deserto. Mas esse universo geográfico não existe em Minas Gerais. Muita gente já procurou, mas não existe. Andei por todos os lugares descritos no livro e não encontrei. Alguns dos estudiosos do Guimarães Rosa dizem que ele se inspirou no Raso da Catarina, que está na Bahia. Acho que estão certos. A região do Grande sertão é Minas, Bahia e Goiás – mas não é o sertão da Bahia. Nessas três divisas, não há o deserto da caatinga, é uma região de cerrado, de terra ruim, mas com muita água: os buritis, as veredas, só surgem em afloramento de água.
A foto da Lygia Fagundes Telles foi feita para a série “O escritor por ele mesmo”, um outro projeto do Instituto Moreira Salles [encontros dos autores com o público, filmados e acompanhados de CD em que o escritor lê trechos de sua obra]. A “Geografia pessoal” da Lygia foi um dos trabalhos que tive mais dificuldade em fazer. Na edição dos CLB, há muitas fotos que são do meu arquivo pessoal, que eram anteriores e foram incorporadas: são imagens da avenida São João, da avenida Paulista, do meu filho dentro do Terraço Itália, da casa que foi do meu bisavô e que registrei antes de ser demolida. É o universo da Lygia: a vida de São Paulo dentro dos casarões, a experiência da infância nos corredores das escolas. O contrário do Ignácio de Loyola Brandão, que circula pela cidade. A Lygia fez parte da minha infância, o Loyola fez parte da juventude. Ao fazer o ensaio sobre Loyola, deparei-me com os meus fantasmas como fotógrafo. Tentei a vida inteira fotografar São Paulo, mas nunca deu muito certo, nunca consegui achar algo que me satisfizesse e tivesse continuidade. Quando tentei fotografar São Paulo para a edição da Lygia, foi muito difícil; com
Em Minas, tive muita dificuldade, porque as pessoas nos recebem como visita, oferecem café e ficam sentadas fazendo sala. E não acontece nada! É uma característica cultural. Enquanto você não sai da casa deles, não fazem nada, porque você é visita – ao contrário dos outros lugares. Com o Ferreira Gullar, na praia da Raposa, vi uma porta aberta e um cara deitado no sofá, com a cabeça no colo da mulher, que fazia carinho no pé do cachor278
ro. Pedi licença, entrei e eles não se mexeram; fiz a foto, fui embora e eles continuaram deitados, acariciando o cachorro. A minha presença nem interferiu nem mudou a vida deles. Em Minas, isso jamais aconteceria. As pessoas ficariam envergonhadíssimas se flagradas numa situação de sesta.
parte da história da obra e do Rio Grande do Sul, com as missões, os guaranis, os jesuítas, as guerras. Para cumprir o roteiro de Galvez, imperador do Acre, do Márcio Souza, uma história picaresca em forma de folhetim, segui de avião para Rio Branco e depois tive de pegar uma voadeira [barco com motor de popa característico da região Norte], em busca do quase inexistente seringueiro tradicional. Quatro horas de viagem por rio. Quando anoiteceu, um barqueiro chegou à casa em que eu estava hospedado, estendeu a rede e dormiu. Isso é normal. Eles passam meses ou muitos dias sem encontrar ninguém, e as pessoas são muito bem recebidas.
Em meados dos anos 1970, fiz uma viagem à Bahia e levei uma máquina. Foi fotografando Canudos que decidi que seria fotógrafo. Fazer a “Geografia pessoal” de Euclides da Cunha foi um reencontro com essa história. O sertão de Os sertões é a caatinga mesmo. Quando estive lá pela primeira vez, não sabia o que era a Guerra de Canudos. Eu sabia de histórias de cangaceiros, era fascinado por Lampião e seu bando. Nessa época, em plena ditadura militar, ninguém falava de Canudos, pois a cidade havia sido destruída pelo Exército duas vezes – primeiro com as armas, depois com as águas [quando fizeram uma represa e o arraial de Canudos foi inundado].
Em Manaus, Márcio Souza me mostrou vários lugares, uma loja de tecidos chamada Paris da América, o Mercado – projeto do Eiffel – e um parque feito de grutas e pedra, construído pela fantasia parnasiana dos seringueiros. Em acordo com a equipe do IMS, tenho feito normalmente duas viagens, que duram no máximo 20 dias no total. O ideal é fazer uma parte do trabalho, enxergar o que se realizou e aí fazer a segunda.
No caso do Ariano Suassuna, fotografei uma festa popular que ressurgiu depois que ele publicou seu principal livro: é a festa da cavalgada da Pedra do Reino. Ninguém no local se lembrava dessa história, tinha sido totalmente esquecida – e foi retomada após a publicação de A Pedra do Reino.
Toda edição representa um mergulho obsessivo na história do escritor. Uma coisa angustiante. Sofro a cada uma delas. O momento de ser fotografado é também muito difícil para eles. Uma vez eu estava fotografando o [crítico de teatro] Jefferson Del Rios e ele me disse: “Já sei, isso é uma mistura de sedução com estupro”. O fotógrafo tem domínio completo sobre o que está acontecendo, as pessoas ficam à sua mercê. É uma postura sedutora, embora também muito invasiva. Mas ao mesmo tempo fascinante; um retrato é um trabalho que se faz em conjunto: fotógrafo e fotografado.
Durante a festa, eles fazem um concurso perto de uma localidade chamada Rabo do Pavão. Soltam uma novilha no meio da caatinga e saem atrás como loucos, montados nos cavalos: quando a novilha corre, levanta o rabo, então os homens a cavalo puxam o rabo dela e correm mais rápido, para desequilibrá-la. Quando ela cai, eles se atiram do cavalo em movimento e agarram a novilha. Levaram seis horas para encontrar a novilha. Quase fui atropelado e um dos cavalos me jogou numa touceira de espinhos, de mandacarus. Fui ao hospital, mas não conseguiram tirar os espinhos, que só saíram meses depois.
O trabalho tem uma evolução, na qual você vai compreendendo essa releitura visual. Entendo que, com a “Geografia pessoal”, estou também fazendo uma espécie de romance. Diferente de uma adaptação cinematográfica. Com a mesma liberdade que os escritores criaram seus romances, crio a minha história. Tomando algo emprestado de cada um – e alguma coisa que liga todos eles –, acredito que pôde surgir, assim, uma visão uniforme do Brasil.
Erico Verissimo foi a minha introdução na literatura no meu tempo de ginásio. Um certo capitão Rodrigo foi o primeiro livro que li e gostei. Para compor a sua “Geografia pessoal”, segui o roteiro do próprio O tempo e o vento, fui a Cruz Alta, à região de Bagé, a uma das fazendas onde se passou 279
GUIA
Fisionomias literárias João Cabral de Melo Neto (Nº 1)
Jorge Amado (Nº 3)
“Confluências”, com depoimentos de Joan Brossa, Antoni Tàpies e Maria da Saudade Cortesão Mendes. Entrevista com o autor, com questões também formuladas por Marly de Oli vei ra, Al fre do Bo si, Be ne di to Nu nes, João Alexandre Barbosa, Luiz Costa Lima e José Mindlin. “Manuscritos inéditos”, com reproduções de “Os quatro elementos”, “A corrente de ar” e “Difícil ser funcionário”. Ensaio fotográfico de “Geografia pessoal” por Edu Simões, em Pernambuco, e João Luiz Musa, em Sevilha (Espanha). “Ensaio”, com texto de João Alexandre Barbosa. Primeira edição: março de 1996. 136 páginas.
“Confluências”, com depoimentos de Mario Vargas Llosa, Darcy Ribeiro, Nelson Pereira dos Santos, Celso Furtado, Alice Raillard e Oscar Niemeyer. Entrevista com o autor, com questões também formuladas por Ana Miranda, Dias Gomes, José Paulo Paes, Francisco Iglésias, Lilia Moritz Schwarcz e Wilson Martins. Ensaio fotográfico de “Geografia pessoal” por Edu Simões, em Ilhéus e Salvador (BA); e fotos de época. “Inéditos”, com as cenas iniciais de A apostasia universal de Água Branca. “Variantes”, com quatro versões da primeira página do conto “Do recente milagre dos pássaros acontecidos em terras de Alagoas, nas ribanceiras do rio São Francisco”. “Correspondência”, com bilhetes de Mário de Andrade, Otto Lara Resende e Pablo Neruda. “Ensaios”, com textos de Eduardo de Assis Duarte, Fábio Lucas e Roberto DaMatta. Primeira edição: março de 1997. 172 páginas.
Raduan Nassar (Nº 2) “Confluências”, com depoi men tos de Mo des to Carone, José Carlos Abbate, Augusto Nunes e Milton Hatoum. “Entrevista” com o autor, com questões também formuladas por Davi Arrigucci Jr., José Pau lo Paes, Oc tá vio Ianni, Alfredo Bosi, Marilena Chauí e Leyla Perrone-Moisés. Ensaio fotográfico de “Geografia pessoal” por Edu Simões em Pindorama e fazenda Lagoa do Sino (SP). “Inédito”, com o conto “Hoje de madrugada”. “Ensaio”, com texto de Leyla Perrone-Moisés. Primeira edição: setembro de 1996. 100 páginas.
Rachel de Queiroz (Nº 4) “Confluências”, com depoimentos de Carlos Heitor Cony e Ary Quintella. Entrevista com a autora, com ques tões tam bém formuladas por João Cabral de Melo Neto, Lya Luft, Jacó Guinsburg e Henry Sobel. Ensaio fotográfico de “Geografia pessoal” por Edu Simões, em Quixadá (CE). “Inéditos”, com os textos 280
São Luís e em Alcântara (MA). “Inéditos”, com os poemas “Muitas vozes”, “Coito”, “Não-coisa”, “Um instante” e “Morrer no Rio de Janeiro”; “Originais”, com datiloscritos da abertura de “Homem comum” e “Poema sujo”; e “Desenhos”, com reprodução de “O galo” e desenhos da série “Morandinos”. “Ensaios”, com textos de Alcides Villaça e Wilson Coutinho. Primeira edição: setembro de 1998. 136 páginas.
“Guaramiranga” e “Não me deixes”, do livro de memórias da autora; datiloscritos dos romances As três Marias e Dôra, Doralina e manuscrito da peça A beata Maria do Egito. “Ensaios”, com textos de Wilson Martins, Vilma Arêas e Heloísa Buarque de Hollanda. Primeira edição: setembro de 1997. 132 páginas.
Lygia Fagundes Telles (Nº 5) “Confluências”, com depoimentos de José Saramago, Ivan Angelo, Anesia Pacheco e Chaves e Hilda Hilst. “Entrevista” com a autora, com questões também formuladas por Fábio Lucas, Moacyr Scliar, Edla van Steen, Adélia Prado e Carlos Augusto Calil. Ensaio fotográfico de “Geografia pessoal” por Edu Simões em São Paulo. “Inéditos”, com os contos “Que se chama solidão”, “O menino e o velho” e “História de passarinho”, do livro Invenção e memória; originais do conto “Seminário dos ratos”, do livro homônimo, e do romance As horas nuas. “Ensaios”, com textos de José Paulo Paes, Sônia Régis e Silviano Santiago. Primeira edição: março de 1998. 132 páginas.
João Ubaldo Ribeiro (Nº 7)
Ferreira Gullar (Nº 6)
Hilda Hilst (Nº 8)
“Confluências”, com depoimentos de Dias Gomes, Antonio Henrique Amaral e Moacyr Félix. Entrevista com o autor, com ques tões tam bém formuladas por Alfredo Bosi, Armando Freitas Filho, Esther Góes, Leandro Konder e Zuenir Ventura. Ensaio fotográfico de “Geografia pessoal” por Edu Simões na ilha de
“Confluências”, com depoimentos de Lygia Fagun des Tel les, Mas sao Ohno, Carlos Vogt e Caio Fernando Abreu. “Entrevista” com a autora, com questões também formuladas por Telê Ancona Lopez, Nelly Novaes Coelho, Millôr Fernandes e Jorge Coli. Ensaio fotográfico de “Geografia pessoal” por Edu Simões na
“Confluências”, com depoimentos de Cacá Diegues, Paloma Jorge Amado, Ana Miranda e Luiz Carlos Maciel. “Entrevista” com o autor, com questões também formuladas por Haroldo de Campos, Antonio Hohlfeldt, Jean Soublin, Carlos Felipe Moisés, Sérgio Sant’Anna e Gabriel García Márquez. Ensaio fotográfico de “Geografia pessoal” por Edu Simões na ilha de Itaparica (BA). “Originais”, com reproduções de datiloscritos de Viva o povo brasileiro e O sorriso do lagarto. “Ensaios”, com textos de Paulo Sérgio Pinheiro, Antonio Risério e João Luís C. T. Ceccantini. Primeira edição: março de 1999. 148 páginas.
281
do Reino e “Iluminogravuras”. “Ensaios”, com textos de Idelette Muzart Fonseca dos Santos, Wilson Martins, Carlos Newton Júnior e Ligia Vassallo. Primeira edição: novembro de 2000. 204 páginas.
Casa do Sol, em Campinas (SP). Originais de O auto da barca de Camiri e “Desenhos” da autora. “Ensaios”, com textos de Nelly Novaes Coelho, Leo Gilson Ribeiro, Renata Pallottini e Eliane Robert Moraes. Primeira edição: outubro de 1999. 144 páginas.
Ignácio de Loyola Brandão (Nº 11)
Adélia Prado (Nº 9) “Confluências”, com depoimentos de Fernanda Mon te ne gro, Zi ral do e Affonso Romano de Sant’ Anna. Entrevista com a au to ra, com ques tões também formuladas por Ferreira Gullar, Fábio Lucas e José Francisco Navarro Huamán. Ensaio fotográfico de “Geografia pessoal” por Edu Simões em Divinópolis (MG). “Inéditos”, com os poemas “Divinópolis”, “Línguas” e “Olhos”; e “Manuscritos” de “Moça na sua cama”, “O sacrifício” e “Fluência”. “Ensaios”, com textos de Antonio Hohlfeldt, Frei Betto e Ana Miranda. Primeira edição: junho de 2000. 152 páginas.
“Confluências”, com depoimentos de José Celso Martinez Corrêa, Luciana Stegagno Picchio, Antônio Torres, Dorian Jorge Freire de Andrade e Arley Pereira. “Entrevista” com o au tor, com ques tões também formuladas por Fernando Gabeira, Márcio Souza, Roberto Drummond, Cláudio Willer e Maurice Capovilla. Ensaios fotográficos de “Geografia pessoal” por Edu Simões, em São Paulo e Araraquara (SP), e Renate von Mangoldt, em Berlim. “Inéditos”, com fragmentos do romance O anônimo. “Ensaios”, com textos de Antonio Hohlfeldt, Cecilia Almeida Salles, Fábio Lucas e Deonísio da Silva. Primeira edição: junho de 2001. 184 páginas.
Ariano Suassuna (Nº 10)
Carlos Heitor Cony (Nº 12)
“Confluências”, com depoi men tos de Ra duan Nassar, Marcos Vilaça e Millôr Fernandes. “Entrevista” com o autor, com questões também formuladas por Celso Furtado, Marco Maciel, João Alexandre Barbosa, Mariângela Alves de Lima, Guel Arraes, Luiz Fernando Carvalho e Moacyr Scliar. Ensaio fotográfico de “Geografia pessoal” por Edu Simões em São José do Belmonte (PE) e Taperoá (PB). “Inédito”, com estilogravura de poema; “Manuscrito” de A Pedra
“Confluências”, com depoimentos de Ruy Castro, Mar cio Mo rei ra Al ves, He loi sa Sei xas, Zue nir Ventura e Luis Fernando Ve ris si mo. “En tre vis ta” com o autor, com questões também formuladas por Wilson Martins, Lygia Fagundes Telles, Affonso Romano de Sant’Anna e Frei Betto. Ensaio fotográfico de “Geografia pessoal” por Edu Simões no Rio de Janeiro. “Inéditos”, com seis capítulos do romance A tarde de sua ausência. “Ensaios”, com textos de Antonio 282
Millôr Fernandes (Nº 15)
Hohlfeldt, Raquel Illescas Bueno e Luiz Alberto Gómez de Souza. Primeira edição: dezembro de 2001. 160 páginas.
“Confluências”, com depoi men tos de Aria no Suassuna, Gianni Ratto, Carlos Lyra, Zuenir Ventura e Luis Fernando Verissimo. “Entrevista” com o au tor, com ques tões também formuladas por Ge ral do Car nei ro, Ja guar, Alberto Dines, Carlos Heitor Cony, Leonel Kaz, Fernanda Montenegro e Chico Caruso. Ensaio fotográfico de “Geografia pessoal” por Edu Simões no Rio de Janeiro. “Inéditos”, com trechos do roteiro Últimos diálogos, e da peça Kaos; “Manuscritos”, com anotações para a peça Duas tábuas e uma paixão; e “Desenhos”. “Ensaios”, com textos de Elias Thomé Saliba, Mariangela Alves de Lima, Maria Sílvia Betti, Sheila Leirner e Márcio Suzuki. Primeira edição: julho de 2003. 184 páginas.
Euclides da Cunha (Nos 13 e 14) Consultoria de Walnice Nogueira Galvão e Roberto Ventura. “Memória seletiva”, com texto e pesquisa de imagens de Roberto Ventura. Ensaio fotográfico de “Geografia pessoal” por Edu Simões, no interior da Bahia, em Canudos, Monte Santo e Macururé. “Caderneta de campo”, reportagem de cunho ensaístico por Roberto Pompeu de Toledo. “Confluências”, com depoimentos de Celso Furtado, João Ubaldo Ribeiro, Leopoldo Bernucci e José Celso Martinez Corrêa. “Inéditos/Manuscritos”, com os poemas “No túmulo de um inglês”, “Cenas da escravidão”, “Amor algébrico”, “D. Quixote” e “Página vazia”. “Ensaios”, com textos de Walnice Nogueira Galvão, Cândido da Costa e Silva, Mario Jorge da Fonseca Hermes, Álvaro Pinto Dantas de Carvalho Júnior, Francisco Foot Hardman, Milton Hatoum, Berthold Zilly e Antonio Carlos Robert Moraes. “Mesa-redonda” com a participação de Walnice Nogueira Galvão, Francisco Foot Hardman, José Carlos Barreto de Santana, Marco Antonio Villa, Alberto Venancio Filho, Consuelo Novais Sampaio, Anna Mariani, Cristiano Mascaro, Davis Ribeiro de Sena e Álvaro Ribeiro de Oliveira Neto. “Perfis” de Oswaldo Galotti por Álvaro Ribeiro de Oliveira Neto e de José Calasans por Fernando da Rocha Peres. “Guia”, com colaboração de Adelino Brandão. Vinhetas do cordelista José Costa Leite. Encarte com o fac-símile do ofício do general Artur Oscar para o ministro da guerra, o marechal Carlos Machado de Bittencourt, com o relato do assalto decisivo a Canudos. Encarte com mapa do pesquisador Claude Santos para indicar as prováveis caminhadas de Euclides pela região do conflito. Primeira edição: dezembro de 2002. 418 páginas.
Erico Verissimo (Nº 16) “Confluências”, com depoimentos de Clarissa Verissimo Jaffe, Rosa Freire d’Aguiar e Lygia Fagundes Telles. “Erico por ele mesmo”, com fragmentos de textos e depoimentos do autor. Ensaios fotográficos de “Geografia pessoal” por Cristiano Mascaro, em Porto Alegre (RS), e por Edu Simões, no interior gaúcho. “Manuscrito”, com desenhos dos personagens do romance inacabado A hora do sétimo anjo; “Inéditos”, com manuscritos em inglês de A hora do sétimo anjo. “Ensaios”, com textos de Antonio Hohlfeldt, Regina Zilberman, Fábio Lucas e Maria da Glória Bordini. Encarte com a árvore genealógica dos protagonistas de O tempo e o vento, elaborada por Antonio Hohlfeldt, com assistência dos pesquisadores Paulo Roberto Batista 283
João Guimarães Rosa (Nos 20 e 21)
Maciel e André Lionir Petry da Silva. Encarte com texto de Plinio Martins Filho e Jadyr Pavão sobre a atividade do escritor como editor. Primeira edição: novembro de 2003. 188 páginas.
Consultoria editorial de Walnice Nogueira Galvão e Ana Luiza Martins Costa. “Me mória Se le tiva”, por Ana Luiza Mar tins Cos ta. “Con fluên cias”, com depoimentos de Dora Ferreira da Silva, Manuelzão, José Mindlin e Rubens Ricupero. “Guimarães Rosa por ele mesmo”, com fragmentos de textos, cartas e entrevistas. Ensaio fotográfico de “Geografia pessoal”, em Minas Gerais, por Edu Simões. “Manuscritos”, com datiloscritos e manuscritos de A fazedora de velas e O imperador. “Ensaios”, com textos de Walnice Nogueira Galvão, Ana Luiza Martins Costa, Benedito Nunes, Francis Utéza, Cleusa Rios Pinheiro Passos e Willi Bolle. Encarte “Guimarães Rosa na Alemanha”, com texto de Adriana Jacobsen e Soraia Vilela. Primeira edição: dezembro de 2006. 348 páginas.
Clarice Lispector (Nos 17 e 18) “Memória seletiva”, com colaboração de Nádia Battella Gotlib. “Confluências”, com depoimentos de Paulo Gurgel Valente, Lêdo Ivo, Alberto Dines e Ferreira Gullar. “Clarice por ela mesma”, com fragmentos de textos e declarações da autora. Ensaio fotográfico de “Geografia pessoal” por Edu Simões no Recife e no Rio de Janeiro. “Manuscritos” de A hora da estrela. “Ensaios”, com textos de Carlos Mendes de Sousa, Silviano Santiago, Vilma Arêas, Berta Waldman, Yudith Rosenbaum, Olga de Sá e Benedito Nunes. Encarte elaborado pela editora Francesca Angiolillo sobre a atividade jornalística da escritora. Primeira edição: dezembro de 2004. 344 páginas.
10 anos (Nº 22) Edição comemorativa de dez anos dos CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. “Ensaio” de Antonio Fernando De Franceschi (“Literatura e natureza ou a relação entre as formas da arte”). Antologias da seção “Geografia pessoal” de cada escritor abordado, precedidas de coletânea de frases selecionadas nas entrevistas publicadas originalmente nos CLB e nas seções “Clarice por ela mesma”, “Erico por ele mesmo” e “Guimarães Rosa por ele mesmo” – além de frases de Euclides da Cunha extraídas de sua correspondência. “Depoimento” do fotógrafo Edu Simões. “Guia”, com síntese bibliográfica de cada edição e relação dos colaboradores dos CADERNOS. Primeira edição: julho de 2007. 288 páginas.
Márcio Souza (Nº 19) “Confluências”, com depoimentos de Ignácio de Loyola Brandão, Antônio Torres e Francisco Correa Weffort. “Entrevista” com o au tor, com ques tões também formuladas por Lygia Fa gun des Tel les, Milton Hatoum e Neide Gondim. Ensaio fotográfico de “Geografia pessoal” por Edu Simões na Amazônia. “Manuscritos” de Galvez, imperador do Acre. “Ensaios”, com textos de Francisco Foot Hardman, Randal Johnson, Jefferson Del Rios e Lúcia Sá. Primeira edição: dezembro de 2005. 176 páginas. 284
INSTITUTO MOREIRA SALLES
Walther Moreira Salles (1912-2001) Fundador Diretoria Executiva
Conselho Consultivo
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CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA À venda nas principais livrarias do país, nos espaços culturais e no site do Instituto Moreira Salles e em Portugal Número 1 – João Cabral de Melo Neto (mar. 96) Número 2 – Raduan Nassar (set. 96) Número 3 – Jorge Amado (mar. 97) Número 4 – Rachel de Queiroz (set. 97) Número 5 – Lygia Fagundes Telles (mar. 98) Número 6 – Ferreira Gullar (set. 98) Número 7 – João Ubaldo Ribeiro (mar. 99) Número 8 – Hilda Hilst (out. 99) Número 9 – Adélia Prado (jun. 00) Número 10 – Ariano Suassuna (nov. 00)
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Jornalista responsável: Antonio Fernando De Franceschi (MTb: 9.093).
ESTA OBRA FOI COMPOSTA PELA BEI˜ • COMUNICAÇÃO EM GARAMOND E GILL SANS COM FOTOLITOS E IMPRESSÃO NA IPSIS GRÁFICA E EDITORA PARA O INSTITUTO MOREIRA SALLES EM JULHO DE 2007.