ISSN 1413-652X
CADERNOS DE
LITERATURA B R A S I L E I R A
CADERNOS DE
LITERATURA B R A S I L E I R A
Diretor Editorial Editor Executivo Edição de Arte e Finalização Fotos e Ensaios Fotográficos Pesquisa
Antonio Fernando De Franceschi Rinaldo Gama BEI˜ • Comunicação Eduardo Simões Rosana Tokimatsu
Colaboraram nesta edição: Adam Sun, Eliane Robert Moraes, Leo Gilson Ribeiro, Lygia Fagundes Telles, Maria Eugênia, Massao Ohno, Nelly Novaes Coelho, Renata Pallottini, Rômulo Fialdini, Telê Ancona Lopez (São Paulo); Carlos Vogt (Campinas); Millôr Fernandes (Rio de Janeiro); Jorge Coli (Nova York).
NÚMERO
8 - OUTUBRO DE 1999
é uma publicação semestral do Instituto Moreira Salles.
CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA
Distribuição no Brasil: Primeira Linha. Tel.: (0 XX 11) 255-3852. Distribuição em Portugal: Dinalivro. Tel.: (0021 3511) 395-2348. Assinaturas: tel./fax (0 XX 11) 212-2100 ou via Internet – http://www.ims.com.br
FOLHA DE ROSTO, 5 MEMÓRIA SELETIVA, 8 CONFLUÊNCIAS, 13 ENTREVISTA, 25 GEOGRAFIA PESSOAL, 42 ORIGINAIS/DESENHOS, 58 ENSAIOS, 66 GUIA, 127
F O L H A D E R O S TO
Carta ao pai PARA ONDE VÃO OS TRENS TRILHOS AS TRILHAS (PARALELAS) DA LITERATURA? PARA KAFKA, JOYCE, BECKETT, DORMENTES NAS ESTANTES, NEM UM LEITOR SEQUER, E DEPOIS TAMBÉM PARA LUGAR ALGUM: ELA PODE IR E AINDA QUE NÃO SE MOVA, A OBRA DE HILDA HILST VAI ESTAR ALI, SOLAR, MADURA, DE PÉ
Traço nesta lousa/O que em mim se faz/E não respousa:/Uma Idéia de Deus. Exercícios para uma idéia
“Só três noites de amor, só três noites de amor”, implorava o pai, sim, o pai, ele nunca fizera uma coisa como essa antes, sim, era Jaú, interior de São Paulo, um dia qualquer de 1946, sim, a filha deslumbrante, tremendo em seus 16 anos, sim, o pai a confundia com a mãe, a mão dele fechada sobre a dela, sim, o pai a confundia com a mãe, a confundia, sim? tinha que se mover dali, moveu-se, mas tu não te moves de ti e então, sim, o pai era perturbado, louco, a mãe disse, que azar! ele disse, sim, ao ver a filha, saber da filha, que era uma menina, será que um dia, perguntou a menina, o pai morto, o pai escritor, vou ser alguém, pai? vou ser escritora, vou ser alguém na literatura? vou ser compreendida? perguntou a filha, pensando, conversando com o pai morto, sim, era São Paulo, um dia qualquer de 1966, o pai morrera havia pouco, perguntou pensando, a mão dela aberta sobre a dele? aberta sobre um jornal aberto num artigo sobre Kafka (como de costume, não soube responder), será que um dia, pai? sim, eu disse sim (ela disse), eu quero sim. Trinta e tantos anos e livros depois, sim – não importa aonde vá o trem da literatura, para Kafka, Joyce (sim), Beckett (não se saberá nunca, no silêncio não se sabe), para leitor algum (dormentes nas estantes), não importa, sim, não importa: ainda que o tempo espere o tempo longo necessário, a obra daquela filha, Hilda Hilst, vai estar de pé ali.
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Está de pé aqui, neste oitavo número dos CADERNOS. Não importa que Hilda repita à exaustão que não escreve mais (“Não entendo por que vocês ficam tristes quando eu digo que abandonei meu trabalho”), que perdeu o interesse pelo destino dos seus escritos (“Pra onde vão os trens, pai?”), que jamais se preocupou com o leitor “improvável” do que escreveu (“Meus livros são todos inéditos”), não importa. O que importa: escrita apenas para responder (como uma longa carta) a uma pessoa, o pai, sim, o pai, o pai, o poeta Apolonio de Almeida Prado Hilst, disposta nas estações literárias que contam (a poesia, a ficção, o teatro), até a estação, a cartada final (“Deus, o que eu procuro é Deus”), a obra de Hilda Hilst tem poucas, raras rivais, neste ou em qualquer tempo ou espaço – como já se disse, neste mesmo espaço, sobre João Cabral de Melo Neto (1920-1999), com o perdão (ele não suportava) da homenagem. “Meu pai foi a razão de eu ter me tornado escritora”, insiste Hilda na seção Entrevista, resultado de três horas de conversa com Antonio Fernando De Franceschi e Rinaldo Gama, respectivamente diretor editorial e editor executivo dos CADERNOS. Na Casa do Sol (em Campinas), a autora de Presságio (1950) respondeu a mais de 130 perguntas da revista e de seus convidados: o escritor, artista plástico, humorista e tradutor Millôr Fernandes, um velho amigo de Hilda Hilst que, em 1990, ilustrou o seu O caderno rosa de Lori Lamby, Telê Ancona Lopez, professora e pesquisadora do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, o professor e historiador de arte Jorge Coli e Nelly Novaes Coelho, crítica literária e professora convidada do setor de pós-graduação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP – leitores atentos da produção hilstiana, que enviaram suas questões por escrito. A Casa do Sol, com suas sombras externas, explícitas (tantas árvores), e internas, íntimas (influências, memórias), é o cenário da seção Geografia Pessoal, que, como de praxe, traz um ensaio fotográfico de Eduardo Simões (que lá clicou também a escritora). Foi para atender a uma outra obra (como uma longa carta) que Hilda se mudou para a Casa do Sol, em 1966 – Carta a El Greco, do escritor grego Nikos Kazantzakis, cuja leitura transformaria sua vida e a entregaria inteira à literatura. Nas fotos da Geografia, que revelam uma casa tomada por imagens (paredes do pai), Kazantzakis não aparece, mas lá estão Kafka e Freud, vigiados por um frasco de Leite de Rosas, pilhas de volumes, cálices de vinho do Porto e por toda parte os cães, os cães, os cães. “Fidelidade é qualidade de cachorro, sei disso porque passei a minha infância em meio da cachorrada”, comenta a contista e romancista Lygia Fagundes Telles na
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seção Confluências, a propósito da amizade que, há meio século, mantém com Hilda Hilst. Falam-se todos os dias, confiam-se todos os dias, até o dia final (“Quero demais morrer segurando a mão de Lygia”, disse Hilda, ao escrever sobre a amiga na edição número cinco dos CADERNOS). Confluências inclui ainda depoimentos sobre a autora de Cantares do sem nome e de partidas (1995) assinados pelo editor Massao Ohno – um dos grandes responsáveis pela divulgação da obra de Hilda Hilst – e pelo poeta e lingüista Carlos Vogt – ex-reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e criador do Programa do Artista Residente, do qual a escritora faz parte –, além de uma carta inédita (longa, longa) enviada a Hilda pelo ficcionista gaúcho e grande amigo in pectoris Caio Fernando Abreu (1949-1996), em abril de 1969. Foi em 1969 também que Hilda Hilst escreveu O verdugo, a única de suas oito peças já publicada (o texto, que ganhou o Prêmio Anchieta, da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, sairia em livro no ano seguinte). Para dar ao leitor uma pequena amostra do que é o teatro de Hilda, a revista publica, na seção Originais, os datiloscritos das primeiras cenas de Auto da barca de Camiri, um drama metafórico, baseado na morte de Ernesto “Che” Guevara e escrito entre 1967 e 1968. A seção também revela um lado pouco divulgado da criatividade da escritora: dois desenhos, feitos com nanquim e esferográfica no início dos anos 70. A vasta inventividade de Hilda Hilst (nas estações literárias que contam, repita-se) exigiu quatro estudos, reunidos em Ensaios: Nelly Novaes Coelho trata da poesia; o crítico literário Leo Gilson Ribeiro, um dos primeiros a ressaltar a excelência das narrativas hilstianas, escreve sobre sua ficção; a poeta, dramaturga e professora de Dramaturgia Renata Pallottini, da Universidade de São Paulo e da Escuela Internacional de Cine y Televisión de Cuba, aborda o teatro e Eliane Robert Moraes, professora de Estética e Literatura da Faculdade de Comunicação e Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, analisa a obra erótica de Hilda. Toda a produção da autora de Estar sendo. Ter sido (1997) e sua fortuna crítica aparecem no Guia, do mesmo modo que sua trajetória, desde o nascimento até o presente ano, está na Memória Seletiva. “Estou novamente no centro”, disse Koyo (“Floema”), “Eu quero construir a casa”, disse Hiram (“O projeto”). Sim, diz-se aqui: está novamente no centro (contra a sua vontade) a obra de Hilda Hilst, sua poesia de inspiração clássica (Catulo, Marcial), sua narrativa experimental (joyceana, beckettiana), seu teatro, uma síntese clara (questão de gênero, questão de método) – eles já construíram (contra a sua vontade?), para além dos tijolos das influências, a casa, o sol de uma literatura de luz própria.
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M E M Ó R I A S E L E T I VA
Do tempo E se eu ficasse eterna? / Demonstrável / Axioma de pedra Da morte. Odes mínimas
gos períodos em casas de tratamento para doentes mentais.
alemã (“dona Marta”, lembra a escritora).
1937 Matricula-se como interna no Colégio Santa Marcelina, na capital paulista, onde permaneceria por oito anos.
1946 Pela primeira vez visita o pai em sua fazenda em Jaú. Passa três dias na sua companhia. Fica perturbada com a loucura de Apolonio Hilst.
1945 Ingressa no curso clássico da Escola Mackenzie, também em São Paulo. Nessa época, passa a morar num apartamento à Alameda Santos, acompanhada por uma governanta
1948 Aconselhada pela mãe, passa a cursar Direito na Faculdade do Largo São Francisco. A partir daí, levaria uma vida boêmia que se estenderia até
Hilda e sua mãe, Bedecilda (c. 1936)
Apolonio Hilst, o pai, aos 20 anos
Hilda em 1942: apego precoce aos cães
Fotos acervo da autora
1930 Nasce, no dia 21 de abril, em Jaú, interior de São Paulo, Hilda Hilst, única filha do fazendeiro, poeta, jornalista e ensaísta Apolonio de Almeida Prado Hilst e de Bedecilda Vaz Cardoso. Logo após seu nascimento, os pais se separariam. A escritora e sua mãe se mudariam então para Santos. O pai, sofrendo de esquizofrenia, seria internado num sanatório em Campinas; tinha na época apenas 35 anos de idade. Até o final da vida, passaria lon-
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Fotos acervo da autora
Em Biarritz, na costa francesa, durante viagem que fez pela Europa em 1957; a escritora visitaria também Grécia, Itália e Espanha
1963. Comportando-se de modo muito avançado, escandaliza a alta sociedade paulistana. Considerada uma das mulheres mais bonitas de sua geração, desper ta paixões em empresários, poetas – teve um caso com Vinicius de Moraes – e artistas em geral.
1957 De junho a dezembro, viaja pela Europa. Namora o ator americano Dean Martin e, passando-se por jornalista, assedia, sem sucesso, Marlon Brando, outro galã de Hollywood. 1959 Publica os livros de poesia Roteiro do silêncio e Trovas
de muito amor para um amado senhor. Inspirado em poema deste último livro, o músico José Antônio de Almeida Prado, primo da escritora, compõe a Canção para soprano e piano. Ele voltaria a se basear em textos de Hilda Hilst para compor alguns de seus trabalhos
1949 É escolhida, entre os alunos do curso de Direito, para saudar Lygia Fagundes Telles na antiga sala de chá da Loja Mappin, por ocasião do lançamento de seu livro de contos O cacto vermelho. 1950 Estréia na carreira literária com Presságio, volume de poemas. 1951 Lança Balada de Alzira (poesia). 1952 Conclui o curso de Direito. 1955 Sai Balada do festival (poesia).
Hilda Hilst apresentando a entrega do Prêmio Saci, em São Paulo (década de 50) 9
Acervo da autora
mais significativos. Poemas da escritora inspirariam ainda os compositores Ado ni ran Barbosa (Quando te achei, c. 1960) e Gilberto Mendes (Trovas), entre outros. 1961 Lança Ode fragmentária (poesia). Trovas de muito amor para um amado senhor é reeditado por Massao Ohno. 1962 Sai Sete cantos do poeta para o anjo; o livro receberia o Prêmio Pen Club de São Paulo. 1963 Passa a viver na Fazenda São José, propriedade de sua mãe, a 11 quilômetros de Campinas. Abdica da vida de intenso convívio social para se dedicar integralmente à literatura. A mudança radical fora inspirada pela leitura de Carta a El Greco, do escritor grego Nikos Kazantzakis. Entre outras idéias, a obra defende a tese de que é necessário isolar-se do mundo para tornar possível o conhecimento do ser humano. 1966 Muda-se para a Casa do Sol, que construíra nas terras da fazenda de sua mãe, onde já residia. Passa a viver com o escultor Dante Casarini. Morre seu pai. 1967 Redige A possessa e O rato no muro, dando início a uma série de oito peças teatrais escritas até 1969. Lança Poesia (1959-1967). 1968 Por imposição da mãe – que neste ano seria internada no mesmo sanatório de Cam-
A escritora aos 27 anos, reconhecida como uma das mulheres mais bonitas de sua geração
pinas em que estivera Apolonio Hilst –, casa-se com Dante Casarini. Escreve as peças O visitante, Auto da barca de Camiri, O novo sistema e As aves da noite. O visitante e O rato no muro são encenadas no Teatro Anchieta, para exame dos alunos da Escola de Arte Dramática, sob direção de Terezinha Aguiar. 1969 Escreve O verdugo e A morte do patriarca (peças teatrais). O verdugo recebe o Prêmio Anchieta. A montagem de O rato no muro, dirigida por 10
Terezinha Aguiar, é apresentada no Festival de Teatro de Manizales, na Colômbia. 1970 Publica Fluxo-Floema, sua primeira obra em prosa. A peça O novo sistema é encenada em São Paulo, no Teatro Veredas, pelo Grupo Experimental Mauá (Gema), sob direção de Terezinha Aguiar. Baseando-se nos experimentos do pesquisador sueco Friedrich Juergenson relatados no livro Telefone para o além, Hilda Hilst iria se dedicar, ao longo desta década que se inicia, à gravação, através de ondas
Acervo da autora
1983 Publica Cantares de perda e predileção (poesia), que receberia os prêmios Jabuti (da Câmara Brasileira do Livro) e Cassiano Ricardo (do Clube de Poesia de São Paulo). 1984 Sai o volume Poemas malditos, gozosos e devotos. 1986 Lança Sobre a tua grande face (poesia) e Com meus olhos de cão e outras novelas. Cena de O verdugo, montada no Oficina em 1973, sob direção de Rofran Fernandes
1989 Publica Amavisse (poesia).
radiofônicas, de vozes que, assegura, seriam de pessoas mortas. No mesmo período anunciaria a visita de discos voadores à sua fazenda. O verdugo é editado em livro. Morre sua mãe.
1990 Anuncia o “adeus à literatura séria” com O caderno rosa de Lori Lamby, livro que consagra sua fase pornográfica (iniciada em A obscena senhora D). A escritora justifica a mudança radical como uma tentativa de vender mais e assim conquistar o reconhecimento do público. A obra provoca “espanto e indignação” na crítica e nos amigos. O editor Caio Graco Prado se recusara a publicá-la e o artista
sua obra. Estréia a montagem da peça As aves da noite no Teatro Ruth Escobar, com direção de Antonio do Valle. Divorcia-se de Dante Casarini; o escultor, no entanto, continuaria morando na Casa do Sol.
1972 A peça O verdugo é encenada pelo Grupo de Teatro Núcleo, da Universidade Estadual de Londrina, sob direção de Nitis Jacon A. Moreira.
Eduardo Simões
1973 Sai o livro Qadós, volume de prosa ficcional. O verdugo é encenada no Oficina, em São Paulo, sob direção de Rofran Fernandes.
1982 Lança A obscena senhora D (prosa ficcional). Passa a fazer parte do Programa do Artista Residente da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
1974 Publica Júbilo, memória, noviciado da paixão (poesia). 1977 Lança Ficções (prosa), que receberia o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte como “Melhor livro do ano”. 1980 Saem os livros Poesia (1959/1979), Da morte. Odes mínimas (poesia) e Tu não te moves de ti (ficção). Recebe o prêmio APCA pelo conjunto de
Iara Jamra na peça O caderno rosa de Lori Lamby, dirigida por Bete Coelho (1999) 11
plástico Wesley Duke Lee a considerara “um lixo”. Lança Contos d’escárnio/Textos grotescos e Alcoólicas (poesia). 1991 Sai o livro Cartas de um sedutor (ficção), o quarto da “fase pornográfica”. O caderno rosa de Lori Lamby é traduzido para o italiano. 1992 Lança a antologia poética Do desejo e Bufólicas, livro de poesias pornográficas. Passa a colaborar com o Correio Popular, de Campinas, escrevendo crônicas semanais; o trabalho se estenderia até 1995.
1995 Sai o volume Cantares do sem nome e de partidas (poesia). O Centro de Documentação Alexandre Eulálio, da Unicamp, adquire seu arquivo pessoal. Sofre isquemia cerebral. 1997 Lança Estar sendo. Ter sido (prosa ficcional). Seus poemas são lidos em Quebec, Canadá, no recital Le féminin du feu, juntamente com textos de Safo, Gabriela Mistral e Marguerite Yourcenar, entre outras autoras, durante as comemorações do Dia Internacional da Mulher. 1998 Sai a edição bilíngüe (português-francês) do livro Da
morte. Odes mínimas. Publica Cascos & carícias: crônicas reunidas (1992-1995), volume de textos que saíram no Correio Popular. Volta a se dedicar a questões sobrenaturais; afirma acreditar no contato dos mortos com a Terra através de mensagens enviadas via fax. Reafirma o desejo de construir em suas terras um centro de estudos da imortalidade. 1999 Lança a antologia poética Do amor. Sob a coordenação do escritor Yuri V. Santos entra no ar o seu site oficial (http://www. angelfire.com/ri/casadosol/ hhilst. html). O caderno rosa de Lori Lamby é levado ao palco sob direção de Bete Coelho e tendo no papel principal a atriz Iara Jamra.
Eduardo Simões
1993 Publica Rútilo nada/ A obscena senhora D/ Qadós. Rútilo nada recebe o Prêmio Jabuti na categoria “Contos”.
1994 Os Contos d’escárnio são traduzidos para o francês.
Hilda Hilst em setembro de 1999, com um dos 90 cães que abriga na Casa do Sol, onde vive, localizada a 11 km de Campinas 12
CONFLUÊNCIAS
Da amizade Quero brincar meus amigos/De ver beleza nas coisas
Eduardo Simões
Do amor contente e muito descontente
Lygia Fagundes Telles nasceu na capital paulista em 1923. Estreou precocemente na literatura – aos 15 anos, lançou o volume de contos Porão e sobrado. Formada em Educação Física e depois em Direito, chegou a publicar dois outros livros de contos – Praia viva (1944) e O cacto vermelho (1949) – antes de alcançar a “maturidade literária” (palavras do crítico Antonio Candido) com o romance Ciranda de pedra (1954). Em parceria com Paulo Emílio Salles Gomes, seu segundo marido – o primeiro foi Goffredo da Silva Telles Jr., com quem teve seu único filho, Goffredo Neto –, Lygia adaptou para o cinema, em 1967, Dom Casmurro, de Machado de Assis. Em 1995, seria a vez da própria Lygia ter adaptado para o cinema um livro de sua autoria, o romance As meninas (1973), levado às telas por Emiliano Ribeiro. Ocupante, desde 1985, da cadeira 16 da Academia Brasileira de Letras, Lygia Fagundes Telles foi tema do quinto número dos Cadernos de Literatura Brasileira, lançado em março de 1998. No ano seguinte aceitaria o convite para integrar o Conselho Consultivo do Instituto Moreira Salles. Além das obras citadas, Lygia Fagundes Telles publicou ainda, entre outros livros, Antes do baile verde (Rio de Janeiro, Bloch Editores, 1970) e A noite escura e mais eu (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1995), volumes de contos, e o romance As horas nuas (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989).
“É possível falar em Hilda Hilst sem falar em todo esse nosso tempo de juventude e maturidade? ‘Não é maturidade, querida, é velhice mesmo’, ela me corrigiu rindo. Está anotada a observação, vamos lá, eu dizia que é difícil fazer um depoimento que envolve memória e imaginação, essa constante invasora. Mas aceito o desafio, com os críticos ficará a tarefa da análise da sua vasta obra em prosa e verso, cuidarei apenas de alguns flagrantes deste nosso antigo laço que há tanto vem nos ligando. Mais apertadamente, em algumas ocasiões, de 13
forma mais frouxa em outros momentos, ah! o tempo e o espaço desta longa travessia. Algumas tempestades. E, de repente, a calmaria, ‘navegar é preciso!’ Navegar e viver. O que a gente vem fazendo com maior ou menor disposição, não importa, o importante é manter viva lá nas profundezas a chama da fidelidade. Fidelidade é qualidade de cachorro, sei disso porque passei a minha infância em meio da cachorrada, os gatos vieram depois. A Hilda (dezenas e dezenas de cachorros) também conhece a espécie sem mistérios. Sabemos que eles nos amam com igual amor na riqueza e na pobreza, o que não acontece muito (ai de nós!) na espécie humana. Foram infinitas as conversas que tivemos envolvendo essa matéria e amigos comuns, na maioria, escritores como nós. Continuam também até hoje, sem parar, nossas reflexões sobre Deus e sobre a morte. Com os livros sempre na proa dessa travessia de vocação e de vida, tantos lançamentos. Tantos congressos e tertúlias mais secretas, ainda nos antigos moldes. Festas, muitas festas. Poucos velórios, afinal, mesmo os mais velhos do grupo continuavam ainda resistindo bravamente. Tempo das homenagens, muitas homenagens. E tempo também das brigas, ai! Tantas brigas. Tudo somado, alguns dos amigos permaneceram intactos enquanto outros ficaram perdidos no espaço, eu já disse que foi longa a travessia. Que Hilda interrompeu quando decidiu ir morar longe, na Casa do Sol, com o seu belo pátio de mosteiro em terras de uma antiga fazenda, próxima de Campinas. Mas, espere, ainda estamos em São Paulo, onde a escritora está elegantemente instalada. E amando e escrevendo os seus primeiros livros de poesia. Fazendo sucesso numa Paulicéia que nada tinha de desvairada, ao contrário, os homens andavam engravatados e as mulheres usavam luvas e chapéu, me lembro de tantos chapéus de feltro ou palha, as românticas abas largas escondendo um pouco o rosto. Mas as jovens, essas andavam descobertas. Hilda Hilst é uma temperamental, ouvi alguém dizer. Mas o que significa isso? – perguntaria um moço da geração atual. Vamos lá, eis aí uma palavra que saiu da moda mas que me parece insubstituível: na temperança estaria a qualidade que equilibra e modera os apetites e as paixões. Nessa linha, o temperamental não pode ser um refreado. Um comedido. Consegue se conter até certo ponto mas de repente (os impulsos) abre as comportas e solta os cachorros. Mas pode ser moderado alguém com uma obra tão flamante? Pode ser temperado alguém que escreveu esses poemas ora reunidos na recente coletânea que se chama Do amor ? Pergunto agora, qual o artista verdadeiro que não é temperamental?! O caso é que alguns (por defesa) disfarçam feito aquele meu gato diante da tigela de leite: ele afetava falta de apetite com aquele ar indiferente, meio distante, mas quando a gente ia ver a tigela estava esvaziada até a última gota. E vamos agora reordenar um pouco essa memória: conheci Hilda Hilst em 1949, numa homenagem que me ofereceram, já avisei, era o tempo das homenagens, eu estava lançando um livro. E a festa era na Casa Mappin, onde serviam almoços e chás que ficavam famosos, até o bar era freqüentadíssimo. Eu me lembro, estava conduzindo a bela Cecília Meireles (usava um turbante negro, no estilo indiano) para a cabeceira da mesa quando me apareceu uma jovem muito loura e fina, os grandes olhos verdes com uma expressão decidida. Quase arrogante. Como acontece hoje, eram poucas as louras de verdade, e essa era uma loura verdadeira, sem maquiagem e com os longos cabelos dourados presos na nuca por uma larga fivela. Vestia-se com simplicidade. Apresentou-se: ‘Sou 14
Hilda Hilst, poeta. Vim saudá-la em nome da nossa Academia do Largo de São Francisco’. Abracei-a com calor. ‘Minha futura colega!’, eu disse, e ela sorriu. Quando se levantou, bastante emocionada para fazer o seu improviso, ocorreu-me de repente a poética imagem da haste delicada de um ramo tremente de avenca, aquela planta um tanto rara e muito cultivada pelas freiras. Hilda Hilst amando e escrevendo, quando ela se apaixonava a gente já sabia que logo viria um novo livro celebrando esse amor. Estávamos então debaixo do sol na praia de Copacabana. Ela usava um maiô claro de tecido acetinado, inteiriço, os maiôs eram inteiriços, ano de 1952? Lembro que tinha no pescoço um colar de conchinhas. Falou-me dos novos planos, tantos. Nessa tarde, no nosso apartamento da Rua Aires Saldanha, tínhamos marcado, Goffredo (Goffredo Telles Jr.) e eu, um encontro com alguns amigos, Carlos Drummond de Andrade, Cyro dos Anjos, Breno Acioli, José Condé… Lá estava a Hilda toda de preto, falando em Santa Teresa d’Ávila, a do ‘amor duro e inflexível como o inferno’. Pedi-lhe que dissesse o seu poema mais recente. Então, eu me lembro, Cyro dos Anjos cumprimentou-a com entusiasmo. E voltando-se para mim, em voz baixa, lamentou: ‘Nunca sou o amado senhor de nenhuma poeta!’ E começou a examinar a pequena palma da mão que ela lhe estendeu, ele sabia ler o destino nas linhas da mão. Hilda Hilst na Rua Sabará no ano de 1973. Levou um disco, queria que ouvíssemos com urgência o bolero La barca. Paulo Emílio (Paulo Emílio Salles Gomes) sentou-se, acendeu um cigarro e esperou enquanto eu ligava o toca-discos. Antes, Hilda falou no enredo do bolero: a mulher tinha ido embora na tal barca enquanto o amante continuava na praia, batido pelos ventos e tempestades, esperando que depois que ela singrasse ‘los mares de locura ’ voltasse um dia para os seus braços abertos na paixão. ‘A letra é deslumbrante’, informou a Hilda. Confesso que não sei se o bolero era mesmo deslumbrante, sei que deslumbrante foi o livro que esse novo amor inspirou. Tantos acontecimentos na Casa do Sol sob o vasto céu de estrelas. Discos voadores! Não sei mais quem viu em certa noite uma frota desses discos. Vozes de antigos mortos sendo captadas meio confusamente no rádio ou na frase musical de algumas fitas, ouvi nitidamente alguém me chamando, me chamando… Reconheci a voz e desatei a chorar. Novo planos. Novos sonhos. O projeto de formarmos uma espécie de comunidade quando chegasse o tempo da madureza, eu disse madureza? ‘Velhice!’, atalhou a Hilda. A lareira acesa. E os amigos reunidos nas conversas amenas enquanto estaríamos calmamente bordando nossas almofadas naqueles antigos bastidores, num clima assim dos clássicos dos museus. E agora penso que o importante na amizade talvez seja apenas isso, um tem que achar graça no outro porque nessa bem-humorada ironia está o próprio sal da vida. Quando essa graça desaparece é porque a amizade acabou. Escolhi como fecho desta fragmentada lembrança um poema da belíssima coletânea Do amor : XL Aflição de ser eu e não ser outra. Aflição de não ser, amor, aquela Que muitas filhas te deu, casou donzela E à noite se prepara e se adivinha 15
Objeto de amor, atenta e bela. Aflição de não ser a grande ilha Que te retém e não te desespera. (A noite como fera se avizinha). Aflição de ser água em meio à terra E ter a face conturbada e móvel. E a um só tempo múltipla e imóvel Não saber se se ausenta ou se te espera. Aflição de te amar, se te comove.
Massao Ohno Editor/Divulgação
E sendo água, amor, querer ser terra.”
O editor Massao Ohno nasceu na capital paulista em 1936. Formado em Odontologia pela Universidade de São Paulo, jamais exerceu a profissão. Cursou a Escola Superior de Desenho Industrial, no Rio de Janeiro, onde foi aluno de Aloísio Magalhães. Com a Coleção novíssimos, volume de poemas, deu início em 1960 às suas atividades de editor. De lá para cá publicou cerca de 500 livros, a maioria de poetas. Só de Hilda Hilst foram 11 volumes de poesia – o primeiro, Trovas de muito amor para um amado senhor, saiu em 1961 –, além de duas obras em prosa.
“Acabara de lançar, com alguma repercussão, a Coleção novíssimos, de poesia. Passagem de década: 59-60. O Brasil ainda era todo anos dourados, inflação mínima (compravam-se imóveis pela Tabela Price – acreditem, 8% ao ano!). 16
O Centro (agora velho) de São Paulo fervilhava, não podia parar. Cinema, literatura, arquitetura, arte, liberação sexual, política, Ginsberg, a dança, o teatro,
UEE, UNE,
Maria Antonia – uma vertigem em
compasso agittato estava na ordem do dia. Conhecêmo-nos nessa féerie. Hilda era deslumbrante. Uma beleza de Ingrid Bergman acrescida da sensualidade de Rita Hayworth. A mais bela entre as mais cortejadas mulheres de São Paulo. Além de bacharel em Direito, lia muito, era culta e ainda por cima escrevia bem. Demais. Gostou da Coleção novíssimos, amadrinhou a idéia e deu votos de vida longa à proposta. Recordo-me de tê-la editado em tiragem de 500 exemplares, ilustrada pelo Cyro Del Nero, então homem de teatro, televisão e artes gráficas. Em 1961. Título: Trovas de muito amor para um amado senhor. Era o começo da longa carreira literária de Hilda (Almeida Prado) Hilst. Sucederam-se-lhe inúmeros outros trabalhos, na ficção, no teatro, na poesia, até na farsa e no erotismo desbragado. Críticas houveram, prós, contras e muito-ao-contrário. Pouquíssimos poetas receberam tanto espaço na imprensa como HH ou despertaram tanto interesse em diretores de teatro e estudantes às voltas com teses de doutoramento e de mestrado. Não me arvorarei a analisar sua extensa obra. Ressalto apenas que o seu estilo, o seu versejar forte, denso, a sua concisão e extrema elegância influenciaram toda uma geração de novos poetas. Entretanto, sua ficção, vigorosa e contundente, não teve ainda a acolhida que vem de merecer. Também seus textos teatrais continuam, em sua esmagadora maioria, inéditos. Quem sabe venha a editálos, se para tanto me sobrar vigor, engenho e arte. Quero consignar aqui – desde que ninguém o tenha feito – outras circunstâncias que merecem citação, embora nada tenham a ver com literatura e sim com a singular personalidade de Hilda Hilst. Numa determinada época, alguns OVNIs pousaram nas cercanias da sua chácara em Campinas. Seus amigos, incluindo Leo Gilson Ribeiro, são testemunhas disso. Noutra feita, seguindo as experiências do pesquisador sueco Jurgensson, fez gravações das vozes de sua mãe, falecida há tempos. O que lhe valeu (ou custou) uma prolongada entrevista no programa Fantástico. Inconformada com a pouca repercussão prática de sua extensa obra, Hilda – pour épater – enveredou pela aventura porno-erótica. O que lhe valeu algumas inimizades e pouco retorno trouxe. Pessoalmente acho que, mesmo dentro dessa proposta, ela fez literatura de alto nível. Também penso que o seu nome deveria ser proposto à Academia Brasileira de Letras. Mas como Drummond – aliás, seu grande admirador – ela declinaria de tal convite. Mas os jetons da
ABL
poderiam tranqüilizar suas atribulações domésticas e ela poderia retomar seus estudos e sua produção literária. Concluindo, de minha parte: Hilda é um ser humano pleno, uma amiga sem papas na língua, uma escritora para todo o sempre, imortal.” 17
Agência Estado
Nascido em Sales de Oliveira (SP) em 1943, o lingüista e poeta Carlos Vogt foi reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) entre 1990 e 1994. Nesta condição, contribuiu decisivamente para que os arquivos de Hilda Hilst fossem depositados, em 1995, no Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio, do Instituto de Estudos da Linguagem daquela universidade. Coordenador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp e diretor executivo do Instituto Uniemp – Fórum Permanente das Relações Universidade-Empresa, Vogt publicou, entre outros livros de poemas, Cantografia (1982), Paisagem doméstica (1984) e Geração (1985), todos pela Editora Brasiliense, de São Paulo, e Metalurgia (São Paulo, Companhia das Letras, 1991).
“Numa certa noite de 1982, no bar Le Monde, em Campinas, eu autografava exemplares de meu primeiro livro de poemas, Cantografia – itinerário de um carteiro cartógrafo, quando Hilda Hilst aproximou-se e me disse alto e bom som: ‘Carlos, escreva dedicatórias mais curtas. Nesse ritmo não saímos daqui antes das duas’. Inexperiência do poeta estreante, que desejava resumir em cada página de rosto a essência de cada amizade, contraposta à extensa vida poética até ali experimentada e sorvida, em gotas muitas vezes amargas, por aquela mulher em torno da qual se tecia rapidamente uma lenda que ainda não terminou de construir-se. Foi esse o dia em que Hilda me foi apresentada. Pode ser que o conhecimento recente não autorizasse muita intimidade, mas ali mesmo eu soube que para Hilda não existia esse tipo de barreira, assim como nunca houve barreiras para a sua linguagem de invenção. Ela já era então autora de duas dezenas de livros que faziam carreira por aí em bibliotecas cultivadas, mas também começava a se firmar como ‘a reclusa da Casa do Sol’, chácara onde mora até hoje nas imediações de Campinas. Como uma Karen Blixen em sua fazenda africana e igualmente arrastando atrás de si uma ancestralidade escandinava – seu pai, Apolonio Hilst, era um cafeicultor de Jaú que escrevia versos livres no início dos anos 20 –, tudo o que se sabia de Hilda era que, além da obra vasta e fechada sobre si mesma, deixara para trás uma mocidade edulcorada por rara beleza e também por um sentido de liberdade individual que agora, com a lenda, deixava um traço de saudável libertinagem no ar dos anos 50 e 60. Assemelhava-se, de certo modo, a uma dessas mulheres excepcionais dos romances de Cortázar, porém dotada de um talento que a tirava imediatamente do lugar-comum. Mais tarde, quando criamos na Unicamp o Programa do Artista Residente, estimulei Hilda a inscrever-se. Era uma maneira de trazer para dentro da universidade a sua experiência com a matéria viva da criação. Lembro-me de uma de suas primeiras incursões pelo campus, em meados dos anos 80, quan18
do um grupo de acadêmicos, entre os quais o físico Mario Schemberg, reuniu-se para ouvi-la. Não foi uma cena comum. Nessa época Hilda achava (como hoje) que não era compreendida e além disso propalava, com ar marotamente compenetrado, que ouvia, madrugada adentro, no rádio, vozes interestelares. Ela chegou num longo vestido indiano e falou durante duas horas sobre o sentido secreto das palavras, não desprezando as escatológicas, que para ela eram como quaisquer outras. Houve, claro, quem se escandalizasse. ‘Eu me sinto uma tábua etrusca’, dizia ela referindo-se ao silêncio que rondava sua obra (no que havia exagero, pois já era então bastante divulgada) e como que ressoando o que diria quinze anos depois à escritora Marilene Felinto (Folha de S. Paulo, 12.07.99): ‘Eu ouço dizer muito que as pessoas não me entendem, e quando alguém me entende eu fico besta’. Curiosamente, na semana em que esta entrevista foi publicada, mais de uma revista repercutiu esse desabafo de quem, queira ou não, terminou por cristalizar em torno de si a auréola do mito. Nos anos seguintes acompanhei Hilda à distância. Vi nascer seu ciclo de novelas eróticas, que a apresentaram a leitores da França e da Itália. Vi-a escandalizar a sociedade campineira, durante um ano, com uma série de crônicas impagáveis, tão nuas quanto cruas, depois reunidas em livro. E vi o trabalho lento da expansão de seu nome e sua introdução em círculos aonde ela não chegava antes e que a transformaram em ícone de uma geração que seguramente a cultuará ao longo do próximo século. Pode ser que esse culto tenha uma razão alheia à obra e beire a mitomania – Borges na Calle Maipú ou Henry Miller em Big Sur –, mas estou convicto de que a causa é legítima. A legenda da Hilda reclusa guarda um segredo que é ao mesmo tempo seu projeto de vida. Ela buscou a reclusão por opção, não por temperamento. O deboche que Hilda usa como recurso social não passa de uma antítese necessária à espécie de santidade que ela pratica diariamente na Casa do Sol, escrevendo ou não, dando ou não seqüência a sua obra já definitiva. Perguntarão se sua obra inteira é definitiva. Nada mais difícil de afirmar tratando-se de qualquer escritor, sobretudo dela. Em Hilda, aquilo que parece transitório pode revelar mais tarde uma densidade de que não se suspeitava – como no caso de sua trilogia ‘obscena’ ou ‘grotesca’. Aquilo que sugeria uma crise de criação nos idos de 1991 e 1992, quando ela publicamente se dizia afetada pelo que considerava uma recepção pouco generosa de sua obra – daí o escárnio batailleano desses livros que pareciam de entremês –, revelou-se mais tarde um de seus momentos mais fecundos. Para além da prosa, entretanto, seja a de ficção, seja a do teatro, creio que o núcleo mais duradouro da obra de Hilda está na poesia, aí incluídas as narrativas marcadamente poéticas que são Fluxo-Floema (1970), Qadós (1973), Tu não te moves de ti (1980) e Com os meus olhos de cão (1986). E aqui é interessante notar que, enquanto sua poesia se inscreve na série histórica dos grandes líricos da língua, começando por Luís de Camões e passando por Murilo Mendes, sua prosa poética é basicamente fundadora, assume um novo ponto de partida e é, por isso mesmo, necessariamente menos compreendida. 19
De todo modo, dificilmente um poeta é compreendido o bastante para ser elevado à categoria de clássico ainda em vida. Isso vem depois. Mesmo a grande obra só ganha plenitude e elevação quando a vida é aplainada pelos biógrafos. Basta lembrar que Machado de Assis foi fortemente contestado nos últimos anos de sua vida – contestações que hoje nos parecem ridículas. Hilda, que anunciou ter parado de escrever (uma forma de fim consentido, ainda que seja prudente não confiar muito nessa decisão), tem sempre a palavra ‘morte’ na ponta da língua. ‘Escrevo há 50 anos e me descobriram só agora que estou quase morrendo’, declarou a Marilene Felinto. Se bem conheço Hilda, não há muito motivo para alarme: a morte sempre foi um de seus temas preferidos. Como diz num de seus poemas recentemente reunidos na coletânea Do amor (1999): ‘Esse poeta em mim sempre morrendo / se tenta repetir salmodiado’. Desejo de permanência? A meu ver, permanência assegurada.”
Renata Jubran / Agência Estado
O escritor Caio Fernando Abreu nasceu em 1949 na cidade gaúcha de Santiago. Mudou-se para São Paulo em 1968 para integrar a equipe pioneira da revista Veja. Seu livro de estréia, Inventário do irremediável (contos), é de 1970; com ele, ganharia o Prêmio Fernando Chinaglia, da União Brasileira de Escritores. Além do conto, Caio cultivaria ainda o romance, o teatro, a crônica, a literatura infanto-juvenil e a atividade de roteirista de cinema. Publicou, entre outras obras, O ovo apunhalado (Porto Alegre, IEL / Globo, 1975), Morangos mofados (São Paulo, Brasiliense, 1982), volumes de contos, a novela Triângulo das águas (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983) e os romances Limite branco (Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1970) e Onde andará Dulce Veiga? (São Paulo, Companhia das Letras, 1990). Caio Fernando Abreu morreu em Porto Alegre em 1996. O texto a seguir traz trechos de uma longa carta dele escrita de Porto Alegre para Hilda Hilst no dia 29 de abril de 1969. A acentuação das palavras vigente na época e as padronizações do autor foram mantidas.
“Querida Unicórnia, acordei hoje com a mão de minha mãe me entregando a tua carta. Rasguei o envelope, frenético, não esperava tanta coisa, fiquei surprêso com o Osmo, que não estava planejado, decidi não ir à faculdade, ficar lendo. Afundei manhã, esqueci de tomar café, não almoçaria 20
se a família indignada não viesse em pêso saber os porquês do meu estúrdio procedimento, acabei de ler recém, duas horas da tarde, de uma enfiada só, o Osmo, o Unicórnio e o Lázaro. Sei que tu não gostas do Caetano Veloso, mas vais ter que desculpar a citação: tem uma música dêle, ‘É Proibido Proibir’, em que êle aconselha a ‘derrubar as prateleiras, as estantes, louças, livros’ e depois fala que tôda a renovação tem que partir de uma destruição total, não só de valores pequeno-burguêses (as louças) ou materiais (as prateleiras e as estantes), mas também de valores abstratos (os livros), de conceituações estéticas ou artísticas que viciaram a cuca do homem moderno – daí parte para o refrão, onde diz que é proibido proibir qualquer tentativa de renovação, que é proibido ter limitações morais ou quaisquer outras para que se possa fazer alguma coisa – e não sòmente em têrmos de arte – realmente nova. Bem, o teu Osmo é exatamente isso (não sòmente o Osmo, mas todo o ‘Triângulo’ – mas vou me deter mais nêle porque ainda não tinha lido). Você bagunça o corêto total, choca completamente a paróquia, empreende a derrubada de tôda uma estrutura já histórica de mal-entendidos literários. Você ignora a ‘tôrre de cristal’, o distanciamento da obra e do leitor; você faz montes para a dignidade da linguagem, o estilo, as figuras, os ritmos. E isso é GENIAL, muié. Comecei o Osmo rindo feito uma hiena, acho que nunca li nada tão engraçado em tôda a minha vida, mas, você sabe, o humor em si não basta, pelo menos pra mim. Quando a coisa é pura e simplesmente humor, fica um enorme espaço vazio entre a coisa e eu: sòmente as risadas não enchem êsse espaço. Por isso eu ria e me preocupava: meu Deus, será que ela vai conseguir? Aí, quando a minha preocupação com o excesso de humor estava no auge, começaram a aparecer no texto os ‘elementos perturbadores’: a estória do Cruzeiro do Sul (ninguém vai desconfiar jamais que você viu MESMO aquilo), o ‘grande ato’, a lâmina, os pontos rosados. E imediatamente o texto sai da dimensão puramente humorística para ganhar em angústia, em desespêro. A coisa cresce. O tom rosado do início passa para um violáceo cada vez mais denso, até explodir no negror completo, no macabro […]. Comecei esticado na cama, despreocupado, mas aos poucos fui me inteiriçando todo, com um pânico que nascia das pontas das unhas até ‘as pontas tripartidas dos cabelos’. Quando terminei, estava todo tenso e trêmulo, dividido em dois: um não querendo admitir o macabro da situação; outro sabendo que não podia ser de outro jeito, compreende? Acho que existe um ponto de contato entre o Osmo e o ‘Estrangeiro’ – muito mais acentuado do que entre o Osmo e o Beckett. Com Beckett, as semelhanças são meramente de liguagem, externas, e assim mesmo Beckett não é o dono dêsse tipo de prosa, você o encontra também em Salinger e em vários outros que no momento não lembro. Com o ‘Estrangeiro’ as semelhanças são mais íntimas: assim, num e noutro, tudo aquilo que parecia, no início, dispersão, futilidade, vazio (se bem que gostosíssimo de ler), no final se arma bruscamente para atuar contra o personagem. As coisas que êle conta que fêz e pensa de repente dão a medida de tôda a sua estrutura interna. Exatamente como num quebra-cabeça – a imagem é batida e já virou lugar-comum, mas não posso fazer nada se o Osmo é isso mesmo: um quebra-cabeça a que uma das 21
partes (no caso, uma das frases ou mesmo uma das palavras) tornaria incompreensível, por incompleto. E o completo que é compreensível, é o perfeito. Deus, por exemplo, é completo, mas incompreensível (pelo menos, a idéia de Deus), daí não ser perfeito. Mas se você pega uma árvore, ela é completa e compreensível e, em consequência, perfeita. Tôda essa sofismação para dizer que acho o Osmo perfeito. Mas um perfeito nôvo, até agora: não aquela perfeição fria de, por exemplo, ‘A crônica da casa assassinada’, ou da ‘Maçã no Escuro’. Essa é a perfeição cronometrada, medida, sólida, inabalável. Você faz o perfeito insólito, o perfeito difuso. Não sei mais o que te dizer. Não conheço nada de tão nôvo na literatura brasileira como o teu ‘Triângulo’ […]. Você incomoda terrìvelmente com essas três novelas. Aquêles coitados que, como eu, têm o ritmo marcial da prosa ficam de cuca completamente fundida, neurônios arrebentados, recalcadíssimos, frustradíssimos, confusíssimos. É uma maldade você fazer isso. Maldade porque os que também escrevem de repente percebem que tudo que fizeram não tem sentido, porque de repente precisam derrubar tôdas as prateleiras íntimas e começar uma coisa nova. Uma maldade necessária, uma maldade astronáutica, por assim dizer. Sim, porque você já pensou se, de repente, a gente tiver uma prova concreta de que existe vida num outro planêta, uma vida diferente da nossa, com valores diversos, com liberdade absoluta – já pensou? Nós, os terrestres, vamos morrer de inveja, vamos nos sentir completamente primitivos, primários, estúpidos e vamos ter que renegar tôda essa estrutura terrestre. Pois as tuas novelas são isso – um mundo nôvo. Fascinante e frustrante. Quanto ao Lázaro, é ótima a solução que arranjaste. E vê que estranho, inconscientemente, retrataste no Lázaro essa coisa que falei aí em cima: Lázaro é o pasmo diante duma coisa inesperada. Isso gera a solidão mais absoluta que se possa imaginar. Das três, acho Lázaro a mais amarga; o Unicórnio, a mais desesperada; Osmo, a mais macabra. Qualquer uma delas, um sôco. Um ‘pum’ no nariz dos críticos e da sociedade. Sem ser panfletária nem dogmática, você é a criatura mais subversiva do país. Porque você não subverte polìticamente, nem religiosamente, nem mesmo familiarmente – o que seria muito pouco: você subverte logo o âmago do ser humano. Essas três novelas são uma verdadeira reforma de base. Quem lê, tem duas saídas: ou recusa […], ou fica frenético e põe os neurônios a funcionar, a pesquisar nêsse sentido. Ficar impassível, tenho certeza que ninguém fica. Eu fiquei frenético, pus os neurônios a funcionar e vou começar a pesquisar nêsse sentido. Desde que cheguei, não escrevi nada. Absolutamente NADA. Estive relendo coisas minhas e de ou tros para descobrir novamente aquilo que falamos uma vez: estou completamente cerceado dentro dessa linguagem. De tudo o que escrevi, só reconheço como uma tentativa de libertação ‘O Ovo’, que tem muita coisa em comum com o ‘Osmo’. Talvez ‘A Sereia’, mas acho que êste ficou apenas no cômico, ao passo que ‘O Ovo’ transcende essas fronteiras e vai até o absurdo. As tuas novelas me causaram pruridos. Não tenho mêdo de derrubar tudo o que fiz e partir para algo na mesma linha tua, penso no teu exemplo, começando a fazer coisas completamente opostas à tua poesia, que era tão ou mais digna que a minha prosa. Detesto coisas dignas, impecáveis, engomadas, lavadas com anil: aceito nos 22
outros, levando em conta, inclusive o tempo em que foram feitas. Mas não é mais tempo de solidez: a literatura tem que ser de transição, como o tempo que nos cerca. Estamos (os literatos) um passo, ou muitos passos, atrás das outras artes: veja a arte cinética, o cinema de Pasolini, de Polanski, o teatro de Beckett, de Ionesco, a música dos Mutantes. Estou com a cabeça feito sonrisal, tôda borbulhante […]. Estou terminando de ler ‘A morte de Artêmio Cruz’, romance do Carlos Fuentes, bossa ‘Ulisses’, de Joyce, sem entender grande coisa. Ao mesmo tempo, comecei a ‘Introdução ao Realismo Crítico’, de Lukács, onde êle renega tôda a obra literária que seja subjetiva (fala horrores de nosso bem-amado Beckett). Ainda Beckett: êle é irlandês, mesmo, mas vive na França há muitos anos, e foi lá que escreveu e publicou todos os seus livros […]. Não te enfosses com os editôres. Tem um poema da Florbela Espanca que diz assim: ‘As coisas vêm a seu tempo / quando vêm, essa é a verdade’. Um dia a coisa sai. E eu acredito no mecanismo do infinito, fazendo com que tudo aconteça na hora exata. Em julho, vou passar o mês aí e uma semana no Rio. Tenho certeza que conseguirei coisas para nós […]. Não tenho tido fossas. Aquelas crises paulistas eram porque eu me sentia inseguro, desamparado, desprotegido. Aqui, sinto as coisas mais definidas, mais tangíveis, mais palpáveis: até mesmo a fossa, quando desce, não é aquela coisa tôrva e difusa de São Paulo – é concreta e motivada por alguma coisa exata. A depressão que eu vinha sentindo, muito de leve, tem um motivo certo: não tenho escrito. Recomeçando, tudo ficará bem. Estou tentando conseguir um emprêgo num jornal. Como não quero aprisionamentos de horários, acho que vou ficar como colaborador, recebendo em free-lancer. Existem três suplementos literários aqui e, se eu conseguir qualquer coisa, prometo: farei uma série de artigos sôbre o ‘Triângulo’. O teu livro de poesia vendeu MESMO […]. Lembra de um amigo meu daqui, que encomenda livros às distribuidoras paulistas para as livrarias daqui? Eu tinha escrito a êle pedindo que encomendasse o teu livro; êle encomendou, colocou e vendeu. Mesmo assim, continuo de public relations teu. A semana passada dei o teu livro para um amigo meu, Luiz Alcione, um cára muito bom, poeta. Às vezes êle publica crítica literária muito boa, é um dos que eu posso mostrar o ‘Triângulo’. São cinco horas. Está muito quente, acho que vai chover. As crianças estão vendo televisão na sala, meu irmão está estudando economia. Uma vontade louca de estar perto de vocês, uma hora que fôsse. Não há de ser nada, julho está aí mesmo. Se eu fôsse bilionário, todos os fins de semana tomava meu avião particular e ia visitar vocês. Espero que Dante tenha dado conta de seu tronco de eucalipto. Um abraço bem grande para êle. Outro para Madame Soininem. Aninha, Dodô, Sola Macaca, Flika, Carlota, Pépi-papéti – todos em mim. Lembranças para Dona Marta. Beijos do CAIO FERNANDO ABREU” 23
E N T R E V I S TA
Das sombras Sou eu esta mulher que anda comigo…? Sonetos que não são
A Casa do Sol, onde Hilda Hilst vive desde 1966, é cercada de sombras. Algumas, explícitas, externas, escurecem os visitantes que atravessam o portão do condomínio em que a moradia está plantada, a 11 quilômetros de Campinas, no interior de São Paulo. Resultam das copas entrelaçadas em trama densa de um vasto renque de árvores, figueiras centenárias, palmeiras, dracenas, sombrões naturais para a temperatura em geral elevada, capaz de inquietar as dezenas de cachorros condôminos, rústicos e domésticos, quase todos vira-latas que, com seus olhos de cães assestados nos estranhos, assustando-os antes de recepcioná-los com sua ruidosa curiosidade. Outras, íntimas, internas, aclaram os visitantes, como a equipe dos
CADERNOS
que na
manhã do dia 13 de setembro atravessou o sistema solar literal e literariamente ensombreado, pronta a entrevistar Hilda Hilst (mais de cem perguntas próprias e alheias), fotografá-la (mais de cem imagens próximas e alhures), antes que os olhos vermelhos, de lágrimas e vinhos (mar de memórias, o Porto), apagassem a conversa – três horas de loucos, livros, amores, mortes, o pai, o pai, o pai, a mãe, Wittgenstein, Jorge de Lima, Catulo, Joyce, Beckett, Kazantzakis, Deus, Eros, extraterrestres, os cães (psicopompos) e o silêncio, o silêncio, o silêncio – acendendo todas as suas sombras.
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CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA: Pa re c e nos inevitável começar pela figura de seu pai, Apolonio de Almeida Prado Hilst. Implícita ou explicitamente, ele está presente em alguns de seus melhores livros – de dedicatórias aos poemas e textos ficcionais propriamente ditos. De que modo seu pai foi assumindo essa dimensão no interior de sua obra?
três noites de amor”, ele pedia. “Só três noites de amor, só três noites de amor”, ele implorava. Eu ficava muito atrapalhada com tudo isso. CADERNOS: Essa foi a maior temporada em que vocês ficaram juntos?
Hilda Hilst: Eu passei uns três dias com ele. Daí meu pai começou a ir para uns sanatórios. Mas eu sempre separei muito a vida dele como louco da vida que eu conheci através da minha mãe.
Hilda Hilst: Meu pai e minha mãe tiveram uma paixão daquelas de perder mesmo o senso. Meu pai era um homem brilhante, escreveu muitas coisas, publicava textos em jornais (às vezes assinava Apolonio e outras Luís Bruma). O Mário de Andrade escrevia para ele. Mas desde o início minha mãe tinha problemas com a família dele; naquela época um Almeida Prado só se casava com um Almeida Prado. Eles acabaram se separando quando eu era bem pequena. Um dia meu pai, que morava em Jaú, foi para Santos me ver. Eu tinha três anos e vivia lá, na Rua Vicente de Carvalho, 32. Ele chegou e me deu um cavalinho de pau. Era um homem muito alto, fiquei o tempo todo olhando pra cima. Apesar da separação, minha mãe falava dele sem parar, do amor que tinha por ele.
CADERNOS: A presença do seu pai, um poeta talentoso, teve certamente responsabilidade em suas escolhas pessoais no campo da literatura?
Hilda Hilst: Em parte, não. Quase todo o meu trabalho está ligado a ele porque eu quis. Eu pude fazer toda a minha obra através dele. Meu pai ficou louco, a obra dele acabou. E eu tentei fazer uma obra muito boa para que ele pudesse ter orgulho de mim [a voz embarga nas últimas palavras]. Eu estou ficando rouca, não é nada… Então eu me esforcei muito, trabalhei muito porque eu escrevia basicamente para ele.
CADERNOS: Sua ligação com seu pai é, portanto, uma construção da memória, uma transformação literária da memória?
TELÊ ANCONA LOPEZ: Gostaria que você falasse como vê o Apolonio Hilst em Luís Bruma, enquanto crítico capaz de perceber a importância do modernismo nos idos de 28.
Hilda Hilst: É. Mas eu voltei a vê-lo quando tinha 16 anos. Meu pai estava na fazenda dele e pediu para me chamar. Meu tio Luís, irmão do meu pai, falou com minha mãe que ele tinha dito que queria me conhecer. Na verdade, meu pai já estava louco. Minha mãe me deixou ir. Quando cheguei lá, ele pediu minha carteira de identidade, eu dei. Perguntou se alguém tinha ido me receber na entrada. Meu tio respondeu que ele tinha ido me receber. Meu pai ficou muito agressivo com as irmãs, porque elas não tinham ido me receber. Eu fiquei vermelha demais, era muito jovenzinha. Mas comigo meu pai era diferente. Mandava me servir café da manhã. Às vezes, pegava na minha mão, acho que me confundia com minha mãe, e então dizia para eu dar três noites de amor para ele. Era uma coisa terrível, constrangedora. Eu ficava morta de vergonha, sem jeito, imagine. “Só
Hilda Hilst: Eu acho que meu pai era um gênio. Só que ele vivia em Jaú, você entende? CADERNOS: Sua mãe contava o que ele lia?
Hilda Hilst: Ah, sim. Ele lia muito Nietzsche. Era um homem culto. Autodidata, mas cultíssimo. CADERNOS: Esse sentimento em relação ao seu pai, essa sombra dele em sua obra, começou então muito cedo e persiste até hoje?
Hilda Hilst: É uma coisa da vida inteira. Eu fiz minha obra por causa do meu pai. Eu queria agradar o meu pai. Queria que um dia ele dissesse que eu era alguém. É isso. 26
CADERNOS: Ao saber das preferências literárias do seu pai, sua primeira reação foi seguir na mesma trilha de autores?
CADERNOS: E quanto aos poetas estrangeiros?
Hilda Hilst: Não tenho lido. Quem eu leio ultimamente é Vintila Horia. Ele nasceu na Romênia e conheceu as pessoas mais incríveis do mundo. Durante um ano e pouco ele viajou para diversos lugares do mundo e conversou com as pessoas mais notáveis do tempo dele.
Hilda Hilst: Mais ou menos. Meu tio Luís me dava os livros e eu ia lendo. CADERNOS: E sua mãe? Qual era a formação dela? Consta que a sra., ainda bem jovem, levou para a escola um livro de Darwin que era de sua mãe.
CADERNOS: Já em sua primeira reunião de obras poéticas, lançada em 1967, ficaram de fora os seus três primeiros livros de poemas – Presságio (1950), Balada de Alzira (1951) e Balada do festival (1955); assim, o volume mais antigo era o seu quarto livro, Roteiro do silêncio (1959). Por quê? O que há de estranho à sua proposta poética nas três primeiras obras, ou o que existe de propriamente seu no quarto volume de poesia?
Hilda Hilst: É verdade. Minha mãe era uma mulher muito curiosa. Ela não era tão brilhante quanto meu pai, ele foi um gênio. Os próprios amigos diziam isso para mim. Voltando para minha mãe: apesar de não ter a mesma inteligência extraordinária do meu pai, ela se interessava por tudo e lia muito.
Hilda Hilst: Eu tinha 18 anos quando escrevi: “Somos iguais à morte, ignorados e puros e bem depois o cansaço brotando nas asas seremos pássaros brancos, à procura de um Deus”. Eu tinha 18 anos e apesar disso Cecília Meireles escreveu para mim: “Quem disse isso precisa dizer mais”. Meu primeiro livro, Presságio, claro, não foi uma unanimidade. Não faltou quem dissesse novamente que menores de 25 anos não deveriam publicar seus poemas. Eu mesma demorei muito a me considerar uma grande poeta. Hoje eu gosto, por exemplo, de Alcoólicas [1990].
CADERNOS: Seu pai foi o poeta que mais a influenciou?
Hilda Hilst: Não foi exatamente o que mais me influenciou. Eu sempre soube que ele era bom porque na década de 20 já escrevia coisas deslumbrantes, já era completamente moderno. Mas é como expliquei: não se trata de influência literária. É mais do que isso. Meu pai foi a razão de eu ter me tornado escritora. CADERNOS: Neste caso, quais os poetas que mais a influenciaram, ou, pelo menos, que são de sua maior estima?
CADERNOS: Curiosamente, o momento que a sra. considera como ponto de partida de sua poética coincide com a consagração no Brasil da poesia de orientação visual. Qual foi sua reação ao concretismo e, depois, à poesia práxis? Mais do que isso, como os principais líderes desses movimentos viam a sua obra poética?
Hilda Hilst: O Jorge de Lima. Não o da Nega Fulô, mas de Invenção de Orfeu, dos sonetos deslumbrantes. O Drummond, eu sempre gostei também, mas de um modo diferente. Ele me conheceu muito jovem, chegou a escrever um poema para mim, era tímido, admirável. Mas a afinidade literária que eu tinha com o Jorge de Lima era diferente do Drummond.
Hilda Hilst: Fui colega de faculdade de Haroldo de Campos, mas o grupo dele nunca me procurou. Já Mário Chamie parece que gostava do meu trabalho.
CADERNOS: Uma comunhão distinta de universos, de escolhas poéticas?
CADERNOS: É muito conhecida a seguinte frase dos irmãos Goncourt: “Quem mais ouve
Hilda Hilst: É isso. O Jorge, eu releio até hoje. 27
besteiras no mundo é talvez um quadro de museu”. O crítico inglês I. A. Richards discorda disso e escreveu o livro Practical criticism para provar que um poema está em melhores condições para avaliar a estupidez humana, profunda como o mar. Neste livro, ele submete poesias de diversos autores – alguns grandes, outros medíocres – a testes de compreensão e o resultado é realmente assustador. Os testes foram aplicados sem que os leitores soubessem a autoria dos poemas, e muitos deles – inclusive os mais qualificados, gente com boa formação acadêmica – classificam obras-primas de John Donne como coisa menor e poemas realmente fracos como grandes obras. O livro, portanto, tem grande interesse por mostrar como a poesia, por si só, é controversa.
Hilda Hilst: É isso mesmo. E sabe por quê? Eu sempre tive muito medo de ficar louca. Na minha vida inteira o meu grande temor sempre foi esse. CADERNOS: Esta é mais uma sombra do seu pai?
Hilda Hilst: É, sem dúvida. Meu pai era esquizofrênico-paranóico. Desde cedo tive então muito medo de enlouquecer. Minha mãe ficava falando que eu não ia enlouquecer nunca, mas eu tinha medo, muito medo. Comecei assim a me interessar pela loucura e por loucos. Quando você vê a loucura mesmo ela é assombrosa. Meu pai, por exemplo, de repente me falava coisas como “olha os corvos, os corvos estão chegando, eles estão cheios de sangue”. Ele mudava completamente de uma hora para outra. Eu tinha muito medo de ficar assim. Então, essa coisa surpreendente dos loucos, essa desordem, tudo o que eu queria era ordenar aquilo, ordenar aquela desordem.
Hilda Hilst: Essa falta de compreensão acontece porque poesia é basicamente intuição. É aquilo que o Husserl falava. A fenomenologia é exatamente dar um valor deslumbrante para a intuição. A poesia não vem daqui, você recebe a poesia – ela vem de alguma coisa que você não conhece.
CADERNOS: “Os corvos estão chegando” é poesia.
CADERNOS: Mas a fenomenologia mostra que você precisa colocar um pouco o mundo entre parênteses, quer dizer, você precisa assumir uma certa neutralidade crítica para poder apreender a coisa tal como ela é.
Hilda Hilst: Sim, do Poe. CADERNOS: E do Jorge de Lima também, da Invenção de Orfeu. Seu pai afinal era poeta.
Hilda Hilst: Claro, claro. Eu mesma já comentei isso nos poemas, eu também falei no “never more” [referência ao verso de Edgar Allan Poe em O corvo].
Hilda Hilst: Não é só isso. É o essencial, o eidético. CADERNOS: A propósito do tema fenomenologia, quais os seus outros interesses no campo da filosofia?
CADERNOS: Sua opção por não ter filhos vem mesmo desse medo da loucura?
Hilda Hilst: Falamos do Husserl, que eu leio com interesse. Mas adoro mesmo Wittgenstein. A vida dele foi maravilhosa, ele era um louco deslumbrante. Tenho muitas fotos de Wittgenstein. Tenho interesse pela loucura dele.
Hilda Hilst: Tem a ver com isso, sim. Um dia, conversando com o médico do meu pai, eu disse a ele que queria saber tudo sobre crianças, esquizofrenia e paranóia. Então, o médico me falou que essas doenças em geral atingem uma geração, pulam a seguinte e vêm na outra. Ou seja, eu teria poucas chances de ficar louca, mas meus eventuais filhos corriam seriamente esse risco. Eu, que já não conseguia pensar em crianças puxando minha saia e gritando “mãe!”, entrei em pânico. Disse a mim
CADERNOS: Seria um interesse pelos limites do pensamento, digamos assim, por aquelas zonas intermediárias, entre a luz e a sombra, onde a própria linguagem falece, da filosofia de Wittgenstein? 28
de porca histérica. Eu até chorei. Pensei: “Quer dizer que não é só no Brasil, na França também?”. O comentário todo era bonito, mas o título… “A porca e o histérico”.
mesma que nunca correria o risco de ter filhos esquizofrênicos e paranóicos. NELLY NOVAES COELHO: Apesar de suas dezenas de livros e de seus quase 50 anos de produção ininterrupta, continua a haver uma espécie de “muro” entre a sua obra e o grande público, como aliás aconteceu, através dos tempos, com todos os que chegaram para iluminar caminhos, para inventar ou descobrir o “novo”. Você poderia explicar como vê esse irredutível “desencontro” obra/público?
CADERNOS: A sra. costuma dizer que sua decisão de escrever literatura licenciosa foi uma resposta à pequena vendagem de seus livros. Teria ficado indignada ao saber que a escritora francesa Régine Deforges ganhara 10 milhões de dólares com o best-seller A bicicleta azul, uma espécie de …E o vento levou açucarado. Então a sra. resolveu escrever, nas suas palavras, “coisas que todo mundo entende” e falar da problemática do sexo de um modo novo, sem véus, com toda a crueza. Mas nós perguntamos: isso não parece racionalização? Um modo psicológico de explicar um fenômeno de outra ordem que faz parte da dinâmica interna de sua obra? Em outras palavras, a pornografia já não estava inscrita, de algum modo, no corpo dos trabalhos mais precoces, aflorando depois em resultado do próprio amadurecimento de sua literatura?
Hilda Hilst: Eu não posso explicar isso. Eu sei, por exemplo, que o Joyce não era lido nem pela mulher dele, Nora Barnacle. CADERNOS: Ex-arrumadeira de hotel.
Hilda Hilst: É. Parece que ela não lia mesmo nada do que Joyce escrevia. Quando ele morreu, Nora Barnacle disse: “Que grande homem foi o meu marido”. Mas nunca leu nada do que ele escrevia; Nora achava Joyce completamente louco. Agora, o interesse por uma obra assim pode demorar uns 50 anos. Quando você faz uma revolução, demora; a aceitação chega a demorar meio século ou até mais.
Hilda Hilst: Eu estava muito atrapalhada, só recebia dinheiro da Universidade de Campinas. Não ganhava praticamente nada. De repente, leio sobre aquela mulher ganhando todo aquele dinheirão.
CADERNOS: Sua crença, portanto, é de que esse desencontro com o público não passa de uma coisa realmente de momento mesmo, quer dizer, há uma confiança na posteridade? Há uma perspectiva de reencontro de sua literatura com o público?
MILLÔR FERNANDES: Você me pediu, através do Massao Ohno, que ilustrasse seu livro “pornográfico” [O caderno rosa de Lori Lamby, 1990]. Com exceção de uma ou duas ilustrações, não gostei do que fiz. Perdão, pois, tardio. Agora, me diz, o livro foi uma tentativa de ser “popular”, pura sacanagem, ou uma real experiência em outro campo, outro gênero? E o resultado?
Hilda Hilst: Eu penso que sim. Um dia pode acontecer. Quando veio aqui o editor da Gallimard eu fiquei besta. Perguntei: “O sr. veio aqui só para me conhecer?” E ele: “Parfait, madame ”. Por aqui, os editores não davam a mínima pra mim. Fui publicada na França, e aí esse editor me escreveu dizendo: “Hilda, eu não compreendo por que eles acham tão difícil ler você”. O jornal Libération publicou uma resenha de A senhora D [1982], referindo-se a mim como “la cochonne hystérique”, a porca histérica. Me comparavam ao Bataille; eu sou muito ligada a ele mesmo. Mas me chamaram
Hilda Hilst: O que eu posso te dizer? Eu quis me alegrar um pouco. Eu tinha uma certa alegria sabendo que escrevia muito bem, mesmo não sendo lida. Mas de repente eu quis me alegrar. Comecei a sentir um afastamento completo de todo mundo. Eles nunca me liam, nunca. Então decidi fazer o livro. 29
CADERNOS: A idéia, então, era tentar conseguir vender mais livros mesmo?
tenho uma certa diferença com as mulheres, porque sinto que elas não são profundas. Eu tenho um preconceito mesmo em relação à mulher. Nunca conheci mulheres muito excepcionais como, por exemplo, Edith Stein. Ela era uma mulher deslumbrante e uma santa também.
Hilda Hilst: Tentar conseguir, mas eu não consegui. Pensei: “Vou fazer umas coisas porcas”. Mas não consegui. CADERNOS: Vamos insistir, então. Tudo isso não é uma racionalização, um mero recurso psicológico para explicar o fenômeno que está inscrito na sua literatura, quer dizer, a licenciosidade, o obsceno? O erótico já não estava presente antes em sua obra?
CADERNOS: A propósito, voltando às santas…
Hilda Hilst: Eu li todas aquelas que você citou. CADERNOS: E a vontade de ser santa em vez de escritora? Houve isso mesmo?
Hilda Hilst: É, mas eu queria fazer uma coisa que, de repente, eles gostassem de ler. Não adiantou. Diziam que eu era dificílima na literatura pornográfica.
Hilda Hilst: Houve. Quando eu tinha oito anos, minha maior vontade era ser santa. Eu estudava em colégio de freiras, rezava demais, vivia na capela. Sabia de cor a vida das santas. Eu ouvia a história daquela Santa Margarida, que bebia a água dos leprosos, e ficava impressionadíssima. Vomitava todas as vezes que as freiras falavam disso. Elas diziam: “Não é pra vomitar!” Eu queria demais ser santa.
CADERNOS: Para nós, a questão do erotismo em sua obra pode ser melhor explicada pela busca do Sublime, ou, melhor ainda, do Sagrado, que aqui deve ser grafado com o S maiúsculo, para designar algo que é quase uma categoria perene da poesia. Mas não apenas da poesia, é claro, por ser também, enquanto sentimento, uma forma da experiência religiosa. A convivência entre o erótico e o Sublime tem raízes profundas na tradição da literatura ocidental, a começar pela Grécia, e no mundo cristão pela poesia mística da Espanha quinhentista. Tomemos os exemplos de Sóror Juana Inés de la Cruz e Santa Teresa d’Ávila. Em ambos, o sentimento de perder-se em Deus, tão típico da ascese mística de língua espanhola, não significa a renúncia do corpo. Ao contrário, muitas vezes o objeto erotizado era o próprio corpo divino. A sra. reconhece essas presenças, embora remotas, na sua literatura chamada “pornográfica”?
CADERNOS: E o que ficou dessa sua formação religiosa?
Hilda Hilst: Ah, ficou toda a minha literatura. A minha literatura fala basicamente desse inefável, o tempo todo. Mesmo na pornografia, eu insisto nisso. Posso blasfemar muito, mas o meu negócio é o sagrado. É Deus mesmo, meu negócio é com Deus. CADERNOS: Há um erotismo ligado ao divino em sua obra, é isso?
Hilda Hilst: É, eu fundi tudo, normalmente. Foi aos 30 anos, depois de ter lido o Kazantzakis. Um dia, ele estava em Paris e viu uma puta linda. Combinou com a prostituta de sair. Quando estava fazendo a barba para o encontro, nasceram pústulas na cara dele e Kazantzakis acabou não indo. Achou que era um milagre, deve ter sido um milagre mesmo. Aí ele foi para o Monte Athos escrever.
Hilda Hilst: É verdade. É a busca de Deus. É por isso que A obscena senhora D pergunta: “Deus, você me entendeu?” A senhora D, aliás, foi a única mulher com quem eu tentei conviver – quer dizer, tentei conviver comigo mesma, não é? As mulheres não são assim tão impressionantes, essa coisa de uma busca ininterrupta de Deus, como eu tive. Eu
CADERNOS: Muitos livros e muitas vidas marcaram a sua. É o caso de Carta a El Greco, precisamente de Kazantzakis. Na sua opinião, 30
existem as conversões súbitas? Dizem que São Paulo se converteu descendo do cavalo, no movimento de descer do cavalo.
volução. O erótico, pra mim, é quase uma santidade. A verdadeira revolução é a santidade. CADERNOS: Por quê?
Hilda Hilst: É verdade. Eu acredito nisso, acredito em milagres. Eu mesma já vi milagres aqui. Mas eu quase não falo, só comento com meus amigos sobre as coisas que eu vi aqui nesta casa. Quando li esse livro, Carta a El Greco, resolvi mudar para cá. Resolvi mudar minha vida. Eu tinha uma casa gostosíssima em São Paulo, todo mundo ia lá comer, namorar, dançar – meus namorados, meus amigos, minha amigas. Aí, li o livro e mudei minha vida.
Hilda Hilst: Porque você começa a querer se aproximar de Deus. O erótico? Eu não dou mais muita importância ao erótico, sabe? Para mim, aliás, é uma coisa já muito antiga. Mas parece que as pessoas gostam de falar nisso: vagina, pênis. Eu já falei de tudo isso no Qadós, n’A senhora D. Em todo o lugar eu falava sobre isso. Agora não tem mais tanta importância.
CADERNOS: Foi, portanto, uma conversão?
JORGE COLI: Órgãos, vísceras, ossos e obscenidade são caminhos para o espiritual? Seja como for, o que a consciência poética das partes “baixas” do corpo pode trazer?
Hilda Hilst: É, parece que sim. CADERNOS: Era preciso essa renúncia mesmo, essa vida reclusa para poder produzir?
Hilda Hilst: Nós nos desprezamos, temos desprezo por nós mesmos. Quando eu penso nas “partes baixas do corpo”, como você diz, eu penso: como sou miserável, como eu sou ninguém, como eu não sou nada.
Hilda Hilst: Ah, sim. CADERNOS: Por quê?
Hilda Hilst: Eu tinha que ser só para compreender tudo, para desaprender e para compreender outra vez. Aquela vida que eu tinha era muito fácil, uma vida só de alegrias, de amantes.
CADERNOS: Em O caderno rosa de Lori Lamby a narradora é uma menina de oito anos de idade que está tentando ajudar o pai escritor a ganhar algum dinheiro. Há, naturalmente, traços autobiográficos nos dois personagens?
CADERNOS: A poesia é uma forma de renúncia como a renúncia religiosa?
Hilda Hilst: É claro. Só que eu nunca tive um editor como o Lui.
Hilda Hilst: Para mim foi. O amor em uma intensidade absoluta. Não o amor de agora. Esse não tem nada a ver comigo. O amor é uma outra coisa, inexplicável, é um outro segmento.
CADERNOS: Qual sua reação ao livro?
Hilda Hilst: Hoje ele está saindo muito, principalmente depois da adaptação teatral.
CADERNOS: Boris Vian fez uma conferência chamada “A utilidade de uma literatura erótica”, que diz o seguinte: “Ler livros eróticos, difundi-los ou escrevê-los são uma maneira de preparar o mundo de amanhã e de abrir caminho para uma verdadeira revolução”. Esta também é a sua visão?
CADERNOS: Sua principal crítica à obra do Marquês de Sade diz respeito à violência física. Na sua opinião, ela embotaria o elemento erótico?
Hilda Hilst: Não, ou melhor, eu não sei. Eu adoraria estar apaixonada sempre. A minha mãe dizia uma frase que eu nunca esqueci: “Tens um inimigo, deseja-lhe uma paixão”. Eu não entendia o que ela
Hilda Hilst: Ele diz “verdadeira revolução”? Não, não acho assim. O erótico não é a verdadeira re31
queria dizer, mas agora eu entendo. A paixão é uma doença mesmo, uma doença total. E eu gostaria de, velha, ter uma paixão, de me apaixonar. Aí, o sujeito poderia até cuspir na minha cara! Só que as pessoas com quem eu combinava diziam: “Mas eu não consigo cuspir na sua cara!” Não dava certo.
Hilda Hilst:Bem, eu tenho medo de criança. “Crionça”. Uma amiga minha é que falava, a Márcia Pedroso Horta, que “crionça” é “criança” e “onça” ao mesmo tempo. Então, eu tenho medo dela. Um médico disse para mim: “Quem tem medo de criança é criança”. Bem, certo, verdade. Tinha uma mulher que vinha aqui em casa com uma criança – ou crionça. Ela dizia: “Olha como essa sua tia é linda”. Eu não era tia de ninguém, e a criança respondia: “Eu não acho”. Eu começava a ter ódio dessa criança e dizia: “Você também não é bonita, é feia”. Eu brigava com a criança, com a crionça. Eu não entendo a crionça. Nunca conheci uma criança deslumbrante. Eu vejo crianças lindas, mas, quando elas começam a falar, são chatérrimas.
CADERNOS: Seu ponto de vista, portanto, é de uma aproximação muito grande entre prazer e dor? Esta seria uma componente fundamental do amor erótico?
Hilda Hilst: Para o amor eu não sei. Para a paixão, é. CADERNOS: Esta é a convicção de uma mulher que se apaixonou muito?
CADERNOS: Voltando à questão da
Hilda Hilst: Não. Eu me apaixonei aos 50 anos por um primo meu. Ele era louco, já morreu. Foi assassinado, levou um tiro na cabeça. Dediquei A senhora D para ele. Não sei se ele me leu. Normalmente, quando a pessoa me lê fica meio louca mesmo. Aliás, ele não gostava que eu escrevesse. Dizia que eu ficava com cara de homem, que eu me transformava. Então eu esperava que ele saísse para continuar A senhora D.
TV.
Hilda Hilst: Não sei, eu não tenho solução para esse problema. O que eu sei é que a criança está erotizada demais. Você vê meninas de dois anos fazendo a dança da garrafa. Será que as mães querem que elas virem prostitutas loucas? Eu não entendo isso. E não sei o que fazer. A minha solução, a vida inteira, foi, sempre, escrever. CADERNOS: Continua sendo?
CADERNOS: Com o erotismo e a pornografia sendo difundidos largamente através do cinema, vídeo, TVs abertas e fechadas, a literatura voltada para o sexo ainda é capaz de sensibilizar o leitor?
Hilda Hilst: Não, não. Eu terminei de escrever. É deslumbrante tudo o que escrevi, mas já escrevi tudo o que devia. CADERNOS: Por que essa sensação?
Hilda Hilst: Eu acho que ao leitor sim; a mim, não. Hilda Hilst: Como “por quê”? Porque já escrevi tudo aquilo ali [aponta para uma pilha de seus livros].
CADERNOS: Qual a força da literatura erótica diante dessa realidade explicitamente visual?
CADERNOS: Mas o seu entendimento não é o de que a poesia, por exemplo, “vem” para o poeta, não é ele que escolhe?
Hilda Hilst: É por esse tipo de coisa que eu não vou escrever mais. E principalmente porque eu já falei tudo o que tinha para falar.
Hilda Hilst: Mas agora não vem mais. E não vem porque eu não quero mais. Como eu disse antes, eu já escrevi coisas deslumbrantes. Quem não entender, que se dane! Não tenho mais nada a ver com isso. Eu não sinto que esteja num mundo que seja o meu mundo. Devo ter caído aqui por acaso. Não entendo por que fui nascer aqui na Terra.
CADERNOS: A respeito da pornografia na TV, tem-se debatido muito de que modo poderia haver algum tipo de censura para evitar que crianças, por exemplo, assistissem a programas com alta carga erótica. Qual a sua opinião sobre o problema? 32
Com raríssimas exceções, não tenho nada a ver com este mundo.
Hilda Hilst: Hoje, como eu disse, eu não me importo mais com isso. Antes eu ficava pelos cantos, meio tristinha. Agora, não mais. Não sinto mais nada; glória, sucesso, tudo isso: não sinto vontade de mais nada. Não tenho mais motivação alguma. Por isso é que queria me apaixonar por alguém. Podia ser um leão, um tigre, alguma coisa, um elefante. Não tenho mais paixão por nada. Não tenho amor por nada aqui dentro.
CADERNOS: Seu conceito de hermetismo está baseado em Kierkegaard; trata-se de um escudo utilizado pelo homem para se defender do exterior. Isto redundaria num distanciamento proposital em relação ao Outro; mais do que isso: se pensarmos, como Sartre – que a identidade de cada homem só se realiza através do Outro –, seu trabalho não a estaria afastando dos leitores e, por extensão, de si mesma?
JORGE COLI: O que é a compreensão poética do amor?
Hilda Hilst: Eu não tenho mais vontade, entende? Não tenho mais vontade de alegrar ninguém, nem de fazer sofrer, nada. Não estou nem aí para quem não me lê.
Hilda Hilst: Compreensão poética do amor? Você deve saber mais do que eu. Mas o amor realmente, esse amor eu já conheci, só que em outro lugar, não aqui. Eu conheci, sim, eu já vi alguma coisa que me lembra o amor, mas não aqui. A consideração maior sempre foi uma coisa além. Escrevi isso em quase todos os meus livros. Não dá para explicar assim. Eu expliquei nos livros. Não entenderam. Então, não adianta falar mais.
CADERNOS: Mas há sem dúvida um interesse renovado por seu trabalho, especialmente nas universidades.
Hilda Hilst: Esses estudos, essas teses, isso eu gosto quando fazem. Mas estão tratando principalmente das coisas eróticas. O meu teatro, por exemplo, ninguém faz.
CADERNOS: Como não adianta “escrever” mais, “gostar” mais?
Hilda Hilst: Bom, eu gosto de novela, de ver novela. Acho os autores deslumbrantes, porque é uma coisa que eu não sei fazer. Eles têm o controle do processo. Eu não tenho isso. Jamais escreveria novela.
NELLY NOVAES COELHO: A visão do ser humano que predomina em sua obra é visceralmente pessimista, no sentido de que as suas “criaturas” são indiferentes ao Outro, são trágicas ou tolas, ou inconscientes daquilo que realmente acontece com elas. Essa visão trágica e negativa do humano se restringe ao homem-século XX, que naufraga no caos que ele próprio criou? Ou você engloba nessa visão a própria condição humana?
CADERNOS: Já houve convite?
Hilda Hilst: Para escrever para a televisão? Já me falaram várias vezes, mas eu não consigo. Não tenho o domínio da coisa, como esses autores de novela.
Hilda Hilst: A condição humana. Mas eu sei que eu não sou assim. Eu acho que sou diferenciada, sim. Tem pouca gente que pensa e escreve como eu. Eu sempre digo isso e aí sou considerada megalômana. Mas eu sei quem sou.
CADERNOS: Seu interesse intelectual pela psicanálise é conhecido, sobretudo no que se refere às obras de Freud e Jung. Isso já a levou a fazer análise?
Hilda Hilst: Os médicos que cuidavam do meu pai e depois da minha mãe diziam que estavam brigando para ver quem ia me atender quando eu
CADERNOS: Esse seu acerto com os leitores e a crítica, a universidade, o que tem provocado? 33
CADERNOS: Os cães, na mitologia grega, eram considerados animais psicopompos, ou seja, condutores das almas depois da morte. Com 90 deles na Casa do Sol, sua viagem será muito bem escoltada. Como é a sua relação com a religião? Acredita na salvação da alma após a morte?
fosse parar no sanatório. Estão esperando até hoje. Nunca fui parar num lugar daqueles, nem nunca fiz análise. JORGE COLI: O que seria possível dizer das relações entre “animalidade” e “humanidade”?
Hilda Hilst: Eu acho que são coisas tão diferentes, tão completamente diferentes! Eu adoro bichos, sempre tive um interesse total por bichos: cachorros, gatos, cavalos, vacas. Acho que os animais são puros, não têm consciência. Já o homem, não: é safado.
Hilda Hilst: Nossa, quando eu morrer vou ser mesmo muito cortejada pelos cachorros! Mas, respondendo à sua pergunta: acredito, acredito sim na salvação depois da morte. É por isso que tenho tanta vontade de fazer aqui uma fundação, a Fundação Apolonio de Almeida Prado Hilst, que cuidaria de estudos psíquicos e de imortalidade. Era isso o que eu queria fazer.
CADERNOS: Saiu há pouco um livro na França que fala dos escritores e pensadores que escreveram sobre cães ou os apresentaram como personagens.
CADERNOS: Essa idéia de incentivar estudos sobre a vida após a morte surgiu quando se iniciaram suas experiências aqui, na Casa do Sol, de tentar gravar mensagens dos mortos?
Hilda Hilst: Vocês viram, eu tenho ali um retrato de uma moça beijando um porco; eu adoro porcos.
Hilda Hilst: Isso faz muitos anos. Esta casa é deslumbrante demais. Aqui já aconteceram muitas coisas. Mas aí vai depender de a pessoa acreditar ou não em mim. Aqui desceu um disco voador, já contei isso numa entrevista. Outra vez eu estava sentada, lendo um livro sobre empresas, um livro de uns americanos – eu ainda vivia com o Dante [Casarini, seu marido], ele estava dormindo e eu lendo aquele livro –, e de repente eu vi um homem entrar aqui, um cara lindo, parecia com um ator do meu tempo que se chamava John Gavin. O Vintila Horia diz que houve um outro sujeito com esse nome, que era o maior conhecedor de Joyce de todos os tempos. Pois o que me apareceu aqui lembrava o ator. Ele era do tamanho dessa porta, 1 metro e 90. Ele entrou. Tinha uns amigos aqui. Só eu vi o homem. Ele olhou para mim e disse: “Enfim, cheguei”. Ele estava com uma valise, dessas de empresário, chapéu gelot. Estava vestido como um embaixador. Eu fiquei besta. Levantei para cumprimentar o homem. Foi aí que ele falou, rindo: “Enfim, cheguei”. Mal eu acabei de levantar, ele sumiu. Depois disso vi outras pessoas andando aqui. Às vezes eu pensava que era o Dante. Ia ver, não era. Eu ficava conversando com elas. Uma vez, o
CADERNOS: Muitos autores, de fato, trataram os cães com respeito em suas obras. Mas, de um modo geral, as línguas são cruéis com eles. A palavra “canalha”, por exemplo, vem do latim canis e a expressão francesa chiennerie, que pode ser traduzida por algo como cachorrada, designa também avareza e lubricidade. Em português, todos sabemos o que significa “fazer uma cachorrada” com alguém. Na sua opinião – abalizada, pois poucas pessoas se dariam ao trabalho de criar 90 cães; é bastante conhecida a sua afeição por esses animais –, como se explicaria essa carga semântica negativa em relação aos cachorros, que alguém disse tratar-se do melhor amigo do homem?
Hilda Hilst: É porque o homem não tem a compreensão do sacana que ele é. Coitados dos cachorros. Está completamente errado, não é? O homem não presta; já o cão é um ser maravilhoso. O cavalo, a vaca, o boi, todos eles. Eu sempre tive um amor desesperado pelos animais. Tenho muita pena dos animais, por eles serem tão mal compreendidos. Eu tenho tudo a ver com o animal. 34
Dante perguntou: “Hilda, com quem você está conversando?” Eu via pessoas que não existiam. Um dia, andando com uma amiga aqui na alameda, de repente apareceu um homem entre nós. Muito bonito, devia ter uns 18 anos. Eu quase desmaiei. Tudo isso me asseverou que existe, sim, vida depois da morte. Por isso eu queria fazer a fundação. Aí viriam para cá escritores interessados nessas coisas, fariam estudos, conferências. Eu deixaria esta casa, alguns terrenos e tal para sustentar essa fundação.
é inegável o débito que os críticos brasileiros têm com sua obra. Mais recentemente, no entanto, como dissemos, o interesse por seus livros vem crescendo muito, com teses, cursos e estudos universitários. O mesmo vem acontecendo com suas últimas obras, cuja recepção parece ter melhorado tanto junto aos leitores quanto à crítica. Seria isso o início de uma mudança de atitude? A sinalização de um maior reconhecimento, enfim, da importância de seu trabalho?
CADERNOS: E hoje, as visões continuam?
Hilda Hilst: Alguns críticos foram deslumbrantes comigo. Mas não acho que esse movimento todo que você diz em torno do meu trabalho desperte alguma coisa. Ninguém fala, por exemplo, em reeditar meus livros. É difícil hoje achar um livro meu.
Hilda Hilst: Não. Agora não mais. Eu fiquei vários anos vendo tudo isso; agora não vejo mais. Agora eu tenho medo. CADERNOS: Nem visões dos amigos mortos continuaram?
CADERNOS: Não se cogita em lançar suas obras completas?
Hilda Hilst: Bom, eu revi o Caio Fernando Abreu no dia da morte dele. Eu já contei isso. Ele morreu à 1 hora e veio se despedir às 10 da noite. A gente tinha combinado isso. Ele veio com um cachecol que tinha uma fita vermelha. A gente tinha combinado: o vermelho ia significar que estava tudo bem. Eu abracei o Caio, muito, e disse: “Nossa, como você está bonito! Está jovem!” Mas ninguém acredita. Falam: “A Hilda é uma bêbada, uma alcoólatra, está sempre louca”. É assim que falam.
Hilda Hilst: Não. Se falassem eu ficaria contente. Mas nunca ninguém fala nisso. CADERNOS: O interesse por parte da crítica, da universidade, não levaria à reedição de seus livros, ao lançamento de sua obra completa?
Hilda Hilst: Eu gostaria de ver isso. Mas não sei se vou viver muito tempo, né? CADERNOS: E no exterior, não há também um interesse por seu trabalho?
CADERNOS: Bem, consta que suas visões começaram na infância.
Hilda Hilst: É, mas só que eles não mandam nada para mim. É como se eu fosse riquíssima. Ninguém me apresenta notas.
Hilda Hilst: Pois é, naquela época eu não bebia… Eu era menina, tinha uns sete anos, e um dia, dormindo com a minha mãe, abri os olhos e vi um anjo. Cutuquei minha mãe e falei: “Mãe, um anjo!” E o anjo fez um sinal assim, pra eu ficar quieta.
CADERNOS: Nunca lhe ocorreu traduzir obras de escritores de sua preferência?
CADERNOS: Voltando à literatura. Suas relações com a crítica nunca foram pacíficas. O ponto de discórdia sempre foi a pouca atenção dada a seus mais de 30 livros publicados em quase 50 anos de produção literária. Houve exceções, naturalmente, mas
Hilda Hilst: Não. Quando eu era menina, falava perfeitamente o alemão; estudava com uma professora chamada dona Irma. Mas eu já tinha a mania de inventar coisas no meio das leituras. Sempre preferi inventar as minhas coisas a ficar traduzindo. 35
CADERNOS: Num comentário certeiro e com toda a sua autoridade, Anatol Rosenfeld observou que, nesse tempo em que vivemos, tão marcado pelas especializações, é raro encontrar um escritor capaz de cultivar, com notável qualidade, três gêneros fundamentais da literatura – a poesia lírica, a dramaturgia e a prosa narrativa –, como é o seu caso. De que modo essas formas se impõem no seu trabalho? E qual delas proporciona maior satisfação ao escrever?
tas medonhas para o jornal. Diziam coisas horríveis, ligavam pedindo para o Correio cortar minha coluna. Telefonei para o jornal perguntando se eles queriam que eu saísse. “Não, pelo amor de Deus. O Correio está vendendo muito só por causa do que você escreve”, me responderam. O jornal foi ótimo em tudo comigo. Eu deixei de colaborar porque estava escrevendo o Estar sendo. Ter sido [1997]. De qualquer maneira, lancei em 98 o Cascos & carícias, reunindo as crônicas que publiquei no Correio.
Hilda Hilst: Anatol era um alemão cultíssimo. Naquele tempo ele já falava isso de mim. Mas, respondendo à sua pergunta: as três. Eu sempre escrevi muito bem nisso tudo. Achavam que eu escrevia desse modo porque eu era drogada. Nunca experimentei droga. Eu tinha medo de ficar louca. Mas achavam que escrevia tudo aquilo porque era drogada. Eu não ligava. O Anatol é que ficava triste.
CADERNOS: Sua colaboração no Correio começou no ano do impeachment. Consta que na eleição de 1989 seu voto foi para Collor de Mello.
Hilda Hilst: É verdade. Eu votei no Collor. Eu achava ele deslumbrante, lindo e entrei na onda. Uma amiga minha tinha me advertido sobre o Collor. Mas eu não dei ouvidos. Quando eu soube de tudo, liguei para ela, a Gisela Magalhães: “Meu Deus, Gisa. Me desculpe, me desculpe”.
CADERNOS: Uma das restrições mais comuns ao seu teatro é acusá-lo de ser demasiado “li te rário”, entendendo-se este termo como algo que se opõe à assim chamada “ação dramática”. O que a sra. pensa desse tipo de crítica?
CADERNOS: E hoje, qual a sua relação com a política?
Hilda Hilst: Não tenho o menor interesse. Nem voto mais.
Hilda Hilst: “Literário” é a mãe! Eu sei que falam isso. Que o meu teatro é de uma categoria menor. Categoria menor? É que as pessoas não são de uma categoria maior, né? Não adianta: eu sei que o meu teatro, como tudo o que escrevi, é lindo demais. Mas as pessoas não querem ouvir as coisas como elas são.
CADERNOS: Sua novela “Matamoros (da fantasia)”, que integra o livro Tu não te moves de ti (1980), traz uma epígrafe da poeta Lupe Cotrim Garaude, que morreu precocemente em 1970, deixando uma obra muito interessante apesar de inconclusa. E hoje, diga-se, injustamente esquecida. Lupe foi sua amiga e também de Lygia Fagundes Telles. Vocês formavam uma tríade de belas escritoras, literariamente falando, mas também de escritoras muito belas. Como foi sua convivência com os escritores de sua geração e, em particular, com essas duas amigas mais próximas?
CADERNOS: Entre 1992 e 1995, a sra. assinou uma crônica semanal no jornal Correio Popular, de Campinas. Nelas, como não poderia deixar de ser, em se tratando de tal gênero, a sra. também falava de política e de políticos. Como foi a experiência de lidar jornalisticamente com o cotidiano durante aquele período?
Hilda Hilst: Fui muito amiga mesmo da Lupe, mas no meu tempo ela não escrevia o que escreveu; depois é que ela apareceu como escrito-
Hilda Hilst: Comecei a gostar, mas, como eu falava tudo o que pensava, as pessoas mandavam car36
CADERNOS: E a importância de Deus diminui também agora?
ra. A Lygia tem sido minha amiga a vida toda. Ela me liga todos os dias. Eu tive vários amigos, mas me meti aqui e eles não apareceram mais. Começou a crescer também um medo enorme em relação a mim. Então, quando as pessoas me telefonam, falam sempre assim: “Não posso continuar… um momento, que estou chorando de estar conversando com a senhora”. Eu fico besta de ouvir isso.
Hilda Hilst: Não preciso mais falar nada, entende? Quando a gente já conheceu isso, não precisa mais falar, não dá mais pra falar. CADERNOS: É, portanto, um esgotamento da linguagem, um impasse, digamos, “expressivo”, que leva ao silêncio?
CADERNOS: Criou-se um mito?
Hilda Hilst: É verdade. Leva ao silêncio. Eu fui atingida na minha possibilidade de falar. Lá do alto me mandam não falar. Por isso é que estou assim.
Hilda Hilst: Aconteceu alguma coisa. Aí as pessoas ligam desse jeito, ou escrevem cartas desse tamanho, que para ler…
CADERNOS: Sua obra, no fundo, então, procura…
CADERNOS: E as correspondências? Continuam regularmente?
Hilda Hilst: Deus. Hilda Hilst: Não mais. Tenho, por exemplo, um amigo no Canadá que traduziu um dos meus livros, publicado com umas pinturas minhas; ele andou me escrevendo uma cartas quando estava cuidando da edição do livro [trata-se da reedição de Da morte. Odes mínimas, que saiu em 1998 numa co-edição – bilíngüe, português/francês –, Nankin/Le Noroît].
CADERNOS: Ele não significava o Outro, o outro ser humano?
Hilda Hilst: Deus é Deus. O tempo inteiro você vai ver isso no meu trabalho. Eu nem falo “minha obra” porque acho pedante. Prefiro falar “meu trabalho”. O tempo todo você vai encontrar isso no meu trabalho.
CADERNOS: Por falar em suas pinturas, como está o seu interesse por artes plásticas?
CADERNOS: É disso que decorre a citação de Georges Bataille no poema incluído na quarta capa de Amavisse (1989) – uma espécie de adeus do escritor, que presta contas do que fez –, que diz: “Sinto-me livre para fracassar”?
Hilda Hilst: Interesse realmente não havia. Eu achava gostoso pintar. Mas agora não faço mais nada. Não escrevo nada, não pinto nada. O que é que vocês querem? Por que vocês ficam tristes de eu não escrever mais? Depois de eu ter escrito mais de 30 livros, e ninguém ter lido, vocês ainda ficam chateados de eu não escrever mais? O Flaubert dizia uma coisa que eu repito sempre: você perde a alacridade do corpo quando não quer mais nada.
Hilda Hilst: É isso. É aceitar esse silêncio. Eu não sentia mais necessidade de falar. O Yuri Santos, que está aqui ao meu lado, jovem escritor, é um amigo deslumbrante porque ele sabe que eu quase não falo e eu sei que ele também não fala. Ele compreende. De vez em quando eu falo para ele, que ainda gosta de escrever, que é uma dureza, demora muitos anos até você conseguir alguma coisa boa, é dificílimo.
CADERNOS: Noutras palavras, a sua poética, de certo modo, sempre foi a do desejo?
Hilda Hilst: Daquele suposto desejo que um dia eu vi e senti em algum lugar. Eu vi Deus em algum lugar. É isso o que eu quero dizer.
CADERNOS: Sua convivência com jovens escritores é muito marcante. 37
go? Um cafuné na minha cabeça. Eu toda encolhida, com medo, e ele veio fazer um cafuné na minha cabeça…
Hilda Hilst: É verdade. O Caio Fernando veio para cá. O [José ] Mora Fuentes ficou aqui 13 anos… CADERNOS: Eles seriam seus herdeiros literários?
MILLÔR FERNANDES: Você, literalmente, se retirou. Do meu ponto de vista, Rio, que é minha paz, mas muitos vêem como tumulto, você está vivendo ecologicamente, com árvores e animais. Em paz. Seu tumulto?
Hilda Hilst: Não sei. O Mora Fuentes, logo que começou aqui, era muito influenciado por mim. Então eu dizia: “Pode rasgar tudo isso”. Até que ele escreveu Cordeiros da casa, um livro que eu senti que era algo dele mesmo. Demorou, mas ele conseguiu.
Hilda Hilst: Em paz. Em tumulto às vezes, porque tudo é muito difícil. As pessoas querem respostas como se eu fosse uma sábia – e eu não sou. Eu leio Heidegger, Hegel, Kierkegaard, Wittgenstein e percebo que eles também não têm uma resposta acalentadora pra gente.
MILLÔR FERNANDES: Jornalista há tanto tempo, volta e meia tentam me transformar em coisas mais importantes do que isso, do que sou. Não incorporo, dou pouca importância. Curiosamente, apesar de achar a literatura – o livro – o último reduto da expressão livre (o cinema é sempre de realização múltipla, e o “artista” mais livre faz concessões, quanto menos ao tempo de duração de seu trabalho, o teatro acompanha isso, etc., etc.), da plena realização do indivíduo, ainda me espanta que, bela escritora que você é, sensibilidade extraordinária que você é, acredite – estou errado? – que a literatura é a vida ou até mais importante do que isso. Diz.
CADERNOS: Mesmo não tendo as respostas, estes foram alguns dos autores fundamentais para o embasamento de sua obra. Mas seu interesse pelos físicos também é notório – caso de J. Oppenheimer. Esta sua curiosidade, aliás, costuma causar um certo estranhamento. A sra. continua lendo os físicos até hoje?
Hilda Hilst: É verdade, eu me interesso mesmo pelos físicos. Às vezes eu leio coisas tão complicadas que precisaria fazer um curso de física para entender melhor. Os físicos, todos eles, são completamente loucos.
Hilda Hilst: A vida é uma coisa absurda, que a gente não sabe como é. De uma certa forma nos deram uma compreensão para entender a vida, mas a gente não consegue. Então nos deram uma cabeça para poder compreender as coisas, mas sempre é a terra, né? É sempre o túmulo, sempre o sepulcro. Então, é por isso que eu fico impressionada com essa coisa de Deus. Eu tenho medo da solidão, do sepulcro. Mesmo sabendo que tem alguma coisa depois. Tenho medo de ser enterrada, por isso vou pedir para ser cremada.
CADERNOS: Na sua opinião, existe uma relação muito estreita entre a física, o místico e a arte?
Hilda Hilst: Sim, existe. Principalmente no caso da física quântica. CADERNOS: Estamos falando da indeterminação, que é o universo próprio da poesia?
CADERNOS: Isto é uma confissão de medo da morte?
Hilda Hilst: Claro. É deslumbrante pensar nessas relações. Sempre me dei bem com os físicos. O Mario Schemberg foi a pessoa que mais me compreendeu.
Hilda Hilst: Eu tenho um pânico enorme da morte. Tenho medo de encontrar o desconhecido. Quando eu saía do corpo, um dia vi aqui um gorila enorme, de três metros. Eu me agachei inteira, estava aqui nesse terraço. Sabe o que ele fez comi-
CADERNOS: Uma escritora tão culta, interessada em assuntos avançados, continua escreven38
CADERNOS: Carlos Fuentes.
do numa Lettera 22 e não se interessa pela rede mundial de computadores, a Internet?
Hilda Hilst: É isso. Tem muitos escritores a quem eu me associo demais, como irmãos, entende?
Hilda Hilst: É isso mesmo. Fiquei deslumbrada com o site feito pelo Yuri sobre a minha vida e o meu trabalho, mas não tenho o menor interesse por esse negócio de Internet.
CADERNOS: E a produção literária brasileira contemporânea, como a sra. vê?
Hilda Hilst: De um modo geral, eu acho fraca.
CADERNOS: Sua poesia ecoa a voz de certos poetas latinos, sobretudo Catulo e Marcial, que apesar de cultivar o ócio nutriam uma apetência voraz pela vida. Clodia, também chamada Lésbia, a amante impiedosa de Catulo, é sua personagem nominal; e de Marcial respira em seus versos o humor ferino e sarcástico dos epigramas. Também a coletânea medieval e apócrifa Carmina Burana – profana, jocosa e paródica – parece ser outra de suas referências.
CADERNOS: E quanto ao teatro brasileiro?
Hilda Hilst: Desculpe, mas eu não acompanho, eu não leio. CADERNOS: Ler hoje é reler?
Hilda Hilst: É. Joyce, Heidegger, Kierkegaard. CADERNOS: A sra. tem preferências entre as obras que escreveu?
Hilda Hilst: É verdade, tenho essas influências sim. Eu lembro que sempre que eu falava de Catulo pensavam que era o Catulo da Paixão Cearense.
Hilda Hilst: Eu acho Qadós deslumbrante, esse livro que ninguém entende.
CADERNOS: Como surgiram as leituras desses clássicos?
CADERNOS: Um livro em prosa.
Hilda Hilst: Desde mocinha o meu negócio era ler. Esses autores foram surgindo aos poucos.
Hilda Hilst: A prosa vem de repente, assim. Subitamente. Até no chuveiro.
CADERNOS: Já na prosa ficcional, suas influências são mais contemporâneas: Joyce, Beckett. Como convivem, em sua obra, essas dimensões aparentemente antagônicas?
CADERNOS: O ensaio nunca a atraiu?
Hilda Hilst: Não, nunca. CADERNOS: No seu teatro e na sua ficção, a linguagem poética está sempre presente. Seu trabalho seria, portanto, o resultado de uma poesia expandida?
Hilda Hilst: Antagônicas, não. O Joyce e o Beckett eu acho maravilhosos. O Joyce está na minha mesa. Mas é curioso mesmo essa linha mais recuada da poesia e mais moderna da prosa.
Hilda Hilst: É verdade, eu acho que sim. Toda a minha ficção é poesia. No teatro, em tudo, é sempre o texto poético, sempre.
CADERNOS: Isto significaria que é preciso colher a prosa mais de perto, enquanto a poesia pode ser vinculada a uma tradição mais recuada no tempo?
CADERNOS: Parte da dificuldade do entendimento de sua obra decorreria disso?
Hilda Hilst: É verdade. Mas tem também uns espanhóis e mexicanos que eu admiro muito. Como aquele autor de A morte de Artemio Cruz, como se chama?
Hilda Hilst: Como eu disse antes, isso não me importa mais. Eu não me interesso mais por isso. Se 39
em silêncio, o tempo todo. Eu levantava muito cedo para escrever, porque o silêncio era maior.
me lêem ou não, eu não tenho mais interesse em saber. Pode ser chato para os outros, mas eu não tenho mais motivação. Eu só quero, até morrer, morar na minha casa e receber os amigos. Eu não tenho nenhuma expectativa de nada. Não me interessa mais o mundo da Terra. Teve uma vez que o meu pai se comunicou comigo. Ele tinha acabado de morrer. Eu estava lendo um artigo sobre Kafka no jornal; quando pus a mão em cima do texto, fiquei dura. Eu pensei: “Será que alguém está querendo falar comigo?” Fechei os olhos e li: “Loucura”. Então falei: “É você, meu pai?” E comecei a conversar. Perguntei: “O que é que está acontecendo agora?” Ele falou: “Vida na Terra, experiência inútil e dolorosa”. Eu disse: “Pai, será que algum dia eu vou conseguir ser alguém na literatura, ser entendida por alguém?” Ele falou: “Matéria. Muito mais matéria”. Um diálogo mesmo. Eu disse: “E a alma continua louca, pai?” Ele falou: “Hipótese absurda”. Hipótese absurda. Eu fiquei deslumbrada com isso. Um dia, quando saí à tarde, vi meu pai na colina, perto da estrada, todo vestido de branco, com chapéu. Eu fiquei inteiramente branca.
JORGE COLI: O que é possível esperar de melhor num leitor?
Hilda Hilst: Nunca pensei no leitor. Eu não tenho nada a ver com o leitor. CADERNOS: Portanto, não esperava nada, ou não podia esperar mesmo nada dele?
Hilda Hilst: Eu não tenho nada a ver com os leitores. Não sei quem são, não sei. CADERNOS: Mas neste momento alguém pode estar lendo um livro seu. Isso não importa?
Hilda Hilst: Pode estar lendo, mas não precisa me conhecer, nem eu a ele. CADERNOS: Nunca ocorreu à senhora, na juventude, por exemplo, que poderia ser interessante conhecer os escritores de sua predileção?
TELÊ ANCONA LOPEZ: O que você me diz da administração do Cosmos, o seu Cosmos, na criação e invenção de palavras, nos nomes dados aos seres na ressurreição do Sagrado?
Hilda Hilst: Não. Eu só leio os escritores. CADERNOS: Na sua opinião, a figura do escritor é endeusada algumas vezes?
Hilda Hilst: Que importância tem o administrado quando o cara é o administrador?
Hilda Hilst: Isso também não. O contrário seria dizer que o escritor é um sujeito igual ao cara que põe tijolos? Eu não concordo com isso.
CADERNOS: E a música? Faz parte do seu processo de criação? Alguns de seus textos parecem se apropriar de certos procedimentos musicais. E estamos aqui há algumas horas ouvindo Mahler.
CADERNOS: Há quem pense assim, isto é, que a literatura não passa de um trabalho, como outro qualquer.
Hilda Hilst: E Mozart. Mas a música não faz parte do meu processo de criação.
Hilda Hilst: Eu não acho. E literatura não é distração, entretenimento. É uma coisa séria, que você vai adquirindo. É dificílimo.
CADERNOS: Mas não chega a ser uma aversão, como para João Cabral?
CADERNOS: Voltando à sua relação com o leitor. Ele nunca lhe interessou?
Hilda Hilst: Não, não. Eu gosto muito de sinfonias, todos os gêneros de Mozart, Mahler, os quartetos de Beethoven. Só que eu não recorro à música quando escrevo, quando escrevia. Eu escrevia
Hilda Hilst: Nunca. Na experiência com a pornografia eu achava que podia dar certo, porque 40
CADERNOS: Mas José Saramago vem de ganhar um Nobel.
ela era engraçada; achei que os leitores gostariam. Mas, segundo o Jaguar, eles odiaram minha pornografia. Foi o único momento em que esperei algo do leitor. É como eu já falei aqui: eu acho que fiz um trabalho deslumbrante, se entendem ou não, se leram ou não, eu não tenho nada a ver com isso.
Hilda Hilst: Mas isso é muito raro, né? Parece que daqui a 100 anos ninguém mais vai conhecer a língua portuguesa. Eu gosto do trabalho do Saramago, mas não entendo essa coisa da Academia Sueca.
CADERNOS: E quantas pessoas leram John Donne?
CADERNOS: De volta à sua despedida. O sentimento final é o do, digamos assim, “dever cumprido”?
Hilda Hilst: Ninguém leu John Donne.
Hilda Hilst: Dever cumprido. Eu fiz o que pude. Meu pai não pôde fazer isso, ficou louco. Eu pude. Minha mãe me contou que, quando eu nasci, ao saber que era uma menina, ele disse: “Que azar!” Eles, na verdade, se separaram porque minha mãe estava grávida. Ele não queria isso. Queria uma amante. Aí, minha mãe engravidou. Quando ele soube que era uma menina, falou daquele jeito. Uma palavra que me impressionou demais: azar. Aí eu quis mostrar que eu era deslumbrante.
CADERNOS: Nem por isso ele deixou de ser importante.
Hilda Hilst: Mas também não me interessa ser importante ou não, você entende? CADERNOS: Esta é a ratificação do desligamento de uma coisa à qual a sra. dedicou toda a sua vida. Qual o sentimento que a domina nessa saída?
Hilda Hilst: Talvez daqui a 100 anos alguém me leia. Mas eu não tenho esperança. Eu continuo vivendo porque tenho que continuar vivendo. Tenho medo de morrer. Tenho medo de dar um tiro na cabeça, tenho medo demais do tiro.
CADERNOS: No domínio dele, que era poeta.
Hilda Hilst: É. Mas às vezes até me vem uma coisa triste por eu ter conseguido fazer isso, aquilo que ele não fez.
CADERNOS: O suicídio, de fato, já lhe passou pela cabeça?
CADERNOS: Ele teria compreendido e apreciado o seu trabalho?
Hilda Hilst: Muitas vezes, mas como eu não tenho revólver, vou ter que comprar, vai ser uma maçada enorme. Eu sempre penso que, quando morrer, vou dizer: “Que maçada!”
Hilda Hilst: Nossa, completamente! CADERNOS: Mas aquela expressão dele ao saber do seu nascimento não ficou como um sentimento de rejeição?
CADERNOS: Voltando à sua, digamos, despedida. É uma saída amargurada? Neste caso, sua sugestão a um jovem que pretendesse iniciar-se na literatura seria simplesmente: “Desista”?
Hilda Hilst: Não, isso não. Eu às vezes penso que quando chegar em Marduk, um planeta que está encostado na Terra em n dimensões, onde estão fazendo transcomunicação, não sei se vou encontrar o papai com a mamãe. Eu queria tanto ficar com ele… Ele era lindo! Minha mãe adorava o meu pai. E eu também, entende?
Hilda Hilst: Não, não é uma saída amargurada. Eu não sinto nada de grave. Quanto ao jovem, é o que eu digo sempre: “Escreva em inglês. Português ninguém conhece”. 41
Casa do Sol, Campinas
G E O G R A F I A P E S S OA L
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ORIGINAIS/DESENHOS
“Não há silêncio bastante/Para o meu silêncio” Roteiro do silêncio
Entre 1967 e 1969, Hilda Hilst escreveu suas oito peças teatrais. Até hoje, elas foram pouco encenadas e apenas uma, O verdugo, foi publicada – o livro saiu em 1970, depois de o texto ter recebido, no ano anterior, o Prêmio Anchieta, da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Assim, a dramaturgia constitui a parte menos conhecida da obra da escritora – mais um fator no conjunto de motivos que ela enumera para justificar o seu abandono da literatura. Diante disso, os CADERNOS publicam aqui uma pequena amostra do teatro de Hilda: as primeiras páginas do datiloscrito de Auto da barca de Camiri. A revista do Instituto Moreira Salles teve acesso a este material graças à poeta, dramaturga e professora Renata Pallottini, que assina no presente número um ensaio dedicado às peças hilstianas. Ela, por sua vez, pôde ceder os originais aos
CADERNOS
após obter cópias do datiloscrito junto à ensaísta Elza Cunha de
Vincenzo, autora de Um teatro da mulher (1992). Iniciado em 1967 e concluído no ano seguinte, o Auto da barca de Camiri parte de um fato histórico – a morte do revolucionário argentino Ernesto “Che” Guevara, ocorrida na Bolívia – para construir, sem concessões, uma reflexão sobre sua época. A seção traz ainda dois desenhos feitos por Hilda Hilst, em 1971 e 1972, com nanquim e esferográfica. Embora não admita falar nas artes plásticas como uma “segunda paixão”, a escritora concorda que a pintura foi, em certo momento, um prazer criativo. “Hoje nem escrevo nada, nem pinto nada”, repete Hilda. De algum modo, portanto, as páginas seguintes desfazem o roteiro de silêncio que a ficcionista de Fluxo-Floema (1970) traçou para si mesma.
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ORIGINAIS
AUTO DA BARC A DE C AMIRI
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ORIGINAIS
AUTO DA BARC A DE C AMIRI
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ORIGINAIS
AUTO DA BARC A DE C AMIRI
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ORIGINAIS
AUTO DA BARC A DE C AMIRI
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ORIGINAIS
AUTO DA BARC A DE C AMIRI
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DESENHOS
SEM TÍTULO (nanquim, 31,0 x 21,5 cm)
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DESENHOS
SEM Tร TULO (esferogrรกfica azul, 16,0 x 11,5 cm)
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ENSAIOS
Da poesia Nelly Novaes Coelho
Por que me fiz poeta? Da morte. Odes mínimas
No início deste ano, marcado pelo apagar do milênio, a grande voz de Hilda Hilst voltou a nos falar. Desta vez, através de um feixe de poemas recolhidos no volume Do amor , cujo título já desvenda o tema-eixo, em torno do qual vem-se tecendo a obscura/luminosa poesia hilstiana. Neste novo livro, vemos sintetizada a paixão desmesurada com que a poeta se entregou, desde sempre, ao corpo-a-corpo com a Vida – luta gerada pela ânsia incontida de um eu em busca da fusão plena com o outro. Fusão fundamental para se descobrir por inteiro e, enfim, poder responder a interrogação basilar da existência humana: “Quem sou eu?” Por diversas que tenham sido as respostas dadas a essa interrogação pelo eu hilstiano, nesse meio século de busca, todas arraigam no Amor – sentimento abissal, através do qual o homem (em agonia ou júbilo) se sente religado ao mundo, ou melhor, ao Mistério profundo da Vida: “Ainda em desamor, tempo de amor será. Seu tempo e contratempo. Nascendo espesso como um arvoredo e como tudo que nasce, morrendo à medida que o tempo nos desgasta. Amor, o que renasce.”1
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Como toda grande poesia (a que é tecida por um eu interior centrado em si e ali buscando a porta de acesso ao Enigma da Vida), a de Hilda Hilst expressa em seu suceder as metamorfoses de nosso tempo. Ou melhor, algumas das interrogações mais radicais do pensamento contemporâneo: • uma, de natureza física (psíquico-erótica), centrada na Mulher, cujo eu, através da fusão amorosa com o outro, busca em si a verdadeira imagem feminina e seu possível novo lugar no mundo; e • outra, de natureza metafísica (filosófico-religiosa), centrada no alémaparências, ou melhor, no espaço-limiar entre o profano e o sagrado, tenta redescobrir o ser humano, as forças terrestres e a própria Morte, como elementos indissociáveis e integrantes do grande mistério da vida cósmica (Deus, o Absoluto, o Princípio primeiro…) Como sabemos, a grande poesia contemporânea vem sendo energizada por essas interrogações, que são vitais para o homem de hoje, vagante num mundo belo-horrível, que perdeu seu “centro sagrado” (a Palavra Revelada de Deus, negada pela Ciência), e com ele perdeu também o sentido último da vida e de sua presença no mundo. Na poesia (e ficção) de Hilda Hilst, essas interrogações radicais surgem, obviamente, de uma tríplice voz: a do ser humano, a da mulher e a da poeta. Sendo que é a esta última que cabe a tarefa nomeadora: a da palavra demiúrgica que cria o Real. Hilda Hilst assume lucidamente essa tarefa de poeta: “O caminho de dentro É um grande espaço-tempo […] Mensageiro das ilhas,/ Teus pés de pássaro, a mim é que procuram se caminhas. […] Áspero é o teu dia. E o meu também. / Inaugurar ares e ilhas / Para que o teu corpo se conheça / Sobre mim, mas é áspera / Minha boca móvel de poesia, / Áspera minha noite”2 Desde as primeiras horas (anos 50), o mistério da poesia e do amor foram os pólos imantados que atraíram a invenção de sua palavra. Mas o interrogar tal mistério vai-se alterando ou se ampliando em círculos cada vez mais largos, à medida que a poeta verticaliza e aprofunda a sondagem de sua palavra. Do
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interrogar atento e lírico (voltado para os seres e coisas), seus poemas vão radicalizando o interrogar e se concentrando mais no eu, no ser-que-interroga. Há uma diferença essencial entre o primeiro e o último interrogar: “a que vai do eu que se vê em distância, como que de fora, procurando se conhecer objetivamente, e a de um eu que se assume por dentro, força ou luz que existe e irrompe fulgurante. Assim, em seus inícios, invadida pelo tumulto interior do amor e da poesia e sentindo-se dividida ou dúplice, a poeta pergunta: “É meu este poema ou é de outra? / Sou eu esta mulher que anda comigo / e renova a minha fala e ao meu ouvido / Se não fala de amor, logo se cala? // Sou eu que a mim mesma me persigo / Ou é a mulher e a rosa que escondidas / (Para que seja eterno o meu castigo) / Lançam vozes na noite tão ouvidas?”3 Com a maturidade, assumindo-se na plenitude de ser mulher-poeta (aquela que está no princípio, sempre e sempre), HH encara com desassombro a última grande aventura da vida (a que virá com a Morte) e confirma sua “verdade” mais profunda: “Me cobrirão de estopa / Junco, palha. / Farão de minhas canções Um oco, anônima mortalha / E eu continuarei buscando O frêmito da palavra. / E continuarei / Ainda que os teus passos De cobalto/ Estrôncio / Patas hirtas / Devam me preceder. Em alguma parte / Monte, serrado, vastidão / E Nada. Eu estarei ali / Com minha canção de sal.”4 Vislumbrando, afinal, o eu obscuro/luminoso que é ela própria, mulherpoeta, sente que a resposta para os demais enigmas, que a vida lhe propõe, virá a partir da resposta que esse eu radical lhe der, desde que atento ao mundo em que lhe coube viver e reconstruir. Mas até essa maturidade, de que o recente Do amor é uma breve síntese, o caminho foi longo… A poesia hilstiana no contexto poético-cultural do século XX Roteiro do silêncio (1959) Seguindo os rastros dessa caminhada, destacamos, em sua poesia primeira, a presença do “silêncio” que se impunha aos poetas nos anos 50
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(período da Guerra Fria, quando parecia que já não havia mais nada a dizer ou que nada mais importava). O que não significa que se calaram. Na verdade, de mil modos, falaram sobre o não-falar ou sobre a inutilidade da fala. É o que Carlos Drummond (vindo de outros tempos, mas sempre sensível ao instanteem-trânsito) diz a Orfeu (in “Canto Órfico”): “Tua medida, o silêncio a cinge e quase a insculpe, / braços do não-saber. Ó fabuloso, / mudo paralítico surdo nato incógnito / na raiz da manhã que tarda, […] Integra-nos, Orfeu, noutra mais densa / atmosfera do verso antes do canto, / do verso universo, latejante / no primeiro silêncio,/ promessa de homem, contorno ainda improvável / de deuses a nascer”5 (grifos nossos). Sem ter nada de drummondiana, mas simplesmente sofrendo a pressão das mesmas forças, Hilda Hilst, em seus inícios, vai no encalço desse “verso antes do canto”, “latejante no primeiro silêncio, promessa de homem”. Em meio a muitas dúvidas e com uma nítida certeza, ela diz: “Não há silêncio bastante / para o meu silêncio. Nas prisões e nos conventos / Nas igrejas e na noite Não há silêncio bastante / Para o meu silêncio. […] O não dizer é o que inflama. / E a boca sem movimento É o que torna o pensamento / Lume / Cardume / Chama”6 É dessa chama que está iluminada a poesia de Roteiro do silêncio, em cujo título já se enunciava a atitude mais válida, naquele momento de caos e decepções profundas. Não era, porém, o silêncio total que se impunha, mas o do eu lírico, confessional, como o diz o título das cinco elegias que abrem o volume “É tempo de parar as confidências”: “Teus esgares / Teus gritos / Quem os entende?” E mais adiante, a resolução: “E foi assim que o poeta / Assombrado com as ausências / Resolveu: / Fazer parte da paisagem / E repensar convivências”. E desse repensar, vai surgindo o inventário da crise em curso: “Em vão a língua nos move / Trazendo à tona o segredo. Difícil é o escutar-se / E ao mesmo tempo escutar Rigores que vêm da terra / Lirismos que vêm do mar.”7
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Dividida entre o apelo do eu intimista, lírico, confessional, e o apelo do real-objetivo, onde a vida se decide, a poeta procura fugir da dor do saber e do pensar, seguindo o sugerido por Fernando Pessoa/Caeiro (o genial poeta português que nesses anos 50 começava a ser descoberto pela poesia brasileira): voltar-se para a natureza livre, para os animais, aspirando diluir-se no estágio anterior à consciência crítica que faz sofrer. Diz a poeta: “Não te espantes da vontade / Do poeta / Em transmudar-se: / Quero e queria ser boi / Ser flor / Ser paisagem.” Longe de ser mera fantasia bucólica, esse desejo de transmutação revela, em essência, a ânsia de retorno ao natural, ao simples, ao espontâneo, que o espírito crítico impede, ao homem pensante, de fruir com plenitude. Daí que, mais adiante, a poeta afirme querer apenas: “Ter olhos claros, ausentes / Sem o saber ser contente / De ser boi, ser flor, paisagem.” Mas evidentemente, a solução para o impasse em que se via o poeta, não estava ali, naquela simplicidade inconsciente. Mas em outra esfera, a do amor. “É tempo para dizer / Se prefiro o teu amor Àqueles, aos doces ares / Da minha campina em flor. […] Tu, bem o sei, me pressentes. / E mais ainda, me vês Tão perto do querer ser / Deste amor sempre contente.”8 É na essência camoniana do amor que vai ser buscada a solução de vida e poesia plenas. Em “Sonetos que não são”, afirma-se a mulher amante, mas ainda mediatizada pelo ideal amoroso clássico. Isto é, entre a possível circunstância humana desse amor vivido no real e a plenitude de sua realização, se interpunha o “filtro” amoroso, idealizado pela poesia, desde suas origens históricas (a Trovadoresca e Camões). Essa mediatização se revela já na forma poética escolhida: o soneto. Ao retomar/renovar essa estrutura poemática que, há séculos, vem sendo a privilegiada para dar voz ao canto amoroso, Hilda Hilst não só atende a um dos imperativos da poesia do momento (a volta às origens da literatura), como eleva o amor ali cantado ao alto nível de “valor absoluto” que ele possuía, quando essa forma poética foi criada por Petrarca e recriada por Camões. A seqüência dos “Sonetos que não são” e “Do amor contente muito descontente”, de clara tonalidade camoniana, expressa uma dupla ambigüidade de reações: a do ser que procura a libertação dos preconceitos castradores e, ao mesmo tempo, se sente frustrado pelo que deixou de ser, quando optou…
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“Aflição de ser eu e não ser outra / Aflição de não ser, amor, aquela Que muitas filhas te deu, casou donzela / E à noite se prepara e se adivinha Objeto de amor, atenta e bela / Aflição de não ser a grande ilha Que te retém e não te desespera. / (A noite como fera se avizinha). Aflição de ser água em meio à terra / E ter a face conturbada e móvel. E a um só tempo múltipla e imóvel / Não saber se se ausenta ou se te espera.”9 Em metáforas quase transparentes, aí fala a mulher dividida entre o desejo de ser a “esposa” (presença estável, refúgio, proteção, mãe-geradora-de-vida, que prolonga o amado no tempo) e o impulso amoroso de ser a “outra” (a mobilidade da paixão, a aventura existencial, a voragem do prazer, onde o eu como que explode em plenitude e, por instantes, o momento se identifica com a eternidade. Esse impulso de integração amorosa eu-outro encontra uma de suas mais puras expressões em seu camoniano Trovas de muito amor para um amado senhor (1959). A consciência terrestre e a experiência existencial Os títulos vão-se sucedendo (Ode fragmentária, 1961; Sete cantos do poeta para o anjo, 1962) e vai-se aprofundando na poética hilstiana a função mediadora (ou demiúrgica) da poesia, religando o homem-século XX (prisioneiro da civilização tecnicista) aos impulsos primitivos/naturais do ser, e despertando nele a consciência terrestre, que tem nas raízes o misticismo existencial de Rilke e o avassalante sentimento-de-mundo do grego Nikos Kazantzakis. A poesia de HH ilumina-se contra o pano de fundo da tortuosa/luminosa/efêmera vida terrena, que se pressente partícipe de algo incomensurável e eterno. Inicia-se uma nova experiência existencial que cabe à poesia nomear: a busca de Deus nas coisas terrestres. “Lenta será minha voz e sua longa canção Lentamente se adensam as águas Porque um todo de terra em mim se alarga […] A face do meu Deus iluminou-se E sendo Um só, é múltiplo Seu rosto.”10
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A multiplicidade na Unidade é um dos vetores da busca em que se empenha esta poesia. Fecundadas por essa agônica busca do conhecimento desse novo homem e desse novo Deus, as palavras da poeta se impregnam de enigmas: “Estou no centro escuro de todas as coisas / Mas a visão é larga Como um grito que se abrisse e abrangesse o mar.” ou ainda, “Nosso Deus era um Todo inalterável, mudo / E mesmo assim mantido. Nosso pranto / Continuadamente sem ouvido Porque não é missão da divindade / Testemunhar o pranto e o regozijo. O que esperais de um Deus? Ele espera dos homens que O mantenham vivo.”11 (grifos nossos) É nos rastros dessa paradoxal inversão (proposta por Kazantzakis) – a afirmação de que Deus precisa dos homens para manter-se vivo – que se vem desdobrando a poesia de HH, neste virar de século e de milênio. A experiência poética deixa-se penetrar cada vez mais fundo pela experiência existencial-religiosa. Curioso notar porém que, no limiar dessa nova experiência, houve sete anos de silêncio da poesia hilstiana. Em 67, a pequena recolha de “Exercícios para uma idéia” aponta para uma dupla exigência: a da poeta, procurando dar corpo à sua nova visão do homem partícipe da divindade e a do experimentalismo então vigente, que exigia dos criadores uma exacerbada preocupação com a destruição/construção formal. Daí os “exercícios” hilstianos, empenhados em um experimentalismo mais conceptual do que formal, acerca da idéia de Deus, dos homens e do Amado. Lirismo travado. Racionalismo que busca equilíbrio com o que transcende a Razão: “Se permitires / Traço nesta lousa / O que em mim se faz E não repousa: / Uma Idéia de Deus. […] E o mais fundo de mim / Me diz apenas: Canta, Porque à tua volta / É noite. O Ser descansa / Ousa.”12 A poeta atende ao apelo do eu-poético, e a partir daí sua ousadia assume outras dimensões. Sobrevêm sete anos de silêncio poético (67/74),
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durante os quais nascem a ficcionista e a dramaturga, – ambas em busca de uma nova linguagem ou uma nova forma mais adequada ao novo dizer. Nesse período, dá-se uma extraordinária transformação no ato criador hilstiano. É como se tivessem rompido as comportas de um dique e as águas se precipitassem livres em toda sua força selvagem. Entregando-se à invenção febril de uma linguagem metafórica (ou alegórica) forte, satírica e contundente, a ficcionista aprofunda sua sondagem do eu situado no mundo, em face do outro e do mistério cósmico/divino que o limita. Agora essa busca do autoconhecimento cava mais fundo. Rompe violentamente as exterioridades da vida cotidiana, para investigar o fundo do poço: o eu-desconhecido, que há em cada um de nós, à espera (ou com medo) de ser descoberto. Nessa produção ficcional ou teatral, HH rompe o círculo mágico de seu próprio eu, tal como vinha se manifestando em sua poesia, para lançar-se na voragem do eu-outro em face do enigma (da existência, da Morte, de Deus, da sexualidade, da finitude, da eternidade…). Poesia e erotismo Seu retorno à poesia se dá com Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974). Entre esta e a da primeira fase, há uma evidente distância: não propriamente de valor poético, mas de intensidade. Todos os temas, então cantados, voltam aqui com uma nova densidade. O erotismo é aqui o nervo central. É na evolução do conceito da sexualidade, presente em sua poesia inicial, para o erotismo desta última, que se expressa o problema da mulher em nossos tempos de mutação: ela se redescobrindo como algo essencial, por ser princípio, expansão e duração do homem no tempo. “Dentro do círculo / Faço-me extensa / Procuro o centro Me distendendo./ Túlio não sabe / Que o amor se move No seu de dentro / E me procura / Movente, móvil / No lá de fora.” (grifos nossos)13 Essa descoberta da plenitude sexual no “de dentro”, contraposta ao “lá de fora”, é, como sabemos, a nova ótica pela qual a sexualidade ou o erotismo
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vêm sendo vistos. No plano do pensamento ou das idéias, o instinto sexual já não corresponde apenas a uma função orgânica específica, independente das demais opções ou atos da existência cotidiana, mas sim a algo infinitamente mais vasto e profundo do que aquilo que se entende vulgarmente por função sexual. É nessa ordem de idéias que se inscreve o motivo polarizador da poesia hilstiana a partir de Júbilo, memória…: o Erotismo, no alto sentido filosófico do termo – a experiência de comunhão plena eu-outro que, partindo do corpo, atinge as raízes metafísicas do ser e o faz sentir-se participante da totalidade. "Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca Austera. Toma-me AGORA, / ANTES Antes que a carnadura se desfaça em sangue. […] Tempo do corpo este tempo, da fome Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento, Um sol de diamante alimentando o ventre, O leite da tua carne, a minha / Fugidia. E sobre nós este tempo futuro urdindo Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo. Te descobres vivo sob um jugo novo.”14 (grifos nossos) Como uma sacerdotisa a cumprir um ritual, a Mulher exorta o Homem à união, segura da verdade essencial da experiência amorosa que lhe oferece. Da primeira à última página, Júbilo, memória… é um chamamento erótico, na mais alta significação do termo. A partir de uma situação comum e das mais encontradiças desde as Cantigas de amigo medievais (a da amante que fala ao amado distante), essa poesia assume a dimensão de uma experiência-limite definitiva. Nela, há uma funda consciência do princípio feminino que se expressa no apelo feito a Túlio (o amado ausente): “Olha-me de novo. Porque esta noite Olhei-me a mim, como se tu me olhasses. E era como se a água / Desejasse / Escapar de sua casa que é o rio
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E deslizando apenas, nem tocar a margem. Te olhei. E há tanto tempo Entendo que sou terra. Há tanto tempo / Espero Que o teu corpo de água mais fraterno Se estenda sobre o meu.”15 (grifos nossos) Através dos símbolos água (princípio masculino, fecundador) e terra (elemento feminino a ser fecundado), denuncia-se nessa poesia a frustração do processo vital, em sua necessária continuidade, porque o amado se recusa à sua tarefa, “deslizando, nem tocar a margem”. Entretanto a mulher o espera, como terra que é, elemento humano/cósmico a ser fecundado para cumprir sua tarefa de continuadora da humanidade. Elemento fixo, durável refúgio e estímulo. Mas não só “mulher”. O eu-poético, sendo confluência de dois instintos, o de mulher e o de poeta, oscila entre a permanência da “terra” e a mutabilidade da “água”. Eros e Tanatos Amor e Morte, desde suas origens míticas, andam sempre essencialmente unidos. É em Da morte. Odes mínimas (1980) que a poeta se entrega a um desafiante diálogo com a Morte, enfrentada cara a cara, como a grande realidade que permanece tão misteriosa para os homens de hoje, como o era na origem dos tempos: “Te batizar de novo. / Te nomear num trançado de teias E ao invés de Morte / Te chamar Insana / Fulva / Feixe de flautas Calha / Candeia / Palma, por que não?”16 Diante do mistério que lhe é inerente, o que impede que ela seja pressentida nas mais variadas formas? Anulando toda a possível distância entre si mesma e a Morte, a poeta entra na intimidade dessa temerosa figura, revelandoa essencialmente participante da Vida: “Te sei. Em vida / Provei teu gosto. / Perdas, partidas Memória, pó / Com a boca viva provei / Teu gosto, teu sumo grosso Em vida, morte, te sei […] / Juntas. Tu e eu / Duas adagas
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Cortando o mesmo céu. / Dois cascos / Sofrendo as águas. E as mesmas perguntas.”17 Para além de sua beleza e magia poética, o significado vivo destas “odes mínimas” que falam da Morte é a intuição de estarmos próximos do tempo em que o sentido da sacralidade será recuperado. Até lá, restam-nos as centelhas dessa luz encoberta, que a poesia interroga e transmuta em palavras. “Ah, negra cavalinha / Flanco de acácias / Dobra-te para a montaria Porque me sei pesada / De perguntas, negras favas Entupindo-me a boca / E no bojo um todo adverso Uns adversos de nojo: / Que rumos? Que calmarias? Me levas pra qual desgosto? / Há luz? Há um deus que me espia? Vou vê-lo agora montada alma / Sobre as tuas patas? Tem rosto?”18 A poesia de Hilda Hilst, a partir dos anos 70/80 desliza gradativamente para uma densidade cada vez maior, no interrogar o além-das-aparências – da Morte ao Sagrado. A poesia hilstiana e os avessos do sagrado “Vem apenas de mim, ó Cara Escura / Este desejo de te tocar o espírito Ou és tu, precisante de mim e de minha carne Que incendeias o espaço e vens muleiro montado […] Sobre a minha anca viva?”19 Ao findar 1986, HH lançou Sobre a tua grande face e Com os meus olhos de cão e outras novelas – dois livros perturbadores (o primeiro, de poesia e o segundo, de ficção) que aprofundam as linhas de força que vêm dinamizando sua criação, principalmente a partir dos poemas Da morte. Odes mínimas. Como “linhas de força” referimo-nos à agônica/luminosa interrogação à Morte e ao Sagrado, em busca de novas respostas para o antigo Mistério das relações Homem/Deus que, desde a origem dos tempos, vêm desafiando o conhecimento humano:
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“Hoje te canto e depois no pó que hei de ser / Te cantarei de novo. E tantas vidas terei / Quantas me darás para o meu outra vez amanhecer Tentando te buscar. Porque vives de mim, Sem nome.” Escavando cada vez mais fundo no mistério do sagrado, procurando encontrá-lo em seus avessos, a poesia hilstiana destes últimos anos vem abrindo círculos e mais círculos em sua busca incansável de si própria, em relação ao Mistério: “Arquiteta de mim, me construo à imagem das tuas Casas E te adentras em carne e moradia. Queixumusa vou indo E queixoso te mostras, depois de te fartares Do meu jogo de engodos. E a cada noite voltas Numa simulação de dor. Paraíso do gozo.”20 Essa dupla problemática (a busca do eu e do sagrado) resulta na diluição de fronteiras entre Erotismo e Misticismo. Com a mesma avassaladora paixão com que a poeta se entregava ao “chamamento” do amado, ela agora desafia o Desejado, o verdadeiro Deus, ansiando por atingir o seu desvendamento essencial. Linguagem simbólica (como a de toda grande poesia), a de Hilda Hilst não é de fácil decodificação. Comunica-se de imediato com o leitor, pela grande carga de paixão e emoção que ela concentra, em imagens e ritmos, cuja beleza e fascínio dificilmente podem ser explicados racionalmente. Sua verdade maior, porém, pode ser pressentida através de certos índices, que revelam algumas das “afinidades eletivas” (como diria Goethe) patentes ou latentes em seu fluxo. Pensadores, ficcionistas, poetas, santos, filósofos, psicólogos, textos sagrados ou textos profanos, de épocas e origens as mais diversas, convivem no húmus do universo criado por Hilda Hilst. Cristo, Buda, a Cabala, Nietzsche, Fernando Pessoa, Sóror Juana Inés de la Cruz, Ernest Becker, Otto Rank, Rilke, Camões, Lorca, Kazantzakis… são alguns dos eleitos. Impossível detectarmos todos os fios que se mesclam com a sua poderosa potencialidade criadora; entretanto dentro da esfera metafísico-religiosa, uma presença se impõe – a do genial grego Kazantzakis e seu “niilismo heróico”, que dá voz a uma das grandes rupturas do nosso século: a que rompe a ligação Deus/Homem, ao roubar a origem divina do ser humano. No vazio cavado por essa ruptura, Kazantzakis se entrega a uma nova e insólita expe-
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riência do sagrado: Deus e Homem, descobertos como diferentes faces de um mesmo fenômeno – o “elã vital” que energiza o ser humano e o impulsiona para um contínua evolução, através de um obscuro e selvagem corpo-a-corpo. É esse novo sentir metafísico-religioso que irrompe na poesia hilstiana destes últimos anos: “Quisera dar nomes, muitos, a isso de mim Chagoso, triste, informe. […] Quisera dar o nome de Roxura, porque a ânsia Tem perecimento com esse desmesurado de mim / Que te procura. Mas vem vindo de ti um entremuro de sons e de cicios Como se eu mesma / Flutuasse, cativa, ofélica, sobre a tua Grande Face.”21 O novo sagrado se intui poderoso, temido/desejado e atraente como um abismo: “Escaldante, Obscura. Escaldante teu sopro Sobre o fosso fechado da garganta. […] viver em mim, Sem nome, Sutilíssimo amado, relincho do infinito, e vivo Porque sei de ti a tua forma, tua noite de ferrugem.” (grifos nossos)22 A poeta canta a paixão ambígua e avassaladora do sagrado (onde ecoa o demoníaco), tal como canta a paixão avassaladora do profano. Em alternâncias de lucidez e cegueira, o efêmero eu dialoga com o Outro – paradoxalmente sentido como perenidade e como ameaçador nada. No corpo-a-corpo desse diálogo, assoma a ânsia pelo encontro definitivo, onde Homem e Deus se reconheçam reciprocamente como uma só realidade. Poeta da estirpe dos visionários e dos incendiados pela Paixão do viver e do saber, Hilda Hilst é das mais altas vozes contemporâneas, que perscrutam o oculto. Sua criação se tece em busca do Sagrado, do Absoluto e do Amor – noções e vivências que, como sabemos, se perderam ou se deterioraram em nossos tempos-em-mutação mas, sem as quais, é bem possível que o ser humano jamais se revelará a si mesmo, em plenitude…
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“De ares e asas não percebo nada. Mas atravesso abismos e um vazio de avessos Para tocar a luz do teu começo. ........................ Em minhas muitas vidas hei de te perseguir. Em minhas sucessivas mortes hei de chamar este teu ser sem nome Ainda que por fadiga ou plenitude, destruas o poeta Destruindo o Homem.”23 Nelly Novaes Coelho nasceu em São Paulo. Formada em Letras pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (atual Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), da qual se tornou titular em 1985, foi professora também da Universidade Estadual Paulista (campus Marília). Aposentada compulsoriamente em 1992, passou a lecionar, na USP, como convidada, no setor de pós-graduação. Colaboradora de diversos órgãos da imprensa, recebeu vários prêmios, no Brasil e no exterior como o Esso de Reportagem, em 1988 (ao lado de Gabriel Priolli e João Alves das Neves) e o Bocage de Ensaio (1965), concedido pelo Ministério da Educação de Portugal. Publicou, entre outros, O ensino da literatura (São Paulo, FTD, 1966), A literatura infantil (São Paulo, Quíron, 1980; 7ª. ed. atualizada, São Paulo, Moderna, a sair em 2000), Dicionário crítico de literatura infantil/juvenil (São Paulo, Edusp, 1982) e A literatura feminina contemporânea (São Paulo, Siciliano, 1993). NOTAS 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23
Do amor. São Paulo, Edith Arnhold/Massao Ohno Editores, 1999, p. 26. “Trajetória poética do ser”. In: Poesia (1959-1967). São Paulo, Livraria Sal, 1967, p. 128. “Do amor contente e descontente”. In: Poesia (1959-1967), op. cit., p. 41. “Poema XXVI”. In: Da morte. Odes mínimas. São Paulo, Massao Ohno/ Roswitha Kempf Editores, 1980. “Canto órfico”. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Fazendeiro do ar & poesia de agora. Rio de Janeiro, José Olympio, 1955, p. 540. Roteiro do silêncio. São Paulo, Anhambi, 1959, p. 20. Idem, p. 18. Poesia (1959-1967), op. cit., p. 19. “Trovas de muito amor para um amado senhor”. In: Do amor, op. cit., p. 49. “Trajetória poética do ser”. In: Poesia (1959-1967), op. cit., p. 119. Poesia (1959-1967), op. cit., p. 124. Idem, p. 188. Júbilo, memória, noviciado da paixão. São Paulo, Massao Ohno Editor, 1974, p. 68. Idem, p. 51. Do amor, op. cit., p. 20. “Poema I”, in: Da morte. Odes mínimas, op. cit. “Poemas XXIX e XXX”, idem. “Poema XXVIII”, idem. Sobre tua grande face. São Paulo, Massao Ohno Editor. 1986, p. 19. Idem, p. 11. Idem, p. 23. Idem, p. 43. Idem, p. 39.
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Da ficção Leo Gilson Ribeiro
Uma estória deve ter mil faces “O unicórnio” (Fluxo-Floema)
Hilda Hilst, contemporaneamente, me parece ser a mais profunda estilista da literatura brasileira ou talvez mesmo da língua portuguesa. Dramaturga, suas peças de teatro não aderem a artifícios de cenários e abordam temas semelhantes aos da sua deslumbrante prosa: Deus, a solidariedade entre os seres humanos, o nojo, a humildade, a volúpia, a não diríamos religiosidade, porque se trata mais de um difuso misticismo panteísta, a miséria dos marginalizados por uma sociedade cruel, materialista e vulgar, o martírio, o mistério, o terror. Desde meu primeiro contato com ela, através de seus versos há 40 anos, e mais tarde, ao conhecer as suas Ficções, senti em seus textos uma vivacidade passional, radical, um desmesurado êxtase pela possibilidade do amor, uma tristeza que não faz alarde de si mas que, sem o saber, ecoa os poemas idealistas e belíssimos de Antero de Quental. No entanto, sem que se possa – nem longinquamente – falar de influência, há uma afinidade espiritual enraizada com os textos flamejantes de Samuel Beckett. Como ele, Hilda Hilst põe em dúvida a existência de Deus e oscila entre a suprema esperança de haver um significado maior e recôndito para a vida humana e um niilismo que de tudo descrê – e, por força disso, ergue blasfêmias contra Deus e injuria o que seriam impiedades divinas – para o caso de Deus existir –, no tocante às orações e súplicas dos seres humanos. Ambos os autores compartilham também de uma aliança corajosa entre as palavras chulas e termos de elevada beleza e de profunda meditação filosófica. Tudo sem arrogância – mas corajosamente. Se surgem em Beckett os abjetos rebotalhos
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que se transformam em personagens na velhice, na escritora brasileira a celebração do amor é a perda de quem recorda apenas de ter amado algum dia. Os dois jamais pertenceram a “claques” e “panelinhas” que se dizem literárias e por fim coincidem em que a literatura raramente leva ao enriquecimento financeiro, como se comprazia em dizer o autor de Esperando Godot : “Escrevo a fim de cada dia me tornar mais pobre”. Em Hilda Hilst, por sua vez, há o reconhecimento aterrador de que – como lhe ensinara a leitura do filósofo da Roma antiga Lucrécio – o Homem é um elemento negligível, sem o menor peso para a Natureza, que ignora a espécie humana e faz-se curvar a suas leis invioláveis a soberba vã humana. Em Beckett existe a trágica e farsesca busca de Deus, a confirmação do sofrimento que nos é imposto, inexoravelmente, pela própria condição humana; em Hilda Hilst, uma busca sincera, desesperada, do Deus esquivo e inalcançável, incognoscível. Talvez o escasso número de leitores que a autora paulista encontrou em seu País e em sua própria língua se deva à mediocridade da maioria acachapante da humanidade, que opta sempre pelo fácil, senão pelo kitsch, em vez do que lhe pareça críptico e enfadonho, porque de difícil decodificação. Ela não transformou seus livros em panfletos ideológicos: sem ser uma “alienada”, ao contrário, muito consciente, dolorosamente, da marginalização de grande parte dos brasileiros que sobrevivem, se for este o termo, vivendo ou morrendo em meio a lixões urbanos, Hilda Hilst tem fome de uma substância que, apaziguado o lado material, rememora nas trevas sua inanição de Deus. O teatro do absurdo de Eugène Ionesco, o teatro da crueldade de Beckett – como os críticos franceses os rotulam – espelham nos escritos de Hilda Hilst a mesma comoção humana, a mesma percepção de que os limites do homem se esboroam diante da velhice, do esquecimento, da solidão, da pobreza, como cacos de um sonho, resultado de uma força incompreensível e indiferente à condição humana: o Tempo. Ela se refere várias vezes à terminologia de religiões da Índia para recordar-nos de que estamos num círculo infinito, sem começo nem fim, sem possibilidade de “avanço” ilusório – a “samsara”. No entanto, percebe-se o quanto e quão honestamente a escritora, nossa contemporânea, se condói do sofrimento humano e que amor e admiração ilimitados ela dedica a uma Simone Weil, a um Maximilian Kolbe, que se opôs à morte, no campo de concentração nazista, entregando-se à morte lenta, a fim de salvar outro prisioneiro, previamente escolhido pela Gestapo para morrer executado. O sacrifício
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de si mesmo, como o exemplo destemido de Simone Weil, que compartilha a pobreza injusta que os operários franceses recebem como paga por seu trabalho estafante, o sacrifício de si mesmo, dizíamos, parece ser a forma mais nobre que os supremos seres humanos – São Francisco de Assis cuidando dos leprosos, Gandhi abolindo as desumanas castas do hinduísmo, Jesus pregando o amor ao próximo, Buda, a compaixão – encarnam. Hilda Hilst deseja um entrelaçamento da sabedoria mensurável – a ciência – com uma justiça transcendente, atemporal, quase que uma forma de salvação espiritual, se for permitida tal reflexão com relação a seus belíssimos e comoventes textos em prosa, em verso ou escritos para o palco, seguindo as teorias de Ernest Becker. Seria ousado também afirmar que há uma centelha de esperança em meio à podridão da carne, o esfarelamento da memória, a crueldade, a indiferença? Só a leitura árdua – mas de uma beleza e uma profundidade filosófica raras em nossa 1íngua – permite tatearmos em busca de uma resposta. Isto lembra aqueles confusos camponeses de Beckett, que se perdem nas extensões vazias, sentindo a falta kafkiana de uma fazenda que não se vê, de uma aldeia que não se vê. “Não há mais tempo suficiente e no entanto Deus sabe se há”, escreveu o irlandês em Mercier e Camier. As personagens de nomes propositalmente exóticos da prosa de Hilda Hilst iluminam o leitor como um clarão súbito em meio à noite escura. Abstraindo-nos de ridículas comparações ou medições que não cabem na literatura, desde o aparecimento de Guimarães Rosa no Brasil e Fernando Pessoa em Portugal, esse nosso idioma, que tem um registro de tons semelhante ao de um órgão barroco de coloridas vozes, essa língua inculta e abandonada à ignorância de seus tesouros, brilha com um esplendor singular quando se torna o instrumento sensível e matizado da nossa maior Literatura, brandido por Hilda Hilst. j
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É fundamental delinear duas áreas conflitantes da Literatura. Existem os grandes escritores e poetas – Shakespeare, Goethe, Dante, Cervantes, Tolstói, Dostoiévski, por exemplo. E há a literatura de entretenimento, que pode abranger desde excelentes peças de teatro, novelas policiais, livros de viagens e biografias, até se degradar quando tem um propósito meramente comercial – são os best-sellers sem estilo, de confecção primitiva e biodegradáveis.
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Há exagero, porém, em afirmar-se que Hilda Hilst e Guimarães Rosa, entre outros extraordinários autores de obras-primas formais e ficcionais, são os únicos ignorados pelo leitor brasileiro. Seria interessante saber: quantas pessoas, no Brasil, realmente leram Euclides da Cunha? E como e por que um autor como Paulo Coelho faz parte da lista de autores mais vendidos… na França e na Alemanha? Desfaz-se assim um preconceito, ao se verificar que, de acordo com um estudo da Unesco, o francês médio lê, por ano, não mais do que dois livros. São vários os fatores que dificultam a leitura de obras profundas, permanentes: o analfabetismo, a insuficiência de uma boa remuneração econômica; o fato de, por exemplo, em vários países islâmicos a mulher não tem acesso à educação. Mas há um outro fator sócio-cultural que desempenha um papel-chave também: o brasileiro é um povo gregário, sociável, adora fazer parte de grupos. É fácil identificar esse horror que o brasileiro tem à solidão. Basta responder à pergunta básica: onde o mesmo brasileiro médio se encontra mais à vontade, nos estádios de futebol, numa churrascaria com amigos ou isolado em um refúgio de silêncio e imerso numa leitura solitária? Por último não se pode esquecer que a leitura, a exemplo da peça radiofônica, exige uma participação do leitor, que constrói, individualmente, os acontecimentos que lhe são dados como tijolos, pelo autor ou autora do livro que ele se propôs a ler. Claro que estou falando de livros de ficção (o que inclui até uma biografia) e não a obras que não sejam criação, ou recriação individual de um espaço, de personagens, de um enredo ou da ausência dele. Conseqüentemente, a Grande Literatura – Proust, Eça de Queiroz, Beckett, Galdós entre outros – estabelece uma hierarquia e só é acessível a uma “casta”, que se mostra disposta a decifrar a linguagem mais complexa de um autor que focaliza temas abissais, o que demanda a cooperação do intelecto, da fantasia, da curiosidade, numa verdadeira obra aberta. Ora, se atualmente, substituindo a cultura francesa, que até o início da Segunda Guerra Mundial constituía influência ímpar para a nossa elite cultural, a hegemonia norteamericana atual em todos os campos (da informática à televisão, da língua ao cinema) confirma, se examinarmos a vida cultural norte-americana, essa teoria um tanto aristocrática do conhecimento da Grande Literatura. Pois mesmo no âmbito dos superiores romancistas norte-americanos é diminuto, nos
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Estados Unidos, o número de leitores de gênios complexos como os clássicos William Faulkner e Henry James, para citar apenas dois nomes. A massa lê o que as editoras carimbam como pulp fiction, material escrito de ínfima qualidade, boa para se fazer pasta de papel, na falta de valor intrínseco literário: Kurt Vonnegut, Sidney Sheldon, Stephen King e quejandos enchem as estantes das casas e das livrarias dos EUA. A Rússia é tida, justamente, como um país onde as pessoas lêem no metrô, nas filas, nos estádios de futebol, em que os poetas lêem suas criações. A ponto de Boris Pasternak, ao interromper a leitura de seus poemas, diante de milhares de pessoas num estádio de futebol, abaixar-se para pegar uma folha de papel que o vento derrubara acidentalmente e ouvir o público ali reunido… continuar o poema do ponto em que fora interrompido. Na Rússia, Aleksander Soljinitsin é hoje desprezado por um número majoritário de leitores, sob o pretexto de que “não queremos mais saber de Gulags, campos de concentração, nem nada que se refira ao terror da ex-União Soviética, o que passou, passou, hoje é história, a URSS acabou e nos preocupa hoje a Mãe Rússia”. Por último, não se pode deixar de detectar a metamorfose do panem et circenses – que os antigos romanos distribuíam ao populacho no Coliseu – em sex, entertainment and sports da mídia norte-americana, o que ajuda as massas a não pensarem por si próprias. É um saldo acabrunhante: quer dizer que a leitura foi vencida pela mediocridade, pela indolência? Há o que Roland Barthes chama de casta de connaisseurs, uma elite cultural, que não se restringe apenas às universidades: quantos leitores anônimos preferem não sacrificar o livro (mesmo comprado em sebos) na sua lista de cortes em seu orçamento caseiro? Hilda Hilst, como grande escritora, só poderá ser apreendida por meio da interlocução com seu leitor, com aquele diálogo que se estabelece entre quem escreve e quem lê. Acresce dizer que ela escreve baseada em premissas filosóficas, religiosas, de alta erudição. Mas seus livros não transmitem mensagem alguma de otimismo, ao contrário duvidam se há limites para a ferocidade do homem para com seu semelhante. Ninguém extrai auto-ajuda edificante de seus livros. Barthes apropriadamente lembrou existir “le plaisir de lire” (o prazer de ler). Sem esquecer, reiteradamente, que a leitura é um código, é uma lin-
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guagem. Sem a consciência dessa característica, inseparável da leitura de grandes textos de literatura, eles nos parecerão tão indecifráveis quanto hieróglifos ou o alfabeto cirílico. j
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Este longo intróito não justifica, mas tenta explicar as múltiplas razões pelas quais Hilda Hilst é, relativamente, pouco lida entre nós. Mas, por acaso, são mais lidos os barrocos Padre Vieira e Gregório de Matos Guerra? Com exceção da peça teatral Esperando Godot, Beckett continua praticamente desconhecido. Uma obra dificílima como More pricks than kicks, com suas tortuosas e obscenas alusões a Shakespeare, seu estilo inimitável, a tragicidade do destino humano, segue conhecida apenas por escassíssimos leitores – e isto, não só nos países de língua inglesa. O mesmo se pode dizer da série bilíngüe, em inglês e francês, que se compõe dos romances Molly, Malone morre e O inominável. Eles continuam tão obscuros quanto o Finnegans’ wake, último romance de James Joyce, para o qual há até cursos de um ou dois semestres nas universidades dos EUA e de outros países. Não por acaso, Beckett foi secretário de Joyce. Todos estes livros e autores são “náufragos eruditos” e Hilda Hilst dificilmente terá sucesso de vendas ou um grande número de leitores – a não ser quando escreve ingênua pornografia; suas obras nesta linha tiveram êxito e encontraram acolhida até na editora francesa Gallimard. Na verdade, o leitor médio estaca ao tentar ler um texto que exige conhecimentos filosóficos tão extensos e deparar, de chofre, com uma citação de Plotino (205 a 270 d.C.), um dos máximos expoentes do neoplatonismo do pensamento pagão grego. Além da riqueza de referências a autores tão pouco conhecidos como Ernest Becker, há a dificuldade de estilo, há os neologismos de Hilda Hilst – “sconbussolar”, do italiano sconbussolare – além da mescla proposital de formas orais, dialetais, do linguajar caipira do interior de São Paulo com o português culto, muitas vezes derivado de termos clássicos da língua, de séculos anteriores. Em Hilda Hilst não há impostura nem posturas radicais de nacionalismo, de ideologias políticas, de seitas religiosas. Ela mesma assinalou, num depoimento
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para este ensaísta, diante de sua velha máquina Olivetti, o que pensa ao escrever e quais são os conceitos que a norteiam (as perguntas foram omitidas): “Os conceitos de tempo, de deterioração, morte e finitude são veículos, agentes da angústia para o ser humano. Meu trabalho tenta perceber o que passa, o que acontece no homem naquela porção que tem a ver com suas raízes mais profundas. Todo exterior é perecível, só a tentativa humana de relação com o infinito é que é permanência. Registrar o possível eterno: minhas personagens tentam se dizer no mais difícil de ser verbalizado, pois tentam tocar na extremidade de uma corda cuja outra extremidade está presa a uma forma, essa, sim, imperecível: o que me interessa são as relações do homem com isso, esse eterno ser/estar. Pergunto-me se haveria reais conseqüências benéficas através de um processo de autoconhecimento. Há uma possibilidade real de destruição do próprio indivíduo se seu autoconhecimento se faz em níveis de extrema lucidez. Haverá força suficiente no homem para uma fotografia, um holograma de si mesmo? Koestler, Reich, Becker tratam desse assunto. As pessoas temem as suas potencialidades, há situações de possível felicidade que podem ser insuportáveis. Como esclarece Ernest Becker: ‘O que exatamente significaria neste mundo ser, inteiramente, desreprimido, viver plenamente uma expansão física e psíquica? Só pode querer dizer renascer como louco’. Há leitores que acham, por exemplo, que o meu texto tem uma sintomologia esquizofrênica, do grego antigo schiz – quebrado, partido – e phrenós – alma, inteligência, espírito, coração, diafragma. Se você compreende a real condição do homem, isso talvez te leve à morte ou à loucura. Foi isso que compreendi, portanto não estou mais certa das propostas do possível conhecimento de si mesmo. Daí então talvez erigirmos diante de nós mesmos um escudo, a viseira, a couraça: talvez seja a possibilidade de continuarmos vivos, ao lado da ilusão mais tentadora – o amor. O livro mais importante desta década é para mim o livro-chave de Ernest Becker, A negação da morte, a síntese de algumas verdades sobre o homem e sobre o comportamento humano”. Envolta por uma vasta biblioteca que abarca Bataille, Beckett, Jung e Kafka, entre outros estudiosos profundos da condição humana, Hilda Hilst mora sozinha numa fazenda que foi de sua mãe, a 11 quilômetros de Campinas. Veste-se com uma espécie de sári, feita com os panos que já serviram para limpar
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máquinas de uma indústria próxima e mantêm desenhos involuntários de batik extremamente sutis. Chegar à Casa do Sol, perto de Mogi Mirim, é ser recebido por dezenas de cachorros vira-latas que ela adora, mima e recolhe das ruas. “O olhar deles é eloqüente, fala, não acha?”, pergunta. Nas paredes do salão principal as fotos da mãe, Bedecilda Vaz Cardoso, e do pai, o culto e inteligente Apolonio de Almeida Prado Hilst (dos Almeida Prado, de Jaú, interior do Estado de São Paulo), que ela venera desde sempre. Apolonio teve o infortúnio de enlouquecer ainda moço e não voltar à lucidez durante os 30 anos de vida que lhe sobrariam. Hilst, como se vê, lhe veio por parte do pai, descendente de uma família da Alsácia, entre a Alemanha e a França, e sua raiz etimológica é hülse, forma dialetal de invólucro, estojo. Como ela me declarou numa entrevista1, tinha 33 anos e se formara em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco, em São Paulo, quando subitamente abandonou o burburinho da grande cidade, que até hoje a apavora, voltou as costas para uma vida mundana, elegante, trepidante. Esclareceu: “No Extremo Oriente chamam de satori essa fulminante iluminação interior. O satori é uma compreensão espiritual do valor da vida, não uma apreensão intelectual, racional, de nossos objetivos durante a nossa existência.” Essa iluminação interior repentina a fez captar a irreversibilidade da verdade enunciada pelo filósofo da Roma antiga, Lucrécio, há 2.000 anos: a natureza não leva absolutamente em conta o ser humano, suas preces, seus desejos, suas esperanças. Durante certo período de tempo, Deus lhe pareceu como o Baal de Brecht, monstruoso, sádico. “Por que” – indaga – “Deus permite que o crocodilo do Nilo durma de boca aberta, deixando assim que vorazes ratazanas entrem por sua bocarra e o devorem por dentro estraçalhando suas entranhas? Estaria embutido no código genético humano a crueldade do homem para com seus semelhantes e para com todos os animais em sua devastação suicida e assassina do meio ambiente, das florestas, semeando desertos, extinguindo a vida no mar Mediterrâneo e tornando a água um bem disputado até a morte por tribos e nações inteiras?” 2 De um ponto de vista semelhante ao da grande escritora contemporânea Doris Lessing, Hilda Hilst também indagava a si mesma se a História não tinha sentido em seu fúnebre desfile de guerras, massacres, inquisições, discriminação dos judeus, dos negros, dos índios, dos homossexuais, em guerra aberta contra tudo que fosse “diferente”. Como explicar que Jesus Cristo e Gandhi pregaram a
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mansuetude, a paz, o amor ao próximo e foram assassinados? Por que uma figura como São Francisco de Assis não instaurara uma fé na humanidade capaz de levá-la ao amor e sempre apenas rumo ao egoísmo e à barbárie? E previa um final apocalíptico para a espécie humana porque o homem perdera sua alma. Com espanto de todos os seus amigos ela surgiu, num domingo longínquo, no programa Fantástico, da TV Globo, relatando suas experiências consideradas inexplicáveis pelo físico, seu amigo na época, César Lattes. Vozes captadas por seu aparelho de rádio comum surgiam quando o aparelho estava sintonizado entre uma emissora e outra. Ela reproduzia a experiência do pintor sueco Friedrich Jurgenson que, no norte de seu país, isolado de todos, no meio de uma floresta, começara a captar vozes no próprio idioma, em alemão, em inglês. Para a escritora brasileira as inexplicáveis vozes a chamavam pelo nome e no final perguntavam, nitidamente: “E se Deus fosse o amor?” Foi uma fase de escárnio de muitas pessoas que perguntavam: “A Hilda Hilst virou bruxa? Enlouqueceu? Ou quer granjear fama exibindo-se na televisão?” Foi quando a própria visão do mundo da autora mudou: “Eu senti que se os próprios grandes cientistas se mostravam incapazes de definir o que era matéria e antimatéria e Heisenberg admitia a imponderabilidade de tudo, era legítimo então abandonarmos o materialismo e não nos contentarmos em eliminar a pobreza, a fome, a miséria – era imperativo também lutarmos para a abolição de todas as guerras, varrer da mente humana o ódio, a violência, o fanatismo, a sede de ganância e poder para atingirmos uma justiça planetária, uma liberdade planetária, uma paz eqüânime planetária.” 3 Por mais que um crítico queira, com os recursos de que dispõe, esclarecer a criação literária que admira, só o pensamento de quem escreve, neste caso o da esplêndida autora paulista, delineia os seus objetivos e seus pendores mais agudamente. Embora sejam consideradas “entrevistas”, a amizade, a afeição e a admiração intensa que sempre senti por Hilda Hilst transformaram nossos diálogos gravados em um aprofundamento das intenções da escritora de A obscena Senhora D. j
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É praticamente impossível deslindar, analisar fragmentariamente o universo riquíssimo de Hilda Hilst. Não só a diversidade de gêneros – as ficções em prosa, o teatro, os poemas – não se presta a autópsias acadêmicas e sempre incom-
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pletas: até agora, felizmente, não cerebralizaram de maneira espúria sua criação através de “leituras” arquidoutas, com as muletas da lingüística, nem conseguiram “provar” nenhuma tese preestabelecida para documentar que o que ela escreve tinha que ser isto ou aquilo, segundo tais hipóteses geralmente pedantes e apriorísticas. Mas é necessário que o leitor tenha apenas uma noção dos textos que vai ler. Para o leitor que pouco sabe de literatura, será talvez um mundo fechado, críptico. Que poderá avassalá-lo ou levá-lo a abandonar a leitura, precocemente cansado de decifrar aquilo que lhe parece apenas “coisa difícil”. Eu tomaria “Floema”, texto incluído em Fluxo-Floema 4, como a primeira experiência, sabendo dos ardis que qualquer interpretação acarreta involuntariamente. O nome Koyo nós associamos logo ao Oriente, ao não-usual, a fuga à banalidade. Escreve Hilda (mantenho as grafias originais): “Koyo, emudeci. Vestíbulo do nada. Até… onde está a lacuna. Vê, apalpa. A fronte. Chega até o osso. Depois a matéria quente, o vivo, Pega os instrumentos, a faca, e abre” (p. 169). A faca será um instrumento de conhecimento de Deus interiorizado no fundo do corpo humano? Trata-se de um ritual cruel e macabro? Logo se pode intuir um segredo assustador: quem manda cortar o corpo com a faca será uma forma de Deus. Prossegue o diálogo, que lembra em muitos trechos o teatro Nô japonês: “Tenho o comprimento da minha casa, não hei de crescer mais. Não tenho entendimento com os vivos, sempre soube dos mortos ou sei da tua sombra, nunca sei de ti, dêsse que come e anda, dêsse que diz que é dor. Koyo, o pórtico vedado, nada sei, NADANADA do homem, se estás à minha frente nem te vejo, melhor, só sei de ti porque subiste na minha unha e levantei o pé, és assim mesmo?” (p.170) Esse estranhamento entre o limitado humano e o amorfo, invisível, inapreensível Ser se faz através de um monólogo e depois outro. Haydum, o solitário indecifrável, descreve a sua solidão:
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“Koyo, descansei, mas no descanso também sofro dessa angústia de ser, e no escuro uma noite ME PENSEI. E vi matéria vasta, e quando digo matéria já te penso pensando na matéria em que pensas. Não é como tu pensas. Tive certeza de que um outro igual a mim, um outro pleno, se faria ao meu lado (…). Afunda com mais fôrça, levanta acima da cabeça o teu punhal, golpeia muitas vêzes. Desde o início te falo emudeci, e nada me propões. Qual é o pé onde estás? Ou apenas te espichaste?” (p. 171) O que devemos, tateando, admitir? Que Haydum é Deus? Que AO PENSAR EM SI MESMO imaginou que outro Deus, tão pleno quanto ele, viria ficar a seu lado? Será o Deus da Bíblia, do Antigo Testamento, cismando sozinho sobre a sua própria solidão depois de descansar após ter criado a luz, a água, a terra, os seres vivos? O tamanho descomunal desse Ser desconhecido, que fala, simboliza a distância que não pode ser medida entre Deus e o Homem? “Sou teu nervo. Sou apenas teu nervo. Com êle, toco o infinito. Não sei da garganta. Fica ao redor de ti? Apenas canta? Me louva? Então come de mim, me comendo me sabes. Não medita. Suga. Vai até a seiva, até a sutileza (…). Abre um caminho, abre outro, tenta, eu disse seiva sim, eu disse suga, eu disse come de mim. Ainda me escutas? Disseste PALAVRA? Cada vez mais, menos te entendo (…) agora tu dizes que alguns se devoram? Comem de si mesmos? Se são iguais devem afastarse, devem procurar aquêles do outro lado, conviver com o que tu chamas AMARGO, APARÊNCIA. Estilhaço do todo, isso que me perguntas, fragmento do nada. Também busco.” (p. 172) A incompreensão é mútua. O que significam as inúteis palavras? Que conhecimento Haydum terá da experiência que Koyo depreendeu da vida, que é amarga e nela tudo é apenas mera aparência? Ou, linhas adiante, o que julgamos ser o ser humano ensina a Haydum coisas que ele desconhece? “Sim, Koyo, aprendemos juntos, é a primeira vez que sou chamado e entendo.” (p. 173)
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A mudança de tipo de letra denota talvez que agora fala Koyo. Ele por sua vez descreve o seu mundo, a variedade das cores e faz uma brincadeira, fingindo que se engana ao ignorar as abóboras, em vez dos homens, cuja maior parte não olha, “a maior parte das abóboras, quero dizer dos homens que fizeste, não vê, ôlho estufado, cego.” (p. 175) Mesmo os filhos de Koyo, as crianças, são mencionadas: “Te falei das minhas crianças que se espelham no teu ôlho, dia a dia me perseguem dizendo: pai, o grande ôlho espelhou nosso rabo, temos a côr da víscera, somos crus, abaixamos em vão nossas cabeças, tu disseste, pai, que a cabeça dos homens é antena, antena esfaimada de futuro, tu disseste que AQUÊLE GRANDE nos vê, assim como nos vemos, e só vemos o rabo, pai, a víscera, a crueza, não vemos a cabeça”. (p. 175) Com seus sentidos e sua compreensão limitada pela própria limitação intrínseca da condição humana, nem as crianças “vêem” Deus, que as vigia. Deus seria, de acordo com os princípios fundamentais do hinduísmo, aquele que não compartilha com os humanos nenhum de seus atributos? À fortuita semelhança com o célebre conto de Guimarães Rosa “A terceira margem do rio” junta-se um alheamento entre o místico que se aparta da família e da vida de todos os dias: “Até os meus filhos me olham como os outros. Estaqueiam nas quinas, o dente branco à mostra, o riso sempre. Falam assim os filhosoutros: tínhamos um pai um dia, agora um rasto, nem come o que a mãe põe à mesa, fala em fome, nem nos olha, caminha como a hiena (…). É todo fogo o ôlho, sabes, eu penso que se faz de doido, afinal temos tudo, a casa, a mãe amena, o pato do domingo”. (p. 177) O pai, do conto de Guimarães Rosa, a tida como louca na narrativa A obscena Senhora D, os personagens enlouquecidos por Deus, os místicos radicais como que entram num estado em que a matéria, os hábitos familiares, sempre repetidos, a fartura material, nada mais significam, em contato com essa renhida
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Luta-Busca com o Maior. Tendo ultrapassado o estado “normal”, Koyo se vê agora rodeado de uma paliçada em torno de si. Quem a terá construído? A população enraivecida e temerosa das “alucinações” de Koyo? Ou Haydum? Ou ele mesmo? Ou a família, para se vingar dele – que a abandonou – ou por temor de sua “loucura de Deus”? “Olho de frente as paliçadas ao meu redor (…), existem apenas para me cercar? (…) Não sei se sou mais livre agora, paliçadas ao redor, ou se andando sôbre a paliçada-ponte sou mais feixo. NADANADA de mim, cada vez menos, desço pelo pau-de-sebo, os outros estão lá, estão aqui, finjo que não os conheço, o corpo-filho-outro que me vê, cospe com nojo, o pescoço nodoso é esfôrço e fúria, estende a língua, grita: velho, Koyo, a corda não foi feita só pra laçar o lôbo, nem pra estrangular os porcos, a corda pode ser usada para te laçar, ou pensas que vais ficar a vida inteira com essa lama no corpo, atirando vergonha sôbre a casa?” (p. 181) Koyo tornou-se motivo de caçoada no pequeno povoado: “Morrem de rir, eu sei, os outros. Estufam as barrigas: lá está Koyo, rodeou-se todo de paus de sebo, quem é que sobe para alimentá-lo?” (p. 179) O silêncio absoluto é a resposta que Koyo recebe à sua indagação sobre “A ESSÊNCIA DA SUBSTÂNCIA, HAYDUM? O quê? Isso mesmo. E a essência da substância, Haydum?” (p. 178) Esta imolação de Koyo diante da Mudez do Desconhecido tinge o texto de um choque, de luta entre Koyo e Haydum, até as palavras finais de sua derrota: “CAMINHO, CAMINHO, os ossos à mostra. Haydum, um gôzo não me tiras: NADANADA de mim quando me tomares, nem os ossos. Estou novamente no centro, as paliçadas ao redor, esta casa-parede avança, vai me comprimindo. Porco-Haydum: tentei.” (p. 186)
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É claro que algumas linhas pinçadas deste belíssimo e comovente “Floema” não bastam para dar uma idéia da transcendência desta ficção, com seu panorama vivo, visual da extensão de um filme japonês, fora das elucubrações cartesianas do pensamento ocidental. O misticismo na ótica de Hilda Hilst é sempre o caminho mais áspero, mais árduo, aparentemente misterioso, fechado ao entendimento, mas que exige a construção do texto na cumplicidade de quem lê as frases e o pensamento de quem escreveu, pois toda obra é, por sua própria definição, uma obra-em-aberto, uma obra esboçada e que o ledor complementará conforme sua individual sensibilidade e imaginação. A volúpia, a defloração de uma menina por um padre lascivo e hipócrita em “Matamoros”, texto que integra o volume Tu não te moves de ti 5, também atingem um paroxismo inaudito: “…mexia tudo muito, tanto, que a mãe chamou um homem para que fizesse rezas sobre mim, disse a mãe a ele que a menina sofria um tocar pegajoso, que os dedos afundavam-se em tudo o que viam e de mãos amarradas, o homem grande me levou ao quarto, sim, amarrei a mão da menina para que não empreste sujidade à vossa santidade, a mãe dizia, para que não lhe tire o perfume espelhado da batina, me deitaram no catre e o homem disse à mãe que sozinho comigo lhe deixasse e dessa vez fui largamente tocada, os dedos compridos inteiros se molhavam, ficou nu sobre mim, entornou-me de costas, eu sentia um divino molhado sobre as nádegas, gritava, o homem rugia à minha mãe do outro lado: não se importe senhora, são demônios azuis que se incorporam. Depois me tirou o barbante das mãozinhas me fazendo sugar o sumo santo e segurei um túrgido tão grande que os dedos à sua volta fechar-se não podiam, pude tocar demorada, os côncavos das mãos avermelharam, depois meus dedinhos inteiros penetraram na boca do homem e ele os chupava em gozo como se chupa o carnudo das uvas. Oito anos apenas me faziam a idade.” (p. 53) O misticismo alijado da sociedade humana, a libido avassaladora, as alegrias e as desditas do amor fruído e perdido se aliam, nos últimos textos, à degenerescência inelutável do envelhecimento. Como no primeiro dos dois textos sobre “Agda”, de Qadós 6, do qual destacamos o seguinte trecho:
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“Guarda-te Agda, é tempo de guardar, o fruto dentro da mão, espia apenas, como poderás tocar com a tua mão amarela esse que diz que te ama, esse tênue, Agda, começa o de sempre, cuida dos porcos, limpa o pátio, põe água nos cactus, examina as avencas, os antúrios, lenta lenta caminha, como estás velha há tempos, e tanto nessa manhã. Lembra da tua mãe quase no fim dizendo não suportarás, minha filha, tu que te cuidas tanto, o creme de laranja para o rosto, o outro para as mãos, o verde claro para o corpo e a cinza do fogão para clarear os dentes, filha não suportarás é melhor morreres Agora agora a vida ao redor de ti, limpa, limpa, me olha, e sobretudo não ames, NUNCA MAIS, hás de ter tanta vergonha, se alguém te toca já sabes do triste da tua carnação, tudo baço baço, e as mãos, olha as mãos, chama-se a isso ceratose, filha, é de velhice, primeiro a mancha, depois uma crosta nada espessa, pensas vai passar, o médico sorri, diz começa na meia idade senhora é o tempo, a senhora entende? Sorris. O tempo? Sim, esse que ninguém vê, esse espichado, gosma, cada vez mais perto da transparência… Nunca mais, te disseram. Ah sim vou limpar o pátio, vou pôr água no cactus, ai sim meu Deus é preciso esquecer o tato, o adorno, as argolas de ouro, é preciso esquecer, esfaqueia a memória, não, nunca sentiste nada e muito menos agora, nada sentes, não, não sinto nada… Agora será sempre o abismo, espio lá no fundo, o que há no fundo? Securas, tudo consumado. Nunca mais. Nunca mais… Agda eu mesma saciada, dobrando-me, cada vez mais o abismo, cada vez mais a terra, depois de tudo a vergonha, é sim, vergonha, ele dirá aos amigos a velha gania nas minhas mãos, a velha amarela estertorava até com a ponta dos meus dedos, dedos tua mão meu amor, não é preciso tua mão sobre o meu todo baço, tua mão ensolarada sobre o meu corpo de sombra, eu raiz avançando no debaixo da terra, raiz-corpo-carne, coisa que se desmancha… NUNCA MAIS deverei ser tocada…” (p. 51) O erudito e sensível crítico Anatol Rosenfeld foi o primeiro a destacar a unicidade da criação soberba de Hilda Hilst em nível mundial. É raríssimo um grande poeta ser um profundo dramaturgo e um admirável
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escritor de prosa. O “caminho para Damasco” paulino que transmudou Hilda Hilst e a levou para longe da metrópole, para o semiclaustro da fazenda solitária, se deu com seu encontro com Kazantzakis, o grande escritor grego contemporâneo. Nas estantes de sua casa pode-se ver sem dificuldade os três autores que mais de perto a tocaram: Beckett, Kafka, Camus. Hilda Hilst quer a totalidade, seu cosmos pessoal e literário abrange, às vezes na mesma linha, a escatologia, derivada do grego skatologos, ou seja: a doutrina sobre a consumação do tempo e da história e também o tratado sobre os fins últimos do Homem e escato logos : o tratado de excrementos, coprologia. Brotam visões de Bosch de suas páginas, retalhos de paisagens do interior inóspito, rude, caipira, do Brasil analfabeto, ou cenas cinematográficas de Bergman, de Tarkóvski, de Kurosawa. Há mais de 40 anos que ela não pára de escrever, ignorada pela chamada “grande crítica” brasileira, não difundida em Portugal nem em paí ses de língua espanhola da América Latina, nem mesmo na Alemanha, que elevou aos mais altos píncaros de elogios as obras de Guimarães Rosa e de Euclides da Cunha. Devido às muitas dezenas de ficções que se espalham por cerca de 30 livros, de poemas, de peças, de prosa, seria impossível nos determos mais do que em alguns momentos fulcrais, como fizemos, dessa que é, a meu ver, a maior escritora em língua portuguesa, que se deleita não só com Fernando Pessoa mas também com a lírica de Marly de Oliveira, Cecília Meireles e com a inventividade dos vocábulos de Jorge de Lima. Assim, para que esta breve reflexão não se alongue mais, valeria lembrar que os contos intitulados “Teologia natural” e “Vicioso Kadek”, de Ficções (1977), inovaram a narrativa curta na nossa língua, nada havendo dos dois lados do Atlântico que se lhe compare, que eu saiba. Para os leitores sedentos de sua elegíaca ou gozosa poesia, deixei para o fim apenas um único poema. Friso que não tive aqui a desmesurada ambição de pretensiosamente querer o que me ultrapassa: ser o escoliasta, o comentador, o explicador de Hilda Hilst. Eis o poema, com o vivo desejo de que a grandeza múltipla de Hilda se espalhe pelo Brasil e pelo mundo afora, como uma das raras grandes escritoras desta segunda metade de um milênio que finda, cronológica e simbolicamente também. Ave!
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“Honra-me com teus nadas. Traduz meu passo De maneira que eu nunca me perceba. Confunde estas linhas que te escrevo Como se um brejeiro escoliasta Resolvesse Brincar a morte de seu próprio texto. Dá-me pobreza e fealdade e medo. E desterro de todas as respostas Que dariam luz A meu eterno entendimento cego. Dá-me tristes joelhos. Para que eu possa fincá-los num mínimo de terra E ali permanacer o teu mais esquecido prisioneiro. Dá-me mudez. E andar desordenado. Nenhum cão. Tu sabes que amo os animais Por isso me sentiria aliviado. E de ti, Sem Nome Não desejo alívio. Apenas estreitez e fardo. Talvez assim te encantes de tão farta nudez. Talvez assim me ames: desnudo até o osso Igual a um morto.”7 Nascido em Varginha (MG), Leo Gilson Marcondes Ribeiro é formado em Literatura Comparada pelas universidades de Hamburgo e Heidelberg, ambas da Alemanha. Participou da equipe pioneira de Veja e colaborou no “Caderno de Programas e Leituras”, do Jornal da Tarde, de São Paulo. Em 1973 ganhou o Prêmio Esso por sua reportagem “A noite dos balões”, publicada na revista Veja. No ano seguinte recebeu o Prêmio Nórdica, como o melhor crítico literário do país. Publicou Cronistas do absurdo (Rio de Janeiro, José Álvaro Editor, 1964, ensaio) e Continente submerso (São Paulo, Best-seller, 1988), com o qual ganhou o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) na categoria Ensaios. NOTAS 1 2 3 4 5 6 7
“Hilda Hilst”. Revista Goodyear. São Paulo, julho de 1989, p. 47. Idem, p. 49. Idem, p. 50. São Paulo, Perspectiva, 1970. São Paulo, Cultura, 1980. HILST, Hilda. Ficções. São Paulo, Edições Quíron, 1977, pp. 45-176. In: Do desejo. Campinas, Pontes, 1992, p. 103.
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Do teatro Renata Pallottini
Não se exprimem mais por palavras? A morte do patriarca
Desde as origens do Teatro ocidental tais como as conhecemos, acostumamo-nos a considerar que esse teatro era o lugar em que os homens fingiam ser outros homens, mostrando a um público qualquer, através de gestos e palavras, a recriação de ações também humanas, para seu prazer, emoção e conhecimento. As histórias que dizem respeito a essa origem, mitos, quiçá, falam desde logo que alguém, movido talvez pelo entusiasmo, assume, em determinado momento, a fictícia existência de outro, criando um personagem e falando em seu nome, e em seu nome agindo. Essa brincadeira na qual algumas pessoas fingem ser, enquanto outras fingem crer, tem vigência e vale na medida em que o fingimento de ser e o de crer são prazerosos, de maneiras diferentes, com certeza, mas igualmente intensas. É agradável e estimulante o jeu do ator para ele próprio; de outra forma não se entenderia a história desse ofício, de início puramente amador, depois uma profissão que sempre e até os dias de hoje trouxe mais dores que prazeres. Também é emocionante, prazeroso e divertido assistir aos espetáculos de teatro. De quebra, o Teatro é sempre fonte de conhecimento. Estou pessoalmente convencida de que o foi mesmo quando, através da emoção, do terror e da compaixão, se buscava a catarse, segundo Aristóteles. Quando o público se emocionava, sentia medo e piedade, acompanhando a história do triste destino de Antígona e dos seus, condenados sem culpa e apenas por falhas humanas a uma sorte funesta, nem por isso, é claro, poderia esse públi-
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co deixar de notar a coragem e a fidelidade da princesa aos seus princípios, a sua rebelião consciente, a sua decisão de arrostar a pena de morte e fazer exatamente aquilo que seus sentimentos e o seu caráter mandavam, perdendo, contudo, amor, perpetuação da família e a própria vida. Conhecer esses caracteres devia, necessariamente, levar um público habituado ao Teatro e à Filosofia como o povo grego a repensar suas próprias convicções e, até, preparar-se para enfrentar os embates a que a democracia ateniense, com suas contradições, submetia os cidadãos. Que as determinações dos deuses marcassem a sina dos seres humanos e que elas fossem irrecorríveis é marca histórica da época. No entanto, isso não significava que os homens devessem resignar-se a essas condenações. Eles lutavam contra a imposição dos deuses, e muito. Esse espaço de exercício da liberdade fazia com que Prometeu, acorrentado, não cedesse nem renunciasse aos seus princípios, tornandose o mais livre dos prisioneiros, o menos encarcerado dos homens. Esse espaço privativo da ação humana, mesmo da ação desesperada, ação por si, por definição e convicção sempre foi defendido pelos trágicos e deferido aos heróis. O mais infeliz deles, Édipo, apesar de maldito antes, durante e depois de sua vida, busca a verdade, insiste nela, ainda que suspeite que a verdade se voltará contra ele, e a proclama, quando sabe que sim, ele é o grande culpado que a pólis – ele mesmo, Édipo – procura. De início, compreendendo-se Teatro o que ficou já dito, era natural supor que a atualização que o teatro demanda, ou seja, essa presentificação de ações e feitos, que resulta num fingimento de ação, fosse sempre o drama. Drama seria, então, uma sucessão de ações humanas, através das quais progrediria uma história, não contada, mas mostrada, imitada por personagens, eles também imitações de gente. Dessa forma, não se aceitaria que, no Teatro, coisas fossem contadas, narradas. Mas a verdade é que eram, desde as narrativas propriamente ditas, simples, feitas por personagens que vinham à cena para informar o público de coisas que haviam acontecido fora de cena – e que, naturalmente, faziam parte da sua ação, a ação de comunicar coisas que não podiam acontecer em cena –, até a narrativa que rompia efetivamente a ação dramática para comentar, explicar, filosofar – o coro da tragédia grega, ou os cartazes de Brecht, por exemplo. A irrupção de momentos narrativos, ou épicos, no gênero dramático é imemorial e tem sido constante, tornando impuros (e genialmente impuros) o
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teatro medieval, dramas shakespeareanos, peças simbolistas e expressionistas, comédias brechtianas, entre outros. Mas não são somente os momentos épicos os responsáveis pela impureza do gênero dramático. O lírico, enquanto voz do íntimo, do subjetivo, da emoção e do irracional, enquanto fala do eu do poeta, também toma sua parte nessa penetração, quando o dramático ideal do Teatro cede espaço às vozes do nãológico, da sugestão e do sentimento. São assim as lamentações corais e os gritos de dor dos heróis da tragédia grega, são assim as falas da hesitação de Hamlet, da angústia de Woyzeck, da impotência de Wladimir e Estragon. São assim, de um modo geral, as vozes do sofrimento, da perplexidade humana. Antígona sabe que nada mais pode contra os desígnios do destino; Hamlet sabe que lhe cabe cumprir a determinação de sua própria consciência; Woyzeck sabe que é um pobre homem sem poder; os dois seres humanos que esperam Godot sabem que não podem fazer mais do que esperar Godot, e que este virá se quiser, e zombam, sonham e imprecam, mas absolutamente sem ação e sem poder de ação. O lírico no drama é, muitas vezes, a voz da impotência humana. Outras vezes é a expressão de uma profunda perplexidade diante de um deus absurdo, ou do Absurdo simplesmente como tal, ou de uma das constantes do Absurdo, a incomunicação. Expressão, talvez, da impossibilidade do amor, da impossibilidade do entendimento, da impossibilidade, finalmente, da ação. O uso da linguagem da inação corresponde, claramente, à certeza de que a ação humana é impossível, ou inútil, ou redundante e improdutiva. Não tem sentido, para o poeta dramático que se embebe do lírico, colocar em cena personagens agindo. Esses personagens estarão, inutilmente, fingindo que fazem coisas; na verdade, estarão lançando-se desesperadamente contra o muro da sua própria impotência. Não acontece sempre assim, no entanto, com todo o lírico no Teatro, ou seja, com todo o Teatro dos poetas líricos. É possível, e muitas vezes ocorre, que o poeta acredite na existência de alguma ação e a ponha em cena. Mas, com certeza, ele não crê que aquela ação humana responda às suas próprias dúvidas ou às dúvidas dos personagens; menos ainda que aquela ação humana realmente modifique a sorte dos personagens ou o caminho do mundo; que ela tenha, enfim, algum resultado e algum sentido.
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O poeta acredita, parece-me, no sentido que tem o personagem. Construído sempre com extremo cuidado (ainda que não com clareza lógica), o personagem criado pelo poeta lírico é cheio de conteúdo, expressa densamente o seu pensamento e os seus sentimentos, as suas vozes interiores e as suas emoções. É talvez por isso que, freqüentemente, o texto dramático dos poetas é pontuado por verdadeiros poemas líricos, que às vezes se revelam quase autônomos e independentes. Correspondentes, é claro, a falas de seus personagens, eles se revelam, na verdade, vozes outras do próprio poeta, na medida em que este se colocou nas suas criaturas. Em suma, vê-se aqui outra vez o subjetivo embebendo as palavras do diálogo, diálogo que deveria, por definição, ser objetivo. Aristóteles diz que não é falando em seu próprio nome que o poeta é mais dramático. De que outra forma poderia o poeta lírico falar senão em seu próprio nome? Acreditando, antes de mais nada, na pura fala do seu “eu”, o poeta lírico quer dizer, dar notícia, interpretar, expressar-se. Mais do que aquilo que o personagem faz, interessa ao poeta lírico aquilo que o personagem sente, pensa, sofre e diz. Claro está que dizer também é agir, desde que as falas do diálogo propiciem mudanças no estado atual das coisas que são objeto do drama, ou prometam essas mudanças, depois concretizadas. Falar revela fatos da vida interior que afetam os demais personagens e, portanto, a constelação a que corresponde um grupo de personagens. Quando A diz a B: “Já não te amo”, comunicou uma mudança essencial nos seus próprios sentimentos, afetou a vida de B e, com certeza, terá afetado a vida de vários outros personagens, inseridos naquela constelação. Quando Nora, em Casa de boneca, diz a seu marido, no final de sua última cena, que vai abandoná-lo e deixar os próprios filhos, porque não se reconhece como ser humano naquela casa e não reconhece no marido um verdadeiro companheiro, é claro que, falando, prevê ação, mudança, dinâmica. O seu ato posterior – a sua efetiva partida – não é mais que a confirmação de suas palavras. Elas sim vinham carregadas de sentido, eram portadoras dos sinais da sua decisão consciente e responsável. Falar no Teatro pode ser, em suma, agir de fato, porque pode ser comunicar a outrem uma decisão irrecorrível e produtora de mudanças, mas também pode ter o objetivo de transmitir informação, convencer, pedir, perguntar, responder, argumentar, esclarecer e, até mesmo, esclarecer-se, entre outras funções.
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O personagem do teatro de cunho lírico dá conta ao interlocutor da sua perplexidade, da sua angústia, da sua impotência; e, claro, dá-se conta disso. Ele mesmo percebe, através de suas palavras, que nada pode. Tudo isso nos vem à mente quando nos defrontamos com o teatro de Hilda Hilst. Estamos agora falando de um teatro real, concreto, e de cunho predominantemente lírico. Um poeta está optando por se comunicar com seu público através de situações, na maior parte das vezes, limítrofes, de situações de verdadeira crise. Um grupo de personagens é criado, em cada um dos casos, para apresentarnos um momento de vida em que se chega ao limite extremo de resistência humana. Para expressar essas crises, a poeta Hilda Hilst toma para si a liberdade da linguagem poética, a liberdade dos recursos líricos levados, inclusive, ao pé da letra, quando opta por falar-nos, através de seus poemas, do que têm de mais subjetivo e pessoal. Aceita também, tranqüilamente, entretecer os seus dramas com momentos épicos, com momentos em que a narrativa é assumida livremente. Não recusa, aliás, nenhum recurso, no que confirma seu temperamento artístico. A produção dramática de Hilda Hilst se completa em oito peças, todas escritas entre os anos de 1967 e 1969. São elas: 1- A possessa, inicialmente chamada A empresa (1967) 2- O rato no muro (1967) 3- O visitante (1968) 4- Auto da barca de Camiri, também chamada Estória, muito notória, de uma ação declaratória (1968) 5- As aves da noite (1968) 6- O novo sistema (1968) 7- O verdugo (1969) 8- A morte do patriarca (1969) Eis algumas de suas encenações: I - O rato no muro – Escola de Arte Dramática de São Paulo, sob direção de Terezinha Aguiar, em 1968; inicialmente no âmbito da escola e, depois, no circuito normal do teatro paulista; em 1969, durante o Festival de Teatro Universitário de Manizales, na Colômbia, a peça foi reapresentada, inclusive em praça pública.
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II - O visitante – Escola de Arte Dramática de São Paulo, sob direção de Terezinha Aguiar, em 1968. Há referências ainda a uma montagem dirigida por Adolfo Mazzarini Filho. III - Auto da barca de Camiri – Algumas fontes mencionam uma montagem feita em 1987, em São Paulo, sob a direção de Tom Santos. IV - As aves da noite – Estréia acontecida em São Paulo, em 1980 e nova montagem no Rio de Janeiro, em 1982. V - O novo sistema – Encenada em São Paulo, no Teatro Veredas, sob direção de Terezinha Aguiar, em 1970. VI - O verdugo – Estréia acontecida em São Paulo, sob direção de Rofran Fernandes, em 1973. Outra montagem foi feita no ano anterior em Londrina, Paraná, pela Universidade Estadual de Londrina, com direção de Nitis Jacon A. Moreira. VII - A morte do patriarca – Montagem da Oficina de Estudos Teatrais, de Campinas, realizada em 1991, com direção de Adolfo Mazzarini Filho. A peça O verdugo recebeu o prêmio Anchieta da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, no ano de 1969, tendo sido, em conseqüência, publicada em 1970. Esta é, portanto, a cronologia e a pequena história destas peças, escritas, claramente, sob o influxo das condições criadas pelo golpe militar de 1964, que reduziu e, em alguns casos, mesmo liquidou a liberdade de que dispunham os que trabalhavam no teatro. O ano de 1968, como sabemos, foi o crucial deste período; vê-se, muito a propósito, que Hilda escreve três peças em 1967, uma delas (Auto da barca de Camiri ) entre 67 e 68, e as demais entre 68 e 69, na fase mais candente de opressão e censura específica por que passavam os artistas em geral. As informações de que dispomos, bem como o acesso aos textos originais, se devem à existência da obra Um teatro da mulher (São Paulo, Perspectiva, 1992), de autoria de Elza Cunha de Vincenzo, e ainda à generosidade da autora desse livro, que guardou cuidadosamente cópias datilografadas, cedidas pela própria Hilda Hilst. São muito poucos os textos que tratam do teatro de Hilda. Sabe-se de alguns artigos e ensaios de Anatol Rosenfeld, algumas entrevistas e críticas e, acima
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de tudo, o capítulo em que Elza Cunha se debruça sobre estes textos e, amorosamente, procura desvendá-los. Mas por que se usa aqui o termo “desvendá-los”? Não foi por acaso que ele me ocorreu. Temos de voltar, um pouco, ao que antes ficou dito e acrescentar-lhe algo mais. Hilda Hilst não escreve o seu Teatro para dar conta de acontecimentos concretos, a não ser em raras ocasiões, como se poderá verificar. Perfeitamente inserida no seu momento, no momento da literatura universal, ela não crê na ação propriamente dita, na possibilidade da objetivação dos pensamentos, dos sentimentos e das sensações. Para ela, como para tantos poetas, sentir, pensar e emocionar-se é já o bastante. Dar notícia dessas abstrações, desse subjetivo fragmentado, sem começo nem fins determinados, desse eu que não pretende resolver os problemas do mundo, mas apenas comunicá-los aos demais é o seu objetivo; fundamente surpreendida com a ausência de um deus quando ele é mais necessário, com a crueldade, a destruição, a morte inútil, a injustiça pessoal e social, a estupidez humana, a poeta organiza o seu microcosmo cênico para que possamos, ali, reconhecer o macrocosmo universal, para que possamos ver, na sua cena, a imagem do mundo absurdo que nos tocou viver. Não é sem razão que muitos dos seus personagens são abstrações, recriações simbólicas, figuras metafóricas. Através desses símbolos, a dramaturga quer nos aproximar de suas matrizes, dos seres humanos aos quais quis se referir. Todo esse trabalho estava sendo realizado em pleno cerne do período mais negro da ditadura militar no Brasil; Hilda Hilst sabia – sabíamos todos nós, que fazíamos Teatro e Arte – que corria o risco de desagradar a repressão e ser alcançada pela mais branda de suas instituições, a Censura Federal, que, conquanto branda, tinha o poder de simplesmente calar um artista, por considerá-lo perigoso para a segurança do Estado. Isso queria dizer – e muitas vezes disse – que uma peça, uma canção ou um filme estava totalmente vetado para apresentação ao público. Esses vetos duraram 15, 20 anos. Em certos casos, quando ocorreu a liberação, a obra já tinha perdido boa parte de sua oportunidade, ou não correspondia mais ao momento do artista. A essa circunstância se deve, sem dúvida, o uso de figuras de linguagem, de metáforas, de alusões. Muitas vezes se encontram nos textos de Hilda referências a Ele, ao Homem, a eles; dificilmente seus personagens têm nomes próprios, quase sempre são nomeados por sua função profissional ou seu lugar
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na família (o Pai, a Mãe, o Filho, o Noivo, o Carcereiro, o Juiz, o Poeta, o Estudante, o Verdugo etc.). Como muito bem diz Elza Cunha de Vincenzo, o texto dramático de Hilda Hilst “não se deixa narrar facilmente” (op. cit., p. 45); é muito difícil contar as histórias a que se referem esses textos, que quase nunca têm a intenção de comunicar enredos. Mas talvez valha a pena tentar, antes de entrar na análise mais acurada de, pelo menos, um deles. A possessa, a primeira de suas peças, passa-se no que seria um colégio religioso. Nesse contexto, América, uma jovem aluna entre outras, a mais criativa de todas, se torna alvo da atenção dos dirigentes, porque pensa, faz perguntas, questiona e perturba. Os dirigentes tentam fazê-la calar, tentam cooptá-la, inutilmente. Ela será alvo de uma investigação, será interrogada, como se faz com um criminoso. Quando, finalmente, conseguem obrigá-la a fazer um trabalho que não tem sentido, América desiste, simplesmente, de viver. A morte da protagonista conclui a parábola da liberdade do espírito e da luta do pensamento contra a coerção. O conflito, claramente colocado entre o pensamento criador e a opressão, simboliza, de maneira totalmente adequada, o momento vivido pela dramaturga, inserida de modo exemplar em seu tempo e em sua sociedade. No mesmo ano, Hilda escreve O rato no muro. Aqui, o ambiente do colégio religioso é repetido e ampliado: estamos agora numa casa religiosa, um convento, onde freiras – dez mulheres, identificadas com letras que vão de A a I e mais a Irmã Superiora – simbolicamente giram dentro de um mundo fechado, enclausuradas. Elas cantam, rezam, confessam, dialogam – um diálogo sem evolução real, circular. A Irmã H (H de Hilda?) é a mais lúcida, a que mais consciência tem de sua clausura, da prisão a que estão condenadas. A simples visão de um rato sobre o muro que as separa do mundo exterior, a menção a um gato sacrificado por uma delas são acontecimentos notáveis, porque excepcionais na inação do dia-a-dia. O rato pode subir e ver o que a elas é negado, a Irmã Superiora continua exercendo a sua tirania e a Irmã H não consegue despertar suas companheiras. O mundo de dentro do convento continua o mesmo mundo de opressão da sociedade a que a peça se refere. O visitante, terceira obra, é chamada, pela própria autora, “pequena peça poética”. Embora seja escrita na linguagem indireta do verso assumido, a peça tem,
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mais nitidamente, um entrecho que se possa narrar. Os personagens são quatro e começam, pelo menos alguns, a ter nomes próprios: Ana, a mãe; Maria, a filha; o Homem, marido de Maria; e o Corcunda (que, afinal, chama-se Meia Verdade). Estabelece-se, desde o início, um desentendimento, um conflito entre mãe e filha. Ana é uma mulher doce, meiga, enquanto Maria é áspera e agressiva. Ana já foi mãe; Maria, porém (um pouco à maneira da Yerma de Lorca, com quem se parece), não deu ainda filhos ao seu marido. Surpreendentemente, desde o início, Ana faz pensar que está grávida, e isso a alegra e ilumina. No entanto, vivem as duas na casa apenas com o Homem, marido de Maria. De quem seria o filho, portanto? Essa suspeita envenena a convivência, até que o Corcunda, conhecido do Homem, entra em cena, fazendo supor que foi ele quem engravidou Ana. Maria contenta-se com essa explicação, mas, na cena derradeira, uma troca de olhares entre o Homem e Ana nos revela que, afinal, a mãe está grávida do genro, com quem coabitou, e que ambos traíram Maria, a qual teria, afinal, razões para sua amargura. Curioso o paralelismo dos nomes com os da História Sagrada: aqui, Ana também é mãe de Maria; as circunstâncias do enredo, porém, introduzem um Homem adúltero e um personagem que, expressivamente, diz apenas “Meia Verdade”. O Auto da barca de Camiri refere-se a um momento e um acontecimento concretos: a morte de Ernesto “Che” Guevara, o revolucionário argentino, ocorrida na Bolívia. Como diz Elza de Vincenzo (op. cit., p. 51), a peça é “nascida, ao que parece, de uma grande indignação”. Assim é. O que faz Hilda neste Auto é dar, de sua revolta frente à execução do Che, o retrato impregnado de lirismo e, ao mesmo tempo e por conseqüência, metafórico que era dado realizar naquela época. Os personagens são o Trapezista, dois Juízes, o Passarinheiro, o Agente, o Prelado e representantes do povo, dos habitantes da vila. Trata-se de uma espécie de julgamento, durante o qual as testemunhas falam a respeito de um Homem que trazia nas mãos “um possível maná…”1 e que se assemelhava a alguém, a um justo, a um salvador, e que, ademais, havia feito o milagre de ressuscitar um pássaro. Diz o Trapezista, até mesmo, do Homem:
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“O Homem falou: eu sou irmão d’Aquele…”2 É flagrante a intenção de aproximar a figura do protagonista ausente à figura do Cristo; deve-se notar, aliás, que a imagem de Ernesto Guevara morto, que foi veiculada pelos jornais da época, apresentava de fato muita semelhança com algumas imagens célebres de pinturas representando o Cristo morto. Uma rubrica pede, aliás, expressamente, a projeção de um Cristo de Ticiano. A intenção e o simbolismo são patentes. Naturalmente, de nada valem os testemunhos dos humildes: o Trapezista, o Passarinheiro. O Homem acaba por ser sacrificado – ouvem-se apenas os ruídos da metralhadora. É o fim daquele que prometia o maná. As aves da noite, de 1968, é mais um drama cujo enredo se apreende facilmente; aliás, a própria autora o expressa, quando, na abertura da peça, diz: “Com AS AVES DA NOITE pretendi ouvir o que foi dito na Cela da Fome, em Auschwitz. Foi muito difícil. Se os meus personagens parecem demasiadamente poéticos é porque acredito que só em situações extremas é que a poesia pode eclodir, VIVA, EM VERDADE. Só em situações extremas é que interrogamos esse GRANDE OBSCURO que é Deus, com voracidade, desespero e poesia.”3 A história que a peça nos conta é simples e terrível: como conseqüência da fuga, em 1941, de alguns presos do campo de concentração de Auschwitz, a administração do campo decide encerrar na chamada Cela da Fome um grupo de prisioneiros, para que aí morram de sede e inanição. Como um dos escolhidos por sorteio manifestasse grande desespero, um padre católico, o franciscano Maximilian Kolbe, oferece-se para morrer em seu lugar. A trama da peça decorre, portanto, durante as últimas horas de vida de um grupo de cinco prisioneiros, entre os quais o padre Maximilian. A situação é bastante explícita e o conflito a segue; os prisioneiros são visitados por dois carcereiros, que trazem, inclusive, uma mulher, também prisioneira, para, eventualmente, manter relações com algum deles, num rasgo de escárnio grotesco.
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Não há qualquer obscuridade na proposta; o que há, sim, é novamente o questionamento da justiça e da misericórdia divinas e a prova irrefutável de que o ser humano, se colocado em determinadas situações extremas, torna-se um joguete do Destino, da Morte e da Dor. O único personagem que teve direito a uma opção livre, a uma escolha clara, foi Maximilian. No entanto, a sua opção é pelo sacrifício, pela autodestruição. A escolha da morte é heróica, e o personagem a mantém ao estilo clássico, da assunção total de suas conseqüências. Ocorre aqui o que o filósofo Hegel nota, com a costumeira clareza, em sua Estética: “O indivíduo dramático recolhe os frutos dos próprios atos”4 Maximilian Kolbe é, entre os encarcerados, o único que pode optar, dispondo da liberdade do prisioneiro. Qual novo Prometeu, ele não fraqueja diante das ofertas dos carcereiros. Mantém sua decisão, quando tem a oportunidade de recuar. É um personagem ativo, mas sua ação o conduz à própria destruição, fazendo-o aproximar-se da figura do herói trágico primitivo. As aves da noite é talvez, junto com O verdugo, a peça mais dramática do conjunto das obras teatrais de Hilda Hilst, dramática no sentido de estabelecer claramente um conflito, fazê-lo evoluir e dar-lhe solução, a qual, por sua vez, como foi dito, resulta na destruição e na morte, mas que se impõe como paradigma e exemplo de resistência. A peça seguinte, cronologicamente, é O novo sistema, das mais complexas em sua temática, centrada na evolução do conhecimento do Homem e na organização da sociedade onde ele deve viver. Opondo interesse coletivo à liberdade individual, a autora retrata com enorme senso de oportunidade alguns exemplos de organização social de cunho totalitário. Anatol Rosenfeld, em artigo sobre a autora, citado por Elza Cunha de Vincenzo (op. cit., p. 63), diz que esta peça seria “uma utopia negativa, à maneira de Aldous Huxley…” De fato, o personagem principal, o Menino, um pequeno gênio da Física, é, ao mesmo tempo, um rebelde que estranha a presença, na praça prin-
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cipal da cidade, de homens aprisionados, aparentemente sacrificados por sua inconformidade com as regras do “novo sistema”. Potencialmente perigoso, o Menino é confrontado com outro personagem, a Menina, que age de acordo com as regras ditadas pelos superiores e pelos pais, estes também uma representação da obediência ao poder. A peça representa, no dizer de Elza Cunha, “o alerta para o risco de desumanização do homem pela perda da liberdade do espírito”. A ordem social imposta pelos donos do poder exige dos cidadãos obediência total e anulação do impulso de protestar, de inquirir, de rebelar-se; exige, enfim, que o homem se conforme e se aniquile enquanto indivíduo. Naturalmente, o espaço onde se desenrolam os acontecimentos de O novo sistema é o espaço da tirania, qualquer que ela seja, e a peça é, de novo, o protesto do artista contra as tentativas de cerceamento da liberdade de criação e de pensamento. A morte do patriarca é, possivelmente, de todas as peças da autora, aquela que faz contrastar, com mais eficiência, um tom jocoso e irreverente com a perspectiva final de destruição iconoclasta. A peça, realmente, não tem, nem se propõe ter, nenhum resquício de ação dramática, no sentido mais convencional da expressão. Trata-se de um diálogo de caráter filosófico, metafísico, que confronta personagens como o Papa, um Cardeal, um Monsenhor, o Demônio e Anjos. Todos discutem as possíveis verdades religiosas e doutrinárias de figuras que vão de Jesus Cristo a Ulisses, passando por Mao, Marx e Lênin, representados por esculturas, estátuas que atravessam todo o transcorrer da peça como partes do cenário, até serem utilizadas numa exposição feita para o povo rebelado na praça, vista através das janelas de um provável Vaticano. Nessa sucessão de falas irônicas ou dolorosas, são desveladas as meias verdades e as contradições das figuras emblemáticas. Ulisses é tratado com mais respeito e Jesus Cristo com mais ternura. Mas fica claro para o público que nem o Demônio, nem o Papa, nem o Cardeal, empenhados numa interminável partida de xadrez, nenhum dos personagens, enfim, acredita que o povo, ouvido de longe durante o decorrer de toda a peça, se deixará levar mais por palavras salvadoras. O final é claro e exemplar: ao sair à janela, para tentar explicar-se, o Papa é morto com uma rajada de metralhadora. Ouve-se uma voz, “jovem e vigorosa”, de um personagem armado de metralhadora, que perguntará ao Demônio:
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“Por onde começamos?” Ao que o Demônio responderá: “Pelo começo! Pelo começo! Pelo começo!” Esse momento único de mudança, em que o Povo, através de um personagem que é seu representante, e de acordo com o Demônio, avança numa verdadeira revolução contra toda autoridade, inclusive a religiosa, é terminante e brutal: associa-se o elemento popular ao Demônio (que, naturalmente, não é um diabo convencional, sendo até apresentado como portador de um certo encanto – encanto que, aliás, não é estranho às figuras diabólicas), e se faz a mudança total: a suprema autoridade religiosa é morta e, agora, vai-se começar a limpeza “pelo começo”. A peça O verdugo (propositadamente deslocada, dentro da ordem inicial, para ser mais detidamente analisada) é, sem dúvida, dentro do panorama de realização cênica de Hilda Hilst, a que melhor estrutura dramaticamente o seu material, contando uma história organizada de maneira lógica e até cronológica, explicitando com bastante nitidez os seus caracteres, colocando e desenvolvendo conflitos até a sua eclosão e solução final. E tudo isso é feito sem que se altere a qualidade lírica da proposta, os valores metafóricos e, sempre, o transcendental que informa, em qualquer pequeno momento de sua feitura, o teatro da poeta. A peça tem duas versões e, aqui, optamos pelo texto original, ganhador do Prêmio Anchieta de Teatro de 1969 e publicado em 1970, e não pela versão posterior, adaptada com o auxílio e a colaboração do diretor da montagem de 1973, Rofran Fernandes. Os personagens arrolados pela autora são: 1- O Verdugo – Homem de 50 anos 2- A Mulher do Verdugo – 45 anos, forte. Fala num tom quase sempre amargo, ríspido 3- Filho – Jovem
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4- Filha – 28 anos 5- Noivo da Filha – aspecto pusilânime, tem sempre um sorriso idiota 6- Carcereiro 7- Juiz Velho – 50 anos 8- Juiz Jovem – 30 anos 9- Cidadãos – Podem ser muitos, mas os que falam são seis 10- O Homem – Deve ser alto 11- Os dois Homens-Coiote – Devem ser altos A história se passa no interior de uma casa modesta. Móveis e objetos velhos e simples compõem a sala de jantar do Verdugo; estão jantando o dono da casa, a Mulher, o Filho e a Filha. Este é o cenário do primeiro ato. A peça tem dois atos. De início já se coloca a situação conflitiva em que se encontra a família: o Verdugo, por força de seu ofício, deve enforcar, dentro de dois dias, um Homem (esse personagem é, claramente, uma nova leitura do Homem do Auto da barca de Camiri, o qual é, por sua vez, um símile do Cristo. Essa idealização do herói a ser sacrificado percorre mesmo, de uma ou de outra forma, todo o teatro de HH). No entanto, o carrasco está hesitante. Ele falou com o Homem, viu seus olhos e ouviu sua voz; o Verdugo crê no Homem e, quando chega a hora de definir-se, decide-se com clareza: ele não o matará. A divisão de forças, nesse primeiro momento, é também nítida e equilibrada: o Verdugo tem a seu lado o Filho, que o compreende e apóia, enquanto a Mãe e a Filha cerram fileiras contra ele. O Noivo da Filha, desde o início apresentado como uma figura pusilânime, introduz os dois Juízes, o Juiz Velho e o Juiz Jovem. Esses personagens vêm à cena para tentar convencer o Verdugo a executar o prisioneiro o mais rápido posível. Diante da recusa do Verdugo, os Juízes oferecem dinheiro para que ele cumpra a sua missão. Ele torna a recusar mas, agora, é a sua Mulher quem, diante de uma oferta que os livraria da miséria, se propõe a tomar o papel do Verdugo (decisão que a aproxima, quiçá, de uma Lady Macbeth…). Nesse momento, irrompe o Carcereiro. Ele vem comunicar que a multidão quer salvar o Homem e que, por isso, a execução deve ser feita sem maior demora.
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Diante do perigo, reafirmado pelo Carcereiro, que volta, os Juízes decidem aceitar a oferta da Mulher; vestem-na com as roupas do Verdugo, que, indignado, avança para agredi-la, mas é imobilizado e preso. O Filho também é subjugado, e ambos pensam em pedir auxílio ao Padre, mas ele não está na cidade. Os representantes da lei saem, acompanhados da Filha e do Noivo. Finalmente, Pai e Filho conseguem safar-se e preparam a fuga, planejando ir até o Vale (onde viviam os Homens-Coiote), conseguir um barco e salvar o Homem, fugindo com ele. No segundo ato, modifica-se a situação e o cenário. Estamos agora na praça do povoado, diante do patíbulo e da forca armada. Os cidadãos, inicialmente, não desejam a morte do condenado, pelo menos a maioria deles. Surgem o Homem e a figura que se supõe ser a do Verdugo. Os dois Juízes, naturalmente, tentam convencer o Povo da justeza da condenação, quando surge o verdadeiro Verdugo e desmascara sua Mulher. É ele próprio quem desvenda ao Povo o suborno que lhe tinham oferecido. Os Cidadãos, imediatamente, se interessam pelo dinheiro e, quando ficam cientes que também a eles, Povo, se poderia dar dinheiro, tomam o partido da violência, executando o Homem e o próprio Verdugo. Salva-se apenas o Filho, que, acompanhado pelos dois Homens-Coiote, vai para o Vale transformar-se em um deles. A situação básica da peça põe em confronto o Verdugo, seu Filho e, a princípio, o Povo, com a Mulher, a Filha, o Noivo, os Juízes, o Carcereiro e, posteriormente, o Povo, cooptado. O Verdugo não quer cumprir seu dever, sua função profissional; recusa-se a isso por lhe parecer que o condenado é inocente. Nesse sentido, é um personagem ativo, que conhece as razões de suas ações e corre todos os riscos de sua coerência. Curiosamente, sua decisão ativa está em não fazer aquilo que se espera que faça. A inação deliberada, motivada por algum conteúdo, é também ação; espera-se de um Verdugo que mate; quando ele se recusa obstinada e conscientemente a fazê-lo, torna-se um personagem ativo e coerente, que se recusa a agir. Quem tenta tomar a sua posição e assumir suas funções é sua Mulher, que, neste momento, como foi dito, se assemelha a Lady Macbeth diante da hesitação de seu Lord. Mas, enquanto em Macbeth o protagonista volta ao estado anterior e aceita empunhar a arma regicida, aqui o Verdugo mantém sua posição e o que faz, quando é chegada a hora, é desmascarar a impostora.
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Os árbitros da questão, aqueles que vão decidir realmente o desfecho da peça, são os Cidadãos, o Povo. Qualquer coisa poderia ali acontecer, uma vez que não se vêem, no microcosmo cênico, os representantes físicos da força. O Verdugo e seu Filho, ajudados pelos Homens-Coiote, poderiam libertar o Homem inocente, num final otimista. Mas não é o que acontece. O Povo é convencido pelas palavras dos Juízes e, mais ainda, pela perspectiva do dinheiro que lhe é oferecido. Nisto a autora se mostra extremamente realista e atual. O Filho jovem seguirá com os Coiotes, depois da morte de seu pai. Os Coiotes são lobos, e têm garras. A vingança, naturalmente, virá um dia. Alguns personagens desta peça são retomados de caracteres anteriormente criados: os dois Juízes, o Juiz Velho e o Juiz Jovem, já apareciam no Auto, mantendo mais ou menos a mesma estrutura de construção. Também o Homem parece ser, como se disse, uma reescrita do Homem do Auto. O Filho, jovem personagem masculino que resume em si a coragem da refutação, a inconformidade e a rebeldia, tem a ver com o Menino de O novo sistema e, sob outro aspecto, com o Poeta de As aves da noite, com o Trapezista e o Passarinheiro do Auto, todos eles jovens que acreditam na inocência, na verdade e no futuro de uma situação mais justa para a Humanidade. Estas retomadas não acontecem gratuitamente; a autora, pelo que se depreende, mantém presente, em várias oportunidades, a figura desse HOMEM/MÁRTIR/REVOLUCIONÁRIO, que pode ser um desconhecido, ou Che Guevara, ou Cristo, sempre aquele, nas suas palavras, que prometia “o maná”, a Solução, a Verdade, a Felicidade, a Justiça. Ela mantém esse personagem porque defere a ele a possibilidade, terrena ou transcendental, da salvação. Esses Homens, não importando como são chamados, trazem a esperança, são inocentes e desinteressados, mas todos eles acabam por ser destruídos, mortos, numa renovação do sacrifício do Deus cristão. A solução, obviamente, não é otimista. As autoridades constituídas, por outro lado, são quase sempre figuras negativas: os Juízes, os religiosos do Vaticano, os Carcereiros, os SS, o Agente, os meirinhos, intermediários de menor porte de um modo geral. Salvam-se apenas, de alguma forma, o Prelado do Auto e o Padre ausente de O verdugo como representantes mais humildes de uma igreja cristã humanizada.
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Hilda Hilst, nos três anos em que se dedicou, de forma apaixonada, a escrever seu Teatro, pretendeu, como por várias vezes disse, estabelecer um contato mais direto com seu público, que, naquela época excepcional da nossa vida política, merecia ser despertado por palavras tão candentes como as suas. Seu trabalho, visto em conjunto, dá-nos o retrato de uma situação injusta, de um mundo feito de homens submetidos à força, de um mundo ameaçado pelo poder absoluto e despersonalizante, poder que se defende fazendo emudecer as vozes dos artistas e dos poetas. Seus heróis rebeldes são esmagados pela força, seus jovens inquietos são calados. É exatamente isso o que quer o escritor: mostrar, com palavras, personagens cujas palavras foram sufocadas. Nada mais didático do que isso. Este trabalho, partindo de uma poeta de palavras preciosas, é trabalho definitivo. A escritora Renata Pallottini nasceu em São Paulo. É professora de Dramaturgia para Teatro, Cinema e Televisão na Universidade de São Paulo e na Escuela Internacional de Cine y Televisión de Cuba. Publicou, entre outros, Introdução à dramaturgia (São Paulo, Brasiliense, 1983, ensaio), Obra poética (São Paulo, Hucitec, 1995) e Cacilda Becker (São Paulo, Arte e Ciência, 1997, biografia). NOTAS 1 Auto da barca de Camiri (inédito), p. 1. Original datilografado. 2 Idem, p. 14. 3 Página de rosto de original datilografado. 4 Tradução de Álvaro Ribeiro e Orlando Vitorino. Lisboa, Guimarães Editores, 1993, p. 631.
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Da medida estilhaçada Eliane Robert Moraes
Você escreve bem, minha querida, mas por que, hein, você não escreve uma novela erótica? “O unicórnio” (Fluxo-Floema)
Ao abordar uma obra indomável como a de Hilda Hilst, o leitor pode sentir-se tentado a buscar nas passagens mais herméticas do texto as chaves de sua compreensão. Talvez esse não seja o melhor caminho. Assim como acontece com toda boa literatura, essa obra desmente o que nela – e dela – se afirma, convidando-nos a explorar os ângulos menos óbvios da paisagem que se descortina à primeira vista. Tal como clareiras de um bosque cerrado, é possível descobrir então, em meio à opacidade desses escritos, pontos de inequívoca luminosidade. O pequeno episódio que desencadeia a narrativa febril de “Fluxo” é, nesse sentido, exemplar. Com a simplicidade de uma fábula, ele conta a história de um menininho que, numa manhã de sol, segue até uma fonte para colher crisântemos e lá chegando vê uma das flores sendo levada pela violência das águas. Seu ímpeto de salvá-la é imediatamente interrompido pela lembrança de que a fonte desaguava num rio escuro onde vivia um bicho medonho. Tem-se um impasse. Diante dele, a breve narrativa é suspensa para dar lugar às reflexões de um narrador impassível que pondera junto ao leitor: “Pensa, se você é o bicho medonho, você só tem que esperar menininhos nas margens do teu rio e devorá-los, se você é o crisântemo polpudo e amarelo, você só pode esperar para ser colhido, se você é o menininho, você tem que ir sempre à procura do crisântemo e correr o risco. De ser devorado”1. Direta e incisiva, a intervenção do narrador obriga o leitor a deslocar-se de uma provável identificação com os desejos bem-intencionados do menino, para
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lembrá-lo de suas possíveis afinidades com as vãs esperanças do crisântemo perdido ou ainda com as razões mórbidas do bicho medonho. Descartadas as ilusões de uma hierarquia entre o humano, o belo e o bestial, os três vértices da história ficam nivelados, perturbando a confortável hipótese de um triunfo do menino e da flor sobre o bicho. O que resta é o jogo irreconciliável dos desejos, cada qual entranhado em sua própria solidão. Conclusão da história: “Não há salvação”. Para um texto que se iniciava, logo na primeira linha, buscando tranqüilizar o leitor – “calma, calma, também tudo não é assim escuridão e morte” –, uma tal conclusão pode parecer demasiado sombria. Porém, a certeza de que o conflito é insuperável não significa necessariamente uma rendição à obscuridade absoluta que recobre os domínios da morte. Ao optar pela suspensão da narrativa no impasse, a pequena fábula de Hilda Hilst abre espaço para uma indagação sobre o sentido da existência humana, uma vez excluída a esperança de salvação; indagação esta que se desenvolve num curso vertiginoso até a última página de “Fluxo”. Houvesse ali uma hipótese redentora e esse fluxo seria imediatamente interrompido. Permanecer no impasse significa, portanto, correr o risco de suportar a ameaça da morte. Esse é o destino que a autora propõe ao singelo menininho da fábula, a quem cabe continuar procurando crisântemos sob o risco de ser devorado, num desfecho que resume sua versão impiedosa da condição humana. Aliás, quase todos os personagens de Hilda Hilst encontram-se à beira desse mesmo rio escuro – a evocar um antigo topos literário que metaforiza a passagem do tempo – na iminência da queda fatal. A ameaça contudo não leva à imobilidade; por isso, logo depois da conclusão grave e peremptória de que “não há salvação”, o narrador escolhe a via mais patética para seguir em frente, operando uma súbita inversão do trágico ao banal ao se dirigir novamente ao leitor: “Calma, vai chupando o teu pirulito”. Os três elementos que compõem o breve episódio inicial de “Fluxo” descrevem três figuras fundamentais do imaginário literário de Hilda Hilst: o desamparo humano, o ideal do sublime e a bestialidade. Ainda que nem sempre apareçam na limpidez característica das fábulas, essas figuras são recorrentes em sua obra, demarcando os limites do vasto território que a autora se propõe a investigar na literatura. Assim sendo, o menino, a flor e o bicho, com os diversos desdobramentos simbólicos que cada qual supõe, constituem figuras do co-
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nhecimento que interrogam a condição humana e que, ao serem confrontadas uma com a outra, deixam entrever um insuperável campo de tensão. “Fluxo” representa, nesse sentido, um divisor de águas na obra de Hilst. Publicado em 1970, o texto abre a coletânea de narrativas intitulada FluxoFloema, introduzindo a prosa de uma escritora que até então só havia se dedicado à poesia, além de uma breve incursão pelo teatro. A importância do livro, porém, transcende o fato de revelar a mão da poeta num outro gênero; aliás, isso seria irrelevante caso essa opção não tivesse resultado no aparecimento de uma nova matéria literária que, nascida com a prosa, iria daí em diante contaminar também a sua poesia. Não por acaso, é justamente quando inicia a sua escrita em prosa que a autora passa a investir no confronto entre as três figuras essenciais de seu imaginário – evidenciado no impasse da fábula –, do qual decorre uma mudança na sua expressão literária. Com isso, ela inaugura uma vigorosa linha de força não só no interior de sua obra, mas também no quadro da literatura brasileira contemporânea. j
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Durante quase vinte anos – isto é, desde a publicação de Presságio, em 1950 – a poesia de Hilda Hilst perseguiu o sublime. Valendo-se de uma dicção elevada, marcada pela celebração do poder encantatório da poesia, ela cultivou uma lírica que se alimentava sobretudo de modelos idealizados. Daí a eleição do amor como tema privilegiado que, concebido como expressão da plenitude humana, obrigava a autora a obedecer às exigências de uma poética de formas puras e sublimadas. Tome-se, a título de exemplo, o conjunto de metáforas de que se serve a poeta na tentativa de definir o amor numa de suas trovas publicadas em 1959: “Às vezes graça / Tão luminosa / Às vezes pena / Tão perigosa… // E às vezes rosa / Tão matutina”2. As imagens mobilizadas no poema supõem uma forte idealização do sentimento, manifesta tanto na oposição entre uma versão solar (“luminosa”) e outra noturna (“perigosa”) do amor, quanto no apelo ao frescor matutino da rosa. Fiel à tradição evocativa da flor, e particularmente da rosa, como metáfora privilegiada dos ideais da beleza e do amor, a lírica de Hilda Hilst manteve-se por muito tempo indiferente às dimensões mais precárias – e talvez mais humanas – da experiência amorosa.
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Não é de estranhar que essa busca do sublime tenha se orientado com freqüência na direção de um Deus eterno que, na qualidade de abstração absoluta, atraía a expressão idealista da poeta. Tal é a tarefa que ela enfrenta nos delicados versos de “Exercícios para uma idéia”, publicados em 1967, cuja tentativa de circunscrever “uma Idéia de Deus” sugere, inclusive pelo emprego das letras maiúsculas, a superioridade do plano ideal sobre o material. Movido por um impulso apolíneo, voltado para o alto, o sujeito poético imagina uma forma essencial que possa contemplar a própria noção de transcendência divina: “Se permitires / Traço nesta lousa / O que em mim se faz / E não repousa: / Uma Idéia de Deus”3. Ao longo dos sete exercícios que compõem o poema, o leitor acompanha o movimento obstinado desse traço que, apesar de fracassar a cada novo gesto, não ousa colocar em dúvida “A Idéia / Que perdura e ilumina / O que já era em mim / De natureza pura”. Por certo, a menção de uma natureza intocada que habita o centro silencioso do sujeito poético só faz reforçar a convicção de que a Idéia preside a experiência, esta invariavelmente fadada ao erro e à impureza. Daí a conclusão: “E se a mão não puder / Hei de pensar o Todo / Sem o traço”, a reiterar a essência abstrata de um plano superior que, embora inteligível, não cede aos apelos sensíveis da representação. Vista assim em retrospectiva, a obra inicial de Hilda Hilst parece contradizer o conjunto de textos que ela vem publicando desde Fluxo-Floema. Mas, também nesse caso, a hipótese pode ser apressada: apesar da virada que se opera em sua produção literária a partir dos anos 70, não será correto afirmar que a escritora tenha desistido por completo da dimensão idealizada que caracteriza sua primeira poesia. Antes, talvez seja mais prudente atentar para o que vem perturbar essa dimensão quando ela se dispõe a realizar uma inesperada incursão pelos domínios mais baixos da experiência humana. Ao confrontar sua metafísica do puro e do imaterial com o reino do perecível e do contingente que constitui a vida de todos nós, a escritora excede a sua própria medida, o que resulta numa notável ampliação da idéia de transcendência – daí para a frente submetida aos imperativos da matéria. O recato da investida primeira em direção ao ideal amoroso ou divino é substituído pela violência de um desafio lançado contra uma alteridade que, tornada plural, passa a ser referida através de uma multiplicidade de termos estranhos e contraditórios: Aquele Outro, o Nada, o Luminoso, o Grande Obscuro,
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o Nome, o Sem Nome, o Tríplice Acrobata, o Cão de Pedra, o Máscara do Nojo, o Infundado, o Grande Louco, o Cara Cavada, a Grande Face, o Guardião do Mundo… Levada ao absurdo, a tarefa de designar essa alteridade – se não inominável, ao menos dispersa em uma infinidade de nomes – termina operando uma subversão na disposição inicial da poeta. Na medida em que a dúvida sobre a palavra incide irremediavelmente sobre a idéia, essa multiplicação do verbo resulta na fragmentação da unidade que constituíra a idéia. A totalidade e a plenitude outrora almejadas passam então a manifestarse na forma de nostalgia. No caso da lírica amorosa, essa nostalgia revela-se sobretudo a partir da publicação de Júbilo, memória, noviciado da paixão, em 1974. Isso porque o livro, além de tematizar o malogro da paixão, evoca uma consciência sombria da passagem do tempo – rigorosamente particularizado num dos poemas como “tempo do corpo”, a indicar um viés materialista na obra da autora. Essa vertente vai ocupar um lugar central na poesia grave dos livros seguintes, que, embora mantendo uma dicção elevada se comparada à prosa, torna-se cada vez mais atravessada pelas contingências de uma vida tragicamente atrelada à morte. No horizonte dessa paisagem o sujeito poético depara quase sempre com as figuras da alteridade, a desafiar o apuro formal de uma lírica que nem sempre cede aos seus apelos mais excessivos. É na prosa de Hilda Hilst, portanto, que a exploração do desconhecido ganha inusitada violência poética, sem paralelos na literatura brasileira. Trabalhando nas bordas do sentido, ela vai colocar a linguagem à prova de um confronto com o vazio no qual o eterno confunde-se irremediavelmente com o provisório e a essência resvala por completo no acidental. Com isso, o belo e intangível ideal da flor acaba sendo tragado pelo inexorável fluxo do tempo. Não por acaso, o alvo primeiro dessa violência será o mesmo Deus que antes habitava a Idéia e sustentava a ilusão do Todo – esse equivalente algébrico e abstrato das vãs promessas de salvação. j
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Deus é porco – a constatação, sintética e contundente, aparece desde o primeiro livro dos anos 70. Às vezes ela se manifesta na versão feminina de “a porca é Deus”, como propõe o personagem Amós de Com os meus olhos de cão,
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que inverte os pólos da proposição acentuando-lhe a equivalência dos termos. Atenuada pela voz poética, em Amavisse ela assume a forma de uma prece dirigida ao “Senhor de porcos e de homens”, que introduz um terceiro elemento a habitar o mesmo charco imundo, identificado como “Porco-poeta”. No mais das vezes a identidade suína de Deus serve de mote para uma interrogação do vazio, como ocorre com a viúva de A obscena senhora D, que, abandonada na Casa da Porca, apresenta-se como mulher do “Porco-Menino Construtor do Mundo”. Recorrente na obra de Hilda Hilst, a associação entre Deus e porco sintetiza o veio blasfematório que marca a dicção de grande parte de seus personagens. Como não há limites quando se trata de ultrajar a figura divina, no capítulo da blasfêmia encontram-se as modalidades mais diversas. Vale lembrar, a título de exemplo, as recordações da protagonista de “Matamoros” – texto que pode ser considerado uma versão trágica do debochado O caderno rosa de Lori Lamby –, entre as quais destaca-se a cena da menina de oito anos, feliz em “sugar o sumo santo” de um padre, depois de a “santidade” ter introduzido o “divino molhado” entre as suas coxas. Ou, ainda, as fantasias burlescas dos personagens dos Contos d’escárnio: enquanto a lasciva Clodia cria um quadro com a imagem de um estranho “clitóris-dedo” inspirada no dedo de Deus da Capela Sistina, o melancólico Crasso se deleita ao imaginar uma tela da amante ilustrando “o pau de Deus”. Rebaixado ao nível dos atos mais abjetos, o Deus-porco de Hilda Hilst já não é mais a medida inatingível que repousava no horizonte da humanidade. O confronto entre o alto e o baixo, além de subverter a hierarquia entre os dois planos, tem portanto, como conseqüência última, a destituição da figura divina como modelo ideal do homem. Disso decorre uma desalentada consciência do desamparo humano, na qual é possível reconhecer os princípios de um pensamento trágico, fundado na interrogação de Deus diante de suas alteridades, que aproxima a ficção de Hilda Hilst à de Georges Bataille. Porém, ainda que a própria escritora reconheça tal proximidade – em Amavisse ela chega a evocar um leitmotiv batailleano, o fracasso, para justificar sua incursão pela pornografia –, os caminhos que sua literatura explora limitam a extensão dessa afinidade. Melhor dizendo: se o autor de Madame Edwarda recorre ao mesmo ultraje de Deus, valendo-se inclusive da imagem do porco para associá-lo aos
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extremos mais sórdidos da experiência humana, no seu caso a profanação leva invariavelmente a um sentimento de angústia que ele define como “súplica sem resposta”. Já em Hilst a recusa da superioridade divina parece conduzir a dois caminhos, ao mesmo tempo opostos e complementares: um que, diante da ausência de salvação, desemboca na mesma angústia cósmica presente nos textos de Bataille; e outro que, de certa forma, resiste à gravidade dessa condenação do homem, optando por uma saída cômica. Nesse sentido, as palavras de Nabokov sobre Gógol cabem perfeitamente à sua obra, na medida em que ela também incita a lembrança de que “a diferença entre o lado cômico das coisas, e seu lado cósmico, depende apenas de uma sibilante”4. “In dog we trust” – a inversão jocosa do sagrado lema norte-americano, título de uma crônica de Hilda Hilst, dá testemunho dessa diferença sutil dos significantes que estabelece um elo inesperado entre as palavras5. As misteriosas relações que a língua deixa a descoberto vêm desmentir os contrastes tidos como óbvios, promovendo um aviltamento dos sentidos mais nobres dos termos. Também aqui a expressão condensa um procedimento literário típico da autora, não só pelo recurso ao jogo de palavras, mas ainda pelas aproximações súbitas como aquela da fábula de “Fluxo” que, num piscar de olhos, encadeia o austero veredicto “não há salvação” com a sugestão ligeira de “ir chupando o pirulito” para suportar a miséria da vida. Uma saída à brasileira? É possível que sim, na medida em que a escritora define o Brasil como “o país das bandalheiras”, onde nada é levado a sério. Mas o termo abarca também um sentido dúbio, reiterado quando ela afirma que “ser brasileiro é ser ninguém, é ser desamparado e grotesco diante de si mesmo e do mundo”. A brasilidade implicaria, assim, uma ambigüidade de base entre a melancolia e o riso, o que não deixa de justificar o duplo registro da dicção da autora, ora voltada para os motivos graves da existência humana, ora para os aspectos patéticos da vida prosaica. Optando pela saída à brasileira, na qual prevaleceria o grotesco, um personagem dos Contos d’escárnio resume essa tensão ao indagar Crasso sobre o conteúdo de um livro: “É metafísica ou putaria das grossas?”6. Se a debochada pergunta repõe a dualidade do Deus-porco, insistindo na subversão entre o alto e o baixo, ela contudo não esgota a inquietação presente na obra de Hilda Hilst. Vale lembrar que o confronto entre o ideal da flor e a sordidez do bicho não se faz sem a presença de um terceiro elemento que contém os
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outros dois e, no limite, funciona como detonador do impasse. Estilhaçada a Idéia divina, o desamparo humano interroga com a mesma violência o outro pólo em questão. Assim como god e dog estão unidos pelos secretos elos da língua, também a diferença entre o homem e o animal depende apenas de uma sutil inversão: “Porque cada um de nós, Clódia, tem que achar o seu próprio porco. (Atenção, não confundir com corpo.) Porco, gente, porco, corpo às avessas”7. j
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Em geral, o bestiário de Hilda Hilst compõe-se dos bichos mais próximos da espécie humana, como o cachorro, o porco, a vaca, a galinha, o cavalo ou o jumento. Nesse sentido, ele difere em essência de outros bestiários da literatura moderna, como por exemplo o de Lautréamont e o dos surrealistas, que concedem primazia às espécies mais selvagens e aberrantes do reino animal, tais como o orangotango, o caranguejo, o ornitorrinco, o hipopótamo ou o rinoceronte. Não é o caso, portanto, de interpretá-lo a partir da “ampliação das fronteiras do homem”, que Bachelard percebe nos Chants de Maldoror, cujo projeto de reviver o passado bestial do gênero humano tem extensão na fauna surreal e até mesmo na zoologia escatológica de Bataille. Antes, a consciência da animalidade em Hilda Hilst provém do desejo de indagar a identidade entre o homem e o bicho na sua dimensão mais prosaica, opondo, à afinidade bestial, a “vida besta” que aproxima um do outro. Entende-se por que sua imaginação zoológica jamais contempla a monstruosidade de certos animais, preferindo acomodar-se às espécies domesticáveis que compartilham a miséria humana de cada dia. Exemplos não faltam. Matamoros conta que se deitava com os meninos da aldeia, “acariciando-os junto às vacas”; Lori Lamby narra a história da moça e do jumento que se deleitavam com suas estripulias sexuais num curral de roça; Hans Haeckel escreve um conto sobre a paixão de um homem pela macaca Lisa, que vivia com ele numa pensão e “acariciava-lhe o sexo com as mãozinhas escuras, delicadas”. Essa intimidade torna-se ainda mais intensa na relação de Amós com a porca Hilde, cujos atributos humanos – branda, paciente, silenciosa, afável, boníssima, “me faz grande companhia” – a tornam próxima da porca Hillé, espécie de alter ego da autora, presente em diversos livros.
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O animal é, antes de mais nada, um semelhante. Na medida em que sua existência coincide por completo com a vida orgânica, ele enuncia um plano impessoal, puramente biológico, diante do qual as identidades ficam reduzidas tão-somente às particularidades da matéria. No silêncio de sua insignificância, ele lembra que o homem também contém “o verme no cerne” – conforme a definição de um “prodigioso”, citado numa crônica –, o que por certo corresponde à consciência impiedosa de que o corpo é provisório e perecível. Assim, se a protagonista de A obscena senhora D afirma que o “olho do bicho é uma pergunta sem resposta”, a pergunta que ele encerra desdobrase em diversas outras, colocadas pela própria autora em primeira pessoa, numa seqüência vertiginosa – “O que é ser feito de carne, heim, gente? E fruta? E maçã, com aquele rego no meio? E boca? E fome? E ser velho e disforme e verrugoso, ainda é ser? E ser uma jovem mula acariciante, mulher, loira ou crioula, é ser o quê? E o que será isso, triste, de ter que morrer?” – que se conclui, enfim, na indagação: “O que é estar vivo? E você sabe que o morto fervilha?”8 Pergunta sem resposta, o animal ostenta esse corpo às avessas que obedece apenas ao regime intensivo da matéria, deixando a descoberto as marcas imponderáveis do tempo. Diante dele, as investidas racionais do cogito ficam reduzidas à duvidosa autoridade de um “Porcus Corpus” – isto é, “este corpo de doutrina que preserva a alma do homem e alimenta de compaixão a sua matéria”, tal como o define o personagem Tadeu. A razão cede ao animal: “Porca e louca se entendem”, resume a senhora D. Daí a permanência dos “problemas indecifráveis” – para empregarmos a fórmula do místico Qadós – cujas respostas só fazem repor os enigmas da existência humana: “Para onde vão os trens, meu pai? Para Mahal, Tami, para Camiri, espaços no mapa, e depois o pai ria: também para lugar algum, meu filho, tu podes ir e ainda que se mova o trem tu não te moves de ti”9. Dada a impossibilidade de deter o fluxo do tempo, resta o fluxo rápido e desordenado de um pensamento atrelado ao provisório “tempo do corpo”, ao qual a escrita convulsiva de Hilda Hilst se abandona, obscurecendo as fronteiras entre a percepção, a sensação e a representação. Tal é a particularidade de sua prosa, marcada pela sintaxe telegráfica que muitas vezes dispensa a pontuação e multiplica os focos narrativos ao absurdo, estilhaçando não só a Idéia,
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mas também as idéias, para mostrar, no corpo da língua, o vazio insuportável que habita o centro de cada um de nós – deixando entrever o inevitável trabalho de morte que o “verme no cerne” realiza no silêncio de cada dia. O porco na língua. j
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O porco na boca: “Fecha os olhos e tenta pensar no teu corpo lá dentro. Sangue, mexeção. Pega o microscópio. Ah, eu não. Que coisa a gente, a carne, unha e cabelo, que cores aqui dentro, violeta vermelho. Te olha. Onde você está agora? Tô olhando a barriga. É horrível Ehud. E você? Tô olhando o pulmão. Estufa e espreme. Tudo entra dentro de mim, tudo sai”10. Visto assim de dentro, e portanto pelo avesso, o corpo se reduz à convulsão interna dos órgãos – “sangue, mexeção” –, cuja extensão visível, no lado de fora, é dada pelas matérias que se repõem em constante movimento. Mas, ainda que a unha, o cabelo e a carne comuniquem os dois planos, nesse corpo onde “tudo entra e tudo sai”, o único órgão que efetivamente concentra a entrada e a saída num só orifício é a boca. Ponto de passagem entre o dentro e o fora, a boca encerra portanto uma ambigüidade sem paralelos em relação a outros órgãos do corpo humano, à qual o texto de Hilda Hilst vai dedicar grande atenção. A garganta, conforme lembra o personagem de “Floema”, serve tanto para entoar cânticos divinos quanto para roncar; e o ronco “talvez seja muito importante”, ele completa. Essa dualidade também é acentuada na insistente aproximação entre o ato de comer e o de devorar: nas Cartas de um sedutor, um homem devora o bico do seio de sua amada, numa cena de ciúme que inspira a fabricação de um sorvete com “um moranguinho na ponta”; semelhante inspiração move o canibalismo imaginário da senhora D: “Se a gente mastigasse a carne um do outro, que gosto? E uma sopa de tornozelo? E uma sopa de pés? Na comida não se põe pé de porco?”11. A ambivalência torna-se ainda mais complexa quando o objeto em questão são os dentes, metáfora recorrente na obra da autora, a traduzir muitas vezes uma dimensão ontológica. “Dentes guardados. Não acabam nunca se guardados. Na boca apodrecem” –, recorda o protagonista de Com
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os meus olhos de cão, como que antecipando a pergunta que conclui uma das crônicas de Cascos & carícias : “Por que os dentes caem quando estamos velhos, mas ainda vivos, e permanecem eternos nas nossas límpidas e luzidias caveiras?”12. Essa é, de certa forma, a questão capital do último livro da escritora – Estar sendo. Ter sido –, que, não por acaso, põe em cena um personagem às voltas com seus problemas dentários. Na figura do velho e decrépito Vittorio concentram-se os impasses que ela vem investigando desde Fluxo-Floema, mas com uma radicalidade que leva ao extremo a violência poética de sua interrogação da morte. Na iminência de ficar desdentado, o personagem fica impedido de acalentar até mesmo a derradeira esperança de permanecer através dos dentes; precipitado no vazio, ele depara com o oco da caveira, figura paradoxal da ausência que traduz, no plano humano, a alteridade absoluta do Cara Cavada. Tal é, pois, a ambigüidade excessiva que recobre os dentes: se, de um lado, eles representam a única possibilidade de eternizar a matéria, de outro, viver significa necessariamente deixá-los apodrecer. É justamente porque concentra, de forma dramática, a vida e a morte que a boca pode servir de metáfora tanto das dimensões mais ideais quanto das mais abjetas: ponto de entrada e de saída, ela serve para cantar e roncar, falar e cuspir, beijar e vomitar, comer e devorar. Jogando com essa duplicidade, os versos do livro Do desejo valem-se da metáfora ora para realçar um plano físico do desejo – “E que escura me faço se abocanhas de mim / palavras e resíduos” –, ora para desvelar outro, imaterial – “Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer” –, indicando, segundo Michel Riaudel, a determinação da autora no sentido de explorar “os dois corpos da língua”13. Exploração que se revela arqueológica no caso d’O caderno rosa de Lori Lamby, onde Hilda Hilst se aventura pelas mais diversas camadas da língua, a começar pelo fato de atribuir à personagem um nome que evoca a terceira pessoa do singular do verbo lamber. Vale lembrar que as lambidas constituem o plano privilegiado das experiências narradas pela menina, que explora toda sorte de prazeres da boca, circunscrevendo um campo erótico centrado na oralidade. Como toda criança, Lori escreve como fala: seu relato é repleto de construções como “e aí o tio disse que”, “e aí a mami falou que”, “e aí o papi
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pegou e disse que”, numa narração que se organiza segundo a fala, reiterando o imperativo oral que governa o mundo infantil. Aliás, a menina só interrompe seu relato para substituir o prazer de falar-narrar pelo de comer bolo ou biscoitos. Assim também se expressa sua curiosidade pueril pela língua, tratada simultaneamente como zona erógena e simbólica: Lori pergunta ao “tio” o que significa “predestinada”, e após ouvir a explicação conclui que “a coisa de predestinada é mais ou menos assim: uns nascem pra ser lambidos e outros pra lamberem e pagarem”14. Trata-se, para ela, de conhecer o funcionamento da língua no seu duplo registro: falar, narrar, fabular, assim como lamber, chupar e sugar exigem um aprendizado sutil e interminável, que se desdobra em várias modalidades, numa notável expansão do campo da oralidade. Não é por outra razão que a figura do escritor assume um papel central no livro. Lori é filha de um autor que se consome com a tarefa de escrever um “livro de bandalheiras” para resolver suas dificuldades financeiras. Porém, “trabalhar com a língua” – termo com que a menina define a atividade do pai – pode ou não dar certo, pode ou não render dinheiro; a profissão é arriscada, sem garantias. O escritor, sobretudo aquele que recusa a tutela do mercado, sempre pode fracassar, seja no sentido comercial, seja no literário. Se Lori obtém êxito “trabalhando com a língua”, o pai fracassa. Moral da história: escrever significa correr o risco de explorar uma língua misteriosa que, com cavidades e reentrâncias secretas, impõe uma cadeia sem fim de ciladas para o autor. Disfarçado de pornografia, O caderno rosa de Lori Lamby é uma fina reflexão sobre o ato de escrever como possibilidade de jogar com os limites da linguagem. Entende-se por que a autora dedica o livro “à memória da língua”, numa epígrafe que caberia perfeitamente para o conjunto de sua obra. Se a memória da língua invoca desde a fala primitiva da criança até as mais elevadas formas literárias, ela também guarda os registros mais baixos da experiência humana no mundo. Memória caótica e perturbadora que aproxima Deus e o porco, a Idéia e a matéria, o homem e o bicho, o cósmico e o cômico, enfim, a vida e a morte, deixando descoberto o insuportável ponto de fuga que cons titui o centro do nosso desamparo.
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Por certo, explorar tal memória implica um risco que nem todo escritor suporta. Daí que muitos costumam ignorar sua vastidão vertiginosa, preferindo acomodá-la a uma medida segura. Não é o caso de Hilda Hilst. Aceitando o desafio de percorrer as dimensões mais diversas da língua, sua obra – a um só tempo humilde e corajosa – atende sem cessar ao apelo febril do último verso de suas Alcoólicas: “Estilhaça a tua própria medida”. Eliane Robert Moraes, paulistana, é crítica literária, professora de Estética e Literatura na PUC-SP e doutora em Filosofia pela USP. Publicou, entre outros, Marquês de Sade – Um libertino no salão dos filósofos (São Paulo, Educ, 1992) e Sade – A felicidade libertina (Rio de Janeiro, Imago, 1994), volumes ensaísticos. NOTAS 1 HILST, Hilda. “Fluxo”. In: Ficções. São Paulo, Edições Quíron, 1977, p. 183. 2 Idem. Trovas de muito amor para um amado senhor. São Paulo, Massao Ohno Editor, 1961, p. 24. 3 Idem. Poesia (1959-1967). São Paulo, Editora Sal, 1967, p. 188. 4 NABOKOV, Vladimir. Nicolai Gógol – uma biografia. Tradução de Terezinha B. Mascarenhas. São Paulo, Ars Poética, 1994, p. 109. 5 HILST, Hilda. “In dog we trust ou mundo-cão do truste”. In: Cascos & carícias – Crônicas reunidas. São Paulo, Nankin Editorial, 1998, p. 137. 6 Idem. Contos d’escárnio – Textos grotescos. São Paulo, Siciliano, 1990, pp. 82 e 76. 7 Idem. Ibidem, p. 77. 8 Idem. Cascos & carícias – Crônicas reunidas, op. cit., pp. 56-7. 9 Idem. “Tu não te moves de ti”. In: Com os meus olhos de cão e outras novelas. São Paulo, Brasiliense, 1986, pp. 127 e 113. 10 Idem. “A obscena senhora D”. In: Com os meus olhos de cão e outras novelas, op. cit., pp. 76-7. 11 Idem. Idbem, p. 76. 12 Idem. Cascos & carícias – Crônicas reunidas, op. cit., p. 14. 13 RIAUDEL, Michel. “A leitura no quiasma de sua sedução”. In: Leitura: teoria & prática. Campinas, Associação de Leitura do Brasil – Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, junho de 1999, p. 55. 14 HILST, Hilda. O caderno rosa de Lori Lamby. São Paulo, Massao Ohno Editor, 1990, p. 31.
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GUIA HILDA HILST
Ter sido. Estar sendo Ah, como cansa querer ser marginal Roteiro do silêncio
ÿÿÿÿOBRAS DA AUTORA
Balada do festival. Rio de Janeiro, Jornal de Letras, 1955.
1. Individuais
Sete cantos do poeta para o anjo. Ilustrações de Wesley Duke Lee. São Paulo, Massao Ohno Editor, 1962.
Poesia Presságio. Ilustrações de Darcy Penteado. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1950.
Roteiro do silêncio. São Paulo, Anhambi, 1959. Poesia (1959/1967). São Paulo, Livraria Sal, 1967. Júbilo, memória, noviciado da paixão. Capa de Anesia Pacheco e Chaves. São Paulo, Massao Ohno Editor, 1974.
Balada de Alzira. Ilustrações de Clóvis Graciano. São Paulo, Edições Alarico, 1951.
Trovas de muito amor para um amado senhor. São Paulo, Anhambi, 1960; 2ª. ed., São Paulo, Massao Ohno Editor, 1961. Ode fragmentária. São Paulo, Anhambi, 1961. 127
Poesia (1959/1979). Capa de Canton Jr. Ilustração de Bastico. São Paulo, Edições Quíron/ Instituto Nacional do Livro, 1980.
Poemas malditos, gozosos e devotos. Capa de Massao Ohno. São Paulo, Massao Ohno/ Ismael Guarnelli Editores, 1984.
Bufólicas. Desenhos de Jaguar. São Paulo, Massao Ohno Editor, 1992.
Sobre a tua grande face. Grafismos de Kazuo Wakabayashi. São Paulo, Massao Ohno Editor, 1986.
Da morte. Odes mínimas. Ilustrações de Hilda Hilst. São Paulo, Massao Ohno/ Roswitha Kempf Editores, 1980; reeditado em edição bilíngue: Da morte. Odes mínimas/ De la mort. Odes minimes.*
Cantares de perda e predileção. Capa de Olga Bilenky. São Paulo, Massao Ohno/ M. Lídia Pires e Albuquerque Editores, 1983.
Do desejo. Capa de João Baptista da Costa Aguiar. Campinas, Pontes, 1992. Cantares do sem nome e de partidas. Capa de Arcangelo Ianelli. São Paulo, Massao Ohno Editor, 1995. Amavisse. Capa de Cid de Oliveira. São Paulo, Massao Ohno Editor, 1989.
Narrativa Alcoólicas. Xilogravura da capa de Antonio Padua Rodrigues. São Paulo, Maison de Vins, 1990.
Fluxo-Floema. São Paulo, Perspectiva, 1970.
Qadós. Capa de Maria Bonomi. São Paulo, Edart, 1973.
* Ver “Traduções”.
128
Ficções. Capa de Mora Fuentes. São Paulo, Edições Quíron, 1977.
Tu não te moves de ti. Capa de Mora Fuentes. São Paulo, Cultura, 1980.
de Hilda Hilst. São Paulo, Brasiliense, 1986.
Cartas de um sedutor. Capa de Pinky Wainer. São Paulo, Paulicéia, 1991.
O caderno rosa de Lori Lamby. Ilustrações de Millôr Fernandes. São Paulo, Massao Ohno Editor, 1990; 2ª. ed., São Paulo, Massao Ohno Editor, 1990.
Rútilo nada. A obscena senhora D. Qadós. Capa de Mora Fuentes. Campinas, Pontes, 1993.
Contos d’escárnio/ Textos grotescos. Capa de Pinky Wainer. São Paulo, Siciliano, 1990; 2ª. ed., São Paulo, Siciliano, 1992.
Teatro**
Estar sendo. Ter sido. Ilustrações de Marcos Gabriel. Capa de Cláudia Lammoglia. São Paulo, Nankin Editorial, 1997.
A obscena senhora D. Capa de Mora Fuentes. São Paulo, Massao Ohno Editor, 1982.
A possessa, 1967. O rato no muro, 1967. O visitante, 1968. Auto da barca de Camiri, 1968. O novo sistema, 1968.
Com os meus olhos de cão e outras novelas. Capa de Maria Regina Pilla, com ilustração
As aves da noite, 1968. ** Todas as obras, com exceção de O verdugo, são inéditas.
129
A morte do patriarca, 1969. O verdugo. São Paulo, Conselho Estadual de Cultura, 1970. Crônicas Cascos & carícias: crônicas reunidas (1992-1995). Capa de Cláudia Lammoglia. São Paulo, Nankin Editorial, 1998.
2ª. ed., Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1998, pp. 39-40. 2. Em parceria Renina Katz: serigrafias. Poema de Hilda Hilst. São Paulo, Cesar, 1970. 3. Traduções
a trilogia obscena e o Carmelo bufólico de Hilda Hilst (Mestrado em Teoria Literária). São Paulo, Universidade Estadual de Campinas, 1996. CHIARA,
Ana Cristina de Rezende. Leituras malvadas (Doutorado em Literatura Brasileira). Rio de Janeiro, Pontifícia Universidade Católica, 1996.
Para o francês GRANDO,
Contes sarcastiques – fragments érotiques. Tradução de Maryvonne Lapouge-Pettorelli. Paris, Gallimard, 1994. L’obscène madame D suivi de le chien. Tradução de Maryvonne Lapouge-Pettorelli. Paris, Gallimard, 1997. Antologia poética Do desejo. Capa de João Baptista da Costa Aguiar. Campinas, Pontes, 1992. Do amor. Capa de Arcangelo Ianelli. São Paulo, Edith Arnhold/ Massao Ohno Editores, 1999.
Da morte. Odes mínimas/ De la mort. Odes minimes. Edição bilíngue. Tradução de Álvaro Faleiros. Ilustrações de Hilda Hilst. São Paulo, Nankin Editorial/ Montreal, Le Noroît, 1998. Para o italiano Il quaderno rosa di Lori Lamby. Tradução de Adelina Aletti. Roma, Sonzogno, 1992. FORTUNA CRÍTICA
Cristiane. Amavisse de Hilda Hilst. Edição genética e crítica (Mestrado em Língua e Literatura Francesa). São Paulo, Universidade de São Paulo, 1998.
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Clara Silveira. A escritura delirante em Hilda Hilst (Doutorado em Comunicação e Semiótica). São Paulo, Pontifícia Universidade Católica, 1993. MAFRA,
Inês da Silva. Paixões e máscaras: interpretações de três narrativas de Hilda Hilst (Mestrado em Literatura Brasileira e Teoria Literária). Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, 1993.
TODESCHINI, Maria Thereza. O mito em jogo: um estudo do romance A obscena senhora D, de Hilda Hilst (Mestrado em Literatura Brasileira e Teoria Literária). Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, 1993. YONAMINE, Marco Antonio. Ara-
Participação em coletânea
1. Dissertações e teses
“Agüenta coração”. In: Onze em campo e um banco de primeira.
AZEVEDO FILHO,
Deneval Siqueira de. Holocausto das fadas: 130
besco das pulsões: as configurações da sexualidade em A obscena senhora D, de Hilda Hilst (Mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada). São Paulo, Universidade de São Paulo, 1991.
2. Apresentações e ensaios incluídos em livros
terra: escritor brasileiro hoje. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda/ São Paulo, Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, 1985, pp. 237-48. MILLIET,
CASTELLO,
José. “Hilda Hilst – A maldição de Potlatch”. In: —. Inventário das sombras. Rio de Janeiro, Record, 1999, pp. 91-108.
Nelly Novaes. “A poesia obscura/luminosa de Hilda Hilst e a ‘metamorfose’ de nossa época”. In: HILST, Hilda. Poesia (1959-1979). São Paulo, Edições Quíron/ Instituto Nacional do Livro, 1980, pp. 275-325.
Sérgio. “Julho 1949 a dezembro 1950”. In: Diário crítico, v. 7. São Paulo, Martins, s.d., pp. 297-8.
MILLIET,
Sérgio. “1955-1956”. In: Diário crítico, v. 10. São Paulo, Martins, s.d., pp. 57-60.
COELHO,
COELHO,
Nelly Novaes. “Um diálogo com Hilda Hilst”. In: Feminino singular: a participação da mulher na literatura brasileira contemporânea. São Paulo, GRD/ Rio Claro, Arquivo Municipal, 1989, pp. 136-60.
DUARTE, Edson Costa e MACHADO, Clara Silveira. “A vida: uma
aventura obscena de tão lúcida”. In: HILST, Hilda. Estar sendo. Ter sido. São Paulo, Nankin Editorial, 1997, pp. 119-24. DUARTE, Edson Costa. “A poesia
amorosa de Hilda Hilst”. In: HILST, Hilda. Do amor. São Paulo, Edith Arnhold/ Massao Ohno Editores, 1999, pp. 89-95. MEDINA ,
Cremilda. “Hilda Hilst – A palavra, braço do abismo à lucidez”. A posse da
RIBEIRO,
Leo Gilson. [Apresentação]. In: HILST, Hilda. Ficções. São Paulo, Quíron, 1977, pp. IX-XII. RIBEIRO, Leo Gilson. “Hilda, encantamento místico inigualável”. In: HILST, Hilda. Poemas malditos, gozosos e devotos. São Paulo, Massao Ohno/ Ismael Guarnelli Editores, 1984, pp. 9-16. ROSENFELD,
Anatol. “Hilda Hilst: poeta, narradora, dramaturga”. In: HILST, Hilda. Fluxo-Floema. São Paulo, Perspectiva, 1970, pp. 10-7. ROSENFELD,
Anatol. “O teatro brasileiro atual”. In: —. Prismas do teatro. São Paulo, Perspectiva, Editora da Universidade de São Paulo/ Campinas, Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1993, pp. 167-8. “[…] A supremacia feminina entre os novíssimos é fortalecida pela obra teatral de Hilda Hilst. Embora não pertencendo à mesma geração e já consagrada como poeta, só recentemente 131
invadiu o campo da dramaturgia. O teatro de Hilda Hilst [...] não se filia a nenhum grupo. A autora é uma espécie de unicórnio dentro da dramaturgia brasileira. Suas peças revelam acentuado teor poético e certas tendências místico-religiosas, conquanto fora dos padrões de qualquer religião tradicional. Estilisticamente tendem ao impressionismo, em virtude de certa abstração que dá às personagens cunho arquetípico. A despeito do que possa parecer à primeira vista, quase todas as suas peças giram, pelo menos em vários de seus planos, em torno de questões atuais, abordadas, no entanto, em termos simbólicos ou alegóricos. Ressurge, com insistência, o problema do sufocamento do indivíduo e do amor, do esmagamento da criatividade, da juventude, da justiça, da liberdade, sob o peso das engrenagens tradicionais e dos podres anônimos do nosso ‘mundo administrado’ e tecnicizado. São dignas de nota a alta qualidade literária dos seus textos, assim como a experimentação de versos coloquiais adequados à cena moderna./ Embora peças suas já tenham sido encenadas com êxito por grupos amadores, (O rato no muro, O visitante, O novo sistema), uma delas na Colômbia por ocasião de um festival, sua obra ainda não encontrou o acolhimento das companhias profissionais. Estas certamente se interessarão mais pela sua dramaturgia depois de ela ter sido distinguida com o Prêmio Anchieta, de 1969, pela sua
peça O verdugo, focalização dramática de problemas religiosos, morais e políticos do nosso e de todos os tempos”. RUSCHEL, Rita. “Hilda Hilst”. In: —. Meus tesouros da juventude. São Paulo, Summus, pp. 51-63.
texto sobre a morte”. O Estado de S.Paulo, 16.08.98.
Jorge. “Lori Lamby resgata paraíso perdido da sexualidade”. Folha de S.Paulo, 06.04.91.
sai incólume. Hilda Hilst não faz parte da família de escritores que se detêm nas palavras, que as burilam como ourives, que as ajustam como peças de relojoeiros, ao modo de Racine ou Flaubert, Machado de Assis ou Bilac. Ela investe suas frases de uma dinâmica movente, ritmadas por uma força a um tempo natural e poderosa, fruto de uma escrita que brota fecundada pela necessidade imediata de escrever: eram assim Stendhal, Dostoiévski, Hugo ou Proust./ Sua poesia – mas sua prosa também – atinge o cerne dos nossos destinos. Ela sempre suscita aquilo que somos, para além das palavras, para além das éticas e dos valores. Hilda Hilst é feiticeira, antes, é pitonisa: seus versos misteriosos nascem de uma embriaguez divina que nos faz entrever o essencial de que nos esquecemos. Coisas que transformamos em ausentes e que pertencem, de modo justo, ao sem nome, como diz o título deste seu livro [...]”.
COLI,
COMODO,
CICCACIO, Ana Maria. “Novem-
bro, mês fértil para Hilda Hilst”. Jornal da Tarde, São Paulo, 13.10.89. COELHO, Nelly Novaes. “Qadós:
SENA, Jorge de. “Palavras de Jor-
ge de Sena (a propósito de Trovas de muito amor para um amado senhor)”. In: HILST, Hilda. Poesia (1959-1979). São Paulo, Edições Quíron/ Instituto Nacional do Livro, 1980, pp. 2734 (reeditado c/ o título Trovas de muito amor para um amado senhor – Hilda Hilst. In: SENA, Jorge de. Estudos de cultura e literatura brasileira. Lisboa, Edições 70, 1988, pp. 161-2). VINCENZO,
Elza Cunha de. “O teatro de Hilda Hilst”. In: —. Um teatro da mulher. São Paulo, Perspectiva, 1992, pp. 33-80. 3. Artigos de jornais
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a busca e a espera”. O Estado de S.Paulo, 24.03.74. COELHO, Nelly Novaes. “Da morte. Odes mínimas”. O Estado de S.Paulo, 22.02.81. COELHO,
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COELHO, Nelly Novaes. “Hilda
Hilst: entre o eterno e o efêmero”. O Estado de S.Paulo, 15.07.84. COLI,
Jorge. “Meditação em imagens”. Folha de S.Paulo, 14.06.96. “[...] Mais recente, seu Cantares do sem nome e de partidas retoma um caminho meditativo. São dez poemas curtos que se encadeiam, formando núcleos que adquirem uma quase autonomia, mas cujo sentido maior se dá na relação que mantêm entre si. Creio que seu efeito mais imediato é o da comoção: ele absorve o leitor desde os primeiros versos num fluxo de pulsões de onde não se 132
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quando não francamente noturna, em que nos arrastamos [...]”.
Paulo. “Teatro – Hilda Hilst”. Folha de S.Paulo, 04.09.68. “Leio que na segunda quinzena deste mês será apresentada, no Teatro Anchieta, a primeira peça de teatro de Hilda Hilst. O nome de Hilda Hilst dispensa apresentações e explicações. Título da peça: O novo sistema […] Esse mundo de poesia e filosofia murchas e de cientificismo triunfante é, no entender de Hilda Hilst, o nosso mundo, cujas contradições cuja angústia e cuja possível redenção ela coloca, de forma simbólica, em sua peça. Mas quando Hilda me deu o texto para ler e pela primeira vez sobre ele conversamos, o que eu mais senti foi a angústia, uma espécie de sufocamento intelectual da escritora, num tempo em que ela não parece mais ver possibilidades de plena realização humana, apesar da sua agudíssima sensibilidade e de seu grande poder verbal. O teatro, quem sabe, é para ela uma desesperada tentativa de comunicação – mais direta, o mais eficiente, menos subjetiva do que a poesia – o veículo de proposição do que ela chama de o ‘homem solar’, ausente desta realidade crepuscular, 133
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Leo Gilson. “Hilda Hilst: ‘ Eu quero é uma junção do misticismo com a ciência’”. O Estado de S.Paulo, 15.03.80. RIBEIRO,
Leo Gilson. “A morte saudada em versos iluminados. Por Hilda Hilst”. Jornal da Tarde. São Paulo, 18.10.80. RIBEIRO,
Leo Gilson. “Os versos de Hilda Hilst, integrando a nossa realidade”. Jornal da Tarde. São Paulo, 14.02.81. RIBEIRO,
Leo Gilson. “Mais uma obra de Hilda Hilst. Com todos os superlativos”. Jornal da Tarde. São Paulo, 20.11.82.
RIBEIRO , Leo Gilson. “Hilda Hilst, cósmica e atemporal. Em busca de Deus”. Jornal da Tarde. São Paulo, 17.01.87. RIBEIRO,
Leo Gilson. “Luminosa despedida”. Jornal da Tarde. São Paulo, 04.03.89. ROSENFELD, Anatol. “O teatro de Hilda Hilst”. Suplemento Literário d’O Estado de S.Paulo, 21.01.69. SÁ, Sérgio de. “Hilda Hilst”. Correio Braziliense. Brasília, 15.02.98. SANTOS,
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Folha de S.Paulo. 16.04.97. TAIAR,
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THEVENET, Claudia. “Hilda Hilst revê seus livros polêmicos”. O Globo. Rio de Janeiro, 03.06.98. VALENÇA, Jurandy. “Novas traduções para Hilda Hilst”. Correio Popular. Campinas, 15.10.95. VASCONCELOS, Ana Lúcia. “Hilda Hilst: a poesia arrumada no caos”. Folha de S.Paulo, 19.09.77. “[…] Há algum tempo, ela [Hilda Hilst] se queixou em carta ao escritor português Virgílio Ferreira (autor de Aparição, Nítido nulo e outros), de que era muito pouco lida./ Ao responder, ele declarou sua certeza de que os textos de Hilda pertencem mais aos leitores de amanhã: ‘Estes a lerão, decerto, como já agora te lêem evidentemente depois de terem refletido que o homem também é homem no intestino grosso’. A propósito da última frase, Virgílio resume o sentido das obras da autora como uma ‘preocupação de trazeres Deus até as fezes do homem, de envolveres o mais baixo na sublimação pelo mais alto’./ Hilda desarticula a língua ‘juntando na mesma convulsão os elementos mais díspares forçando a lógica habitual das pessoas bem comportadas’, observa ainda o romancista português. É aí exatamente que ela afirma sua posição de artista e, afinal, de ser humano, mulher. / ‘Comecei me desestruturando depois de 20 anos de poesia arrumada. E essa linguagem ordenada, de comportamento
134
que quero desordenar, reflete a época, o movimento visceralmente conturbado. É preciso dominar uma desordem para que aconteça alguma novidade real dentro de você. Há uma reformulação de linguagem como deve haver um reformulação de comportamento’[...]”. WEINTRAUB,
Fabio. “Poeta se mantém fiel a temas e imagens”. O Estado de S.Paulo, 17.08.96. “[...] Desejo sem objeto, eclipse do ego, aceitação do vazio, renúncia aos preenchimentos imaginários… não parece inédita a insistência nesse ‘erotismo ontológico’ presente nos textos de Hilda. Erotismo que permite filiar sua produção tanto ao misticismo espanhol do século 16 quanto à obra da filósofa francesa Simone Weil, de quem Hilda, mais de uma vez, já se confessou leitora voraz. Dessa Simone que escreveu: ‘Não pensar jamais em uma coisa ou um ser que se ama e não se tem diante dos olhos, sem imaginar que talvez essa coisa foi destruída ou esse ser morto. Que esse pensamento não dissolva o sentimento de realidade, senão que o torne mais intenso’ […] Tais obsessões não são de modo algum novas na poesia de Hilda. Essa concepção de um amor que se afirma à distância, de ‘desapropriação’ do sujeito… também encontramos, à guisa de exemplo, num livro como Amavisse (1989), onde a condição pretérita do amor (amavisse: ter amado) é o que possibilita sua emergência poética pelo diapasão da me-
mória […]. É realmente espantosa a coerência de Hilda, a fidelidade a determinados temas e imagens que se repetem em sua lírica. Recorrência que pode ser flagrada até mesmo no âmbito mais estrito das metáforas zoológicas de que a autora comumente se serve (aves, peixes, tigres, cavalos…). Animais entre os quais comparece, nesse último livro, o aziago corvo de Poe; numa brincadeira intertextual que vem se tornando cada vez mais intensa na produção recente de Hilda (sobretudo na sua vertente narrativa) […]”. WERNECK,
Humberto. “Hilda se despede da seriedade”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 17.02.90. WILLER,
Claudio. “Pacto com o hermético”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 17.02.90. “Amavisse, de Hilda Hilst, teria que figurar entre os principais lançamentos de obras poéticas da década de 80. Obra de síntese e integração, corresponde a um clímax de sua produção, que ela agora ameaça encerrar, depois da próxima publicação de um livro debochado, O caderno rosa [...]. É uma poesia noturna, lunar, herdeira do Romantismo: ‘De ti me vem/ a noite tingida de matizes, flutuante/ De mitos e de águas. Inaudita’. Ao falar da experiência noturna em seu lado revelador e abissal, permite paralelos com obras da envergadura de Água viva, de Clarice Lispector. Por exemplo, ao enxergar ‘um oco fulgente num todo escan-
carado./ E um negrume de traços nas paredes de cal/ Onde a mulher avesso se meteu.’ / Trechos como esse poderiam ser de prosa e estar na obra em prosa de Hilda Hilst. O mesmo vale para uma temática, que também é uma obsessão, presente em Amavisse e em vários dos textos de Com os meus olhos de cão, como Qadós: o confronto com Deus, mas um Deus mutante, animalesco [...]. Sua cosmogonia paradoxal permite estabelecer vínculos de Hilda Hilst e outros autores rebeldes, mostrando afinidades que não estão na superfície, na obra manifesta. A imprecação contra um Deus opressor é radicalizada, por exemplo, em Para acabar com o julgamento de Deus, de Artaud. E em estrofes dos Cantos de Maldoror, de Lautréamont. Numa delas, é invertida uma passagem da Divina comédia. Deus, ocupando o lugar do diabo dantesco, devora seres humanos que apodrecem num charco […]”.
4. Artigos de revistas
ABREU, Caio Fernando. “‘Deus pode ser um flamejante sorvete de cereja’ – Hilda Hilst”. Leia. São Paulo, janeiro de 1987. ARCO E FLEXA, Jairo. “Muita agonia”. Veja. São Paulo, 07.01.81. FARIA,
Álvaro Alves de. “Hilda Hilst, o silêncio estrondoso”. Caros amigos. São Paulo, dezembro de 1998. FIORILLO,
Marília Pacheco. “Para refletir”. Veja. São Paulo, 16.04.80. FRAGATA, Cláudio. “Entre a físi-
ca e a metafísica, Hilda Hilst”. Globo Ciência. São Paulo, agosto de 1996. GONÇALVES,
WILLER,
Claudio. “O conflito entre a sociedade e o escritor”. Jornal da Tarde. São Paulo, 26.05.90.
SEM ASSINATURA.
“Poetisa tem duas peças em cartaz”. O Estado de S.Paulo, 10.12.68.
SEM ASSINATURA. “O teatro de Hilda Hilst”. O Estado de S.Paulo, 25.01.69. SEM ASSINATURA. “Hilda Hilst”.
Jornal da Tarde. São Paulo, 23.04.74. 135
José Eduardo. “O exílio delicado da paixão”. Palavra, Belo Horizonte, setembro de 1999.
GRANDO, Cristiane. “Leitura genética do poema ‘Se tivesse madeira e ilusões’”, de Hilda Hilst. Manuscrítica: revista de crítica genética. São Paulo, março de 1998. JOZEF, Bella. “Hilda Hilst: o poeta, a palavra e a morte”. Minas Gerais – Suplemento Literário. Belo Horizonte, 12.12.1981.
LIMA,
Mariângela Alves de. “Sem pés na terra”. Veja. São Paulo, 25.04.73.
LUSVARGHI, Luiza. “A literatura é mulher. Feminino plural”. Leia. São Paulo, janeiro de 1990. MAYRINK,
Geraldo. “Dona da palavra”. Veja. São Paulo, 21.05.97. “[...] No meio vêm as lembranças de um certo Vittorio, poeta de 65 anos, cheio de máscaras, bebedor impiedoso e às vezes hilariante no julgamento da vida. Embora com passagens picantes, [Estar sendo. Ter sido] em nada se compara a O caderno rosa de Lori Lamby ou A obscena senhora D, pornografia assumida [...]. Escrito durante três anos, numa velha máquina Lettera 22, Estar sendo. Ter sido não teve noite de autógrafo e nenhuma resenha crítica na imprensa um mês depois de lançado [...]”.
MOURA,
Diógenes. “A clausura de Hilda Hilst”. República. São Paulo, junho 1997.
MUZART,
Zahidé Lupinacci. “Notas marginais sobre o erotismo: O caderno rosa de Lori Lamby”. Travessia, nº. 22. Florianópolis, 1991. QUINLAN,
Susan-Canty. “O exílio fictício em A obscena Senhora D de Hilda Hilst”. Revista de crítica literária latino-americana. Berkeley (Califórnia, EUA), 1994.
RIAUDEL,
Michel e OLIVIERIRita. “Hilda Hilst et Adélia Prado – Poèmes”./ Pleine marge: cahiers de littérature, d’arts plastiques e critique. Paris, Éditions Peeters-France, 1997. “[…] Em Hilda Hilst [a linguagem] se constitui no e pelo desejo[…]/ Leitora de Bataille, a obra de Hilda, no que concerne à sua prosa, está mesmo pronta para se profanar no obsceno, entre a gnose e a pornografia, na blasfêmia, sorte de prece ao avesso. Mas esta inversão é de natureza nova. Devese à instabilidade de um sujeito sem lugar designado, em busca de um vínculo que, nem bem se entrevê, logo se desfaz. Espécie de Arquíloco errante, este ser em dissipação convoca à união e ao desapego de si, donde nascem imagens e símbolos da poesia lírica. Sua obra testemunha a nostalgia de uma perfeição, de uma totalidade não obstante incertas. / O corpo, com o que pretendia ter de animal, avança com a aparência de uma objetividade completamente alegórica cujo fundamento é a língua, profusa, rara, familiar, arcaica, em seu maior distanciamento possível. Assim Hilda define o processo criativo: primeiro conhecer a própria língua de modo absoluto. Depois esquecer que a conhece e tudo recomeçar, a fim de nela executar o passo novo [...]”. GODET,
RIBEIRO,
Leo Gilson. “Hilda Hilst”. Revista Goodyear. São Paulo, julho-agosto de 1989. 136
RIBEIRO, Rodrigo Petronio. “Passeio pelo mistério”. Bravo! São Paulo, setembro de 1999. “Se há uma palavra a sintetizar Do amor […] e, de um modo geral, a dar uma noção da trajetória literária de Hilda Hilst ao longo de quase cinco décadas, essa palavra seria celebração. Mística? O adjetivo pode não ser pertinente, ainda que se saiba a importância que a dimensão transcendental da realidade tem para a autora. Talvez seja a simples celebração da existência e do momento presente como portadores de uma verdade e de um significado oculto, que escapa ao leitor. Esse mistério pode ser acessado pelo sexo […], ou pela ascese […]. Há, porém, uma terceira via: o amor, motivo da presente antologia […]”. WILLER,
Claudio. “A luz especial que brilha nessas odes. Da morte. Odes mínimas”. Istoé. São Paulo, 15.02.80.
SEM ASSINATURA.
“Esperando Haydum”. Veja. São Paulo, 09.12.70. 5. Depoimentos e entrevistas
“Quatro conversas com o mistério Hilda Hilst”. Jornal da Tarde. São Paulo, 24.06.72. Entrevista a Cláudio Bojunga. “[…] Para compreender o
homem, deve estar a uma certa distância, sofrer e não sofrer. Os temas que me interessam? O tempo, o existir, o corpo, os objetos. A luta dos homens contra a couraça que eles se fabricaram para suportar as múltiplas agressões.[…] Para mim, a importância da ficção consiste em desnudar-se, num ato de despojamento, de entrega. O homem é um ser dividido: de um lado, as preocupações do cotidiano, a luta pela subsistência, o muro dos esquemas. Do outro, uma vontade limitada de expansão […]. Quando estou trabalhando numa peça ou num texto, acordo cedo, e sofro a mesma tensão da pessoa que levanta no dia da sua operação”. “As múltiplas seduções de Hilda Hilst”. Jornal da Tarde. São Paulo, 18.04.77. Entrevista a Leo Gilson Ribeiro. “Hilda Hilst, porque a palavra é fé”. O Estado de S.Paulo, 27.05.84. Entrevista a Ana Maria Ciccacio. “[…] Não é obsessivo eu discutir sobre a morte. Mas sente-se alguma nostalgia de alguma eternidade havida. Por que o escritor viveria obcecado com a própria finitude? Arthur Koestler disse que a morte biológica é recente. Acontece que o homem não quer pensar. Arthur Miller questiona: Não é verdade, não pode ser que a vida seja apenas essa sórdida escaramuça para conseguir bens materiais. Dizer que essa é a única realidade é um absur-
do, mas de repente, se você faz uma narrativa que tenha um só fio, como roteiro – sem historinha com começo, meio e fim –, mas falando de tudo, do teu mundo, assusta. Quando falo da finitude não ser mais, recuso-me a contar uma historinha para contar minha experiência maior, numa atitude extremamente política. Eu falo de um Brasil de quatro, do qual se tomou tudo […]”. “Hilda Hilst. Uma conversa emocionada. Sobre a vida, a morte, o amor e o ato de escrever”. Jornal da Tarde, 21.06.86. Entrevista a Sônia de Amorim Mascaro. “[…] Normalmente você não pode dizer – eu hoje vou escrever um poema – da mesma forma que você diz – eu hoje vou continuar meu trabalho de ficção, de prosa. Escrever ficção é um trabalho mais ou menos disciplinado. A poesia, não. A poesia você não programa, é um estado quase inexplicável porque surge a qualquer momento. O primeiro verso aparece para você. Outro dia, de repente, me veio uma frase assim: ‘Uma égua na água sob a lua’. Achei a frase bonita, anotei e coloquei-a em minha mesa. Às vezes eu anoto umas frases e coloco em minha mesa […] Depois de mais ou menos uns 30 dias, por acaso, eu estava folheando um dicionário de autores estrangeiros, quando leio a história do poeta chinês Li Tai Po, que embriagado sai de barco uma noite e, ao que137
rer apanhar a lua refletida no lago, mer gulha na água e morre. Quando terminei de ler essa história, de repente, me veio um fluxo amoroso, um sentimento que não sei definir, uma coisa febril, como se você estivesse entrando em contato com algo que não sabe explicar. É um sentimento quente, fervoroso, e então a poesia vem quase num fluxo, quase inteira […] A poesia vem, sem você arrumar muito, com esse ardor, esse vermelho todo, e então eu vou escrevendo o poema. Depois eu arrumo poucas palavras, porque, nesses dias todos, aquelas imagens já estavam dentro de mim […]”. “Nossa mais sublime galáxia”. Jornal de Brasília, 23.04.89. Depoimento a Celso Araújo e Severino Francisco. “Livros eróticos, escritora nervosa”. O Globo. Rio de Janeiro, 11.11.90. Entrevista a Denise Lima. “Palavras abaixo da cintura”. Interview. São Paulo, março de 1991. Entrevista a Hussein Rimi. “Hilda Hilst troca pornô por erotismo”. O Estado de S.Paulo, 22.06.92. Entrevista a José Castello. “Hilda Hilst investe nos limites do relacionamento”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 26.09.93. Entrevista a Denise Moraes.
“Uma senhora nada comportada”. Elle. São Paulo, junho de 1994. Entrevista a Mario Mendes. “A obscena senhora Hilst”. Interview. São Paulo, outubro de 1994. Entrevista a Beatriz Cardoso.
falo em português. Ir lá para quê? […]”
Para o teatro “Hilda Hilst, 69, pára de escrever: ‘Está tudo lá’”. Folha de S.Paulo, 12.07.99. Entrevista a Marilene Felinto. MONTAGENS TEATRAIS
“Hilda Hilst cria personagem marcante”. O Estado de S.Paulo, 23.03.96. Entrevista a Jurandy Valença. “Hilda Hilst”. In: BUENO, Maria Aparecida. Quatro mulheres e um destino (Hilda Hilst, Fernanda Torres, Fernanda Montenegro e Eliane Duarte). Rio de Janeiro, UAPÊ, 1996, pp. 18-52. Entrevista a Maria Aparecida Bueno. “Hilda e seus personagens não param de pensar”. O Estado de S.Paulo, 31.05.97. Entrevista a Luíza Mendes Furia. “Entrevista: Hilda Hilst”. Cult. São Paulo, julho de 1998. Entrevista a Bruno Zeni. “[…] – Você foi convidada a participar do Salão do Livro de Paris deste ano e se recusou a ir. Por quê?/ – Eu não vou nem a Pirituba mais. Eu acho um engodo você ter que apa recer e se mostrar. Eu quero que me leiam. Eu não quero ficar explicando o meu trabalho. Você acha normal ficar explicando? E também só sei falar a minha língua. Leio muito bem em francês, mas não saberia falar em outra língua as coisas que eu
ADAPTAÇÕES
Maria Matamoros. Direção de Tereza Mendes. São Paulo, Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), 1991. A obscena senhora D. Direção de Eid Ribeiro e Vera Fajardo. Rio de Janeiro, Casa da Gávea, 1993.
O rato no muro. Direção de Terezinha Aguiar. São Paulo, Teatro Anchieta, 1968 (montagem apresentada também no Festival de Teatro de Manizales, Colômbia, 1969); direção de Silvano Ferreira, Teatro do Sesc-Cascavel (PR), 1984. O visitante. Direção de Terezinha Aguiar. São Paulo, Teatro Anchieta, 1968.
Cartas de um sedutor. Direção de Marcus Vinicius de Arruda Camargo. São Paulo, Teatro Projeto Equilíbrio, 1995. O caderno rosa de Lori Lamby. Direção de Bete Coelho. São Paulo, Núcleo Experimental de Teatro (N.Ex.T.), 1999. SITE NA INTERNET
O novo sistema. Direção de Terezinha Aguiar. São Paulo, Teatro Veredas, 1970. As aves da noite. Direção de Antônio do Valle. São Paulo, Teatro Ruth Escobar, 1980; direção de Carlos Murtinho, Rio de Janeiro, Teatro do Senac, 1982. O verdugo. Direção de Nitis Jacon A. Moreira. Londrina, Universidade Estadual de Londrina, 1972; direção de Rofran Fernandes, São Paulo, Teatro Oficina, 1973. 138
http://www.angelfire.com/ri/ casadosol/hhilst.html FONTES DO GUIA HILDA HILST Dedoc - Departamento de Documentação da Editora Abril; Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio, do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp; Coleção Ésio Macedo Ribeiro; Arquivo da autora; Arquivo IMS; Serviço de Atendimento ao Usuário da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
AG R A D E C I M E N TO S
Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio, do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Carlos Eduardo Ornelas Beniel, Flávia Carneiro Leão e equipe), Carlos Vogt, Ésio Macedo Ribeiro e também: Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, Dedoc - Departamento de Documentação da Editora Abril, Departamento de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Departamento de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Elza Cunha de Vincenzo, Fabio Weintraub (Nankin Editorial), Faculdade de Ciências e Letras do Centro Universitário Newton Paiva (Belo Horizonte), Oscar Pilagallo, Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais, Renata Pallottini, Serviço de Atendimento ao Usuário da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Yuri V. Santos.
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CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA
À venda nas principais livrarias do país, nos espaços culturais do Instituto Moreira Salles e em Portugal Número 1 – João Cabral de Melo Neto (mar. 96) Número 2 – Raduan Nassar (set. 96) Número 3 – Jorge Amado (mar. 97) Número 4 – Rachel de Queiroz (set. 97) Número 5 – Lygia Fagundes Telles (mar. 98) Número 6 – Ferreira Gullar (set. 98) Número 7 – João Ubaldo Ribeiro (mar. 99) Número 8 – Hilda Hilst (out. 99)
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ESTA OBRA FOI COMPOSTA PELA BEI˜ • COMUNICAÇÃO EM GARAMOND E GILL SANS COM FOTOLITOS E IMPRESSÃO DA TAKANO EDITORA GRÁFICA PARA O INSTITUTO MOREIRA SALLES EM OUTUBRO DE 1999.