CADERNOS DE B R A S I L E I R A
Millôr Fernandes
LITERATURA
CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA
Anotações para a peça Duas tábuas e uma paixão (1982)
INSTITUTO MOREIRA SALLES
Millôr Fernandes
15 NÚMERO
INSTITUTO MOREIRA SALLES
ISSN 1413-652X
CADERNOS DE
LITERATURA B R A S I L E I R A
CADERNOS DE
LITERATURA B R A S I L E I R A
Diretor Editorial Editor Executivo Editora Edição de Arte e Finalização Fotógrafo Assistente Editorial Assistente de Produção Circulação
Antonio Fernando De Franceschi Rinaldo Gama Francesca Angiolillo Bei Comunicação Edu Simões Adam Sun Acássia Correia da Silva Edson Micael de Souza Santos
Colaboraram nesta edição: Carlos Heitor Cony, Carlos Lyra, Chico Caruso, Fernanda Montenegro, Geraldo Carneiro, Jaguar, Leonel Kaz, Rogério Reis, Sérgio Augusto, Zuenir Ventura (Rio de Janeiro); Alberto Dines, Elias Thomé Saliba, Gianni Ratto, José Luiz Herência, Juan Esteves, Márcio Suzuki, Maria Sílvia Betti, Mariangela Alves de Lima, Maria Eugênia (São Paulo); Ariano Suassuna (Recife); Luis Fernando Verissimo (Porto Alegre); Sheila Leirner (Paris).
NÚMERO
15 - JULHO DE 2003
CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA é uma publicação semestral do Instituto Moreira Salles.
FOLHA DE ROSTO, 4 MEMÓRIA SELETIVA, 8 CONFLUÊNCIAS, 17 ENTREVISTA, 28 GEOGRAFIA PESSOAL, 50 INÉDITOS/MANUSCRITOS/DESENHOS, 70 ENSAIOS, 94 GUIA, 168
F O L H A D E R O S TO
A bíblia do cético COM
UM ESTILO QUE
64
ANOS DE ATIVIDADE NA IMPRENSA AJUDARAM A
CONSOLIDAR, A OBRA MULTIFACETADA DE
MILLÔR FERNANDES RECLAMA UM
OLHAR SÉRIO DIANTE DE SEU HUMOR ORIGINAL E PARTICULARMENTE CRÍTICO
“Para um escritor, o mais perigoso dos ofícios é ser jornalista, pois o jornalismo se parece com a literatura o suficiente para contaminá-la. O jornalismo mancha a literatura e o escritor deve evitá-lo. Não pude evitá-lo. Nenhum escritor de nossa época consegue evitá-lo de todo”. A afirmação é do ficcionista e poeta argentino Jorge Luis Borges (1899-1986)1, vale para um punhado de autores, porém no caso de Millôr Fernandes poderia ser reescrita com a mesma troca de sinais que ele costuma empregar em máximas alheias. Algo assim: “Para um escritor, o menos perigoso dos ofícios é ser jornalista, pois o jornalismo se parece com a literatura o suficiente para conquistá-la. O jornalismo esclarece a literatura e o escritor não deve evitá-lo. Não quis evitá-lo. Nenhum escritor de nossa época deve evitá-lo como um todo”. Ainda na adolescência, Millôr, hoje às vésperas de completar 80 anos, se aproximou da imprensa. Desde então, em que pesem suas várias habilidades – escreve, desenha, traduz, faz cenários etc. –, sempre preferiu ser chamado de jornalista. O jornalismo, no entanto, se parece com a literatura o suficiente para, por vezes, alcançá-la. Em mais de seis décadas de trabalho ininterrupto, Millôr Fernandes não pôde evitar a literatura, o que o levou a construir uma obra múltipla, marcada pelo humor e, ao mesmo, tempo séria – cética –, importante o suficiente para lhe assegurar um lugar em qualquer história cultural que se faça do país. Por isso ele está aqui, no 15º número dos CADERNOS. “Até hoje ser chamado de artista me faz mal. Mas nunca senti isso em relação à atividade na imprensa”, diz Millôr na entrevista concedida a Antonio Fernando De Franceschi, diretor editorial, e Rinaldo Gama, editor executivo da publicação do IMS. Em seis horas de conversa no estúdio do “jornalista”, no bairro de Ipanema, Millôr Fernandes respondeu a mais de cem perguntas. Formuladas pela dupla de entrevistadores, por Francesca Angiolillo, editora dos CADERNOS, e um grupo de convidados – os escritores Carlos Heitor Cony e Geraldo Carneiro, os jornalistas Alberto Dines e Leonel Kaz, os chargistas Chico Caruso e Jaguar e a atriz Fernanda Montenegro –, as questões abordam desde a ética na imprensa até o sentido metafísico da transcendência.
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No papel de entrevistado – quando se sabe que prefere entrevistar –, o escritor visceralmente envolvido pelo jornalismo conferia a todo instante com seus interlocutores se o gravador estava funcionando, se tinha dado a grafia correta de um nome, se a resposta havia sido clara, num autêntico exercício de concentração profissional, que deve ser destacado: sua tendência a se dispersar é notória. “Millôr tem, em sua personalidade, o traço, profundamente simpático para mim, de não levar muito a sério nem a si mesmo nem à sua obra”, observa Ariano Suassuna no texto que abre a seção “Confluências”. Ao autor do Romance d A Pedra do Reino e de Auto da Compadecida, seguem-se os depoimentos do diretor Gianni Ratto, do compositor e cantor Carlos Lyra, do jornalista Zuenir Ventura e do escritor Luis Fernando Verissimo. Companheiros de ofício ou parceiros – Ratto e Lyra estiveram ao lado de Millôr Fernandes em Vidigal (1982), sua versão musical das Memórias de um sargento de milícias, romance do carioca Manuel Antônio de Almeida (1831-1861) –, os depoentes não reverenciam o tema desta edição dos CADERNOS com a parcialidade dos amigos. Embora ressaltem, orgulhosos, a amizade que os une ao autor, é com a distância recomendada pela lucidez que eles se referem ao talento e à lisura pessoal e intelectual do ex-Vão Gôgo (pseudônimo de Millôr aparecido em 1939). “Um gênio com princípios”, resume Verissimo. Com princípios e sem estilo? Depois de adotar por décadas o slogan “um escritor sem estilo”, criado para si, Millôr Fernandes atualmente admite que, com o passar dos anos, o menos estilista dos autores acaba se traindo num modo particular de vencer a luta nada vã contra as palavras. Uma das armas que cultiva em seu “antiestilo” é o diálogo, elemento comum a muitos dos gêneros que domina. O roteiro de cinema, por exemplo. Convidado por Walter Salles a elaborar uma obra daquela natureza, a partir de um argumento do próprio cineasta, Millôr propôs escrever Últimos diálogos (1995) – um elogio à fala, num esforço de resistência à estética de videoclipe. Ainda não filmado, o roteiro tem trechos publicados em “Inéditos/Manuscritos/Desenhos”. Do mesmo modo, ali são apresentados dois fragmentos da peça Kaos (1995) – o teatro é um dos elementos-chave da carreira milloriana, como autor e tradutor –, jamais encenada. Também nunca levada aos palcos, Duas tábuas e uma paixão (1982) é o objeto das anotações feitas por Millôr Fernandes reproduzidas neste número dos CADERNOS. Se durante um longo período o escritor negou que tivesse um estilo, ele sempre admitiu que em sua carreira o traço gráfico antecedeu a palavra. Assim, na seqüência dessa que se poderia classificar como uma pequena antologia de Millôr, são apresentadas reproduções de uma série de desenhos feitos em diferentes épocas e com distintos propósitos. Parte deles se destinava, claro, à grande imprensa. Contudo lá estão também o cartaz da Anistia Internacional; dois painéis que Millôr Fernandes produziu para o Museu da Moeda; a famosíssima ilustração de uma árvore que lhe deu, em 1955, o primeiro lu-
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gar, dividido com o norte-americano Saul Steinberg (1914-1999), na Exposição Internacional do Museu da Caricatura de Buenos Aires. E por falar em Argentina, a seção mostra também um desenho de Jorge Luis Borges, caminhando em um labirinto-biblioteca, que ocupou as páginas centrais da revista Sección Aurea de janeiro de 1993. A paisagem mais freqüente, entretanto, é o Rio de Janeiro. Já na primeira ilustração Millôr se representa em frente a uma janela que dá para o Corcovado e o Redentor. Uma janela inevitavelmente escancarada para o Rio: é como se pode definir a “Geografia Pessoal”, que apresenta mais uma vez um ensaio fotográfico de Edu Simões. Do mar indomável a um Cristo de jardim, da estação de trem do Méier, subúrbio natal de Millôr Fernandes, ao morro Dois Irmãos, passando pelos camarins e o palco de um teatro, o conjunto de imagens visita cenários sem os quais o autor não se imagina criando. “Eu não vivo no Brasil, eu vivo no Rio de Janeiro”, afirma ele na “Entrevista”. Não se trata, todavia, de uma obra regionalizada, estrita. Ao contrário. Para analisar a multifacetada produção do autor, a seção “Ensaios” traz cinco textos. Elias Thomé Saliba, livre-docente em História pela Universidade de São Paulo, dedica-se ao patrimônio humorístico milloriano; a crítica Mariangela Alves de Lima se debruça sobre o seu teatro; Maria Sílvia Betti, doutora em Literatura Brasileira pela USP, estuda as suas traduções teatrais; Sheila Leirner, ex-curadora-geral da Bienal Internacional de São Paulo, escreve sobre o Millôr artista plástico; e, a título de complemento, Márcio Suzuki, também da Universidade de São Paulo, onde leciona Estética, assina um ensaio sobre o humor e o riso na filosofia. Sem a pretensão de serem exaustivas, as seções “Memória Seletiva”, a primeira dos CADERNOS, e “Guia”, a última, reúnem, respectivamente, dados biográficos e bibliográficos a respeito do autor. A publicação do IMS se completa com um encarte – “Cem vezes Millôr” –, de frases selecionadas pelo jornalista Sérgio Augusto. Como se sabe, foi com o filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C) que se consagrou a idéia de que o homem é o único animal que ri2. O pensamento ocidental cedo entendeu que a obra que provoca uma reação de tal modo humana, demasiado humana, muitas vezes não anseia apenas o riso – até porque, segundo Millôr Fernandes, metodicamente em dúvida diante de sabedorias consagradas, “rindo, o homem mostra o animal que é” 3 – mas também a reflexão. Sob o impulso da imprensa, a literatura de Millôr vem há 64 anos fazendo rir. O que se espera agora é que ela, cada vez mais, seja pensada.
1 In: STORTINI, Carlos R. Dicionário de Borges. Tradução de Vera Mourão. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 119. 2 “On the parts of the animals”. In The works of Aristotle, v. II. Chicago: Universidade de Chicago/Encyclopaedia Britannica, 1952, The Great Books, 673a, p. 202. 3 A história é uma istória. In Teatro de Millôr Fernandes. Porto Alegre: LP&M, 1994, v. 1, p. 187.
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M E M Ó R I A S E L E T I VA
Tempos e contratempos 1923 Nasce, a 16 de agosto, na rua Isolina, Méier, subúrbio do Rio de Janeiro, Milton Viola Fernandes. Terceiro dos quatro filhos do casal Maria Viola e Francis co Fer nan des – es pa nhol naturalizado brasileiro, engenheiro de formação –, só seria registrado no ano seguinte, tendo como data oficial de nascimento o dia 27 de maio de 1924. Na certidão, expedida no dia 28, o “t”, aberto na parte superior, teve seu traço colocado apenas sobre a letra “o” e o “n” ficou inconcluso – sugerindo o nome “Millôr”, em vez de “Milton”.
ção. Para garantir o sustento de todos, a mãe de Millôr aluga para uma irmã metade da casa onde vivia com os filhos e faz serviços de costura. 1931 Entra para a Escola Ennes de Souza, localizada no Méier. 1934 Torna-se leitor assíduo de histórias em quadrinhos – especialmente Flash Gordon, de Alex Raymond –, popularizadas pelo “Suplemento Juvenil” do jornal A Nação. O tio materno Armindo Viola vende para O Jornal, por 10.000 réis, um desenho de Millôr.
Detalhe da certidão de nascimento, cuja grafia imprecisa originaria o nome Millôr
1935 Perde a mãe, vítima de
O pai, o espanhol Francisco Fernandes
A mãe do autor, Maria Viola Fernandes
Millôr, então ainda Milton, em 1927
Fotos: acervo do autor
1925 Morre seu pai, aos 36 anos, vítima de uma intoxica-
câncer – Maria tinha 36 anos, mesma idade, ressalte-se, que o marido ao morrer. Diante da coincidência, Millôr Fernandes chegaria a escrever, no conto “Agonia”, publicado em janeiro
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Fotos: acervo do autor
cie de factótum. Conhece Frederico Chateaubriand, sobrinho de Assis, com quem, mais tarde – aos 20 anos, já dono do “maior salário da imprensa” –, dividiria um apartamento dúplex na avenida Atlântica, em Copacabana. Com o pseudônimo Notlim, ganha um concurso de contos de A Cigarra. Ao provar que era o autor da história premiada, passa a trabalhar no arquivo.
Na escola Ennes de Souza, em 1931; o escritor é o menino de pé, à extrema direita
Primeiro desenho publicado, vendido pelo “tio Viola” a O Jornal, no ano de 1934
Cruz, na Cinelândia, entregando nas farmácias um produto para os rins. Ingressa no Liceu de Artes e Ofícios, onde estudaria até 1943. Na carteira escolar, a sugestão de grafia do cartório para seu nome se consolida – e Milton torna-se Millôr. Entra, também como contínuo, para a então pequena O Cruzeiro. A estrutura enxuta da revista permitiu que ele se tornasse uma espé-
1939 É chamado por Frederico Chateaubriand para dar conta de quatro páginas de A Cigarra cu ja pu bli ci da de ha via si do cancelada e tinham ficado em branco. Cria, então, assinandose Vão Gôgo, “Poste-Escrito”, transformado, com o sucesso, em seção fixa. Sob o mesmo pseudônimo começa a escrever uma coluna, de periodicidade irregular, no Diário da Noite. Assume a direção de A Cigarra, cargo que ocuparia por cerca de três anos. Neste período dirigiu tam bém O Gu ri, pu bli ca ção em quadrinhos, e Detetive, re-
de 1947, na revista A Cigarra, do mesmo grupo de O Cruzeiro: “Tenho dia e hora marcada para me ir e o acontecimento se dará aí por volta de 1959”. Órfão, adquire o que chamaria de “paz da descrença”; no campo prático, a morte da mãe o leva a morar em Terra Nova, subúrbio próximo ao Méier, com o tio materno Francisco, sua mulher, Maria, e quatro primos. 1938 Começa a trabalhar como contínuo no consultório do médico Luiz Gonzaga Magalhães
Carteira de 1939 do Liceu; Millôr Fernandes ingressara na escola no ano anterior 9
Fotos: acervo do autor
Cruzeiro atinge a marca das dez seções por semana. 1948 Em viagem aos Estados Unidos, encontra-se com Walt Disney nos seus estúdios, em Hollywood. Casa-se com Wanda Rubino.
Nos anos 40, com Luiz Alípio de Barros, F. Chateaubriand e Franklin de Oliveira
Em 1946, junto a Péricles Maranhão, ilustrador de “O Pif-Paf”, em O Cruzeiro
vista de contos policiais. Por “dirigir”, conforme esclarece o autor, entenda-se ser encarregado de múltiplas atividades, para além de coordenar equipes: pau tar, es cre ver, dia gra mar, editar.
o pseudônimo de Vão Gôgo e com desenhos de Péricles, a seção “O Pif-Paf ”. Só em 1956 Millôr passaria a ilustrar todos os seus textos publicados na revista.
1940 Muda-se para a rua das Marrecas, na Lapa, onde ficaria até 1944, vivendo próximo de Alceu Pena, colega em O Cruzeiro. Começa a colaborar, como colorista e escrevendo versos, na seção “As garotas do Alceu”.
1946 Lança Eva sem costela – Um livro em defesa do homem, assinando o volume como Adão Júnior (Edições O Cruzeiro).
1949 Publica, pelas Edições O Cruzeiro e sob o pseudônimo Emmanuel Vão Gôgo, Tempo e contratempo. Assina sua primeira incursão cinematográfica, o roteiro de Modelo 19. Tendo como tema a imigração européia para o Brasil – o título é uma alusão ao documento de identidade de estrangeiros –, escreve a história, a convite de Mário Civelli, um dos donos da Cinematográfica Maristela, a partir da novela Oggi il cielo è azzurro ( Hoje o céu está azul), de Ugo Chiarelli. Tendo desistido da direção, que lhe havia sido proposta, o filme é realizado por Armando Couto e sai, em 1952, pela produtora
1947 Sua colaboração para O
1942 Autodidata, faz sua primeira tradução literária: Dragon seed, romance da norte-americana Pearl S. Buck, que ganharia o título de A estirpe do dragão. 1943 Ao lado de Frederico Chateaubriand e de Péricles, volta para O Cruzeiro, que inicia um período de grande êxito editorial, passando de 11 mil para 750 mil exemplares semanais, nos dez anos seguintes. Em viagem aos EUA, é recebido por Walt Disney nos seus estúdios, em Hollywood (1948)
1945 Estréia em O Cruzeiro, sob 10
Fotos: acervo do autor
Civelli). 1951 Acompanhado de Fernando Sabino, viaja de carro pelo Brasil, durante 45 dias, para “sentir as tremendas distâncias”. Lança Voga, revista semanal que teria apenas cinco números.
zeiros, o apartamento em que ainda vive, no bairro de Ipanema. Nasce seu filho Ivan.
1953 Escreve sua primeira peça, Uma mulher em três atos, que estrearia no Teatro Brasileiro de Comédia, em São Paulo, dirigida por Adolfo Celi, com Ludy Veloso e Armando Couto (o texto resultou de encomenda feita pelo casal).
1955 Divide com Saul Steinberg – desenhista norte-americano que admira e a quem foi várias vezes comparado – o primeiro lugar da Exposição Internacional do Museu da Caricatura de Buenos Aires. Escreve Do tamanho de um defunto, peça também encomendada pelos atores Armando Couto e Ludy Veloso. Sob direção de Couto, o espetáculo estrearia no Teatro de Bolso (Rio). A obra seria adaptada para cinema pelo próprio Millôr e filmada por Armando Couto, em 1960, sob o título Ladrão em noite de chuva. Escreve Bonito como um deus – que es tréia no tea tro Ma ria Della Costa, em São Paulo, dirigida pelo mesmo Couto – e ainda Um elefante no caos e Pigmaleoa.
1954 Compra, por 2.700 cru-
1957 Faz exposição individual
Millôr Fernandes ao lado da mulher, Wanda Rubino; o casal teve dois filhos, Ivan e Paula
Com o primogênito, nascido em 1954
Visita a Canudos (BA), com Darwin Brandão (de pé, ao centro), em 1951
Multifilmes (do mesmo Civelli), com o título O amanhã será melhor. A fita ganharia cinco prêmios Governador do Estado de São Paulo: “Ator” (José Mauro de Vasconcelos), “Coadjuvante” (Waldemar Seyssel, que se tornaria famoso como Palhaço Arrelia), “Diálogo” (Millôr Fernandes), “Revelação” (Luigi Picchi) e “Produção” (Mário
1952 Realiza uma viagem de quatro meses pela Europa. Vai de navio, o Giulio Cesare, tendo como foco principal a Itália. Com o repórter Joel Silveira, faz um “desvio” para Israel, onde pede para ser batizado no rio Jordão, mesmo local em que Jesus também teria sido, por são João.
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Cedoc/Funarte
atração seria transferida, com o nome de Treze lições de um ignorante, para a TV Tupi do Rio e suspensa por ordem do governo JK. Nasce sua filha, Paula. 1960 Estréia no Teatro da Praça (Rio), Um elefante no caos. O espetáculo só veio a público depois de en fren tar pro ble mas com a Censura, que obrigou o autor a mudar o título original, Por que me ufano do meu país – o mes mo da obra do con de Afonso Celso –, que acabaria reduzido a um subtítulo. A montagem da peça – cujo nome completo é Um elefante no caos ou Jornal do Brasil ou, sobretudo, Por que me ufano do meu país – teve direção de João Bittencourt; no elen co es ti ve ram Ca mi la Amado, Maria Sampaio, Antonio Pedro, Cláudio Corrêa e Castro e Adriano Reys. O texto renderia a Millôr o prêmio de “Melhor Autor” da Comissão Mu ni ci pal de Tea tro. Car los Hugo Christensen dirige Amor
As guerras do alecrim e da manjerona, que estreou no Rio de Janeiro em 1957
1958 Faz sua primeira tradução teatral: Good people (A fábula de Brooklin – Gente como nós), de Irwin Shaw. 1959 Escreve o roteiro de Marafa, a partir do romance homônimo de Marques Rebelo. O filme, com direção de Adolfo Celi, não seria concluído, por motivos orçamentários. A convite de Frederico Chateaubriand, apresenta na TV Itacolomi, de Belo Horizonte, uma série de programas in ti tu la da Uni ver si da de do Méier, na qual desenhava enquan to fa zia co men tá rios. A
1961 Expõe desenhos na Petite Galerie, no Rio. Vai ao Egito, na via gem inau gu ral da Pa nair, mas, como o restante da comissão de imprensa da viagem, retorna ao Brasil por conta da renún cia do pre si den te Jâ nio Quadros. 1962 Na edição de 10 de março de O Cruzeiro, “demite” Vão Gôgo e passa a assinar Millôr, nome que já usava como autor e tradutor teatral. A Amstutz & Herder Graphic Press, de Zurique, dedica-lhe uma página de seu anuário. Adolfo Celi monta, no Teatro Rio, Pigmaleoa, com
Acervo do autor
no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, que então funcionava no edifício do Ministério da Educação (Palácio Gustav o C a p a n e m a ) . Re a l i z a a cenografia de As guerras do alecrim e da manjerona, espetáculo de António José da Silva, que estréia no teatro República (Rio). O trabalho de Millôr na peça, dirigida por Gianni Ratto, seria premiado pelo Serviço Nacional de Teatro no ano seguinte.
para três, que tem roteiro do escritor, baseado em Divórcio para três, peça de Victorien Sardou. Millôr colaboraria com o cineasta em três outros filmes: Esse Rio que eu amo (1962), Crônica da cidade amada (1965) e O menino e o vento (1967), este feito a partir do conto “O iniciado do vento”, de Aníbal Machado.
Nas filmagens de Marafa, cujo roteiro escreveu, em 59, a partir do livro de Marques Rebelo 12
Fotos: acervo do autor
músico e também por Nara), e Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros (apresentada por Jair Rodrigues).
Ao lado de Ylen Kerr, com o cartaz de lançamento da revista quinzenal O Pif-Paf
Maria Sampaio, Rubens Corrêa e Ivan de Albuquerque. 1963 Es cre ve Flá via, ca be ça, tronco e membros; ao contrário das peças anteriores, essa não foi feita sob encomenda. Durante sua ausência do país, em viagem a Portugal, O Cruzeiro publica editorial em que se isenta de responsabilidade pela publicação de História do Paraíso, devido à repercussão que a versão do humorista para o episódio de Adão e Eva teria gerado entre leitores religiosos. Millôr deixa a revista e começa a trabalhar no jornal Correio da Manhã, em que ficaria até o ano seguinte. 1964 Lança a revista quinzenal O Pif-Paf. Considerada o início da imprensa alternativa no Brasil, seria fechada no oitavo núme ro, dei xan do Mil lôr com uma dívida de 21 mil cruzeiros – o escritor estima que seu salário estivesse, então, na faixa dos 500 cruzeiros mensais. Passa a publicar uma coluna no Diário
Popular, de Lisboa, às quartasfeiras, colaboração que manteria durante dez anos. 1965 Participa como apresentador, na TV Record, ao lado de Sérgio Porto e Luis Jatobá, entre outros, do Jornal de Vanguarda, dirigido por Fernando Barbosa Lima e Borjalo. Estréia, no teatro Opinião (Rio), Liberdade liberdade; o musical, escrito em parceria com Flávio Rangel, que também o dirigiu, tinha no elenco Paulo Autran, Nara Leão, Oduvaldo Vianna Filho e Tereza Rachel. 1966 Monta ao ar livre, no largo do Boticário, Rio, só com atores negros, sua adaptação de Memórias de um sargento de milícias. O mesmo romance de Manuel Antônio de Almeida renderia, em 1982, o musical Vidigal. Nara Leão defende O homem, composição de Millôr, no II Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record, cujo primeiro lugar seria dividido entre A banda, de Chico Buarque (interpretada pelo 13
1968 Atua, ao lado de Elizeth Cardoso e do Zimbo Trio, em Do fundo do azul do mundo, espetáculo musical de sua autoria. Inicia colaboração com a revista Veja. Escreve o texto do show Momento 68, promovido pela Rhodia. Sob direção geral de Ademar Guerra e musical de Rogério Duprat, o espetáculo teve a participação de Caetano Veloso, Lennie Dale e Walmor Chagas, entre outros. 1969 Participa do grupo fundador de O Pasquim. 1972 Fernanda Montenegro estrela Computa, computador, computa, dirigida por Carlos Kroeber, no teatro Santa Rosa, no Rio. Publica em livro Esta é a
Trabalhando como apresentador do Jornal de Vanguarda, da Record (1965)
Fotos: acervo do autor
Fernanda Montenegro e Fernando Torres em cena de “É...”; a peça, escrita para a atriz em 1976 e montada no ano seguinte, seria um dos maiores sucessos teatrais do autor
verdadeira história do Paraíso – o mesmo texto que saíra em O Cruzeiro, com novos desenhos. Lança também Trinta anos de mim mesmo, numa sessão de autógrafos denominada “Noite da contra-incultura”. 1975 Faz exposição de 25 quadros “em branco, mas com significado” na galeria Grafitti, no Rio. 1976 Escreve, para Fernanda Montenegro, a peça É..., que, encenada no ano seguinte por Paulo José no teatro Maison de France, se tornaria um grande sucesso de Millôr nos palcos. 1977 Realiza mostra no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. 1978 Adapta para o formato de musical a peça Deus lhe pague, escrita por Joracy Camargo, que estrearia no Canecão, sob direção de Bibi Ferreira. Com músicas de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, o espetáculo tinha no
elenco Marília Pêra, Walmor Chagas, Marcos Paulo e Marco Nanini. É homenageado pelo 5º Salão de Humor de Piracicaba (SP), mas “exige” que a honraria seja “para todos os humoristas, na pessoa de Millôr Fernandes”. Produz, para o Museu da Moeda, sediado no prédio do Banco Central, em Brasília, quatro painéis que contam a história do dinheiro.
Franz Le har, apre sen ta da no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Tetê Medina monta A eterna luta entre o homem e a mulher, no tea tro Cla ra Nu nes (Rio). No elenco, além de Medina, Jonas Bloch e Antonio Pedro, dirigidos por Gianni Ratto. Escreve adaptação para A chorus line, musical de Michael Bennett, que é encenado por Walter Clark, no teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo. Deixa a revista Veja. Estréia Vidigal: Memórias de um sargento de milícias. Além do texto da peça, dirigida por Gianni Ratto, ficam a cargo de Millôr cenários, figurinos e letras, musicadas por Carlos Lyra. Montado no teatro João Caetano (Rio), o musical tinha no elenco Carlos Kroeber e Renata Fronzi, entre outros. Com Flávio Rangel, escreve e representa o espetáculo O gesto, a festa, a mensagem, na TV Record de São Paulo. Em duas horas, o programa pretendia narrar toda a história do teatro e contou com a
1980 Es tréia, no Tea tro dos Quatro (Rio), Os órfãos de Jânio, com direção de Sérgio Britto e tendo no elenco, entre outros, Tereza Rachel, Suzana Vieira, Stela Freitas, Cláudio Corrêa e Castro e Milton Gonçalves. 1981 Publica o álbum Desenhos, uma compilação de seus trabalhos grá fi cos, com tex tos de apresentação de Pietro Maria Bardi e Antônio Houaiss. 1982 Escreve e publica a peça Duas tábuas e uma paixão. Traduz a opereta A viúva alegre, de 14
Pôster feito por Millôr para o Salão de Piracicaba, que o homenageara em 1978
Acervo do autor
da, no teatro Ginástico, do Rio, a peça Flávia, cabeça, tronco e membros, dirigida por Luís Carlos Maciel, com Paulo Goulart, Nicete Bruno e Silvana Calábria (esta no papel-título). 1986 Adota o computador para escrever e desenhar. Dez anos depois voltaria a fazer regularmente ilustrações com técnicas convencionais. Escreve, com Geraldo Carneiro e Gilvan Pereira, o roteiro de O judeu – dirigido por Jom Tob Azulay –, baseado na vida de António José da Silva. Rodado em Portugal, o filme só seria concluído em 1995.
Desenho de 1987, um dos primeiros em que usou o computador, adotado um ano antes
participação de, entre outros, Fernanda Montenegro, Paulo Autran e Antunes Filho. 1983 É homenageado pela escola de samba Acadêmicos do Sossego, de Niterói, mas não comparece ao desfile. Passa a colaborar com a revista semanal Istoé.
ca, Rio, o musical O MPB-4 e o dr. Çobral vão em busca do mal – criado pelo quarteto em parceria com Millôr. Lança Poemas.
1987 É tema de tese de doutorado na Universidade de ToulouseLe Mirail II, França – L’anné 82 au Brésil: le regard critique de Millôr Fernandes (O ano de 82 no Brasil: o olhar crítico de Millôr Fernandes), de Françoise Duprat.
1985 Passa a publicar diariamente, a partir de fevereiro, um “quadrado” no Jornal do Brasil. Desenhos e textos seriam reunidos, em outubro, no livro Diário da Nova República. É monta-
1988 Volta a ser objeto de estudo acadêmico, na dissertação de
Luiz Morier/AJB
Acervo do autor
1984 Estréia, no teatro Repúbli-
O MPB-4 e o dr. Çobral vão em busca do mal, musical escrito pelo autor, em parceria com o quarteto – da esq. para a dir., Magro, Aquiles, Ruy e Miltinho –, e montado em 1984 15
Com J.T. Azulay, diretor de O Judeu, filme que tem Millôr entre os roteiristas
e Correio Braziliense – para este veículo trabalharia somente até o fim do ano.
mestrado Os recursos humorísticos de Millôr Fernandes, defendida por Branca Granatic na Universidade de São Paulo. Lança The cow went to the swamp/A vaca foi pro brejo, com 600 versões literais para o inglês de expressões populares brasileiras.
1998 Realiza uma série de vinhetas para a Rede Globo. Em parceria com Geraldo Carneiro e Jom Tob Azulay assina o roteiro de Mátria, filme ainda não realizado.
1990 Nasce seu neto, Gabriel, filho de Ivan.
1999 Começa a adaptar Os três mosqueteiros, de Dumas, para o formato de musical. O trabalho ficaria inconcluso. Valendo-se da computação gráfica, faz vários pastiches de Abaporu, quadro de Tarsila do Amaral.
1992 Deixa o Jornal do Brasil e a revista Istoé. 1994 Lança Millôr definitivo – A bíblia do caos, compilação de mais de 5.000 frases.
2000 Escreve o roteiro de Brasil! Outros 500 – Uma PoopÓpera, que estrearia em abril, no Municipal de São Paulo. A peça, dirigida por Roberto Lage, tinha elenco de 130 artistas, canções de Toquinho e Paulo César Pinheiro, arranjos de Wagner Tiso e direção musical de Abel Rocha. Deixa de colaborar com O Esta-
1995 Escreve a peça Kaos (inédita) e, a partir de um argumento de Walter Salles, o roteiro Últimos diálogos, ainda não filmado. Memórias de um sargento de milícias é adaptado para a Rede Globo.
2001 Deixa a Folha de S.Paulo e volta ao Jornal do Brasil. A colabo ra ção nes te pe rió di co, em princípio diária, passaria a uma página semanal em fevereiro de 2002. 2002 Publica Crítica da razão impura ou O primado da ignorância, em que analisa as obras Brejal dos Guajas e outras histórias, de José Sarney, e Dependência e desenvolvimento na América Latina, de Fernando Henrique Cardoso. Em novembro, cessa sua colaboração com o Jornal do Brasil. 2003 Ilustra O menino, volume de contos de João Uchôa Cavalcanti Netto, e faz cem desenhos para uma nova compilação das Fábulas fabulosas.
Acervo do autor
Edu Simões/IMS
1996 Inicia colaboração nos jornais O Dia, O Estado de S.Paulo
do de S.Paulo e O Dia e assume coluna semanal na Folha de S.Paulo. Com festa no hotel Copacabana Palace, lança o site Millôr Online (www.millor.com.br).
Um dos pastiches de Abaporu (1999)
Millôr Fernandes na praça em frente a seu ateliê, em Ipanema, bairro onde vive desde 1954 16
CONFLUÊNCIAS
Um homem em cinco atos SEGUNDO ARIANO SUASSUNA, GIANNI RATTO, CARLOS LYRA, ZUENIR VENTURA E LUIS FERNANDO VERISSIMO
Edu Simões/IMS
Nascido em 1927, na Paraíba – como então se chamava a capital do Estado de mesmo nome, governado por seu pai –, Ariano Suassuna radicou-se no Recife, onde hoje vive, nos anos 1940. Sua obra literária, lá inaugurada – primeiro com a publicação, em 1945, do poema “Noturno”, no Jornal do Commercio e, depois, com a peça Uma mulher vestida de sol, vencedora do Prêmio Nicolau Carlos Magno, em 1947 – baseia-se na defesa e reinterpretação de valores culturais regionais, como o Romanceiro nordestino. Criador do Teatro Popular do Nordeste e do Movimento Armorial, Suassuna escreveu, entre outras, as peças Auto da Compadecida (1955), O santo e a porca (1957) e A pena e a lei (1959), além de um clássico da narrativa ficcional: Romance d’A Pedra do Reino (Rio de Janeiro: José Olympio, 1971). Poeta, tem versos publicados em edições manuscritas e complementadas por iluminogravuras de sua própria autoria, como Sonetos de Albano Cervonegro (Recife: edição do autor, 1985). Livre-docente em História da Cultura Brasileira pela Universidade Federal de Pernambuco e membro da Academia Brasileira de Letras, Ariano foi tema do décimo número dos CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA (novembro, 2000).
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Seja por vaidade, seja por qualquer outro sentimento mau e parecido, os escritores às vezes costumam
se estranhar entre si. Mas Millôr Fernandes e eu nunca nos estranhamos. Costumo associá-lo a três artistas bastante representativos da vida cultural brasileira. Desses três, dois
são escritores famosos – Machado de Assis e Lima Barreto. O terceiro, Jayme Ovalle, era músico e acho que hoje só é lembrado pelas pessoas que, como eu, já passaram dos 70 anos ou estão chegando por aí. Por isso, é por ele que começo. Escolhi-o porque, como acontecia com Jayme Ovalle, Millôr Fernan17
des tem, em sua personalidade, o traço, profundamente simpático para mim, de não levar muito a sério nem a si mesmo nem à sua obra. Millôr quase sempre escreve como quem pede desculpas, isto é, como se achasse que é uma imperdoável pretensão nossa aventurar-nos em caminhos já trilhados por grandes escritores de todos os tempos e de todos os lugares. E, de certa forma, ele tem razão. Viu que nos dividimos em dois grupos – o dos que, como eu, são mais cegos ou mais irresponsáveis, e o dos que são mais lúcidos, mais modestos e menos pretensiosos; e optou por ficar neste. Como afirmei há pouco, seu grupo é mais simpático do que o meu. Mas os escritores que a ele pertencem às vezes terminam prejudicando suas obras: como não as levam a sério, permitem freqüentemente que o descaso as leve para o fragmentário e para os momentos de brilho, sempre intensos, mas que, não sendo integrados a um conjunto, correm o risco do efêmero. É evidente que, a se pensar no severo juízo ou na pouca memória da posteridade, o castigo que os do meu grupo podem sofrer é bem maior, atingindo o esquecimento com muito mais crueldade os conjuntos pretensiosos de nossas ‘obras’, imaginadas com tanta seriedade e empáfia (o que é, ou deveria ser, um corretivo bastante eficaz contra nossas pequenas vaidades). Para ficar a cavaleiro sobre o que digo agora, devo lembrar que um escritor brasileiro que costumava se estranhar comigo uma vez me comparou a Coelho Neto, com quem eu me pareceria, nisso de receber em vida um reconhecimento que a ele foi (e a mim será logo mais) totalmente negado depois de morto. Em tal sentido, Millôr Fernandes é uma espécie de anti-Coelho Neto. E, graças a Deus, sendo tão simpático, espirituoso e bem-humorado quanto Jayme Ovalle, não é, como artista, tão fragmentário quanto ele, que, a rigor, dotado, como foi, de grande talento, de inteligência brilhante e de imaginação criadora, somente nos legou duas canções que todo mundo canta, quase sempre ignorando o nome de seu autor. Aliás, foi de propósito que falei em ‘inteligência brilhante’: Jayme Ovalle foi uma das personalidades mais agudas e inteligentes deste país. E certa vez, contrariando os acadêmicos, afirmou que Machado de Assis era um gênio, ‘mas um gênio míope’. Creio que, com isso, aludia às tramas sem grandeza dos romances e à dimensão mesquinha dos personagens criados por nosso grande escritor, que parecia somente enxergar as coisas e as pessoas olhando-as bem de perto, e detalhe a detalhe, como fazem os míopes. E, que me perdoem os devotos machadianos, é por isso que eu prefiro Euclydes da Cunha e Lima Barreto, com todos os defeitos que ambos possam ter, a Machado de Assis, com todas as suas qualidades. E, até onde pude entender, Millôr Fernandes tem opinião parecida com a minha. Tanto assim que, segundo afirmou, não incluiria qualquer dos livros de Machado de Assis entre os dez maiores romances brasileiros. A meu ver, ao falar assim, Millôr Fernandes levou em conta apenas livros como Dom Casmurro, que, na minha opinião, incorre naquela miopia contra a qual Jayme Ovalle reclamava. Mas esqueceu Quincas Bor18
ba, que inclui Machado de Assis na linhagem cervantina da literatura, aproximando a insânia de Rubião à do Cavaleiro da Triste Figura. Acredito que Machado de Assis estava consciente deste fato, verificável principalmente nos momentos finais do romance, quando Rubião agonizava e se coroa ‘com nada’, não havendo por perto nem sequer ‘uma bacia’ que corporificasse a insígnia imperial a que, em sua demência, Rubião se julgava com direito: o que, sem dúvida, é uma alusão à bacia de barbeiro na qual os olhos, generosos, mas extraviados, de Dom Quixote enxergavam ‘o elmo de Mambrino’. Mas, talvez por causa da ironia sem compaixão de Machado de Assis, a loucura de Rubião gira somente em torno de sua pessoa, jamais partindo ele para qualquer ação no sentido de corrigir ‘os desconcertos do mundo’ - como acontecia com o cavaleiro manchego. De modo que o personagem mais generosamente quixotesco da literatura brasileira não é Rubião, é Policarpo Quaresma. Lima Barreto é nosso escritor mais puramente humorístico, tomada a palavra em seu verdadeiro sentido, que inclui, ao lado do riso, aquela compaixão que a ironia de Machado de Assis ou impede ou mancha. Alguns escritores que desprezam o Brasil e seu povo costumam usar Policarpo Quaresma como pretexto para escarnecer de ambos. Pensam, talvez, que Lima Barreto era um deles. Esquecem que, em seu romance, o grande escritor carioca ri, antes de tudo, de si mesmo. Ignoram, talvez, que, no seu personagem imortal, Lima Barreto fundiu elementos que recriou a partir de duas pessoas invulgares, ele próprio e seu pai, ‘meu grande e infortunado pai’, como ele o chamou certa vez. E sobretudo não vêem tais escritores que, se a realidade brutal e mesquinha (inclusive a da política) desmente e destrói, a cada instante, as ações generosas de Policarpo Quaresma, a pureza de seu sonho permanece intocada até a morte, o que o coloca muito acima dos poderosos e ‘realistas’ que o cercam. A meu ver, com uma obra que, felizmente, a cada dia vai vencendo o fragmentário, Millôr Fernandes tem algo de Jayme Ovalle, de Machado de Assis e de Lima Barreto. Digo isto porque, uma vez, em minha casa, ele me falou de um romance com o qual sonhava. Traçou, para mim, um esboço do que seria ele, esboço pelo qual pude entender que o livro seria da linhagem de Quincas Borba e de Policarpo Quaresma. E acho que só não foi escrito até hoje por falta de um generoso empurrão que um amigo dê em Millôr Fernandes (como um dos amigos de Lima Barreto deu no autor de Policarpo Quaresma). O que aproxima os dois grandes escritores cariocas é o humorístico, do qual volto a falar como o professor de Filosofia da Arte que fui por tanto tempo. Nesta condição, um dos problemas que mais me fascinavam era, e é, o da natureza do humorístico. Li tudo o que me caiu nas mãos a tal respeito, de Hegel a Schelling, de Freud a Bergson. Pois bem: em todos aqueles anos, a melhor e mais bela definição que li do humorístico não foi escrita por nenhum de tais monstros sagrados do pensamento universal: estava inserta na coluna semanal de um escritor brasileiro que, para nossa alegria e para glória da Literatura brasileira, deveria se levar mais a sério e que se chama Millôr Fernandes.
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Juan Esteves
Gianni Ratto (1916), italiano de origem genovesa, mora no Brasil desde 1954. Diretor, cenógrafo, iluminador, figurinista, escritor e arquiteto, participou da Segunda Guerra Mundial, ao lado dos guerrilheiros gregos contra as tropas nazi-fascistas. De formação cultural humanista, no pós-guerra trabalhou, em diversas formas de espetáculo, no Piccolo Teatro e no Scala, ambos em Milão. Nos palcos brasileiros, teve como principais preocupações a busca incessante por autores nacionais e a formação de atores e técnicos. Organizou companhias dramáticas e de dança, num trabalho sempre ligado à defesa e à busca da identidade do país. Entre seus espetáculos mais expressivos destacam-se O mambembe, de Arthur Azevedo, Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, de Oduvaldo Vianna Filho, Gota d’água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, e A moratória, de Jorge Andrade. Em 1999 recebeu o Prêmio Ministério da Cultura (Contribuição Cultural para o Brasil). Autor de A mochila do mascate (São Paulo: Hucitec, 1996), Anti-tratado de cenografia (São Paulo: Editora Senac SP, 1999), Crônicas improváveis (São Paulo: Codex, 2002) e Hipocritando (Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, no prelo), prepara para este ano o lançamento, outra vez pela Codex, de Novas crônicas mais ou menos improváveis.
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Sempre que penso em Millôr, a visão que me persegue é a de um bondinho de Santa Teresa, den-
tro do qual palavras e imagens, rabiscos e esboços de idéias se misturam, numa visão irônico-sarcástica, no decorrer de uma viagem que, de forma inevitável, irá desembocar num jogo do qual será muito difícil se desvencilhar. E me diverte muito a idéia do percurso irregular desse bondinho malicioso que transita pelas ruas e ladeiras de Santa Teresa extrapolando para o Corcovado, buscando os caminhos do Pão de Açúcar, deslizando pelos cabos, para mergulhar depois, definitivamente, nas ondas da praia de Ipanema, na qual atleticamente meu amigo Millôr realiza seu cooper cotidiano às primeiras luzes da madrugada carioca. Gosto, mentalmente, de me relacionar com o pensamento do Vão Gôgo: sempre fiquei intrigado por causa deste ‘o’ final que deturpa ou perturba a visão essencial dele. O ‘Vão’ alude ao prefixo ‘Van’, o qual leva a considerações amarradas numa visão histórica e estética. O ‘Van’ guarda, para todas constatações heráldicas, o sabor nobiliárquico das regiões nórdicas de uma geografia da arte que pode ser identificada em Bruegel, em Bosch (o traço da grafia de Millôr se manifesta esporadicamente), em Goya (no referencial crítico de uma história cruel de guerras e revoluções) e, não por preocupações de caráter social, aceitando o parentesco inevitável com o pintor holandês radicado na França. 20
É surpreendente, no trânsito imaginário de meu bondinho, quantos encontros, quantas paradas, quantas reflexões ficam registradas pelo olhar e pela mão que poderia pertencer a Daumier, em sua visão crítica que não tem piedade perante o que for mesmice, mediocridade ou agressão política. Também sinto-me bem amparado pela presença da supralógica de Signor Veneranda, de Carlo Manzoni, e o desenho de pureza absoluta de Jacques Sternberg, ambos colaboradores da publicação Bertoldo – revista italiana de humor cortante, que, com seu editor, Leo Longanesi, sacudiu as crônicas críticas mais ou menos independentes. Se alguém pensar que os limites da percepção crítica e estética de Millôr estão contidos numa paisagem de bico-de-pena, de manchas coloridas agressivamente afirmativas, de pinceladas violentas pela coloração de desenhos que já são obras de arte, está enganado: a presença inequívoca dos haicais, das traduções e de uma dramaturgia qualitativamente marcante se mistura de forma poliédrica com o sorriso irônico de uma contemporaneidade identificada numa floresta de mil folhinhas, no detalhe de uma única folha, síntese do momento histórico de uma crônica não muito benevolente. Todas as referências ligadas à obra de Millôr convergem num caminho polivalente, que se reconhece numa visão humano-renascentista. Os exemplos e as referências qualquer leitor esclarecido poderá sempre confirmar, encontrando-as nas propostas sempre sorridentes e agressivas, profundamente humanas e enriquecedoras. Millôr não é somente um grande artista plástico; sua visão cultural abrange e transita livremente no campo da poesia, da literatura e, isto é conseqüência inevitável, na integridade moral de toda a sua obra. A lisura do pensamento de Millôr é registrada no rigor de seu comportamento. Valem aqui uns momentos específicos que pertencem à minha modesta história de homem de teatro. Convidado para projetar os cenários e os figurinos de dois espetáculos (As guerras do alecrim e da manjerona, de António José da Silva, o Judeu, e Vidigal, adaptação dele para o romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida), Millôr não aceitaria os honorários aos quais faria jus se antes não fosse ressalvado seu ponto de vista, que o situava modestamente no campo da cenotécnica. Anos depois, na presença de uma ditadura castradora, convidei-o para estudar e realizar um musical brasileiro cujo tema seria ‘A Lapa’. Meu empresário, o saudoso Paulo Ferraz, assinou um termo de compromisso equivalente a um à-valoir (adiamento pago pela cessão de direitos autorais, geralmente por certo prazo, para a montagem de uma peça teatral). No decorrer desse ano, muitas coisas aconteceram, prejudicando um projeto que parecia rico em possibilidades de êxito. Quase no fim da temporada, meses depois, Millôr, frente à prepotência da polícia política, retirou-se do projeto, devolvendo intacto o cheque que o produtor tinha lhe entregado. Essa pode parecer uma historinha edificante, mas para mim significou a afirmação de uma postura moral acima de qualquer suspeita. Numa época na qual, para os indiferentes, o respeito dos valores morais não tem mais valor algum, a presença de alguém cuja dimensão humana se impõe de forma categórica é algo que merece uma reflexão severa.
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Leonardo Aversa/Agência O Globo
O compositor, instrumentista e cantor Carlos Lyra nasceu no Rio de Janeiro em 1939. Aprendeu a tocar violão na adolescência, enquanto se restabelecia de um acidente. “Quando chegares”, sua primeira canção, foi escrita em 1954. A carreira profissional como músico começaria em 1956, no conjunto de Bené Nunes. Identificado como um dos criadores da bossa nova, Lyra teve três composições suas incluídas no histórico Chega de saudade (1959), de João Gilberto. No mesmo ano, ele gravaria seu primeiro disco. Em 1960, faria a trilha sonora da peça A mais-valia vai acabar, seu Edgar, de Oduvaldo Vianna Filho, iniciando uma longa série de trabalhos para o teatro e, mais tarde, para o cinema e a TV. Co-fundador, no ano de 1961, do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, ao lado de Vianninha, Ferreira Gullar, Leon Hirszman e Carlos Estevam, deixou o Brasil em 1964, após o golpe militar. Viveu nos EUA e no México e fez shows por diversos países. Seu último CD é Sambalanço, 2000. O texto abaixo foi redigido a partir de uma entrevista concedida por Lyra a José Luiz Herência, coordenador de produção da área de música do site do IMS.
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Quando conheci Millôr pessoalmente, em 1958, eu já era profissional de música. Mas quando eu to-
mei conhecimento do Millôr eu era ainda criança, devia ter uns 10 anos. Eu, minha mãe, nós corríamos até a banca de jornal para comprar O Cruzeiro e ler o ‘Pif-Paf ’, aquela coluna, aquelas seções todas, o ‘artigo do fundo’, o ‘dicionovário’, todas aquelas novidades. Millôr ficou na minha cabeça e, anos mais tarde, eu vim a conhecê-lo na casa do pianista Bené Nunes, um apartamento na Gávea. Era lá que, na verdade, se reunia o pessoal que faria a bossa nova – se a bossa nova tivesse nascido em algum lugar, teria sido na casa de Bené Nunes, porque Vinicius de Moraes e Tom Jobim nunca freqüentaram a casa de Nara Leão. A gente desfrutava dos papos, das tiradas simpáticas de Millôr. Ele sempre teve uma veia cômica muito grande. E sempre foi um dos intelectuais brasileiros mais importantes, não só pelo humorismo mas também pelo teatro, pelas crônicas, pelos ‘desaforismos’, coisas que ele deixou e que são muito profundas. Conhecer Millôr ali foi um prazer muito grande, porque aquilo nos levou a outros encontros. Mais tarde, ele me convidou para fazer parte de sua obra: ia escrever uma peça chamada Os órfãos de Jânio e me chamou para fazer a música. Algum tempo depois, em 1982, quando ele fez Vidigal, uma adaptação do romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, ele me convidou de novo. Tive a oportunidade não só de fazer as músicas da peça mas também de musicar todas as letras que ele tinha escrito para ela. Dessa nossa parceria – umas 20 canções –, da qual Millôr é muito orgulhoso, só uma música foi gravada. Composta para um momento da peça em que a menina vem do interior para o Rio de Janeiro e fica 22
deslumbrada com a cidade, dizendo que se torna não uma ‘carioca da gema’, mas uma ‘carioca algemada’, apaixonada pelo Rio, ‘Carioca de algema’ se tornaria a canção-título e música principal de um disco que gravei em 1994. Millôr mostrou-se um letrista fantástico: ele é diferente, por exemplo, do Vinicius, do Ronaldo Bôscoli, meus parceiros. Ele mostra o humor, a parte teatral e a parte dramática também – outro aspecto muito rico das suas letras. Com os meus parceiros, eu sempre fiz a música e eles colocavam a letra. Com Millôr, no entanto, foi o contrário. Fui obrigado a musicar todas as letras dele – o que não deu nenhum trabalho, porque todas tinham uma métrica muito boa e, inclusive, era um desafio para um novo tipo de ritmo, um novo tipo de métrica na música. Com Vinicius eu fazia samba, marcha-rancho, marchinha, baião. Com Millôr, não: são ritmos que eu nem consigo definir. Retomando ‘Carioca de algema’: é uma espécie de tango; não um tango argentino, mas um tango brasileiro. No nosso grupo – o Bené, eu, Tom Jobim, que éramos todos músicos – talvez a pessoa de maior profundidade intelectual e conhecimento literário fosse o próprio Millôr. Tinha também, naturalmente, o Vinicius. Mas nenhum deles nunca se deu a literatices, nunca se deu ao luxo de fazer um ‘sabadoyle’ [como eram conhecidas as reuniões semanais na casa do bibliófilo Plínio Doyle, entre 1964 e 1998]. Não me lembro de Vinicius ou Millôr terem iniciado uma conversa intelectual que nós, pobres mortais, não pudéssemos acompanhar. Vinicius era muito avesso a essa coisa, e Millôr sempre foi muito pândego, preferindo mesmo fazer humor – até pessoalmente. Quando ele estava com a gente, adorava citar alguma coisa engraçada. Às vezes, a falácia da nossa intelectualidade é pretender ir mais longe do que as coisas permitem. Para mim, que sou músico, isso é muito chocante. Intelectuais como Millôr Fernandes não têm essa visão da arte. Millôr sempre foi confundido com uma pessoa de direita, ele que nunca aceitou rótulos. Já eu era identificado com a esquerda – fui membro do Partido Comunista. Hoje em dia, quando olho para trás, vejo que talvez isso se devesse apenas a eu ser mais jovem do que ele. Quando a gente fundou o Centro Popular de Cultura, eu achava que era fundamental fazer arte para o povo. Atualmente vejo que você não pode prescindir da forma artística de maneira nenhuma. Acredito nisso piamente. Hoje eu teria uma outra postura: iria armado brigar com os militares, mas nunca aceitaria transformar uma arte íntegra numa arte popular, panfletária, ‘consciente’. Porque tudo isso não é verdade. Essa parece sempre ter sido a cabeça de Millôr. Ele nunca aceitou esse tipo de coisa, talvez por ser mais maduro do que eu na época. O que não se pode dizer jamais é que ele seja de direita: seria um absurdo completo. Ele sempre se manteve contra as arbitrariedades, as posturas fascistóides. Por isso, até hoje, quando ele tem uma opinião política, quero ouvir. Eu confio muito na sua lucidez política. Quando Bené nos apresentou, não precisava nem falar ‘esse aqui é o Millôr Fernandes’, que eu sabia: a lembrança toda de ‘Pif-Paf ’ me veio à cabeça. E me lembro de ter mencionado que lia O Cruzeiro toda semana. Aquilo para mim era sagrado.
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Rogério Reis/Tyba
O jornalista e escritor Zuenir Ventura é mineiro de Além Paraíba, onde nasceu em 1931. Estudou Letras Neolatinas na Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil (hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro), mas tomou o rumo da imprensa, tendo trabalhado em algumas das principais publicações do país. Foi repórter, redator e editor; atualmente, assina colunas no jornal O Globo e na revista eletrônica nominimo.com.br. Entre outras obras, publicou 1968 – o ano que não terminou (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, ensaio histórico), que está na 39ª reimpressão; Cidade partida (São Paulo: Companhia das Letras, 1994), vencedor do Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, na categoria “Reportagem”, e Inveja – mal secreto (Rio de Janeiro: Objetiva, 1998, ficção). Em 1999, escreveu o prefácio do livro Rio de Janeiro, 18621927: álbum fotográfico da formação da cidade, lançado pelo IMS para marcar a abertura do seu centro cultural carioca.
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É possível que a pessoa de quem Millôr Fernandes mais goste, que mais admire, com quem convive
diariamente há quase 80 anos e sobre a qual é capaz de discorrer durante horas como um especialista, se chame Millôr Fernandes. E ele tem razões para isso. A primeira é o conhecimento de causa: admira porque conhece como ninguém o objeto de sua admiração; a segunda é que não cultiva a modéstia, falsa ou verdadeira: não tem dúvida de pertencer à categoria dos seres incomuns, privilegiados, desmentindo sua própria frase: ‘Como são admiráveis as pessoas que não conhecemos muito bem!’. O que em outro poderia ser cabotinismo, nele é uma simples constatação, indiscutível, natural como admitir que gosta de um legítimo uísque escocês e de mulher inteligente ou que já se sagrou vice-campeão de pesca ao atum na Nova Escócia e que implantou o frescobol de praia em Ipanema, sendo campeão do Posto 9 por muito tempo, até porque, quando alguém jogava melhor, ele dizia que o rival era do Posto 8. No todo, ele apenas se faz justiça. Em poucas palavras: Millôr é genial e, antes que alguém o dissesse, ele já sabia disso desde muito cedo (se ignorasse, não seria tão inteligente como é), o que acabou protegendo-o dos elogios e adulações. Não se consegue lhe dizer nada que ele já não tenha se dito ou podido se dizer – inclusive o que está sendo escrito aqui. Formado pela Universidade do Méier, que nunca existiu, usando um falso nome até a adolescência, quando só então descobriu que não se chamava Milton, fôra um engano de certidão, talvez o único erro ortográfico que suportou carregar durante tanto tempo, Millôr perdeu os pais muito cedo. A família desfeita, 24
os quatro irmãos cada um para seu lado tentando sobreviver, desamparado, ele se sentiu sozinho, sem Deus, adotando então um sentimento que dura até hoje, o da ‘paz da descrença’. Uma de suas mais tocantes recordações desses tempos de penúria surge na descrição, sem retórica ou dramaticidade, da cena em que vê ‘o bife ser posto no prato dos primos, sem que o órfão tivesse direito’. Decididamente, se não fosse ele, ele não teria dado certo. Não sei se existe na cultura brasileira um fenômeno como Millôr – alguém que, enquanto militava diária ou semanalmente na imprensa, escrevendo e desenhando, produzia uma obra com a diversidade, a extensão e a qualidade da que ele produziu e produz em quase 65 anos de atividade, que começou quando ele ainda não completara 15 anos. Para se ter uma idéia, só de traduções, em que também é o melhor, são mais de 70 peças, além de outras duas dezenas que ele mesmo escreveu, fora as pinturas, roteiros de filmes, letras de músicas, participação em shows musicais e programas de televisão. Para o livro Millôr definitivo – A bíblia do caos, de 524 páginas, foram reunidos em 1994 mais de 5.000 frases, preceitos, máximas escritos ou ditos pelo ‘irritante guru do Méier’ (numa primeira seleção o material chegava a 13 mil tópicos). A rapidez mental, a originalidade do pensamento, o domínio da palavra escrita e da oral, sem falar numa para muitos insuspeitada capacidade de lidar com os números, realizando de cabeça incalculáveis operações de matemática, fazem dele um divertido assombro. Poucos escritores em língua portuguesa exploraram como ele o potencial sintático e semântico das palavras – os trocadilhos, o jogo, a polissemia, a brincadeira vocabular – colocando esses recursos a serviço de um humor que consegue fazer rir e pensar ao mesmo tempo. Aliás, só faz rir porque faz pensar e vice-versa. ‘Para bom entendedor meia palavra basta. Entendeu... becil?’ Vejam esse outro exemplo, em que leva ao extremo a destreza de jogar com as palavras, obtendo efeitos inesperados: ‘Ontem, ontem tinha agá, hoje não tem. Hoje ontem tinha agá e hoje, como ontem, também tem’. Com uma inteligência desobediente e imprevisível, desconcertante e desconsertante, Millôr aprimorou-se em desmontar e desconstruir (antes de isso ser moda) verdades aceitas e hipocrisias consagradas, idéias feitas e lugares comuns. São observações e percepções que estão ao alcance de todos e que ninguém vê; é a revelação do óbvio encoberto pela repetição mecânica e pelo hábito. ‘Se, quando o sol nasce, consegue afastar a escuridão, por que não resiste à escuridão quando a noite chega?’ O substrato de tudo que faz é o humor, sem ressentimento e sem fel. Com isso, transformou-se num modelo que ajudou o Brasil a assumir o que tem de melhor, que é a vocação de rir contra – contra a seriedade, a caretice, os poderosos e contra si mesmo. Quanto às suas opiniões sobre isso ou aquilo, que ninguém, ninguém mesmo, se aventure a antecipar. O que se sabe de antemão é que é avesso aos alinhamentos e a qualquer credo, religioso, político ou ideológico. Pensador claro e profundo, mas não como aqueles cuja profundidade se mede como se mede a fundura de uma piscina, Millôr atingiu um nível raro de independência e liberdade. ‘Livre como um táxi’, ironiza. Ou então: ‘Eu também não sou um homem livre, mas muito poucos estiveram tão perto’. De fato, estiveram e estão.
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Foto Digital Paulo Pinto/AE
Nascido em Porto Alegre, no ano de 1936, o escritor Luis Fernando Verissimo viveu, entre 1943 e 1945, na Califórnia (EUA) – seu pai, o ficcionista Erico Verissimo, fora convidado para lecionar na Universidade de Berkeley. Em 1954, voltaria a morar nos Estados Unidos, desta vez em Washington, DC, onde Erico exerceu a função de presidente do Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana. De volta à capital gaúcha, em 1956, ingressaria no setor de arte da Editora Globo – chegou a fazer a capa do romance O retrato, de seu pai. A carreira jornalística teria início em 1967 no jornal Zero Hora, de Porto Alegre; nele sairiam, a partir de 1969, suas primeiras crônicas, reunidas em O popular (Rio de Janeiro: José Olympio, 1973). Desde então, publicou 57 livros – como O analista de Bagé (Porto Alegre: L&PM, 1980) e As mentiras que os homens contam (Rio de Janeiro: Objetiva, 2000) –, além de escrever para a TV, teatro e cinema. Atualmente, é cronista de O Estado de S.Paulo, Zero Hora e O Globo, cuja agência distribui suas crônicas para vários jornais do país. Em 1997 e 1998, Luis Fernando Verissimo participou da série “O escritor por ele mesmo”, nos centros culturais do Instituto Moreira Salles em São Paulo e Belo Horizonte.
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Aquele cara da revista O Cruzeiro era muito engraçado. Tão engraçado que tinha duas páginas colo-
ridas no principal órgão dos Diários Associados e maior revista da América Latina. Tão engraçado quanto o seu pseudônimo, Vão Gôgo. A seção assinada pelo Vão Gôgo, chamada ‘Pif-Paf ’, era uma das razões para comprar a Cruzeiro. Outras razões eram o ‘Amigo da Onça’, o Carlos Estevão, as reportagens do David Nasser e do Jean Manzon, as garotas do [Alceu] Pena e as fotografias de discos voadores e de mulheres de ‘maillot’. Nenhuma era tão irresistível quanto o Millôr todas as semanas. Nem todos sabiam que o nome verdadeiro do Vão Gôgo era Millôr, Millôr Fernandes, e que ele trabalhava na imprensa desde os 15 anos. Todos concordavam que era o cara mais engraçado do Brasil. Suas duas páginas vinham cheias de piadas, epigramas, jogos de palavra, cenas teatrais com desfechos surpreendentes (‘Pano rápido!’) e – depois de uma fase em que o ilustrador da seção era o Péricles, o mesmo do ‘Amigo da Onça’, ou estou delirando? – desenhos feitos por ele mesmo, desenhos como nunca se tinha visto igual. Foi com o desenho que o Millôr deu o passo que o transformaria de um cara muito engraçado, e todos concordavam que era o cara mais engraçado do Brasil, em outra coisa. Ele já era diferente, já fazia um humor inteligente e informado como nenhum outro, e desenhos como nenhum outro, mas ninguém ainda se deparara com a filosofia de uma piada do Millôr posta, por assim dizer, na frente da piada, como um desafio a ser vencido antes de se merecer a piada. E um dia o Millôr encheu suas duas páginas com um desenho só, uma amarga reflexão sobre a nossa espécie e sua calhordice (não me lembro como era o desenho, 26
me lembro do meu sentimento ao vê-lo) e exigiu que enfrentássemos a filosofia antes de procurar a piada. Que reconhecêssemos que o pensamento por trás do humor também era um pensamento sobre a sina humana e que ali estava mais do que um piadista nos dizendo isto. Nem todos entenderam – a filosofia, o desafio ou a piada – mas ficou claro que o Millôr partira para outro plano. Ele mesmo, que nesta época já devia conhecer o [Saul] Steinberg, o [André] François e outros humoristas-mais-do-que-humoristas, sabia para que plano estava subindo, mas seus leitores tiveram que se adaptar. Lembro que passei a esperar cada novo ‘Pif-Paf ’ antecipando não apenas as delícias de sempre, que eram “geniais” de uma maneira que todos poderiam concordar, mas as coisas desafiadoramente, às vezes obscuramente, geniais. O Millôr se transformara no melhor pensador do Brasil. Começara a escrever peças de teatro. Que, como seus textos e desenhos na imprensa, também não eram convencionalmente cômicas, ou apenas cômicas. Mesmo quando eram coleções de ‘sketchs’ ou promovidas como comédias, traziam aquela outra coisa que distinguia o Millôr dos seus contemporâneos nacionais, no humor. E como ele não tinha igual no Brasil, as comparações com estrangeiros não tardaram a aparecer: Millôr seria o George Bernard Shaw se este tivesse nascido no Méier. Seria um James Thurber com mais tempo de praia. Mas nenhuma das comparações fechava, exatamente. O que o Millôr estava fazendo nas suas duas páginas de revista e peças de teatro não tinha equivalente nem aqui nem lá fora. O mesmo espaço com sua assinatura podia conter uma coleção de tiradas certeiras sobre os ridículos do dia ou uma profunda divagação sobre a vida, as letras ou o vazio do universo E dava para imaginar o Bernard Shaw, ou o Steinberg, dispensando qualquer deferência à sua excepcionalidade e se incorporando a um bando como o que fundou O Pasquim em 1969 e fez a revolução de verdade sob o nariz da revolução de mentira dos militares? Mesmo sem querer o título, ele foi o inspirador e guia daquela geração. Quando eu o conheci pessoalmente acho que ele já estava na Veja, enchendo as mesmas duas páginas com sua sabedoria colorida. Um grupo de intelectuais – lembro do [Fernando] Sabino, do Otto [Lara Resende], do Paulo Mendes Campos – esteve em Porto Alegre por alguma razão e foi visitar meu pai. O Millôr estava junto. Não falei com meu ídolo, não pedi autógrafo, ele nem deve ter me visto. Mais tarde passamos a nos encontrar com alguma freqüência – no Salão de Humor de Piracicaba [SP] na sua fase inicial e heróica, no convívio com amigos comuns no Rio – e tornamo-nos amigos. Sempre conto que uma vez vi o Millôr provocar aplausos entusiasmados da platéia, numa das admiráveis Jornadas Literárias de Passo Fundo [RS], com um discurso em favor da liberdade, da democracia e da concórdia universal. Quando os aplausos terminaram, o Millôr revelou que acabara de ler o discurso de posse do general Médici na Presidência. O ceticismo é o componente mais forte, e não raro mais divertido, da sua independência intelectual. Talvez seu maior exemplo aos seus pares seja este, o de cultivar um ceticismo quase absoluto diante dos homens – ou desse tipo especialmente enganador de homem que é o brasileiro com poder – e da sua retórica ilusionista e belas intenções, sem sucumbir à misantropia. Apesar da sua má opinião do próximo, ele é um bom e generoso amigo dos seus amigos, como já comprovei mais de uma vez. Um gênio com princípios, meu ídolo, Millôr Fernandes.
”
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E N T R E V I S TA
Múltiplos diálogos Entre ser entrevistado e entrevistar, Millôr Fernandes fica com a segunda opção. Compreenda-se. Desde os 15 anos ele tem na imprensa a sua tribuna – e, mais do que isso, prefere ser chamado de jornalista, em vez de qualquer outra classificação que suas tantas habilidades permitiriam. Quando, também por, digamos, dever do ofício, Millôr é colocado na condição de quem ouve perguntas em lugar de fazê-las, a diversidade de facetas com que sua obra se construiu torna-se evidente. Assim, durante seis horas e vários cafés de conversa – realizada no seu estúdio, em Ipanema, entre a manhã e a tarde do dia 28 de abril, uma segunda-feira de temperatura tipicamente carioca –, Millôr Fernandes mostrou-se em sua plena pluralidade. O que se lerá a seguir são, portanto, múltiplos diálogos: às questões formuladas pela Redação dos CADERNOS e por um grupo de convidados respondem os muitos Millôres. Os temas, inúmeros, marcam tal identidade de identidades – vão das agruras de sua infância à ética no jornalismo; dos primeiros tempos da carreira ao futuro do humor; da indústria cultural às artes plásticas; da estrutura e das dificuldades de tradução dos textos teatrais à natureza da História; do haicai à brasileira ao sentido metafísico da transcendência.
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CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA: Às vésperas de completar 80 anos, em agosto de 2003, e tendo começado a trabalhar como jornalista em 1939, o sr. construiu ao longo de 64 anos de militância ininterrupta uma das carreiras mais longas da imprensa brasileira, como também uma das mais variadas nos modos de intervenção e nos tipos de órgãos de informação para os quais contribuiu – da grande imprensa aos “nanicos”, incluindo o rádio e a TV. Com base nessa extraordinária experiência profissional – digna de um registro no livro de recordes Guinness –, como o sr. avalia o papel da imprensa hoje?
ele fosse um homem extraordinário para a comunicação no Brasil. Era uma época em que você tomava dinheiro do governo, tomava dinheiro da indústria, de todo mundo, só que tinha uma diferença: ninguém botava dinheiro lá fora. Por mais que houvesse corrupção na imprensa, você estava sempre fazendo com que o processo progredisse; hoje as pessoas roubam 30 milhões de dólares para depositar na Suíça, o que é um absurdo. CADERNOS: Considerando o início precoce de sua carreira, o sr. diria que a imprensa o atraiu desde a infância? Ou o sr. chegou a ela exclusivamente por necessidade, essa mesma necessidade na qual identifica a causa de quase todas as empreitadas de sua vida? Em outras palavras, houve nessa escolha predestinação, vocação ou simplesmente acaso?
Millôr Fernandes: É verdade. Comecei a trabalhar em março de 1938 [não ainda como jornalista]. Não interrompi praticamente um dia. Para mim não tem sábado, domingo, feriado; minha vida se divide em trabalho e diversão. Mas, respondendo à pergunta de vocês: a imprensa, hoje, é uma instituição melhor do que foi no passado, mesmo que pareça sem brilho. E ela é ainda, como perspectiva, uma das profissões mais respeitáveis – porque, se você tirar a cúpula da imprensa, que pode ser corrupta e comprometida, fazendo suas negociatas como se vê em outros tipos de atividade, a maioria dos profissionais está interessada em buscar alguma coisa, em expressar um objetivo de alcançar aquilo que se chama verdade, se é que isso existe. A gente poderia dar como contraponto ao trabalho da imprensa a publicidade, que é a mentira permanente como profissão, como filosofia.
Millôr Fernandes: Não, eu não cheguei a pensar em nada na minha vida. Tinha perdido o pai em 1925 e a mãe, dez anos depois. Meu pai era um engenheiro como Che Guevara era médico. Ele se formou na Espanha e veio para o Brasil. Casou-se aos 25 anos. Era um cara com outra percepção. Chegou aqui, estabeleceu-se no comércio e nossa família levava uma vida razoavelmente próspera. Morávamos numa casa de 20 por 40 metros de terreno e quatro quartos. Quando meu pai morreu, minha mãe, com 27 anos, foi obrigada a alugar metade da casa para uma irmã e começou a costurar dia e noite para fora. Depois que ela morreu, a coisa piorou muito, claro. O Hélio [seu irmão] chegou a dormir na rua.
CADERNOS: Por que o sr. diz que a imprensa é melhor hoje do que no passado? Os níveis de chantagem, naquela época, não tinham limites nem divisão entre patrões e empregados?
GERALDO CARNEIRO: Nem todo mundo sabe que você teve uma infância digna de Charles Dickens. Queria que você falasse um pouco sobre esse período e contasse também como foi a volta por cima, como diria Ataulfo Alves.
Millôr Fernandes: Naquele tempo a chantagem era absoluta. Existiam os jornalistas que se prestavam ao papel de mentir para conseguir vantagens – a busca da verdade não estava tão impregnada nos profissionais como hoje. Quanto aos patrões, vou citar um só: [Assis] Chateaubriand. Ele era um verdadeiro monstro moral, mas não se pode negar que fosse um gênio. Usava isso da maneira mais sórdida possível. Agora, o fator moral não impediu que
Millôr Fernandes: Depois que minha mãe morreu, fui morar com um irmão dela, que tinha uma casa num subúrbio mais pobre, Terra Nova. Ele assumiu a obrigação de me sustentar, mas pegava o dinheiro e fazia o que queria. Começou, então, o período que eu chamo de dickensiano. Como já contei outras vezes, na hora de comer, o que tinha 30
de bom ia para os meus primos; se alguém ia ficar sem bife, claro, não eram eles. Chamo essa fase de dickensiana porque é aquele negócio: eu estava perto de ter as coisas, mas não tinha. A volta por cima foi ocasional. Eu estava terminando o curso primário – um curso magnífico, sempre digo isso, principalmente porque tive uma professora que admirei o resto da vida, Isabel Mendes, que me ensinou a gostar de estudar, de ler; daí em diante eu podia me tornar autodidata – e precisava trabalhar. Arrumei um emprego como distribuidor de remédio [Urokava, para os rins]. Alguns meses depois, meu tio Viola, que era chefe da oficina d’O Cruzeiro, arrumou um emprego para mim lá – fui ajudar no que fosse preciso. Esse tio já tinha vendido um desenho meu para O Jornal quando eu estava com 10 anos. Acho que a volta por cima começou naquele primeiro emprego em O Cruzeiro.
de toda a minha infância um bloco de repulsa. Não sinto amargura, não, lembrando daquela fase. Quando minha mãe morreu eu era menino. E menino, para sentir alguma coisa, precisa ser um troço muito violento. Eu fui ao cemitério; quando voltei para casa, me deitei embaixo de uma cama, numa esteira, e chorei feito um desgraçado. Eu chorei, chorei e senti um enorme alívio com aquilo, que depois designei como “a paz da descrença”. Achei, como já disse algumas vezes, que não tinha Deus coisa nenhuma. Foi como se eu tivesse concluído: agora é comigo.
CADERNOS: Como o sr. começou a desenhar?
Millôr Fernandes: Tudo na minha vida, desde a coisa global até o instante em que nós estamos conversando, é ocasional. Eu acho que existe um destino – não o maktub árabe, o “está escrito”; não tem nada escrito! Agora, se eu tivesse nascido no interior do Piauí, eu não teria nenhuma oportunidade; se eu não tivesse ido para o trabalho na imprensa, eu seria um pobre-diabo como qualquer um – aquilo desenvolveu o meu potencial.
ALBERTO DINES: Você acha que o menino Milton Fernandes se tornaria o Millôr que conhecemos se tivesse nascido em outra cidade brasileira que não o Rio de Janeiro? Ou, mais precisamente, se não fosse do Méier?
Millôr Fernandes: Meu desenho começou com a história em quadrinhos, o Flash Gordon, do Alex Raymond. Ele era absolutamente extraordinário, de uma elegância, de uma clareza; minha irmã guardava páginas e páginas e eu copiava quadrinho por quadrinho. No Liceu de Artes e Ofícios, que eu freqüentei mais tarde, foi apenas aquele negócio de desenhar objetos; nada de modelo vivo, mulher nua – era “modelo morto”. JAGUAR: Todos dizemos que, se você não pensasse, escrevesse e desenhasse em “brasileiro”, seria uma celebridade internacional. Se pudesse escolher o lugar de nascimento, qual seria sua opção? Dublin, Paris, Nova York ou Méier? Ou alhures?
Millôr Fernandes: Sem hesitar, Méier. Para morar, naquela época, o subúrbio era um negócio maravilhoso – o terreno baldio, o futebol na frente de casa. Era maravilhoso. CADERNOS: E no plano afetivo? O sr. falou há pouco de um “período dickensiano”.
Millôr Fernandes: Uma coisa não invalida a outra. O fato de eu ter sido rejeitado aqui ou ali não faz 31
CADERNOS: É conhecida sua pertinência a uma certa geografia carioca, mais exatamente à praia de Ipanema, a três ou quatro ruas nos arredores da avenida Vieira Souto, onde reside e mantém ateliê desde a primeira metade dos anos 60. Millôr Fernandes é um fenômeno criativo típico desse quadrante da cidade, que ninguém duvide. Inclusive, esse topos tem sido freqüentemente invocado para explicar até mesmo, por que não dizer, o seu extraordinário talento. Mas, numa entrevista à extinta revista Banas, em 1976, coube ao sr. mesmo colocar um certo relativismo nisso. Nela o sr. declarou: “Mais que num espaço geográfico, eu vivo num espaço lingüístico – acho a língua um negócio fundamental pra gente viver – ouvi-la, expressarse, compreendê-la, tudo isto é absolutamente imprescindível”. Como o poeta Fernando Pessoa, o sr. fez da língua portuguesa a sua pátria. É por isso que, entre as diversas qualificações que possui – jornalista, dramaturgo, humorista, desenhista, além de outras –, prefere sempre ser chamado de jornalista?
a grande imprensa começou a se modificar por causa daquilo.
Millôr Fernandes: Essencialmente é para tirar qualquer pretensão. Agora, não existe coisa mais importante do que a língua. Decodificaram 99% do genoma, chegou-se ao conhecimento humano da biologia total. Ao mesmo tempo, a comunicação na nossa época virou universal. O que as pessoas não sabem é a língua; o que se faz de estudos sobre línguas é inimaginável.
CADERNOS: Recentemente, houve uma discussão sobre a pertinência ou não de o jornalista abrir suas fontes. O que o sr. pensa a respeito?
CADERNOS: O sr. compartilha da opinião de que o jornalismo é um negócio como outro qualquer?
Millôr Fernandes: Ele tende a ser um negócio e hoje uma coisa terrível acontece com os jornais, está acontecendo também na internet: entraram os “recursos humanos”. Antigamente chamava-se “seção de pessoal”, hoje é “recursos humanos”. Então você pega três bonitões que estudaram economia, que chegam para a redação e dizem: “Olha, o negócio é o seguinte, nós estamos gastando 2 milhões por mês e não podemos”. Não sei como é em São Paulo, aqui está acontecendo em todo lugar. Então, por esse lado, é negativo. Agora, o princípio do jornalismo não pode ser visto como um negócio igual a qualquer outro, porque hoje a imprensa cumpre um papel de vigilância que ninguém cumpre, um papel de investigação que é melhor do que o da polícia. Até o Congresso fica esperando o que a imprensa está descobrindo.
Millôr Fernandes: A coisa é muito complexa. Em princípio, alguém vai me dar a informação e eu vou guardar o seu nome para poder preservar a pessoa e com isso manter a fonte. O problema começa quando eu deixo de denunciar algo grave só porque envolve uma fonte. Para a profissão, para o país, é muito mais importante, muitas vezes, que eu perca a fonte.
CADERNOS: Ao longo de sua carreira como jornalista, o sr. foi funcionário de grandes veículos e também fundador de órgãos alternativos. Como buscou se equilibrar nesses dois lados aparentemente antagônicos?
CARLOS HEITOR CONY: Como você definiria seu irmão – e meu amigo – Hélio?
Millôr Fernandes: Nunca tive nenhum problema, não, porque naturalmente não crio ideologias. Quando eu escrevo, escrevo, ponto. Não vou ficar perguntando se devo ou não devo escrever isto ou aquilo, não importa qual seja o veículo ou de que lado eu me encontre do balcão. Agora, a experiência d’O Pasquim foi extraordinária pelo seguinte: houve realmente um negócio nacional de apoio, e
Millôr Fernandes: Vou dizer o seguinte, Cony – eu posso considerar o Hélio meu irmão. ALBERTO DINES: Em 1939, quando você criou Vão Gôgo, era mais fácil enxergar o certo e o errado? Os “vilões” eram mais “vilões”, entre os anos 30 e 40? Hoje tudo ficou mais embaralhado? 32
artista dentro dela. Como concilia sua visão da arte com o compromisso de produção para a indústria cultural?
Millôr Fernandes: Nunca tive essa preocupação. Funcionava assim: se uma pessoa estava no governo, eu ficava contra. Isso em qualquer época. Em plena ditadura Vargas, escrevi assim: “Getúlio é maior que José Maria Vargas Vila (um escritor colombiano, muito popular naquele tempo), porque é um Vargas vilão”. Acho que já era um pouco anarquista, pela minha própria formação. Agora, se você pegar o que acontece hoje, ou recuar só um pouco no tempo – até o Collor, por exemplo –, fica claro que tudo está bastante embaralhado, sim. Para ser desonesto não é preciso roubar 1 milhão de dólares; é desonesto quem faz a conta que quer para o cálculo da aposentadoria e depois chama os aposentados de vagabundos.
Millôr Fernandes: Até hoje ser chamado de artista me faz mal, é engraçado. Mas nunca me senti mal com o trabalho que faço na imprensa. Curiosamente, agora que estou só na internet, descobri que queria fazer outras coisas, mais pessoais. Pensei: agora vou sentar e fazer uma espécie de livro de memórias. Quero fazer uma coisa original: por exemplo, de repente eu ponho nele uma carta do Paulo Francis, um conto que escrevi há tempos, um trecho de uma conversa com um amigo. Fui mexer nos meus papéis e encontrei muito material, quero dar um uso para ele. Não vou virar um velhinho com uma coleção de coisas, de livros. Outro dia, peguei uns 500 livros e botei fora.
CADERNOS: Com esse comportamento, o sr. teve problemas com a censura até no governo Juscelino.
CADERNOS: De todos os livros que estão aqui, talvez o maior conjunto seja o de dicionários em uso, não? (Algo natural para quem traduz no ritmo em que o sr. se dedica a essa atividade.)
Millôr Fernandes: JK censurou Hélio Fernandes, censurou Carlos Lacerda e a mim ocasionalmente. Naquela época, ou ele censurava Hélio Fernandes e Carlos Lacerda, ou não governava.
Millôr Fernandes: Aqui eu devo ter, fácil, uns 300 dicionários em uso. Tenho mais em casa – lá devo ter uns 5.000 livros. Quando estou traduzindo, uso 30 dicionários, uma loucura. Mas faço rápido: enquanto muita gente demora quatro anos para traduzir uma peça, sabem em quanto tempo faço isso? Em dois meses. Agora, são dois meses pra valer. Fico em cima daquele negócio. Tradução é a única coisa que eu sei fazer – e não quero fazer mais.
GERALDO CARNEIRO: Você é muito conhecido como polemista e nunca teve compromisso com as tolices da correção política. Quem não o conhece de perto talvez não saiba que você também é um monstro de delicadeza. Como é que convivem “médico” e “monstro”?
Millôr Fernandes: É uma questão de temperamento. Eu tenho aqui empregada e secretária, que é filha da empregada. Naturalmente eu as trato como pessoas da família. O meu motorista, para dar outro exemplo, eu levo no meu oculista. Não quero que o cara fique cego. Sabe aquela história de “perco um amigo, mas não perco a piada”? Eu não penso dessa maneira. Não estou na vida para fazer piadas; quem faz piada é um idiota.
CADERNOS: O sr. está na internet, que é pura indústria cultural. Pois bem: a mídia é inerente ao seu processo de trabalho, que tem muito de artístico. Gostaríamos de insistir na questão: como o sr. convive com esse suposto antagonismo?
CADERNOS: O sr. aproximou-se das bancas de jornal levado por uma das manifestações mais genuínas da indústria cultural, os quadrinhos. Mais tarde, sua obra encontraria suporte nessa mesma indústria – através de jornais e revistas. Noutras palavras, o sr. se descobriu
Millôr Fernandes: Pois é, eu não sei. Talvez seja porque desde o início eu sempre procurei preservar minha liberdade; eu fazia o que quer que fosse, para o veículo que fosse, e não deixava ninguém mexer. 33
computador para desenhar. Aí, achei que a técnica estava me prendendo e voltei para o pincel. Eu brinco com os meus amigos: abri a tampa, botei um pouco de água e lá estava a tecnologia perfeita, o nanquim, feito há mais de 2.000 anos. E o papel? A pessoa esquece que tecnologia maravilhosa é o papel. CADERNOS: Além de seu interesse por revistas em quadrinhos, o sr. costuma lembrar que deixou de ser contínuo para trabalhar no arquivo de O Cruzeiro ao vencer um concurso de contos promovido por outra revista do grupo, A Cigarra. Qual era, então, o seu convívio com a literatura? Quando e de que forma ele teve início?
Millôr Fernandes: Foi curiosa a minha infância. Ela não foi rodeada de gente letrada, por exemplo. Eu li, como se sabe, desde cedo, muita história em quadrinhos. Lembro que quando eu tinha uns 11 anos havia um cronista aqui no Rio de Janeiro muito conhecido, o Humberto de Campos. Então ganhei um livro chamado Memórias de Humberto de Campos. Eu li umas cinco vezes, achava genial. Bem, aos 20 anos caí na besteira de ler de novo e achei um lixo. De volta à infância: comecei a ler um livro chamado Imortalidade, do Coelho Neto, um escritor que era muito difícil naquela época. Depois dos 20 anos também voltei a ler a obra e não me decepcionei. Resultado: comecei então a ler furiosamente. Peguei Euclides da Cunha, Os sertões, e achei o máximo, mesmo a primeira parte, “A terra”, que todo mundo diz que é difícil. Eu tenho tendência a gostar do que é difícil. Depois vieram Romance d’A Pedra do Reino, do Ariano [Suassuna], dificílimo, [ João] Guimarães Rosa – ou seja, li tudo o que importa, não só em português mas também em francês, inglês. Um cara que eu não consegui entrar, que nunca me interessou foi [ James] Joyce.
CADERNOS: Ou seja, não houve antagonismo nenhum da sua parte?
Millôr Fernandes: Não, nunca. CADERNOS: E por que essa resistência em assumir o papel de artista? De que maneira isto se instalou no sr.?
Millôr Fernandes: Eu não conheço ninguém, nenhuma pessoa que tenha essa minha atitude, vocês entendem? Talvez eu pense desse modo porque fiz o que fiz dentro do âmbito da vida profissional. Mas, vejam bem, não vai nisso nenhuma modéstia. Eu acho que tudo o que faço é bom. Se eu for mostrar certas coisas que tenho, é o caso de perguntar: quem é que faz isso? CADERNOS: Sua dificuldade em entender como artístico o seu trabalho estaria ligada aos suportes nos quais ele foi, via de regra, veiculado? De novo, seria a profissão de jornalista se afirmando em cima de todas as demais atividades?
CADERNOS: Que autores o sr. lê hoje?
Millôr Fernandes: Hoje eu leio pouca ficção.
Millôr Fernandes: É possível. Agora, do ponto de vista das técnicas que utilizo, sempre me pautei também pela liberdade. Fui dos primeiros a usar o
CADERNOS: E, dos autores lidos naquele período de formação, quais poderiam ser considerados influentes em seu trabalho? 34
muito jovem o sr. já desenhava e escrevia contos.
Millôr Fernandes: Um dos autores de que mais gostei foi, naturalmente, o Shaw. Cheguei a traduzir algumas coisas dele, mas eu não sinto influência, apesar de o Shaw ter sido um cara brilhantíssimo e eu mesmo dizer: “Todo homem nasce original e morre plágio”.
Millôr Fernandes: Na verdade, o meu sentimento do desenho é anterior. O de escrever só me veio com a questão profissional. Com a tradução foi assim também. Estava em O Cruzeiro, começaram a me pedir para traduzir umas coisas e eu fui fazendo. Lembro que um dia encontrei o [Oscar] Niemeyer no meio das obras do prédio novo da revista e ele veio me pedir para traduzir – eu já devia ter fama – um panfleto qualquer sobre arquitetura. Fui lá e traduzi sem entender nada; disseram que eu sabia e eu falei pra mim mesmo: “Não vou fazer essa indelicadeza com o Niemeyer”.
ALBERTO DINES: Além de George Bernard Shaw, indique cinco “companheiros de jornada”.
Millôr Fernandes: Entre os desenhistas, tem uma porção deles. Gosto de um que não sei se vocês conhecem, Edward Gorey, americano, morreu faz pouco tempo. [Saul] Steinberg, claro, André François. Na Argentina tem o Hermenegildo Sábat, que é um tremendo pintor.
CADERNOS: A “obrigação” de escrever, de criar, com prazos, tamanhos etc. predeterminados, trazida pelo jornalismo, é responsável pela naturalidade com que o sr. parece encarar o trabalho por encomenda? De todas as suas peças, por exemplo, só Flávia, cabeça, tronco e membros não foi escrita a pedido de alguma atriz, ator ou diretor.
CADERNOS: O humor está submetido a um regime de preconceito mesmo quando ele incorpora como meio de expressão um desenho de qualidade superior?
Millôr Fernandes: Vejam bem, eu não coloco isso num terreno moral. Voltando à origem da palavra preconceito, no caso do humor estamos diante de um autêntico pré-conceito. Existe o conceito antecipado de que o humor representa algo menor. Ele carrega uma carga pejorativa. Foi por isso que no meu site, por exemplo, falei para tirarem a palavra charge para indicar alguns dos meus trabalhos. Charge é uma coisa vista com preconceito. Se eu estou fazendo um desenho com sentido filosófico – por exemplo, dois peixinhos conversando num aquário e um deles diz: “Ainda bem que Deus existe, mas quem troca a água?” –, é evidente que, se ele for chamado de charge, vai diminuir o trabalho. Agora, eu acho que os desenhistas de humor no mundo inteiro são sensacionais.
Millôr Fernandes: De fato, foi com Flávia que resolvi sentar e fazer uma peça por minha própria vontade. Aconteceu em 1963 – vejam vocês, depois de tanto tempo de estrada. Acabei fazendo uma peça com 20 e tantos personagens, o máximo. Eu quis fazer um texto em que as coisas explodissem. Então chega um momento em que a linguagem começa a mudar. O cara entra e diz “Bom-dia, boa-noite” na mesma hora. Ninguém percebeu isso, evidentemente. A peça foi pouco montada. Tenho também textos teatrais que fiz por encomenda que nunca foram levados ao palco. Eu não tenho um mercado de teatro.
Millôr Fernandes: Não sei. Mas acho que a intenção de se comunicar seria a mesma da linguagem.
CADERNOS: Há um entendimento em relação ao seu teatro de que ele exigiria um certo tipo de ator e de atriz. Quando o sr. fala que não tem mercado de teatro, seria talvez em decorrência dessa característica de suas peças?
CADERNOS: No caso do seu trabalho, porém, traço e texto parecem ter vindo juntos: ainda
Millôr Fernandes: Não sei. É muito difícil você escrever um texto que depois um ator leia conforme
CADERNOS: De que maneira teria começado o desenho de humor? Na pintura rupestre? Trata-se de uma arte primordial?
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CADERNOS: De volta à sua peça.
você imaginou. Em geral, os atores querem melhorar o autor – e pioram tudo.
Millôr Fernandes: Olha aqui, a peça não era sobre o feminismo, o que me interessava era discutir a falência das teorias, a falência das propostas de vida, porque, se vocês observarem, todo mundo ali fracassa.
CADERNOS: Ao escrever, por encomenda, sua primeira peça, Uma mulher em três atos (1953), o sr. já considerava a possibilidade de se tornar autor teatral?
CADERNOS: De qualquer maneira, naquele momento o sr. foi visto como um defensor do machismo.
Millôr Fernandes: Não. É engraçado, não considerava.
Millôr Fernandes: Isso é toda hora. Há alguns anos, eu estava num jantar, numa mesa com oito pessoas, e tinha uma senhora, sessentona, sentada na minha frente. A certa altura, ela vira para mim e diz: “Millôr, por que você é tão machista?”. Eu respondi: “E por que a senhora é tão grosseira?”. Aí ela veio se defender: “Não, eu sou sua fã”. “Não é minha fã, não”, eu disse. “Vocês, mulheres, estão adquirindo uma certa independência e pensam que, por isso, podem dizer tudo o que querem sem ter resposta. A senhora estava esperando que eu reagisse como um cavalheiro de chapéu de pluma? Pois eu defendo a minha posição, todo mundo pode defender a sua, por que eu não tenho o mesmo direito? Eu não fiz nada de errado, nunca bati em mulher – agora, eu sempre defendi e vou defender as minhas posições com muita clareza”.
CADERNOS: Vamos insistir. A naturalidade com que o sr. escreve sob encomenda para teatro é uma influência do trabalho na imprensa?
Millôr Fernandes: É isso mesmo. CADERNOS: O fato de seu teatro discutir o momento presente está também ligado à sua experiência como jornalista?
Millôr Fernandes: Vejam, em 1955 eu escrevi Um elefante no caos, uma obra-prima, em que eu falo de uns terroristas barbados, de uma ilha. Ora, isso foi bem antes de Fidel Castro tomar conta de Cuba [1959]. CADERNOS: A peça É... (1976), um de seus maiores sucessos nos palcos, deixa perceber que o sr. vê muito criticamente o apego às teorias, de modo geral. Mais especificamente, ela questiona uma das bandeiras daquele período, a da liberação feminina. Naquela época, O Pasquim realizou uma entrevista com uma das figuras centrais do feminismo, Betty Friedan, dando lugar a uma acalorada discussão entre o sr. e a psicóloga norte-americana. A peça surgiu depois das idéias expostas na entrevista? Ou o episódio com Friedan espelha a mesma descrença nas teorias que É...?
CADERNOS: Em muitas de suas peças – vamos pegar A história é uma istória... Liberdade liberdade – o fio condutor é sempre atravessado pelo imprevisto, ou seja, o processo histórico não é determinado. Qual é a origem dessa sua visão? Ela está ligada a um certo, vamos dizer, pessimismo que o sr. cultiva quase sistematicamente?
Millôr Fernandes: Pegue o exemplo dessa epidemia na China [Sars – Síndrome Respiratória Aguda Severa]. Como é que alguém vai prever um negócio desse? Agora, voltando a um ponto que foi dito aí e é muito importante esclarecer: eu nunca fui pessimista na minha vida. Eu sou, se você quiser, cético – ou cínico, que acho mais alegre. Hoje eu digo uma coisa que as pessoas se surpreendem de ouvir: nós estamos vivendo no melhor período da humanidade. Nós temos, por exemplo, a comunicação universal.
Millôr Fernandes: Betty Friedan brigou comigo, chutou a mesa, pelo seguinte: para preparar aquelas entrevistas d’O Pasquim, a gente fazia a lição de casa. Nós sabíamos mais sobre o entrevistado do que ele mesmo. Pois bem: eu tinha lido o livro da Betty dois dias antes e comecei a encostá-la na parede; eu fazia perguntas sobre o livro e ela não sabia responder. Foi ficando irritada e deu no que deu. 36
CADERNOS: O sr. é um otimista com a ciência, com a tecnologia?
Millôr Fernandes: Transforma em termos, porque se você pegar uma pessoa capacitada, ela vai com esse sentimento, vamos chamar assim, científico, para a coisa.
Millôr Fernandes: Não é otimismo, é consciência. Veja a medicina. Ela fez um progresso sensacional – o problema é que ainda está longe de ser socializada. O que aconteceu na medicina é só um exemplo. Se eu estou sentindo calor, ligo o ar-condicionado e aqui estamos nós, conversando sem que o clima lá de fora nos afete nem um pouco. Você quer comer, pega um telefone e em alguns minutos tem um almoço ser vido na sua frente. Vamos para o plano da cultura. Há algum tempo, o livro era uma coisa sagrada; culto era o cara que tinha livros e falava deles. Veio a televisão, inventou a novela e ela virou uma cultura universal. O que acontece? A dona-decasa de classe média vai para a fila do banco e a empregadinha semi-alfabetizada também e elas ficam ali conversando com a cultura que têm sobre a história da novela, os atores etc. Agora, o ser humano, de modo geral, não melhorou na mesma proporção. Mas é preciso admitir algum avanço. Querem ver uma coisa? O livro de Stephen Hawkings sobre o tempo vendeu milhões de exemplares – ou seja, não é só auto-ajuda que vende; tem gente melhor no mundo, interessada em outras coisas.
CADERNOS: O sr. acredita na neutralidade da visão científica? Ela é capaz de colocar o mundo entre parênteses?
Millôr Fernandes: Não foi isso que eu disse. A visão científica é muito genérica. Mas num certo momento você chega a um acordo e sabe que E=MC2. CADERNOS: Bem, já se fala hoje que a velocidade da luz não é constante, como está dito na fórmula da teoria da relatividade de Einstein...
Millôr Fernandes: Então tudo, realmente tudo, é mesmo relativo... Acho fantástica essa idéia. Vejam o caso da relatividade do tempo. Se pegássemos dois irmãos, gêmeos, de preferência, e os separássemos assim: um ficava na Terra e o outro embarcava num foguete que andasse numa velocidade absurda. Quando este voltasse, encontraria o irmão aqui na Terra muito mais velho do que ele. Mas, retomando a questão da verdade científica: pegue o caso do genoma; ninguém vai duvidar daquilo, não é? Quanto isso vai afetar, digamos, a psique, o humano? E o físico? O sujeito que não passa do metro e meio fica, sem dúvida, complexado a vida inteira.
CADERNOS: De volta à idéia de ser impossível determinar o processo histórico, o escritor argentino Jorge Luis Borges disse certa vez:“O que é a história senão nossa imagem da história?”. O sr. concorda com esse ponto de vista?
CADERNOS: Mesmo um Toulouse-Lautrec?
Millôr Fernandes: Garanto que ele faria qualquer coisa para ter 1 metro e 70. Mas mesmo pensando em um sujeito assim chamado “normal”, do ponto de vista físico – e o lado psíquico? A maior parte das pessoas é deprimida ou tem depressões ocasionais; elas caminham pela vida com um sentimento de razoável infelicidade. Como é que nós vamos conseguir mudar isso? Pelo lado social, pelo lado científico? Não sei.
Millôr Fernandes: A história é uma ficção. Para começo de conversa, o título da minha peça é A história é uma istória, sem h e com i – está aí a minha definição. Vejam a história antiga: está sendo toda reformada. As novas tecnologias têm sido fundamentais para isso. A história vai ser toda reformulada. CADERNOS: Mas mesmo com o apoio do aparato científico não existe, na hora de reinterpretar, uma carga deformante, ideológica – não existe uma invenção, que também acaba por transformar tudo outra vez em uma ficção, provisória, sim, mas, de todo modo, ficção?
CADERNOS: Voltando agora para o teatro. Uma estética baseada no estranhamento, à maneira de Brecht, seria contrária à sua concepção dramatúrgica? 37
dia 180 mil por dia. Pedi 5.000, acabei fechando por 3.000 dólares. Aí eu peguei a prancheta, fiquei até de madrugada; mandei três desenhos para lá. Uma semana depois, chegam aqui 2.000 dólares; na semana seguinte, mais 2.000 e, na outra, mais 2.000. Mandaram 6.000 dólares. Salvaram a minha vida naquele momento. Uma vez, eu soube que um ministro de lá, com a minha página na mão, disse: “Este tem piada, pena que escreva tão mal o português”.
Millôr Fernandes: Esperem aí. É estranhamento? Tem outra palavra em alemão, que o pessoal usava mais aqui... CADERNOS: Distanciamento.
Millôr Fernandes: Isso. O termo é mais correto. No meu caso, não existe distanciamento algum. No cinema, ao menos para mim, é diferente. Inúmeras vezes, num filme até muito simples, eu embarquei. O cinema realmente me afasta da poltrona – o teatro não. Agora, fala-se muito em Brecht. Eu sou fã de outro, do George Grosz. Ele lutou contra os nazistas. Foi para os Estados Unidos, se deu mal por lá. Tenho até uns desenhos dele aqui. Grosz fez uma exposição em Los Angeles no ano de 1948 e eu vi, estava lá. Aqueles quadros a óleo ficaram bem guardados na minha memória.
CADERNOS: Em quais elementos o sr. buscou subsídios para tentar criar um teatro diferenciado?
Millôr Fernandes: Nunca trabalhei pensando nisso. Existem pessoas que para escrever um livro, uma peça de teatro, fazem um esquema. E aí sabem, de antemão, o que vão pôr no papel. Eu, literalmente, não sei. Começo a escrever uma peça, por exemplo; daqui a pouco batem na porta e entra um general. Aí começo a pensar: é um general falso ou tem que agir como um general? Entendem? É verdade que, à medida que você vai avançando no texto, percebe que pode modificar o início. Você toma nota para fazer isso. Então você pára, vai ler um jornal e nele aparece uma notícia que chama a atenção – você inclui. A coisa vai se armando. No fim, você limpa tudo e fica uma coisa absolutamente correta. Mas vejam: nada do que entra ali deixa de ser meu, no sentido intrínseco. Eu não ponho nada ali que seja artificial. Mesmo que amanhã eu ponha uma frase que vocês tenham me dito, ela vai aparecer no meu texto para servir a uma situação criada por mim. Deixa, então, eu voltar para o início da resposta. Eu não sou como um Brecht, um Pirandello – cada um deles tinha uma noção exata do que queria dizer antes de começar a escrever uma peça. O meu teatro, como qualquer coisa minha, é eclético e livre por natureza; eu vou para lá, venho para cá, sem um esquema preconcebido.
CADERNOS: De fato, houve toda uma geração de alemães que, fugindo do nazismo, acabou nos Estados Unidos. Nem todos se deram bem por lá. A propósito, como o sr. imagina que reagiria diante da necessidade de se exilar? O humor resiste ao exílio?
Millôr Fernandes: Já pensei muito sobre isso. Acho que não sobreviveria. Aí vem o negócio da lingüística. Se eu fosse obrigado a viver nos Estados Unidos, na França, quanto à geografia, tudo bem, você consegue se adaptar em meia hora – mas com a língua, não tem jeito. Isso muita gente já escreveu; é terrível. CADERNOS: Como Millôr Fernandes é recebido em Portugal?
Millôr Fernandes: Eu tenho a maior simpatia por Portugal. Até porque eles me salvaram a vida. Depois de 1964, quando saí d’O Cruzeiro, fiquei na miséria, devendo dinheiro, ainda que eticamente eu me sentisse aliviado. Um dia, chego aqui e, vocês não vão acreditar, tinha uma cartinha embaixo da porta. Abri; era de Portugal, do Diário Popular. Estavam me oferecendo fazer uma colaboração e ganhar o equivalente a mil dólares por mês. O Diário era o jornal mais lido do país, ven-
CADERNOS: Seguramente, porém, é um teatro de autor, em contraposição a um teatro de encenador, por exemplo; o seu parece não se adaptar a isso. Noutras palavras, no seu teatro há uma autonomia do texto. 38
Millôr Fernandes: Mas o que seria, em última instância, o teatro do encenador? Vejam o Antunes, que é um grande diretor. Peguem o Macunaíma, que é um marco no teatro – não acho que seja no cinema. Ele, com todo o talento que Deus lhe deu, fez aquela coisa muito bem; mas estava partindo de um livro. É diferente. O teatro, para mim, é autor. Diferentemente de cinema. Vocês sabem, eu escrevo roteiros, mas acredito que cinema seja uma arte de diretor, fundamentalmente, inclusive quando ele vai para a montagem – porque, se não for cuidar disso, o seu trabalho acaba. CADERNOS: Em 1968, Décio de Almeida Prado detectava “uma corrente estética moderna, baseada em ilustres precedentes históricos, que procura reduzir o cenário quase à neutralidade para que a soberania da personagem se afirme ainda com maior pureza”. Existe uma hierarquia entre os elementos cênicos – texto, personagens, ambientação?
Millôr Fernandes: Não, não dão dinheiro algum. Os outros sim, vendem 7.000, 10.000 exemplares. Mas, voltando à tradução de clássicos, a primeira peça de Shakespeare que eu traduzi foi A megera domada. Para vocês terem idéia da minha interferência, a peça termina com Lucêncio dizendo que é um assombro que Catarina tenha sido de tal modo domada por Petrúquio. Só que antes disso Petrúquio fala: “Vamos, Catita, para a cama”. Ora, eu inverti essa ordem; minha tradução termina exatamente assim: “E agora, Catarina, para a cama!” Depois disso, não há nada mais a dizer – como escrevi numa nota quando publiquei a tradução. E acrescentei: “O poeta não ficou zangado”. Agora vou mostrar uma coisa para vocês, numa linha parecida. [Levanta e retira um livro da estante.] Vejam só: Hamlet em 15 minutos, do Tom Stoppard. Eu li isso e pensei: “Podia ser em dois minutos”. Fiz na hora. Primeiro ato: “To be or not to be”. Segundo ato: “O resto é silêncio”.
Millôr Fernandes: Teatro é hierarquia. É verdade que ele mudou muito. Como é que você pode comparar, por exemplo, grandes atores do passado com os de hoje, se antes eles trabalhavam com ponto? Mas, voltando ao problema da hierarquia: ela existe e o que deve estar na frente de tudo é o texto. Se você decide por um texto, então tudo deve obedecer a ele – cenário, iluminação, tudo. CADERNOS: A tradução de peças teatrais, como se sabe, ocupa um lugar fundamental dentro da sua obra. No seu caso, o mais correto talvez fosse falar em recriação em vez de dizer simplesmente tradução. Como é esse processo diante de textos clássicos, por exemplo?
Millôr Fernandes: Um dia, encontrei o Nelson Rodrigues na rua e ele me perguntou: “Millôr, é verdade que você melhora o Molière?” Eu respondi: “Nelson, olha aqui, eu nasci 300 anos depois do Molière. Além disso, sou mais velho do que ele. Respeito tudo o que Molière escreveu – agora, deixou uma bola na porta do gol, o chute é certo”.
CADERNOS: É mais difícil, numa tradução, mexer num texto clássico, de um Sófocles, por exemplo, do que numa peça de um autor contemporâneo?
CADERNOS: Os seus livros de tradução de teatro vendem bem?
Millôr Fernandes: Não, para mim não existe essa diferença. Se eu tenho que mexer no Shakespeare, 39
idioma veio com a própria atividade de traduzir. Já o espanhol o sr. devia ouvir em casa, por parte de seu pai, e o italiano, pelo lado materno, não?
em Sófocles, no Molière ou no Harold Pinter, não faz a menor diferença. Para traduzir os textos do Shakespeare é preciso ter a liberdade e a competência de trabalhar, por exemplo, com os trocadilhos. Quando eu estava n’O Cruzeiro, tinha mania de fazer pastiche – ficava imitando o estilo dos autores. A habilidade de produzir pastiche faz, de certa maneira, com que você entre no mundo do autor. Na hora de traduzir, isso sempre foi muito útil para mim. Quem quiser que me esculhambe. Eu sei o que estou fazendo. Não sou professor, não quero ser culto. Mas sei usar as palavras. Para mim não tem essa história de “expressão intraduzível”. Costumo dizer que não existem expressões intraduzíveis, principalmente em teatro e poesia.
Millôr Fernandes: No caso do espanhol, um pouco. Até hoje eu sou absolutamente inibido para essa língua. Agora, se entrar um italiano aqui, eu consigo falar – com erros, mas falo; não sei onde aprendi, não foi em casa. CADERNOS: E o alemão?
Millôr Fernandes: Do alemão eu sou capaz de traduzir. Mas fiz pouca coisa. CADERNOS: Como o sr. trabalha com traduções de idiomas que não domina – o russo e o grego, por exemplo?
CADERNOS: Esse jogo de palavras presente em Shakespeare sempre tem um sentido irônico, sarcástico, de humor. O fato de o seu trabalho estar tão marcado pelo lado humorístico não facilitaria a sua prática como tradutor, enxergando soluções, no caso de Shakespeare, por exemplo, que outros tradutores não conseguem encontrar?
Millôr Fernandes: Olhem, eu sempre trabalho com as versões disponíveis, sempre, mesmo no caso de idiomas que domino. Se é um clássico maior – Hamlet, por exemplo – eu uso 20 traduções diferentes, inclusive para o português. Meu processo com Shakespeare é assim: eu leio a frase e traduzo para a minha visão dela. Aí vou olhar o que os outros tradutores fizeram, para saber até onde soa compatível. Depois de um certo momento, eu abandono as outras traduções e chego à minha versão. É curioso que, no caso de Shakespeare, por exemplo, é muito comum você pegar traduções consideradas obrasprimas e quando vai ler o cara não traduziu um trocadilho. Na “Cena 1” do “Ato 5”, por exemplo, quando Hamlet, com uma caveira nas mãos, fala em “a pair of indentures”, “par de identificações”, é claro que ele está fazendo um trocadilho com o fato de a gente poder ser identificado pela nossa arcada dentária – eu não poderia deixar de acentuar esse “dent” que está no meio das palavras.
Millôr Fernandes: É verdade. CADERNOS: Como o sr. começou a traduzir?
Millôr Fernandes: Comecei com quadrinhos. Depois traduzi A estirpe do dragão, de Pearl S. Buck. No teatro, tinha uma espécie de “sociedade de tradutores”, uma coisa fechada, ninguém entrava. Um dia, uma pessoa me pediu para traduzir uma peça, A fábula de Brooklin – Gente como nós, de Irwin Shaw. A tradução ficou boa e, dali a pouco, eu estava dominando o negócio. CADERNOS: O sr. começou a traduzir, portanto, do inglês.
CADERNOS: Qual a influência do trabalho de tradução sobre sua própria obra teatral? A peça Os órfãos de Jânio, por exemplo, nasceu após o sr. ter traduzido Os filhos de Kennedy...
Millôr Fernandes: Sim. Como disse antes, comecei com histórias em quadrinhos. Eu traduzia e preenchia o balão do quadrinho, porque naquele tempo não tinha essa história de equipe, cada um fazendo uma coisa.
Millôr Fernandes: É verdade; eu segui aquela mesma estrutura.
CADERNOS: No caso do inglês, seu domínio do 40
CADERNOS: No entanto chama a atenção o número de tragédias, inclusive clássicas, que o sr. traduziu, sem que isso o tenha levado ao gênero no sentido estrito do termo – a maior parte dos seus textos teatrais explora o cômico. Pirandello, quando esteve no Rio – em 1927 ele foi à Argentina e ao Uruguai e parou no Brasil para uma visita –, foi entrevistado por Sérgio Buarque de Holanda, que escrevia em O Jornal. A uma dada altura, ele respondeu que não era um autor de farsa nem de comédia, era um autor de tragédias, porque a vida é uma tragédia. O sr. diria isso?
do cômico, porque este implicaria uma aproximação. Isto faz sentido para o sr.?
Millôr Fernandes: O que eu acho é que o humor pega tudo, entendem? Eu tenho a experiência de as pessoas dizerem coisas minhas e não ter a menor graça só porque uma palavra foi trocada. Onde entra, nessas definições, o problema da sonoridade? O que é mais importante: o que eu estou dizendo ou a maneira de dizer? CADERNOS: O sr. acredita que sua inclinação para o humor seja inata?
Millôr Fernandes: Eu não. Pirandello não tinha nada a ver comigo. Como é que eu posso fazer tragédia? Eu sou carioca, entendem? Carioca fazendo tragédia? Nós estamos vivendo uma tragédia, está certo, mas não temos tantas tragédias – nós não somos gregos.
Millôr Fernandes: Eu acho que sim. Desenvolvese, evidentemente, como tudo, com o instrumental que você tem, com a garantia de que você vai ter uma recepção. CADERNOS: Do que o seu humor se alimenta mais? O sr. percebe que possa haver uma fonte mais freqüente?
CADERNOS: Na verdade, o sr. fez humor, não fez farsa no sentido estrito. Concorda com esse ponto de vista?
Millôr Fernandes: Não. A fonte está em tudo.
Millôr Fernandes: Não sei – porque eu não sei o que eu faço. Pelo seguinte: quando estou fazendo teatro, ou qualquer outra coisa, estou pensando no cliente. Eu não estou fazendo a obra da minha vida, quem quiser que se lasque. Ainda assim, eu só sei que o meu livro Millôr definitivo já vendeu 40 mil exemplares; é um livro caro – e continua vendendo. Meus livros vendem 30 mil, não no mesmo dia, claro, mas meia dúzia de anos depois. Estou satisfeito.
LEONEL KAZ: Mais do que as mensagens contundentes, são o traço e as cores de seus desenhos de humor que se fixam na memória. Como sua faceta de artista plástico se relaciona ao onipresente humorista na prática do cartunismo?
Millôr Fernandes: Pois é, essa pergunta já está desconsiderando o desenho humorístico como obra de arte. Eu acho que é tudo a mesma coisa. Eu nunca paro para pensar se estou fazendo a grande obra imortal ou se é pela, vamos dizer, bilheteria. Estou fazendo porque eu sou eu. Estou sempre fazendo meu trabalho visceralmente. E não entrego enquanto não achar que ele está pronto no verdadeiro sentido da palavra.
CADERNOS: Para o sr. existe diferença entre o humor e o cômico?
Millôr Fernandes: Não. Como disse antes, as pessoas tendem a ver o cômico de um modo pejorativo. Talvez pejorativo seja um termo muito forte. Vamos dizer que as pessoas vejam como algo menor. Mas não existe diferença entre o humor e o cômico.
CADERNOS: Por outro lado, o sr. já disse que os seus melhores trabalhos acontecem quando desenha falando ao telefone, ou seja, com toda a espontaneidade.
CADERNOS: Há quem diga que o humor nasce da quebra da rotina; que, quando você ri, estabelece um distanciamento e uma certa superioridade. O humor, portanto, iria além
Millôr Fernandes: Eu sempre desenho com liberdade, mas aquela coisa infantil, aquele colorido, às 41
vezes você tenta, tenta e não consegue. E, de repente, quando você nem está prestando muita atenção, aquilo volta. Inúmeras vezes eu desenhei com a mão esquerda para recuperar o desenho infantil.
mais difícil. Na literatura, a temática pode arrastálo para um estilo que não é o seu. Mas, se você pegar o desenho, é muito marcante. Não tem jeito. É uma coisa natural.
CADERNOS: O sr. próprio estabeleceu o panteão de suas referências como artista plástico – de Toulouse-Lautrec, Degas, Van Gogh, Miró e Paul Klee, no início de sua carreira, até, posteriormente, os grandes desenhistas, caso de Saul Steinberg e André François. A partir de quando surgiu o “estilo Millôr” de desenhar e no que consiste a sua singularidade nesse campo? Ou também aí, onde seu traço é inescapavelmente pessoal, o sr. sustenta não ter estilo?
CADERNOS: Quando nasceu o “estilo Millôr”?
Millôr Fernandes: Eu não tenho a menor idéia. CADERNOS: O cômico surge, na sua obra, até mesmo em gêneros inesperados; como se dá, por exemplo, para o sr., a ligação entre o humor e a poesia?
Millôr Fernandes: Uma vez eu encontrei o Mário Faustino na Cinelândia e ele me disse: “Millôr, aquele verso que você fez nessa semana vale toda a obra de muitos poetas”. O verso era o seguinte: “Os sábios discutem sem certeza, os imbecis atacam de surpresa”. Vocês vêem que tem uma coisa filosófica aí. Mas eu apresentei como uma coisa engraçada, entendem? E é poesia.
Millôr Fernandes: Miró talvez seja o único que tenha alguma influência no meu trabalho, com aqueles traços grossos. Agora, voltando à questão propriamente dita, eu pergunto: na minha área, de quem vocês não distinguem o estilo? Vocês não distinguem o Chico Caruso, por exemplo?
CADERNOS: O sr. parece ter uma certa predileção pelas formas poéticas fixas – sonetos, haicais. Por quê?
CADERNOS: Então existe o “estilo Millôr”.
Millôr Fernandes: Com o passar do tempo, evidentemente, você acaba criando um estilo. No texto é
Millôr Fernandes: Bem, eu não faço soneto, por exemplo, há muitos anos. Quando eu comecei com o negócio de soneto, tinha 20 anos e estava cansado dessa forma. Fazia porque achava ridículo. Eu não queria subverter o soneto; apenas estava cansado dele e queria ridicularizá-lo. GERALDO CARNEIRO: Como é que aconteceu a sua invenção do haicai à moda brasileira?
Millôr Fernandes: Sem nenhuma intenção. Eu comecei em 1956. Não sei onde eu descobri o haicai. Eu tinha que encher aquelas páginas e lembro que fiz seis de uma tacada. Depois fiz quatro, depois cinco, depois cansei. Passaram-se dois, três meses, fiz um. Depois passou um ano, fiz cinco. Não respeitava a métrica 5-7-5, botava rima. Quando vi, já tinha feito quase 400, igual ao Bashô. CADERNOS: Quando o sr. começou a escrever haicais, foi ler Bashô? 42
Millôr Fernandes: Li ocasionalmente. Só ocasionalmente. Depois me mandaram livros sobre o haicai no Brasil; tem muita gente que cultiva o haicai por aqui.
CADERNOS: O sr. acha que praticaria o seu humorismo, baseado na compreensão do nãodito, se não tivesse como público receptor o brasileiro e, mais largamente, o carioca?
CADERNOS: O sr. já fez tradução de haicais?
Millôr Fernandes: É difícil de responder. Eu vou escrevendo – e tenho sobrevivido disso.
Millôr Fernandes: Não. Eu nunca fiz. O Octavio Paz fazia. Mas eu não estou nessa, não. A minha coisa é outra. A minha coisa é um versinho engraçadinho.
LEONEL KAZ: Em um de seus desenhos, vê-se um maltrapilho navegando em um bote sobre o azul. Logo o personagem constata: “Estamos chegando à civilização. É sangue”. A maior parte do desenho é, então, invadida pelo vermelho. Sua visão sobre o “estar-nomundo” é cáustica ou, ainda e apesar de tudo, esperançosa?
CADERNOS: Outro gênero que o sr. cultiva também é o aforismo, às vezes até com crítica moral.
Millôr Fernandes: Verdade. Mas eu gosto de mudar, de inverter. Hoje, por exemplo, existe essa valorização da negritude, uma coisa que vem dos Estados Unidos. Pensando nisso, escrevi o seguinte: “À noite, todos os pardos são gatos”.
Millôr Fernandes: Bem, na verdade são dois sujeitos com as roupas rasgadas porque estão há sei lá quanto tempo naquela balsa. Eu fiz o desenho com dois terços de azul e um terço de vermelho Mas aquilo não tem nada a ver com a minha visão. Essa é uma coisa separada. Minha visão da vida, não sei até quando vai durar isso, é a seguinte: eu sou indecentemente feliz. Tenho saúde, sempre tive dinheiro para viver. Qual foi o meu período de miséria relativa? Foi com 15 anos. Mas isso durou quanto tempo? Com 20 anos eu estava morando na avenida Atlântica, num apartamento que tinha cinco ou seis quartos, com o Fred Chateaubriand. Eu tinha um automóvel – ninguém tinha automóvel naquela época. Eu ganhava muito bem. Pagava o aluguel do meu apartamento e o da minha irmã, em Laranjeiras, e ainda ficava com bastante dinheiro. Nunca me incomodei com críticas. Eu só me importaria se fossem de gente importante. Não se amplia a voz dos idiotas. O cara está te esculhambando? Deixa esculhambar, ninguém vai ler mesmo. Agora, se é um cara importante, você tem que responder. É até engraçado responder. Então, como eu disse, não posso reclamar; tenho sido indecentemente feliz. Esse é o balanço que faço da minha vida.
CADERNOS: A fábula também está muito presente no que o sr. faz. Ou seja, pode-se dizer que há no seu trabalho uma retomada das formas clássicas.
Millôr Fernandes: Está certo. Mas não é intencional, não. Vocês pegam uma fábula minha e não vão encontrar nela um tom moralista. CADERNOS: Não existe o componente da moral?
Millôr Fernandes: Existe, mas não é igual ao do texto clássico. A raposa e as uvas, por exemplo. Fiz tudo igualzinho no começo; a raposa não consegue alcançar as uvas e fala: “Não tem importância, estão muito verdes”. Daí, quando ela está indo embora, encontra uma pedra, empurra até perto da parreira, consegue pegar as uvas e, quando põe quase um cacho inteiro na boca, cospe tudo fora. As uvas estavam, realmente, muito verdes. Ou seja, a nossa perspectiva é apenas a antecipação da realidade. Entenderam? Ela viu que as uvas estavam verdes e, de fato, elas estavam verdes demais; não é aquela moral do La Fontaine, que mostra a raposa desprezando as uvas maduras só porque não pode alcançá-las e então diz que elas estão verdes.
CADERNOS: É uma sabedoria conquistada com o passar do tempo?
Millôr Fernandes: Sim. E você a conquista porque Deus lhe deu a sabedoria – a começar, de não acreditar nele. 43
CADERNOS: Em algum momento de sua carreira o sr. sentiu-se poderoso, com tanto espaço e liberdade na imprensa?
eu nunca mais iria ser feliz daquele modo. Depois encontrei isso no [Scott] Fitzgerald. Ele está num carro conversível, em Nova York, a tarde caindo. Está lá o Fitzgerald sentado na capota, com suas maluquices; então, ele vê o pôr-do-sol e começa a berrar, angustiado. Vejam: eu não tenho por que ter paciência com o país; eu não sou tão importante a ponto de.
Millôr Fernandes: Não, nunca, nunca. CADERNOS: O jornalista às vezes assume essa posição – de ser o poder?
Millôr Fernandes: Às vezes sim. Mas eu nunca senti isso, porque sei que não tenho um poder real. Se eu entro em uma delegacia, por exemplo, entro intimidado, porque, para começo de conversa, essa glória que a gente tem funciona em determinados círculos, em determinado período; a que funciona de verdade é a do jogador de futebol, que é universal. Aliás, a única glória, de fato, que existe no mundo de hoje é a dos desportistas.
CADERNOS: O sr. falou do Rio de sua juventude. A cidade insegura de hoje não o oprime?
CADERNOS: Voltando a Décio de Almeida Prado, lembramos que ele fez uma observação muito interessante sobre o sr. em 1961: Millôr Fernandes, disse ele, pertence a uma geração que aprendeu a ter paciência com o Brasil, a amá-lo e admirá-lo não “por causa de” mas “apesar de”. Comentário generoso, sem dúvida, mas isso, claro, foi antes do golpe militar e do “Brasil: ame-o ou deixe-o”. A pergunta que fica é: em relação ao país de hoje, a frase ainda caberia? Ou Millôr já perdeu a paciência com o Brasil?
FERNANDA MONTENEGRO: O passar do tempo te toca?
Millôr Fernandes: Oprime como a todo mundo. Mas veja bem, a minha condição é melhor do que a de qualquer um; só não é melhor porque eu não tenho mais 18 anos – estou até disposto a abrir mão de alguns e voltar a ter 25, por exemplo. Mas o que eu posso dizer?
Millôr Fernandes: Olha aqui, se houver alguém que não seja tocado pela passagem do tempo... Todos que eu conheço que não são tocados pela passagem do tempo estão no [cemitério] São João Batista. CADERNOS: O sr. disse que tudo o que faz na vida é por necessidade, tangido pelas circunstâncias. Será que faltou necessidade a alguém que aos 25 anos não sabe o que fazer da vida?
Millôr Fernandes: Isso seria a continuidade da pergunta anterior. Minha resposta, então, só poderia ser a seguinte: eu não me sinto importante para “ter paciência” com o Brasil. Eu me encaixo na minha vida, que não é nem bem do Brasil; eu não vivo no Brasil, eu vivo no Rio de Janeiro, entendem? Eu nasci no Rio, que realmente era uma cidade maravilhosa. Quando eu tinha 20 anos, como é que era? Menos da metade da população de hoje. Eu andava de automóvel e parava para conversar com as meninas na rua. Eu acordava, lá na avenida Atlântica, ia à praia – ia muito com o Sérgio Porto. Uma vida de bar e de praia. Lembro que um dia, às 11 horas, eu saí para trabalhar queimado de sol. Quando passei por Botafogo, comecei a me sentir desesperado, com um sentimento de que
Millôr Fernandes: Esse não é o fator mais importante. O fator mais importante é a falta de oportunidade – além do talento, claro. E, quando falo em talento, não me refiro ao talento para ser escritor, jornalista. Estou falando, por exemplo, no marceneiro. O cara chega aqui e pede 10.000 reais para fazer uma mesa – e eu pago, porque sei que ele é bom. CADERNOS: Existe uma vanguarda no humor contemporâneo? Nas artes plásticas, por exemplo, fala-se muito nisso.
Millôr Fernandes: As artes plásticas têm vanguarda – mas muito mais retaguarda. Existe esse pseudo44
vanguardismo. Ainda assim, acho que isso nunca vai acabar com a pintura de um [Francis] Bacon, de um Lucien Freud, entendem?
Millôr Fernandes: Ele pode até ser hermético, de vez em quando. De repente você faz uma experiência – uma exposição toda de telas em branco [como ele fez em 1975]; é uma experiência de humor. Você pega a fábula, dá uma nova roupagem, usa uma linguagem mais rica. Mas são experiências, que você faz de vez em quando.
CADERNOS: Já que o sr. tocou no assunto, como vê as instalações? A experiência de montar uma instalação é próxima da experiência do teatro?
CADERNOS: Essa sua atitude de ceticismo em relação a tudo tem um parentesco com o procedimento cartesiano da dúvida metódica? Duvidar seria uma espécie de senha filosófica para o sr. fazer o humor?
Millôr Fernandes: É isso que eu estou falando. Instalação é uma outra coisa. Não é mais artes plásticas. Como a performance não é balé. Aliás, se você pega um balé moderno é uma coisa extraordinária. Eu não agüentava ver aquele negócio de O lago dos cisnes. Mas balé moderno é sensacional. O balé moderno leva ao Cirque du Soleil, que é magnífico. Agora, por que eu vou babar com um cara que pinta com o pé? Isso é besteira. Eu quero dizer o seguinte: quando o sujeito está fazendo uma instalação pode ser divertido. Você vai lá, vai pisar em ovos, acha engraçado e pronto. É diferente de uma coisa como fazia aquele Christo, que anda sumido, o cara que embrulhava tudo. Vocês sabem que o primeiro desenho dele, o primeiro projeto, é sempre um livro? E tem mais o seguinte: se ele vier aqui e embrulhar o Pão de Açúcar, vai levar uns três meses e aquilo, para a cidade, será um acontecimento. Depois, o subproduto que dá, em fotografia, é sensacional. Os livros do Christo são ótimos. Está claro que estamos falando de um outro tipo de intervenção. Só que existe uma confusão hoje em dia. Os garotos vão estudar artes plásticas e não aprendem a pintar. Aprendem ideologia para não serem figurativos.
Millôr Fernandes: É um reflexo natural do meu temperamento; por muitos, muitos anos, eu tinha a consciência de que estava lendo um livro não para concordar com o cara ali, mas para refletir sobre aquilo. Vou dizer mais: num certo momento da minha vida, se eu estava lendo algo e começava a achar que aquilo era muito importante para mim, em qualquer sentido, eu parava de ler. CHICO CARUSO: Para onde vai o humor? Com a democratização e a velocidade da informação, todo mundo poderia ser humorista? Como será o humor do futuro?
Millôr Fernandes: Não sei, quem pode saber? Se você der alimentação a todo mundo, pode aparecer muito mais gente que tenha bom humor diante da vida, o que não tem nada a ver com o humorismo, com a capacidade de satirizar as coisas. Bom humor é outra coisa. Existem pessoas simplórias que têm um humor sensacional – e você sabe que o humorista ranzinza é comum. Agora, uma coisa é certa: quando a gente faz um humor que beira o filosófico, ele é atemporal.
CADERNOS: O que o sr. está dizendo é que existe uma crise no ensino formal. O aluno faz o curso e não consegue desenhar nada.
CADERNOS: O sr. usou muito o espaço que teve em suas seções na imprensa para descobrir ou ao menos para chamar a atenção do público brasileiro sobre escritores importantes, como José Saramago, por exemplo. Em qualquer outra coluna de humor isso talvez soasse estranho.
Millôr Fernandes: É a coisa da moda. CADERNOS: O que é a vanguarda no humor, se é que ela existe?
Millôr Fernandes: Não tem. Senão, deixaria de ser humor.
Millôr Fernandes: Mas aí entra a minha personalidade. De um modo geral, as pessoas sabem que eu
CADERNOS: O humor não pode ser hermético? 45
não vou ficar elogiando o meu primo. Sabem que, se estou fazendo uma indicação, é pelo valor do trabalho em si.
Millôr Fernandes: É verdade. Fiz alguns diálogos adicionais para o Terra estrangeira, de Walter Salles; depois aceitei um convite dele para outro trabalho, que ainda não foi filmado.
CHICO CARUSO: Depois de uma eternidade de sucessos – em O Cruzeiro, O Pif-Paf, nos jornais, no teatro, no site –, você diria que o humorismo é uma confecção de amigos, de inimigos ou das duas coisas?
CADERNOS: A respeito desse longa ainda não filmado, Últimos diálogos [leia trechos na seção “Inéditos”], o sr., numa entrevista, disse que recomendara a Walter Salles que valorizasse o texto, uma vez que, na sua opinião, o cinema estava se transformando em videoclipe. O sr. continua a identificar essa tendência?
Millôr Fernandes: A consciência do inimigo eu não tenho. Mesmo porque eu diria que inimigos – inimigos mesmo – eu devo ter pouquíssimos. Há pessoas que não gostam de você, naturalmente, pelo próprio sucesso que você faz, mas isso é natural.
Millôr Fernandes: Eu disse isso para ele como uma proposta coletiva. Quando se começou a fazer clipe no cinema, era um lance de linguagem mais ágil. De repente ficou uma chatice, porque o cara que não tem nenhuma idéia divide o filme em 20 pedaços, mistura tudo – e você é que tente entender. Não entendeu? Então você é um imbecil. Quando conversei com Walter Salles, eu disse: “Estou cansado de clipe, de cortes, vamos fazer um filme falado, que tenha muito diálogo”. Não por acaso o filme se chama Últimos diálogos.
CADERNOS: Levando em conta a sua produção teatral vasta, continuada e de muito êxito, não seria natural que o sr. fizesse teledramaturgia? Nunca lhe foi sugerido isso?
Millôr Fernandes: Ocasionalmente foi sugerido. Mas eu não tenho o menor interesse. Aí vira uma coisa de só ganhar dinheiro. Não me interessa mesmo. Cinema, sim, é uma grande atividade. Bem, eu trabalhei para a TV, já fiz até uma daquelas vinhetas do “plim-plim”. Agora, teledramaturgia não é do meu interesse.
CARLOS HEITOR CONY: Você é um autor na linha de [ Jonathan] Swift e Machado de Assis. Por que nunca tentou o romance?
Millôr Fernandes: Olha aqui, já se provou, Swift era um maluco, aliás foi até internado. E Machado de Assis eu acho devagar, apesar da sua opinião. Então eu não teria nenhum motivo para imitar nenhum dos dois. Estou pensando seriamente em imitar você, Cony.
CADERNOS: Como foi sua aproximação com a TV para realizar um trabalho mais jornalístico?
Millôr Fernandes: Como sempre, na minha vida, foi ocasional; teve as Treze lições de um ignorante, depois o jornal com o [Luis] Jatobá, o Sérgio Porto, uma coisa muito divertida.
CADERNOS: O sr. escreveu contos e depois abandonou o gênero. Perdeu o interesse?
CADERNOS: Qual é hoje a sua relação com a TV?
Millôr Fernandes: Perdi, perdi. Ocasionalmente eu faço umas coisas que poderiam ser chamadas de conto – umas anedotas, assim, desenvolvidas sem nenhuma pretensão. Outro dia encontrei um conto que saiu numa revista em que eu trabalhei. Nem sei quando eu escrevi – deve ter sido há uns 20, 30 anos. Esse conto, sim, tem uma linguagem nova, uma coisa incrível. Eu não sei como é que escrevi,
Millôr Fernandes: Eu assisto a muito noticiário, claro – que, aliás, no caso da televisão brasileira, anda decaído, pegaram aquela mania da câmera oculta. Prefiro ser assassinado. A câmera oculta é uma invasão. CADERNOS: Com o cinema o sr. tem outra relação. 46
para o alto três latidos lancinantes de protesto. Acho que para Deus. Acho que havia Deus”. Tenho muito respeito pelo Ivan. Ele tinha ido lá para ver a mãe, que estava morrendo. Sentamos com um primo dele, e o Ivan começou a falar comigo – praticamente era só ele que falava. De repente, disse assim: “Vou ver a minha mãe e depois vou embora”. Então me deu um abraço comovido e falou: “Vinte e três anos”. Fazia 23 anos que a gente não se encontrava. Então posso colocar um episódio desses no livro, entendem? CHICO CARUSO: O desenhista que dividiu prêmio com Steinberg em Buenos Aires não quis, como o colega, virar artista plástico, expor e, principalmente, vender seus quadros. Por quê?
Millôr Fernandes: Eu não quis expor porque acho ridículo a pessoa se expor, entendeu? Eu tenho a impressão de que não quis vender os meus quadros talvez por medo de que ninguém os quisesse comprar. O desenho que a gente faz, no meu caso, ao menos, é muito trabalhoso, ele não é a repetição de um outro, estratégia de muitos pintores atualmente. Eu tenho, sempre tive, um público que é o da revista. Meu Deus do céu, desenho não é feito leitura: desenho todo mundo vê. Então a revista sai, tem 100 mil leitores, 200 mil – por que eu vou tirar o meu desenho que está na revista para ser exibido numa galeria? Por que eu vou vender um desenho para o cara pôr na sua casa? Se a casa dele for muito bem freqüentada, 300 pessoas é que vão vêlo – no máximo. Então é por isso que eu não faço exposição.
onde é que eu fiz isso, não sei. Eu acho que copiei de alguém... CADERNOS: Insistindo um pouco na pergunta de Carlos Heitor Cony. O sr. nunca tentou escrever um romance?
Millôr Fernandes: Não, não. Agora, quem sabe, se me deixarem ficar solto, talvez eu faça, como mencionei antes, uma autobiografia. Deve ser um texto dividido por tópicos, não uma coisa cronológica, entendem? Por exemplo, tem um negócio que aconteceu comigo há alguns anos, em Portugal, que pode entrar no livro. Eu e o Chico Caruso estávamos no Estoril, fazendo um show. Um dia, estou eu no quarto do hotel esperando a hora em que nós íamos almoçar, lendo um livro. Aí tocou o telefone. Fui atender e do outro lado da linha alguém disse: “O que estás a fazer?”. Eu disse: “Estou refletindo sobre as vãs instabilidades da matéria”. E ele: “E ainda existe alguma água na moringa?”. Eu: “Existe, mas está no fim”. Era o Ivan Lessa; essa história da água na moringa está num texto que escrevi e ele lembrava de cabeça. É um texto que tem a ver com a passagem do tempo, em que eu falo de uma certa moringa na janela. E termino mais ou menos assim: “Na tarde esturricante do verão, uma cachorra chamada Teteca levantava a cabeça de vez em quando e dava
LEONEL KAZ: O Millôr pintor e o Millôr desenhista são esquivos; há décadas, mantêm sua atividade, à margem das leis do mercado, da “busca do novo pelo novo” imposta pela sociedade de espetáculo. Uma das poucas oportunidades dadas ao público de travar contato direto com sua obra plástica foi a exposição Visão da Terra, no Museu de Arte Moderna do Rio, em 1977. A raridade desse tipo de “encontro” expressa alguma hierarquia entre seus diferentes fazeres artísticos? A expressão plástica tem para você menos valor do que outras expressões suas? 47
Millôr Fernandes: Não, eu não valorizo nada hierarquicamente. Eu não faço mais desenhos para exposição. Fiz alguns no passado. Hoje eu não faço mais desenhos grandes, normalmente um desenho de exposição requer espaço, você faz em geral num cartão que tem 1 metro por 75 centímetros. Olha, esse cartão, só para eu botar em cima da prancheta, já exige quase uma decisão. O problema é esse. Os outros desenhos eu faço com o mesmo interesse, ou o mesmo cuidado, com que escrevo os meus textos. Eu não hierarquizo.
Millôr Fernandes: Se houve repetição, foi sem eu perceber. Há certas frases que resumem tão bem uma coisa que, uma vez feitas, pronto, acabou. Não volto mais. “Como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos muito bem.” Vou retomar isso? “Livre como um táxi.” Como repetir?
CADERNOS: Quando o sr. faz um desenho para a imprensa tem preocupação de usar um material de qualidade pensando em preservá-lo?
Millôr Fernandes: Não, não hesito. Algumas idéias são evidentemente gráficas. Eu fiz um trabalho nesta semana – até saiu mal, vou ver se corrijo no computador (fiz à mão) – que só podia ser um desenho. Fiz o Bush em casa e na parede aparece um retrato da torre de Pisa certinha. Ele está dizendo: “Viu como era fácil?”. Sabem por quê? É que ele colocou o quadro torto na parede. Essa idéia é gráfica. Nasceu assim, não podia ser de outro jeito.
CADERNOS: Quando lhe ocorre uma idéia, ela já solicita sua forma de expressão ou o sr. às vezes hesita se deve, por exemplo, fazer um desenho ou um haicai?
Millôr Fernandes: Não. Mas eu tenho quadros em que usei guache que estão durando tanto quanto outros que fiz a óleo. Eu desenhei por muito tempo num papel alemão que tinha lá n’O Cruzeiro. Foi um erro: é um papel montado em cima de um cartão; dá fungo. CADERNOS: Durante dez anos o sr. usou o computador para desenhar – e, então, voltou para o pincel. O computador não facilitava o seu trabalho?
CHICO CARUSO: O que você ainda quer fazer?
Millôr Fernandes: Eu quero continuar a viver para a frente e a compreender para trás. Eu quero continuar levando a vida que eu levo, se for possível. O que não significa ficar estagnado. Até hoje eu não perdi minhas ambições – em nenhum plano da existência. E meu maior sonho é ganhar o Prêmio Nobel – para poder recusá-lo.
Millôr Fernandes: Às vezes sim, às vezes não. Tem horas em que é o guache que resolve o seu problema, entendem? Agora, uma coisa é verdade: se você quiser, trabalha no computador infinitamente. No computador, eu podia colocar azul, tirar o azul, botar uma mancha, tirar a mancha – podia brincar o tempo todo. No papel, normalmente, não tem volta.
CADERNOS: Como o sr. lida com a idéia da morte?
Millôr Fernandes: Eu me lembro de que uma vez estava num avião com o Jaguar e comecei a ler no jornal os registros fúnebres. Ele virou para mim e disse: “Você lê isso?”. Respondi: “E você, Jaguar, deveria ler também; às vezes a gente tem surpresas agradabilíssimas”. Sabe, quando eu vejo as pessoas falando da morte, sinto amargura, porque acho que elas poderiam estar pensando em outra coisa. Qualquer um de nós pode viver mais dez minutos ou mais dez anos. Por que eu vou ficar me desesperando agora? Lembro com carinho de muita gente que não está mais aqui, sim. Agora,
CADERNOS: O sr. guardou os originais feitos em computador? Gravou, imprimiu?
Millôr Fernandes: Muita coisa se perdeu. O que saiu em revista e jornal, tudo bem, você sempre pode recuperar. Mas perdi, sim, muitos trabalhos. CADERNOS: O sr., ao longo de sua carreira, produziu milhares de frases. A repetição, depois de tanto tempo, não começa a ser um problema? 48
tivo: tenham sorte”. Se a conversa acontecesse de novo, sua resposta hoje seria a mesma?
vou dizer uma coisa curiosa, não é caricata, é curiosa. Eu tive um cachorro – na verdade, era da minha filha, mas foi ficando comigo – que morreu há um ano e meio e até hoje sinto a morte dele. Era um cachorro pequeno. Não sei como é ter um cachorrão; o pequeno é companheiro de todas as horas. Se você coloca a chave na porta às 3 da madrugada, ele vem ficar com você; quando você está lendo jornal ele fica ali, ao seu lado. É uma presença absoluta, carinhosa, entendem? Pois então: na minha casa tem um gradil que a gente fez para o cachorrinho não passar para a sala; toda noite eu fecho aquilo – não tem mais ninguém, o cachorro está morto, mas eu faço isso em homenagem a ele.
Millôr Fernandes: Sem dúvida, seria a mesma. Eu disse antes que tudo na vida é ocasional; eu poderia trocar ocasional por sorte. Você nasce alto, baixo, moreno. E não fez nada para isso. Não adianta – é um fator de sorte. Por que eu perdi meus pais tão cedo? Por que não fui trabalhar num bom escritório de advocacia e não virei um advogado? É tudo sorte. CADERNOS: Maquiavel escreveu que “todo príncipe tem que ter virtude e fortuna”, virtude e sorte. O que ele queria dizer? Que só pode ter sorte aquele que a mereceu. O sr. acredita nisso?
CADERNOS: A transcendência, portanto, tem sentido para o sr.?
Millôr Fernandes: Maquiavel não teria dito isso no sentido filosófico; acho que ele estava pensando em termos práticos, sociais. O príncipe não podia ser da esbórnia sexual, não podia ficar construindo palácios enquanto o povo morria de fome. Estou falando de outra coisa: da sorte que é pura sorte. A sorte do dia-a-dia. Será que estou errado? É sorte ou não eu estar sendo entrevistado aqui hoje? Bem, vocês decidem.
Millôr Fernandes: Há uma transcendência. Não sei o que é, mas ela existe. O cachorro está morto, ficou a transcendência dele vivo. Sei lá o que é isso. A metafísica... Para quem tem fé, as coisas se resolvem. A maior parte da humanidade acredita em alguma coisa. As pessoas pensam: “Como é que eu vou viver sem acreditar em nada?”. CADERNOS: Um livre pensador como o sr. se escora no quê? Nos próprios princípios?
Millôr Fernandes: Não sei no que me escoro. Mas tenho uma vitalidade e levo em conta alguns tipos de compensação exterior. Por exemplo, até agora descobri quatro pessoas que batizaram o filho com o nome de Millôr. São pessoas que apreciam você, no plano moral, entendem? Quando há uma aproximação sentimental é uma coisa recompensadora. Sem isso não dá para encarar. CADERNOS: O sr. ainda considera o homem “um bípede inviável” e a vida “um pau de sebo com uma nota falsa em cima”? Esses dois epítomes de seu invencível ceticismo vêm a propósito de um episódio com um grupo de jovens que esteve com o sr. e, ao final, lhe pediu: “Millôr, dá um conselho pra gente”. Depois de relutar, o sr. cedeu: “Vou dar um conselho para vocês e esse é defini49
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Ainda que tenha cunhado para si o slogan “um escritor sem estilo”, Millôr Fernandes admite que o passar dos anos acaba dotando qualquer autor, mesmo o mais antiestilista, de um modo próprio de domar a palavra. O seu finca raízes no humor cultivado – um olho na rua, outro na biblioteca – principalmente na imprensa e no teatro. Se o humor compõe a nota de fundo, seu instrumento é, para Millôr, a fala irônica, o jogo rápido. Motor fundamental da obra dramatúrgica (e a sua é tão extensa), levado à síntese nos balões de cartum (talvez seu espaço mais mordaz), o diálogo pode ser compreendido como uma peça central no “antiestilo” do escritor. Não foi à toa que, convidado por Walter Salles, em 1995, a escrever um roteiro a partir de argumento do próprio cineasta, Millôr Fernandes tenha lhe proposto uma estrutura que primasse pela fala, privilegiando o peso do discurso sobre a “sedução” da imagem fragmentária. O resultado, Últimos diálogos (ainda não levado às telas), tem trechos inéditos publicados nesta seção. Inédita também é a peça Kaos (1995), da qual os CADERNOS apresentam aqui o primeiro e o último quadros, destacando essa que é, como se disse antes, uma das áreas de maior peso no trabalho de Millôr – o teatro. Para se fazer teatro, dizem os atores, bastam “duas tábuas e uma paixão”. Referem-se à peça Duas tábuas e uma paixão, de 1982, as anotações do escritor aqui reproduzidas. No texto, que culmina com o atentado à bomba no Riocentro, a ação tem início no regresso da personagem Cordélia ao Brasil. Evocando Shakespeare – em O rei Lear, aliás, uma das inúmeras traduções teatrais de Millôr Fernandes, chama-se Cordélia a filha rebelde, porém sincera, do monarca –, essa homônima brasileira é, não por acaso, atriz. E, como sua “antecessora”, uma “exilada”. Finalmente, na obra prolífica do autor, o risco da escrita muitas vezes não se dissocia do traço gráfico; deste modo, a seção estaria incompleta se trouxesse só textos. Assim, apresenta também trabalhos que resumem diferentes formas de expressão plástica do – por que não? – estilo de Millôr.
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Trechos de Últimos diálogos Época: 1993
MARÍLIA – Sessenta anos, brasileira, de ITAMARATINGA, pequena cidade de Minas Gerais. Pianista de fama internacional. Especialista em Bach. Saiu do Brasil aos 15 anos de idade. Devido ao sucesso extraordinário voltou pouco ao Brasil, só uma vez à sua cidade. As viagens pelo mundo, e sua curiosidade intelectual, ajudaram a ampliar sua cultura geral, centralizada no desenvolvimento musical. Fala bem italiano e inglês. Arranha russo e alemão. Tem grande vivacidade mental. Encantadora no falar. De modo geral aceita o destino, mas não com resignação; com certo cinismo filósofo. Ganhou, perdeu, o saldo, até aqui, é positivo. De certa forma desistiu de entender a que veio. CAZALE – Aproximadamente 70 anos. Empresário de MARÍLIA há 30. Homem alto, vigoroso. Sente-se que foi um bonitão. É um vitorioso em sua profissão, influente no mundo em que circula. Italiano. Fala – mal – todas as línguas. No passado teve com ela um affair longo, intermitente e tempestuoso.
EXTERIOR. ITAMARATINGA, MINAS GERAIS. ANOITECER. Visão do ALAGADO, de bem longe, do alto. Câmara se aproxima, e sobe, bem lenta; só a sensação de movimento. Música popular melancólica (Branca, Zequinha de Abreu) quase inaudível. Ao longe uma vaca que entra n’água tentativa e preguiçosamente. Grande solidão. A câmara já atinge o céu, perde a paisagem. NARRADOR – É que o céu, vazio de Deus, preserva ainda a glória do mistério infinito. Um dia aponta o outro, uma noite certifica a outra. Não há verbo, não há fala, mas há vozes murmurando significados entre as estrelas. (No fim da fala a câmara descobre a estrela d’Alva que pisca. A câmara vai se aproximando. CORTE.) *** INTERIOR. GRANDE TEATRO. VIENA. NOITE. CLOSE das mãos de MARÍLIA ao piano, tocando a Giga da Suite inglesa n. 2, de Bach. Depois de um tempo a câmara se afasta, descobre MARÍLIA (demora sobre ela mostrando que está tensa), descobre o piano, corrige para mostrar parte da platéia. CORTE.
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Câmara passeia pela platéia, burguesa, bem vestida, bem-comportada. Câmara vai voltando, ocasionalmente cortando (TAKES intercalados), ou parando, para mostrar caras exóticas, distantes. Câmara vai voltando para o palco. NARRADOR – Ritual de cultura, um fio de gelo e desafio entre palco e platéia. Fama. Alguém faz, alguém vê, alguém ouve. Alguém vence ou desiste. Alguém paga. CLOSE de MARÍLIA. Sua angústia aumenta. Percebe-se por sua expressão que está sendo derrotada. Os conhecedores já notarão falhas na interpretação. CLOSE de CAZALE, nos bastidores, aflito. CLOSE das mãos de MARÍLIA, que tentam as teclas, já com raiva. Param. PLANO GERAL. MARÍLIA, que parou de tocar. Cabeça baixa, vencida. Se levanta, lentamente, faz como quem quer dar uma explicação, pedir desculpas. Como? A quem? Abre os braços (sem levantá-los), se inclina ligeiramente, num cumprimento automático, vai saindo depressa, humilhada, quase com raiva. Atrás dela fica enorme silêncio, cheio de perplexidade. *** CONSULTÓRIO MÉDICO. DIAS DEPOIS. ANOITECER. Consultório sombrio (outono na Áustria) que quase não aparece. De qualquer forma deve ter um aspecto bem antigo. MARÍLIA ouve o MÉDICO, bem jovem. Os dois personagens estão quase sempre em plano médio, raramente em conjunto, apenas plano e contraplano. Logo de início MARÍLIA mostra desconforto com a conversa. O desconforto aumenta na proporção em que o diálogo avança. Há evidente amargura, disfarçada em humor. MÉDICO (Em alemão, olhando a ficha) – Dona MARÍLIA THIMOTEO. A senhora é brasileira. MARÍLIA (Em alemão) – Sou. Brasileira. MÉDICO (Em alemão, percebendo o sotaque) – Posso falar em alemão? MARÍLIA (Em alemão) – Preciso entender bem claro. Meu alemão não é nada bom. MÉDICO (Em inglês) – Então vai ter que desculpar meu inglês. MARÍLIA (Em inglês) – Se o senhor desculpar o meu. (A conversa continua em inglês.) MÉDICO – São apenas conclusões elementares, resultado dos exames físicos que fizemos há uma semana e dos três testes de laboratório que lhe pedi. Sei que os médicos brasileiros, os latinos de modo geral, são mais humanos – humanistas – ao apresentarem diagnósticos. Europeus e americanos preferem a ética de não ocultar nada. MARÍLIA (Olha longamente, sorrindo, mas com uma punhalada no coração) – Vivo há muito tempo na Europa. E, como já percebeu, não tenho mais dezoito anos. MÉDICO (Sorri) – Uma das características secundárias da doença de Alzheimer é a perda do senso de humor. MARÍLIA – Não é de estranhar! MÉDICO – Esse sintoma a senhora não tem.
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MARÍLIA – Forço a imagem de extrovertida. Sou muito fingida. Só choro escondido. MÉDICO – A senhora mantém a decisão de partir logo? MARÍLIA – Como médico o senhor já ouviu falar em cemitério de elefantes. Eles voltam prum lugar determinado, talvez onde nasceram, para a paz definitiva. Um ato de amargura e discrição. MÉDICO – Apenas uma bela lenda. Desde o século passado os elefantes morrem na flor da idade, vítimas dos caçadores de marfim... MARÍLIA – Qual é a contra-indicação médica pra eu não partir agora? MÉDICO – Mais exames. Dependendo deles talvez deva recomendar que se trate aqui na Áustria mesmo, onde nossos recursos, creio, estão bem mais avançados do que no Brasil. Mas precisamos de muitos exames. Exaustivos. MARÍLIA – Quanto tempo? MÉDICO – Uns três meses. MARÍLIA – Três meses? Uma eternidade. Não vivo mais pelo calendário – só olho o cronômetro. MÉDICO – Enquanto isso observamos o avanço dos sintomas. MARÍLIA – E se não avançarem? A medicina fica muito decepcionada? MÉDICO – De minha parte juro que não. Sou um médico que detesta doença. MARÍLIA – Tipo preventivo? MÉDICO – Exatamente. MARÍLIA – E como é que se previnem todas as doenças? A gente previne uma de manhã, uma outra ataca de noite. MÉDICO – Fazemos o que podemos. No seu caso há grande possibilidade de ser um mal menor ou controlável. Mas as doenças degenerativas geralmente começam aos cinqüenta. MARÍLIA – Aos sessenta ainda tenho o que degenerar? MÉDICO – A natureza é terrível. Sempre encontra uma maneira. MARÍLIA – Qual é a sua proposta? Parkinson ou Alzheimer? MÉDICO – Prefiro apostar na sua recuperação. Essas duas hipóteses são irreversíveis. MARÍLIA – Mais ou menos como tudo. Me diga o que eu devo sentir. MÉDICO – Os sintomas de várias doenças degenerativas se confundem no começo do começo. Ninguém, ao abrir a geladeira para apanhar uma laranja e apanhar um mamão vai achar que isso é doença. É uma distração comum. Como é esquecer um nome, trocar um nome, dobrar à esquerda quando devia dobrar à direita. MARÍLIA – A coisa começa a ficar séria quando se chega na bilheteria do cinema e se pede um Martini seco. MÉDICO (Cortando a piada) – Apenas com esses pequenos deslizes e distrações ninguém vai achar que está com formação de proteínas anormais, neurofibrilaridade distorsiva, placas neuríticas ou lesões nas fibras dopaminérgicas nigro-estriadas. Quer que continue? MARÍLIA (Ri.) – Não, por favor. O senhor está me parecendo o personagem de filme policial a quem o outro bandido sempre diz: “Você sabe demais!”. MÉDICO – Só saberei demais depois de todos os exames. MARÍLIA – Posso ser sincera? MÉDICO – Como médico eu não poderia impedir. Com a sua personalidade eu poderia impedir? MARÍLIA – Apesar de sua declaração de sinceridade, não está sendo verdadeiro. Está querendo dourar a pílula. A extensão dos exames são pra quê? Prolongar minha esperança ou prolongar minha agonia? Minha
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intuição manda não acreditar no senhor. Na sua ciência. Que idade o senhor tem? MÉDICO – Trinta e sete anos. MARÍLIA – Trinta e sete? E como é que o senhor assume a pretensão de entender de velhice? O senhor nunca teve cinqüenta anos. Tenho sessenta, e já esqueci todos os sintomas da juventude. (Pausa.) E já fui bem jovem, acredite. Até mais jovem do que o senhor. (Pausa.) Há muito tempo. MÉDICO (Delicado.) – O cancerologista não tem que sofrer de câncer. MARÍLIA (Sorri, triste.) – Isso é verdade. (Longa pausa.) Mas, definitivamente, não é a mesma coisa. (Pausa.) Qual é o especialista mais velho que o senhor me recomenda na sua profissão? MÉDICO (Mexe em fichário. Pega um cartão. Copia alguma coisa. Dá a ela.) – Feito de encomenda. Oitenta e quatro anos. Tem mais uma vantagem: vive em Londres, onde a senhora mora. MARÍLIA – Que sorte. MÉDICO – Sorte mesmo. É um gênio. MARÍLIA – O que é isso? MÉDICO (Sorri. Pensa muito.) – Uma coisa que raras pessoas são. E apenas até o dia em que deixam de ser. Na verdade não sei quanto ele está atualizado. MARÍLIA – Estou-lhe imensamente agradecida. Me ajudou a perceber que não preciso só de um médico, mas também de um cúmplice. E cumplicidade entre nós não pode existir. MÉDICO – Estarei sempre aqui. *** EXTERIOR. CEMITÉRIO. ALVORECER DO DIA SEGUINTE. (A CENA COMEÇA AINDA NO ESCURO, VAI CLAREANDO QUANDO MARÍLIA SAI PELO PORTÃO DO CEMITÉRIO JÁ ESTÁ RAZOAVELMENTE CLARO.)
LENTAMENTE.
Câmara avançando lentamente por entre arbustos e árvores, passando por galhos e plantas. Enquanto avança ouve-se voz – de padre – que murmura, em latim, um réquiem, naturalmente incompreensível, mas, por isso mesmo, solene e emocionante. A voz do padre vai daqui até os coveiros começarem o enterro propriamente dito. PADRE – (OFF) - ...nessece multa diu concreta inolescere miris modis. Ergo exercentur poenis que expendunt supplicia veterem malorum. Aliae panduntur suspensae and inanes ventos; et pauci tenemus laeta arva. Patimus quisque suos Manes – exinde mittimur per amplum Elysium Que reliquit aethereum sensum purum, at ignem simplicis aurai. Deus evocat omnes has ubi volvere... E que Deus, em sua infinita misericórdia, receba em seu reino e sua paz este homem simples que atravessou a existência sem queixas, bem perto da pureza das grandes almas, em sua breve passagem pela provação comum a todos neste mundo. AMÉM. VOZES – (De todos) AAAAMÉM. Câmara, sempre lentamente, descobre cerimônia do enterro de ORESTES. Um grupo relativamente grande de pessoas – cinqüenta e duas –, em sua maioria negras. Mas há algumas figuras burguesas, importantes na
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cidade, na maioria já vistas, anteriormente, de relance. Lá longe, sob árvores, na entrada do cemitério – simples mas densamente arborizado – alguns carros particulares modestos, dois mais luxuosos, uma carroça puxada a burro, um táxi, algumas bicicletas, uma moto. No meio das outras pessoas, junto à campa, a câmara descobre MARÍLIA, abraçada carinhosamente com ZILDA. MARÍLIA está vestida com roupa escura, saia até os pés, um xale cobrindo respeitosamente os cabelos. NOTA: MARÍLIA deve ser das primeiras pessoas mostradas pela câmara porque vai, depois, se afastar do grupo. Não deve dar a impressão de que passou por ali apenas um instante, indiferente. Na volta ao passado, ORESTES revelou crescente importância – figura fundamental em sua existência. (NESTE PONTO CESSA O DISCURSO DO PADRE) A câmara pára no caixão, que já está descendo na campa, as correias sendo soltas por dois coveiros. A campa dupla é a mesma de IRINA. A campa é baixa, bem rasa, só ficando aparente a tampa de cimento das duas, o resto coberto de flores. Percebe-se que ORESTES tentou reproduzir aqui o seu canteiro-modelo da casa de MARÍLIA. Na tampa à esquerda está gravado: IRINA BARBOSA NEIVA – 1940/1973. Agora os coveiros cobrem a campa de ORESTES com a tampa onde está gravado: ORESTES SINDALVO NETO – 1911/1993. Durante todo o tempo, e até o fim, enquanto os coveiros vão arrumando umas poucas coroas sobre o túmulo, a câmara vai descobrindo, real ou impressionisticamente, figuras como o PADRE (deve ser velhíssimo), TARCÍSIO, MODESTO, o FILHO de ORESTES, os FILHOS DE LEONOR etc. No movimento de gente chegando, se colocando, cumprimentando, MARÍLIA se afasta de ZILDA, vai andando só. Quando a cerimônia termina vê-se que ela já está longe do grupo que vai saindo, se dissolve na direção contrária. Ao longe ZILDA, que a olha, como querendo acompanhá-la, o irmão a abraça pelos ombros, seguem na direção de todo mundo. Ao se afastarem vê-se ainda uma última pessoa que ficou isolada, olhando para MARÍLIA, que se afasta na direção contrária. É LEONOR. CORTE. MARÍLIA, andando, tira o xale da cabeça, põe nos ombros. Ao fazer esse gesto mostra que tem uma flor na mão esquerda. CORTE. MARÍLIA colocando a flor sobre a campa dos pais, meio abandonada. Faz o sinal da cruz instintivo. Seu rosto sem definição. Recua dois passos. No granito maltratado, em baixo relevo, vê-se: OLEGÁRIO THIMOTEO 1905 – 1963 ERCILIA LINHARES THIMOTEO 1912 – 1949/CORTE.
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Câmara acompanha MARÍLIA saindo pelo portão dos fundos do cemitério – ainda se vêem algumas campas junto ao muro gradeado e ao portão também gradeado, enferrujado, dando o ar de que já não fecha há muito tempo. CORTE. MARÍLIA vai passando por baixo de arbustos compactos – de vez em quando tem que baixar a cabeça – deixando passar réstias de luz, por onde se percebe que o dia começa. CORTE. MARÍLIA sai do pequeno bosque diretamente para um terreno arenoso de uns duzentos metros, separando o bosque do ALAGADO, visto pela primeira vez. É um lugar bonito, mas vagamente estranho, quase sinistro. Cercado por um morro não muito alto, o mesmo do qual uma parte se aproxima de sua casa e é sua propriedade, o mesmo por onde GONZAGA partiu. Há uma vaca bem longe, entrando n’água. Vê-se que a água é bastante rasa, vai-se aprofundando aos poucos. A câmara pára. MARÍLIA caminha naturalmente até a beira do ALAGADO. Hesita durante algum tempo. Depois joga o xale no chão, tira os sapatos, vai entrando n’água lentamente, sem acusar o frio. (aqui, quase inaudível, aumentando ligeiramente no fim, começa a se ouvir o som de Bella Ciao). Pára. Anda de novo (a câmara sobe dois metros, bem devagar), sempre lentamente. Pára. (Do fundo vai subindo, bem lentamente, a música Bella Ciao). Tira a aliança do dedo esquerdo, atira-a longe, com um gesto natural, não de raiva – votivo, de oferenda. Quase que só o movimento da mão. Anda. Pára. A câmara agora não se move, observando MARÍLIA (a saia subindo com as águas que se aprofundam), sem saber se ela vai parar a qualquer momento ou continuar pra sempre. Ela anda. Pára. Anda. Pára. Sobre esse movimento lento a música sobe.
O SOL VAI SURGINDO NO HORIZONTE.
FIM
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Dois quadros de Kaos PERSONAGENS
Dois Homens e uma Mulher. Os homens são designados como HOMEM1 e HOMEM2. Os dois – e a MULHER – terão ocasionais rubricas designando o que são, quando já definidos (CARDEAL, PSICANALISTA, POETISA, BOA-VIAGEM, MANINHA, FULANINHA), ou pelo que fazem (NARRADOR) no decorrer do texto. Para tornar mais clara a leitura. Na representação tudo dependerá da direção, dos atores e dos espectadores. Estes, algumas vezes, só compreenderão alguma coisa para trás, o que é sempre, ai!, instigante. CENOGRAFIA – Nenhum realismo. INTERPRETAÇÃO – Nenhuma ênfase no humor, para ser mais engraçado. Quem quiser que entenda. A maioria entenderá.
Música tipo pós-moderna. No alto do proscênio, acende letreiro em vermelho, piscando: KAOS (Atenção: todos os outros títulos, monossilábicos, dos 29 quadros, aparecem no mesmo lugar do primeiro. Em preto-e-branco, estáticos, salvo indicação ocasional. Bem legíveis. Os 29 quadros foram colocados em seqüência muito cuidadosa, de tempo, dimensão, poesia, humor. Só trocá-los com muita necessidade). (Música desce) VOZ – Esta peça é dedicada ao poeta israelense Yehuda Amichai (o c é mudo) e ao biofísico italiano Ruggero Pierantoni.
1 (Blecaute absoluto. Passos pesados, de HOMEM1, durante 30 segundos. As vozes devem ser fortes, talvez com amplificador) HOMEM1 – No Início, muito antes do caos, muito antes do verbo, muito antes do Início, além do infinito, tempos em que ainda não havia o tempo, onde nem o nada ameaçava se formar, coisa absolutamente
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inimaginável por ainda não haver imaginação, em plena vacuidade, no seio do incogitado... (Passos de Homem2, pesados como os primeiros, 30 segundos) HOMEM2 – Total impalpável e intangível, vazio absoluto entre o inascido e o inascível, ponto inindentificável incomensuravelmente distante de onde as paralelas prometem encontro, onde ninguém... (Passos leves, de Mulher, 30 segundos. Atores mal se delineiam) MULHER – E nem ninguém não existia. HOMEM2 – ...onde ninguém perceberia a imensidão do ausente. É, não havia ainda o primitivo, nem o primevo, nem o embrional; tudo... MULHER – Isto é, nada. HOMEM2 – ...sem transpiração, expiro, desova ou parto. HOMEM1 – Nenhuma exalação, ou sopro, ou brisa, ou brilho. Só a perpetuidade, sem fim, sem margem, sem nascente ou ocaso, côncavo ou convexo. Ilimitada e ilimitável. (Luz sobe ligeiramente, os atores ainda em penumbra) HOMEM2 – Foi então... MULHER – Como então? Não havia então. (Ligeiro desagrado de HOMEM2) HOMEM2 – ...que o que não existia pressentiu... MULHER – Pressentiu como? HOMEM2 – ...pressentiu a Criação. Comunicou: MULHER – Como? A quem? HOMEM1 – Ouvi um bang. HOMEM2 – Espantou-se... MULHER – Quem? HOMEM2 – ...o Ainda Não Gerado: Um bang? HOMEM1 – É. Um big-bang. (Longa pausa. Todos assustados com o imenso novo). Começou a se gerar alguma coisa. HOMEM2 – Expressou-se... Mulher – Como? HOMEM2 – ...o Ainda por ser: O quê? Intuiu O Que não Existia: HOMEM1 – “Pressinto que é a vida.” HOMEM2 – Perguntou o Incriado: “Vida? O que é isso?” (Momento de perplexidade, HOMEM1 hesita, faz que vai responder, MULHER avança, corta) MULHER – Uma coisa terrível, da qual todo mundo morre. (Dez segundos. Blecaute. A luz sobe de novo, bem lenta, ligeiramente azulada. HOMEM1 em cena)
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29 Letreiro – DILÚVIO MULHER – (NARRADORA – ou POETISA, o espectador é que decidirá). Neste fim de dia, neste fim de agosto, desaba o céu sobre as ruas, os edifícios, a vida está empapada de água e lama. Poças e charcos fazem da cidade uma Veneza sombria. Ah, como é triste Veneza! Visto de dentro o mundo é protegido por vidraças por onde escorrem rios melancólicos, e os ricos são mais ricos. Uma ou outra luz se acende denunciando a noite precoce. Não, não é coisa local. Chove no mundo. Chove para sempre. No Campo Santo seguimos a chuva que chove sobre a ladeira da capela, sobre as aléias dos túmulos cinzentos, Aninha, que morreu aos seis anos de idade, João Anteni, cujo resto do nome desapareceu, consumido no bronze, Cosme, que morreu aos dezoito anos, no terrível incêndio do circo, quem se lembra?, Aurélio de Sá, apenas aviador, apenas filho de Arlinda Sá, nada mais; outros tantos foram somente bons pais, bons filhos e bons esposos em datas bem antigas – já não se fazem mais bons pais, bons filhos e bons esposos. E chegamos ao alto, lá embaixo a cidade de mortos esquecidos, vamos até a lage comum, a vala comum, a gaveta encharcada do muro-cemitério onde agora enfiam Canepa Boa-Viagem. Boa-Viagem, Canepa! E já voltamos, cruzando por outras sombras que carregam outro morto, e pensamos que esse não é dia pra morrer nem pra viver. Como chove! PSICANALISTA – Foi assim, senhor Grão-Sacerdote, nas águas do dilúvio, que Boa-Viagem apagou a própria chama. Talvez vá para o oeste, sempre para o oeste. Planície extasiante, nem hálito de gelo, nem ardor de fogo; um chão abençoado e pleno. O Oeste, onde o sol também morre. Para renascer em outra manhã. SACERDOTE – Visão antiga da eternidade, meu caro psicanalista. Mas a vida contaminou a morte. (PSICANALISTA abre o guarda-chuva cuidadosamente. Oferece proteção ao outro. Olha em volta, o tempo furioso) A noite chegou cedo. SACERDOTE – Mais uma. SACERDOTE – Talvez seja a última. PSICANALISTA – Ainda há esperança. SACERDOTE – De quê?
FIM
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Anotações para a peça Duas tábuas e uma paixão
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ENSAIOS
Patrimônio humorístico Elias Thomé Saliba Eu não quero ser um santo, Seria antes um bufão... Friedrich Nietzsche1
Repertorio de anecdotas joviaes. Nacionais e estrangeiras, bernardices impagáveis, bons ditos, carapuças escolhidas, casos galantes, chalaças estrambóticas, contos jocosos, curiosidades brasileiras, definições esquisitas, ditos agudos, epigramas, epitáfios, fatos históricos, legendas, lembranças que parecem esquecimentos, letreiros, lograções, maganei ras, ma te ria li da des, má xi mas su bli mes, pa lha ça das as ná ti cas, pensamentos felizes, pilhérias peregrinas, quadros, quinquilharias, raios, ratices, repentes, sátiras, sentenças, sobrescritos, tiroteios, tradições e trivialidades de bom gosto. Este era o subtítulo, em listagem alfabética, do conteúdo de uma formidável Encyclopedia do riso e da galhofa, publicada em 1863, no Rio de Janeiro, e coligida por um tal Pafuncio Semicupio Pechincha, dito Patusco Jubilado – cognome atrás do qual provavelmente se escondia a pessoa do editor Eduardo Laemmert2. O subtítulo era extravagante mas esforçava-se por fornecer ao leitor um vaga idéia do conteúdo daqueles 2.648 itens, espalhados nas mais de mil páginas, distribuídas em dois volumes. Pafuncio foi mais um compilador do que criador. Alemão de nascimento, com fortes marcas francesas na sua formação, além de ser casado com uma brasileira, e já acostumado a publicar folhinhas e almanaques anuais, Laemmert mostrou-se perfeitamente habilitado a organizar
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essa extensa enciclopédia de anedotas, que continha – além de inúmeras traduções e adaptações de publicações européias humorísticas – um considerável conjunto de piadas brasileiras. Embora seja rara, pouquíssimo conhecida e nascida antes do advento da imprensa ilustrada, a Encyclopedia do riso não deixa de ser um marco na história do humorismo no país. Mais de um século depois – também com o mesmo propósito de dar uma vaga idéia ao leitor, das 5.142 frases produzidas ao longo de mais de cinco décadas –, Millôr Fernandes colocaria uma listagem parecida em Millôr definitivo – A bíblia do caos, livro lançado em 1994. Em confronto com os 39 vocábulos utilizados por Pafuncio Pechincha para resumir seu humorismo, Millôr arrolou, na capa da obra, 63 extravagantes sinônimos para sintetizar o melhor do seu humor, incluindo, desde os conhecidos disparates, desvarios e aforismos, até os bizarros descocos, escólios, estultilóquios, apodos e filactérios3. Para se ter um idéia de quanto cresceu o patrimônio humorístico brasileiro no longo inter valo de mais de um século, basta constatar que sozinho, Millôr produziu, numa única seleção autorizada, muito mais que a Encyclopedia de Pafuncio Pechincha. Entre um publicação e outra, inventou-se uma linguagem humorística nacional. Linguagem humorística nacional? A afirmação é séria, embora não o pareça – e pelo sotaque pedante que carrega, se arrisca a transformar-se num prato cheio para mais uma paródia jocosa do Guru do Meyer. Estreitamente vinculada à imprensa – desde os seus primeiros tempos –, à publicidade, ao teatro ligeiro e, depois, ao rádio; comentando os acontecimentos diários e submetida ao fluxo volátil das notícias e modas passageiras, a linguagem humorística brasileira proliferou exatamente a partir daquele espaço, a imprensa, que Walter Benjamin designou, em texto famoso e não menos premonitório4, como o “palco, sem limites, da degradação da palavra”. Portanto, como se referir a um patrimônio de linguagem, nascido neste palco da degradação da palavra e constituído em cima do efêmero, do fragmentado e do instável? Para o historiador ou para o analista interessado na produção humorística de uma sociedade, eis aí uma primeira dificuldade. Voltaremos a ela no final, pois a obra de Millôr Fernandes, imensa e vasta, constitui uma autêntica síntese de quase todas as modalidades do humorismo brasileiro. A segunda dificuldade é que raramente podemos nos referir à obra de um humoris-
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ta. Mesmo no caso notável de Millôr, que reuniu parte significativa de sua criação em algumas dezenas de livros, a maior parte de sua produção ainda permanece dispersa nos jornais e revistas. Embora não falasse a sério – algum humorista fala sério? – o próprio Millôr dizia que o humorista era um “subhomem” que escolhia um “submomento” para falar de um “subassunto” – a anedota5; que o humorista era um descarado, pois podia “imitar, seguir, voltar, dizer, desdizer, aderir e subtrair”, porque sabia, como ninguém, que estava “só, que é único, mortal, passageiro, ferido e fraco, e deve aproveitar todos os pequenos sopros, raros, vagos, fugidios da vida”6. Assim, mais do que noutros casos, a obra de um humorista só existe como dispersão fragmentada da produção periódica, ela é um testemunho efêmero – mas nem por isto menos importante – da história. No cenário complicado e turbulento de mais uma das chamadas redemocratizações do país, quando o jovem Millôr Fernandes começou a escrever – com os seus “postes-escritos” em A Cigarra, de 1939, e depois, em “O Pif-Paf ”, de O Cruzeiro, em 1945 –, ele certamente sentiu aquela primeira vacilação existencial, intrínseca à sua indiscutível vocação criativa: escritor ou humorista? Tal opção era apenas um sintoma de algo mais vasto que se colocava no horizonte de todos aqueles desterrados em sua própria terra, naqueles anos decisivos: acreditar em valores universais e utilizá-los para conferir como as coisas caminhavam no país, ou ligar-se apenas ao fluxo da vida, na sua riqueza e contingência, preservando a liberdade de criar? Será preciso talvez se colocar no lugar de um jovem daqueles anos para entender tal dilema, que hoje nos parece um tanto abstrato. Ouçamos um deles, e não dos menos sensíveis: “Não se pode mais hoje, como no tempo de Santo Agostinho, ser ao mesmo tempo e simultaneamente um cidadão do céu e da terra. (...) Diante de cada questão que propõe um determinado momento é sempre possível a nós tomar um ponto de vista novo”. Isto foi escrito – se bem que uns dez anos antes da estréia de Millôr – por um jovem de 26 anos chamado Sérgio Buarque de Holanda7, mas exprimia, como nenhum outro, o problema. O engajamento, qualquer que tenha sido, foi a opção mais comum que se colocou no horizonte intelectual da época – mas teria sido esta a escolha mais espinhosa e difícil? O tema é vasto, contudo podemos anunciá-lo na chave da concisão cômica: escolher o humorismo era arriscar-se à di-
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fícil tarefa de ser apenas um falível cidadão da terra, tratando as misérias morais, os conflitos sociais, o absurdo – e o próprio humor – não como inerentes ao mundo, porém como resultantes da ruptura dos fios que tecem a trama social e histórica. Causa espanto a aguda e precoce percepção do profético Millôr/Emmanuel Vão Gôgo a respeito de quem era o humorista e do seu papel na sociedade brasileira. Primeiro, pela percepção de que assumir uma atitude cômica ou humorística era também a única forma de manter, a longo prazo, uma atitude de rebeldia ou de inconformismo em relação à situação do país naquele anos: “O humorismo é uma visão total do mundo [escrevia, ainda em 1945], pode ser exercido em tudo, a todas as horas, de todas as formas, na política, na religião e até no crime. Se tiver que matar alguém, faça-o com espírito. E em algum lugar, em algum tempo, aqui ou no além, você será absolvido por alguém”8. Dez anos depois de sua estréia, ele mesmo faria uma síntese, no “Decálogo do verdadeiro humorista”, quando, no último dos seus princípios, afirmava: O humorista é o último dos homens, um ser à parte, um tipo que não é chamado para congressos, não é eleito para academias, não está alistado entre os cidadãos úteis da República, não planta, não colhe, não estabelece regras de conceito ou comportamento. (...) Assim, o humorista tem de ser mais infeliz que outros artistas, porque não pode aceitar o louvor precário que lhe oferece a falível humanidade que critica. No momento em que o aceita e passa a se julgar com direito a ele, já perdeu substância como humorista9. Millôr reatava o fio com as crises de identidade de todos aqueles “engraçados arrependidos”, os quais, obscuros ou notáveis, merecendo ou não o rótulo de “humoristas”, chamaram-se Pafuncio Pechincha, Agostini, Bastos Tigre, Emílio de Menezes, Gastão Bouquet, Zé do Pato Filho, Raul, Mendes Fradique, Juó Bananére, Belmonte, Barão de Itararé e tantos outros10. Engrossava a fila destes exclusivos cidadãos da terra, dessa gente que percebia que a educação sentimental do brasileiro começava com uma boa anedota. Que o humor era parte incontrastável da vida e, talvez por isto mesmo, trivial, secundário e sem status intelectual. Espremidos entre o teatro ligeiro e o jornalismo de ocasião, eles ha-
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bitavam – além daquela fila de humoristas – nas palavras do versátil Bastos Tigre, também aquela “zona suburbana em viela escusa das letras brasileiras”11. A sociedade brasileira parecia já designar um lugar para o humorista, o lugar do efêmero, do passageiro, daquele que diverte os outros, ainda que exercitando aquela beleza mortífera da falta de seriedade. O epíteto de “engraçados arrependidos” inspirou-se num conto de Monteiro Lobato, de 191712. Se ele parecer carregada de sotaque belle époque, o leitor pode recorrer à metáfora daquele “macaco que queria ser humorista” – uma incrível fábula do guatemalteco Augusto Monterroso – não por mera coincidência, em tradução do próprio Millôr Fernandes. Trata-se de um macaco que almeja se tornar escritor satírico. Para tanto, convive com todos os animais e acaba conhecendo a fundo a natureza humana. Chega a elaborar uma lista completa de todas as debilidades e defeitos humanos, entretanto não encontra a quem possa dirigir suas sátiras, pois todos os elementos estavam presentes nos seus amigos e nele próprio13. No final, resignado e triste, o macaco renuncia a ser um humorista, não mais diverte os outros, perdendo o prestígio entre os animais. Citamos a fábula à maneira de uma homenagem a Millôr, contudo o leitor pode conferir: não é semelhante à situação do “engraçado arrependido”, numa sociedade que nunca o leva a sério e, ainda por cima, lhe censura? Ou é a sociedade que necessita criar seus próprios palhaços, seus próprios bufões, para que encarnem suas próprias taras, misérias morais ou humores coletivos? A solução – e diga-se, também o alto preço a pagar – é que, para sobreviver, o humorista tem que inventar e se reinventar, usar outras palavras, partir do nada, porque se ele partir do que existe nada criará. Partir não exatamente do nada, mas da vontade volátil do leitor periódico e sazonal, ou seja, da mistura, da mestiçagem lingüística e cultural e, sobretudo, da mais completa falta de cerimônia em relação aos gêneros, estilos e outras bitolas. “Livre pensar é só pensar” e “Enfim, um escritor sem estilo” são os conhecidos bordões de Millôr Fernandes que também pareciam anunciar o fastígio de todos aqueles humoristas que pensavam livremente e escreviam como pensavam. “Não aspira a que os outros escrevam como ele; conforma-se em não escrever como os outros. Não impõe seu estilo como regra; porém não segue as regras do estilo”, recomendava o escritor colombiano José Maria Vargas Vila14.
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É assim que, humorista e cidadão da terra – no entanto em grau muito maior do que o seu tataravô humorista, o multicara Pafuncio Pechincha –, Millôr praticou e ensaiou todas as modalidades de humor, glosando e catalisando não apenas a sua própria criação mas, talvez, fragmentos do humorismo produzido no país há mais de um século. Desde os “poeminhas cinéticos” de “O Pif-Paf ”, de 1945, até os haicais contemporâneos, ele vem brincando com o sentido das palavras através dos seus deslocamentos visuais na página; misturando, em receita inextricável, todos os ingredientes – texto, traço, rabisco, rascunho, foto ou ilustração. Produziu versões paródicas, divertidas, acanalhadas ou cafajestes de inúmeros provérbios, preceitos, estereótipos ou “idéias feitas” na cultura brasileira. Algumas destas pérolas entraram em domínio público, tornando-se parte irreconhecível da fala brasileira Em todos os lugares, em publicações as mais diversas – principalmente em seções famosas, do tipo “Lições das coisas”, “Ministério das perguntas cretinas”, “Dicionário EtmoLógico” “Dicionovário (palavras que precisam ser inventadas)” ou “Dicionário definitivo” –, Millôr reverberou, nos seus limites mais tensos, a crônica crise dos usos públicos da língua brasileira, reinventando os sentidos das palavras. E o fez com tal densidade que tornaria possível um outro inventário, à maneira do Dicionário das idéias feitas, de Flaubert, ou do incrível Dicionário do diabo, de Ambrose Bierce, com uma diferença apenas: com aquele tiquinho de brasilidade, e com a grife Millôr, tal inventário bem poderia se chamar Brasiliana asnática. Perguntado certa vez a respeito do que seria preciso para ser humorista, Millôr Fernandes alfinetou, certeiro: “Desconfiar de qualquer idéia que tenha mais de seis meses de uso. E ficar sempre discutindo com elas”15. Já noutra ocasião, ignorando encômios, elogios e inaugurações de monumentos, confessou: “Eu não sou um grande humorista. Sou apenas o sujeito mais engraçado da família mais engraçada da cidade mais engraçada do país mais avacalhado do mundo”16. Aqui, Millôr fazia eco àquela fila de humoristas que também acreditavam que o humor era parte da vida brasileira ou, nas palavras de um humorista contemporâneo, que o Brasil “é o país da piada pronta”. Também parece piada o que vem a seguir, mas este é um ponto de partida importante para se compreender uma sociedade de características rarefeitas e cuja história foi marcada por uma desconcertante impermanência. O hu-
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morismo, em todas as suas formas e modalidades, constituiu um canal importante de expressão cultural numa sociedade na qual uma ética emotiva substituiu a difícil compreensão da sua própria identidade. “Hoje somos apenas um povo endomingado. Uma periferia sem um centro.” Com esta frase, com um levíssimo toque cômico e que seria expurgada da versão em livro, Sérgio Buarque encerrava a primeira versão de Raízes do Brasil 17. Daí talvez o olhar oblíquo e ambíguo desta sociedade em relação ao humorista. Nada mais fácil do que ser humorista no “país da piada pronta”. Como Pafuncio Pechincha, o estigma de compilador parece marcar trajetórias de todos os humoristas brasileiros. De qualquer forma, o humorista parecia pressentir, desde a época na qual Millôr Fernandes inaugurava sua página ilustrada – e mais do que todos os intelectuais – que era impossível ser cidadão do céu e da terra ao mesmo tempo. Era melhor arriscar-se como “engraçado arrependido” ou como “macaco que projetava ser escritor satírico” do que se engajar numa perspectiva de futuro que achatava o presente. Porque assumir alguma perspectiva mais durável, qualquer que fosse ela, iria comprometer sua iniludível vocação para o distanciamento, jungi-lo ao poder, aos interesses de grupos ou de quem quer que fosse, estancando completamente a mobilidade inerente à vida e à história. “Jamais esqueceremos o fundamental: da vida ninguém escapa”, escreveu Millôr18. Entalado no estreito espaço entre o escritor e o jornalista – ou, talvez por isto mesmo –, atento às mais variadas vozes do espectro social, o humorista tinha mais condições de circular entre as classes, diluir sua autoria no desgaste das publicações periódicas, ouvir as vozes sociais mais díspares, tornar-se cúmplice provisório delas, incluindo aquelas que eram caladas quando a hegemonia se completava no consenso. Artista do efêmero, o humorista pressente que tudo o que ele produz se destina logo a ser ultrapassado: ele sabe – e alerta aos seus leitores – que todas as perspectivas de futuro são ilusórias e nenhuma de suas graças tem o dom de transcender o tempo presente. Graça, literalmente, é coisa divina porém, já vimos, o humorista escolheu ser apenas cidadão da Terra. No entanto é exatamente por isto que ele se mostra mais capaz de tornar claras as verdades, cada vez mais opacas, desta sociedade. Opacas porque o humor, sobretudo neste país, ainda é parte incontrastável da vida: ao contrário do refrão, no Brasil ninguém quer rir por último, to-
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dos gostam de piadas – alguns adoram – e o humor parece aquela parte tácita de nossas vidas. Mas, curiosamente, os brasileiros nunca falam dele – afinal, fala-se do pão, se este não falta? Para reconhecê-lo será preciso, primeiro, o espanto. E cada vez que lemos Millôr – e o lemos incansavelmente – a sensação, quase mágica, intraduzível, é de espanto.
Elias Thomé Saliba é historiador, livre-docente em História na Universidade de São Paulo e autor de As utopias românticas (São Paulo: Brasiliense, 1991) e Raízes do riso; a representação humorística na história brasileira – Da belle époque aos primeiros tempos do rádio (São Paulo: Companhia das Letras, 2002).
NOTAS 1 In Ecce homo. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 109. 2 Encyclopedia do riso e da galhofa em prosa e verso. Repertorio de anedoctas joviaes... illustrado com caricaturas e offerecido aos inimigos da tristeza por Pafuncio Semicupio Pechincha, Patusco Jubilado. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1863. 3 Ao contrário do Patusco Jubilado, Millôr discorreu sobre o significado de todas as palavras utilizadas em “Explicação desnecessária”. Ver Millôr definitivo – A bíblia do caos. Porto Alegre: L&PM, 2002, pp. 598-602. 4 “O autor como produtor”, conferência de 1934. In Obras escolhidas, I, magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, pp. 120-136. Sugerido ainda em excelente análise de O Pasquim, por Angela Maria Dias: “Pasquim, 1980-1991: as vicissitudes de um nanico na década da comunicação megaempresarial”. Comunicação & Política, revista do Cebela Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos. Rio de Janeiro, ano VII, n. 3, setembro/dezembro, 2000, pp. 159-196. 5 Ver “Decálogo do verdadeiro humorista”, originalmente publicado em “O Pif-Paf ”, de O Cruzeiro, 1955, e reproduzido em Trinta anos de mim mesmo. Rio de Janeiro: Nórdica, 1974, p. 69. 6 Originalmente publicado como “Prefácio para exposição de Ziraldo”, em 1961, reproduzido em A bíblia do caos, edição citada, p. 435. 7 Apud Francisco de Assis Barbosa (org.). Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, pp. 72, 114. 8 “Estatuto da Universidade do Meyer”, reproduzido em A bíblia do caos, edição citada, p. 571. 9 In Trinta anos de mim mesmo, edição citada, pp. 68-9. 10 Analisamos a identidade e a trajetória da maioria dos humoristas citados em: SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira – Da belle époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 11 Frase de um verso publicado na Careta de 12.09.1912. In: SALIBA, Elias Thomé, op. cit., p. 139. 12 Editado na Revista do Brasil com o título “A gargalhada do colector” e reproduzido em Urupês (1918) como “O engraçado arrependido”. Para uma explicação detalhada da metáfora do “engraçado arrependido”, ver: SALIBA, Elias Thomé, op. cit., especialmente o capítulo “Quem era o humorista. Auto-imagem e identidade dos humoristas”, pp. 132-153. 13 Ver: MONTERROSO, Augusto. “O macaco que quis ser escritor satírico”. In A ovelha negra e outras fábulas. Rio de Janeiro: Record, 1983, pp. 11-12. 14 Apud Sérgio Buarque de Holanda, “Vargas Vila”. In: PRADO, Antonio Arnoni (org.). O espírito e a letra, I. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 48. 15 Entrevista a Roberto Marinho de Azevedo. Revista Veja. São Paulo, 28.05.75. 16 A bíblia do caos, edição citada, p. 279. 17 Em março de 1935, Sérgio Buarque de Holanda publicou na revista Espelho, do Rio de Janeiro, “Corpo e alma do Brasil (ensaio de psicologia social)”, uma síntese do que seria o seu clássico. A frase citada encerra esse texto e, como foi dito, não aparece no livro, editado no ano seguinte. Em outros trabalhos, a partir de artigos humorísticos assinados com o pseudônimo de “Sérgio Buarque dos Países Baixos”, sugerimos que, na maior parte de sua produção de juventude, entre 1920 e 1926, o autor debateu-se com uma das vertentes do quadro de escolhas intelectuais da época – a do humor. Talvez não tenha desenvolvido a veia humorística levado à sua “crise existencial”, no fim do ano de 1926, por força da própria maré cultural brasileira naquele período, quando não havia muito clima para o riso. Cf. Raízes do riso, edição citada, p. 328, e “O ‘ruim-gostoso’: piadas impressas e formatos da linguagem humorística na belle époque brasileira”, apresentado no Colóquio internacional – Política, nação e edição. Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais/Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines (França), abril de 2003. 18 O Pif-Paf. Rio de Janeiro, ano 1, n. 1, 21.05.64, p. 3.
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Teatro completo Mariangela Alves de Lima
Antes que se abra o pano sobre uma das primeiras peças de Millôr Fernandes “ouve-se som de chuva violenta”. Do tamanho de um defunto1 (1955*) respeitava, é verdade que apenas em parte, certas convenções dramáticas em voga no repertório das companhias profissionais. Apresentava três personagens bem definidas por traços cômicos e temperadas pela intervenção reflexiva de um raisonneur ponderando os fatos e sugerindo conclusões. Quanto ao desenho da trama, nada nos pareceria, hoje, muito ousado: a rotina doméstica suburbana é desestabilizada por uma tentativa de assalto e restabelecida ao final em um desenlace suplementado por uma conclusão mais de ordem filosófica do que propriamente moral. No entanto a chuva, em surtos intermitentes cuja intensidade é determinada pelas rubricas, tem uma dupla atribuição. É uma força elementar e ao mesmo tempo um “motivo” secundário justificando o isolamento em que se encontram as personagens. Em meados da década dos 50 do século XX o teatro procurava transcender o realismo, mais do que negá-lo frontalmente2 e o respeito à função motivacional dos elementos de composição era ainda um dos requisitos da boa escrita dramática. Sendo assim, a tempestade dificulta e interrompe comunicações, torna deserta a rua e favorece as peripécias decorrentes de uma invasão noturna. Quarenta anos depois, a peça inédita Caos – originalmente, o título foi escrito deste modo, com “c”; depois Millôr adotaria a grafia Kaos –, recortada em 29 cenas, tem um último quadro intitulado Dilúvio. Para o fundo do palco a rubrica determina a presença de “janelas irreais” por onde, “de maneira dramática”, escorre a água da chuva. “Chove no mundo. Chove para sempre”3, re-
*Os anos que aparecem assim, entre parênteses, referem-se à primeira montagem das peças.
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cita a Mulher-Narradora enquanto abre um guarda-chuva e caminha em meio aos túmulos de um cemitério. Dissolve-se inteiramente na escrita dramática o resíduo analógico da metáfora. A água permeia a conclusão da peça como signo a que se pode atribuir incontáveis sentidos. Entre a tempestade da primeira peça e essa simbolização da existência como um espaço precário, temporariamente a salvo das águas, interpõem-se décadas de experimentos realizados sobre a estrutura e a linguagem do texto dramático. Tomando como exemplo o duplo emprego real e simbólico da imagem aquática, é fácil constatar que a primeira tentação que se apresenta ao leitor que percorre as peças desse autor é a de identificar no conjunto da obra a continuidade clássica na história das idéias estéticas. Tal como outros ilustres predecessores na história da dramaturgia universal – lembremos apenas de Henrik Ibsen e George Bernard Shaw – Millôr Fernandes teria percorrido intencionalmente um caminho evolutivo de superação das convenções do realismo. A trama com encadeamento causal, as personagens dotadas de veracidade psicológica, a observação da continuidade temporal seriam, examinando-se o conjunto das peças sob a ótica evolutiva, etapas iniciais de uma progressiva abstração. É uma facilidade sedutora, mas inviabilizada pelas peças. Abarcadas como um todo, elas podem, ou não, recorrer ao arsenal do teatro realista, aos paradoxos do surrealismo, aos qüiproquós farsescos, à pintura derrisória da vida social que entre nós ganhou o apelido de “comédia de costumes”, aos recursos do metateatro e à poesia-teatro, apoiada mais na força imagística das palavras do que no seu significado. O único impulso que nos parece recorrente nessa instabilidade estilística é a subordinação dos elementos construtivos a um mote filosófico. Há um tema subjacente em cada texto. Sendo assim, o experimentalismo nunca é técnico e as combinações inusitadas escapam tanto às leituras formalistas quanto às tentativas de encaixar essa rebelde produção dramática na moldura das tendências hegemônicas da dramaturgia brasileira e universal. Experimentos radicais ocorreram no campo da dramaturgia desde o fim da década dos 40, e pode-se dizer que, ao lado do sociologismo inevitável, há uma escritura plural revendo e negando tradições em uma velocidade cada vez maior. Desde as primeiras peças destinadas ao teatro profissional, no entanto, parece não haver sincronia entre a poética de Millôr Fernandes e a dos seus contemporâneos. A suspeita sobre a legitimidade das poéticas consagradas, mais do que da legitimidade de uma determinada escola, insinua-se em Do tamanho de
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um defunto. Aplica-se de início à clássica observação “antes de abrir o pano”. Como um espaço mental, o teatro antecede suas manifestações históricas concretas. É preciso ponderar certos acontecimentos para obter o efeito de contraste. No fim dos anos 40 o moderno teatro brasileiro, atualizado pela influência dos amadores e pelo impacto da presença de Ziembinski – em São Paulo começava o Teatro Brasileiro de Comédia –, tornara-se capaz de expressar diferentes escolas estéticas com razoável competência. Os novos conjuntos estáveis produzindo obras subordinadas à concepção do diretor funcionaram como uma cunha abrindo espaço para o autor brasileiro. Era possível escrever sem ter como único horizonte o desempenho de um ator de renome. Pode ser que o alcance dessa liberdade tenha sido de início superestimado por dramaturgos principiantes, uma vez que só a partir de meados dos anos 50 a dramaturgia brasileira idealizada para conjuntos estáveis passou a ocupar a cena com um peso proporcional ao do autor estrangeiro. Mas o fato é que há, nas primeiras obras teatrais de Millôr Fernandes, uma proposta um tanto quanto avançada mesmo para os conjuntos estáveis, cujo propósito era valorizar o texto dramático nacional. Para um modo de produção que com muita dificuldade e a passos lentos se aperfeiçoava tecnicamente e começava a valorizar a naturalidade, a cena como um espaço mental, onde as idéias prevalecem sobre a corporificação, deve ter excedido o alcance dos meios expressivos disponíveis. Basta lembrar que, do repertório universal, George Bernard Shaw sempre foi um dos ossos mais duros de roer. De modo explícito e implícito, o arranjo da peça Do tamanho de um defunto investe contra a convenção da quarta parede e, por extensão, contra o ilusionismo e a falsa naturalidade. Observamos antes que a visão do cenário de uma sala de estar suburbana é precedida pela informação sonora da chuva. Outra operação ao longo da narrativa faz com que a invasão da personagem que desorganiza esse universo se dê pela platéia. É uma ironia acentuada pela indicação de que há, nessa quarta parede invisível, uma janela que o ladrão deve forçar e transpor. Embutida nas ações e enunciados das figuras em cena, por meio da caricatura ou de frases paradoxais, há a contraface do teatro de tese de formato realista. O dono da casa, um médico que de início acreditamos ser dotado mais de razão do que de sensibilidade, humilha por meio de clichês da classe dominante o policial que se dispõe a protegê-lo, mas é capaz de sair dessa psicologia caricata para introduzir um alerta metateatral: “Chama-se a isto encadeamento de
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motivos”4. Torna-se assim explícita a função da personagem e, por extensão, denuncia-se o aspecto de invenção da trama. Trata-se em suma de um teatro de cuja veracidade podemos suspeitar sem prejuízo da fruição. Fica justificada pelo artifício (e não pelo verismo) a intromissão de um ladrão cuja esperteza faz lembrar os destituídos de Joracy Camargo que Procópio Ferreira representou incansavelmente – dos quais Millôr Fernandes se aproximaria em 1978, quando adaptou para o formato de musical a peça Deus lhe pague. Tal personagem parecerá, à primeira vista, parente próximo daquela figura tradicional nos palcos das décadas dos 30 e 40 do século XX. Alguns traços, entretanto, se acumulam para transtornar a expectativa da repetição Em primeiro lugar não há motivos para justificar a excepcional habilidade retórica desse invasor. Nem a história pessoal nem a sociologia são invocadas para explicá-lo. É um descarado exagero ficcional com a dupla função de ironizar o costume teatral de resgatar a marginalidade enquanto diverte. Aliás, é o tratamento hiperbólico que permite a um ladrãozinho fracassado conceber e expressar a utopia do mal absoluto: “Morrerão todos os homens de bem. A terra ficará um paraíso de larápios e assassinos. Então, em meio à chuva e aos rios, nos assaltaremos entre nós mesmos e nos mataremos, numa festa íntima, numa Sodoma e Gomorra da patifaria”5. Vale lembrar aqui que no Rio de Janeiro dos anos 50 talvez ninguém soubesse da existência de Jean Genet. Autêntico na sua devoção transgressora, o invasor impõe-se pela energia com que resiste à benevolência. Só resta ao seu adversário em cena render-se à integridade da corrupção, do mesmo modo que é obrigado a aceitar a realidade da doença. A reflexão conclusiva tem, portanto, o tom sentencioso da moralidade que resume a comédia clássica. É um uso paródico porque se chega à inversão da ética usual. Aos que escolhem o mal também cabe o direito de exercê-lo. Aos outros resta esquivar-se como for possível. Não há soluções binárias nessa conclusão que propugna o exercício da liberdade. Até que a morte os separe devem conviver em paralelismo o criminoso e a vítima. O adultério, tema por excelência do drama realista e do teatro de boulevard durante meio século e, portanto, do teatro de língua portuguesa, aparece pela primeira vez em Uma mulher em três atos – marco do ingresso, em 1953, de Millôr Fernandes no teatro profissional – e permanece como um assunto recorrente, central ou paralelo, em obras subseqüentes. Tal como o ladrão de Do tamanho de um defunto, que não padece de escrúpulos e tampouco se escuda na origem de classe, a Maria que protagoniza a peça é uma adúltera dotada de li-
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vre-arbítrio. Transgride por escolha, não por amor ou insatisfação sexual. Age sempre no sentido da autopreservação. Se o que tem lhe parece mesquinho, batalha para travar relacionamentos convenientes. Alternam-se telefonemas, irrupções inesperadas do marido enganado, qüiproquós farsescos como um dos amantes escondido dentro do armário. A trama, em suma, alimenta-se da comédia de adultério francesa. Não há, neste caso, nem a coerência psicológica do drama, que demandaria uma personalidade dotada de vida interior, nem a tonalidade cínica da comédia de tradição francesa, que terminaria por condenar a hipocrisia em que se baseia o contrato matrimonial. Todos os acontecimentos dramáticos gravitam em torno da mulher fatal arquetípica. Elementos de outro repertório são mobilizados e combinados para torná-la em primeiro lugar sedutora e, em seguida, fazer-nos compreender a voracidade e o perigo que representa para os homens. Ao utilizar o recurso da evocação – Maria é a narradora de episódios pretéritos –, os acontecimentos podem ser deformados pela memória afetiva da protagonista, tal como ocorre com a personagem central de Vestido de noiva (1943), de Nelson Rodrigues. No âmago dessa memória não se encontram a psique revolta ou o tormento da libido insatisfeita que constituem a matéria expressionista, mas um caráter devorador, auto-suficiente, capaz de domar as circunstâncias à sua vontade. Do ponto de vista construtivo, os amantes desfilam (às vezes com excesso de exposição, como no caso do pioso Valquírio) porque cada um deles é fragmento do mosaico do homem ideal que a mulher tenta compor para uso próprio. A variedade de tipos não disfarça um desígnio puramente teatral, uma vez que marido e amantes – representados por um ator na encenação dirigida por Adolfo Celi – são desenhados para corporificar a variedade estilística da peça. Cabe a Maria o privilégio da função metateatral. Narra e conduz o jogo endereçando-se diretamente à platéia quando se vê diante de uma investida amorosa inoportuna: “(Aponta para a platéia.) Tem essa gente toda olhando”6. Mas não só ela. O romântico Radagazzio, forçado pelo autor a se encalacrar em um armário, reclama alto: “Virar personagem de comédia barata. Minha mãe jamais poderia sonhar com uma cena destas” 7. Como uma espécie de sobrecarga enfatizando a mescla de gêneros estão os golpes emprestados ao melodrama: o copo de veneno, a revelação da esterilidade, a cena final feita por uma viúva-negra de paródia. Há, porém, um momento de excepcional candura, em que a arquitetura intelectual da peça, quase sempre visível em razão do caráter paródico dos re-
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cursos, cede lugar à intervenção do lirismo desencantado que, até nas comédias, impregna os casos de amor malsucedidos. A adúltera por vocação e o marido traído são criaturas sem transcendência, presas aos desejos e afetos. Apesar disso, há uma ruptura na curva dramática quando o marido se apóia na janela para contemplar a lua. Eduardo - Carros, ônibus, edifícios, gente dançando, bebendo, fumando... É engraçado. Maria - Que é que é engraçado? Eduardo – Eu sou um miserável, não sou? Maria – Somos8. Nesse curto diálogo, único momento de concordância na batalha conjugal que se trava em cena, a entonação é ao mesmo tempo poética e veraz. A participação elementar e magnética da lua, a metáfora singela da luz se esforçando para chegar aos habitantes da muralha de concreto e a resignação tornam a miséria espiritual e material da dupla um destino comum suportável. Nas outras cenas, o casamento é, para a moça, uma promessa traída e para o homem, uma experiência cotidiana de humilhação. Neste delicado e melancólico interlúdio há a sugestão de uma harmonia possível, sem idealizações ou grandes esperanças. Haveria, talvez, lugar para o afeto se o homem e a mulher se entregassem ao ritmo da existência, sem projetar no casamento a aspiração de segurança e ascensão social. Maria encarna exemplarmente a ambição das mulheres, não há como negar. Comparado a ela o marido é um doce-de-coco. Neste sentido não é fora de propósito o comentário do crítico da Folha de S.Paulo, escrito na ocasião da estréia. Miroel Silveira considerou a peça um libelo dramatizado “contra a mulher”9. Apesar desse acento misógino, a segunda peça do autor protagonizada por uma mulher bastaria para resgatá-lo com vida das garras das bacantes feministas. Para equilibrar a balança e fazer justiça a outras refrações do feminino, Ismênia Scherzzo, centro da peça Pigmaleoa10 (1962), é uma campeã da tolerância, artífice da harmonia e combatente derrotada nas frágeis fileiras dos que tentam se opor à especulação imobiliária. É uma personagem que vive dentro de uma moldura espacial e temporal definida (a cidade do Rio de Janeiro em 1952) e defende amorosamente “a última casa de Copacabana”. O caráter devorador de Maria não representava, a julgar por Ismênia, uma perspectiva filosófica e
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existencial diante da condição feminina. Apenas “estava” misógino o autor quando concebeu sua crudelíssima adúltera. Como procedimento, Pigmaleoa não é uma peça singular na dramaturgia de Millôr Fernandes. Faz parte, se observarmos as formalizações do conjunto, de um trio que poderia corresponder à definição da comédia de costumes emparelhando-se, neste sentido, a Um elefante no caos e É... Seu correspondente histórico na classificação dos gêneros não é a “comédia de costumes” pós-romântica do teatro brasileiro, em que se ouve o suspiro saudosista sob a trama que culmina na bravata ufanista. Trata-se antes de um parentesco com o modelo anterior da comédie de moeurs da tradição dramática universal, um subgênero que focaliza o comportamento do homem em sociedade, observando e registrando as peculiaridades da interação entre a personalidade e o meio. São os mesmos princípios, enfim, que regem a construção do drama naturalista. O fato de que essas obras possam eventualmente conter na sua feitura recursos cômicos não resume seus efeitos e intenções que podem variar do lírico ao farsesco e da denúncia à documentação de circunstâncias históricas. A colunista social Ismênia Scherzzo é personagem exemplar do antideterminismo, ou seja, da reação possível às circunstâncias do seu tempo. Na trama, sua identidade se constrói por uma metódica oposição às forças dominantes. Contrariando a moral da sua família de origem, é mãe solteira e profissional bem-sucedida, ainda que viva sem dinheiro. Ponto de intersecção entre os estamentos sociais, comunica-se bem com a grã-finagem, com a extrema esquerda (sabemos que hospedou um Comissário do Povo), com a Igreja Católica, com a empregada doméstica. Mesmo seu apego à casa onde mora não é sintoma de passadismo, uma vez que o mobiliário é “moderníssimo” e inclui uma televisão – lembremos que a época da ação é o início da década dos 50 – que “acabaram de instalar”. É por amor à liberdade de todos e por fidelidade a si mesma que contesta tanto a moralidade arcaica da sua família de origem quanto a transformação urbana que destrói a paisagem. O cinismo de superfície, verniz habitual das comédias de salão, tempera o aspecto inelutável da ação que progride até a derrota emblemática da protagonista deixando a casa aos demolidores no final da peça. “Entre nós, jamais tragédia alguma”, brinca o filho bon-vivant de Ismênia. “Juramos aqui, neste primeiro encontro que, aconteça o que acontecer, nós somos personagens de comédia”11. Sabe-se, entretanto, que estão cercados pela retórica irada e ressen-
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tida de Carlos Lacerda, que a paisagem entrevista pelo fundo da cena é a da face de serviço de um arranha-céu, enquanto a do pavimento superior descortina uma favela. Copacabana é, desde a primeira cena, o paraíso perdido. Instala-se na política e na prática administrativa a ideologia “desenvolvimentista”, vitimizando a memória coletiva, a beleza da cidade e a tranqüilidade política. O que se vê em cena é a última trincheira da resistência defendida pelos boêmios. Ainda que bem alicerçada na história do período, intercalando doses calculadas de alívio cômico, a eternidade mítica de Ismênia sobrevive à derrota no plano da realidade. Com uma praga é capaz de pôr abaixo um dos monstrengos de cimento armado da vizinhança. “O negócio é viver pra frente e compreender pra trás”12, resume essa protagonista sensata dotada pelo seu criador de potência mágica. Não há jardim nem cerejal na narrativa, mas a associação com a atmosfera tchecoviana – vale lembrar que em 1983 Millôr traduziria O jardim das cerejeiras – é tramada por pequenos indícios na cena final, atribuindo-se à criada a missão de fechar a porta da casa vazia enquanto o passarinho de estimação da família insiste em trautear algumas notas do hino nacional. Oásis onde se abrigam o gosto pela vida e a solidariedade, a última casa se dissolve cenicamente em vez de explodir com vigor trágico. Não deixa de ser curioso o contraste oferecido pela extrema concentração das peças A gaivota (1959) e Bonito como um deus (1955). A primeira é um interlúdio em que pai e filha tentam entender-se após o velório da dona da casa que se suicidou inexplicavelmente. É um pequeno ato realista, impregnado de melancolia e formalizado com a delicadeza do poema elegíaco. “Não fomos criados com cinemas, teatros, nem mesmo com livros. Nossa existência é falar dos vivos e lembrar os mortos”13, admite o personagem central masculino. A rememoração, contudo, não resgata, no plano da peça, um ser real. Ambas as personagens, pai e filha, projetaram sobre a mulher desaparecida a perfeição ideal. Foi uma desconhecida e o adensamento dramático se faz por meio de sucessivos indícios dessa ignorância. Não houve erro e, conseqüentemente, não há culpa. De modo indireto o diálogo configura o problema central da filosofia do conhecimento, que é a alteridade. O amor do pai e a necessidade da filha deram sentido às suas próprias vidas, mas o objeto desse afeto e desse desejo permanece inacessível ao conhecimento. Bonito como um deus adota a técnica retrospectiva e a tonalidade fúnebre de A gaivota. É um ato dramático com apenas três personagens refugiadas à noi-
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te em um bar. Enquanto Pigmaleoa focalizava a vida precária e solar da boemia em contato com a pulsação da cidade, a atmosfera de Bonito como um deus, também protagonizada por boêmios, é insular, noturna e centrada no mundo interior da personagem feminina. Há uma moça com um comportamento anômalo – do ponto de vista clínico seria uma masoquista –, que entra em cena marcada por sinais de espancamento. O Barman, confidente e personagem de apoio, narra as circunstâncias do romance a um jornalista presente: moça de boa família, musicista de talento, seduzida e explorada pelo Casanova do bairro. São vulgaríssimas as circunstâncias, pelo menos na perspectiva do narrador. Olhar de relance sobre o crime passional que estimula a venda dos periódicos (a personagem Jornalista atesta esse interesse mórbido), a peça não se define estilisticamente como um estudo da paixão. São sucintas e diretas as informações sobre o relacionamento amoroso e as violências sofridas pela moça. Na organização narrativa, estes episódios que supõem intensa agitação psíquica já aconteceram. O que interessa ao autor, no presente da ação dramática, é o motivo que desencadeou a paixão. O homem amado não tem outra virtude a não ser uma extraordinária beleza. Cabe ao Jornalista traduzi-lo por uma máxima: “Beleza a gente tem que arranjar diretamente com Deus”14. Centro para onde converge o desejo, a beleza do amante estará sempre fora do alcance porque há nela a inacessibilidade do divino. Nunca se deixa possuir inteiramente e, ao final, outra moça aguarda com o mesmo fervor o usufruto desse dom. Depois de ter conhecido e amado a beleza divina encarnada em um homem, a pianista Flávia deixou de se interessar pela música. Ambas lhe escapam no fim e este sentido alegórico se sobrepõe aos outros elementos de composição do drama. Nenhuma figura de estilo resumiria a multiplicidade de recursos utilizados em Um elefante no caos (1960)15. Há, aliás, na frenética mobilidade dessa comédia, a intenção de encaminhar o enredo para uma diáspora de ações e significados. O que começa como uma comédia de costumes da classe média baixa que povoa os conjugados de Copacabana vai-se expandindo pela interferência de elementos surreais. Há dois meses grassa um incêndio no prédio superpovoado e o Bombeiro encarregado de extinguí-lo tornou-se funcionário estável do prédio. “Consegui transferência para esse sinistro”16, comunica, satisfeito, à moradora. Ao longo de uma cena, enquanto se desenvolve um colóquio amoroso, um edifício é construído – do teto à fundação. A paródia feita à contra-expectativa do dramalhão é utilizada para des-
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mascarar um graduado militante do Partido que faz fortuna com a arrecadação de fundos. E em aparente atropelo se acumulam referências às deficiências do abastecimento de água, à burocracia, aos interesses políticos, criando dificuldades para os cidadãos para assumir o crédito da solução. Como instituição sólida, bem administrada e confiável, só há o jogo do bicho. A formalização, ágil e repleta de frases de espírito que incorporam ao teatro a habilidade frasista da crônica humorística, segue de modo deliberado a dinâmica do caos primordial a que se refere o título, “numa confusão que parece assustadora, mas é apenas o começo de alguma coisa formidável”17. Repete-se em Flávia, cabeça, tronco e membros18 (1985) o nome da personagem de Bonito como um deus. Desta vez, trata-se de uma jovem belíssima, 18 anos incompletos, “residente à avenida Copacabana, 886”, endereço indicativo de um certo bem-estar econômico. Resume-se a esse dado a circunstância geográfica de Flávia, um ser que não se constitui por meio da história ou da economia, mas que pode ser poeticamente explicado pela mitologia daquele bairro. Vive ritmada por impulsos e atrai a cobiça de todos os homens que a rodeiam. Paladina da nova liberdade de costumes, prefere os motéis sórdidos a locais de encontro confortáveis e limpos, é capaz de dar uma conferência sobre as virtudes do ácido lisérgico e salda com sexo as dívidas contraídas com a lei. Além de bonita, é saudável, tem todas as facilidades de uma moça de classe média. O que mais pode querer? “Tudo, doutor. (Silabando) EU QUE-RO TU-DO!”19, diz Flávia. É essa ânsia de totalidade que organiza a seqüência da peça. Em expansão incontrolável, a anarquia libertária da moça absorve o Poder Judiciário (representado pelo Meritíssimo Paulo Moral) e o sistema policial quando o delegado Alberto, adiantando-se ao juiz, assume o papel de seu tutor legal. As transgressões aumentam na proporção em que se tornam acessíveis novas esferas institucionais. De início Flávia é uma menor prevaricando em boates e bordéis e consumindo drogas. Tendo acesso ao sistema jurídico passa das pequenas transgressões (como o adultério) para crimes mais emocionantes (como roubo e assassinato). Na mesma proporção em que o delito se engrandece, seus “protetores” aperfeiçoam a retórica para defender e proteger a moça – ou seja, defender e proteger seus próprios interesses sexuais. Progressivo, o contágio da anarquia transborda limites sociais, éticos e geográficos. Flávia dá o exemplo e lidera alegremente assassinatos em série entre maridos e mulheres seguidos de um picadinho feito com serrote. Os planos
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para o assassinato de cônjuges, motivados mais pelo prazer de matar do que por ódio ou necessidade, prevêem a ocultação dos corpos desmembrados nos caixotes usados no transporte de mercadorias das feiras livres. Pouco a pouco, sob a forma de uma ciranda funambulesca, as proezas instigadas por Flávia vão imprimindo ao entorno o formato utópico da sociedade que nenhum freio ético chega a constranger. Todas as personagens, no final do primeiro ato, entram em cena tendo nas mãos um serrote. No segundo ato a ressonância hiperbólica aumenta com a contribuição dos meios de comunicação de massa. “Mais um ato nefando como o que assistimos perpetrado com sadismo e – por que não dizer? – eficiência, cheio de sangue e de horror, esse é multiplicado em milhares de exemplares, em milhões de aspectos, em bilhões de opiniões, dezenas de bilhões de imagens, em centenares de bilhões de vozes, que o repetem, noite adentro, como um gol sinistro de Pelé”20, declara o Promotor. Mais do que uma comédia negra, no qual a visão desesperançada da vida se desprende dos qüiproquós de efeito cômico, a peça se inscreve na categoria do grotesco. No grotesco, o risível e o trágico se conservam em situação de alternância, variando de acordo com um equilíbrio precário que qualquer pequeno incidente dramático pode desestabilizar. Sob a deformação grotesca transparece a precariedade do real que a personagem Flávia ajuda a expor. Basta que ela exponha a amoralidade, a sensualidade e o ímpeto destrutivo para que essa imagem libertária atue sobre as caricaturas igualmente ampliadas do Poder Judiciário, do Exército, da Igreja Católica e dos trabalhadores. Quanto aos últimos, são movidos a agir em primeiro lugar por medo, a seguir pelo conformismo e, por último, por razões pragmáticas. O feirante que encontra restos humanos na sua caixa teme denunciar o crime, o mesmo acontece com o distribuidor de carne. Legítimos descendentes de Sancho Pança, os açougueiros resolvem o problema comercializando a incômoda mercadoria. “São vinte contos a mais, Carnudo”21, pondera a Açougueira. A inversão de valores – o crime torna-se rotineiro e permissível – contempla desse modo o todo da pirâmide social. “O riso causado pelo grotesco tem, em si, algo de profundo, axiomático e primitivo que se aproxima mais da vida inocente e da alegria absoluta do que o riso provocado pela comicidade dos costumes”. A observação é de Charles Baudelaire22 e parece servir como uma luva aos procedimentos estilísticos da peça. Flávia corporifica o prazer da energia destrutiva e a alegria da baderna se manifesta no segundo ato no próprio tribunal
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em que são julgados os réus dos assassinatos em série. Nessa imagem derrisória do rito judiciário o único sentenciado à prisão é o feirante negro condenado por ser negro e por ter ousado casar-se com uma branca. A Flávia, no entanto, o juiz concede uma penalidade que, sob a ótica tortuosa do grotesco, é a maior de todas as punições. Condena-a à liberdade perpétua, sem condicional. As últimas falas do Juiz Moral invocam, para justificar a liberdade absoluta, um novo código com suas “tábuas de matéria plástica”, permitindo qualquer coisa e sacramentando todas as condutas “pelo feroz direito da impotência”. É o mesmo direito exercitado na formalização de uma peça que mobiliza o surreal, a caracterização farsesca, a poesia, o metateatro (as personagens pedem ao maquinista suplementações cenográficas) e alguns procedimentos de ilogicidade metafórica como, por exemplo, a mulher que envelhece em três dias e se prepara para dar à luz um neto. Em um texto escrito em 1965, o autor resumiria o princípio construtivo em que se apóia o texto: “Só existe a dinâmica pura, que torna a ação a suprema afirmativa e transforma a vida num gigantesco happening, onde qualquer afirmativa é leviana, pois já está morta no instante de nascer”23. Mais de uma década depois, o tema da liberdade pessoal voltaria à cena, desta vez revestido com recursos do estilo realista. É... (1977) examina os efeitos da nova ordem comportamental na vida social e afetiva de dois casais de classe média. Vera, casada com um professor universitário, é a mulher de meia-idade com todas as habilitações exigidas das esposas da sua geração e do seu meio social. É inteligente, bonita e suficientemente culta para fazer face ao convívio do círculo de intelectuais a que o marido pertence. “Estou bem na minha senzala, ela é ampla, limpa. Meu patrão não me espanca...”24, afirma. Serve a um deus do lar cordato, respeitador do compromisso conjugal e ainda assim aberto e interessado nas idéias da geração mais jovem. Por essa fresta se insinua a semente da transformação. É um amigo e ex-aluno quem propõe um acasalamento circunstancial entre o professor e sua companheira. Sendo estéril, o casal jovem “seleciona” um reprodutor para poder ter um filho e “cumprir a realização biológica”. O que se impõe a seguir é a “dinâmica pura” a que todos os seres humanos estão submetidos e que nenhum aparato teórico pode prever e controlar. O professor não cede às razões dos jovens, é simplesmente seduzido por uma oferta sexual irrecusável. A desmontagem dolorosa e, por fim, sangrenta de duas uniões deixa sobre a vida de todos o rastro de destruição e amargura com es-
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combros do mesmo feitio dos que atulhavam o cenário matrimonial das tragédias dos séculos anteriores. Diante do abandono, a esposa, identificada como um modelo da classe média convicta, percorre todas as etapas deselegantes e exaltadas da dor-de-cotovelo suburbana: a espionagem, o insulto, a tentativa de ir à forra, as súplicas e a demolição material do lar onde exerceu por mais de 20 anos a arte sutil de proporcionar beleza e aconchego à família e aos amigos. A alternância entre a tonalidade da crônica de costumes e a peça de idéias permeia cada um dos embates dialógicos travados pelas personagens. Ludmila, a sedutora que merece a alcunha arcaica de “amásia”, atinge, por um processo de depuração, o fundo conceitual da filosofia que defende em tese: “Eu estou apenas vivendo a minha vida. Ocasionalmente ela interfere em outras. Eu não posso fazer nada”25. A essa viagem egótica corresponde o desmoronamento dos valores e das percepções da esposa abandonada, Vera: “Eu estava certa de que minha superioridade moral valia muito e fui vencida pela emoção mais reles, pela tesão mais juvenil”26. O aparato teórico, a sofisticação cultural e os ritos de convivência sobre os quais se estrutura a forma do drama pequeno-burguês tornam-se inadequados para caracterizar a espantosa fragilidade dessa construção que desmorona à primeira investida do “tesão juvenil”. A partir da ruptura a peça recorre à tonalidade farsesca, ao melodrama (há um suicídio) e às conclusões resignadas diante do imponderável freqüentes no impressionismo tchecoviano. A resignação é alguma coisa, uma vez que Vera se apazigua ao final. Não há outra espécie de saldo positivo sob a desmontagem das duas concepções antagônicas discutidas em cena. São hipócritas, mas de grande valia no cotidiano, as teorias que, no início da peça, sustentam o convencionalismo responsável dos mais velhos. São sinceras aparentemente, contudo bem pouco funcionais no que diz respeito ao custo psíquico, as idéias sobre a liberdade individual do casal jovem. Quando são desmentidas, o que aparece sob a teoria não é belo nem bom. Sendo mais verista do que as criações anteriores – uma vez que procura captar a rotina doméstica e segue a evolução do psiquismo da personagem Vera –, trata-se de uma peça que utiliza com moderação as intersecções temporais e a evidência dos artifícios de composição. A Vera, no entanto, É... reserva tempos preenchidos por falas em que se combinam as funções do solilóquio e do aparte. São discursos proferidos depois da representação dos fatos e, por meio
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deles, Vera objetiva o sentido global dos acontecimentos. É uma mulher singular, porque tem inteligência, senso crítico e exercita esses instrumentos ao analisar as vantagens e desvantagens da situação da mulher dona-de-casa. Tem mais recursos do que requer a caracterização da personagem-tipo representativa da classe média. Além disso, nas partes narrativas, estabelece os laços entre o particular e o universal, ou seja, apresenta a trama como a versão contemporânea de matrizes míticas que se repropõem ao longo da história. Exiladas do Olimpo e vivendo agora na metrópole contemporânea, Artemísia e Hebe travam um combate no qual apenas os argumentos são históricos. Também a formalização da peça imita superficialmente os gestos, os hábitos de convivência e a linguagem da vida pequeno-burguesa. O fundo é mítico e transhistórico. Não por acaso as orientações do autor para a encenação prevêem, entre outras coisas, o uso da cortina, “uma tradição bonita, mágica, misteriosa”. O realismo, sendo a formulação estética do bom senso, é uma ilusão teatral. Duas tábuas e uma paixão 27 – nunca levada aos palcos – ergue-se sobre os escombros da antiga família nuclear. Em Pigmaleoa, a última casa de Copacabana fechava suas portas para dar lugar ao edifício moderno. Na parede externa do apartamento de Um elefante no caos crepita um incêndio inextinguível. Chegou a vez do edifício afundar. A dona da casa de Duas tábuas e uma paixão morreu, o marido deixou a cidade e uma das filhas procura tornar habitável um apartamento que aderna, onde as portas não abrem e as paredes racham por força do movimento de submersão do edifício. Em razão do uso deliberado de um fato histórico pontual – o fracassado “atentado terrorista” planejado por militares radicais em 1981 no Rio de Janeiro –, o texto permite compreender com clareza exemplar um procedimento construtivo que põe em jogo vários níveis de realidade. Se a função referencial da história fosse determinar a vida das personagens (procedimento dos materialistas históricos), seria preciso respeitar a base documental, ou seja, construir a ficção a partir de uma informação verídica. Houve o atentado “real” de 1º de maio de 1981, que fracassou porque a bomba explodiu antes do tempo e fora das dependências internas do Riocentro. No plano ficcional, o atentado planejado pelos militares é logrado. Enquanto a protagonista Cordélia se empenha em reconstruir a sua vida no país reformando o apartamento e ensaiando uma peça, o cunhado – um militar de carreira “linha-dura” – destila a ideologia do autoritarismo e deixa claro, por meio de ações, que a facção que representa pre-
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para para um novo golpe. Na penúltima cena de Duas tábuas e uma paixão, intitulada “Guernica”, as informações sobre a carnificina e um novo golpe de direita chegam através de uma personagem que entra em cena, do telefone e da televisão. Não é, portanto, o determinismo histórico que tensiona o campo dramático, mas o que poderia ter acontecido. O possível solicita sempre uma reflexão, abre variáveis de conotação que podem se projetar sobre o passado ou o futuro. As perseguições a que a peça se refere na última cena já aconteceram na história do país em anos anteriores. Voltarão a ocorrer? Não há resposta no plano ficcional. Do mesmo modo, na constituição das personagens, há uma constante reversão de expectativa para que nos pareçam estranhas, para que se tornem distintas do “tipo” social ou psicológico. Tal como a homônima criação shakespeariana em Rei Lear – traduzido por Millôr em 1980 –, a atriz Cordélia é uma filha rejeitada que retorna à casa paterna depois de ter vivido anos no exílio. Não segue, todavia, o modelo dos dramas psicológicos em que, ao revisitar o passado, a personagem reorganiza os tumultos da subjetividade. Nem sequer somos informados das razões da ruptura com a mãe. O apaziguamento entre gerações ocorre por meio de um gesto simples cujo desígnio nos parece puramente teatral: a transmissão de um legado a respeito do qual o sentido permanece misterioso. Por um segundo o objeto brilha sob a luz da cena e cabe aos espectadores captar e revestir de sentido essa imagem fugidia. Tampouco é a intenção de Cordélia reintegrar-se ao seu país por meio de uma arte militante. Quer “um espetáculo bem simples, baseado estritamente no sentido de perecibilidade das coisas”28. Mas é, sobretudo, na representação da alteridade social que a peça investe contra os estereótipos do teatro “social”. Osvaldo de Orleans, o faz-tudo que se responsabiliza pela reforma, é uma investida frontal contra as representações usuais da classe operária. Não parece humilhado ou explorado, porém sabe manipular em benefício próprio a consciência culpada da classe média. Regido por outra ética, não corresponde à imagem que a sua empregadora faz do trabalhador honesto, mas, uma vez que é capaz de transformar materialmente o mundo, tampouco se encaixa na definição de malandro. Tem sua própria ética e estética, entretanto conhece a fundo os valores e o gosto dos “patrões”. É legendária a pré-história dessa personagem. Domina todos os ofícios porque é “militar de reserva”, foi garçom do Restaurante Assírio, comparsa de ópera (ainda trauteia trechos em francês), pintor de fachada e, por último, com-
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prova em cena o treino de arrombador. E tem também uma “história real” que se desenvolve na ação dramática. Também neste plano contraria todas as expectativas românticas (versões renovadas do “bom selvagem”) associadas à classe operária. O que o distingue, no contexto da peça, não é a ideologia ou o determinismo da sua inserção na sociedade de classes, mas a sua capacidade de impor uma outra forma ao universo material (o apartamento se torna habitável) e a estratégia de camaleão que utiliza para atingir objetivos imediatos. A seu modo, é também artista, movendo-se agilmente em meio aos escombros da casa e à agitação política do período que precede o golpe militar. Faz um outro tipo de representação cuja eficácia não se apóia em palavras de ordem e dispensa a conscientização do público. De qualquer forma, o alcance é extenso porque ficamos sabendo que é a única personagem que tem vínculos no Araguaia (onde, na década dos 70, atuou um núcleo de militantes do Partido Comunista do Brasil, visando instaurar a guerrilha rural). Para as representações multifacetadas com que seduz a empregadora, apóia-se no solo firme de duas tábuas que “estão comigo há trinta anos, nunca me jogaram no chão”29. São simbólicas as duas tábuas e a paixão de Cordélia, mas ao mesmo tempo metáfora e realidade as tábuas de Osvaldo. Rotações da mesma figura – uma face significa isto e outra face aquilo – a instabilidade semântica desse texto polimorfo só tem um ponto irredutível, e este é a figura do militar. É a única personagem solidamente ancorada, que distingue ordem e desordem, capaz de projetar e agir sobre o futuro. Sabe o que é preciso fazer para resgatar valores tais como “recato, compostura, probidade...”. Cumpre-se o seu desejo no plano ficcional, porque o atentado ocorre e justifica o novo golpe militar. E aqui é preciso lembrar que se trata de um dramaturgo que não renuncia ao desígnio, ou seja, que estrutura as obras a partir da filosofia autoral. Neste caso os assassinatos em massa, a perseguição aos artistas e aos militantes de esquerda recrudescem como uma pulsão que temporariamente vem à tona. Dê-se tempo ao tempo e também isso perecerá porque a imagem da morte pontua a ação e funciona como um epílogo. Cordélia e seus amigos experimentam a dor do ser, enquanto a Mãe agonizante antecipa o horror de não ser: “Nunca ninguém me disse que deixar de sofrer doía tanto”30. Perecerão as vítimas e os algozes de hoje, outras vítimas e outros carrascos os substituirão no cortejo repetitivo da história. Estável nesse universo em mutação é o texto shakespeariano reinvestido de significados novos a cada geração e a cada momento da
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história. O cântico amoroso em louvor da bela Albion entoado pela personagem Cordélia serve ao sentimento nativista de todos os tempos e lugares. Escrita em 1995, a peça Kaos acompanha, na sua organização, o fluxo instável do afeto (nem sempre merecido) pelo lugar onde se vive. Tramando a crônica do cotidiano, a poesia e a observação dos costumes configura-se a cada cena o inventário dos grandes temas metropolitanos: as fronteiras sociais, o tráfico de drogas, as crianças abandonadas, a superpopulação, as agressões à paisagem e a hegemonia da estupidificante comunicação “global”. Seguindo o modo como esses acontecimentos se impõem à percepção, a peça é, quase na sua totalidade, um fluxo de solilóquios entrecortados em que as personagens se diferenciam mais pelo estilo do que pela confrontação de idéias. Uma dessas vozes prefigura a forma de organização dessa matéria volátil: “Cenas sofridas só por antecipação, não vividas. Hecatombes não concretizadas. Imagens superpostas na memória, enterradas com outros personagens, cortadas na montagem de nossa existência, rejeitadas por excesso de violência ou de mau gosto. Tragédias sem lugar em nosso enredo”31. Há uma única personagem íntegra e o “enredo” que o texto determina para sua evolução corresponde ao “caráter” aristotélico. Canepa Boa-Viagem, descendente direto do ladrão da peça Do tamanho de um defunto e primo em primeiro grau de Osvaldo de Orleans, é o faz-tudo se virando para sobreviver com as tarefas que restam aos pícaros contemporâneos. Gigolô, coveiro, mercador de trastes, estelionatário e, por último, enterrador de lixo atômico, assume com galhardia todas as doenças profissionais. São as marcas de uma luta heróica pela sobrevivência. É aidético, foi contaminado por radiação. “Cerquei a morte pelos sete lados. Foi o que eu sempre fiz na vida. Numa boa!”32. E sai de cena alegremente ao som de “Adiós, muchachos”. A esta personagem-índice do modo de vida da arraia-miúda a peça reserva a concretude de uma sepultura e, portanto, de um destino. Outras figuras como o Psicanalista, o Sacerdote e a Poetisa são mentalizações corporificadas por intérpretes e, nesse sentido, expressam a polifonia do mundo interior de todos os habitantes da metrópole. Pensam enquanto vivem ou vivem pensando. Os discursos se interpenetram e se desestabilizam nos confrontos dialógicos e, nessa inversão, compete ao Psicanalista propagar a fé, ao Sacerdote duvidar e à Poetisa negar o legado literário “que conspurca o sagrado nome da Poesia”. Às vozes a que é atribuída a função de narrar cabe revestir de humor e da
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beleza noturna e sombria do ceticismo essas experiências mentais doloridas em que tudo que é vivido e percebido se fragmenta, escapa ao entendimento, e obriga ao retrocesso para o mundo interior. “Dentro de mim há coisas inacreditáveis, que me dão uma plenitude que não existe aqui fora”33, diz a Poetisa. Sobre essa cidade terrível onde “os meninos de rua, alguns pesados de drogas, dormem em soleiras, sarjetas, bancos, em todos os vãos e buracos protetores”34 recai, no entanto, a benção de um delicado haicai: “Na poça da rua/um vira-lata/lambe a lua”35. A intenção poética reveste a ordenação das cenas, uma vez que se apresentam como percepções sensoriais, provocando, como faíscas, o fluxo de sensações, sentimentos e as inquietações metafísicas sobre o significado dessa experiência de vida. Sendo o espaço poético, por definição, um vazio onde se projetam as figurações mentais dos espectadores (ou dos leitores) a ressonância é o alvo do texto. Menos originais, uma vez que correspondem a modelos construtivos correntes na época em que foram concebidas, são as peças “históricas” de Millôr Fernandes. Verdadeiramente peças de circunstância, foram produzidas num período em que era preciso sacrificar a autonomia do autor aos interesses coletivos. Peças de resistência ao regime militar que se instalou no país em 1964 expressam a posição de um coletivo de artistas. Liberdade liberdade 36 (1965), O homem do princípio ao fim37 (1967), Computa, computador, computa 38 (1972), A história é uma istória39 (1976) e o roteiro Bons tempos, hein? 40 (1979) integram essa safra de obras militantes. Recorrendo a textos consagrados, colando e enxertando reflexões humorísticas, adequando a matéria aos grupos que produziam o espetáculo, o trabalho daqueles anos não só expressou de modo obsessivo o desejo de liberdade da sociedade civil como supriu os artistas da vanguarda progressista de um suporte de bom nível para que pudessem continuar a exercer o seu ofício. Os órfãos de Jânio41 (1980), última peça desse conjunto histórico, supera a estatura e as intenções das colagens. Os solilóquios se apresentam de modo isolado, mas cada um deles é dramático, no sentido em que expõe os dilemas morais e as conseqüências que o regime autoritário teve sobre a vida de cada personagem. Saldo para a superação de uma época histórica, é também uma das peças mais “fechadas” dessa dramaturgia cuja vocação maior é a ruptura, o dinamismo e a constante provocação feita à estabilidade das formas, das idéias e da percepção dos espectadores.
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Mariangela Alves de Lima é crítica de teatro de O Estado de S.Paulo. Trabalhou na constituição e organização de acervos documentais do Centro Cultural São Paulo, da Fundação Nacional de Artes Cênicas e do Instituto Moreira Salles. É autora de Imagens do teatro paulista (São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1985).
NOTAS 1 In Teatro de Millôr Fernandes; o volume inclui ainda Uma mulher em três atos, Bonito como um deus e A gaivota. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957. 2 Ver: PRADO, Décio de Almeida. O teatro brasileiro moderno. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 49. 3 Texto impresso em computador, p. 40. Arquivo do grupo Tapa, de São Paulo. Sem data e com uma observação manuscrita: “D. É a última que escrevi. Há uns três anos. M”. Em outubro de 2001, a Cia. Jaboticabal de Cinema e Teatro e a Folha de S.Paulo promoveram uma leitura pública da peça no auditório do jornal. 4 Do tamanho de um defunto. Edição citada, p. 118. 5 Idem, p. 134. 6 Uma mulher em três atos. Edição citada, p. 57. 7 Idem, p. 58. 8 Idem, p. 70. 9 “Uma mulher em três atos”. In: SILVEIRA, Miroel. A outra crítica. São Paulo: Símbolo, 1976, p. 75. 10 FERNANDES, Millôr. Teatro Completo I: Pigmaleoa; É... ; A história é uma istória. Porto Alegre: L&PM, 1994. 11 Pigmaleoa. Edição citada, p. 30. 12 Idem, p. 63. 13 A gaivota. Edição citada, p. 215 14 Bonito como um deus, edição citada, p. 184. 15 Um elefante no caos ou Jornal do Brasil ou, sobretudo, Por que me ufano do meu país. Porto Alegre: L&PM, 1979. 16 Idem, p. 58. 17 Idem, p. 102. 18 Coleção Teatro de Millôr Fernandes, v. 3. Porto Alegre: L&PM, 1977. O texto, de 1963, foi o primeiro que o autor escreveu para teatro sem atender a uma encomenda. 19 Idem, p. 33. 20 Idem, p. 96. 21 Idem, p. 121. 22 “De l’essence du rire”. In Oeuvres complètes. Paris: Galimmard, 1961, p. 102. 23 Prefácio a Flávia, cabeça, tronco e membros. Edição citada, p. 6. 24 É..., edição citada, p. 77. 25 Idem, p. 121. 26 Idem, p. 132. 27 Coleção Teatro de Millôr Fernandes, v. 12. Porto Alegre: L&PM, 1982. 28 Idem, p. 53. 29 Idem, p. 88. 30 Idem, p. 111. 31 Kaos, cópia citada, pp. 4-5. 32 Idem, p. 38. 33 Idem, p. 17. 34 Idem, p. 5. 35 Idem, p. 6. 36 RANGEL, Flávio; FERNANDES, Millôr. Liberdade liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. 37 O homem do princípio ao fim. Coleção Teatro de Millôr Fernandes, v. 5. Porto Alegre: L&PM, 1978. 38 Computa, computador, computa. Rio de Janeiro: Nórdica, 1972. 39 A história é uma istória. Coleção Teatro de Millôr Fernandes, v. 4. Porto Alegre: L&PM, 1978. 40 Bons tempos, hein?! Coleção Teatro de Millôr Fernandes, v. 6. Porto Alegre: L&PM, 1979 41 Os órfãos de Jânio. Coleção Teatro de Millôr Fernandes, v. 9. Porto Alegre: L&PM, 1979.
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A tarefa do tradutor teatral Maria Sílvia Betti
A tradução para o teatro Ao contrário do texto literário, cujo processo comunicativo se completa através da leitura, o texto teatral pressupõe a encenação, quer esta se realize na prática, quer ocorra no plano da imaginação e da subjetividade do leitor. O ato da leitura tende a produzir uma forma consideravelmente menos completa de apreensão do texto dramatúrgico do que a produzida diante de sua encenação, o que ocorre devido à sua própria natureza lacunar, diferenciandoo, por exemplo, do texto narrativo. O registro textual dos diálogos e das rubricas, tal como se apresenta nas peças de teatro, é, na verdade, um tecido rarefeito, constituído por referências e sugestões que compõem um todo; este, no entanto, só chega a completar-se efetivamente no plano cênico, quando ganha corpo, movimento e voz através da interpretação dos atores e ocupa o palco para construir a fábula. Embora o texto remeta a uma infinidade de possibilidades cênicas, existe em sua estrutura um conjunto de elementos de natureza sociohistórica e artística que compõem a matéria dramaturgicamente representada. Em se tratando de uma tradução, esses elementos só poderão ser apreendidos através de uma compreensão crítica profunda do material em questão. Reside aqui, precisamente, aquilo que se poderia considerar a tarefa mais essencial do tradutor do texto teatral: a de captar a natureza formal e estilística do trabalho a ser traduzido, a fim de adotar estratégias de expressão compatíveis com ele. Como em qualquer ato de tradução literária, a tradução de um texto dramatúrgico implica o estabelecimento de uma mediação entre duas situações de
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enunciação diferenciadas espacial e culturalmente. A situação de enunciação na cultura-fonte pode ser parcialmente recuperada na tradução, mas parte de suas implicações se perde de forma inevitável, o que indica que tanto o tradutor como o encenador terão que adotar estratégias para lidar com essas perdas de modo a não comprometer o conjunto do trabalho. A baixa correspondência entre a situação de enunciação do texto original e a de sua versão traduzida não diminui o interesse que esta possa suscitar. Pode, até, se constituir no dado essencial para a construção de uma reflexão crítica a seu respeito. A tradução do texto teatral é, como qualquer ato tradutório, o resultado de uma leitura, e, enquanto tal, se encontra impregnada das circunstâncias sociais, históricas e ideológicas que lhe são imediatas. O texto de onde se parte só é “legível” de forma plena dentro do contexto cultural de sua enunciação: tentar emular as características desse contexto e as relações nele produzidas por uma determinada peça é um equívoco tanto no que se refere ao trabalho da tradução como no da encenação. Cabe lembrar, a este respeito, a perspectiva crítica aberta pelo estudo de Roberto Schwarz acerca das chamadas idéias fora do lugar1, ou seja, dos elementos de atualização cultural e de importação de idéias implantados sem uma relação real com a vida da sociedade à sua volta. Os desafios técnicos da tradução não dispensam o tradutor teatral de conscientizar-se dos aspectos culturais inerentes não apenas à cultura-fonte do texto traduzido, como também ao próprio contexto da cultura-alvo à qual se dirige. O texto traduzido tem um novo trajeto cultural a cumprir e não poucas vezes acaba por assumir papéis diversos dos que tivera em sua cultura de origem. Segundo Patrice Pavis2, a tradução teatral remete a quatro perspectivas diversas e complementares: a do especialista que a realiza, a do encenador que a dirige, a dos atores que a interpretam e a do público que a vê. Nas duas primeiras (ou seja, as referentes ao tradutor e ao encenador), a responsabilidade maior diz respeito à análise e à apreensão dos processos dramatúrgicos envolvidos. Na terceira (ou seja, a que envolve o trabalho dos atores), o essencial decorre da transposição rítmica e prosódica que viabiliza a interpretação cênica. E, na quarta (na qual a recepção do chamado texto espetacular pelo público está em questão), o fundamental é o confronto da situação de enunciação vir-
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tualmente contida no texto-fonte e a que se desenvolveu no plano cênico concreto a partir dela. Nem sempre, como sabemos, o tradutor trabalha com a perspectiva imediata de ter sua tradução encenada. Quando isto ocorre, o ideal é a troca de idéias com o diretor e o elenco. Uma tradução revisada ao longo de um processo de ensaios, com os atores experimentando as escolhas léxicas ou sintáticas realizadas, permite que se desenvolva uma interessante forma de colaboração entre tradutor e diretor, cabendo-lhes, naturalmente, negociar de parte a parte os limites e a prioridade das escolhas empreendidas. Pavis ressalta a diferença entre o que denomina texto audível e texto receptível. Ao entrar em cena, o ator complementa o texto original através da utilização de recursos vocais, gestuais, mímicos e posturais, imprimindo-lhe a marca de sua performance. Muitas vezes, palavras e construções perfeitamente plausíveis na forma textual impressa revelam-se inviáveis no plano da encenação, no qual o que prevalece é o texto bien en bouche, ou seja, confortável de dizer e dotado de naturalidade ou plausibilidade. A dicção do ator situa-se, como observa Pavis3, na intersecção entre o texto proferido materialmente e o interpretado intelectualmente: o ator, porta-voz derradeiro do texto, apropria-se dele dando-lhe a corporalidade e a modalização responsáveis por seu sentido, imprimindo-lhe um ritmo e emprestando-lhe as marcas de seu corpo. Dessa forma, em sua enunciação gestual e vocal, construir a fábula é dar-lhe o tom e a dinâmica da encenação. Se na frase a estrutura tem a última palavra sobre o enunciado, no caso da interpretação de um texto teatral é a dicção que impera na construção de sentido para o ouvinte e o espectador. Em razão disto, a tarefa do tradutor teatral será sempre a de, na ausência de contato com os envolvidos na encenação ou na inexistência desta, procurar, tanto quanto possível, investigar as peculiaridades cênicas implícitas no texto a ser traduzido. Num país como o Brasil, os altos custos dos direitos autorais dificultam a montagem profissional de muitos textos estrangeiros recentes ou contemporâneos. Os produtores tendem a privilegiar trabalhos já consagrados dentro da tradição dramatúrgica ou, por outro lado, de êxito comercial comprovado em seu contexto de origem, procurando assim assegurar o retorno de seu investimento no espetáculo.
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O repertório de traduções no país deixa muito a desejar, devido à carência de edições disponíveis e das lacunas verificadas nas bibliotecas existentes. Diante desse quadro, o tradutor de textos teatrais no Brasil torna-se inevitavelmente um formador, já que, mesmo quando seu trabalho não está, de maneira direta, ligado ao processo de montagem, ele acaba por desempenhar a tarefa de assegurar aos que se interessam pelo teatro a possibilidade de travar contato com a peça traduzida. Com isso, as traduções contribuem decisivamente para que o debate de idéias não se restrinja, no caso das peças estrangeiras, ao reduzido âmbito dos que detêm a proficiência nos idiomas de origem. Em carta dirigida a Otto Lara Resende e datada de fevereiro de 1980, Millôr Fernandes refere-se informal e sucintamente à natureza do teatro como linguagem: “[...] teatro, tirando o Sheikispir e uns Bequétis, não é literatura, é outro racket”4. A diferenciação estabelecida (teatro não é literatura) mostra, de sua parte, a consciência clara da particularidade e da complexidade de uma linguagem como a dramatúrgica, que pode chegar a empregar expedientes literários, mas que não se comporta literariamente em sua relação com o leitor. Diante da especificidade da dramaturgia, Millôr constrói, desde o início de sua carreira de tradutor, o que se poderia chamar de um corpo essencial de procedimentos recomendados – uma espécie de decálogo do ato tradutório, no qual apresenta e discute os preceitos indispensáveis ao exercício da tradução: Não se pode traduzir sem ter o mais absoluto respeito pelo original e, paradoxalmente, sem o atrevimento ocasional de desrespeitar a letra do original exatamente para lhe captar melhor o espírito. Não se pode traduzir sem o mais amplo conhecimento da língua traduzida, mas, acima de tudo, sem o fácil domínio da língua para a qual se traduz. Não se pode traduzir sem cultura e, também, contraditoriamente, não se pode traduzir quando se é um erudito, profissional utilíssimo pelas informações que nos presta – que seria de nós sem os eruditos em Shakespeare? – mas cuja tendência fatal é empalhar a borboleta. Não se pode traduzir sem intuição. Não se pode traduzir sem ser escritor, com
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estilo próprio, originalidade sua, senso profissional. Não se pode traduzir sem dignidade5. Esses preceitos, que constituem no fundo uma espécie de ética do tradutor, não se dissociam de uma forma basicamente crítica e autocrítica com a qual Millôr exerce o ofício tradutório: “A desconfiança de tudo o que leio (e também do que vejo, cheiro e toco) me permitiu ser um razoável tradutor”6. Via de regra, as traduções de Millôr são caracterizadas pela preferência por formas tanto quanto possível próximas da língua falada e dos tempos atuais. É importante obser var, a esse respeito, que sua prioridade não é, porém, aquilo que se poderia rotular de “naturalidade cênica”, conceito, aliás, que ele considera problemático: “Por que teimam os autores teatrais em escrever diálogos naturais se na vida é raríssimo uma pessoa falar com naturalidade?”7. Ao dizer que “não se pode traduzir sem ser escritor”, Millôr parece indicar que pressupõe, por parte do tradutor, um domínio tanto dos artifícios e técnicas dos idiomas envolvidos quanto da própria dramaturgia como horizonte de criação. O fato de ele próprio atuar também como dramaturgo dá um peso ainda maior ao valor dessa afirmação. Toda tradução implica, em alguma medida, uma forma de apropriação de textos anteriormente existentes. Como observa Susana Kampff Lages8, isto torna o ato tradutório consubstancial à atividade do filósofo, do encenador e do intelectual. Na base do trabalho do tradutor encontra-se o conceito renascentista de saber, vinculado inicialmente à idéia de releitura dos clássicos. Quem traduz é leitor por excelência do texto traduzido. Para Walter Benjamin, a identidade do tradutor, contraposta à identidade do autor, assume um caráter que ele denomina de melancólico: sentindo-se diante do que lhe parece uma tarefa ciclópica, o tradutor tende a ver o resultado de seu próprio trabalho como secundário em relação ao ato autoral da criação que originou o texto, incorrendo numa postura autodepreciativa9. Não é este, seguramente, o caso de Millôr: mesmo entendendo a atividade criadora como mais importante do que a tradutória, ele considera a tradução “a mais difícil das empreitadas intelectuais” – o que evidencia, de sua parte, um reconhecimento inegável do valor da tarefa de traduzir.
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Aspectos gerais sobre as traduções de Millôr Fernandes para o teatro Millôr Fernandes tem passado boa parte da vida, segundo suas próprias palavras, traduzindo “furiosamente”, sobretudo do inglês. A carreira de tradutor, a que ele se dedica paralelamente à de jornalista, escritor e cartunista, constitui-se em parte expressiva de seu trabalho, com uma produção praticamente ininterrupta. Tendo iniciado a tradução de um romance (A estirpe do dragão, de Pearl S. Buck, para a editora carioca José Olympio), em 1942, Millôr se voltaria, posteriormente, para o teatro, no qual elaborou, entre 1958 e 1999, mais de 70 traduções, dentro de uma gama assombrosamente ampla em termos de repertório, de gêneros e de estéticas dramatúrgicas. O conjunto de seus trabalhos nessa área engloba textos significativos da produção teatral consagrada no Ocidente e autores que vão desde os clássicos gregos até os dramaturgos ligados às renovações cênicas das décadas de 60 e 70 do século XX. A amplitude e a diversidade do corpo de peças traduzidas admitem inúmeros recortes possíveis de abordagem quando se pensa num mapeamento geral das características dessa produção. Trata-se de uma atividade desenvolvida com constância, evidenciando sua familiaridade com o ato da tradução e seu interesse pela dramaturgia, especificamente, como objeto. Dentro de uma perspectiva cronológica, são poucos e curtos os hiatos dessa linha de trabalho, o que aponta logo de saída para uma constatação necessária: Millôr Fernandes é, seguramente, o mais prolífico tradutor de textos teatrais do Brasil, aspecto que talvez tenda a passar despercebido não só devido à enorme ressonância de seu trabalho nas demais áreas de atuação mas também pelo fato de apenas uma pequena parte de suas traduções teatrais ter chegado a ser publicada. Dois fatores associam-se a essa produtividade: em primeiro lugar, o fato de Millôr transitar confortavelmente por idiomas tão variados como o inglês, o francês, o alemão e o italiano; e, em segundo, a freqüência de seu contato com atores e diretores, quer por suas afinidades pessoais, quer como decorrência de relações facilitadas por sua carreira de jornalista. A proximidade e a afinidade com o meio teatral podem ter sido determinantes da característica essencial de suas traduções para o teatro: via de regra, elas tendem a
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enfrentar com desenvoltura o duro teste do palco, o que se deve à flexibilidade das soluções empregadas e, em muitos casos, à coloquialidade que ele imprime à expressão. Abrindo mão de recursos eruditos e lidando de forma fluente e criativa com as estruturas originais, Millôr procura a eficácia da comunicação tanto quanto a preservação da expressividade original do pensamento em processo. Esse conjunto de características, valiosas para o exercício da tradução literária em geral, permitiu-lhe desempenhar um papel duplamente importante no campo específico da tradução para o teatro. Por um lado, deu-lhe a possibilidade de se permitir apresentar novas versões para textos consagrados de autores como Shakespeare e Molière, até então disponíveis em trabalhos de cunho mais literário e que nem sempre resultavam eficazes quando transpostos para o palco. Paralelamente, permitiu-lhe traduzir textos de autores até então inéditos no Brasil, como, por exemplo, Harold Pinter, Arnold Wesker e Rainer Werner Fassbinder. Millôr não se furtou ao desafio de traduzir os chamados clássicos do repertório ocidental: fora os gregos (Antígona, de Sófocles e Lisístrata, de Aristófanes) traduziu, como foi dito, Shakespeare – tanto no campo da tragédia (Hamlet e O rei Lear) como no da comédia (As alegres matronas de Windsor e A megera domada), Molière (As eruditas, Don Juan, o convidado de pedra; As preciosas ridículas e Escola de mulheres), além de Jean Racine (Fedra). O segmento maior de suas traduções encontra-se no campo da dramaturgia moderna e contemporânea. As traduções de peças em língua inglesa abrangem trabalhos dos irlandeses John Millington Synge (O prodígio do mundo ocidental), Samuel Beckett (Fim do jogo) e George Bernard Shaw (Pigmaleão); dos ingleses Somerset Maugham (A carta), Harold Pinter (A volta ao lar e Antigamente) e Arnold Wesker (A cozinha); e dos americanos Tennessee Williams (Gata em telhado de zinco quente), Arthur Miller (O preço), Edward Albee (Quem tem medo de Virginia Woolf ? ) e Neil Simon (Palhaços de ouro). A este bloco pertencem também traduções de autores menos conhecidos, como Irwin Shaw (Gente como nós), Frederick Knott (Blecaute), Mart Crowley (Rapazes da banda), Robert Patrick (Os filhos de Kennedy), Brian Clark (De quem é a vida, afinal ? ), Michael Bennett (Chorus line), Pam Gems
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(Piaf ), Marsha Norman (Boa noite, mãe) e Jules Feiffer (Pequenos assassinatos). Algumas das traduções deste subgrupo específico ligam-se diretamente a produções de grande sucesso de público, como foram os casos de Rapazes da banda e Chorus line. Também as traduções de textos alemães incluem títulos até então inéditos no Brasil – como é o caso de Marat-Sade, de Peter Weiss, Senhor Puntila e seu criado Matti, de Bertolt Brecht, A calça, de Carl Sternheim, Afinal uma mulher de negócios e As lágrimas amargas de Petra von Kant, de Fassbinder, e Quarteto, de Heiner Müller – e outros, menos consagrados e igualmente inéditos, como Grande e pequeno, de Botho Strauss. No caso dos originais traduzidos do italiano, um desafio a mais se soma aos observados nos casos dos outros idiomas: além de textos de Pirandello (Assim é, se lhe parece, Vestir os nus e Encontrarse) e de Dario Fo (Dédalo e Ícaro; O sacrifício de Isaac; A tigresa), que apontam para a ruptura da forma dramática convencional, aparecem nomes menos conhecidos no Brasil, como Franco Scaglia (Imaculada) e Furio Bordon (Últimas luas). A dificuldade técnica maior neste bloco, entretanto, associa-se à tradução dos textos originais de Sábado, domingo e segunda e Filumena Marturano, de Edoardo de Filippo, de difícil compreensão para os não familiarizados com o dialeto napolitano característico do autor. O conjunto de originais do francês tem como destaques A falecida senhora sua mãe, de Georges Feydeau, e Paloma, de Jean Anouilh, além de O fetichista, de Michel Tournier, e Anna Magnani, de Armand Meffre. Hedda Gabler, de Henrik Ibsen, O jardim das cerejeiras e Tio Vânia, de Tchecov, junto com Antígona, de Sófocles, e Lisístrata, de Aristófanes, são alguns dos principais trabalhos – modernos e clássicos – traduzidos a partir de línguas diversas das dos respectivos originais. Mas não é apenas sob a perspectiva da diversidade lingüística que se pode apresentar o conjunto das traduções teatrais de Millôr: também sob o ponto de vista dos gêneros e das estéticas dramatúrgicas é possível constatar sua diversidade, constituída não apenas no campo dos gêneros (dramas, tragédias e comédias, musicais e uma opereta, A viúva alegre, de Franz Lehar) mas também no das estéticas dramatúrgicas, abrangendo o realismo (Tchecov), o épico (Brecht), o assim chamado absurdo (Pinter) e o drama moderno contemporâneo (Miller, Tennessee Williams e Albee, para ficar só com os autores de língua inglesa).
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Embora se tivesse lançado como tradutor profissional pouco antes dos 20 anos, é apenas aos 37 que Millôr se julgará amadurecido para exercer plenamente a opção de traduzir para o palco. As traduções teatrais anteriores a essa data parecem-lhe insatisfatórias, ao contrário do que acontece com relação aos contos. Em entrevista concedida à revista Senhor ele enumera as características e os desafios inerentes a esse trabalho: As traduções, quase sem exceção (e não falo só do Brasil), têm tanto a ver com o original quanto uma filha tem a ver com o pai ou um filho a ver com a mãe. Lembram, no todo, o de onde saíram, mas, pra começo de conversa, adquirem como que um outro sexo. No Brasil, especificamente (o problema econômico é básico), entre o ir e o vir da tradução perde-se o humor, a graça, o talento, a poesia, o pensamento, e, mais que tudo, o estilo do autor10. Observe-se que as qualidades ressaltadas por Millôr (humor, graça, talento, poesia, pensamento e estilo) transcendem os limites de uma esfera puramente técnica de conhecimento e remetem a um campo mais especificamente interpretativo e crítico da relação com o texto. É precisamente este o campo em que suas traduções se destacam e se diferenciam mais drasticamente de outras preexistentes e também posteriores, constituindo, por assim dizer, um estilo “milloriano” inconfundível. Comentários específicos Embora o objetivo deste trabalho seja o de levantar aspectos gerais e introdutórios para a discussão das traduções teatrais de Millôr, torna-se necessário, a esta altura, ilustrar e discutir, ainda que de forma sucinta, aquilo que se apontou anteriormente. Com o intuito de estabelecer uma amostragem relevante (ainda que não exaustiva), serão apresentados a seguir três blocos de comentários mais pontuais: o primeiro, voltado aos procedimentos empregados nas peças consagradas da dramaturgia universal, ressaltando-se as traduções de textos shakespearianos; o segundo, destinado à discussão das características formais e temáticas mais re-
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correntes nos textos da dramaturgia moderna ou contemporânea; o terceiro destacando, dentro das colagens dramatúrgicas criadas pelo próprio Millôr, a inserção de trechos por ele traduzidos de textos de diferentes naturezas. Do cânone Um dos grandes desafios para o tradutor de textos anteriores ao século XX é a utilização de uma linguagem formal apoiada em pronomes de tratamento e em construções verbais que, via de regra, dificultam a fluência cênica e a compreensão oral imediata do texto pelo público. Permitindo-se lidar de forma pouco ortodoxa com essa questão, Millôr adota como solução o uso combinado, por exemplo, dos pronomes “tu” e “você”, como atestam os exemplos abaixo, tomados ao texto de Escola de mulheres, de Molière: Arnolfo – Isso é verdade, amigo. Acho que no teu próprio casamento você encontra motivos para recear pelo meu. Arnolfo – [...] como és meu amigo fiel, venho te convidar para cearmos juntos esta noite: eu, você e ela. Quero que você a examine e me diga depois se condena a minha escolha11. O critério que orienta essa escolha é, como já observamos, uma aproximação às formas mais próximas da contemporaneidade, tornando o texto mais prontamente compreensível pelo espectador. Um procedimento que ilustra bem esse critério é o uso do pronome átono precedendo o verbo: “Hamlet – Pra onde me leva? Fala: não passo daqui. Fantasma – Me escuta. Hamlet – Te escuto”12. Outro aspecto merecedor de atenção quanto aos procedimentos adotados neste bloco é o referente às maldições, imprecações e xingamentos, freqüentes nas peças de Shakespeare. O texto de O rei Lear é particularmente rico de exemplos, como o que ocorre na cena I do primeiro ato, em que a expressão “fi-
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lho da mãe” dá um tom mais cotidiano e coloquial à fala de Gloucester. Compare-se o que ocorre na cena IV do mesmo ato, onde Millôr opta por manter o caráter mais formal e solene da imprecação “trevas e demônios”13, empregada por Lear. Ainda em O rei Lear, a contundência dos xingamentos de Kent é trabalhada de forma a preservar a profusão, a variedade e, em alguns casos, o caráter inusitado dos termos ofensivos: Kent – [...] um alcoviteiro: no fim, uma mistura de canalha, mendigo, covarde, rufião, filho e herdeiro de uma cadela bastarda; a quem eu espancarei até que estoure em berros, se negar a menor sílaba destes títulos. [...] Kent – [...] tu, “zê” filho da puta, letra desnecessária! Meu senhor, se o senhor me permitir, vou triturar este vilão grosseiro e fazer dele massa para rebocar paredes de latrina. Respeitar minhas barbas? Pavão afeminado!14 Também a questão dos nomes das personagens apresenta características interessantes nas traduções de Millôr: em notas elaboradas para a reedição de A megera domada, ele próprio registra a mudança verificada em seu ponto de vista a respeito da conveniência ou necessidade de traduzir os nomes das personagens Merriman, Clowder, Silver e Belman: Há sempre, para o tradutor, a difícil opção de traduzir ou não os nomes próprios, pois em qualquer língua eles são uma mistura de influências culturais (imitações, ascendências e corruptelas) e, portanto, o ouvido está permanentemente acostumado a sons estrangeiros quando se trata de pessoas. Nem se notam os nomes quando um José da Silva conversa com um Gianni Ratto, um Richbieter e um Jost. No caso presente, nomes de animais, preferi, na época desta tradução, deixar no original. Hoje sou a favor de traduzir tudo15. Um exemplo de solução criativa para um termo original sem correspondência imediata no português é o da cena I do prólogo de A megera domada, onde o trocadilho implícito em “Thirdborough” é substituído por “Sentinela e sen-
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ta nela” 16. Em As alegres matronas de Windsor, os nomes próprios apresentam-se saborosamente traduzidos (Magrela, Passarinho, Nunca, Pistola e Reduzido), o que também ocorre em Escola de mulheres com a personagem Sr. de Vendaval. A preocupação em reter o sabor e a graça de certas passagens leva Millôr a tomar liberdades com as estruturas sempre que isso resulta em aumento na eficácia expressiva. É o que ocorre, por exemplo, em “quem ri o que quer é rido o que não quer”, também tomado ao texto de Escola de mulheres17. A opção por aproximar a expressão original e a linguagem corrente moderna não o impede de, paralelamente, valer-se de construções mais formais a fim de produzir, por exemplo, um efeito de ironia, como em “não tenho dúvida de que o himeneu te agradará imenso”, ainda no texto de Molière18. No que se refere às colocações pronominais, aspecto delicado nos casos dos textos clássicos, as traduções de Millôr tendem a apresentar um equilíbrio entre o emprego da norma culta e o do uso informal. Veja-se, por exemplo, o seguinte trecho, de Escola de mulheres: “Quanto ao homem, o chamam de Vandemal ou Ventamal, eu não sei bem. A mim que importa o nome? Disseram-me que é rico, muito rico, mas não dos mais sensatos. Me fizeram um retrato assim sobre o ridículo. Por acaso o senhor o conhece?”19. E de O rei Lear: “Bobo – Te mandaremos na escola da formiga para aprenderes que não se trabalha no inverno”20. Millôr opta por preservar as alusões mitológicas (Hécate, Febo etc.) utilizadas nas peças de Shakespeare, e não por parafraseá-las, o que tenderia, em princípio, a facilitar a compreensão do espectador ou leitor dos dias de hoje. Se por um lado essa opção condiz menos com a de aproximar-se das formas contemporâneas de expressão, por outro ela evidentemente preserva a integridade da concepção original, uma de suas principais preocupações ao traduzir. No caso das peças de Shakespeare deve-se destacar o tratamento dispensado às canções, trechos em que a tradução revela especial cuidado com a cadência rítmica e a utilização da métrica e da rima. São particularmente representativas, a esse respeito, as canções do Bobo em O rei Lear, das quais citamos abaixo um pequeno exemplo extraído do primeiro ato: Presta atenção, titio: Mostra menos os teus bens No que sabes não te expandas
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Empresta menos do que tens Cavalga mais do que andas Ouve na justa medida Só arrisca o que não importa Larga amantes e bebida Tranca bem a tua porta: E terás em cada vintena Mais que o dobro da dezena21. Millôr não se intimida diante da canonicidade de Shakespeare ou de Molière e não se preocupa em, estrategicamente, deixar de lado a fidelidade aos originais. As eventuais perdas semânticas são compensadas por meio de recursos que valorizam a expressividade e estimulam a fluência e a facilidade na comunicação cênica: “[…]Tuas filhas/vão te dar mais dolores do que dólares” – diz o Bobo ao rei Lear, na cena IV do segundo ato – ilustrando assim um procedimento que sintetiza o estilo aplicado aos demais textos clássicos da dramaturgia ocidental traduzidos por Millôr Fernandes. Dramaturgia moderna e contemporânea Millôr transita com desenvoltura também no campo da tradução de peças modernas e contemporâneas. O conjunto de traduções pertencentes a esta categoria possui como traço comum um caráter de ruptura da forma dramática e temas baseados na tensão entre indivíduo e sociedade. Muitas das peças deste bloco poderiam, a esta altura, ser consideradas clássicos do teatro moderno e pontos de referência para o debate da relação entre a dramaturgia e as transformações sociais produzidas ao longo do século XX. Na maioria dos casos, as traduções de Millôr representaram, como foi dito antes, o canal de chegada desses textos ao Brasil: foi o que ocorreu com as peças de Synge (O prodígio do mundo ocidental ), Pinter (A volta ao lar e Antigamente) e Fassbinder (Afinal, uma mulher de negócios e As lágrimas amargas de Petra von Kant), para enfatizar apenas três dos nomes mais cruciais. Dentro de uma perspectiva de análise dos processos tradutórios, o conjunto de textos deste bloco exigiu de Millôr uma grande familiaridade com processos
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dramatúrgicos bastante diferenciados, fazendo-o assim desempenhar um papel fundamental na história dos espetáculos e do debate de idéias no teatro brasileiro. Se é verdade que algumas dessas traduções remetem a peças trazidas ao país pelo desejo de sucesso comercial dos realizadores, isso não lhes tira o interesse enquanto registro de um período, por exemplo, como o das décadas de 70 e 80, em que o teatro em geral e a dramaturgia em particular passavam por grandes transformações de suas formas de trabalho. Millôr não parece, em seus depoimentos, se preocupar em estabelecer uma diferenciação valorativa entre traduções de peças artisticamente densas e complexas e outras de caráter mais ligeiro e comercial. Mesmo nos casos de textos desafiadores do ponto de vista da linguagem, a postura profissional é a base de sua relação com o trabalho e com a repercussão dele diante do público e da crítica. Particularmente significativo, a este respeito, é o debate que seguiu a estréia de A volta ao lar, de Pinter, texto de 1964 que Millôr traduziu em 1967 para a encenação dirigida por Fernando Torres, tendo Fernanda Montenegro, Sérgio Britto e Ziembinski, entre outros, no elenco. Acusado de ter feito inserções no texto a fim de torná-lo mais picante, Millôr escreveu um artigo intitulado “Palavrões e palavrinhas”, publicado a 31 de março de 1968 no jornal Correio da Manhã, apresentando e discutindo seu ponto de vista como tradutor: Como pouca gente me conhece é preciso que eu me defina. Sou um escritor profissional. Um escritor profissional é aquele que vive do que escreve. Eu vivo do que escrevo desde os treze anos de idade. Portanto, quando alguém me acusa de uma desonestidade intelectual, eu sou obrigado a me defender para que a minha clientela (o público que me paga) não me abandone. No caso presente fui acusado pelo jornal O Globo de ter feito poderosos enxertos na peça de Harold Pinter, A volta ao lar, a fim – acredito que seja essa a minha intenção – de torná-la mais picante. Ora, como não coloquei na rubrica da peça que se trata de uma tradução livre ou de uma adaptação, a acusação passa a ser grave. Daí este artigo22. “Palavrões e palavrinhas” constitui-se num documento da maior importância não apenas para o exame dos procedimentos de Millôr, ilustrados e ana-
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lisados por ele próprio, mas também pelo aspecto de testemunho da situação política e cultural do país diante da censura imposta pelo regime militar. Sob este ponto de vista, o interesse do texto transcende o campo específico da tradução, já que o aspecto questionado no trabalho de Millôr foi mais precisamente a presença da linguagem considerada violenta e vulgar, e não a pertinência do emprego desta dentro da situação vivida pelos personagens da peça. Chamando a si a tarefa de confrontar o original com a tradução, Millôr seleciona alguns dos casos mais representativos dentre as 50 ocorrências de termos ditos chulos por parte da censura. Segundo ele, o mais inusitado na discussão provinha do fato de a propalada violência da linguagem ser decorrência de um contexto social igualmente violento: A retirada dos palavrões poderia tornar a peça menos autêntica, mas não alegraria os profissionais da pudicícia tornando-a menos escabrosa. Tire O Globo todos os palavrões desta peça e não terá tirado dela a cena básica em que a personagem principal se entrega ao cunhado meio-sobre-o-débilmental na presença do marido intelectual, do cunhado proxeneta, do pai amoral (sempre apavorado pelo fantasma do homossexualismo que ronda a família), do tio que, ao que tudo indica, trabalha também no setor dos andróginos. Todos assistem tranqüilos à cena lúbrica, contentando-se apenas em fazer comentários técnicos sobre a atuação do casal erótico. A cena pode ser tétrica ou hilariante, dependendo dos atores e diretor, mas está muito além da imoralidade representada por qualquer palavrão23. Millôr questiona, ainda, a coerência das próprias opiniões de Pinter citadas em O Globo, nas quais o dramaturgo inglês afirmava não estar de acordo com a “mentalidade liberal” que consistia em franquear o uso de linguagem obscena. Em uma das notas do artigo escrito em resposta, Millôr comenta, a propósito da cena referida acima: “Essa cena torna inacreditáveis as declarações de Pinter, sobretudo se considerarmos que ela foi interpretada pela atriz Vivien Merchant, mulher do autor”24. O caminho assumido por Millôr – o de optar sempre pelos termos mais fortes na tradução da peça – decorre da própria natureza do material dramatúrgico original, fato que é discutido com minúcia em uma série de diferentes pas-
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sagens originais da peça, examinadas caso a caso. “Esclareço apenas, para bem da verdade, que, sendo o ato de traduzir uma constante opção, pois é comum uma expressão de uma língua não ter o mesmo peso em outra, eu, em português, optei sempre pela expressão mais forte. Meu crime, se existe, é apenas o de não acreditar em frescuras lingüísticas”25. A importância de Millôr como tradutor da dramaturgia moderna e contemporânea transcende em muito os limites de extensão estabelecidos para este trabalho. Inúmeras outras perspectivas de discussão das peças deste grupo poderiam ser de interesse, dada a diversidade e a relevância dos títulos trabalhados; seria possível fazer, por exemplo, uma análise específica do bloco de traduções da dramaturgia americana, cuja influência é decisiva no processo de renovação da escritura dramatúrgica no Brasil na segunda metade do século XX. Numa outra direção, seria possível examinar as soluções adotadas nos textos escritos no período de preparação e de consolidação da modernidade, caso de Tchecov, Synge e Pirandello, ou talvez, numa terceira opção, investigar, no campo das traduções de peças modernas alemãs, o fato de Millôr, conhecedor do idioma original, ter se aproximado tão pouco da dramaturgia de Bertolt Brecht26, cujo trabalho, no período pré-64, havia sido ponto de referência para importantes transformações do teatro brasileiro e para o debate político produzido por ele. São perspectivas de pesquisa ainda a serem desenvolvidas e que poderão trazer dados importantes para o estudo do teatro, de seus mecanismos expressivos e de sua participação na dinâmica cultural do país. Um dado importante a ser ressaltado é o fato de Millôr haver tomado a estrutura do enredo de Os filhos de Kennedy, do norte-americano Robert Patrick como mote para a criação de Os órfãos de Jânio, balanço do conturbado período da vida política e cultural do país nos anos imediatamente posteriores à renúncia do presidente Quadros. A referência paródica sugerida no título serviu de pretexto para uma peça formalmente análoga, escrita como um contundente painel político de uma geração, documento dramatúrgico representativo de um período de revisionismo das experiências da década de 60. Colagens dramatúrgicas As colagens lítero-dramático-musicais, criadas durante o período de resistência ao golpe militar de 64, foram um dos mais importantes instrumentos
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do teatro no sentido de driblar a censura e colocar em cena o impasse político vivido pelo país. Millôr Fernandes teve participação direta no surgimento desse gênero de espetáculos, tendo sido, também, o responsável por alguns dos mais expressivos exemplos dele, como Liberdade liberdade, O homem do princípio ao fim e A história é uma istória. Dotadas de um caráter formalmente híbrido, as colagens também envolveram a utilização de trechos traduzidos, muitos dos quais inéditos e elaborados especificamente para essa finalidade. O homem do princípio ao fim, por exemplo, remete a um repertório de textos estrangeiros que vai de George Bernard Shaw a James Joyce, passando por Shakespeare e Molière. A natureza temática dos recortes realizados impõe ao ato da tradução um desafio técnico considerável, que é o de apropriar-se funcionalmente do conteúdo da cena selecionada para inseri-la numa nova ordem de significação. Millôr soube tirar eficácia expressiva desse mecanismo de composição, que exerceu com inegável envolvimento, como comprova a defesa que faz do gênero no prefácio de O homem do princípio ao fim. O caráter do material traduzido ressalta, nas colagens, aquilo que se poderia chamar, em termos genéricos, de um humanismo inerente ao trabalho e ao pensamento de Millôr. Lançar mão de cenas e de fragmentos célebres – o solilóquio de Ricardo III, o monólogo do quinto ato de Macbeth e o de Molly Bloom no capítulo final de Ulisses – deixa entrever, de sua parte, o apreço por um repertório ligado às matrizes da cultura ocidental e às formas por ela consagradas de realização literária e teatral. Trabalhar essas referências em chave alegórica foi, sem dúvida, a grande senda aberta por Liberdade liberdade, espetáculo inaugural do gênero e matriz para todas as variantes que viriam a surgir nos anos posteriores. Abrindo-se com trechos do Hino da Proclamação da República, seguidos de referências a textos de Louis Jouvet e Jean-Louis Barrault sobre o ofício teatral, a peça realiza uma súmula histórica das lutas libertárias, mobilizando um repertório inventariado ao final e acrescido de um significativo esclarecimento: “Neste exaustivo trabalho, os autores leram setenta e cinco livros, além dos três ou quatro que já tinham lido antes, gastaram nove resmas de papel e picotaram a paciência de dezessete eruditos e da Editora Civilização Brasileira”27.
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Enquanto exercício combinado de criação autoral e tradutório, Liberdade liberdade resume exemplarmente o conjunto de valores artísticos e políticos que serviram de base ao trabalho de Millôr Fernandes. Dentro de sua obra, o campo da tradução teatral constitui-se numa área imprescindível para todos os que desejam aprofundar o debate acerca da dramaturgia no país.
Maria Sílvia Betti, doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, é professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, na área de Estudos Lingüísticos e Literários em Inglês. Publicou Oduvaldo Vianna Filho (São Paulo: Edusp, 1997) e traduziu O método Brecht, de Fredric Jameson (Petrópolis: Vozes, 1999).
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Ver especialmente Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977. Ver Dicionário de teatro. Tradução dirigida por Jacó Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999, pp. 413-4. Idem, p. 96. Rio de Janeiro, 6 de fevereiro de 1980. Arquivo Otto Lara Resende, Instituto Moreira Salles, São Paulo. Entrevista para a revista Senhor, 1962. In: SHAKESPEARE, William. A megera domada. Porto Alegre: L&PM, 1979, p. 6. Millôr definitivo – A bíblia do caos. Porto Alegre: L&PM, 2002, Coleção Pocket, p. 562. Idem, p. 164. Ver Walter Benjamin: tradução e melancolia. São Paulo: Edusp, 2002. Idem. A megera domada, edição citada, p. 6. Rio de Janeiro: Nórdica, 1974, pp. 7, 12-13. SHAKESPEARE, William. Hamlet. Porto Alegre: L&PM, 2003, Coleção Pocket, p. 30. SHAKESPEARE, William. O rei Lear. Porto Alegre: L&PM, 2003, Coleção Pocket, pp. 8, 35. Edição citada, pp. 49-50. Edição citada, p. 164. Em nota ao final da referida edição de A megera domada, à página 164, diz Millôr: “ ‘Sentinela’. No original Thirdborough. Sly responde com um trocadilho imbecil: ‘Third, or fourth or fifth borough’. Em geral as traduções esbarram nos trocadilhos e passam por cima com uma nota (ou nem isso): ‘Expressão intraduzível’, e o Bardo dá mais uma volta em seu túmulo. Não há expressões intraduzíveis, sobretudo em criações dramáticas e poéticas, que permitem uma ampla variação de escolhas. Thirdborough, que alguns comentaristas dão como corruptela de Fridborgh, ‘garantia de paz’, significa para outros uma corruptela de Frith, também paz. Pensei, primeiro, em colocar na boca da estalajadeira: ‘Vou chamar o guarda do quarteirão’, com Sly respondendo: ‘Quarteirão ou quintilhão’. Mas duvidando da validade urbanística do termo ‘quarteirão’ no século XVI, preferi a palavra ‘sentinela’, o que dá também uma forma mais simples à resposta de Sly: ‘Sentinela e senta nela’ ”. Edição citada, p. 9. Idem, p. 46. Idem, p. 27 (o grifo é meu). Edição citada, p. 58. Edição citada, pp. 30-1. “Apêndice – Palavrões e palavrinhas”. In: PINTER, Harold. A volta ao lar. São Paulo: Abril Cultural, 1976, Coleção Teatro Vivo, p. 123. Idem, p. 125 Idem, p. 129. Idem, p. 126. A única peça de Brecht que Millôr traduziu foi O senhor Puntila e seu criado Matti. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. FERNANDES, Millôr; RANGEL, Flávio. Liberdade liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 154.
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Raciocínio sobre o papel Sheila Leirner Não faço arte pela arte, nem arte contra arte. Sou pela arte, mas pela arte que não tem nada a ver com arte, pois a arte tem tudo a ver com a vida. Robert Rauschenberg1 A beleza compõe-se de cabeça, tronco e membros e usualmente é casada com outro. Millôr Fernandes2 A arte é o mais curto caminho do homem ao homem. André Malraux3 Viver é desenhar sem borracha. Millôr Fernandes4 Uma linha é um ponto que foi passear. Paul Klee5 Arte é intriga. Millôr Fernandes6 Cachorros e gatos são feitos pelo homem. Eu também desenho leões [...] Desenhar é uma forma de raciocinar sobre o papel. Saul Steinberg7
Não há dúvida de que cada pessoa é única. Mas algumas são mais do que as outras – e Millôr Fernandes é uma delas. Não há ninguém como ele na história da arte brasileira. Isto, não por causa da sua genialidade como cartunista ou das suas qualidades como artista plástico, mas graças à maneira como con-
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segue combinar as duas coisas no mesmo corpo de trabalho. Millôr não oscila entre o lado sério e o engraçado, como fazem alguns. Ambos aspectos são intrínsecos a todas as imagens que encantam e divertem o seu público há décadas. De forma paradoxal, são justamente essas virtudes que atrasam o seu reconhecimento como um dos mais importantes artistas brasileiros. Apesar da incontestável consideração e celebridade alcançadas, até hoje Millôr não é aceito, como deveria, no rol dos que contribuíram de fato para a construção da arte moderna em nosso país. Ele não é o “artista sério” da “alta arte”, aquela que se baseia em “programas” conceituais ou estéticos. Não é o artista “coerente”, “operário”, “persistente” de uma “linha pictórica” ou de um “caminho gráfico”. Tampouco é o adepto do “bom gosto” que muitas vezes se confunde com os valores “modernos”, a “autenticidade” ou a “originalidade”. Ao contrário, Millôr não se dirige à elite cultural e muito menos à dos iniciados em artes plásticas que costumam julgar os artistas sobretudo em conseqüência das referências que estes não raro fazem ao processo e aos códigos artísticos internacionais. Millôr é – como escrevi em 1981 por ocasião do lançamento de seu primeiro livro de desenhos, prefaciado por Pietro Maria Bardi e apresentado por Antônio Houaiss – único nessa marginalidade de escritor de quadros e pintor de escrituras, desenhista do pensamento, cartunista do literário, crítico do grafismo e humorista da tragédia. Alguém que está fora de qualquer categoria, livre para pensar, como Saul Steinberg, norte-americano nascido na Romênia, para quem, conforme vimos, “desenhar é uma forma de raciocinar sobre o papel”. E de ver as cenas do mundo – também como aquele genial artista – “com uma assinatura bem embaixo, no canto direito”8. E, no entanto, as obras contidas naquele livro, Desenhos – editado à sua revelia –, talvez não fossem as melhores ou as mais significativas. Além do que, a forma que os editores escolheram, baseada quase que inteiramente no catálogo da exposição de Saul Steinberg no museu Whitney de Nova York em 1978 e prefaciada pelo crítico Harold Rosenberg, talvez também não fosse a mais adequada ao trabalho irreverente e anticonvencional de Millôr. Creio que eu estava certa em dizer que, em vez do registro de uma obra sem par neste país, o seu trabalho exigiria muito mais um livro “de artista”, do que “sobre o artista” como a “coroação” de uma carreira realmente excepcional.
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Pois um livro de artista ultrapassa a sua mera condição de “suporte de reproduções” para tomar a forma de uma verdadeira obra narrativa, representando, em última análise, a forma e a originalidade do clima poético que propõe. Ou seja, um livro de artista é um objeto de arte em si, e é isto que eu imaginava para uma obra como a de Millôr que, singularmente, reúne todas as linguagens em um só bloco de ação. Afinal, Millôr já tinha compreendido muito antes de 1981 que ele era uma “anomalia” na cena artística brasileira. Um gênio cômico que – apesar de todas as gerações de admiradores e seguidores de suas aparições (em A Cigarra, O Cruzeiro, Correio da Manhã, O Pasquim, Veja, Istoé, Jornal do Brasil, O Dia, O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e outros periódicos) e das exposições que realizou no circuito dos museus e galerias – jamais pertenceu realmente àquela esfera. Tinha entendido que a sua experiência do mundo e da arte é de ordem totalmente diversa. Millôr é o arquétipo do intelectual que criou uma vocação – um talento cômico – a partir do puro alheamento diante das práticas correntes da vida brasileira. O Brasil é, aliás, o seu grande tema e a sua visão do nosso país sempre foi a de um confuso e mordaz observador dos exóticos usos e costumes “tribais”. Assim como Jorge Luis Borges – que teve o seu “labirinto” esplendidamente representado por Millôr numa ilustração de 1993 [como se pode ver na seção “Inéditos/Manuscritos/Desenhos” destes CADERNOS]–, cujo estilo e linguagem marcadamente argentinos o elevam à escala universal, Millôr também parte do Brasil para abarcar todo o resto. Conforme afirmou o crítico Fausto Cunha, ele descreve “o homem como ele sempre foi e será”9. Enquanto artista, Millôr sempre encontrou mais inspiração nas ruas, na literatura e no teatro do que nos museus. Sobre os temas humanos, ele é um verdadeiro visionário. Em muitos pontos de vista, hoje a vida carioca parece cada vez mais com os desenhos de Millôr dos anos 50 aos 70. Talvez nem a enxergássemos sob determinados ângulos se não fosse ele. E, nesse aspecto de seu trabalho, o artista não parece muito dado à falsa modéstia. Ele compreendeu rapidamente que poderia usufruir de certas vantagens sendo um selfmade man, vindo de um meio modesto e órfão já na tenra infância. Com apenas 15 anos iniciou a sua carreira de jornalista e a tarefa de decodificar um terreno cultural e social pouco familiar. Foi isto, talvez, que lhe abriu o cami-
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nho da franqueza em seu desprezo – ou quem sabe apenas compaixão? – pelas falhas que enxergava nas gerações contemporâneas. Afinal, em vez de se interessar, como ele, por campos inexplorados, a maior parte de seus colegas artistas se ocupava em copiar o que chegava do estrangeiro, sobretudo por meio das Bienais. E, entretanto, o Brasil (e o mundo) era (e é) um “paraíso” de investigação, alegrias, infelicidade, temas para a crítica e também para a exaltação. Estas frases dizem muito do campo de observação, mas principalmente do observador humorado que se debruça sobre ele: Um otimista é uma pessoa que não tem certeza sobre o futuro desse país. O Brasil é realmente muito amplo e luxuoso. O serviço é que é péssimo. O brasileiro é o único ser humano que acredita que pode se aperfeiçoar. Este é o país onde há a maior possibilidade de se criar um mundo inteiramente novo. Caos não falta. Todos os países são difíceis de governar. Só o Brasil é impossível10. Enquanto muitos se voltavam para o Concretismo, o Neoconcretismo, a Abstração contra o Figurativismo e as discussões sobre os prêmios nas Bienais paulistas, Millôr atingia as coisas ainda intactas. E criava trabalhos absolutamente excêntricos e inclassificáveis. Nas décadas seguintes àqueles movimentos e debates, de vez em quando surgia uma árvore composta pela colagem de pássaros (Prevenido, de 1960) ou o Admirável mundo novo (também de 1960), em que uma espécie de hippie sinistro carrega um confuso e abstrato cartaz/pintura, signo de uma época em aflição. Muitos anos depois apareceria “Arte é intriga” (1987), um dos primeiros desenhos que fez em computador; um outro, semiabstrato e cor chocolate, com o título O que é?” (2000), vinha assinalado “PréPollock” [ambos também incluídos em “Inéditos/Manuscritos/Desenhos”]. Datam das décadas de 60 e 70 os melhores exemplos da crítica corrosiva exercida por Millôr, quando ele enfoca justamente as artes plásticas, como em O concreto, Estúdio, Exposição (para o famoso “O Pif-Paf ” ), Pôr-de-tudo, O ponto de vista do quadro, Enterro de Mondrian, A abertura, Pôr-do-sol acadêmico, Arte. Alguns destes desenhos ironizam as fórmulas de linguagem da História da Arte (Op-art, Concretismo, Abstracionismo etc.), sem dúvida tão falsas e auto-evi-
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dentes quanto a figura de Papai Noel ou o ovo de Páscoa. A série genial criada sob o pseudônimo de E. Vão Gôgo – Burro, burro, burro, Pássaro ao longe visto de perto, E seu cão, Chegada, Como um jardim da infância, Um amor enorme, o já citado Estúdio e muitos outros ainda – é absolutamente analítica e impagável. Não há dúvida de que, por estas razões, Millôr deve ter sentido muito mais afinidades com os colegas jornalistas, poetas, músicos e escritores do que com os artistas plásticos. Alguns como Péricles Maranhão, criador do notável O Amigo da Onça, com quem dividiu a série de humor negro Joãozinho, o monstro nos anos 50, podiam partilhar realmente a sua visão do mundo e da vida brasileira; outros representavam até mesmo o análogo teatral, literário ou musical do autor. Os laços de amizade com Nelson Rodrigues, Paulo Francis, David Nasser, Jean Manzon, Alfredo Machado, Emil Fahrat, os irmãos Chico e Paulo Caruso, Sérgio Porto, Vinicius de Moraes, Luiz Sérgio Person, Rubem Braga, Jaguar, Fernanda Montenegro, Arthur Moreira Lima, Ziraldo, Ivan Lessa, Fortuna, Henfil, Leon Eliachar, Jô Soares, entre tantos outros, falam muito destas afinidades. Para o aniversário de Carlos Drummond de Andrade, ele dedicou a graça deste haicai: “Que responsabilidade: /75 anos/de Andrade”. Por outro lado, se Saul Steinberg podia preferir se identificar com escritores como o Vladimir Nabokov de Lolita, que, de fato, é um análogo literário de sua própria visão da vida norte-americana, creio que a identificação de Millôr Fernandes com autores do porte de George Bernard Shaw, Bertrand Russell (“Pensador nato, gozador nato, desmi(s)tificador nato”, segundo – e igual a – Millôr), Somerset Maugham e mesmo Bertolt Brecht e William Shakespeare são igualmente evidentes. “Desculpem, mas todo grande pensador, sobretudo pensador social, é um humorista. O riso explode, à primeira vista, quando uma grande verdade social é enunciada de maneira clara e comunicativa”, afirma Millôr em seu artigo “Pensadores humoristas”11. Porém, ao comentar Proudhon, Brecht, Shaw ou Russell naquele artigo, e ao pedir “desculpas” pelo comentário, Millôr não estaria falando também de si próprio? Ele parece, portanto, mais dado a ponderar qual é o seu papel na história do que na arte. Não gosta que o considerem como um “cartunista” e imagino que talvez prefira o seu lado de escritor. Certa vez, o crítico Hilton Kra-
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mer, do New York Times, escreveu que Steinberg tinha em seus desenhos “a leveza e a verve de Mozart”. Steinberg respondeu a Kramer prontamente, muito feliz por ter sido comparado a Mozart, acrescentando que ele de fato pertencia à tradição dos chamados artistas estóicos como Mozart, Tchekov e Colette. Um trio singular e inexplicável quando se pensa em Steinberg. Contudo não me admiraria que Millôr afirmasse o mesmo. Se os seus argumentos forem como os seus desenhos – alegóricos e provocadores –, certamente não haverá ali muito espaço para a interrogação. Deve ser por isso que ele, seja qual for a sua linguagem, é pleno de rápidas transições, inesperadas incongruidades. E – apesar da aparente destreza de suas frases, provérbios, haicais, “reflexões sem dor” etc. – repleto também de implícitas e terminantes recusas em ser compreendido com muita facilidade. Millôr é um artista – e um pensador – mais profundo do que se possa imaginar. E aqui podemos lembrar as palavras de Harold Rosenberg novamente a propósito de Saul Steinberg, pois elas se aplicam como uma luva: “Ligando a arte à consciência moderna, nenhum artista é mais relevante do que ele. O fato de que se mantém como um estrangeiro ao ‘mundo-da-arte’ é um problema ao qual o pensamento crítico da arte deve se obrigar a fazer face”12. Parentesco Assim, uma das razões pelas quais Millôr não é aceito como deveria no circuito das artes plásticas reside igualmente no fato de que ele não pertence a grupos, a igrejinhas. Além de ser livre, não possui semelhantes em nosso país – quer dizer, artistas obstinados pelas relações entre o indivíduo e a sociedade e pelas formas variáveis que eles podem tomar. Na Europa e nos Estados Unidos, talvez. Lá, existem parentescos com os mais radicais, como os ingleses Gerald Scarfe e Ralph Steadman, o alsaciano Tomi Ungerer, os franceses Claude Serre, Michel Bridenne, e o alemão Wilfried Gebhard. Além, é claro, dos franceses Siné (Maurice Sinet) e Jean Effel (François Lejeune), do inglês Tim (William Tymym), e do eterno Saul Steinberg, tão conhecido dos leitores da revista The New Yorker e que, como Millôr, zombava das injunções do progresso e cujo estilo gráfico impertinente teve profunda influência sobre os jovens criadores do pós-guerra.
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Paralelamente à caricatura tradicional – representada nos Estados Unidos por David Levine, cujos retratos se inspiram nas xilogravuras do século XIX –, desenvolveu-se uma forma de desenho de humor que se interessava menos pelos fatos sociais do que pelas atitudes culturais, morais e estéticas. Já o processo da forma, magistralmente domesticado por Steinberg, que desnuda a linha liberando-a de toda confusão com aquilo que ela é levada a representar, é o mesmo de Millôr quando ele desenha a série Pessoas (1975-77). Aqui, o traço se torna o presente insubmisso de todas as formas que, num mesmo movimento, o artista faz e desfaz. Elas prestam contas do vazio e do cheio em todas as suas situações. Podemos trazer, do mesmo modo, à memória, o belga Jean-Michel Folon ou, mais recentemente, Gébé (Georges Blondeau), com seu terrível personagem Berk, que devora as rosas, os corvos vivos e os intelectuais; os franceses Jacques Carelman e suas quinquilharias delirantes; e Roland Topor, com as suas alegorias oníricas. Pode-se dizer que, depois dos anos 50, os artistas gráficos deram praticamente a volta completa pelo desenho. Este aparece hoje como o fio de um tecido que foi inteiramente desfeito e recomposto na trama fechada de uma realidade reconhecida por todos. Serre, por exemplo, como Millôr, coteja o sofrimento, a miséria e o burlesco. Ambos apontam os vícios da sociedade e provocam o encontro entre cenas cômicas em momentos graves, o que cria todo o charme de seus desenhos. Para a caricatura, o desenho de humor e os quadrinhos, tudo foi posto em jogo entre 1960 e 1980. Tratava-se da época da famosa publicação francesa Hara-Kiri, com Georges Wolinski, Cabu ( Jean Cabut), Fred (Othon Aristides) e, principalmente, Jean-Marc Reiser, que se empenhava em quebrar os tabus relativos à moral e às proibições concernentes à linguagem. Reiser impunha um traço dilacerado, parecido com o dos maus alunos em seus cadernos escolares antes da invenção da caneta Bic. Ao lado dessas provocações gráficas, as séries do americano Jules Feiffer, em Nova York, no Village Voice, podiam parecer polidas. E, no entanto, aí está outro artista que se pode colocar em paralelo a nosso Millôr. Pois Feiffer representou uma das críticas mais ferozes da esquerda intelectual norte-americana. As suas seqüências gráficas usualmente recortavam um
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monólogo em uma série de réplicas que terminavam por uma “queda” de rara crueldade. Várias vezes ele se contentava em reproduzir o mesmo perfil de pessoa, enunciando propósitos lacônicos e sentenciosos. O análogo francês de Feiffer foi Claire Bretécher, que retomou com sucesso esse tipo de desenho crítico na revista Le Nouvel Observateur. Todavia, se existe um gênero no qual os artistas norte-americanos se esmeraram durante o período de contestação que acompanhou a Guerra do Vietnã, foi o dos quadrinhos. Millôr também experimentou enveredar por este caminho, porém as nossas condições sociopolíticas eram talvez menos funestas. As interrogações sobre os valores da sociedade norte-americana estiveram nos célebres Fritz, the Cat e Mr. Natural, de Robert Crumb. Ali, a obsessão sexual servia de fio condutor. Em seguida, apareceram nomes como Victor Moscoso, Vaughn Bodé, Richard Corben. Já nos anos 50, a equipe da revista Mad, dirigida por Harvey Kurtzman, tinha aberto o caminho à contestação, dedicando-se a uma paródia sem perdão dos quadrinhos clássicos e insossos ainda publicados nos jornais dos Estados Unidos. Mas é impossível não pensar também no norte-americano James Thurber, escritor e desenhista como Millôr Fernandes, que se dedicava à descrição misógina das relações conjugais (e cujos textos Millôr apresentou na colagem teatral O homem do princípio ao fim). Ou no inglês Ronald Searle, que – ao contrário – preferia ser o cronista dos pequenos absurdos da vida cotidiana, sempre sob os olhos benevolentes de animais domésticos que “já tinham visto isto antes…”. Suas alegorias, como a do prazer de beber, às vezes representadas por um simples e triunfal ato de abrir uma garrafa, suas inúmeras imagens cômicas sem palavras lembram as de Millôr quando este observa o mundo fechado em sua lógica absolutamente inepta. Entretanto, se o leitor fizer uma comparação com o trabalho de Thurber, este último parece frágil, inocente e mesmo intimista ao lado de Millôr. A sua “guerra entre os dois sexos” é uma comédia doméstica de colarinho-branco, enquanto o inventário da vida cotidiana de Millôr, assim como o de Steinberg e de Siné, atinge às vezes a qualidade cáustica de Viagem ao fim da noite, de Louis-Ferdinand Céline. Um pouco mais jovem que Millôr, Siné, igualmente impressionado pelo grafismo de Steinberg, que os franceses descobriram depois da Segunda Guer-
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ra Mundial, explorou da mesma forma as variações mirabolantes que se emancipavam de um simples jogo de palavras à introdução de uma representação insolente, sob um fundo de nonsense. Enquanto Millôr desenhava suas “numerosas pessoas” (1979) com hilariantes cabeças em forma de números (outro trabalho incluído nestes CADERNOS), ou criava a engraçada “composição gestaltiana” ABCdário (publicada pela primeira vez em 1958 em O Cruzeiro e “reescrita” durante anos), Siné associava a palavra chat (gato) com renton – “Chat renton” (em alusão a Charenton, o famoso hospício onde ficou o Marquês de Sade) – para intitular o delicioso desenho de um gato vestido com uma camisa-de-força e um regador na cabeça… Assim como Tim e Jean Effel, toda a carreira desses artistas iconoclastas e anarquistas se desenvolveu sob o signo da subversão. Se Tim denunciou o holocausto e combateu na revista L’Express a política gaullista em nome da independência argeliana, Millôr não deixou de criticar e ironizar em O Pif-Paf e em O Pasquim a ditadura no Brasil nos anos 60 e 70 (o que, aliás lhe valeu a proibição da publicação O Pif-Paf no oitavo número). Com os seus desenhos provocativos, e também por meio de outras linguagens, Millôr introduziu dinamite num humor que não cessou de caracterizá-lo e de lhe criar problemas. Já entre um desenho de Millôr e um do francês Honoré Daumier (18081879), as diferenças são evidentes. Claro, os adversários, escolhidos não são os mesmos. Além do que, o humor gráfico contemporâneo está mais perto de Grandville ( Jean Ignace Isidore Gérard, 1803-1847) do que de Daumier, mesmo que Baudelaire desconfiasse de Grandville, este “espírito doentiamente literário”13. Estaríamos, porém, completamente errados em pensar em termos de oposição, pois a subversão do desenho de Millôr e o desrespeito da sátira política de Daumier se tocam de alguma forma. Se pensarmos, contudo, na pouca indulgência de Millôr Fernandes com o mundo moderno, uma boa parte de sua atividade como jornalista parece surpreendente. Ao tratar os seus temas, ele – assim como Tomi Ungerer – escapa muitas vezes por meio da fantasia e do humor, como se realizasse álbuns para crianças. Empenha-se no universo da infância com grande delícia, como se encontrasse ali, se não um mundo sem conflitos, pelo menos um campo paralelo onde os embates estão ainda apenas latentes.
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Este mecanismo, que tende a desmentir a realidade e a salvaguardar o prazer, poderia se resumir apenas num processo regressivo, se ele não contivesse, simultaneamente, o “eu parodista” de Millôr, que olha com comiseração o seu lado frágil e infantil. Desta forma ele se (nos) poupa a dor do princípio de realidade, sem no entanto deixar de mostrar esta realidade. Também não precisa explicar ou convencer. No lugar do proselitismo verbal ou pictórico, termina por representar apenas um comportamento que toca a sublimação e, não raro, revela uma visão espiritual que está mais próxima da ética do que da estética. Não só Millôr não mudou desde os tempos em que teve o seu primeiro e cândido desenho vendido para O Jornal (1934), como também não mudou o meu ponto de vista sobre o seu trabalho. Como escrevi há mais de 20 anos, além de continuar a ser um “escritor sem estilo”, Millôr Fernandes continua também, para nossa alegria, um desenhista que rejeita o estilo. Pertence ao rol daqueles que não dependem das máscaras que dão corpo aos sentimentos, pois apresentam os sentimentos como eles são. Confusos, sem uniformidade, paradoxais, mas genuínos. Coerentes apenas com a linha brilhante do seu pensamento e a sensualidade, humor e vitalidade do seu temperamento.
Sheila Leirner é crítica de arte. Foi curadora-geral da 18ª e da 19ª Bienal Internacional de São Paulo (1985 e 1987). Escreveu Arte como medida (1982) e Arte e seu tempo (1991), ambos publicados pela editora paulista Perspectiva.
NOTAS 1 Entrevista à revista Artforum, fevereiro de 1974. 2 In Millôr Online (www.millor.com.br). 3 In Les voix du silence. Paris: Gallimard, 1951. 4 In Millôr definitivo – A bíblia do caos. Porto Alegre: L&PM, 2002, Coleção Pocket, p. 586. 5 In Écrits sur l’art 1 - La pensée créatrice. Paris: Dessain et Tolra, 1980. 6 In Millôr definitivo – A bíblia do caos, edição citada, p. 38. 7 In Saul Steinberg. Catálogo da exposição realizada no Whitney Museum, de Nova York, em 1978; prefácio de Harold Rosenberg. 8 Idem. 9 “Millôr: um humorista, um clássico”. In Situações da ficção brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970, p. 101. 10 In Millôr Online. 11 In O Pasquim. Rio de Janeiro, 12 e 19.02.79. 12 In Saul Steinberg, edição citada. 13 “Alguns caricaturistas franceses”. In Poesia e prosa. Tradução de Joana Angélica D’Ávila Melo. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 757.
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O sublime às avessas NOTA SOBRE HUMOR E RISO NA FILOSOFIA Márcio Suzuki O sublime e o risível são um passo além do mundo da bela aparência, pois em ambos os conceitos se sente uma contradição. Por outro lado, não são de modo algum congruentes com a verdade: são um velamento da verdade, o qual de fato é mais transparente que a beleza, mas ainda um velamento. Neles, temos portanto um mundo intermediário entre beleza e verdade: nesse mundo, uma união de Dioniso e Apolo é possível. Friedrich Nietzsche1
Em seu estudo acerca das diferentes definições de humor, o estudioso de Literatura Comparada Fernand Baldensperger relembra uma anedota segundo a qual um inglês, um francês e um alemão foram convidados a dar uma definição do camelo: O inglês arrumou as malas, se mandou para o Oriente e fez o relato de suas expedições: o camelo tinha, com efeito, um certo lugar na relação de suas aventuras. O francês foi ao Jardim da Aclimação e trouxe de lá as notas de um cintilante folhetim. O alemão se fechou no silêncio de seu gabinete e tirou, das profundezas do intelecto, o conceito do camelo em si...2 A anedota citada pelo professor francês ilustra com perfeição o caminho percorrido pelo humor na estética européia do século XVII ao século XIX: seu surgimento na literatura e filosofia britânicas, sua aclimatação “mundana” na França iluminista e sua “espiritualização” pelo Romantismo alemão. Sem querer ob-
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viamente esgotar a questão, o presente estudo vai se ater a esse último momento, a fim de tentar mostrar que mesmo uma filosofia tão sisuda como a de Kant pode trazer subsídios interessantes para ajudar a compreender melhor o significado do riso e do humor. Com isso, queremos dizer que a crítica transcendental kantiana também esteve bem longe de poder dar a conhecer o humor em si. Se seguirmos as indicações do belo livrinho de Quentin Skinner3, seremos obrigados a dizer que, ao longo de sua história, a filosofia reservou um lugar não propriamente dignificante ao riso, pois em geral, como mostra muito bem o estudioso inglês, ele foi tratado como um fenômeno fisiológico que acompanha determinadas paixões humanas e, mais precisamente, determinadas paixões negativas. Foi assim desde a Antiguidade. Em Platão, o riso é uma maneira de reprovar o vício. Para Aristóteles, ele se explica, na Retórica, como uma zombaria que tem sua fonte no desprezo. Na Poética, o riso é considerado “uma parte do feio”: como ingrediente da comédia, ele tem sua origem nalgum erro ou deformidade das personagens, erro ou deformidade estes que são “inócuos”, isto é, não devem causar nem dor nem destruição. Segundo o mesmo Quentin Skinner, a concepção do riso como forma de punição do vício e exteriorização do desprezo ganhou uma espécie de corroboração na tradição da medicina hipocrática, segundo a qual faz bem para a saúde rir-se das fraquezas humanas. Essas duas correntes, a filosófica e a médica, acabaram constituindo o que ele chama de “teoria clássica do riso”. As retóricas de Cícero e Quintiliano teriam aceitado sem mais discussões a validade dos pressupostos dessa teoria e, apesar das dúvidas lançadas sobre ela por humanistas do Renascimento, ela persiste viva e forte nas obras de Thomas Hobbes e de René Descartes. Como lembra outro estudioso do século XVIII, ela ainda vigora em Jean-Jacques Rousseau4. Alguns resquícios da teoria clássica, principalmente em sua vertente medicinal, permanecem perceptíveis mesmo na crítica que Nietzsche endereça à concepção hobbesiana do riso. Para Nietzsche, o riso seria prerrogativa de deuses-filósofos, que saberiam “rir de uma maneira nova e sobre-humana” (übermenschlich) das fraquezas dos homens: deuses são “trocistas” ou, em outra tradução, “têm prazer na troça” (Götter sind spottlustig)5. Para a teoria clássica do riso, como se verá a seguir, o movimento que identifica um defeito, uma fraqueza, um vício é o mesmo que instaura uma relação de superioridade em relação a essas fragilidades. Neste sentido, pode ser interes-
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sante fazer um confronto dessa teoria com a explicação freudiana do humor como sendo transposição de grandes cargas de investimento do ego para o superego. A situação de humor espelha, para Freud, a relação entre pai e filho: o humorista se coloca numa posição de superioridade (Überlegenheit) em relação ao objeto do humor, porque em tal situação pretende desempenhar, em relação aos outros, o mesmo papel de um adulto ou de um pai em relação a uma criança. Do ponto de vista da estrutura do eu, esse papel cabe ao superego, que, na situação de humor, assumiria uma postura entre carinhosa e consoladora para com o ego. A explicação clássica e a interpretação freudiana do fenômeno são, obviamente, bastante diversas: a primeira trata do riso, a segunda, do humor, coisas que não devem ser confundidas. Todavia elas guardam certa semelhança, uma vez que ambas se apóiam na comparação. Assim é também para Hobbes, para quem o riso põe em relevo não apenas minha superioridade em relação a alguma deformidade nos outros mas também minha superioridade atual em relação a alguma “fraqueza” a mim sucedida. O desdém pelos outros, ou por nós mesmos numa situação passada, não deve ser separado do crescente orgulho e admiração que sentimos por nós mesmos. Como diz uma das muitas definições hobbesianas: “A paixão do riso não é nada senão uma súbita glória que surge de uma súbita concepção de alguma superioridade em nós mesmos pela comparação com as fraquezas alheias ou com nossas próprias fraquezas em tempos passados”6. Apesar de toda a força com que vingou entre filósofos de destaque, é preciso no entanto reconhecer que a teoria clássica do riso não pôde alcançar uma hegemonia absoluta. Skinner aponta que, durante o Renascimento, alguns escritores começaram a questionar a “suposição dominante na teoria clássica” de que “o riso é invariavelmente uma expressão de desprezo pelo vício”7. Mais tarde, a partir do fim do século XVII, a Inglaterra começa a ser invadida por verdadeira legião de anti-hobbesianos, os defensores da teoria do sentimento moral e da sociabilidade natural a ele ligada, os quais alegam ser possível mostrar que há um “riso puramente bondoso”8. A idéia desse riso bondoso é uma das muitas frentes de combate que os teóricos do senso moral inglês lançam contra a suposição de que o homem é naturalmente perverso. Podemos ter compaixão e simpatia imediatas por nossos semelhantes simplesmente porque os reconhecemos como tais. Nossa comiseração ou nossa bondade para com eles não supõe nenhum cálculo de eventuais vanta-
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gens que possamos tirar deles, nenhuma comparação entre nossa condição superior e a condição miserável deles. O que existe naturalmente entre os homens é um reconhecimento recíproco, uma igualdade. Para esses teóricos, longe de ser uma manifestação egoísta, o riso é, assim, um movimento em direção à identificação com o semelhante, em direção à satisfação comum, ao estreitamento dos laços sociais. Ele se liga, por isso, menos a paixões negativas do que a afetos positivos ou, como quer a teoria do senso comum, a paixões desinteressadas. Esse breve contato com as duas teorias conflitantes sobre o riso é passo indispensável para compreender a maneira como Kant reflete sobre o problema, pois seu ponto de partida está nas discussões dos filósofos ingleses. Fiel ao ensinamento cético que manda ponderar “os dois lados da questão”, Kant, embora se incline para um deles, acredita que ambos os modos de explicação são igualmente corretos, desde que se observem os casos a que se aplicam. Tanto quanto um riso de bonomia há também um riso de escárnio, pois é inegável que, embora não seja inerentemente má, a natureza humana também tem um lado mau. A diferença é que o riso pérfido, malicioso, sarcástico é hostil à vida social (só contribuiria para ela indiretamente, mediante uma “sociável insociabilidade”), enquanto o riso aberto e franco é, ao contrário, sociável. O distraído abade Terrason, por exemplo, que se apresentava em solenes reuniões de sábios sem ter tirado o gorro de dormir, é mais objeto de um sorriso cordial do que de um riso maligno. Em situações assim, aquele que é “vítima” da caçoada pode se igualar a seus “algozes” e é capaz de rir junto com eles. Muito diferente é quando se ri de um simplório9. Como se pode facilmente ver, as situações se distinguem, porque, no primeiro caso, o distraído abade é um sábio como os outros da academia e há, portanto, equiparação entre os indivíduos envolvidos, ao passo que, no segundo caso, no qual se ri de um indivíduo simples, há desigualdade, ensejo à comparação. O raciocínio, entretanto, vai além. Se os homens dispõem das mesmas “armas”, eles podem inclusive botar mais sal na gozação, torná-la mais picante, sem que isso provoque os menores amargores. Num grupo em que todos estão na mesma condição, pode-se escolher quem quer que seja para “alvo da zombaria”, que ele saberá pagar na mesma moeda — o que só fará aumentar a perspicácia de cada um dos participantes, a vivacidade do grupo e o cultivo das disposições sociais de todos mediante “um riso alegre” (ein fröhliches Lachen)10.
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O fundamento do riso sociável está, portanto, na eliminação das desigualdades. Retoma-se com isso uma concepção antiga, de acordo com a qual o que importa, antes de mais nada, é participar do jogo da ironia sem se melindrar — arte em que os antigos reputavam ser Sócrates o maior mestre. Comentando a ironia socrática, Cícero diz que a conversa entre pares supõe neles a sutileza de perceberem quando os companheiros estão falando a sério e quando estão brincando. A ironia é a fina flor da civilidade, uma dissimulação que diz o tempo todo o contrário do que se quer dizer, uma habilidade de exprimir coisas graves em tom de brincadeira11. Essa outra teoria, também nascida na Antiguidade, aparece aos ingleses adversários de Hobbes como uma alternativa àquela que Skinner chama de teoria clássica do riso: é que ela desconecta a relação intrínseca que a teoria clássica supõe haver entre riso e desprezo. Os ingleses serão seguidos, entre outros, por Kant e pelo Romantismo alemão. Grandeza negativa Lendo as passagens que Kant dedica ao riso, fica mais que patente que sua preocupação é apresentá-lo sob uma luz favorável. Isso já ocorre num texto importante do chamado período pré-crítico12, cujo propósito é tentar “introduzir o conceito de grandeza negativa na filosofia”. Na matemática, assim como na física, uma “grandeza negativa”, diz Kant, não é um mero “nada” (Nichts), um “nada negativo”, “irrepresentável”, mas um zero, um “nada privativo”, “representável”13. Se um navio sai de Portugal em direção ao Brasil, o vento leste que ajuda a impelir a embarcação é pensado como uma grandeza positiva; o vento oeste, agindo no sentido contrário, é uma grandeza negativa, mas ainda assim uma grandeza que não se pode desprezar14. A determinação da polaridade (+ ou -) depende, claro, do ponto de vista do navegador: na viagem de volta a Portugal, o vento oeste é o que lhe será favorável e, portanto, considerado positivo. O importante para Kant é que as duas magnitudes podem ser pensadas num mesmo “sujeito”, ou seja, elas são termos contraditórios “reais”, mas não constituem uma contradição lógica, como quando se diz, numa mesma acepção da palavra “mover”, que um navio se move e não se move, isto é, que ele ao mesmo tempo se desloca e está parado15.
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A intenção do ensaio sobre as grandezas negativas é mostrar que a oposição real não se aplica apenas à observação de movimentos físicos mas também à “experiência interna” de movimentos da alma. Uma grande atividade da alma, diz o texto, tem de ser empregada para “eliminar” uma idéia que envolve descontentamento. Um grande dispêndio de energia é necessário para sobrepujar um desejo. Da mesma maneira, “custa efetivo esforço exterminar uma representação prazenteira que excita ao riso, quando se quer trazer o espírito à seriedade”16. Esse último exemplo é o que nos interessa. Ele indica duas coisas. Em primeiro lugar, o riso, assim como a seriedade, é uma grandeza, mesmo que seja uma “grandeza negativa”. Em segundo lugar, as duas grandezas, o riso e a seriedade, se encontram (convivem) numa mesma e única substância. Elas são “acidentes internos da alma”17. Ao tocar nesses “acidentes internos da alma”, o opúsculo de 1763 sobre o conceito de grandeza negativa presta a devida reverência a uma de suas fontes de inspiração, a Investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias sobre o sublime e o belo, obra publicada por Edmund Burke em 1757 e muito lida e discutida na época. No livro, Burke procura refutar a tese de John Locke segundo a qual o prazer seria resultado da eliminação ou mitigação da dor, enquanto esta proviria, por sua vez, da desaparição ou diminuição do prazer. Para Burke, prazer e dor não são “meras relações”, mas têm uma “natureza positiva”18. A “remoção de uma grande dor” não se assemelha em nada a um “prazer positivo” (positive pleasure), da mesma forma que a “diminuição ou cessação” de um prazer “não opera como uma dor positiva” (positive pain)19. O que John Locke fez foi confundir idéias de prazer e dor, que são simples, e não relativas, com outras mais complexas, que são tipos de “paixão mista”20. Ele não percebeu que há duas espécies inteiramente distintas tanto de satisfação quanto de pesar. O prazer pode ser inteiramente positivo, simples, sem nenhuma composição ou relação. Burke propõe que essa espécie seja chamada em inglês de pleasure. Mas, além desta, há outra espécie de prazer, um prazer composto. Este não existe sem certa privação, isto é, sem uma relação e, mais precisamente, sem certa relação com a dor (pain). Ainda que não haja nome específico para esse sentimento, Burke propõe que essa categoria seja designada pela palavra delight, se bem que, como assinala, tal não seja a acepção corrente do termo em inglês21. Distinto do primeiro tipo de prazer, porque ligado a um certo sofrimento, o delight é, ainda assim, uma sensação agradável, de natureza positiva.
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Da mesma maneira, o sofrimento pode ser de duas espécies: um inteiramente doloroso, que é propriamente chamado em inglês de pain, e outro mesclado de certa alegria e enternecimento, que em inglês se diz grief, termo que em português se poderia traduzir por “mágoa”. A pessoa magoada “sente a paixão crescer em si”, ela se compraz em seu sofrimento, “ama essa paixão”22. Ela não tira do pensamento o objeto que lhe provocou a mágoa, examina-o sob seus aspectos deleitosos, repassa minuciosamente em espírito tudo aquilo que se liga a ele, todos os “contentamentos” que sentiu anteriormente com ele. Disso tudo se conclui que, em tal estado de enternecimento, o prazer é ainda maior que a dor23. Na resenha que faz do livro de Burke para uma revista de artes e literatura na Alemanha, o filósofo Moses Mendelssohn explica assim o sentido do grief: “À tristeza pela ausência de um contentamento se mescla sempre uma espécie de contentamento que nasce da lembrança do objeto agradável. Esse contentamento com freqüência prevalece no afeto e faz com que nosso pesadume, nossa tristeza mesma, seja mais agradável do que outras representações realmente divertidas”24. O enternecimento comove e vivifica mais os sentimentos do que representações naturalmente agradáveis. Há, portanto, uma sensação ligada à dor capaz de nos causar contentamento, assim como há uma alegria ligada a certos sentimentos de tristeza. A análise burkiana dos sentimentos “mistos” culminará na explicação do sentimento do sublime. Conforme explica Burke, o sublime produz “a mais forte emoção que a mente é capaz de sentir”25. A emoção que desperta é mais poderosa porque se refere a coisas que ameaçam a preservação de nossas vidas. Se algo que pode nos destruir se apresenta diante de nós, sentimos terror. Mas, se esse algo ameaçador está distante ou aparece apenas numa representação artística, o sentimento de terror se modifica, mesclando-se a certo prazer. Por essa mescla de terror e satisfação, o sublime é delightful 26. A crítica transcendental Toda a discussão sobre o humor e o riso passa por uma reviravolta com a descoberta de um tipo de pensamento filosófico que não se contenta apenas em descrever os fenômenos mas também procura investigar quais são as condi-
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ções de possibilidade deles. A crítica de Kant aparentemente não se preocupa com a questão do riso e do humor. Isso não é exato. Talvez seja mais correto dizer que ela tenta lhes dar um estatuto inteiramente diverso, preservando e ajudando a difundir algumas das conquistas que foram feitas sobretudo pelos teóricos ingleses. É óbvio que algo como uma “dedução transcendental do riso” está inteiramente fora de questão. Mesmo assim, Kant não consegue apagar de todo os indícios de que o riso pode ser concebido como manifestação de algo que toca de muito perto a autonomia estética — algo que se situa muito próximo das fronteiras do sentimento do belo e do sentimento do sublime. Para as filosofias que defendem uma sociabilidade natural do ser humano, como mostrou o breve apanhado que se fez acima, o riso aparece como um prazer positivo. Além disso, ele se liga a paixões sociais desinteressadas, isto é, paixões não-egoístas. Nas Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, texto de 1764 que Kant escreve sob a inspiração de Burke, o sentimento que temos diante de um objeto belo aparece associado ao bom humor. Ao contrário do sentimento do sublime, que é “sério”, “a viva sensação do belo se anuncia por uma cintilante alegria nos olhos, por traços de sorriso e freqüentemente por pura jovialidade”27. Essa tentativa de Kant de alinhar o riso ao sentimento desinteressado do belo se revelará problemática. Por outro lado, no texto de 1764 ele ainda não explora todas as possibilidades que haviam sido abertas pela teoria dos sentimentos mistos, o que posteriormente se revelará um caminho mais promissor. Mantendo um tanto rigidamente a distinção burkiana das paixões voltadas para a preservação de si e das paixões direcionadas para a sociedade, ele parece ainda não se ter dado inteiramente conta de que o riso também pode ser associado à seriedade. Enfim, parece que, por mais que Kant tentasse, uma dificuldade não podia ser eliminada. De fato, todo o esforço para elevar o riso a uma instância superior das faculdades do espírito parece fadado ao fracasso. De certa maneira, é como se o modo pelo qual o riso é apreciado não tivesse muita importância: no fundo, tanto faz se ele está ligado a uma paixão negativa ou a uma paixão positiva, pois, por mais desinteressada que esta seja, ela permanece uma paixão. O problema reside então justamente no fato de que não se consegue dissociar o riso das paixões. Ora, a patologia é incompatível com a autonomia, seja ela mo-
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ral, seja ela estética. Eis o sentido da crítica posterior de Kant à investigação psicológica e antropológica de Burke28. É o que se pode verificar lendo, por exemplo, a retomada que a Antropologia kantiana faz da questão das grandezas. A satisfação é agradável, e a dor, desagradável. Uma não é apenas a falta da outra, mas ambas são forças contrárias que atuam ou a favor de ou contra determinado estado do espírito. Podese aumentar quanto quiser os sinais dessas sensações (+ ou -) que elas se apresentarão sempre como grandezas relativas29, isto é, grandezas que só têm valor para determinado estado de determinado indivíduo. O prazer e a dor jamais chegam a ser uma “grandeza absoluta”, ao contrário do que ocorre, para Kant, no sentimento do belo e no sentimento do sublime, que não afetam apenas um aspecto particular, subjetivo, egoísta do indivíduo mas tocam diretamente e promovem, por assim dizer, a humanidade inteira em quaisquer indivíduos. Os sentimentos ligados a objetos estéticos são absolutos, incomparáveis. Por isso, se quiséssemos fazer uma comparação entre o riso e o sentimento do belo, o resultado seria bastante desigual. O riso não se sustenta por si mesmo. Ele se refere a uma novidade que, passado o imprevisto, não deixa rastro algum. É assim que, com a descoberta da filosofia transcendental, o riso passa a ser apresentado como um nada que desaparece tão logo surge. Ou como diz a definição que dele nos oferece a “Observação ao § 54” da Crítica do juízo (1790): “O riso é uma afecção surgida da transformação súbita de uma expectativa tensa em nada”30. Essa definição parece decretar o fim de qualquer tentativa de introduzir o riso na filosofia. Contudo não é bem assim. Se Kant o aproxima das artes agradáveis, e não das artes “belas”, porque ele ativa mais o corpo que a mente31, ele poderá resgatá-lo de uma maneira filosoficamente mais consistente ainda neste mesmo parágrafo da Crítica do juízo. Um tanto contra Kant, mas seguindo pistas dadas por ele, também os românticos tentarão dar um estatuto filosófico ao riso e ao humor. Romantismo de Jena Partindo das considerações da Crítica do juízo que mostram o modo de proceder da atividade reflexionante, os pensadores ligados ao romantismo de Je-
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na (os irmãos Schlegel, Novalis, Schleiermacher, Tieck etc.) puderam transportar a discussão sobre o riso e o humor para um terreno bastante diferente. Eles perceberam exatamente onde estava a dificuldade e, por isso, deslocaram a questão da esfera das paixões para o universo do jogo livre e desinteressado das faculdades da mente. Aqui, o riso não pode ser só efeito físico-psíquico de uma surpresa que, no final, se revela gratuita; deve ser também “resultante lógica” de um achado fortuito de nossas faculdades, cuja combinatória surpreende, porque traz em si um sentido imprevisto. O Romantismo postula, assim, que as manifestações humorísticas devam ser estimadas exatamente segundo os mesmos critérios que servem para orientar o juízo estético na apreciação de obras de arte. O alcance de um gracejo, por exemplo, não se mede exclusivamente pela sua capacidade de provocar movimentos espasmódicos, como fazem as cócegas, nem pelo poder que tem como “instrumento de vingança”32. Esses usos instrumentais do humor somente servem para esconder o principal, isto é, o fato de que a graça é produto de um feliz achado, de uma descoberta que deve ser, ou ao menos parecer ser, em grande parte involuntária, sem intenção. Como o chiste na explicação de Freud, uma anedota tem raízes inconscientes, mas por isso mesmo pode-se descobrir um propósito no seu aparente despropósito, uma intencionalidade secreta naquilo que, em si, é desprovido de intenção. Isso não significa, obviamente, que se possa “explicar” a piada, dar a chave de sua decifração. No humor, intenção e gesto, consciente e inconsciente, instinto e arbítrio são inseparáveis33. Com isso se postulam para as criações jocosas os mesmos princípios de inteligibilidade que Kant estabelecera para a compreensão do organismo e da obra de arte. Como estes, elas não existem em função de outra coisa, não têm uma finalidade, mas são compreendidas como se tivessem uma. São finalidades sem fim. A piada ou chiste (Witz), diz Friedrich Schlegel, “é um fim em si, como virtude, amor e arte”34. Para os românticos, é como se uma piada fosse um organismo em miniatura, ou uma obra de arte abreviada. O uso “autônomo” da piada supõe a existência de seres humanos igualmente independentes e livres para entendê-la e criá-la. Para poder captar as suas sutilezas, é preciso saber se libertar da ilusão subjetiva de que tudo gira em torno do próprio ego, o qual, consoante tal ilusão, imagina ter todas as setas do humor voltadas contra si. “Nada mais deplorável em sua origem”, diz Schlegel,
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“e nada mais execrável em suas conseqüências do que o temor de ser ridículo”35. O imperativo categórico do humor romântico reza que é preciso saber rir e saber ser objeto de riso. O ridículo não visa apenas atingir os sujeitos individuais em sua empiricidade. Reconhecer isso pressupõe justamente que o sujeito seja capaz de se desinvestir de sua condição de sujeito absoluto e perceber que vive numa espécie de grande subjetividade transcendental comandada, de ponta a ponta, pela ironia. Retomando as idéias de Cícero a respeito da urbanidade socrática, Schlegel escreve num de seus fragmentos mais conhecidos: A ironia socrática é a única dissimulação inteiramente involuntária e, no entanto, inteiramente lúcida. Fingi-la é tão impossível quanto revelá-la. Para aquele que não a possui, permanece um enigma, mesmo depois da mais franca confissão. Não deve enganar ninguém, a não ser aqueles que a tomam por engodo e que, ou se alegram com a grande pândega de se divertir com todo mundo, ou ficam fulos, quando pressentem que também estão sendo visados. Nela tudo deve ser gracejo e tudo deve ser sério: tudo sinceramente aberto e tudo profundamente dissimulado36. Querer ver uma alusão à própria pessoa, ali onde ela não existe, é um erro hermenêutico crasso. Partindo da crítica transcendental, o Romantismo de Jena deslocou inteiramente a questão: o que interessa no riso, no humor e na ironia já não é a referência a alguma paixão positiva ou negativa, porque a partir de agora eles devem ser pensados do ponto de vista do sentido. A ironia deixa, inclusive, de ser prerrogativa do sujeito — fato que passou despercebido dos críticos do Romantismo —, porque a própria linguagem já é intrinsecamente irônica, a ponto de se poder dizer que zomba não só dos ineptos mas também daqueles mesmos que sabem fazer uso dela. Simplicidade e ingenuidade Voltemos a Kant. Se o Romantismo eleva riso, humor e ironia à condição de categorias filosóficas, isso não significa dizer que a crítica kantiana não tenha ela mesma aberto, na questão do riso, uma trilha própria, um caminho diferente do seguido pelos românticos.
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Para o leitor da Crítica do juízo, a definição do riso encontrada na “Observação ao § 54” guarda o ar de uma estranha familiaridade. Com efeito, ela retoma o movimento que servia para descrever o juízo de reflexão acerca dos objetos sublimes. Conforme já se comentou anteriormente, tanto Kant quanto Burke concebem o sublime como um sentimento misto: nele há uma passagem de um estado de tensão a um estado de distensão, de um temor diante de um objeto terrível a um prazer pelo fato de que a ameaça está distante ou é ilusória. A diferença de Kant em relação a Burke, como se viu antes, consiste em que o prazer positivo proporcionado pelo sublime não pode ser uma grandeza qualquer, mas tem de ser uma grandeza acima de qualquer comparação possível, uma “magnitude absoluta”. Somente nessa condição ele pode ter relevância para a estética kantiana. A Crítica do juízo contempla, assim, um dos “vetores” da teoria dos sentimentos mistos, o que vai da dor ao prazer. Por uma questão de completude e simetria (obsessões sistemáticas tão caracteristicamente kantianas), seria de esperar que a Terceira Crítica contemplasse também o outro vetor, o que vai do prazer ao desprazer. Ou, já que nessa direção a própria idéia de fruição estética se torna uma contradição nos termos, seria de esperar que a tal obra apontasse ao menos a possibilidade de pensar um prazer tingido de alguma consternação. A Crítica do juízo não frustrará seus leitores. A afecção do riso não pode ser posta em simetria com o sentimento do sublime porque, diversamente do que ocorre neste, ela não é um movimento de distensão que leva a um prazer positivo, mas um movimento que se dissolve em indiferença. Isso também explica por que a definição do riso na Terceira Crítica conserva um elemento fundamental da definição de Hobbes, a saber: o caráter inesperado, repentino, do riso, afecção que é, como se recorda, para o autor do Leviatã, uma “súbita” glória provocada por uma “súbita” concepção de uma superioridade em nós mesmos. Em Kant, a expectativa tensa que antecede a hilaridade é frustrada (getäuschte) e se transforma “subitamente” em nada. A explicação para isso seria simples, e de ordem mecânica: como não encontra nenhuma resistência efetiva a se lhe opor (diferentemente de toda energia que se gasta na transição da risada à seriedade, como assinalava o ensaio sobre as grandezas negativas), a força inicial “tensa” se dissipa imediatamente no vazio. A inquietação se converte num nada, não em seu “oposto positivo”37. A altera-
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ção súbita do estado de ânimo no riso não deixa vestígio, ao contrário de um sentimento estético puro, o qual contribui para fortalecer de forma duradoura as faculdades do espírito. Na sua acepção fisiológica ou mecânica, o riso deve todo o seu efeito ao elemento “surpresa”. Aproveitando-se das finas observações anteriormente feitas por seu amigo Moses Mendelssohn a respeito do sublime, Kant oporá, a esse “riso de surpresa”, um riso relacionado à simplicidade e à ingenuidade. O seu empenho em resgatar uma “singeleza natural” vai se filiar assim diretamente aos esforços feitos pelos adversários de Hobbes para mostrar que há um riso naturalmente bondoso. A leitura de Rousseau também reforçará em Kant o sentimento de que é preciso romper os laços entre superioridade vangloriosa, riso e desprezo existentes na concepção hobbesiana. A simplicidade (ou singeleza = Einfalt) não tem nem poderia ter em Kant uma definição precisa. Uma definição aproximada seria dizer que simplicidade é o “estilo da natureza” nas manifestações do sublime e dos costumes38. A simplicidade compartilha com o riso “gratuito” o aspecto da surpresa, só que a “imprevisibilidade” do que é simples se deve não aos caprichos de uma superioridade ilusória, mas a um repente súbito da “sinceridade original e natural do homem” contra as convenções e dissimulações de uma sociedade artificial. Nas situações em que essa “ingenuidade” (Naivetät) se externa, ela provoca uma subversão das hierarquias, uma inversão de posições súbita, porém inapelável, na qual o que era “superior” passa a ser momentaneamente o “inferior” e vice-versa. Nós rimos, diz Kant, da simplicidade que ainda não sabe dissimular, porém ficamos alegres porque ao mesmo tempo essa simplicidade “prega uma peça na arte da dissimulação”39. Há aqui um duplo movimento: nosso riso é semelhante a todos os outros risos porque se funda numa expectativa que não deu em nada; ao mesmo tempo, nosso riso é o sinal de que também a “falsa aparência” foi reduzida a nada40. Do ponto de vista das forças em jogo, haveria, à primeira vista, uma espécie de empate. O indivíduo civilizado ri do ingênuo, enquanto este reduz a zero a superioridade daquele. A equação, todavia, é mais complexa. Perceber que a sinceridade natural do homem não esteja de todo extinta na vida em sociedade, isso adiciona “seriedade e estima” ao nosso juízo. Mas, como essa explosão da sinceridade é repentina e logo desaparece, como a arte da dissimulação sabe “fechar rapidamente a cortina” sobre seus pontos fracos, a
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tudo isso também vem se unir “um pesar, que é uma comoção de ternura, a qual, como jogo, pode muito bem ligar-se, e de fato geralmente se liga, a um riso benévolo (gutherziges Lachen), ao mesmo tempo que costuma reparar o embaraço daquele que forneceu a matéria para tanto por não estar habituado aos modos dos homens”41. A compreensão da expressão ingênua implica, portanto, no homem estético, um misto de sensações que se acrescentam ao riso inicial: além da seriedade e da estima, um enternecimento com nossa própria condição e um riso benévolo na direção daquele que despertou tais sentimentos42. Indo além do riso da surpresa, o riso de benevolência para com o indivíduo ingênuo acaba assim, ainda que timidamente, fixando seu lugar ao lado do sentimento do belo e do sublime. Visto que não se limita a sacudir “o corpo de maneira salutar”, pois também ativa diversos sentimentos morais, ele se eleva, a justo título, à condição de um jogo próprio da faculdade de julgar (Spiel der Urteilskraft)43. No ensaio Poesia ingênua e sentimental (1795-6), Friedrich Schiller retoma a análise kantiana, dando-lhe uma pequena inflexão. Ele percebe muito bem que o xis do problema é a teoria dos sentimentos mistos e, mais exatamente, a proximidade do sublime com o riso. Mendelssohn e Kant têm razão: o riso sublime deve ser explicado mediante a categoria do “ingênuo”. Mas a ingenuidade se apresenta sob duas formas: uma que se limita ao inesperado e outra que, além do inesperado, também provoca estima e admiração. A primeira exprime uma mera “puerilidade” e pode ser chamada de “ingênuo da surpresa”; a segunda exprime uma infantilidade inocente e pode ser chamada de “ingênuo da intenção” ou “ingênuo da maneira de pensar e agir”. Vale a pena citar uma passagem do ensaio de Schiller, na qual se pode perceber que o ingênuo é um sentimento misto, um riso compenetrado de sublime: Ele [o ingênuo da maneira de pensar] liga a simplicidade infantil à pueril; por meio desta última, desnuda-se ao entendimento e provoca aquele sorriso mediante o qual damos a conhecer nossa superioridade (teórica). No entanto esse triunfo do entendimento desaparece e o escárnio daquilo que é simplório se converte na admiração da singeleza, tão logo temos motivo para crer que a simplicidade pueril é ao mesmo tempo uma simplicidade infantil, que, portanto, não é nem ignorância nem
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incapacidade a fonte daquilo que, por grandeza interior, desdenhou o auxílio da arte, mas uma força (prática) mais elevada, um coração cheio de inocência e verdade. Sentimo-nos constrangidos a respeitar o objeto que antes nos fez sorrir e, lançando ao mesmo tempo um olhar em nós mesmos, a nos lastimar por não lhe sermos semelhantes. Surge assim o fenômeno todo próprio de um sentimento no qual convergem escárnio jovial, veneração e melancolia. No ingênuo se exige que a natureza alcance a vitória sobre a arte, que isso ocorra à revelia e contra a vontade ou com plena consciência da pessoa. No primeiro caso, ele é o ingênuo da surpresa, e diverte; no segundo, é o ingênuo da intenção, e comove44. Hoje, observações como estas podem nos fazer sorrir por sua ingênua candura. É que talvez já não saibamos pesar quanto têm de ironia e nostalgia. O infinitamente pequeno Do ponto de vista da articulação sistemática da estética kantiana, o sublime aparece como o complemento necessário do belo. Por outro lado, o leitor contemporâneo de Kant, versado na estética do século, podia perceber, como o fez Schiller, que o riso benévolo ligado à ingenuidade era o complemento que faltava ao sublime na sistematização dos sentimentos mistos. Mas, ainda da perspectiva sistemática, parece faltar outra coisa, caso se examine o sublime pelo viés de sua “grandeza”. É essa “brecha” que vai ser aproveitada pelo escritor Jean Paul (Friedrich Richter). Segundo uma das definições dadas pela Crítica do juízo, sublime é “aquilo em comparação com o qual todo o resto é pequeno”. Ora, acrescenta Kant, não há nada na natureza que possa corresponder a essa definição. Na natureza, por maior que seja o objeto que escolhamos, sempre haverá outro que, em alguma proporção, fará o primeiro parecer minúsculo e até “infinitamente pequeno”. Da mesma forma, por menor que imaginemos ser alguma coisa, sempre haverá algo ainda menor que, comparativamente, a fará parecer do tamanho de um astro. O sublime, conforme já se viu antes, não pode então se reportar a objetos do sentido, pois supera toda e qualquer escala sensível45. Ele não é uma grandeza relativa (de sinal positivo ou negativo), uma grandeza comparável, mas
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uma magnitude absoluta (absolute, non comparative magnum)46. Por isso, nenhuma quantificação numérica pode abarcá-lo. Ele só pode ser apreendido se a imaginação é auxiliada, em seu esforço inútil para compreendê-lo, por conceitos morais advindos da razão. A faculdade de julgar faz a mediação entre o trabalho penoso da imaginação e o alívio que lhe traz a razão. Se o sublime é algo “absolutamente grande” (schlechthin groß; AbsolutGroßes)47, Kant parece “esquecer” que, por uma questão de simples simetria, é possível imaginar o inverso, isto é, que existe algo “absolutamente pequeno”. Esquecimento, de resto, tanto menos justificável quando o “infinitamente pequeno” (das unendliche Kleine) já aparece como um conceito fundamental no Ensaio para introduzir grandezas negativas na filosofia. Ali, Kant adverte que a matemática está sempre às voltas com ele e que é preciso introduzi-lo na física, pois, se há forças que atuam de maneira contínua durante certo tempo, como é o caso da gravidade, a força inicial tem de ser pensada como “infinitamente pequena” em relação a ela mesma num instante posterior48. A elucidação do mesmo conceito, pode-se supor, ajudaria a entender a energia que tem de ser despendida para converter uma paixão na outra (o esforço para evitar um desejo, a dificuldade de controlar o riso e voltar ao siso etc.). O esquecimento de Kant é ainda mais incompreensível porque certamente conhecia as indicações de Moses Mendelssohn da proximidade do sublime com o risível. Para Mendelssohn, o que caracteriza tanto um quanto outro é o contraste entre o signo e a coisa designada. Tanto num quanto noutro existe um descompasso enorme entre a designação e aquilo que designa. No sublime, o signo é sempre muito pequeno proporcionalmente àquilo que significa ou, inversamente, os objetos ditos sublimes são muito superiores e não têm nenhum termo de comparação com aquilo que os exprime. Sendo assim, por mais que se esforce em encontrar palavras ou imagens adequadas, o artista pode ter certeza de que a idéia que tenta exprimir permanecerá sempre “maior do que o signo de que se serve e, conseqüentemente, sua expressão será ainda sempre ingênua (naiv) em comparação com a coisa”49. No caso do risível, a desproporção entre signo e designado também é a regra fundamental. Em sua importante análise do humor, publicada em Escola preparatória de estética (1804), o escritor Jean Paul explora cuidadosamente as conseqüências de todas essas discussões. Ele centra seu foco de observação justamente na-
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quilo que chama de contraste entre o infinito e o finito. Não se trata, para ele, de contrastar coisas finitas nem de comparar as idéias da razão com toda a finitude. O método consiste numa inversão do sublime: enquanto neste o infinito é aplicado a um objeto sensível, que passa a ser mero suporte daquele, no humor a finitude é colada à idéia, ela é um “finito aplicado ao infinito”, surgindo daí a “infinitude do contraste”, isto é, uma “infinitude negativa”. Com isso, não se destrói o objeto singular, mas somente a finitude mediante o contraste com a idéia. É o próprio contraste que se expande ao infinito50. Segundo Jean Paul, o humor é o paradoxo de fazer uma viagem aos céus descendo aos infernos: Ele se assemelha ao pássaro mérops, que vira a cauda para o céu e, no entanto, é assim que voa em direção aos céus. Esse ilusionista bebe de ponta-cabeça o néctar com o cálice voltado para cima. Se o ser humano, como fazia a antiga teologia, olha para o mundo terreno do alto do mundo extraterreno, aquele aparece pequeno e fútil lá em cima; se, como faz o humor, o ser humano mede o mundo infinito pelo mundo pequenino e o ata a este, então surge aquele riso no qual se encontram ainda uma dor e uma grandeza51. O mundo visto de baixo para cima, e não de cima para baixo, é um mundo visto pelas lentes do riso e da dor. É a partir do mínimo que começa a grandeza, a aventura do espírito do mundo (Weltgeist) de Jean Paul. Querer olhar o mundo do alto é não entender a positividade do cômico e do humor. Hobbes parece não ter percebido que, no riso, não somos nós que nos elevamos a uma condição superior, mas as coisas que afundam a um nível tal que se tornam absolutamente irrisórias. Entretanto é desse mínimo absoluto que tudo começa a fazer sentido. Comentando precisamente a concepção de riso do autor do Leviatã, Jean Paul afirma: E que sentimento particular de elevação é possível se o objeto ridículo se encontra num grau de comparação tão baixo, inteiramente incomensurável (não medível) em relação a nós, como o asno em relação a Filemon ou os aspectos ridículos de um tropeção, de um erro de visão
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etc.? Os que riem são de boa índole e freqüentemente cerram fileiras com aqueles de que riem; crianças e mulheres são os que mais riem; os que tudo comparam, orgulhosos consigo mesmos, são os que menos riem; e o Arlequim, que não quer passar por ninguém, é aquele que ri de tudo...52 Márcio Suzuki é professor de Estética do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e autor de O gênio romântico. Crítica e história da filosofia em Friedrich Schlegel (São Paulo: Iluminuras, 1998).
NOTAS
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NIETZSCHE, Friedrich. “Die dionysische Weltanschauung” (Visão dionisíaca do mundo), 3. In Kritische Studienausgabe. Munique: DTV, 1999, v. 1, p. 567. A tradução é minha, o que sempre ocorre quando não menciono o nome do tradutor. BALDENSPERGER, Fernand. “Les définitions de l’humour” (As definições do humor). In Études d’histoire littéraire (Estudos de história literária). Paris: Hachette, 1907, v. 1, p. 209. Esta indicação, como muitas outras contidas neste ensaio, provém de conversas com a estudiosa de literatura Marta Kawano. SKINNER, Quentin. Hobbes e a teoria clássica do riso. Tradução de Alessandro Zir. São Leopoldo: Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2002. MATOS, Franklin de. “Anatomia do riso”, crítica do livro de Skinner. “Jornal de Resenhas”, Folha de S.Paulo, 11.01.02. NIETZSCHE, Friedrich. Jenseits von Guten und Bösen, § 294. Edição citada, v. 3, p. 236. Há tradução em português: Além do bem e do mal. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Mesmo Baudelaire, ainda que com importantes nuanças, compartilha dessa idéia do riso. Cf. “De l’essence du rire et génèralement du comique dans les arts plastiques”. In Oeuvres complètes. Paris: Robert Lafont, 1980, pp. 690-701. HOBBES, Thomas. Elements of law, apud Quentin Skinner, op. cit., p. 55. SKINNER, op. cit., p. 41. Idem, pp. 46-7. Skinner cita principalmente Addison, Hutcheson e Fielding. KANT, Immanuel. Antropologia, § 79. “Observação geral”. Werke/Berlim: Akademie Textausgabe/Walter de Gruyter, 1968. Idem, ibidem. Uma boa discussão da ironia em Cícero é o estudo de A. Haury, L’ironie et l’humeur chez Cicéron (Ironia e humor em Cícero). Leiden: Brill, 1955. Como se sabe, a obra de I. Kant é dividida em duas fases, antes e depois da publicação de Crítica da razão pura (1781), Crítica da razão prática (1788) e Crítica do juízo (1790), esta conhecida como Terceira Crítica. KANT, Immanuel. Versuch den Begriff der negativen Grössen in die Weltweisheit einzuführen (Ensaio para introduzir o conceito de grandezas negativas na filosofia), A 3-4. Werke/Berlim: Akademie Textausgabe/Walter de Gruyter, 1968. Idem, A 7. Idem, A 3. Idem, A 42-3. Idem, A 43. BURKE, Edmund. A philosophical enquiry into the origin of our ideas of the sublime and beautiful. Oxford: Universidade de Oxford, 1998, pp. 30-1. Há tradução em português: Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo. Tradução, apresentação e notas de Enid Abreu Dobránszky. Campinas: Papirus/Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1993. Idem, pp. 31-2. Idem, pp. 30, 32. Idem, pp. 33-4. Idem, p. 34. Idem, p. 35. MENDELSSOHN, Moses. Rezensionsartikel in Bibliothek der schönen Wissenschaften und der freyen Künste (Resenhas publicadas na Biblioteca das Belas Ciências e Artes Livres). In Gesammelte Schriften. Jubiläumsausgabe. Stuttgart-Bad Cannstatt: Frommann, 1977, v. 4, p. 218. BURKE, op. cit., p. 36. Idem, pp. 36-7. KANT, Immanuel. Beobachtungen über das Gefühl des Schönen und Erhabenen, A 6. Werke/Berlim: Akademie Textausgabe/Walter de Gruyter, 1968. Deste texto pré-crítico de Kant há tradução para o português: Observações sobre o sentimento do belo e do sublime (seguido de Ensaio sobre as doenças mentais). Tradução, introdução e notas de Vinicius de Figueiredo. Campinas: Papirus, 1994. KANT, Immanuel. Kritik der Urteilskraft (Crítica do juízo), A 128 e ss. Werke/Berlim: Akademie Textausgabe/Walter de Gruyter, 1968.
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50 51 52
KANT,
Immanuel. Anthropologie in pragmatischer Hinsicht (Antropologia de um ponto de vista pragmático). Werke/Berlim: Akademie Textausgabe/Walter de Gruyter, 1968, p. 230. KANT, Immanuel. Kritik der Urteilskraft, A 225, edição citada. Idem, A 225. SCHLEGEL, Friedrich. Kritische Fragmente (Fragmentos críticos), 51. Há uma tradução minha para esta obra: O dialeto dos fragmentos. São Paulo: Iluminuras, 1997, p. 28. SCHLEGEL, August Wilhelm. “Fragmentos do Athenäum”, 237. In O dialeto dos fragmentos, p. 88. SCHLEGEL, F. Op. cit., 59. Tradução citada, p. 29. Idem, p. 106. Tradução citada, p. 36. Idem, p. 108. Tradução citada, pp. 36-7. KANT, I. Kritik der Urteilskraft, A 226, edição citada. Idem, A 126, edição citada. Idem, p. 229. Idem, ibidem. Idem, ibidem. Stendhal também se ocupou da questão, no ensaio “Racine e Shakespeare”, incluído na edição brasileira do Prefácio a Shakespeare, de Samuel Johnson: “Há duzentos anos fazemos gracejos na França; é preciso portanto que o gracejo seja muito sutil, do contrário é imediatamente compreendido, por conseguinte nada há de inesperado. Mais uma coisa: é preciso que eu tenha uma certa estima pela pessoa às expensas da qual se pretende me fazer rir”. In: JOHNSON, Samuel. Prefácio a Shakespeare. Tradução, estudo e notas de Enid Abreu Dobránszky. São Paulo: Iluminuras, 1996, pp. 96-97. KANT, I. Kritik der Urteilskraft, p. 229. SCHILLER, Friedrich. Poesia ingênua e sentimental. Tradução de Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1991, pp. 46-7. KANT, I. Kritik der Urteilskraft, A 84, edição citada. Idem, A 81. Idem, A 80-1, 98. KANT, I. Versuch den Begriff der negativen Grössen in die Weltweisheit einzuführen, A IV, op. cit.. MENDELSSOHN, Moses. “Über das Erhabene und Naive in den schönen Wissenschaften” (Observações sobre o sublime e o ingênuo nas belas ciências). In Ästhetische Schriften in Auswahl, Edição de Otto F. Best. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1974, p. 199. JEAN PAUL. Vorschule der Ästhetik (Escola preparatória da estética), § 31. Edição de Wolfhart Henckmann. Hamburgo: Felix Meiner, 1990, pp. 124-5. Idem, § 33, p. 129. Idem, § 30, p. 121.
167
GUIA MILLÔR FERNANDES
Biblioteca do caos OBRAS DO AUTOR
1. Em prosa1 Eva sem costela – Um livro em defesa do homem. Sob o pseudônimo de Adão Junior. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1946.
Esta é a verdadeira história do Paraíso*. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1972. Trinta anos de mim mesmo. Rio de Janeiro: Nórdica, 1972; 4. ed., 1976.
Livro branco do humor. Rio de Janeiro: Nórdica, 1975. Millôr no Pasquim. Rio de Janeiro: Nórdica, 1977; 3. ed., 1980.
Tempo e contratempo. Sob o pseu dô ni mo de Em ma nuel Vão Gôgo. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1949. 2. ed., Tempo e contratempo – Millôr revisita Vão Gôgo. São Paulo: Beca, 1998.
Livro vermelho dos pensamentos de Millôr. Rio de Janeiro: Nórdica, 1973. Edição revista e ampliada – São Paulo: Senac, 2000.
Novas fábulas fabulosas. Rio de Janeiro: Nórdica, 1978; 6. ed., 2000. Que país é este? Rio de Janeiro: Nórdica, 1978; 3. ed., 1980.
Fábulas fabulosas. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1964. Edição revista e ilustrada – Rio de Janeiro: Nórdica, 1973; 15. ed., Nórdica, 1998. Lições de um ignorante. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1963. 4. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
Reflexões sem dor. São Paulo: Edibolso, 1977.
Millôr Fernandes – Literatura co men ta da. Or ga ni za ção de Maria Célia Paulillo. São Paulo: Abril Educação, 1980. Compozissõis imfãtis. Rio de Janeiro: Nórdica, 1975; 4. ed., 1984.
1 As obras assinaladas com (*) não constituem coletâneas.
168
Todo homem é minha caça. Rio de Janeiro: Nórdica, 1981; 3. ed., 1998.
Diário da Nova República. Porto Alegre: L&PM, 1985; 2. ed., 1989.
Eros uma vez. Ilustrações de Nani. Rio de Janeiro: Nórdica, 1987; 3. ed., 1990. Diário da Nova República, v. 2. Porto Alegre: L&PM, 1988; 2. ed., 1991. Diário da Nova República, v. 3. Porto Alegre: L&PM, 1988. The cow went to the swamp ou A vaca foi pro brejo*. Rio de Janeiro: Record, 1988; 9. ed., 2001.
caos. Porto Alegre: L&PM, 1994; 15. ed., 2003, Coleção Pocket.
Poemas. Porto Alegre: L&PM, 1984; 6. ed., 2001, Coleção Pocket.
Amostra bem-humorada. Seleção de textos de Maura Sardinha. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.
3. Artes visuais Crítica da razão impura ou O primado da ignorância – Sobre Brejal dos guajas, de José Sarney, e Dependência e desenvolvimento na América Latina, de Fernando Henrique Cardoso*. Porto Alegre: L&PM, 2002; 2. ed., 2002.
Desenhos. São Paulo: Raízes Artes Gráficas, 1981. Prefácio de Pietro Maria Bardi e apresentação de Antônio Houaiss.
100 fábulas fabulosas. Rio de Janeiro: Record, 2003.
2. Em poesia Papáverum Millôr. Rio de Janeiro: Prelo, 1967. Edição revista e ilustrada – Rio de Janeiro: Nórdica, 1974.
4. Peças de teatro2
Devora-me ou te decifro. Porto Alegre: L&PM, 1976; 2. ed., 1992.
Hai-kais. São Paulo: Senzala, 1968. 2. ed., Rio de Janeiro: Nórdica, 1986. 10. ed., Rio de Janeiro: Nórdica, 1998.
Humor nos tempos do Collor. O volume inclui também textos de Luis Fernando Verissimo e Jô Soares. Porto Alegre: L&PM, 1992; 6. ed., 1992. Millôr definitivo – A bíblia do 2 Os dados que aparecem entre parênteses correspondem à primeira montagem.
169
Publicadas em livros Teatro de Millôr Fernandes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957. O vo lu me in clui Uma mulher em três atos (Teatro Brasileiro de Comédia, São Paulo, 1953), Do tamanho de um defunto (Teatro de Bolso, Rio, 1955), Bonito como um deus (teatro Maria Della Costa,
São Paulo, 1955) e A gaivota (Studio 53, Rio, 1959).
Um elefante no caos ou Jornal do Brasil ou, sobretudo, Por que me ufano do meu país (Teatro da Praça, Rio, 1960). Rio de Ja nei ro: Edi to ra de Au tor, 1962. 2. ed., Por to Alegre: L&PM, 1979. Coleção Teatro de Millôr Fernandes, v. 7.
Pigmaleoa (Teatro Rio, Rio, 1962). São Paulo: Brasiliense, 1965. Publicada também na Coleção Teatro de Millôr Fernandes, v. 1, que inclui É... e A história é uma istória. Porto Alegre: L&PM, 1994; 4. ed., 1996.
Flávia, cabeça, tronco e membros (Teatro Ginástico, Rio, 1985). Por to Ale gre: L & PM , 1977. Coleção Teatro de Millôr Fernandes, v. 3; 7. ed., 2001, Coleção Pocket.
vência Cultural, Campinas SP, 1976). Porto Alegre: L&PM, 1978. Coleção Teatro de Millôr Fer nan des, v. 4. Pu bli ca da também na Coleção Teatro de Millôr Fernandes, v. 1, que inclui Pigmaleoa e É... Porto Alegre: L&PM, 1994; 4. ed., 1996. O homem do princípio ao fim (Tea tro San ta Ro sa, Rio, 1967). Porto Alegre: L&PM, 1982. Coleção Teatro de Millôr Fernandes, v. 5; 3. ed., 1999, Coleção Pocket.
Computa, computador, computa (teatro Santa Rosa, Rio, 1972). Rio de Janeiro, Nórdica, 1972; 9. ed., Rio de Janeiro: Nórdica, 1998. É... (Teatro Maison de France, 1977). Porto Alegre: L&PM, 1977. Coleção Teatro de Millôr Fer nan des, v. 1. Pu bli ca da também na Coleção Teatro de Millôr Fernandes, v. 1, que inclui Pigmaleoa e A história e uma is tó ria. Por to Ale gre: L&PM, 1994; 4. ed., 1996.
Os órfãos de Jânio (Teatro dos Quatro, Rio, 1980). Porto Alegre: L&PM, 1979. Coleção Teatro de Millôr Fernandes, v. 9. Duas tá buas e uma pai xão (nunca montada). Porto Alegre: L&PM, 1982; 2. ed., 1985. Coleção Teatro de Millôr Fernandes, v. 12.
A história é uma istória (Teatro Interno do Centro de Convi170
Não editadas Diálogo da mais perfeita compreensão conjugal (Teatro Maria Della Costa, São Paulo, 1955). Pif, tac, zig, pong (Teatro da Praça, Rio, 1962). A viúva imortal (Teatro Nacional de Comédias, Rio, 1967). Inspirada na Matrona de Éfeso, de Petrônio. A eterna luta entre o homem e a mulher (Teatro Clara Nunes, Rio, 1982). Kaos (escrita em 1995, nunca foi montada; em outubro de 2001, teve leitura pública no auditório do jornal Folha de S.Paulo).
Do fundo do azul do mundo (1968).
seed ), de Pearl S. Buck. Rio de Janeiro: José Olympio, 1942.
Momento 68 (1968).
Nunca saí de casa (I never left home), de Bob Hope. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1945.
Mu lher, es se su per-ho mem (1969).
Textos teatrais 4 Bons tem pos, hein?! (1979). Por to Ale gre: L & PM , 1979. Coleção Teatro de Millôr Fernandes, v. 6. Vidigal: Memórias de um sargento de milícias, com músicas de Carlos Lyra (1982). Porto Alegre: L&PM, 1981. Coleção Teatro de Millôr Fernandes, v. 10; 5. ed., 1986.
Pif-Paf – Edição extra!, com músicas de Ary Barroso (1952).
Liberdade liberdade, em parceria com Flávio Rangel (1965). Rio de Ja nei ro: Ci vi li za ção Brasileira, 1965. 11. ed., Porto Alegre: L&PM, 2002, Coleção Pocket. Memórias de um sargento de milícias, com músicas de Marco Antonio e Nelson Lins e Barros (1966). Baseado no romance homônimo de Manuel Antônio de Almeida.
Marat-Sade, de Peter Weiss (1967). Se nhor Pun ti la e seu cria do Matti (Herr Puntila und sein Knecht Mat ti), de Ber tolt Brecht (1976). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. A calça – Cada qual no seu lugar (Die Hose), de Carl Sternheim (1977).
5. Espetáculos musicais
Esse mundo é meu, em parceria com Sérgio Ricardo (1965).
Alemães
De repente (1984). O MPB-4 e o Dr. Çobral vão em busca do mal (1984). Bra sil! Ou tros 500 – Uma PoopÓpera, com músicas de Toquinho e Paulo César Pinheiro (2000).
6. Traduções
3
Afinal, uma mulher de negócios – Liberdade em Bremen (Bremer Freiheit), de Rainer W. Fassbinder (1979). Porto Alegre: L&PM, 1983 (junto com As lágrimas amargas de Petra von Kant). As lágrimas amargas de Petra von Kant (Die bitteren Tränen der Petra von Kant), de Rainer W. Fassbinder (1981). Porto Alegre: L&PM, 1983 (junto com Afinal, uma mulher de negócios). Grande e pequeno (Gross und klein), de Bo tho Strauss (1984).
Romances A estirpe do dragão (Dragon
3 As indicações bibliográficas dizem respeito à primeira edição. 4 Divididos pela nacionalidade dos autores. O ano entre parênteses é o da tradução.
171
Quarteto (Quartett), de Heiner Müller (1986).
Americanos
Boa noite, mãe (’Night, mother), de Mars ha Nor man (1983).
A falecida senhora sua mãe (Feu la mère de madame), de Georges Feydeau (1983).
Mary, Mary, de Jean Kerr (1963).
Ensina-me a viver (Harold and Maude), de Colin Higgins, autor nascido na Nova Caledônia (1986).
Madame Vidal (La dame de chez Maxim) de Georges Feydeau.
Pequenos assassinatos (Little murders), de Jules Feiffer (1965).
O preço (The price), de Arthur Miller (1987).
O assassinato da irmã Geórgia (The killing of sister George), de Frank Mar cus, dra ma tur go nascido na Alemanha (1967).
Master class (Master class), de Terrence McNally (1996). Espanhol
Rapazes da banda (The boys of the band ), de Mart Crowley (1970).
O velho ciumento (Il viejo celoso), de Miguel de Cervantes (1961).
Os filhos de Kennedy (The sons of Kennedy), de Robert Patrick (1975). Rio de Janeiro: Nórdica, 1976; 2. ed., 1978.
Franceses
A fábula de Brooklin – Gente como nós (Good people), de Irwin Shaw (1958).
Quem tem medo de Virginia Woolf ? (Who’s afraid of Virginia Woolf ? ), de Ed ward Al bee (1978). Palhaços de ouro (The golden boys), de Neil Simon (1979). Gata em telhado de zinco quente (Cat in a hot tin roof ), de Tennessee Williams (1980). Ó, Calcutá! (Oh, Calcutta!), colagem organizada por Kenneth Tynan, com textos próprios e de outros autores, tais como Samuel Beckett, Julian Barry e Jules Feiffer (1980).
Fedra (Phèdre), de Jean Racine (1985). Porto Alegre: L&PM, 1985; 5. ed., 2003, Coleção Pocket. O fetichista (Le fétichiste), de Michel Tournier (1985). Don Juan, o convidado de pedra (Don Juan), de Molière (1994). Por to Ale gre: L & PM , 1994; 8. ed., 2003, Coleção Pocket. Pa lo ma (Co lom be), de Jean Anouilh (1996).
As preciosas ridículas (Les précieuses ridicules), de Molière (1963). Escola de mulheres (L’école des femmes), de Molière (1965). Rio de Janeiro: Nórdica, 1974. 2. ed., São Paulo: Paz e Terra, 1996. A mulher de todos nós (La parisien ne), de Hen ri Bec que (1965). Negra meobem (Chérie noire), de François Campaux (1967).
Anna Magnani, de Armand Meffre (1996). Gregos
Lisístrata (Lysistráte), de Aristófanes (1967). São Paulo: Abril Cultural, 1977, Coleção Teatro Vivo; 2. ed., Porto Alegre: L&PM, 2003, Coleção Pocket. Antígona (Antigone), de Sófocles (1974). São Paulo: Paz e Terra, 1996; 4. ed., 2002. Húngaro
As eruditas (Les femmes savantes), de Molière (1971).Porto Alegre, L&PM, 2003, Coleção Pocket.
A viúva alegre (Die lustige Witwe), de Franz Lehar (1982). Ingleses
Chorus line (A chorus line), de Michael Bennett (1982).
Bunny’s Bar, de Josiane Balasko (1981). 172
A megera domada (The taming of
the shrew), de William Shakespeare (1961). São Paulo: Letras e Artes, 1965. 5. ed., Porto Alegre: L&PM, 2003, Coleção Pocket. Publicada também na Coleção Teatro de Millôr Fernandes, v. 2, que inclui O rei Lear. Porto Alegre: L&PM, 1994. Blecaute (Wait until dark), de Frederick Knott, autor nascido na China (1967). A volta ao lar (The homecoming), de Ha rold Pin ter (1967). São Paulo: Abril Cultural, 1976, Coleção Teatro Vivo.
Piaf, de Pam Gems (1983). Gilda, um projeto de vida (Design for living), de Noel Coward (1984). Hamlet, de William Shakespeare (1984). Por to Alegre: L&PM, 1984; 19. ed., 2003, Co le ção Poc ket. Pu bli ca da também na Coleção Teatro de Millôr Fernandes, v. 3, que inclui As ale gres ma tro nas de Windsor. Porto Alegre: L&PM, 1995. Irlandeses
Antigamente (Old times), de Harold Pinter (1972).
O prodígio do mundo ocidental (The play boy of the Wes tern world), de John M. Synge (1960). São Paulo: Brasiliense, 1968.
A carta (The letter), de Somerset Maugham (1980).
Pig ma leão (Pygma lion), de George Bernard Shaw (1963).
De quem é a vida, afinal? (Whose life is it, anyway? ), de Brian Clark (1980).
Quatro vezes Beckett, a partir dos textos Teatro 1, Teatro 2, Nada e Aquela vez, de Samuel Beckett (1986).
A cozinha (The kitchen), de Arnold Wesker (1968).
O rei Lear (King Lear), de William Shakespeare (1980). Porto Alegre: L & PM , 1981; 11. ed., 2003, Coleção Pocket. Publicada também na Coleção Teatro de Millôr Fernandes, v. 2, que inclui A megera domada. Porto Alegre: L&PM, 1994. As alegres matronas de Windsor (The merry wives of Windsor), de William Shakespeare (1981). Porto Alegre: L&PM, 1995. Coleção Teatro de Millôr Fernandes, v. 3, que inclui também Hamlet.
Fim do jogo (Endgame), de Samuel Beckett (2001).
Dédalo e Ícaro (Dedalo e Icaro), de Dario Fo (1984). O sacrifício de Isaac (Il sacrificio di Isacco), de Dario Fo (1984). A tigresa (Storia della tigra), de Dario Fo (1984). Assim é, se lhe parece (Cosi è (se vi pare)), de Luigi Pirandello (1985). Ima cu la da (Im ma co la ta), de Franco Scaglia (1985). Sábado, domingo e segunda (Saba to, do me ni ca, lu ne dì), de Edoardo de Filippo (1985). Filomena Marturano, de Edoardo de Filippo (1987). Vestir os nus (Vestire gli ignudi), de Luigi Pirandello (1987). La mamma ou O belo Antônio (Il bell’Antonio), de Vitaliano Brancatti (1987). Encontrarse (Trovarsi), de Luigi Pirandello (1988). Últimas luas (Le ultime lune), de Furio Bordon (1999).
Israelense Norueguês
Pô, Romeu! (Oh, Romeo), de Ephraim Kishon, teatrólogo nascido na Hungria (1984).
Hedda Gabler, de Henrik Ibsen (1982).
Italianos
Peruano
Vi val di no, ser vi dor de dois amos (Arlecchino, servitore di due padroni), de Carlo Goldoni (1976).
A senhorita de Tacna (La señorita de Tacna), de Mario Vargas Llosa (1981). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981; 2. ed., 1982.
173
Polonês
Casamento branco (Biale malzensrwo), de Tadeusz Rozewicz (1982). Russos
O jardim das cerejeiras (Vishnyony sad), de Anton Tchecov (1983). Porto Alegre: L&PM, 1983. Tio Vania (Dyadya Vanya), de Anton Tchecov (1984). Fábula A ovelha negra e outras fábulas (La oveja negra y demás fábulas), de Augusto Monterroso. Ilustrações de Jaguar. Rio de Janeiro: Record, 1983. Humor A completa lei de Murphy (The Complete Murphy’ s Law), de Arthur Bloch. Ilustrações de Jaguar. Rio de Janeiro: Record, 1996; 14. ed., 2001.
La drão em noi te de chu va, 1960. Baseado na peça Do tamanho de um defunto, de sua autoria. Direção de Armando Couto.
Apressado para nada, de José Geraldo Barreto. Rio de Janeiro: Garamond, 2001.
Esse Rio que eu amo, 1962. Direção de Carlos Hugo Christensen.
Em busca da imperfeição. São Pau lo: Ne der&As so ciados/ Oficina/Universo Online-UOL, 2000.
Crônica da cidade amada, 1965. Direção de Carlos Hugo Christensen. Disponível em vídeo. O menino e o vento, 1967. Baseado no conto “O iniciado do vento”, de Aníbal Machado. Direção de Carlos Hugo Christensen. Disponível em vídeo.
Modelo 19, 1952. Lançado comercialmente como O amanhã será melhor, também conhecido como Uma ponte de esperança. Baseado no conto Oggi il cielo è azzurro, de Ugo Chiarelli. Direção de Armando Couto. Disponível em vídeo. Amor para três, 1960. Baseado na peça Divórcio para três, de Victorien Sardou. Direção de Carlos Hugo Christensen. Disponível em vídeo.
10. Internet Millôr Online (www.millor. com.br). São Pau lo: Ne der&Associados/Casulo Web Design/UOL, 2000. Atualização semanal.
11. Ilustrações Últimos diálogos, 1995. A partir de argumento de Walter Salles. Ainda não filmado.
Maurício, o leão de menino, de Flávia Maria. São Paulo: Summus, 1981.
Em parceria O judeu, 1995. Com Geraldo Carneiro e Gilvan Pereira. Direção de Jom Tob Azulay. Disponível em vídeo.
7. Roteiros para cinema Individuais
9. CD-Rom
Mátria. 1998. Com Geraldo Carneiro e Jom Tob Azulay. Ainda não filmado. Colaboração Terra estrangeira, 1995 (diálogos adi cio nais). Di re ção de Walter Salles e Daniela Thomas. Disponível em vídeo.
8. Prefácios
Sapomorfose ou O príncipe que coaxava, de Cora Rónai. Rio de Janeiro: Salamandra, 1983; 17. ed., 2001. O caderno rosa de Lori Lamby, de Hil da Hilst. São Pau lo: Massao Ohno Editor, 1990. O menino, de João Uchôa Cavalcanti Netto. Rio de Janeiro: Editora Rio, 2003.
12. Exposições Museu de Arte Moderna. Rio de Janeiro, 1957. Petite Galerie. Rio de Janeiro, 1961.
Delícias de Tutu, de Dirce Tutu Quadros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. 174
Galeria Grafitti. Rio de Janeiro, 1975.
Museu de Arte Moderna. Rio de Janeiro, 1977.
13. Composição musical O homem (1966). Apresentada por Nara Leão no II Festival de Música Brasileira, da TV Record de São Paulo.
ORTIGA,
Odilia Carreirão. Riso e o risível em Millôr Fernandes: o cômico, o satírico e o humor. Tese de doutorado em Literatura Brasileira. Faculdade de Fi lo so fia, Le tras e Ciên cias Humanas da Universidade de São Paulo, 1993.
PINTO,
FORTUNA CRÍTICA
Henrique Rodrigues. A vitória do humor diante do estabelecido. Dissertação de mestra do em Le tras. Pon ti fí cia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 2002.
3. Artigos em jornais ANGÉLICA, Joana. “Millôr Fernandes. Da tradução clara (mas não vulgar), de Sófocles ao libreto da Viúva alegre”. O Globo. Rio de Janeiro, 21.02.82. ANTENORE,
Armando. “Millôr comenta sua produção juvenil”. Folha de S.Paulo, 25.11.98.
AUGUSTO, Sérgio. “Eis o momo
1. Dissertações e teses
com seu sorriso amarelo”. Opinião. Rio de Janeiro, 30.05.75.
COR DO VA NI ,
AUGUSTO,
Gló ria Ma ria. Millôr Fernandes, uma voz de resistência. Tese de doutorado em Literatura Brasileira. Faculda de de Fi lo so fia, Le tras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1997.
Sérgio. “O sexagenário bacano”. Folha de S.Paulo, 03.06.84.
2. Textos incluídos em livros CUNHA,
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Françoise. L’anné 82 au Brésil: le regard critique de Millôr Fernandes (O ano de 82 no Brasil: o olhar crítico de Mil lôr Fer nan des). Te se de doutorado em Língua Portuguesa. Universidade de Toulou se-Le Mi rail II, Fran ça, 1987.
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LUIZ, Macksen. “Um mago dos
segredos vocabulares”. Jornal do Bra sil. Rio de Ja nei ro, 28.05.83.
de dignidade”. Folha de S.Paulo, 19.08.85.
Flávio. “A eterna luta entre o homem e a mulher. Uma comédia com prólogo, nove rounds e epílogo”. O Globo. Rio de Janeiro, 25.08.82.
GRAIEB,
MICHALSKI,
FREITAS, Jorge. “É uma questão
Carlos. “Fui construí-
MARINHO,
Yan. “Computador: 176
morista lança livro com mais de 5 mil pensamentos sob a síntese da sua filosofia do caos: ‘o livre pensar é só pensar’”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 28.09.94. PAIVA,
Anabela. “A crítica caudalosa de Millôr”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 08.12.95.
PAIVA,
Anabela. “O cinema de Millôr”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 13.01.96.
PAIVA, Marcelo Rubens. “Millôr se diverte criticando Sarney e FHC ”. Fo lha de S.Pau lo, 14.09.02. PRADO,
Zelia. “Sem estilo, sem medo e sem papas na língua”. Suplemento “Mulher”. Folha de S. Paulo, 02.01.83.
RANGEL, Maria Lucia. “Humor, estilo e muito traço”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 26.04.81.
ROCHOU,
Jöelle. “Vidigal, de Millôr Fernandes. Na praça Tiradentes, uma sátira à escravidão política”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 16.06.82.
4. Artigos em revistas
5. Entrevistas
AUGUSTO,
SÁ, Nelson de. “É... volta datada”. Folha de S.Paulo, 22.05.99.
Sérgio. “Enfim, um escritor sem estilo”. Veja. São Paulo, 20.12.72. (O crédito aparece na “Carta ao leitor”.)
“Sou apenas um humorista”. Veja. São Paulo, 28.05.75. Entrevista a Roberto Marinho de Azevedo.
SANTOS, Valmir. “Millôr lança ‘poop ópera’ à brasileira”. Folha de S.Paulo, 20.04.00.
AZEVEDO, Marinho de. “Para perguntar”. Veja. São Paulo, 11.06.75.
“Millôr, o palhaço no arame”. Opi nião. Rio de Ja nei ro, 30.05.75. Sem assinatura.
SEFFRIN,
André. “A Bíblia de um tempo perturbador”. Jornal da Tarde. São Paulo, 22.10.94.
BARROS,
André Luiz. “Revisitando Vão Gôgo”. Bravo!. São Paulo, dezembro de 1998.
“Mil lôr: pro fis são, hu mor”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 03.06.75. Entrevista a Roberto Pontual.
SEM ASSINATURA.
GIRON, Luís Antônio. “Esopo à brasileira”. Época. São Paulo, 16.06.03.
SÁ, Nelson de. “O teatro de Millôr na contramão do tempo”. Folha de S.Paulo, 29.05.94.
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KOVADLOFF, Santiago. “Textos y SEM ASSINATURA.
“Millôr: Sair no jornal? Será que cometi algum crime?”. Jornal da Tarde. São Paulo, 07.04.79.
dibujos de Millôr Fernandes”. Crisis. Buenos Aires, fevereiro, 1975. MAYRINK,
TAIR, Cida. “O livro de fôlego de um atleta do humor”. Folha de S.Paulo, 26.05.81. TOLIPAN,
Heloisa. “Millôr, prisioneiro do Rio”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 10.11.90. VAN JAFA.
“Memórias de um sargento de milícias”. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 20.09.66.
VIANNA,
Luiz Fernando. “Um cético abandona o terceiro sexo”. O Globo. Rio de Janeiro, 21.05.94.
Geraldo. “Livre pensar”. Veja. São Paulo, 03.10.73. MENDONÇA, Casemiro Xavier de. “O melhor de Millôr”. Veja. São Paulo, 20.05.81. RIBEIRO, Hamilton. “Esse
Millôr é louco?”. Realidade. São Paulo, dezembro de 1970. SEM ASSINATURA. “Documentá-
rio: um caminho e uma saída”. Visão. São Paulo, 27.01.67.
“Millôr Fernandes – nas entrelinhas do humor, segundo o au tor”. Ba nas. São Pau lo, 22.08.76. Sem assinatura. “Os melhores humoristas brasileiros são Dinarte Mariz, José Bonifácio e Gustavo Corção”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 05.03.77. Entrevista a Miriam Alencar. “Millôr, enfim um machão com estilo!”. Homem. São Paulo, abril de 1977. Entrevista a Mary Ventura, Guguta (Maria Augusta) Brandão, Ana Arruda, Tereza Aragão e Fernanda Montenegro. “Millôr”. O Pasquim. Rio de Janeiro, 17.07.77. Entrevista a Sérgio Cabral, Paulo Francis, Jaguar e Ziraldo.
SEM ASSINATURA. “Ironia de A a
Z”. Veja. São Paulo, 28.09.94. 177
“Millôr Fernandes: 35 anos de
jornalismo”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 22.08.78. Entrevista a Luiz Henrique Romagnoli.
“Se eu fosse prefeito, me suicidava”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 24.06.89. Entrevista a Ancelmo Góis e Marceu Vieira.
“Millôr desmonta indivíduo e instituições em Kaos”. Folha de S.Paulo, 30.10.01. Entrevista a Valmir Santos.
“Hoje eu publico tudo o que escrevo”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 17.05.79. Entrevista a Miriam Alencar.
“O ‘ombudsman’ da tribo de Ipanema”. O Globo. Rio de Janeiro, 15.09.91. Entrevista a Cristina Grillo.
“Millôr – Esopo do Rio” Folha de S.Paulo, 15.06.03. Entrevista a Cassiano Elek Machado.
“O solitário artista da contestaç ã o” . Fo l h a d e S . Pa u l o , 22.12.79. Entrevista a Cláudio Pucci, Moacir Amâncio e José Antônio Silva. “Órfãos de Jânio. Os anti-heróis de Millôr, com humor e angústia”. O Globo. Rio de Janeiro, 06.05.80. Entrevista a Beatriz Horta. “Os órfãos de Jânio, de Millôr Fernandes. ‘Minha peça é sobre a memória. A verdade causa espanto’”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 08.06.80. Entrevista a Norma Couri. “Millôr Fernandes: afinal, um pa co te com es ti lo”. Cor reio Braziliense. Brasília, 08.06.86. Sem assinatura. “Millôr solta o verbo”. Jornal do Bra sil. Rio de Ja nei ro, 07.11.87. Entrevista a Geneton Moraes Neto.
“Millôr condena as ‘maluquices cênicas’”. O Es ta do de S.Paulo, 11.08.94. Entrevista a Dib Carneiro Neto. “O humorismo levado a sério”. O Glo bo. Rio de Ja nei ro, 05.09.94. Entrevista a Eros Ramos de Almeida.
“Diálogos possíveis com Clarice Lispector”. Sl, sd, Centro Cultural Banco do Brasil/Divisão de Manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro (cópia xerox). Entrevista a Clarice Lispector.
ADAPTAÇÃO
“O gênio da raça”. Imprensa. São Paulo, outubro de 1994. Entrevista a Carlos Lemos. “Millôr diz que segue lei do menor esforço”. O Estado de S.Paulo, 25.01.97. Entrevista a Norma Couri. “Nos caminhos de Millôr”. República. São Paulo, maio de 1998. Entrevista a Stella Caymmi. “Millôr comenta sua produção ju ve nil”. Fo lha de S.Pau lo, 25.11.98. Entrevista a Armando Antenore.
“As reflexões sem dor de Millôr”. Imprensa. São Paulo, dezembro de 1988. Sem assinatura.
“Millôr, cabeça, tronco e membros”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 07.02.99. Entrevista a Regina Zappa e Bruno Liberati.
“Um papo de US$ 10 mil com o filósofo maldito”. Correio Braziliense. Brasília, 30.04.89. Entrevista a Afonso Borges Filho.
“Millôr Fernandes estréia coluna domingo”. Folha de S.Paulo, 21.07.00. Entrevista a Alcino Leite Neto. 178
Para a televisão Memórias de um sargento de milícias. Baseado no musical Vidigal. Direção de Mauro Mendonça Filho. Com Francisco Cuoco e Louise Cardoso, entre outros. Rede Globo de Televisão, 31.10.95.
FONTES DO GUIA MILLÔR FERNANDES Dedoc – Departamento de Documentação da Editora Abril; Arquivo IMS; Arquivo do autor; Millôr Online (www.millor.com.br); Cedoc/Funarte – Centro de Documentação e Informação em Arte da Fundação Nacional de Arte.
AG R A D E C I M E N TO S
Adriana Antonaccio, André Valli, Bárbara Heliodora, Camila Pitanga, Cine Iris (RJ), Chico e Eliana Caruso, Dedoc – Departamento de Documentação da Editora Abril, Editora Iluminuras, Editora Record, Fernando e Dalva Gasparian, Ivan Pinheiro Machado (L&PM Editores), Jaime Bernardes (Editora Nórdica) Luiz Gravatá, Maria Itália Causin (IEB), Márcia Cláudia Figueiredo (Cedoc/Funarte), Marcos Breda, Maristela Provedel, Mauro Mendonça Filho, Mayra Rodrigues, Rodolfo Felipe Neder, Rubens Ewald Filho, Sábato Magaldi, Teatro Carlos Gomes (RJ).
179
INSTITUTO MOREIRA SALLES
Walther Moreira Salles (1912-2001) Fundador Diretoria Executiva
Conselho Consultivo
Fernando Roberto Moreira Salles Presidente
João Moreira Salles Presidente
João Moreira Salles Roberto Konder Bornhausen Vice-Presidentes
Augusto Carlos da Silva Telles José Luiz Bulhões Pedreira Lúcia Regina Moreira Salles Lygia Fagundes Telles Pérsio Arida Raul Machado Horta Conselheiros
Mauro Agonilha Diretor Tesoureiro Gabriel Jorge Ferreira Diretor Executivo
Casa da Cultura de Poços de Caldas
Conselho de Administração
João Moreira Salles Presidente
Conselho Consultivo
Fernando Roberto Moreira Salles Vice-Presidente Gabriel Jorge Ferreira Pedro Moreira Salles Roberto Konder Bornhausen Walther Moreira Salles Junior Conselheiros
João Moreira Salles Presidente Antonio Candido de Mello e Souza Resk Frayha Conselheiros
Administração
Antonio Fernando De Franceschi Superintendente Executivo Edson Micael Souza Santos Rinaldo Gama Coordenadores Executivos Elizabeth Pessoa Teixeira Jaís de Souza Ferreira Odette Jerônimo Cabral Vieira Roselene Pinto Machado Sergio Burgi Coordenadores
INSTITUTO MOREIRA SALLES
Sede Av. Paulista, 1.294, 14º. andar, Bela Vista. CEP: 01310-915. São Paulo - SP. Tel.: (0 XX 11) 3371-4455; fax: (0 XX 11) 3371-4497. Internet – http://www.ims.com.br E-mail: ims@ims.com.br
Centros Culturais Rio de Janeiro Rua Marquês de São Vicente, 476, Gávea. CEP: 22451-040. Rio de Janeiro - RJ. Tel.: (0 XX 21) 3284-7400; fax: (0 XX 21) 2239-5559.
São Paulo Rua Piauí, 844, 1º. andar, Higienópolis. CEP: 01241-000. São Paulo - SP. Tel.: (0 XX 11) 3825-2560; fax: (0 XX 11) 3826-3793.
Belo Horizonte Av. Afonso Pena, 737, Centro. CEP: 30130-002. Belo Horizonte - MG. Tel.: (0 XX 31) 3213-7900; fax: (0 XX 31) 3213-7906.
Poços de Caldas Rua Teresópolis, 90, Jardim dos Estados. CEP: 37701-058. Poços de Caldas - MG. Tel./fax: (0 XX 35) 3722-2776.
Galerias IMS
Reserva técnica fotográfica e Reserva técnica musical
São Paulo Unibanco Arteplex Frei Caneca Shopping Rua Frei Caneca, 569, 3º piso. Tel.: (0 xx 11) 3255-8816.
Rio de Janeiro Rua Marquês de São Vicente, 476. Tel.: (0 xx 21) 3284-7400.
Porto Alegre Unibanco Arteplex Shopping Bourbon Country Av. Túlio de Rose, 100, 2º piso. Tel.: (0 xx 51) 3341-9685.
CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA À venda nas principais livrarias do país, nos espaços culturais e no site do Instituto Moreira Salles e em Portugal Número 1 – João Cabral de Melo Neto (mar. 96)
Número 8 – Hilda Hilst (out. 99)
Número 2 – Raduan Nassar (set. 96)
Número 9 – Adélia Prado (jun. 00)
Número 3 – Jorge Amado (mar. 97)
Número 10 – Ariano Suassuna (nov. 00)
Número 4 – Rachel de Queiroz (set. 97)
Número 11 – Ignácio de Loyola Brandão (jun. 01)
Número 5 – Lygia Fagundes Telles (mar. 98)
Número 12 – Carlos Heitor Cony (dez. 01)
Número 6 – Ferreira Gullar (set. 98)
Números 13 e 14 – Euclides da Cunha (dez. 02)
Número 7 – João Ubaldo Ribeiro (mar. 99)
Número 15 – Millôr Fernandes (jul. 03)
Jornalista responsável: Antonio Fernando De Franceschi (MTb: 9.093).
ESTA OBRA FOI COMPOSTA PELA BEI˜ • COMUNICAÇÃO EM GARAMOND E GILL SANS COM FOTOLITOS E IMPRESSÃO DA TAKANO EDITORA GRÁFICA PARA O INSTITUTO MOREIRA SALLES EM JULHO DE 2003.
As cem melhores frases do Millôr? O que é que eu fiz para merecer tamanho desafio? Ok, é uma honra, mas convenhamos: escolher apenas cem das melhores frases do Millôr é algo tão difícil quanto escolher os três melhores bailados de Fred Astaire, as cinco melhores músicas do Tom Jobim, os seis melhores quadros do Matisse e os quatro melhores gols do Pelé. Entre janeiro de 1945 (quando lançou a revolucionária seção “O Pif-Paf ” na revista O Cruzeiro) e 2003, Millôr produziu em torno de 15 mil máximas, aforismos, pensamentos, meditações, apotegmas, gnomas e que outros nomes mereçam ter as suas tiradas, um recorde de quantidade e qualidade, inigualado em nossa língua. Nenhuma delas (e não estou falando só das cem melhores) seria recusada por Groucho Marx, Oscar Wilde, La Rochefoucauld, George Bernard Shaw e Ambrose Bierce, para citar o resto do Olimpo a que o filósofo do Méier orgulhosamente pertence. Nunca um humorista foi tão longevo sem perder, no meio do caminho, o que os conterrâneos de Shaw e Groucho chamam de bite, que é algo bem mais poderoso e transcendental que uma mordida. Por ser precavido e sabiamente descrente da rentura alheia, já escolheu seu epitáfio: “Não contem mais comigo”. Podem contar, sim. Com a sabedoria que já nos legou, Millôr nos deixou amparados para todo o sempre.
Encarte do 15º. número dos CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA (jul. 2003), que tem por tema Millôr Fernandes.
Cem vezes Mill么r S茅rgio Augusto
1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24. 25. 26. 27. 28. 29. 30. 31. 32. 33. 34. 35.
O acaso é uma besteira de Deus. Morrer é uma coisa que se deve deixar sempre pra depois. O Brasil é os Estados Unidos onde eu vivo. Um homem é adulto no dia em que começa a gastar mais do que ganha. A invenção do Alka-Seltzer foi uma tempestade em copo d’água. Nasci com talento melódico numa época em que o pessoal só se interessa por percussão. Analista é um sujeito que partindo de premissas falsas consegue chegar a conclusões perfeitamente equivocadas. Anarquia é apenas uma proposta social em que você dá ao palhaço a administração do circo. (E quase sempre ele é muito bem-sucedido.) Se os animais falassem não seria conosco que iam bater papo. Nunca deixe de fazer amanhã o que pode deixar de fazer hoje. Nas noites de Brasília, cheias de mordomia, todos os gastos são pardos. Um desses livros que quando você larga não consegue mais pegar. Minha especialidade e meu orgulho: sou o maior leigo do país. 50% dos doentes morrem de médico. Celebridade é um idiota qualquer que apareceu na televisão. Chato é uma pessoa que não sabe que “Como vai?” é um cumprimento, não uma pergunta. Todo governante se compõe de 3% de Lincoln e 97% de Pinochet. Jamais chame um amigo de imbecil. É preferível lhe pedir dinheiro emprestado e não pagar. Se sua calça tem um buraco, usea-a pelo avesso. Quem se curva aos opressores mostra a bunda aos oprimidos. A alma enruga antes da pele. Comida é bom, bebida é ótimo, música é admirável, literatura é sublime, mas só o sexo provoca ereção. Especialista é o que só não ignora uma coisa. Os pássaros voam porque não têm ideologia. A falsa modéstia é o rabo escondido com o gato de fora. Fobia é um medo com PhD. A fotografia é a mentira verdadeira. Toda fotografia antiga é uma punhalada. O futebol é o ópio do povo e o narcotráfico da mídia. Quem sai aos seus não endireita mais. O gourmet é o comilão erudito. O haddock é um bacalhau que venceu na vida. A humildade é uma espécie de orgulho que aposta no perdedor. O humorismo é a quintessência da seriedade. Idade da razão é quando a gente faz as maiores besteiras sem ficar preocupado.
36. 37. 38. 39. 40. 41. 42. 43. 44. 45. 46. 47. 48. 49. 50. 51. 52. 53. 54. 55. 56. 57. 58. 59. 60. 61. 62. 63. 64. 65. 66. 67. 68. 69. 70.
Desconfio de todo idealista que lucra com seu ideal. Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos & molhados. Como são admiráveis as pessoas que não conhecemos muito bem! Grande erro da natureza é a incompetência não doer. Todo homem nasce original e morre plágio. Livre como um táxi. Divagar e sempre. Monogamia é a capacidade de ser infiel à mesma pessoa durante a vida inteira. A morte é hereditária. A ociosidade é a mãe de todos os vices. O cara que completa 80 anos está, evidentemente, vivendo acima de seus recursos. Se é gostoso, faz logo. Amanhã pode ser ilegal. O otimismo é o pessimismo em diluição. A probidade não tem cúmplices. Deus dá o frio a quem não tem dentes. O quartzo é um mineral que fica entre o tertzo e o quintzo. A invenção da poltrona acabou com os heróis. Certos escritores se pretendem eternos e são apenas intermináveis. O dinheiro não é tudo. Tudo é a falta de dinheiro. Dizem que quando o Criador criou o homem, os animais todos em volta não caíram na gargalhada apenas por uma questão de respeito. Conheço alguns escritores que morreram aos 30 anos e só conseguiram entrar pra Academia aos 60. Não confundir ética com etiqueta, que é apenas uma ética de butique. Eu posso não ser um bom exemplo. Mas sou um bom aviso. A beleza é a inteligência à flor da pele. Todo líder acaba empregado de sua liderança. Dinheiro compra até amor verdadeiro. Os homens não fervem à mesma temperatura. À noite (na penumbra aconchegante das alcovas permissivas), todos os pardos são gatos. A importância leva mais gente ao cemitério do que a impotência. Quando a bajulação não atinge seu objetivo, você pode estar certo de que não é por falta de vaidade do bajulado – é por incompetência do puxa-saco. Entre o riso e a lágrima quase sempre há apenas o nariz. De todas as taras sexuais, não existe nenhuma mais estranha do que a abstinência. A Academia Brasileira de Letras se compõe de 39 membros e um morto rotativo. Não existe o japonês individual. Temos que começar por baixo. Como os Estados Unidos, por exemplo. Eles começaram com um país só.
71. Não gosto da direita porque ela é de direita, e não gosto da esquerda porque ela é de direita. 72. Nos momentos de perigo é fundamental manter a presença de espírito, embora o ideal fosse conseguir a ausência do corpo. 73. O arroto é um som burguês, incompreensível entre os pobres. 74. Deus é bom. Está é muito mal cercado. 75. O sujeito que me fará acreditar na imortalidade da alma ainda está pra ressuscitar. 76. Político é um sujeito que convence todo mundo a fazer uma coisa da qual ele não tem a menor convicção. 77. Bahia – a maior agência de publicidade do mundo. 78. O bêbado é o subconsciente do abstêmio. 79. O bolero não morrerá enquanto houver um coroa tomando banho de chuveiro frio. 80. Todos os grupos são apenas agências de emprego para seus membros. 81. Nada é certo neste mundo – a não ser o telefone tocar quando você está sozinho em casa e acabou de sentar no vaso. 82. Baiano só tem pânico no dia seguinte. 83. Os corruptos são encontrados em várias partes do mundo, quase todas no Brasil. 84. A credibilidade de um país é inversamente proporcional aos juros que os banqueiros internacionais lhe cobram. 85. A curiosidade mórbida é a mãe do vidro fumê. 86. Não haverá democracia enquanto eu for obrigado a escrever deus com D maiúsculo. 87. O problema da democracia é que quando o povo toma o palácio, não sabe puxar a descarga. 88. O mal do mundo é que Deus e o Diabo envelheceram, mas o Diabo fez plástica. 89. Os socialistas são contra o lucro. Os capitalistas são apenas contra o prejuízo. 90. Um escritor só é realmente famoso quando seus erros de linguagem passam a ser considerados regras gramaticais. 91. O problema de ficar na fossa é que lá só tem chato. 92. Não existe tendência para engordar. Existe tendência para comer. 93. Cada ideologia tem a Inquisição que merece. 94. Quando uma ideologia fica bem velhinha vem morar no Brasil. 95. O pior não é morrer. É não poder espantar as moscas. 96. Há males que vêm pra pior. 97. Quem não tem memória sabe tudo de olvido. 98. O maior erro de Noé foi não ter matado as duas baratas que entraram na Arca. 99. No Nordeste nu explícito é esqueleto. 100. Quando você está fora de si, o pessoal vê melhor o que você tem dentro.
CADERNOS DE B R A S I L E I R A
Millôr Fernandes
LITERATURA
CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA
Anotações para a peça Duas tábuas e uma paixão (1982)
INSTITUTO MOREIRA SALLES
Millôr Fernandes
15 NÚMERO
INSTITUTO MOREIRA SALLES