UKIYO - E PINTUR A S DO MUNDO FLUTUANTE
Ukiyo-e, arte de representação de entretenimentos de citadinos do período Edo (1603-1868) Madalena Hashimoto Cordaro 1
em exposições, acervos de museus , coleções particulares, catálogos e livros, ukiyo-e é reduzido a xilogravura, em especial à colorida, admirando-se a mestria de cortes na madeira, a riqueza colorística, a leveza de aguados na impressão, as artes têxteis representadas e a complexidade técnica. Em termos de tópicas, são estampas que mostram um extenso “mundo flutuante”: figuras-bonitas de yûjo (“mulher entretenimento”) 2 e yakusha (“pessoa que atua”, ator), áreas-de-prazeres e de teatro, usos-e-costumes, vistas-famosas de cidades e províncias, vistas do monte Fuji, ocupações, insetos e animais, flores e pássaros, heróis e fantasmas. Sendo não só muitas as tópicas, mas também muito variados os modos pictóricos, é insuficiente o epíteto “pinturas do mundo flutuante” a elas inicialmente atribuído por se referirem aos mundos das áreas-separadas de prazeres e de teatro, pois ukiyo-e não é termo que se restringe tecnicamente a xilogravura ou estampa, nem a temática específica nem a famílias artísticas. Nota-se, em primeiro lugar, um cultivo da cultura aristocrática do período Heian (794-1186), que pode ser percebido principalmente na busca de um segundo ima-yô (“ao modo de agora”),
Madalena Natsuko Hashimoto Cordaro leciona literatura japonesa na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo desde 1989. Fez o mestrado na Washington University, em Saint Louis, tendo obtido o título Master of Fine Arts (Printmaking), o doutorado na Faculdade de Filosofia, fflch-usp, e o pós-doutorado no International Japanese Sudies Research Center, em Kyôto. Formado pelos ideogramas “asobu” e “onna” (mulher). “Asobu” (“brincar, entreter-se”) é conceito complexo no período Edo, referindo-se principalmente ao mundo dos prazeres dos sentidos, ligados, entretanto, ao contexto do sagrado e, no mundo da arte, à dança, ao canto, à criação de música e poesia. Assim, as mulheres que atuam nas áreas-de-prazeres (yûkaku, “lugar para asobu”) associam-se a divindades e a artes, sendo equivocada a tradução direta corrente nas línguas ocidentais como “prostituta” ou “cortesã”, embora muitas de fato não passassem de tal.
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desta vez no período Edo: o “agora” da moda das cidades, das últimas técnicas das ricas tramas tecidas ou estampadas em sedas, de modo manual, detalhado e personalizado, o “hoje” da vida prazerosa e intensa, deixando para trás o “ontem” das guerras dos séculos xii a xv, com seu sentido triste diante do inexorável da efemeridade e da impermanência (mujôkan) provocadas por guerras. Recriam, assim, outro mundo flutuante (ukiyo), “portanto a ser vivido plena e alegremente”, em substituição ao antigo mundo flutuante búdico (ukiyo), “portanto a ser sofrido como compadecimento”, iniciando-se já como jogo lingüístico homófono. Assim, ukiyo (vocábulo formado pelos ideogramas “yo” – mundo – e “uki/ushi” – infeliz, triste, miserável, soturno, melancólico, fatigado) é substituído por ukiyo (“yo” – mundo – e “uki” – que flutua suavemente na água ou no ar, que singra águas, que vem à tona, ao alto, que fica alegre, leve). Com efeito, numerosas são as pinturas e estampas que representam divertimentos nas águas do rio Sumida, ao longo de cujas margens se instalam áreas-de-prazeres não licenciadas (Fukagawa é a mais representativa). O “mundo flutuante” é abordado de um ponto de vista particular. Segundo o estudioso Yoshida Teruji, ele “não é de ‘conhecimento’, não é de ‘coração que pensa’, é de vida de ‘sentimentos’”. 3 Nasake (“sentimento”), diferentemente de aware (“compaixão búdica”), engloba paixão, comiseração, clemência, benevolência, simpatia, gentileza, afeição, amor. Ukiyo-e é, segundo Yoshida, a pintura de nasake, não se restringindo a um meio técnico. Mas, continua, se ukiyo-e for compreendida como estampa somente, seu caráter é o de “ser social, um meio utilizado para difundir informação e educação”. 4 Em outras palavras: a arte é útil. É também essa utilidade das estampas que desnorteia apreciadores ocidentais que entendem a arte como desligada de seus fins práticos. Quando Hiroshige e vários artistas desenham as 53 estações que ligam a capital imperial à cidade xogunal, seguem também necessidades descritivas de guias para as viagens forçadas que daimios eram obrigados a fazer, obedecendo à promulgação da lei sankin kôtai, permanência alternada obrigatória na cidade do xogum, em anos alternados. Ukiyo-e, além disso, denominando arte de meados do século xvii a meados do xix, difere de época para época. Há consenso, ultimamente, em dividir o período Edo, quanto à produção de estampas xilográficas, em duas fases: a primeira, de 1600 a 1750 (ou 1765, mais exatamente), é chamada por estudiosos japoneses de Shoki (período inicial), sendo também denominado período primitivo, no sentido de inicial, por alguns estudiosos ocidentais; a segunda, de 1750 a 1868, é Kôki (segundo período). É o ukiyo-e do segundo período o mais conhecido, pois marcado pela xilogravura multicolorida, denominada, na época, nishiki-e (“pintura-brocado”), ou Azuma nishiki-e (“pintura-brocado-da-cidade-de-Edo”) ou simplesmente Edo-e (“pintura-da-cidade-de-Edo”). Quando se afirma que Hishikawa Moronobu inicia o ukiyo-e, afirma-se que, além de pintar
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teruji, Yoshida. Ukiyo-e nyûmon. Tóquio: Gabundô, 1962. Ibidem.
tópicas do mundo flutuante, faz desenhos para serem gravados e impressos xilograficamente, conhecidos como hanshita-e (“pintura-de-baixo-para-impressão”). A xilogravura, já praticada desde o século xiv, quando utilizada em templos budistas, passa, no início do século xvii, a divulgar escritos antigos e de narrativas curtas contemporâneas do gênero otogi-zôshi. São especialmente importantes os livros conhecidos como: Kôetsu-bon (livros editados por Kôetsu) ou Saga-bon (livros editados na região de Saga) e Tanroku-bon (“livros verde-e-laranja”, impressos em tinta preta sumi e pintados a mão). No século xvii, as editoras, como qualquer casa comercial, já utilizam o sufixo “-ya”, casa, como em Yamagata-ya. No apreço de artistas do Ocidente pela estampa ukiyo-e, entretanto, percebe-se sua especificidade: em termos de processo de produção, a xilogravura não difere muito na Europa e no Japão, pois a divisão de trabalho em coordenação, desenho, corte, impressão e distribuição são equivalentes. São específicos a utilização de tintas aguadas e de blocos de cor, do ponto de vista técnico, e o modo de tratar as tópicas, do ponto de vista do desenho. Muitas técnicas de impressão e gravação no Japão são inventadas por artífices do papel, da faca (principal instrumento no entalhe das matrizes de madeira dura), dos pincéis, das escovas, do modo de entintar e do uso do baren (almofada de imprimir): não se pode diminuir, na feitura da estampa ukiyo-e, nem seu caráter de produção coletiva nem seus fins comerciais. Assim, estampas assemelham-se, muitas vezes, não pelo “desenho-chave” (a estrutura linear da imagem), mas pelos procedimentos de corte e impressão, que se sofisticam progressivamente. No primeiro período, a estampa preta-e-branca (sumizuri-e) é pintada a mão, primeiramente com predomínio de tons alaranjados, sendo chamada tan-e; depois, com tons carmesins, verdes e azuis, conhecida como beni-e. Entalhadores e impressores especializam-se e passam a imprimir a cor (iro-zuri) em etapas: benizuri-e (pintura-impressa-carmesim, que inclui verdes e azuis), urushi-e (pintura-laqueada, a impressão de sumi é sobreposta pelo aglutinante nikawa, que dá brilho a certas áreas, geralmente ao preto). Marcando, então, o segundo período, cores são crescentemente impressas: nishiki-e (pinturabrocado) aponta a riqueza colorística atingida pelo trabalho colaborativo. Sempre multicoloridas, surgem novas classificações. Surimono (coisa-impressa) designa estampas produzidas e distribuídas de modo privado, que se originam em 1765-1766, como efeito, dizem alguns estudiosos, da proibição xogunal de imprimir calendários. Por volta de 1790, as estampas já são comissionadas individualmente, sobretudo como cartões de Ano Novo, compondo-se de poemas de autoria própria (kyôka ou haiku) e desenhos de algum artista ukiyo-e. Surimono é termo genérico para edição de convites para celebrações, presentes, coleções de poemas de discípulos de algum mestre de haiku ou de apresentação musical e cartões comerciais. Proibindo-se a utilização de cores (luxo e erotismo vedado aos citadinos), surgem estampas nas quais, não se reduzindo os blocos de cores, reduzem-se as cores: ao-e (pintura-azul) é impressa em muitas tonalidades de azul-da-prússia; aka-e (pintura-vermelho-carmesim), em muitas tonalidades de carmesim; aka-girai (detestar vermelho-carmesim), em vários tons
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de cinza com poucos detalhes em cores leves. Sutil e fazendo referência aos clássicos, é refinadíssima a utilização de pigmentos iridescentes (kira-zuri), procedimento conhecido desde o século x. No segundo período, gravadores e impressores já são mestres e coordenam oficinas. Os desenhos para estampas de Hokusai que ainda sobrevivem 5 surpreendem pela ausência de detalhes e por um novo frescor: as decisões relativamente às estampas são feitas por desenhista, gravador, impressor e editor. O processo do fazer entende-se como refinado (ga), sendo seu público o homem comum (zoku). A seleção de tópicas refere-se aos palácios de Heian (ga), sendo substituída por novas tópicas do homem comum das cidades (zoku). Impressores inventam novos modos de utilizar pigmentos – superpondo, justapondo, aguando mais ou menos –, variam na aplicação das pinceladas em gradação – utilizam-se até de panos úmidos para tal –, experimentam modos diferentes de aplicação da tinta na madeira, modificam a pressão exercida pelo baren sobre o papel, e a cada modo dão um nome: bokashi (gradação), atenashi-bokashi (gradação-conforme-áreas), nuno-bokashi (gradação-por-tecido), ichimen-zuri (impressão-em-um-lado), ryômen-zuri (impressão-nos-dois-lados), ushiro-zuri (impressão-por-trás), baren-suji (veios-do-baren), kara-zuri (impressão-vazia, relevo sem tinta) e kira-zuri (impressão-de-pigmento-de-conchas). Refinadas, as estampas são impressas com minuciosidade crescente no tempo, cada novo modo adquirindo vida própria: a “gradação-em-uma-linha” (hito-suji-bokashi), geralmente impressa em azul-daprússia no alto das estampas, é “construção de perspectiva pela cor”; tomando emprestadas palavras do artista-gravador Evandro Carlos Jardim; independentemente do desenho ou do artista, a “gradação-em-uma-linha” está presente, a caracterizar horizontes de vistas-famosas. O afã classificatório e o cultivo de detalhes (Komakai! Komakai! – Tão pequeno! Tão sutil!) fazem pulular nomes para as estampas, seja por formato e tamanho dos papéis: ôôban (estampa-muito-grande), ôban (estampa-grande), chûban (estampa-média), koban (estampa-pequena), hashira-e (gravura-pilar), ni-tsugi (“seguem-se-dois”, díptico), mittsugi (“seguem-se-três”, tríptico); por cidades: Otsu-e, Ôsaka-e, Azuma nishiki-e, Edo-e, Nagasaki-e, Yokohama-e; ou por tópicas: bijinga (pintura de figura-bonita), yakusha-e (pintura de ator), musha-e (pintura de samurai), uki-e (pintura-que-flutua [com-perspectiva-ocidental]), abuna-e (pintura-perigosa) 6, ôkubi-e (pintura de grande-pescoço [busto]), shunga (pintura-primavera), meisho-e (pintura de local-famoso),
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O desenho original é colado com a face virada para a madeira; posteriormente, umedecendo-se o papel, fricciona-se levemente para desmanchá-lo (washi, o papel japonês, a isto se presta perfeitamente) até que apareçam as linhas do desenho em sumi, que se tornam, após a gravação, o alto-relevo na matriz. O procedimento de inversão da imagem, assim, não é necessário, dotando-se as linhas de desenho de maior fluidez e precisão. Abuna-e são estampas que aparecem após a proibição de escritos sobre o amor (kôshoku-bon) e de pinturas e estampas “secretas” (higa) em 1722, durante a Reforma Kyôhô. Compreendem estampas que mostram corpos nus, ou partes de corpos nus, sempre de mulheres; não são libidinosas ou voluptuosas, segundo palavras de Yoshida Teruji, mas mostram mulheres em atividades diárias: lavando cabelos, cortando unhas, banhando-se, maquiando-se, vestindo-se. A maior parte dessas estampas é beni-zuri-e (“pintura-impressa-carmesim”), feitas por Ishikawa Toyonobu, Okumura Masanobu, Torii Kiyomasa e Torii Kiyohiro.
shokunin-e (pintura de trabalhador). Concomitantes, as tópicas são inicialmente tratadas somente
por determinadas famílias de pintores, mas a prática e as razões do mercado fazem com que, no segundo período, tópicas não se restrinjam a determinados artistas, havendo muitos cruzamentos entre elas. Assim, pinturas de locais-famosos, que se limitavam a mostrar topografias particulares, habitantes e atividades locais, passam a ser ambientes para figuras-bonitas de artistas-do-amor e do teatro, ou até de batalhas, aparição de monstros, personagens históricas de narrativas. Nos dois períodos, os desenhistas de estampas tentam se organizar em iemoto (“sistema que segue a casa”), emulação de modos samurais. Sua atividade, entretanto, atende a demandas variadas que impossibilitam a filiação em apenas uma família, como se vê no caso, extremo, de Hokusai, e também na maior parte dos artistas ukiyo-e (o número de gô – “nomes de artistas” –, aumenta no segundo período). A adoção de sobrenomes, ou nomes de famílias, somente é permitida para os homens comuns em 1870. Assim, a associação de um nome de artista a uma determinada pessoa é, muitas vezes, impossível de ser estabelecida, como no caso de Tôshûsai Sharaku. Emitir juízos de autorias sobre os desenhistas do período é entrar em seu jogo de disfarces e simulações: embora as estampas sejam assinadas (entalha-se o nome do desenhista da estampa na própria matriz-chave), o nome (gô) indica determinado modo, tópica ou família artística, não uma pessoa. Sendo impressa manualmente, aceitando acidentes (ou os tornando característicos) e demandas de público, cada estampa é, no fim, uma pintura, repetível segundo variações ao longo dos anos. Pode ser reimpressa até hoje, repetível como uma cerimônia de chá e, na repetição, sempre única. Os membros das famílias de pintura Tosa (da corte) e Kanô (dos militares) obedecem a formas e tópicas pictóricas estabelecidas por mestres ancestrais. Quando se tornam chefes da família, adotam um nome (gô) que é mantido até a morte ou o retirar-se do mundo. Na poesia japonesa waka, diferentes gô são atribuídos aos que ingressam em seu universo, independentemente de suas origens. A forma das artes (kata) é obedecida rigorosamente, os significantes (dicção poética, tópicas, termos sazonais, palavras-travesseiro, trocadilhos) são os mesmos, os significados (coração) é que mudam (kotoba wa furuki, kokoro wa atarashiki). Entretanto, em Edo, a adoção de nomes (gô) obedece não só ao alcance da mestria em uma arte, mas, também, à procura de mestria em outras artes: Santô Kyôden 7, já um nome de escritor de sharebon (livros satíricos), adota outro nome como desenhista de estampas, Kitao Masanobu, tendo por vezes assinado com o nome de Harunobu, quando o imita. Assim, Shiba Kôkan, gô de pintor que explora os modos ocidentais, é Harushige quando faz ukiyo-e.
Santô Kyôden (1761-1816) foi iniciado na pintura por Kitao Shigemasa e também fez desenhos para estampas. Aos 17 anos, começa a escrever kibyôshi. Em 1785, publica Edo-umare uwaki-no kabayaki, que lhe proporciona reputação como escritor. Conhecedor das áreas-de-prazeres em minúcias, escreve sobre seus acontecimentos na forma sharebon (“livros-espertos-e-namoda”), com ilustrações próprias, conceituando tsûjin, o especialista nos “caminhos-do-mundo”. Em 1790, casa-se com uma yûjo e, no ano seguinte, é condenado pelo xogunato a ficar 50 dias algemado em punição por “violação de leis morais”. Volta-se, mais tarde, a escrever yomihon, mas não compete em erudição com seu antigo estudante Takizawa Bakin. Além de pintor e poeta, escreveu numa variedade de gêneros: kibyôshi, sharebon, gôkan, yomihon, kokkeibon, zuihitsu e ehon.
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O sistema costuma provocar descaminhos entre estudiosos preocupados com autorias individuais, criações singulares e originais de arte, os quais se perdem quando tentam traçar o conjunto de obras de um artista. Não são, até o momento, definitivas várias atribuições de pinturas, pois, à complexidade exposta, somam-se obras de inúmeros discípulos que adotam o mesmo nome do mestre. O caso mais prolixo é o do artista hoje conhecido como Katsushika Hokusai (1760-1849), que foi também Shunrô (nome outorgado pelo chefe da família Katsukawa, Shunshô) entre 1779 e 1794 8, Shikoku Gankô 9, Sôri ii, Hyakurin Sôri, Tawaraya Sôri ii (1796-?), Hokusai Sôri (1796-1799), Sôri 10, Kakô (1798-1811), Tokimasa (1799-1810), Hokusai Shinsei 11, Gakyôjin (Homem-Louco-por-Desenho, 1799-1810), Tôyô Hokusai, Katsushika (c. 1806-1824), Katsushika Hokusai (c. 1807-1822), Tokimasa (1810-?), zen-Hokusai (c. 1830-1832), Gakyô-rôjin Manji (Manji, Homem-Velho-Louco-por-Desenho, 1834-1849), para citar somente os principais entre os 63 diferentes nomes pelos quais é conhecido. 12 Cada novo nome revela uma personalidade definida no pincel, que toma forma também técnica: é Shunrô quando pinta, em delicados modos sobre seda, belas yûjo, protagonistas do ukiyo-e, e suas atividades em “pinturas-primavera” (shunga). Nos anos 1800, ilustra gesaku kibyôshi (“livros-de-capa-amarela”, escritos satíricos baixos ligados ao mundo das áreas-de-prazeres) e yomihon (“livros de ler”, quase sem ilustrações, narrativas fantásticas com tópicas cruéis e aterrorizantes, mas também didáticas e moralizantes), como as obras do escritor Takizawa Bakin. 13 É quando adota o nome Katsushika Hokusai e sobrepõe, ao modo ukiyo-e, pinceladas chinesas características da dinastia Ming, de composições sinuosas e contorcidas. Ao se afastar do yomihon, em 1811, muda seu nome para Taito (Estrela Polar), passando Hokusai para um discípulo menor. Ao fazer 60 anos, em 1819, adota novo nome, Iitsu (TornadoUm), aludindo à crença japonesa de que aos 60 se inicia um novo ciclo de existência. Ao olhar para o mundo comum dos habitantes da cidade de Edo e seu amor por vistas de locais-famosos,
Consta que a causa de Shunshô o ter expulso de sua família se deve ao fato de este ter se iniciado no estudo dos métodos de pintura da família Kanô. Nome utilizado entre 1788 e 1810, aproximadamente, para imagens eróticas; o nome é também utilizado por Utamaro e Eisen. Em 1787, Hokusai adota variantes de nome de Sôri, devido à apreciação dos modos de Tawaraya Sôri, pintor contemporâneo com afinidades com a família Tosa e com os trabalhos de Ogata Kôrin. Sob esse gô, tem problemas de subsistência, o que o leva a se dedicar a outras tópicas, como gaviões (aves-signo dos samurais), pimentas vermelhas e calendários, mudando novamente o nome. Estuda com Sôri ii, Hiroyuki e Shiba Kôkan (introdutor da água-forte no Japão, que lhe ensina métodos europeus) e, em seguida, dedica-se ao estudo de grandes pintores chineses da dinastia Ming (1368-1616). Hoku-shin-sei: constelação noroeste, ou Ursa Maior. lane, Richard. Hokusai life and work. Nova York: E.P. Dutton, 1989, pp. 311-315. Takizawa (Kyokutei) Bakin (1767-1848) r������������������������������������������������������������������������������� ecebeu formação samurai do pai, que servia à família Matsudaira. Após o falecimento do pai, quando tinha oito anos, serviu outros samurais, estudou medicina, confucionismo, caligrafia, mas desistiu de tudo e se tornou aluno de Santô Kyôden aos 23 anos. Dedicou-se a vários gêneros em seus mais de 60 anos de atividade literária, sendo a obra mais célebre Nansô satomi hakkenden, que completou antes de morrer, aos 81 anos. Hakkenden pertence ao gênero yomihon, portanto, de inspiração chinesa, seguindo idéias morais confucionistas, mas também cármicas, tendo sido escrita durante 23 anos.
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trabalhadores, pássaros-e-flores, montanhas-e-rios, peixes, árvores, numa absorção peculiar das regras da profundidade pictórica aprendida de chineses, na recessão de planos, e de holandeses, na perspectiva linear, retoma o nome Hokusai, mas, com tantos discípulos já Hokusai, deve adotar Zen-no Hokusai (Hokusai de Antes, Primeiro Hokusai). Como já havia sido Gakyôjin (Homem-Louco-por-Desenho), aos 40 anos, torna-se Gakyô-rôjin (Homem-Velho-Louco-porDesenho). Não só discriminou e separou tópicas com diferentes tratamentos técnicos, como também os superpôs e lhes deslocou os domínios, tendo exercido sua arte livre de injunções impostas por sistemas familiares de pintura (iemoto), embora ligadas ao mundo editorial. Os nomes em superposição (como kasane de camadas de quimonos das damas da corte de Heian) no tempo deixam perceber uma polifonia de tópicas e técnicas que, se já não existisse o sistema yatsushi de ocultamento e adoção de outro nome (por curta ou óbvia que fosse), seria preciso inventá-lo para dar conta da complexidade das artes hedonistas: como jogo de mestria, a pintura se torna também um caminho para o discípulo, que se coloca numa posição ambígua entre o amador e o profissional, e desorganiza os sistemas hierárquicos familiares (iemoto). Desde os cinco anos eu tinha aptidão para copiar as formas das coisas, e, aos 50, muitas pinturas tinham sido publicadas; mas, até os 70 anos, nada que eu tivesse desenhado era digno de nota. Com 73 anos, eu era capaz de captar o crescimento de plantas e árvores e a estrutura de pássaros, animais, insetos e peixes. Portanto, quando eu chegar aos 80 anos, espero ter feito progressos maiores, e, aos 90, enxergar o princípio inerente das coisas, de modo que aos 100 anos atinja um estado divino na arte, e, com 110, consiga dar vida a um ponto, a uma linha. Os que entre vocês viverem tanto atestem isto para que minhas palavras não se provem falsas. Declarado por Gakyô Rôjin Manji. 14
Hokusai estuda métodos ocidentais com os holandeses, únicos ocidentais cuja presença é permitida, confinados na ilha artificial de Deshima, em Nagasaki, após o século xvi. Como Hokusai tem discípulos em terras próximas a Nagasaki, como consta em várias de suas publicações, faz viagens, ensina e aprende. Mais notável a partir do século xviii, Rangaku (estudos holandeses) À declaração segue sua nova assinatura Gakyô Rôjin Manji (Manji, Homem-Velho-Louco-por-Desenho), no prefácio ao livro ilustrado Fugaku hyakkei (100 vistas do monte Fuji). Hokusai tem 75 anos de idade quando o primeiro volume do trabalho é publicado, em 1834. Manji refere-se à “figura de dez mil”, antigo símbolo religioso da suástica, o protetor da vida e da fortuna. In Hokusai – One hundred views of mount Fuji. Introdução e comentários de Henry Smith. Nova York: Thames & Hudson, 1988, p.7.
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é ponto de referência principalmente para os daimios de Kyûshû, que se dedicam ao estudo da língua holandesa e das áreas da botânica, óptica e medicina por meio de livros ilustrados com gravuras em metal. Shiba Kôkan (1747-1818), guiado por instruções em livros, inicia suas águasfortes copiando vistas, em perspectiva ampla, de Roma e Veneza (mais uma vez, a tópica visual cola-se ao meio técnico). “Objetos estranhos” (kiki), como relógios, óculos, lentes de aumento, microscópios, câmaras escuras, são mostrados em feiras públicas, atraindo muita curiosidade. Apreciam-se as estampas ukiyo-e, também, levando em consideração as famílias artísticas que as produzem. Hishikawa-ha (“corrente Hishikawa”) compreende os seguidores de Moronobu, principalmente seus filhos. Embora considerado o iniciador do gênero ukiyo-e na pintura e na estampa xilográfica, não teve longevidade. Torii é família duradoura de pintores e desenhistas de estampas, associada inicialmente ao teatro kabuki, fundada por Torii Kiyomoto (?-1702), ator de Ôsaka que vai a Edo em 1687 e se liga à companhia Ichimura-za. A segunda geração é liderada por Torii Kiyonobu (Ôsaka, 1664 – Edo, 1729), que, além de pinturas em cartazes (kanban-e) faz também bijinga. Sendo os cartazes e placas teatrais feitos para serem vistos de longe, os Torii utilizam composição dinâmica e cores vibrantes, modo que se estende também à pintura-de-figuras-bonitas. Torii Kiyomasa (1735-1785) é da terceira geração, faz atores, figuras-bonitas e desenvolve beni-zuri-e, estampa-impressa-carmesim. Mais tarde, Torii Kiyonaga (1752-1815) iguala-se a Utamaro em suas figuras-bonitas de mulheres e seus usos-e-costumes citadinos. Katsukawa-ha forma-se a partir de Shunshô (1726-1792), irmão mais velho do principalmente pintor Miyagawa Shunsui (ativo entre 1744-1764). Shunshô faz pintura e desenhos para xilogravuras, rompe a tradição de os Torii monopolizarem a tópica de kabuki e atores, faz atores, figuras-bonitas, samurais e lutadores de sumô. Família prolífica de seguidores, o conhecidíssimo Katsushika Hokusai (1760-1849) é, primeiramente, Katsukawa Shunrô. Utagawa-ha é uma correnteza de muitos artistas relacionados não necessariamente por consangüinidade e sim quanto a modo e tópicas, tendo tido muitos afluentes a partir de fins do século xviii. Toyoharu (1735-1814) é o primeiro, faz vistas-famosas. O discípulo Toyokuni i (1769-1825) também faz vistas, mas se volta para o teatro kabuki e as narrativas históricas. Toyohiro (1773-1828) faz bijinga e “pintura introduzida” para narrativas leves, fantásticas e de guerreiros. Toyokuni (1769-1825) dissemina o ensino da pintura nos gêneros de samurais e narrativas épicas, tendo feito também desenhos para estampas de figuras-bonitas, vistas-famosas e teatro. Toyokuni ii (ou Toyoshige, 1777-1835?) faz atores, cenas de teatro kabuki e samurais de narrativas históricas. Kunisada (ou Toyokuni iii, 1786-1864) faz “pintura introduzida” (sashi-e), para Nise Murasaki inaka Genji (Genji das províncias da falsa Murasaki), de Ryûtei Tanehiko 15 e escritos de Kyokutei Bakin, Ryûtei Tanehiko (1783-1843) foi escritor de livros do tipo conhecido por “seriado” (gôkan) ou escritos “planta (brochuras)”
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sendo também numerosas suas estampas de atores e peças, pois vive uma fase áurea na dramaturgia kabuki, e teve muitos seguidores. Hiroshige (1797-1858) fica mais conhecido depois como Ando Hiroshige, célebre por suas vistas-famosas, principalmente 53 estações da estrada Tôkaidô, flores-e-pássaros, peixes e insetos, foi também iniciador de modo próprio, tendo tido muitos discípulos (Hirokage, Hiroshige ii, Hiroshige iii, Shigekiyo, Shigemaru, Shigemasa). Kitagawa-ha forma-se a partir de Utamaro (1753-1802) e sua “pintura-de-grande-pescoço” [busto] (ôkubi-e), tendo tido muitos discípulos, celebrando-se como o poeta de figuras-bonitas das áreas-de-prazeres, erótica, flores-e-pássaros, insetos e peixes. Ao contrário da prolífica família Utagawa, a de Utamaro não registra tantos artistas de brilhos ímpares, porém suas estampas estão entre as mais difundidas no Ocidente. Refiram-se, ainda, outras famílias, mais ou menos longevas, mas, nem por isso, menos importantes: as iniciadas por Okumura Masanobu (1686-1764), Nishimura Shigenaga (c. 1695-1756), Suzuki Harunobu (1725-1816), Kitao Masanobu (1761-1816), além de um grande número de pintores com laços familiais mais tênues, como Isoda Kôryûsai (ativo entre 1765 e 1788), Kubo Shunman (1757-1820), Chôbunsai Eishi (1756-1829) e Keisai Eisen (1791-1849). A classificação de estampas e pinturas ukiyo-e por famílias artísticas é, como se vê, inadequada, pois, sendo grande o trânsito entre elas, nem modo pictórico nem tópicas específicas caracterizam o sistema hereditário da tradição, e muitos desses artistas tiveram iniciação pictórica em oficinas da família Kanô, representativa do xogunato, e da família Tosa, representativa da corte imperial. Ou, então, organiza-se em Ie (casa), numa imitação de seus pares antigos, para ser desmentida com o apagamento de rastros. Não é de estranhar, portanto, que estudiosos do período Meiji (1868-1912) tenham inventado o termo hanga (“pintura-impressa”) a fim de traduzir o pensamento ocidental de uma “idéia de gravura” para abranger a multiplicidade de termos relacionados às estampas impressas, pensadas como pintura. Assim, mokuhanga (“pintura-impresssa-madeira”) é xilogravura; sekihanga (“pintura-impressa-pedra”) é litografia; dôhanga (“pintura-impressa-metal”) é calcogravura. O estudioso Stewart Basil 16 dedica um longo capítulo à questão das falsificações, imitações e reedições de xilogravuras ukiyo-e. Compreende-se como reprodução o processo em que matrizes copiadas manualmente e gravadas novamente (ou, mais recentemente, por processo fotográfico) são impressas segundo o modo tradicional; como reedição, o processo em que impressões de (kusazôshi). Samurai a serviço direto do xogunato Tokugawa, estudou as artes marciais, pintura e poesia (haiku, kyôka e senryû). Inspirado por Santô Kyôden, iniciou-se escrevendo yomihon (“livros-de-ler”, principalmente históricos). Entre 1829 a 1842 escreveu Nise Murasaki inaka Genji (Genji das províncias da falsa Murasaki), obra muito popular entre o público feminino, particularmente por causa das estampas elaboradas de Utagawa Kunisada. Converteu o gênero yomihon em uma forma mais dramática e acessível para seus leitores graças a seus kusazôshi, livros eminentemente ilustrados. basil, Stewart. A guide to Japanese prints and their subject matter. Nova York: Dover Publications, 1979.
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matrizes originais são feitas em anos diferentes; como falsificações, o processo em que resultam obras que forjam modos e assinaturas (é exemplo Shiba Kôkan, que desenha várias estampas assinando-as Harunobu), hábito não de todo incomum entre os pintores-da-cidade (machi-eshi). Basil demora-se em questões de autenticidade, originalidade, plágio, cópia e, equivocadamente, direito autoral. Como composição e recitação de versos baseada no eco distante, por apropriação de trechos de poemas anteriores (honka-dori), prática do período Heian em alusão a recurso dinâmico a memória, conhecimento e, principalmente, habilidade em compor variações, a originalidade e a autoria não são considerados: kotoba wa furuki, kokoro wa atarashiki (“numa forma antiga, um novo coração”), como está no prefácio de Kanajo, de Ki-no Tsurayuki, na coletânea de poemas Kokinshû (século x). Lembrando-se da questão dos gô (nomes artísticos), percebe-se que discernir diferenças entre as estampas assinadas “Toyokuni”, gô de pelo menos cinco artistas, pode até ser um exercício estimulante, mas é exasperante em relação à produção artística de ukiyo-e, que conta com pelo menos 600 nomes-artistas na xilogravura. Um ceramista, como relata o ceramista Yuasa Megumi, numa fornada de 20 peças de mesma forma, executadas da mesma argila, pelas mesmas mãos, com os mesmos esmaltes e a mesma temperatura, separa delas duas, ou uma, ou nenhuma, a serem preservadas e nomeadas. Assim, também as gravuras, mesmo sendo reproduções, podem ser avaliadas por “olhos que sabem ver” (mekiki), seguindo-se o princípio da cerimônia do chá ichigo ichie (“uma vez, um encontro”): leilões recentes de arte avaliam diferentemente cada estampa, até da mesma edição. É por essa compreensão de arte que, ainda hoje, existem oficinas de impressão reconhecidas nacionalmente, como a Satô Mokuhanga Kôbô (Oficina de Xilogravura Satô), em Kyôto, que reproduz gravuras de Utamaro, Hiroshige, Sharaku ou Hokusai, utilizando os mesmos tipos de pigmentos, o mesmo tipo de almofada de impressão (baren), manufaturado em etapas minuciosamente iguais, os mesmos efeitos de impressão, o mesmo papel washi (em geral feito de amoreira silvestre, papel hôsho), ainda hoje produzido do mesmo modo, em pequenas cidades. A xilogravura ukiyo-e, que se inicia oficialmente com Hishikawa Moronobu, entretanto, só se torna “estampa”, ichimai-e (“pintura-uma-folha”), quando de sua independência do livro. Na interação de estampas e textos, agem grupos de amadores das artes: pintores, poetas, escritores, editores, impressores. São grupos liderados por citadinos e, interessantemente, também por samurais, havendo entre eles artistas e estudiosos também das coisas holandesas (Rangaku): Shiba Kôkan (1747-1818), que introduz no Japão a gravura em metal, copia vistas de Roma com perspectiva linear ocidental; Hiraga Gennai (1726-1779) pinta em modo ocidental com tinta a óleo. Zashiki, salas de se entreter e compor haiku, dirigidas por Kikurensha Kyosen (ativo em meados do século xviii), samurai iniciado nos códigos da área-de-prazeres Yoshiwara, são freqüentadas pelos artistas ukiyo-e Katsukawa Shunshô (1726-1792), que também compõe haiku, Ippitsusai Bunchô (ativo entre 1765 e 1792), Kitao Shigemasa (1739-1820), Utagawa Toyokuni (1769-1825) e Utagawa
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Kunisada (1786-1864), que também compõem haikai no renga (poema encadeado humorístico), e o escritor de narrativas centradas em áreas-de-prazeres (sharebon) Santô Kyôden. Mesmo tendo se tornado independente da encadernação do livro, entretanto, as estampas continuam aliadas a narrativas em livro e a libretos de peças para bonecos (jôruri ou bunraku) e kabuki. Kyosen encomenda sofisticadas estampas surimono (“coisa-impressa”) e egoyomi (“calendário-pintura”), em 1765 e 1766, além de ehon (“livro-pintura”). Produzir calendários é atividade importante regulamentada pelo xogunato, pois rege os ciclos agrícolas e as festas sazonais; sendo muito apreciados no período, há entre seus adeptos muitos sukimono (amadores de arte), bunjin (pintores-poetas), haijin (poetas de haikai), gakusha (estudiosos), buke (samurais): calendários são o objeto principal de reuniões para juízos artísticos (hinpyôkai) e intercâmbios (kôkai-kai). Gravadores procuram, e encontram, diferentes modos de trabalhar a matriz de cerejeira agreste (yama-zakura), podendo-se citar os nomes Yoshida Gyosen, Okamoto Shôgyo e Nakaide Toen. É difundido o fato de que, num dos eventos de impressão dos apreciados calendários (daishôkai) organizados por Ôkubo Jinshirô Kyosen (o mesmo Kikurensha Kyosen), produz-se a estampa multicolorida, sob desenho de Suzuki Harunobu (1724-1770). A primeira edição do histórico calendário nishiki-e (composto por oito estampas e intitulado Zashiki hakkei – Oito vistas de salas de entreter), de Harunobu, traz o selo (inkan) de Kyosen, tendo sido impressa em bons papéis, com cinco cores de pigmentos caros. Utiliza-se já karazuri (impressão-vazia) e kime-komi (relevo seco sobre áreas de cor já impressas). Aponta Nishiyama Matsunosuke 17 que Harunobu é, sem dúvida, o pioneiro na utilização da policromia nas xilogravuras, mas enfatiza que muito do crédito pela “invenção” se deve a Kyosen, o líder desses encontros-de-juízo-artístico: vê-se, portanto, a participação de samurais na produção dessas estampas, que são compreendidas geralmente como “arte popular de citadinos”. Outros estudiosos, entretanto, creditam a divulgação da “gravura-brocado” somente a Harunobu, pois este utiliza o procedimento consistentemente em suas estampas, tendo tido, a partir daí, muitos seguidores. Na verdade, a junção de mais matrizes de cores é somente uma questão de escala (o passo fundamental é a invenção do sistema de registro – kentô 18 –, que permite a superposição de mais uma matriz), como se nota na utilização, já, de dois ou três blocos de cor nas estampas benizuri-e. As estampas multicoloridas tornam-se Edo miyage (“lembrança-de-Edo”), um meibutsu, especialidade-local da cidade de Edo para senhores das províncias obrigados a servirem revezadamente na matsunosuke, Nishiyama. Edo culture – Daily life and diversion in urban Japan, 1600-1868. Honolulu: University of Hawaii Press, 1997, pp. 70-71. Kentô (“ver-e-acertar”) é um sistema de registro das matrizes de madeira. Compõe-se de uma região gravada nas madeiras, em 90 graus, do lado inferior esquerdo (kagi-kentô, registro-chave), e outra região apenas marcada em relevo, chamada hikitsuke (“colocar-em-linha”), do lado inferior direito (às vezes, dependendo do tamanho das matrizes, também no lado superior esquerdo), onde o papel colide. A técnica desenvolve-se no Japão, a partir de 1744, pelo editor Kichiemon Kamimura.
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cidade. Assim, não surpreende o número de estampas produzidas tendo como tópicas, relativamente à cidade de Edo, seus locais mais famosos, seus usos-e-costumes, suas flores-e-pássaros e suas estradas. Enfatize-se, assim, que a policromia na xilogravura, compreendida no Japão como pintura, atende a demandas de grupos de amantes e praticantes das artes, no tocante à confecção anual de calendários ilustrados, cujas pinturas se tornam cada vez mais sofisticadas. Relacionando-se aos calendários, surgem, pois, as tópicas sazonais nas estampas. A poesia japonesa obedece a convenções sociais, poéticas e lingüísticas rigorosas e, por isso, repetitivas. Entretanto, não menos o fazem as outras artes: o epíteto “mais uma vez, mais uma vez, e outra, e outra”, aplica-se a temas e variações de modos e imagens, tanto poéticas quanto visuais. Como nas apresentações de kabuki, olhos incautos assistem a peças sempre iguais; olhos argutos, sempre diferentes. Nishiyama lembra que também Hiraga Gennai tem participação na invenção de nishiki-e. Gennai, estudioso de plantas chinesas, de ciência ocidental introduzida pela cidade de Nagasaki, de teatro de bonecos com texto jôruri, escreveu também peças. Morando no mesmo bairro (machi) de Harunobu, Gennai trabalha ativamente nas artes, principalmente as “holandesas”, associando-se a Shiba Kôkan: a perspectiva linear nas gravuras ukiyo-e interpreta o Ocidente. Sendo ambos de Kyûshû, Nishiyama conclui que sua imensa aceitação definiria o “caráter” dos habitantes da cidade de Edo: tanin fukanshô shûgi, “pensamento de não-intervenção em relação às pessoas-de-fora (os não edokko)”. 19 Cidade de população flutuante e sempre cheia de visitantes mais ou menos temporários, Edo traduz-se por suas xilogravuras. Depois da morte de Harunobu, em 1770, a presença do editor e também escritor de poemas e narrativas Tsutaya Jûsaburô (1759-1797), que publica Kyôden, Ikku, Bakin e Utamaro, é marcante nos encontros de amadores de poesia e artes. Encontram-se em seu círculo o poeta e escritor de narrativas humorísticas Ôta Nanpo (1729-1823), o escritor de narrativas seriadas Koikawa Harumachi (1744-1789), o pintor e desenhista de estampas de atores e de figuras-bonitas Katsukawa Shunchô, o pintor e desenhista de estampas soltas e de livros Kitao Shigemasa, Santô Kyôden (o mesmo Kitao Masanobu, desenhista de estampas ukiyo-e) 20, o famoso pintor e desenhista de estampas de figuras-bonitas, divertimentos, usos-e-costumes das áreas-de-prazeres, insetos e peixes e flores-e-pássaros Kitagawa Utamaro (1754-1806), o enigmático desenhista de estampas de atores Tôshûsai Sharaku, Katsuka matsunosuke, Nishiyama e shinzo, Ogi. Edo san-byaku-nen – 3, Edo kara Tôkyô e (300 anos de Edo – 3. De Edo a Tôkyô). Tóquio: Kôdansha, 1975. É difícil não tratar Kyôden-Masanobu como dois artistas diferentes. Como escritor, teve grande produção, caracterizandose por um uso agudo de palavras para captar detalhes pelos quais pessoas se revelam, cheio de verve satírica, explorando jogos lingüísticos e detalhes da vida de Edo, principalmente das áreas-de-prazeres. Como pintor, foi discípulo de Kitao Shigemasa; pintou bijinga de grande aceitação e “pintura-introduzida” para seus escritos. O álbum Yoshiwara keisei shin bijin awase jihitsu kagami (Espelho de nova comparação de figuras-bonitas keisei de Yoshiwara), composta de estampas de sete cores e duas vezes maior do que ôban (gravura grande), de 1783-1784, é notável, mas abandona o pincel em 1785, dado seu sucesso como escritor. Sua tabacaria é ponto de encontro de artistas, atores e escritores.
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wa Shunrô (depois Katsushika Hokusai), o prolífico autor de narrativas heróicas yomihon Takizawa Bakin (1767-1848) e o autor de escritos cômicos kokkeibon Jippensha Ikku (1765-1831). 21 Tsutaya edita escritos dos gêneros sharebon, kibyôshi, ehon, estampas nishiki-e e exerce juízos. Os livros-pinturas (ehon) de Utamaro e Sharaku mostram a importância de Tsutaya, pois, após sua morte, os desenhos de Utamaro se tornam, segundo alguns, menos vibrantes. A casa editorial de Tsutaya publica livros e estampas-soltas, não separando escritura de pintura, tendo sido muitos escritores também pintores: as “livrarias” do período, como se vê em estampas de Hokusai, vendem livros, mapas, papéis impressos para poemas e presentes, estampas-soltas, álbuns, livros-pinturas e objetos de papel impresso. Também Nishiyama enfatiza que, com o nishiki-e, ocorre um desenvolvimento artístico que separa a história das estampas em dois períodos, pois, ao desenvolvimento técnico, associam-se procedimentos de desenho. Ma, a “área vazia” (não trabalhada) dos desenhos, é também “área cheia”, relacionada às noções búdicas de “vazio” (kû). Com a assimilação do conceito ocidental de “nada” (mu), passa-se a trabalhar, nas estampas, toda a superfície, colorindo-a: fundo e figura. Iniciadas como uki-e (“pintura-perspectiva”), estampas que exageram os pontos de fuga da perspectiva ocidental, nota-se a presença, interpretada, de suas regras, nas obras de Masanobu, Shunshô, Harunobu, Haruaki, Utamaro, Hokusai, Hiroshige, Kuniyoshi, Kunisada, em modo cada vez mais assimilado. A xilogravura ukiyo-e do segundo período Edo, frise-se, assimila o Ocidente por meio da Holanda, não só na perspectiva com ponto de fuga e no claro-escuro, mas também no interesse minucioso (Komakai! Komakai! Tão pequeno! Tão sutil!), enciclopédico, com que se descrevem atividades. Além da diferença visual dos dois períodos, estudiosos vêem, no segundo período, uma preponderância das tópicas de locaisfamosos, flores-e-pássaros, animais, peixes, ocupações e usos-e-costumes. Entretanto, como se pode notar pelas estampas de Hokusai, Utamaro e Yoshitoshi, artistas do segundo período Edo, tanto yûjo (mulher-entretenimento) e kuruwa (ou yûkaku, área-de-prazeres) quanto yakusha (ator) e shibai (teatro) continuam sendo pintados. As estampas mostram, evidentemente, mudanças: há mais variedade de poses e situações, complexidade crescente de modos de coloração e composição e desenhos mais detalhados. Além disso, quando se analisam pinturas e estampas de Moronobu, Sukenobu, Torii e Masanobu, artistas do primeiro período, vêem-se também tópicas do mundo comum, as quais são essenciais em desenhos nos livros sobre citadinos (chônin-mono) do escritor do mundo flutuante (ukiyo-zôshi) Ihara Saikaku. A pintura-primavera [erótica] (shunga) e a pintura-de-ator (yakusha-e), ao contrário da leveza com que são tratados por Moronobu, Sukenobu, Masanobu, Shunshô e Harunobu, são, no Nasceu em Fuchû na província de Suruga, filho de baixo oficial samurai. Esteve em Ôsaka, onde escreveu para o teatro de bonecos, mas foi em Edo que se engajou em ficção popular nos livros-de-capa-amarela (kibyôshi). Em 1802, escreveu sua obra mais conhecida, do tipo kokkeibon (livro humorístico), intitulada Tôkaidô dôchû hizakurige (Viajando peregrina pela estrada-domar-do-leste), em 20 capítulos, que se tornou tão popular em seu tempo que após 20 anos Ikku ainda se voltava a seqüenciá-la.
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segundo período, distorcidas em volúpia, luxo e violência, tendo cores e detalhes multiplicados e ornamentos (kazari) extremos: no período Tanuma (1751-1763), o jogo (asobi) tinge de sátira até os nomes artísticos adotados (gô-yatsushi), como o de Sakai Hôitsu, seguidor do modo Rinpa (Shiri-yabe Sarujin, Homem-macaco Rabo-queimado) ou o de Utamaro (Fude no Ayamaro, Erros-do-pincel). A erótica é tópica predominante nos pintores-da-cidade do período Edo, excetuando-se os poetas-pintores (bunjinga). Ligados à representação das danças de Okuni kabuki, das de kabuki-de-mulheres (yûjo kabuki), das de kabuki-de-homens-jovens (wakashu kabuki) e das de kabuki-de-homensadultos (yarô kabuki), que se desenvolvem em Kyôto e na cidade de Edo, há uma produção e uma crescente comercialização de livros-pinturas (ehon) e estampas xilográficas representando atores famosos em papéis famosos, momentos-clímax nos dramas preferidos, atores e gueixas apreciando os entretenimentos citadinos. Imprimem-se ingressos, catálogos, programas, cartazes e placas anunciando apresentações. São apreciadas, por um público fiel, as impressões xilográficas de juízos de atores e peças, bem como de locais freqüentados por iniciados, não só na área do teatro e do amor, mas também na da poesia e das outras artes. Takeda Tsuneo 22 compreende que se podem inserir na tópica de usos-e-costumes as pinturas referentes ao teatro kabuki desde o início do período Edo: são biombos representando não somente vários tipos de kabuki, como também kyôgen, nô, jôruri. Ampliando o sentido de usose-costumes para todas as camadas da população, não se restringindo, portanto, a camponeses, comerciantes e citadinos, Takeda Tsuneo inclui na tópica também gosen fûzoku-zu (pinturas de usos-e-costumes do tempo da guerra) do período Kamakura e kuge fûzoku-zu (pinturas dos usos-e-costumes da nobreza), tratando este último de pinturas de kemari (jogo de passabola de pé a pé), chôgi (cerimônias do palácio imperial), keiba (corridas de cavalos) e takagari (caçadas com falcão). Não se excluem shokunin zukushi-zu (pintura de todos os trabalhadores) e nanban fûzoku-zu (usos-e-costumes dos bárbaros-do-sul [portugueses]). 23 Assim, Takeda entende que fûzoku-ga abrange todas as classes sociais e, embora sendo inicialmente do âmbito da família Tosa, passa a ser feita pelas famílias Sumiyoshi e Kanô. Não tendo se tornando exclusiva de modos e famílias de pintura, é feita por Hasegawa Tôhaku (1539-1610), por Kaihô Yûshô (1533-1615), pela família Unkoku, por Matabei Shôji (1578-1650) e pelos pintores-dacidade, entre os quais Sôtatsu e Kôrin. Mas também pela correnteza ukiyo-e. A questão do gênero é retomada do período Heian e transformada, mais uma vez, no período tsuneo, Takeda. Kinsei shoki fûzoku-ga (Pintura de usos-e-costumes no início do período pré-moderno). Tóquio: Shôgakukan, 1982, p. 21. Existem ainda vários biombos (mais de 50 pares) que representam a cultura e a civilização ocidental dos portugueses cristãos. No entendimento da maior parte dos estudiosos, entretanto, seu âmbito restringiu-se aos daimios, tendo deixado de ser feitos antes de se enraizar no Japão.
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Edo: inventa-se, no teatro kabuki, a forma onna-gata (“homem-forma-de-mulher”). Onna-gata, diz o dicionário filológico 24, deveria ser escrito com o ideograma kata/hô utilizado para pronomes pessoais, criando uma imagem mais concreta de uma entidade-mulher. Ao se grafar o termo com o ideograma kata de forma/modelo, transforma-se em “homem-como-se-fosse-mulher”. No papel de mulher “como-se-fosse-mulher”, os atores inventam uma representação que mais tarde nenhuma mulher pode representar, já que mulheres são. Sabe-se que Okuni 25, a lendária iniciadora do teatro kabuki, veste, por sua vez, roupas masculinas (dansô), quando deveria usar nyôsô (roupas femininas). Se diferenças há entre o vestuário feminino e o masculino, também há muitas imprecisões: homens vestem quimonos de cores vivas e ornadas; yukata, quimono leve em azulanil e branco para o pós-banho, iki por excelência, é vestido por ambos; penteados e acessórios são inventados infinitamente: os wakashu utilizam lenços (tenugui) para cobrir suas cabeças raspadas – sinal de seu estado-de-homem-jovem –, as mulheres os imitam; yûjo adornam suas cabeleiras efusivamente, onnagata as imitam vestindo perucas. Nas pinturas e estampas ukiyo-e, olhos distraídos dificilmente percebem os signos da determinação sexual, pois, muitas vezes, estes se confundem e se apagam as fronteiras entre os gêneros, sendo difícil discriminar o grau de paródia intencional de seus autores. Em pinturas e estampas de figuras-bonitas, não se diferenciam com clareza os gêneros, tendo bijinga sido compreendido como se compondo somente de representações de mulheres-bonitas, ignorando-se a representação de atores jovens do kabuki-de-mocinhos (wakashu kabuki). Ou melhor, se não se conhece a circunstância, a imagem não se lê: não há – nem pode haver – signos de masculinidade nessas estampas e pinturas, pois, no mundo do teatro kabuki, os wakashu são mulheres. Ou, como acontece nas estampas de Harunobu, as personagens são mijuku, ainda não maduras sexualmente, semelhantes em suas figuras esguias e delicadas, a não ser pela área raspada no alto da cabeça, sutilmente percebida. Lêem-se em Saikaku, na obra Nanshoku ôkagami (Grande espelho do amor de homens), situações em que personagens se debatem em gêneros, os quais não necessariamente seguem a definição imposta por seus corpos.
Dai Nihon jiten – Encyclopedia japonica (Grande dicionário do Japão). Estudos mais recentes têm considerado Okuni Kabuki como um nome, ou título, empregado para caracterizar danças de miko ou shirabyôshi, que ocorrem desde o período Muromachi em espaços públicos. Nesse sentido, é como o nome hereditário Danjûrô do teatro kabuki, com a diferença que o nome Okuni não teve continuidade, pois não sistematizado (e proibido pelo xogunato).
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