#8 ½ Edição especial para a FLIP 2011
instituto moreira salles Walther Moreira Salles (1912-2001) Fundador Diretoria Executiva João Moreira Salles Presidente Gabriel Jorge Ferreira Vice-Presidente Francisco Eduardo de Almeida Pinto Diretor Tesoureiro Mauro Agonilha, Raul Manuel Alves Diretores Executivos
serrote é uma publicação do Instituto Moreira Salles que sai três vezes por ano: março, julho e novembro. Esta serrote #8 ½ só circula, gratuitamente, na flip 2011. COMISSÃO EDITORIAL Alice Sant’Anna, Daniel Trench (diretor de arte), Eucanaã Ferraz, Flávio Moura, Flávio Pinheiro, Francisco Bosco, Heloisa Espada, Mariana Lanari (editora de imagens), Matinas Suzuki Jr., Paulo Roberto Pires e Samuel Titan Jr. editor Paulo Roberto Pires coordenaÇÃO EDITORIAL Alice Sant’Anna e Flávio Cintra do Amaral ASSISTENTEs DE ARTE Ana Paula Campos e Gustavo Marchetti PRODUÇÃO GRÁFICA Acássia Correia e Jorge Bastos preparação e revisão de textos Denise Pessoa, Flávio Cintra do Amaral, Sandra Brazil e Thiago Lins checagem Luiz Arturo Obojes assessoria de comunicação Marília Scalzo e Nathalia Pazini / nathalia.pazini@ims.com.br impressão Ipsis Gráfica e Editora © Instituto Moreira Salles Av. Paulista, 1294/14º andar São Paulo sp Brasil 01310-915 tel. 11.3371.4455 fax 11.3371.4497 www.ims.com.br n.° 8 ½ Julho 2011 As opiniões expressas nos artigos desta revista são de responsabilidade exclusiva dos autores. Os originais enviados sem solicitação da serrote não serão devolvidos. assinaturas 11.3971.4372 ou assinatura@revistaserrote.com.br www.revistaserrote.com.br leitor@revistaserrote.com.br “Odiar Il Gattopardo” foi publicado originalmente em El País © Javier Marías; diários de Paulo Mendes Campos © by Joan A. Mendes Campos; as pinturas de Elizabeth Bishop foram reproduzidas com a permissão da Special Collections, Vassar College Libraries, e da Farrar Straus and Giroux; Men of Letters & People of Substance © 2008 by Roberto de Vicq de Cumptich. agradecimentos Ailton Silva, Cecília Himmelseher, Joan A. Mendes Campos, Lucia Riff e Paulo Henriques Britto. imagem da capa Cabine com escotilha, aquarela e guache de Elizabeth Bishop, que faz alusão ao gosto pelas viagens da poeta. página de rosto Bushmen and sawmill hands wanted. Join the 224th Canadian Forestry Battalion, 1915. Litografia. Library of Congress Prints and Photographs Division Washington, D.C.
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impressões de Viagem Diários inéditos de Paulo Mendes Campos registram os dois meses que passou entre União Soviética, China e Polônia
Um reencontro com a “furiosa adolescência”
Página do passaporte de Paulo Mendes Campos
Um jantar trivial num restaurante de Estocolmo levou Paulo Mendes Campos a despedir-se da capital da Suécia dizendo: “Honestidade, teu nome é sueco”. Aquele sábado frio de 7 de abril de 1956 marcava o início de uma viagem de dois meses que, a convite do governo soviético, uma comitiva de 21 profissionais de áreas e países diversos fazia à terra de Dostoiévski, à China e à Polônia. Depois de uma escala em Helsinque, a não menos gélida capital da Finlândia, o poeta e jornalista brasileiro, que estreara em 1951 com o livro de poemas A palavra escrita, aterrissou com seus companheiros na então Leningrado. Nem mesmo a turbulência que enfrentou entre as duas cidades o impediu de fazer bem-humoradas anotações no diário de viagem. A letra trêmula indica o esforço para registrar que a aeromoça nada serviu, tampouco mandou os passageiros apertarem cintos ou pararem de fumar. Se ele era jornalista até no céu, não menos enxadrista era o argentino Raúl Sanguinetti, que integrava a comitiva de seu país e não fazia por menos: equilibrava como podia o tabuleiro para jogar com um russo cujo nome os balanços do voo tornaram ilegível nos garranchos do jornalista. Já se disse que “a alma é um tecido injustificável”. Assim, enquanto as delegações recém-chegadas se instalavam no Hotel Astória, as cortinas de veludo verde do quarto de Paulo Mendes Campos o devolviam à sua “furiosa adolescência”, em Belo Horizonte, onde nasceu em 28 de fevereiro
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de 1922. O quarto de hotel o transportou a 1918, e ele se sentiu não em Leningrado, mas em São Petersburgo, nome da cidade até a revolução, retomado depois em 1991. Sem filiação partidária, foi certamente seu espírito livre que o levou a integrar a delegação dos cinco brasileiros, entre os quais Valério Konder, filiado ao Partido Comunista Brasileiro (pcb), e o deputado fluminense Jonas Baiense. Naquele ano de 1956, durante o xx Congresso do Partido Comunista da União Soviética (pcus), o secretário-geral Nikita Kruschev denunciara os crimes cometidos por Stálin. A nação estava perplexa, e o Comitê da Paz de Leningrado, que contava com a intérprete de português Clara Vladov [Cl.], queria mostrar aos visitantes um país em busca de uma nova ética. Visitas a fábricas, hospitais e escolas fizeram Paulo Mendes Campos anotar, com detalhes implacáveis, as reformas implementadas por Kruschev desde 1953, quando passou a liderar o pcus, depois da morte de Stálin: “O xx Congresso começa o degelo pela decoração de gabinetes e saguões: muitas vezes a gente olha para a parede em busca de Stálin e só vê uma vaga mancha retangular em torno de um prego”, escreveria o jornalista na crônica “Diário de Moscou”. Mas nada o impressionou tanto quanto Pequim: ele caiu de amores pela capital chinesa. Ainda assim, não esquecia os amigos que bebiam no lendário Villarino, bar no centro do Rio, ou a temperatura de sua Belo Horizonte [Bltte.]. Os fragmentos dos diários reproduzidos aqui expõem registros abreviados, ligeiros, quando a emoção ainda não tinha sido depurada nas crônicas que ele publicaria, sobretudo na revista Manchete, onde colaborou durante anos. De qualquer modo, o olhar do viajante e o do cronista são um só: o de uma realidade nova e de um cotidiano impregnado de lirismo. Dizia o poeta e romancista Ribeiro Couto, autor de Cabocla, que aprender uma língua estrangeira no país de origem é uma sensualidade. Os estudos do alfabeto cirílico e dos caracteres chineses nos diários de Paulo Mendes Campos provam que ele não abriu mão desse prazer. E até mesmo o desprazer de uma segunda turbulência, dessa vez no voo entre as capitais da Rússia e da Polônia, se transformaria em poema: “Moscou-Varsóvia”, composto na capital polonesa e incluído em O domingo azul do mar, de 1958. Neste ano em que, em 1o de julho, se completam 20 anos da morte de Paulo Mendes Campos, seu arquivo passará para a guarda do Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro.
elvia bezerra, coordenadora de Literatura do Instituto Moreira Salles
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1. Maria José Cardoso, catarinense de magníficos olhos verdes que, representando o Rio Grande do Sul, foi eleita miss Brasil em 1956. [Notas de Elvia Bezerra]
Leningrado, 12 de abril, Hotel Astória Hotel Astória: amplo, grandes salas – 10 minutos p. lavar as mãos – jantar rápido: brindes, vodka, vinho branco – “temos qualidades e tbém defeitos; digam-nos estes para podermos corrigi-los” – “paz” – o velhinho diz que irá conosco no dia seguinte à ópera – de ônibus à ópera, que está começando: Príncipe Igor – grandeza do teatro e do espetáculo – Clara explica-nos nos entreatos, ninguém se impressiona com isso e sim com nossa cara – militares – um rapaz sem gravata – calças boca de sino – moças mal-vestidas, predominantemente de vermelho – + mulheres do q. homens – todas as idades, crianças de trancinhas – q. fariam inveja aos antiquários do Rio – uma mesa pa escrever, tinta, caneta etc., telefone, um divã de veludo verde, 1 mesinha redonda – 1 armário embutido – tapetes – cortina verde – cama larga – 5 cadeiras (exagero, ideia de reunião) – 1 armário c/ espelho – 1 cabide – óculo na porta coberta de um pano laranja – Um estupendo abajur – de minha janela (q. não consigo abrir) vejo Nicolau i e a catedral – sentimo-nos em casa – simplicidade inimaginável – Sinto-me em uma cama de teatro, dessas próprias para assassinato – 5 portas – banheira imensa c/ chuveiro de telefone (“decifra-me ou não tomas banho”) – aquecimento – cortinas de veludo verde e de renda branca na janela – Este quarto de hotel me agrada e me comove. É um quarto de hotel em São Petersburgo, que se liga à minha furiosa adolescência – 2 imensos travesseiros macios – mesinha de cabeceira com um abajur – Meu quarto é verde: cortinas, paredes, forro das cadeiras, abajures (2) sofá, jarro de cristal com água (não como na Suécia) – olho dentro da mesa de cabeceira – em Paris, um vaso noturno, em Estocolmo, uma Bíblia – Irei encontrar o Manifesto do Partido? – O plano quinquenal? Não, não há nada – Clara manda dizer a Frota Moreira que sua família aumentou (ao saber q. este tinha sido novamente pai) – Cl. prefere falar português – Cl. lamenta que não haja uma brasileira na delegação – Miss Brasil, queria tanto vê-la – Vocês br. têm ciúmes da Miss Brasil1 – […] O int. inglês de St. está no teatro com uma velhinha a quem ajuda vestir o mantô – diante de nós no Astória janta à meia-noite com gr. delegação de japoneses – em
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na página dupla anterior “Aproveito os minutos que tenho para estudar um pouco de russo; não é nada mas é um incomparável desafogo poder soletrar as tabuletas e entender, aqui e ali, uma ou outra palavra”
outra mesa, jantam outras e numerosas pessoas – Quisera poder dormir pouco – Não sei a q. horas terei tempo de bater máquina – Silêncio na rua e silêncio no hotel: 2.30 da manhã, a turma no Rio está saindo do Villarino – Só uma água encanada em alguma parte gorgoleja – A temperatura do quarto está agradável como em Bltte. – Um automóvel ronca na quietude – Vou fumar um último cigarro e apagar-me.
Leningrado, 15 de abril, Hotel Astória Aproveito os minutos que tenho para estudar um pouco de russo; não é nada mas é um incomparável desafogo poder soletrar as tabuletas e entender, aqui e ali, uma ou outra palavra – Despeço-me de meu quarto c/ o que não se poderia chamar saudade mas c/ a palavra aproximada que não existe. Há menos palavras do que as infinitas gradações do sentimento e da emoção; os oradores dizem isto mas talvez não o realizem (todos) o que significa para o espírito minucioso um dicionário de variedades vocabulares de natureza puramente técnica. Os homens não procuraram definir a gama de suas emoções. O léxico é mais objetivo do que subjetivo; quero crer que os homens tenham tido razão. Definir emoções é, na escala da luta pela vida, uma categoria inferior à definição de objetos. Nasce um mundo novo. Decerto, todos os nascimentos são um tanto inexplicáveis, cheios de ansiedade e pressurosos. O pai sabe que o filho crescerá e se fará homem; mas seu coração se faz turbulência, como se um vinho lhe perturbasse os sentidos. O caminho do filho não pode ser o caminho do pai. Nesta contradição, o pai se perde em confusão e felicidade. Também eu não sou deste mundo. Mea culpa.
Moscou, 16 de abril, Hotel Moscou Chegada às 10.20, recepção, discursos, um menino me dá um ramo de flores, menos frio que em Leningrado, vai conosco no táxi uma moça q. fala apenas alemão (me explica a rivalidade Moscou-Leningrado). O Kremlim visto
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de relance, aguardamos no imenso saguão do Hotel Moscou: (gr. estátua de Lênin e St. conversando sentados, ao fundo Stálin em pé, colunas e chão de mármore, reposteiros verdes, halls nos andares, fico no quarto 429, tenho de andar um pedaço pelo corredor, moro em uma casa de campo, quarto acima de minhas posses, c/ rádio, televisão, banheiro c/ telefone. […] Hotel + moderno, + cosmopolita. Já este 1º. contato c/ Moscou mostra que se trata de uma cidade cosmopolita. No meu quarto de Leningrado, eu me sentia em São Petersburgo. Aqui estou na Moscou moderna. Quarto: 2 janelas, c/ cortinas de alvo nylon e reposteiros de marrom claro, uma mesa c/ um abajur e objetos para escrever, um sofá, 5 cadeiras estofadas, um toucador, uma mesinha redonda, armário com espelho, 2 paisagens a óleo, mesa de cabeceira, um aparelho de radiotelevisão, 2 camas, mobília simples.
Moscou, 19 de abril Meus sonhos são ainda ocidentais. Os personagens que aparecem em meu sono são do Brasil. As reservas inconscientes não se conformam com essa forçada adaptação de nosso espírito à realidade. Para o homem subterrâneo que há em mim não estou em Moscou, e, sim, no Brasil, Rio de Janeiro.
Pequim, 3 de maio Apaixonei-me à 1a vista por Pequim – Recepção no aeroporto, 3 jovens e uma moça – A cortesia é chinesa – Primavera real – limpeza – seguimos de táxi por uma estrada ladeada de árvores belas c/ seus cones verdes. No hotel: não compreendo desde agora como pude ter passado tanto tempo de minha vida (34 anos) sem ter conhecido Pequim – Despeço-me (em russo, hélàs!) de um chinês e de 2 companheiros de viagem. […] No pátio dos fundos do hotel, há um jardim, um tanque redondo, pedras cimentadas no centro e plantas: duas meninas brincam, uma adolescente em sua túnica azul olha a água e ri para as meninas – bandeiras rubras se agitam ao longe sobre prédios públicos – Ouço ruído de louças e da cidade, apitos de trem e buzinas – Amo Pequim.
Varsóvia, 28 de maio, Hotel Bristol Pequenas providências na cidade, volta ao hotel para almoçar, encontro na escada a australiana, que me beija na face. Não me sinto bem e não vou ao teatro. No balcão do antigo Hotel Bristol: talvez só agora eu me
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2. “Moscou-Varsóvia”, publicado em O domingo azul do mar, 1958, cujos versos se iniciam com: “Se este avião caísse…”.
3. Famosa rua de comércio em Varsóvia.
à esquerda “A cortesia é chinesa”, dizia Paulo Mendes Campos. Também cortês, ele quis aprender o alfabeto da língua do país pelo qual se apaixonou
faça consciente da beleza de Varsóvia, de sua arquitetura sóbria. Trabalho um poema,2 melhor, fico a consertar uma coisa q. escrevi.
Varsóvia, 29 de maio De repente fiquei sem camisas, 3 em Moscou, 1 em Kiev e as outras se perdem nas malas. Lavo a roupa branca na banheira, tomo breakfast: ovos c/ presunto, copo de café, 1 copo de leite, croissants. O sol esplende. Subo a Ulica Nowy Swiat3 chego a uma praça e me sento, como os outros em um banco, para tomar sol. Os poloneses bebem o sol. Sinto-me bem e permaneço aí quase uma hora. Edifícios estragados de balas. Nem todos os poloneses são ministros mas quase todos têm pasta. Volto, entro em livrarias, um sebo com livros franceses e ingleses. […] Obras de Lênin, de Stálin, de Mao Tsé-tung. Livros religiosos edificantes.
Paulo Mendes Campos (1922-1991) estreou na literatura como poeta e consagrou-se na crônica nas décadas de 1950 e 1960, época particularmente fértil para o gênero. Pela amizade de toda a vida com Fernando Sabino, Helio Pellegrino e Otto Lara Resende, ficou conhecido como um dos Quatro Mineiros, confraria literoafetiva que fez história na literatura brasileira. O essencial de sua obra em prosa está reunido em sete volumes publicados pela Civilização Brasileira.
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Quando jovem, Elizabeth Bishop (1911-1979) queria ser pintora. Tornou-se uma das mais importantes poetas americanas do século 20, mas manteve, de forma bissexta, uma produção plástica pequena e intensa. Dos 39 desenhos e telas catalogados e reconhecidamente de sua autoria, a serrote selecionou seis imagens que dão conta de seu notável talento pictórico e também da presença do Brasil, onde viveu por mais de duas décadas. Neste ano, em que se comemora o centenário de nascimento da poeta, publicamos ainda “Cinco andares acima”, poema incluído em Geography iii, seu último livro, e aqui traduzido por Paulo Henriques Britto, que vem se ocupando em verter toda a obra de Bishop para o português.
na página anterior Na página anterior, Murray Hill Hotel, desenho a lápis não datado e provavelmente produzido entre o final da década de 1930 e o início dos anos 1940, época em que Elizabeth Bishop viveu alguns períodos neste hotel de Nova York à direita Paisagem brasileira, aquarela e guache, sem data. Não é possível precisar a localização; provavelmente, entre a serra fluminense e Minas Gerais, regiões onde viveu
Interior com móbile de Calder (acima) retrata, em aquarela e guache, a mítica casa da Samambaia, em Petrópolis, premiado projeto do arquiteto Sergio Bernardes idealizado por Lota de Macedo Soares, com quem Bishop viveu entre 1952 e 1967. É para a dedicatória que Bishop escreve sobre a aquarela Lampião, de 1952: “Para Lota:/ Que dure mais do que a chama de Aladim/ O amor & muitos felizes reencontros/ 16 de março, 1952/ Elizabeth.”
Fogão vermelho e flores, de 1955, é uma referência clara ao universo da cozinha brasileira. Segundo William Benton, que reuniu em livro as pinturas de Bishop, é um dos poucos quadros em que há uma mensagem explícita com o verso: “Que os momentos felizes que virão/ Te tragam flores, arroz e feijão”
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five flights up Elizabeth Bishop Still dark, The unknown bird sits on his usual branch. The little dog next door barks in his sleep inquiringly, just once. Perhaps in his sleep, too, the bird inquires once or twice, quavering. Questions – if that they are – answered directly, simply, by day itself. Enormous morning ponderous, meticulous; gray light streaking each bare branch, each single twig, along one side, making another tree, of glassy veins… The bird still sits there. Now he seems to yawn. The little black dog runs in his yard. His owner’s voice arises, stern, “You ought to be ashamed!” What has he done? He bounces cheerfully up and down; he rushes in circles in the fallen leaves. Obviously, he has no sense of shame. He and the bird know everything is answered, All taken care of, No need to ask again. – Yesterday brought to today so lightly! (A yesterday I find almost impossible to lift.)
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cinco andares acima Elizabeth Bishop Escuro ainda. O pássaro desconhecido está em seu galho de sempre. O cachorrinho do vizinho late dormindo em tom de pergunta, uma vez só. Talvez dormindo, também, o pássaro indaga uma ou duas vezes, com um vibrato. Perguntas – se é isso o que são – respondidas de modo simples, direto, pelo próprio dia. Manhã enorme, ponderosa, meticulosa; luz gris riscando cada galho nu, cada ramo fino, ao longo de um lado, criando uma árvore outra, de veios vítreos... O pássaro continua lá. Agora parece que boceja. O cachorrinho preto corre em seu quintal. A voz do dono se eleva, severa: “Você não tem vergonha?” O que foi que ele fez? Ele saltita alegre para cima e para baixo; corre em círculos sobre as folhas caídas. Claro está que ele não tem vergonha alguma. Ele e o pássaro sabem que tudo foi respondido, tudo resolvido, não é preciso perguntar de novo. – Ontem se fez hoje com tal leveza! (Um ontem para mim quase impossível de levantar.)
Inédito em português, este poema será incluído na próxima edição da obra de elizabeth bishop, a ser publicada em 2012 pela Companhia das Letras. paulo henriques britto é tradutor e poeta, autor de Macau (2003, vencedor do prêmio Portugal Telecom), Paraísos artificiais (2004), Tarde (2007), entre outros.
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clássico Para apreciar hoje o notável romance de Lampedusa, vale o ensinamento de Don Fabrizio: só podemos alimentar a ira pelo que é eterno
Odiar O Gattopardo javier marías
Burt Lancaster em O Leopardo, dirigido por Luchino Visconti, 1963 © Twentieth Century-Fox Film/ Photofest
Nenhum livro e nenhum autor são imprescindíveis por si, e pode-se garantir que o mundo seria exatamente como é se Kafka, Proust, Faulkner, Mann, Nabokov ou Borges não tivessem existido. Talvez não fosse tão igual se nenhum deles tivesse existido, mas é indubitável que a falta de apenas um não afetaria o conjunto. Por isso, é muito tentador – uma tentação fácil, admito – pensar que o romance representativo do século 20 é aquele que teve maiores possibilidades de não existir, e do qual ninguém sentiria falta (afinal, Kafka não deixou uma obra única, e, uma vez que se sabe que há outras além de A metamorfose, qualquer leitor pode permitir-se “ter saudade” delas ou desejar lê-las). Aquele que em sua época foi visto por muitos quase como uma excrescência ou um intruso, como algo antiquado e completamente afastado das “correntes” predominantes, tanto em seu país, a Itália, quanto no restante do mundo. Como uma obra supérflua, anacrônica e que não “acrescentava” nada nem “avançava”, como se a história da literatura fosse algo progressivo e, em certo sentido, semelhante à ciência, cujos achados vão sendo desprezados ou eliminados à medida que são superados ou que se demonstram a parcialidade, a insuficiência ou a inexatidão de cada um deles. Já a literatura funciona preferencialmente da maneira oposta: nada do que se acrescenta a ela apaga ou anula o que já foi escrito, mas, ao contrário, por assim dizer, coloca-se a
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seu lado e convive com aquilo. O mais antigo e o mais novo respiram juntos, e, às vezes, cabe pensar se tudo o que foi escrito não é senão a mesma gota de água caindo sobre a mesma pedra, e se a única coisa que na verdade varia é a linguagem de cada época. É necessário, claro está, que o antigo ainda respire apesar do tempo transcorrido desde sua criação ou seu aparecimento: sem dúvida, há obras que se apagam e se anulam – e são a imensa maioria –, mas o fazem por conta própria, não porque algo tenha ocupado seu lugar nem suplantado-as ou aposentado-as: elas enlanguescem e morrem devido ao vigor escasso ou porque – precisamente – em seu nascimento aspiravam a ser “modernas” ou “originais”, o que facilita desde sempre o pronto envelhecimento, ou ainda, como também se afirma, a permanecer excessivamente “fechadas”. “Isto aqui é de tal período e só dele”, dizemos ao lê-las fora de sua época, e, com a inexorável e sempre crescente aceleração do mundo, “fora de sua época” significa às vezes, hoje em dia, apenas uma década após o surgimento. Sentimos um pouco isso até mesmo com as narrativas dos maiores autores contemporâneos: com Kafka, Faulkner, Borges em certas ocasiões, e quase sempre com Joyce. De tão inovadores, ousados, voluntaristas, tão diferentes ou ambiciosos, eles podem acabar parecendo, às vezes, levemente antiquados ou, se preferirmos, apenas “fechados”. Isso não ocorre com Isak Dinesen, nem com O Gattopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa. Este não é de jeito nenhum um romance oitocentista, como alguns, talvez confundidos pelo século em que se situa a ação, chegaram a afirmar na época. É, sem dúvida, um romance tão contemporâneo quanto os dos escritores mencionados. O autor não desconhecia as novas técnicas nem os “avanços” do gênero, se é que podemos chamar assim, e teve inclusive a modéstia de descartar uma possibilidade – narrar uma só jornada na vida do príncipe Fabrizio di Salina – com a seguinte frase: “Não sei como escrever o Ulisses”. Mas sabia sim, por exemplo, fazer uso magistral da elipse, relatar de modo fragmentário, sem sublinhar e até sem contar totalmente, deixar sem explicação aquilo que ao leitor basta vislumbrar ou intuir, levar a cabo esclarecedoras associações entre elementos dispersos e aparentemente secundários ou meramente anedóticos, combinar sem
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fadiga nem trapaça o dito e o acontecido com o apenas pensado (tudo isso, muito mais próprio do romance do século 20 que o do século 19) e, sobretudo, observar, refletir, insinuar, matizar. Como é sabido, O Gattopardo poderia não ter sido publicado, e de fato foi assim para o autor, que não chegou a vê-lo impresso e, poucos dias antes de sua morte, em 23 de julho de 1957, recebeu uma nova carta de recusa, vinda de uma das melhores editoras italianas, que assim se somou, em seu “olho clínico”, a outra não menos prestigiosa. Mas não é só isso: O Gattopardo podia muito bem não ter sido escrito. Lampedusa não era escritor, ou passou a sê-lo só depois da morte; e, se nos últimos anos de vida empreendeu seu romance, foi, ao que parece, por causas inteiramente menores: o relativo sucesso tardio do primo, o poeta Lucio Piccolo, que o levou a fazer a seguinte consideração em uma carta: “Com a certeza matemática de não ser mais tolo, me sentei à minha mesa e escrevi um romance”. Outro dos estímulos recebidos foi o de sua mulher, Licy, que o animou a escrever – supõe--se que qualquer coisa, sem pretensões – para ver se com essa atividade a nostalgia se aplacava um pouco; um terceiro motivo pode ter sido a solidão: “Sou uma pessoa muito solitária”, afirmou. “Das minhas 16 horas de vigília diária, pelo menos dez transcorrem em solidão. Não pretendo, contudo, passar todo esse tempo lendo: às vezes elaboro teorias literárias.” Mas o fato é que passou a maior parte da vida lendo e carregando muito mais livros que o necessário, em uma pasta, durante o percurso cotidiano pela cidade de Palermo. Quanto a ler (ele o fazia em cinco ou seis idiomas), lia até os escritores medíocres e secundários, a quem considerava tão necessários quanto os grandes: “Também é preciso saber entediar-se”, opinava. De modo que, por trás de O Gattopardo, houve pouco ímpeto e escassa ambição. Na verdade, seria muito provável que o romance jamais tivesse existido, e o próprio Lampedusa alimentava dúvidas sobre seu valor e sua condição oportuna: “Temo que seja uma porcaria”, disse certa vez ao discípulo Francesco Orlando, pelo visto sem nenhum coquetismo e de boa-fé. Ao mesmo tempo, acreditava que o livro merecia publicação (o que não é difícil de acreditar, considerando tudo o que se publicou no século 20 de bom, mediano ou ruim: já nem digo o que tem sido publicado no século 21). Em seu texto “Últimas vontades de caráter
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Alain Delon (Tancredi), Claudia Cardinale (Angelica) e Burt Lancaster (Don Fabrizio Salina) © Twentieth Century-Fox Film/ Photofest 1. Os trechos aqui citados foram extraídos da edição brasileira (Record, 2006, tradução de Marina Colasanti). [n. do e.]
privado”, escreveu: “Desejo que se faça todo o possível para que se publique O Gattopardo […]. Claro, não significa que ele deva ser publicado à custa de meus herdeiros; eu consideraria isso uma grande humilhação.” Não houve muito ímpeto nem muita ambição no início da tarefa, mas pelo menos houve, sim, algum orgulho em sua conclusão. Não faltavam a Lampedusa motivos para isso. O Gattopardo, livre de servidão, de temores críticos, da imobilização que às vezes se apodera de alguns romancistas pelo simples fato de se sentirem responsáveis diante de si mesmos e diante da própria trajetória anterior, livre de vaidades e de presunções e de ânsias de originalidade, sem nenhuma intenção de deslumbrar, nem de escandalizar, nem de “abrir novos caminhos”, é lido, mais de 50 anos depois da publicação e já em outro século, como uma obra-prima solitária a partir de quatro pontos de vista: por ser o único romance completo do autor; por ter surgido quando ele já estava morto e ter sido lançado a circular pelo mundo sem acompanhamento nenhum, digamos assim; por provir de um ilhéu apartado da literatura “pública” até o fim dos seus dias; e por revelar-se extraordinariamente original, sem ter aspirado a isso. Sobre esse romance, escreveu-se muito no tempo transcorrido, e seria presunçoso de minha parte querer acrescentar algo. O romance da Sicília, certo; o romance da unificação da Itália, certo; o fim de uma época e o declínio de todo um mundo, de acordo; o retrato do oportunismo com a famosa frase de cuja citação tanto se abusou – “Se quisermos que tudo permaneça como está, é preciso que tudo mude”,1 ou então “que algo mude” – e que é repetida até a saciedade por quem jamais leu O Gattopardo, de acordo, embora essa frase seja apenas anedótica no conjunto do livro, um afortunado elemento a mais. Para mim, ele é, sobretudo, um romance sobre a morte, a preparação
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para ela e sua aceitação, e até sobre certa impaciência por sua chegada. De maneira nada insistente, tênue e respeitosa e modesta, quase como uma parte da vida, e não forçosamente a mais importante, a morte vai rondando. Talvez duas das passagens mais emocionantes do romance sejam a contemplação, por parte do príncipe de Salina, da breve agonia de uma lebre que ele acaba de abater durante uma caçada; e o último parágrafo, no qual, quase 30 anos depois do desaparecimento do próprio Don Fabrizio, sua filha Concetta decide finalmente jogar no lixo o cão empalhado, Bendicò, que fora de seu pai e por quem ele tinha grande carinho. Da lebre, diz-se: Don Fabrizio viu-se encarado por dois grandes olhos pretos que, rapidamente invadidos por um véu glauco, voltado para a total ordem das coisas; as orelhas aveludadas já estavam frias, as patinhas vigorosas contraíam-se ritmicamente, símbolo supérstite de uma fuga inútil; o animal morria torturado por uma ansiosa esperança de salvação, imaginando poder ainda escapar quando já havia sido agarrado, exatamente como tantos homens.
E da múmia do cão Bendicò, diz-se: “Enquanto a carcaça era arrastada para fora quarto, os olhos de vidro a encararam com a humilde censura das coisas que se descartam, que se quer anular”, e isso leva o leitor a recordar outra citação, muito anterior, na qual, quando se fala do mundo de Donnafugata, diz-se: “Despidos até daquele tanto de carga energética que cada coisa passada continua possuindo”. Lampedusa sabe que tudo demora a se desvanecer, que tudo leva seu tempo, até o que já é “coisa passada” remancha e resiste a ir embora, até a velha múmia de um cão que abandonou o mundo décadas atrás. E a esse desaparecimento lento, mas completo, ele só ousa se opor com uma censura humilde contra a ordem natural das coisas, sem sequer se aproximar do ódio. Quem conhece ou intui essa ordem vai se acostumando à ideia e à perspectiva, inclusive conta com ela como “salvação”: “Organizara para si aquele tanto de morte que é possível conseguir mesmo continuando a viver”, lê-se em outro momento; e em outro: “Enquanto há morte, há
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esperança”. Não se trata apenas dos lugares e dos animais, que não compreendem (e os olhos que nem sequer são olhos, mas os vidros de taxidermista que imitam os do cão Bendicò empalhado, compreendem menos ainda). Trata-se também das pessoas, em sua maioria ainda ignorantes e cheias de vida, ainda na crença de que a morte é algo que concerne aos outros, e, no entanto, já dignas de compaixão. Na famosa sequência do baile, diz-se: Os dois jovens se afastavam, outros casais passavam, menos bonitos, igualmente comoventes, cada um deles mergulhado na sua cegueira transitória. Don Fabrizio sentiu seu coração amolecer: o nojo dava lugar à compaixão por esses seres efêmeros que tentavam aproveitar o exíguo raio de luz concedido entre as duas trevas, antes do berço e depois dos últimos estertores. Como era possível irritar-se com quem, já se sabe, terá que morrer? [...] Não era lícito odiar nada a não ser a eternidade.
Cinquenta anos ou mais são só um instante “em sua própria região de certeza perene”, como igualmente se lê no final da sexta parte. Mas talvez sejam suficientes para que todos nós, romancistas ainda vivos, ainda fugazes, ainda cegos e enternecedores entre as duas trevas, já ganhemos o direito de odiar O Gattopardo.
Autor de romances como Coração tão branco (1992) e da trilogia Seu rosto, amanhã (2002-2007), Javier Marías (1951) é um dos mais importantes nomes da literatura espanhola contemporânea. Seu livro mais recente é Los enamoramientos (2011), ainda inédito em português. Com destacada produção ensaística, Marías é colaborador do El País, onde “Odiar O Gattopardo” foi publicado originalmente. Tradução de Joana Angélica d’Avila Melo
Não fosse por sua beleza e elegância, a série Homens de letras, de Roberto de Vicq de Cumptich, destacaria-se pelo prodígio gráfico do autor, brasileiro radicado em Nova York desde a década de 1980. Designer apaixonado por tipografia, De Cumptich propõe um jogo engenhoso: retratar escritores usando apenas as letras de seus nomes dentro de uma mesma família tipográfica. De Cumptich desenhou com exclusividade para a serrote um Carlos Drummond de Andrade usando 23 caracteres, repetindo as letras que formam o nome do poeta. A fonte é a Reader, que até parece ter sido batizada para esta série, da qual publicamos oito outros portraits, alguns dos quais podem ser vistos, em movimento, no site www.wordsatplay.com.
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George Bernard Shaw George Bernard Shaw
James Joyce James Joyce