Rescaldo e Ressonância! _ Inês Moreira _ Reitoria da Universidade do Porto 2009

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APRESENTAÇÃO Esta é a publicação que acompanha o projecto

Rescaldo e Ressonância!

Rescaldo e Ressonância! é um projecto especulativo concebido como percurso instalativo pelos espaços acidentados num incêndio em Maio de 2008 na Reitoria da Universidade do Porto. O projecto surgiu da fascinação pelo acidente, mas recusou a espectacularização da catástrofe. Pesquisa a anti-espectacularidade e a normalidade, auscultando as ressonâncias de um espaço não-convencional, interpretando a crueza e a materialidade do pós-incêndio e documentando-o através de registos em diversos media (vídeo, fotografia, som e espaço). O projecto é contido, de linguagem austera, e tornou-se público nas modalidades de instalação espacial e de edição. Expôs-se um projecto-ensaio numa modalidade instalativa que revê e interpreta os processos de consolidação dos espaços existentes, registados na documentação e nos materiais que um grupo de criadores contemporâneos recolheu após o processo de rescaldo.

O projecto foi desenvolvido entre Novembro e Abril de 2009 numa colaboração entre André Cepeda (fotografia), Paulo Mendes (vídeo), Inês Moreira (curadoria e concepção do espaço) e Jonathan Saldanha (som). Esta publicação conta ainda com ensaios de Pedro Bandeira, Filomena Vasconcelos e Inês Moreira.









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REGISTO REALIZADO POR ANDRÉ CEPEDA ENTRE NOVEMBRO/ABRIL 09 NOS ESPAÇOS ACIDENTADOS DO 3º E 4º PISOS DA REITORIA DA U.PORTO. ESTAS IMAGENS INTEGRAM O CONJUNTO DE 240 SLIDES PROJECTADOS NA INSTALAÇÃO ARTÍSTICA DE ANDRÉ CEPEDA “S/ TÍTULO, PROJECÇÃO DE SLIDES” NA EXPOSIÇÃO

RESCALDO E RESSONÂNCIA!

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RESCALDO ARQUIVO 19


2008, 5 de Maio

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IncĂŞndio na cobertura da Reitoria da U.Porto Vista da Torre dos ClĂŠrigos. Imagem cedida por Joana Bourgard/JN

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2008, 6 de Maio

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Interior do rescaldo no dia após o incêndio Imagens de arquivo de Paulo Santos (Prof. Auxiliar da Faculdade de Ciências da U.Porto)

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Interior dos átrios e cobertura no dia após o incêndio Imagens de arquivo de Paulo Santos

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Danos na cobertura Imagem cedida por: Miguel Ângelo Costa (Serviço de Património Edificado e Contratação Pública da Reitoria da Universidade do Porto)

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Interior dos gabinetes de trabalho do 4ª piso no dia após o incêndio Imagens de arquivo de Paulo Santos

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Pormenores dos espaços do 4ª piso no dia após o incêndio Imagens de arquivo de Paulo Santos

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1974, 20 de Abril

Incêndio de 1974 no edifício da Reitoria da U.Porto Imagens cedidas pela Unidade de Gestão de Informação da Universidade Digital da U.Porto

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Incêndio de 1974 no edifício da Reitoria da U.Porto Imagens cedidas pela Unidade de Gestão de Informação da Universidade Digital da U.Porto

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2008-09

Instanciações recentes

Performance inaugural do Projecto Terminal, Hangar K7, Oeiras Inauguração da exposição Toxic - O Discurso do Excesso Still do vídeo “Rescaldo” de Rodrigo Oliveira (2005)

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O incêndio é o derradeiro espaço “não-convencional”. Espaço inabitável.

Espaço espectacular.

Espaço autofágico e exotérmico.

Espaço imaterial e incandescente.

Espaço com propriedades de luz, matéria que se volatiliza e . Espaço que se expande e avança com o vento, que se alimenta do ar, que se auto-consome e

chama

expande em

expande

em energia térmica e lumínica.

Como tratar uma arquitectura

acidentada?

Como curar? Como habitar o espaço

?

entre o edifício e o acidente Como activar uma entre o imaginário e a nova

ligação

materialidade?

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INSTANCIAÇÃO 1 Estaleiros contingentes Em Pequim, na noite da festa das Lanternas, 9 de Fevereiro de 2009, ardeu uma torre de 130 metros do complexo do edifício CCTV em Pequim, desenhado por Rem Koolhaas para acolher a sede da televisão chinesa que inaugurou em 2008 no dos Jogos Olímpicos. O edifício agora desaparecido (TVCC) estava na fase final de construção e seria um hotel do Centro Cultural da Televisão. A centralidade criada com o edifício icónico do CCTV tornou este local no centro da festa do Ano Novo Chinês em Pequim. A sedutora visão do conjunto dominado por uma torre-ponte que se apoia no solo em duas torres-coluna que se elevam e unem no ar por um terceiro corpo em consola, a centenas de metros de altura, definiu a espectacularidade cénica da localização das festividades. Desconsiderando os riscos, a torre foi utilizada como rampa de lançamento de fogo-de-artifício lançando material com alto poder explosivo e calorífico. O edifício em final de construção incendiou-se

boom

e ardeu, indistinguível do fogo-de-artifício que lançava da sua cobertura. A relação entre o fogo, o espectáculo e o prazer foi problematizada por Bernard Tschumi a propósito do Parque de La Villette em Paris. Conceptualizou a inutilidade (ou não-utilidade) da arquitectura e o evento do fogo-de-artifício como modos de escapar à produção e consumo do espaço usualmente adstritos à arquitectura. O fogo é um evento dirigido ao prazer de quem o consome, a consumição escapa à utilidade do espaço e produz um modo de inutilidade comparável àquela dos jardins “de plaisir”. No seu paralelismo vai mais longe, Tschumi refere que

“the greatest architecture of all is the fireworker´s, it perfectly 1shows the gratuitous consumption of pleasure” . Em nenhum lugar a relação entre arquitectura, prazer e consumição poderia ser levada a um limite mais extremo. O incêndio de um grande edifício é um espectáculo visual intenso. A torre do CCTV tornou-se imprevisivelmente num edifício archote. A sua matéria e tectónica tornadas luz e evento. Esta é uma das atracções dos pirómanos, dizem. Uma arquitectura de luz e calor, um elemento primordial do recinto da Arquitectura. É também, se usar-

mos a Teoria da Catástrofe de Paul Virílio, um cínico barómetro referenciando a velocidade com que a construção dos grandes símbolos do desenvolvimento económico na China se tem precipitado.

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Incêndio no TVCC, Pequim, China Imagens das galerias stephanieetstephan e 安布雷斯 no flickr

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A 9 de Maio de 2009, apenas 3 meses mais tarde, um segundo ícone da Arquitectura Contemporânea Internacional na China sofreu um incêndio. O Edifício da Ópera de Guanghzou, desenhado por Zaha Hadid para símbolo cultura chinesa contemporânea é uma obra importante no percurso da arquitecta. Foi consumido pelas chamas. Contrariamente ao incêndio do CCTV, na internet, em Maio de 2009, a informação sobre este segundo espectacular acidente é quase inexistente. Ocorreu ainda no seu espaço de produção, no estaleiro de obra, longe das festividades e dos holofotes. Um breve comunicado de imprensa acompanhado de apenas uma imagem (ver ao lado) relata um fogo controlado.

A nuvem de fumo parece contradizer os factos.

Ambos acontecimentos ocorreram na China, país que encontrou uma estratégia de visibilidade exterior na arquitectura das grandes estrelas Europeias e Americanas. A dimensão simbólica destes incêndios ultrapassa o evento e a imediatez do fogo. Paradoxalmente, são as imagens dos ícones em chamas, a desaparição do recente troféu, que estão agora a circular na internet em blogs e sites estrangeiros. As perdas vão além do investimento, das questões materiais e da utilidade dos edifícios. A espectacularidade das imagens alimenta interpretações, versões e incriminações. A sua propagação e circulação constrói potencialmente alegorias, fornecendo imagens paradigmáticas para análise da situação de crise financeira e política que se abateu e agudizou no Mundo no ano 2009. Paralelamente, parece existir um apagamento do evento pelos media oficiais do país e um extinção das leituras críticas e irónicas sobre o evento disponibilizadas no espaço da internet chinesa2 . A ausência de informação é um murmúrio sobre a censura

e a limitada liberdade de comunicação na China e um eco da dimensão simbólica deste fogo. O incêndio, a destruição, o espectáculo das chamas fragiliza as construções e os edifícios físicos. Mas abala especialmente a dimensão simbólica dos edifícios enquanto ícones culturais e políticos. Tal como a queda das Torres Gémeas do World Trade Center em 2001 e a implosão do Bairro Pruitt-Igoe em 1972, ambos desenhados por Minoru Yamasaki, marcaram momentos da história contemporânea recente; em 2009 foram a China e a Arquitectura das vanguardas dos anos 90 que sofreram estes dois violentos incêndios, surgindo as imagens apocalípticas enunciadas como o término de uma era de aproximação grandiosa à arquitectura. Inês Moreira.09

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1 Bernard Tschumi citado por Jonathan Hill, in Actions of architecture: architects and creative users, Routledge, London, 2003, P.78 2 www.opendemocracy.net/article/the-cctv-fire-a-voice-without-restraint


IncĂŞndio na Guangzhou Opera House, China Imagem retirada de www.abbs.com.cn/bbs/post/view?bid=1&id=337426949

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INSTANCIAÇÃO 2 Perda e oportunidade No dia 13 de Maio de 2008 a Faculdade Arquitectura da Universidade Técnica de Delft, na Holanda, sofreu um violento incêndio que destruiu por completo o seu edifício - Bouwkunde -, desenhado por Van den Broek and Bakema e construído em 1970. A causa: um curto-circuito eléctrico provocado por uma pequena inundação numa máquina de bebidas. Um imprevisível pequeno acontecimento, gerou a total devastação pelas chamas, desaparecendo o edifício, a investigação e diversas qualidades de heranças do passado da faculdade. Não houve feridos, apenas restou o esqueleto de betão e os documentos digitais arquivados no servidor de um outro edifício. O local de ensino, de troca de ideias, de investigação, de encontro e do quotidiano de uma comunidade desapareceu nos escombros e na posterior demolição.

A contingência, a melancolia da perda e o choque afectivo foram desdobrados pelo ágil pragmatismo holandês. Três estratégias foram simultaneamente activadas: transferência, registo e substituição, traduzidos em formatos de realojamento, edição e

projecto/exposição.

A perda de instalações, espaços e equipamentos foi solucionada temporariamente em tendas montadas num jardim e com equipamentos cedidos e enviados por outras escolas europeias. A Universidade tornou-se temporariamente num evento nomádico procurando restabelecer o seu funcionamento e reorganizar os seus afectos e memórias. Num exercício de registo de memória colectiva, a faculdade editou uma pequena história oral, em discurso directo. Na sua introdução Wytze Patjin refere ter ouvido de um dos seus colegas,

“It is strange to walk through a building in your mind that doesn´t exist anymore”3. A edição, reactiva a memória do edifício e foi o princípio de longas horas de conversa e registo

em entrevistas, criando um percurso mental e subjectivo pelas histórias que aconteceram num espaço que deixou de existir. O aspecto imaterial da perda, as memórias e a reminiscência da experiência do incêndio foram amplificadas pelas relações afectivas dos estudantes, professores e funcionários com o edifício. O acidente e a desaparição resultaram numa pequena publicação on-line que documenta a história dos usos e apropriações do espaço ao longo do tempo. 40


Incêndio da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Delft O edifício totalmente consumido pelas chamas Imagens da galeria de VahidG no Flickr

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Mas a Arquitectura viu também na perda material uma oportunidade de construção e de reflexão sobre o que é um espaço de ensino da arquitectura. Com um discurso entusiasta e optimista, lançou-se no projecto de uma nova casa,

“indeed, the loss of the faculty building also offers new opportunities. Opportunities to take a fresh and critical look at the education of the future, opportunities to realize a modern, innovative and refreshing design for the university building.”4 No concurso de ideias para o desenho de uma nova peça de arquitectura no lugar do edifício anterior, as propostas seleccionadas (de Gijs Raggers, Laura Alvarez e Marc Bringer / Ilham Laraqui)5 comunicam metaforicamente a relação da Faculdade de Arquitectura com o seu futuro e passado. Explorando a

continuidade histórica com a composição arquitectónica, activando a ideia de circularidade de tempo e abreviando a importância da autoria; pela reutilização cuidadosa e ampliação de estruturas espaciais existentes, ou ainda pelas imagens da sustentabilidade e metáforas do equilíbrio natural, a Arquitectura encontrou uma alternativa à perda do seu edifício e conteúdos.

Inês Moreira.09

A exposição no Netherlands Architecture Institute torna públicas as propostas. 3

Livro de memórias “Bouwkunde, Portrait of the Falculty of Architectire 1970-2008”, www.buildingforbouwkunde.nl/Portals/BK2008/documents/B-book.pdf

4 Concurso de ideias “Building for Bouwkunde”, www.buildingforbouwkunde.nl 5 Exposição “Building for Bouwkunde” no Netherlands Architecture Institute entre 15 de Março e 7 de Junho 2009.

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INSTANCIAÇÃO 3 Narrativas acidentadas Raven Row

é uma galeria de Arte Contemporânea recém inaugurada em Londres. Está concebida como um palimpsesto espacial composto, ou escavado, nas espessuras das histórias que se sucederam e o transformaram ao longo do tempo. Inaugurado em Março de 2009, apresenta uma nova organização e reconfiguração dos espaços existentes criada por 6a Architects. A galeria ocupa dois edifícios georgianos construídos em 1754 e um edifício de escritórios de betão de 1972. O novo projecto escava o interior do quarteirão criando galerias de exposição que interligam o conjunto.

Ao longo do tempo o edifício teve uso doméstico nobre – residência de mercadores de seda -, ocupação funcional – armazém e loja -, sofreu abandono, diferentes reconstruções e em 1972 sofreu um incêndio. O bairro de Spitalfields onde se localiza teve um grande declínio económico e recentemente tornou-se num novo centro cultural e financeiro da cidade. Os dois edifícios principais resistiram a 250 anos de história, às transformações, à gentrificação e ao incêndio que os destruiu. A destruição e, em particular, o incêndio foram conceptualmente inte-

grados no novo projecto como uma camada de ocupação temporária, vazia e texturada do edifício. Como um exercício de arqueologia espacial, a sucessão de memórias revela-se na organização orgânica das distintas épocas, na continuidade dos diversos espaços, e na crueza das texturas, nos acabamentos, nos detalhes e nas matérias utilizadas nas superfícies dos pavimentos e dos revestimentos exteriores.

As galerias de exposição estão dispostas em grandes whitecubes semi-soterrados, estando o principal núcleo nas salas de interior doméstico, interligadas pelas mesmas portas duplas e portas semi-secretas que estabeleciam as circulações principais e de serviço nos níveis superiores das duas casas. Contrariamente

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à neutralidade convencionada para a exposição de arte contemporânea, estas salas foram restauradas com o barroquismo da decoração da época, com madeiras lacadas, estuques e grandes lareiras decoradas em cada uma das salas de exposição. Um processo de contra-arqueologia permitiu a reconstituição de uma das salas georgianas cujo interior escapou ao incêndio de 1972, por ter sido vendida nos anos 20 ao Art Institute of Chicago e assim, sem nunca ter sido musealizada, foi recuperada de um armazém no Essex onde estava depositada desde os anos 80, devolvendo à casa o seu interior de há 90 anos.


Incêndio nos edifícios Raven Row em 1972 Imagem de www.ravenrow.org

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Novos elementos como a textura dos pavimentos em solipas de madeira texturada e não envernizada introduzem um elemento táctil e uma presença física ao espaço, interrompendo a perfeição dos acabamentos reconstituídos nas paredes e tectos. Este mesmo efeito é sublinhado pelos puxadores das portas e as novas balaustradas das escadarias, criadas com técnica artesanal em ferro fundido em molde de areia, mantido à cor e com a textura dos moldes. Também

a cor dos tijolos queimados pelo uso das lareiras e as diferentes decorações das fornalhas de época são detalhes que acrescentam textura e apontam para os usos, histórias e épocas da casa-galeria.

O exterior é a testemunha mais literal do incêndio, a nova fachada posterior foi revestida com placagem de ferro fundido em moldes de tábuas de madeira queimada: o ferro transporta a textura e o processo de queimada, adquirindo o carácter barroco dos percursos das chamas na madeira. Também os lanternins que iluminam as galerias foram revestidos com tábuas de madeira queimada criando uma paisagem no pátio interno que remete dos interiores restaurados para o evento do incêndio. O edifício é negro e a sua pele degrada-se no contacto com o ar e a chuva.

Segundo os arquitectos:

“We avoided the Modernist paradigm of contrasting new against old. We took the view that the pre-existing construction need not be consigned to history and framed by the new. We have aimed to make each piece of this evolving puzzle oscillate between past and present. Rather than fixing history in the past, we have allowed for contemporary narratives to be drawn across time and space.”6 O incêndio foi integrado em continuidade histórica com as demais ocupações, participando na narrativa do edifício e contribuindo como matéria plástica. O acidente e o fantasmático foram transpostos para o novo projecto e participam nas texturas que compõe este novo espaço. Inês Moreira.09

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6 www.iconeye.com/index.php?option=com_content&view=article&id=3691:raven-row-by-6a-architects


Recuperação do edifício da galeria Raven Row, 2009 Imagem de www.dezeen.com

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RESCALDO

E RESSONÂNCIA!

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Assistimos à notícia: houve um violento incêndio na cobertura da Reitoria da Universidade do Porto. Um pequeno incidente nos trabalhos de reconstrução do telhado, já quase terminado, provocou um grande incêndio que em apenas hora e meia destruiu parte do telhado e várias divisões da ala onde estava instalado um conjunto de laboratórios e espaços de ensino da antiga Faculdade de Ciências. Talvez a ruptura de uma lâmpada, talvez uma faísca, talvez qualquer outra qualquer fagulha, de causa humana ou não, provocou um foco de incêndio que se alastrou pela cobertura de madeira e pelos químicos da obra em curso. Uma pequena contingência de uma obra viu-se descontrolada: as chamas da cobertura em madeira alastraram aos químicos, reagentes e máquinas de um laboratório. O edifício foi evacuado, o incêndio foi combatido e controlado, os danos pelo fogo ficaram circunscritos à área imediatamente abaixo do telhado incendiado. O vento minimizou os estragos, o fogo esteve paredes meias com os Museus e a Biblioteca do Fundo Antigo, uns escassos 40 cms de pedra dividiram as áreas em chama dos grandes depósitos de animais taxidermizados ou suspensos em frascos de formol. A explosão teria sido terrível caso o vento soprasse ao contrário.

O fogo foi contido.

Contudo os seus efeitos projectaram-se no tempo e no espaço. No seu controlo, amplificaram-se uma série de interferências: o fogo destruiu um conjunto de laboratórios de investigação no 4º piso; o peso da água do combate ao incêndio fez aluir tectos, colapsou gabinetes e inundou os diversos pisos inferiores; a remoção de escombros e entulhos, e a prevenção de riscos de desabamento, desalojou definitivamente os restantes gabinetes e espaços de ensino e pesquisa. A mudança da Faculdade de Ciências foi definitivamente precipitada pelo incêndio e deslocalizou-se para outro edifício.

Desde o dia 5 de Maio de 2008 que os pisos superiores do edifício estão vazios. Os efeitos colaterais invadiram nessa manhã o centro da cidade. Uma densa nuvem de fumo, cinza e de cheiro a queimado varreram o ar na direcção da Praça da Liberdade. De queixo erguido, a cidade interrogou-se sobre o perigo por detrás desta inusitada nuvem que a invadia. Ficou esclarecida pela atenção dos media, dos directos na televisão, na rádio, e posteriormente nas notícias nos jornais e nos fragmentos dispersos na net. Estes estilhaços de informação prestaram atenção aos primeiros momentos, aos minutos iniciais do incêndio e ao apagamento do seu foco de preocupação. O fogo não alastrou. O edifício conteve-o.

Fim de notícia.

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RESCALDO. E DEPOIS?

O 4º piso está agora negro e cru. O espaço expõe uma sucessão de vazios. A ala acidentada está estabilizada, consolidada e segura. Apresenta porém uma nudez indecorosa, uma crueza na sua materialidade que constitui uma arqueologia de eventos efémeros. Pelos indícios adivinha-se o abandono súbito provocado pelo acidente, preenchido pelos movimentos de salvamento e evacuação. Sentem-se as marcas das águas que apagaram as chamas, as nuvens de fumos e o vapor de água que preencheram os espaços. Pressentem-se os traços dos trabalhos de consolidação do edifício, a limpeza dos escombros, a lavagem das cinzas e dos despojos. O rescaldo, lugar carbonizado que se empenha no controle e na reincidência do acidente, deu lugar à consolidação. As espectaculares ruínas não foram visitáveis, os espaços foram consolidados, as responsabilidades apuradas e assumidas, as obras de recobertura e de estabilização ficaram executadas rapidamente. A evolução do processo de estabilização foi breve. No exterior todos os indícios do incêndio foram eliminados e o restauro do invólucro prosseguiu. Não houve espectáculo. A vida coexiste com normalidade no resto do edifício, continuando a actividade da Universidade: os serviços administrativos, os actos do Salão Nobre, os Depósitos dos Museus, a Biblioteca do Fundo Antigo, todos permanecem em actividade, intactos e salvaguardados do fogo. Há uma coreografia permanente de mudanças e reordenações de usos e serviços nas entranhas deste gigante da cidade. Continuam também

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a decorrer diversas obras de modernização do edifício, recuperação de salas, instalação de infra-estruturas. Por isso, ouvem-se máquinas, vêm-se cabos, entulho e pó.


Ardeu.

O acidente destruiu uma parte do edifício e gerou um espectáculo efémero. Mas o rescaldo e a consolidação produziram um novo lugar: edifício estanque, alvenaria consolidada, espaços vazios e superfícies queimadas. Um lugar anómalo onde entre a cobertura técnica nova e a para-cartografia de camadas derramadas nos pavimentos derretidos, existem a cinza, os ecos, o cheiro e a presença do queimado. Carbonizado e radicalmente esvaziado, o interior do rescaldo funciona como caixa de ressonância onde ecoam diversas presenças. As pós-presenças do incêndio preenchem de significações o vazio. E o vazio amplifica-as como numa caixa disfuncional: sem função, só com ecos. Por dentro.

Após o rescaldo, o espaço encheu-se de fantasmas – do

acidente, da história, do passado -, enquanto novos planos e usos temporários fortuitamente se apropriam e encontram espaço. E assim, um vazio de funcionalidade, de representação, de utilização, camuflado pelas monumentais fachadas neoclássicas do centro da cidade foi aberto e está expectante. Ficou aberta uma visualidade da urgência e uma dimensão espacial do imaginário. As ausências provocadas pelo incêndio, e a violência da sua pós-presença, activam com eloquência o potencial simbólico dos espaços acidentados.

Entre os sons dos factos, da ficção e o vazio, este espaço coloca-nos um sonoro “que fazer?” 51


RESSONÂNCIA!

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Debruçámo-nos sobre o cruzamento das dimensões material e ficcional deste espaço, numa abordagem em que a metáfora e a interpretação introduzem novos sentidos àqueles planos da verdade objectiva e técnica. O projecto não é uma interpretação de equívocos ou de alguma história menos clara: a investigação forense, os estudos técnicos de combate e prevenção e, mesmo, a reconstrução estão resolvidos e concluídos. Contudo, neste espaço voam pombos e ecoa no vazio uma normalidade por preencher. A proposta explora o potencial do espaço abruptamente esvaziado de actividade pelo incêndio, pelas operações de rescaldo e pelos trabalhos de consolidação. Faz um by-pass à espectacularidade e à imediatez das imagens do incêndio, aos momentos de consumição pelas chamas, ao crescimento do fogo e, também, ao depoimento trágico, à narrativa heróica e à celebração do acontecimento. O processo de reconhecimento conduziu a um afastamento daquela que constituía a nossa inicial expectativa: uma exposição sobre o incêndio. Operámos sobre alguns factos, sobre a experiência in situ na zona, sobre a pós-materialidade e sobre o imaginário activados pelo incêndio, criando um projecto especulativo sobre um espaço activado por um acidente. Diversos meses decorreram entre o fogo e o início da pesquisa, que arrancou como um conjunto de visitas e procuras avulsas de material de arquivo, uma recolha de notícias diversas e uma importante série de visitas ao espaço ainda durante a sua consolidação. Espaço queimado, destruído, inundado, despido de qualquer decoração ou linguagem, despejado de mobiliário, de qualquer vestígio de ocupação passada e futura. Nele habitam pombas e detritos,

manchas nas paredes e pedaços de tecto caídos no chão. Os trabalhos desenvolveram-se num campo de localização imprecisa: fisicamente no centro, dentro da academia, dentro da sede e símbolo, conceptualmente nos limites, dentro de um vazio evocativo carregado de restos e dos seus despojos materiais. O que resta? O que produz o resto? O processo de investigação e conceptualização deste/para este espaço difere profundamente de um plano de desenho: não é propositivo, não é paliativo, não soluciona o problema existente. Pensa, especula, interpreta e propõe um percurso expositivo, materializando-se numa exposição e nesta publicação. Por isso, este projecto é também um ensaio espacial sobre a potencialidade e a dimensão simbólica de um espaço “não-convencional”: um terrain vague na cobertura de um edifício institucional com grande peso simbólico na cidade do Porto. O que fazer num espaço expositivo acidentado? As propostas documentadas nesta edição concentram-se nas ressonâncias, na dimensão física e não-discursiva dos ecos do acidente material. Partem da crueza dos cenários acidentados, da materialidade dos restos do rescaldo e de indícios efémeros das intervenções de emergência. A pesquisa foi agenciada pelos diversos criadores que colaboraram: André Cepeda, Paulo Mendes e Jonathan Saldanha. 53


O corpo de trabalho de cada um aproxima, obliquamente, questões espaciais e, comigo, formariam um grupo peculiar de investigadores/criadores. Exploraríamos os limites da representação e a impossibilidade de uma análise objectiva que seria o ponto de partida de observação desta edificação interrompida.

Explorámos o remanescente num duplo sentido: o excedentário e o sobrante. André Cepeda vem registando em fotografia de grande formato os as-

pectos improdutivos da cidade, a degradação dos espaços urbanos e privados, o conflito social e a dura paisagem humana de diversos submundos. Tem conhecimento do universo espacial da Universidade e uma experiência de campo nos museus instalados no edifício da Reitoria, que foram adquiridos quando fez o registo fotográfico dos depósitos dos Museus para a exposição “Depósito – Anotações sobre Densidade e Conhecimento” que realizámos em 2007 no mesmo edifício. A experiência visual do edifício histórico, pode dizer-se que a “densidade do conhecimento acumulado até se tornar visível enquanto espólio de museu”, seria contrastada com a presente experiência de auscultação de um vazio evocativo preenchido por novas materialidades desfiguradas em salas anteriormente produtoras de conhecimento e sentido. Paulo Mendes vem explorando relações entre representação, narrativa e o apagamento da memória colectiva, especificamente pensando nas representações oficiais do Estado Novo, nos espaços públicos e privados onde esta se instalou e na memória colectiva desse período histórico, actualmente rejeitado. Explorando o modo como o abandono dos objectos e a destruição dos espaços se tornaram fenómenos paralelos ao apagamento da memória e à inexistência de discussão pública, vem na sua obra apropriando diferentes materiais de arquivo e objectos do quotidiano (mobiliário, vestuário, imagens) e produzindo fotografias, vídeos e performances que articula em montagens espaciais de aproximação site-specific. Paulo exploraria o imaginário despertado pelos espaços vazios, procurando as actividades, os gestos e reconstituindo uma arqueologia imaterial do acidente que destruiu as obras da cobertura dos laboratórios e da biblioteca. Exploraria os aspectos não-forenses e ficcionais encobertos nas narrativas privadas do incêndio, instalando-se na privacidade de um ex-gabinete de professor. O aspecto sonoro da “ressonância” seria desenvolvido por Jonathan Saldanha. Jonathan está implicado em inúmeros universos sonoros, é artista plástico e investiga a sonoplastia, a acústica e o evento sonoro, bem como diversas musicalidades ocidentais, orientais e populares. No seu percurso abandonou a pura visualidade para encontrar um veículo de comunicação na incorporação física, na recepção do som no corpo do espectador. Som e espaço alinham-se com o corpo do visitante, com a materialidade do edifício construído, sendo abordados (corpo/edifício) como emissor e receptor de ondas sonoras. Nas suas composições Jonathan explora ainda conceitos como o indizível e o inexplicável, eventos para além da racionalização e da recepção mental. No projecto seriam também exploradas questões espaciais e curatoriais que me acompanham, uma reflexão curatorial sobre um espaço e os modos de 54


expôr. Estabelecendo conexões com modelos expositivos site-specific e uma relação com o remanescente e o improdutivo, como numa arqueologia imaterial das histórias por contar, o projecto é, também, um percurso sobre as possibilidades curatoriais de pensar sobre o espaço enquanto evento. O que

pode ser esta arquitectura? O que produz este espaço? A exposição resulta num percurso instalativo, circular, organizado em volta de um pátio central que liga diversos pisos. Este circuito é o piso superior do corpo que foi afectado pelas chamas e a água, amplificando-o como um vazio evocativo. Na primeira sala do percurso, a antiga sala de aula de Zoologia 460 mobilada com grandes bancadas de lousa e madeira, Jonathan Saldanha criou uma grande instalação tridimensional, “Corredor”. Explora na sala de aula inundada pelos bombeiros uma atmosfera acústica projectada para a activação de um fluido espectral que emana das paredes do espaço acidentado. O som é o elemento articulador deste espaço, onde instalou uma série de colunas de som de automóvel recuperadas e reutilizadas. Explorou os sons mais invisíveis que o espaço pode ocultar, emitindo diversas pistas de sons captados no espaço e no seu próprio corpo. As colunas estão acopladas a um longo corredor escuro construído com platex e com outros materiais rudimentares, pré-existente na estrutura do edifício. O “corredor” é o espaço principal onde se podem sentir as ressonâncias sonoras que vibram o espaço e ressoam no corpo do visitante. Os baixos de “Corredor” são audíveis em toda a instalação como presença de fundo, definindo a atmosfera e a crueza do ambiente físico da exposição. O corredor foi também o local da audiência de performances sonoras que activaram as paredes do edifício, numa “Evocação de Ressonância”, explorando a tensão dos momentos prévios ao acidente. Diversas salas vazias e danificadas separam o “corredor” dos projectos seguintes, sendo que o som se propaga pelos corredores e unifica os espaços. Num deles os armários vazios onde se localizavam materiais de investigação, ou um pequeno laboratório de vão-de-escada, ou ainda um osso de baleia carbonizado recuperado do 3º piso. A vista exterior destas salas permite ver a Torre dos Clérigos e o interior do shopping municipal da Praça de Lisboa totalmente destruído e expectantes de investimento prometido.

As captações vídeo de Paulo Mendes e as imagens de André Cepeda mostram as feridas infligidas e já estabilizadas pelos trabalhos de consolidação. Os seus registos sublinham as marcas e as manchas que resultam do vazio funcional, da acção do fogo, e da acção contra o fogo. Paulo Mendes explora documentação vídeo, imagem real e de arquivo sobre o fogo e o edifício da Universidade, recompondo-as com imagens apropriadas do cinema. Paulo trabalha a narrativa audiovisual e a plasticidade da imagem, as noções de ficção e realidade, editando-as em ambos planos do imaginário e da verdade forense. O seu projecto aponta como o nosso imaginário colectivo do incêndio é marcado também pelo cinema, e, não contando com uma narrativa linear, consegue ter uma ligação inequívoca a este acidente e ao seu corpo pessoal de trabalho. Cell, noire é o título da instalação composta por uma dupla projecção vídeo e um amontoado de móveis e materiais recuperados do sector de abate

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da Universidade. O título é um tributo a Adolf Wölfli, um compositor suíço que passou trinta e cinco anos internado num estabelecimento para doentes mentais, onde compôs para insectos, máquinas e outros instrumentos não convencionais. O som estridente e repetitivo de um compositor com uma doença mental cria uma atmosfera delirante em que a instalação mostra o erro humano, enunciado numa lâmpada que se parte repetidamente, em espectaculares explosões captadas do cinema e noutros lapsos de memória e imaginação que remetem para o que terá provocado o escurecimento destas celas.

Tal como na obra do edifício, a remoção de elementos estáticos e decorativos que possam constituir perigo, constitui uma modalidade de obra pela destruição, invertendo a tradicional ordem da construção do tosco para o decorado – também este o projecto fotográfico de André Cepeda é um processo de consolidação do espaço e cria situações surpreendentes, pois acentua activamente os danos do incêndio. André analisa o espaço e devolve-o complexificado, como um palimpsesto. As suas imagens editam um olhar sobre o lugar e sobre a acumulação de acções e matérias no espaço. André Cepeda explorou o limite técnico e conceptual do media em que trabalha. O seu registo fotográfico em slide de 35mm utiliza e explora diversos tipos de película de alta qualidade, película fora do prazo, películas em negativo, em tom sépia, ou a preto e branco. A qualidade plástica do suporte fotográfico acresce a diversidade de modos de revelação, com revelações tradicionais e em sistema auto-revelador Polaroid. Há uma qualidade matérica nestas películas, que combinam a imagem captada e as camadas de revelador e de químicos que permaneceram na epiderme. Esta variedade de experiências permitiu uma exploração da plasticidade da película fotográfica, ao mesmo tempo que regista os rastos de água nas paredes, as cinzas, os espaços acidentados, o abandono, os móveis desorganizados. Uma selecção de 240 slides é projectada em telas de materiais pobres sobre as estantes metálicas da biblioteca do piso de baixo, inundadas durante o incêndio. Contrariamente à impressão digital de alta definição, a projecção analógica em slide do conjunto de peças originais, devolve uma luz efémera que coexiste com o espaço e se vai repetindo cadenciadamente ao som do projector.

Como habitar o espaço entre o edifício e o acidente?

No texto “Instanciações recentes” (ver páginas 34-47 do Rescaldo.arquivo) expôs-se como diversos incêndios ocorridos entre 2008-09 tiveram diferentes rescaldos: as fotografias e vídeos dos espectaculares incêndios na China circularam em imagens paradigma que alimentam uma crítica do desenvolvimento financeiro do País; após o incêndio da Faculdade de Arquitectura de Delft, enquanto se demolia o esqueleto e preparava o terreno para uma nova construção, foi pragmaticamente preparada uma publicação de memórias e um concurso de novas ideias; e em Londres na Raven Row redesenhou-se um novo edifício com um conjunto de espaços de exposição que integram os rastos e as sequelas do imaginário do rescaldo, a história do edifício e os materiais com texturas das chamas. A imagem, o projecto, a publicação e a construção foram modos de a arquitectura se relacionar com a perda e a contingência. 56


Em Rescaldo e Ressonância! procurámos através de modos de análise da convalescença e do remanescente encontrar uma resposta para estas questões. Pareceu-nos fundamental estabelecer ligações entre o espaço imaginário e as novas materialidades que este incêndio produziu. A visita ficcional concebida por Filomena Vasconcelos, as performances ressonantes de Jonathan Saldanha e os ensaios de Pedro Bandeira e de Filomena Vasconcelos exploram diversas ligações entre o discursivo, o simbólico e o físico, ampliando as experiências dos projectos instalados no espaço.

Mas como tratar uma arquitectura acidentada? Como curar um acidente e o vazio provocado?

Rescaldo e Ressonância! iniciou como uma expo-

sição sobre um incêndio e desenvolveu-se como uma conversação polifónica com o espaço. No percurso de reflexão, nas conversas e na relação com artistas, produtores e demais trabalhadores e ocupantes deste projecto, cheguei à conceptualização de uma relação com o espaço: “Brown rooms / grey halls”, a exposição como um projecto de auscultação de um espaço físico que integra os seus ecos e ressonâncias.

Os Brown Rooms / grey halls são a minha proposta de designa-

ção dos espaços imperfeitos e com presenças e ausências que significam, i.e., espaços físicos presentes, com uma intensa materialidade que se manifesta nas camadas acumuladas, no escurecimento pelo tempo e nas histórias reais e imaginárias que incorporam. Por oposição à abstracção dos designados espaços white cube generalizados na exposição de arte contemporânea, ou dos espaços vazios e esteticizados nas fotografias de arquitectura, o brown room / grey hall é um espaço com presenças, uma figura de não-neutralidade narrativa com a qual a exposição/o exposto estabelece diálogos. Salas antigas, históricas, abandonadas, acidentadas, hangares industriais desocupados e inactivos, arquitecturas toscas, de betão ou decadentes são espaços plasticamente férteis e socialmente carregados de histórias que se prontificam a ressoar no espaço. Questões como a performatividade do espaço, a activação dos sentidos ou a temporalidade, sejam as marcas da passagem do tempo ou as apropriações efémeras, são potenciadas por estes espaços de exposição “não-convencionais”. Os Brown rooms / grey halls são por isso o inverso de um receptor neutro convencionado pelas caixas abstractas, como também a blackbox das artes performativas proporciona.

Em Rescaldo e Ressonância! o evento, o lugar e o espaço de ex-

posição coincidem num único local, entendido como um “brown room / grey hall”, um local de trabalho onde participam todas as presenças e ausências que um white cube omite. A exposição refere-se aos efeitos do incêndio no espaço e às afectações do espaço nos visitantes: as peças, os projectos, os espaços, as visitas, as performances e os eventos paralelos são todos actores que ressoam. Inês Moreira.09 57


ÍNDICE

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APRESENTAÇÃO PORTFOLIO FOTOGRÁFICO POR ANDRÉ CEPEDA p.3 RESCALDO. ARQUIVO p.19 RESCALDO E RESSONÂNCIA! p.48

PROJECTOS p.70

2008, 1974, 2008-09: Instanciações recentes

Texto de Inês Moreira Índice Texto de Paulo Ribeirinho Soares Contributos, colaborações, apoios, agradecimentos Cobertura descoberta Planta da exposição Visita ficcionada por Filomena Vasconcelos Corredor. instalação de Jonathan Saldanha Evocação de Ressonância. Performance de Jonathan Saldanha CELL, noire. Instalação de Paulo Mendes Biblioteca/laboratório/estaleiro de Inês Moreira S/título, projecção de slides. Projecto de André Cepeda A Arder. Por Pedro Bandeira Eventos paralelos

RESSONÂNCIA. ARQUIVO p.105

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Tabelas da exposição (fotos: Paulo Santos)

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A Reitoria da Universidade do Porto deu-nos a conhecer, em Novembro passado, pela Alexandra Araújo, um projecto concebido e coordenado pela Inês Moreira, no âmbito da arte e da arquitectura contemporânea, que procura refletir sobre o potencial do espaço acidentado, pelo incêndio de Maio de 2008 no edifício da Reitoria da Universidade do Porto. Entendemos logo, a oportunidade de poder contribuir, para a divulgação das perspectivas produzidas por criadores contemporâneos de diferentes saberes, nas suas interpretações performativas, num propósito transversal. As exposições, as conferências, os workshops e a edição, foram o caminho, para esta procura e o “que fazer”.

Os registos das ressonâncias, apesar do contexto especulativo dos ensaios, são um adminículo na definição do uso destes espaços, identificando os objectivos e as caracteristicas orgânicas e funcionais a considerar. As artes performativas associadas ao ensaio estimulam a crítica e a discussão. É um caminho que julgamos certo.

Paulo Ribeirinho Soares

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CONTRIBUTOS PEDRO BANDEIRA (1970), arquitecto (FAUP 1996). É docente na Escola de Arquitectura da Universidade do Minho. Foi editor, com Joaquim Moreno e Paula Pinto, da Revista de Cultura Urbana INSI(s)TU. A Convite do Instituto das Artes e do Ministério da Cultura representou Portugal na Bienal de Arquitectura de Veneza (2004) e na Bienal de Arquitectura de São Paulo (2005). É autor do livro Projectos Específicos para um Cliente Genérico (Dafne Editora) – uma antologia de projectos e desenhos desenvolvidos entre 1996 e 2006. Em 2007 concluiu doutoramento com a tese Arquitectura como Imagem, Obra como Representação: subjectividade das imagens arquitectónicas”. FILOMENA VASCONCELOS natural do Porto, professora na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Divide a docência e investigação pelas áreas da Teoria e Crítica Literárias, Filosofia da Linguagem e Literatura Inglesa. É membro da American Comparative Literature Association e integra a Unidade de Investigação da FCT “Centre of English, Translation and Anglo-Portuguese Studies”. Responsável editorial da revista e-f@ bulations da Biblioteca Digital da FLUP. Principais publicações, ensaio: Imagens de Coerência Precária. Ensaios breves sobre linguagem e literatura. Campo das Letras, Porto, 2004; Considerações Incertas. Ensaios sobre linguagem, literatura e pintura. Campo das Letras, Porto, 2008. Tradução: Ricardo II, de W. Shakespeare. Campo das Letras, Porto, 2002; O Conto de Inverno, de W. Shakespeare. Campo das Letras, Porto, 2006.

PATROCÍNIO EXCLUSIVO Ribeirinho Soares, Centro de Projectos de Construção, Lda

APOIOS Fundação de Serralves, Escola Superior de Enfermagem do Porto, Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto

AGRADECIMENTOS Paulo Ribeirinho Soares, Francisco Vieira (Escola Superior de Enfermagem do Porto), Pedro Miguel de Almeida Sousa (Faculdade de Direito da U.Porto), Cristina Grande (Fundação de Serralves), Cristina Soares (Coordenadora do Centro de Eventos da Faculdade de Engenharia da U.Porto), Alice Semedo (Faculdade de Letras da U.Porto), Paulo Santos (Faculdade de Ciências da U.Porto), Filomena Vasconcelos (Faculdade de Letras da U.Porto), Rui Faria (Faculdade de Desporto da U.Porto)

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COLABORAÇÃO ANDRÉ CEPEDA (Coimbra, 1976). Expõe desde 1999. Frequentou a residência de artista no Espace Photographique Contretype de Bruxelas (1999). Bolseiro do Centro Nacional de Cultura (2002). Frequentou residência de artista na António Henriques Galeria de Arte Contemporânea (Viseu 2003). Em 2001 recebe duas relevantes encomendas: no âmbito da programação do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura, pelo Centro Português de Fotografia/MC, e dos Encontros de Imagem, pelo Museu da Imagem de Braga. Exposições: River, Galeria Pedro Cera (Lisboa 2008); Moving, Solar Galeria de Arte Cinemática (Vila do Conde); Anacronia, Espace Photographique Contretype (Bruxelas 2005); Where are you from?, Faulconer Gallery (Iowa, USA 2008); Prémio EDP Jovens Artistas, Central Eléctrica do Freixo (Porto 2007). Representado pela Galeria Pedro Cera (Lisboa), a Galeria AdHoc (Vigo) e o Espace Photographique Contretype (Bruxelas). Está representado em diversas colecções públicas e privadas.

www.andrecepeda.com

PAULO MENDES (Lisboa 1966) Artista plástico de formação. Desenvolve projectos como comissário de exposições e produtor de projectos culturais. Apresenta o seu trabalho individualmente e em colectivo desde o início da década de 90 sendo uma figura determinante dessa geração que se afirmou através de diversos projectos e exposições independentes. A sua produção assume fortes contornos de afirmação política através de aproximações às realidades sociais. A contaminação entre as várias disciplinas - visuais e performativas - e a diversidade de suportes usados, desde a pintura e o desenho até á instalação ao vídeo e á fotografia, caracterizam o seu trabalho. Participou e comissariou numerosas exposições, independentes e institucionais, que marcaram o desenvolvimento do trabalho de uma nova geração de criadores no contexto da arte contemporânea. www.paulomendes.org INÊS MOREIRA (Porto, 1977) Arquitecta (FAUP 2001). Mestre em Teoria da Arquitectura e Cultura Urbana (UPC, Barcelona, 2003). Iniciou tese de Doutoramento sobre comissariado e conhecimento no Programa Curatorial/Knowledge, no Goldsmiths College, University of London, com o tema “Performing Building Sites”. Vem experimentando colaborações entre arquitectura, arte e investigação sobre hibridação disciplinar. Desenvolve comissariados e montagens espaciais de projectos culturais institucionais e independentes. Coordenou o Laboratório de Arte Experimental do Instituto das Artes, Ministério da Cultura (2003-2005), co-fundadora da Plano 21 Associação Cultural, fundadora do petit CABANON. Colabora com a Reitoria da Universidade do Porto (exposições Depósito 2007, Pack 2007, Mapa 2007) e com a Faculdade de Letras da Universidade do Porto. www.petitcabanon.blogspot.com JONATHAN SALDANHA (1979). Licenciado em Escultura pela FBAUP. Multi-instrumentista e produtor. Interessa-se por sistemas musicais extra-ocidentais, música improvisada e de cariz exploratório. Fundador do colectivo/editora Soopa, participa na quase totalidade dos projectos e bandas que lhe estão agregados (Mécanosphère, com Benjamin Brejon; F.R.I.C.S., fanfarra improvisada e de tendências psicadélicas, e numerosos outros projectos e avatars que cobrem um vasto espectro estilístico), colabora regularmente com músicos dos mais diversos léxicos contemporâneos. Pertence ao colectivo Embankment. www.soopa.org, www.myspace.com/

fanfarraimprovisada,www.mecanosphere-bureau.blogspot. com, www.embankmentact.blogspot.com

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PROJECTOS

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Visita Ficcional “O instante qualquer é o instante equidistante do outro”

Gilles Deleuze. A Imagem-Movimento

No silêncio do que ficou, ou nos rumores que ainda os espaços deixaram gravados algures… enegrecidos, esvaziados, até expectantes, incondicionalmente expectantes, espaços dos nossos instantes, os instantes notáveis, singulares, e todos os outros… No silêncio do que ficou, em que cada instante é apenas a diferença que o separa do outro que o antecede e do que vem a seguir, No silêncio do que ficou, Que foi das nossas memórias? Será que ficaram e se perderam nos escombros, ou será que ainda lá estão, por eles preservadas? Como que numa outra existência, metamórficas, mutantes, fragmentárias, volatilizadas, ou ainda, passageiras, vagabundas… passaram a ser só “memória”, na intransitividade quase impossível do tempo... como os sons indistintos de uma música que se ouve ao longe, ou dentro de si, formas íntimas dos nossos sentimentos, às vezes, presságios, quase sempre sensações físicas ligadas ao plano mais essencial das nossas emoções. “O instante notável ou singular continua a ser um instante qualquer entre outros. É precisamente a diferença entre a dialéctica moderna, de que Einstein se reclama, e a dialéctica antiga. Esta é a ordem das formas transcendentes que se actualizam num movimento, enquanto que aquela é a produção e a confrontação de pontos singulares imanentes ao movimento” (Deleuze. Ibid.) Caminhava solitário pela densidade das ruas, por entre a opacidade das pessoas e o movimento enfileirado dos carros, adicionados uns aos outros interminavelmente. Quis lembrar-se do que acontecera, mas nada de concreto lhe ocorria… a mente abstracta, sem sínteses possíveis que as lembranças pudessem recuperar ou que o simples falar pudesse exprimir. No silêncio do que ficou, ficou também o vazio das palavras – Mas as palavras são meras actualizações de uma outra escrita – invisível, inefável, diferencial, sígnica; a mesma que inscreve os instantes como pontos singulares imanentes ao movimento. Chamemos-lhe, possivelmente, a escrita do tempo – a inscrição do espaço e do movimento na intermitência dos instantes. No silêncio do que ficava para trás, a mente agora abstracta, lembrou-se apenas de um forte cheiro a fumo… era só fumo… muito fumo… fumaça, o que lhe asfixiava os sentidos e lhe invadia o corpo como um estranho… um corpo estranho dentro do seu corpo… um corpo de fumo infiltrava e minava o seu corpo solitário… estranha dor, estranha paixão … como um fado antigo? Como um amor sozinho, que vive no nosso imenso desassossego… precariamente e, porém, de modo tão completo e indivisível, que já nem sabemos como é ser sem estranheza… E tão estranhamente assim, um vislumbre de azul parecia romper o véu carbonizado da sua mente abstracta. Do topo daquelas vidraças altas o recorte azul do céu apagava-se nas sombras fuliginosas de uma fornalha impensável – apenas visível… apenas audível, apenas sensível – “O que nós vemos das cousas são as cousas”, diz Caeiro – e continua: “Porque veríamos nós uma cousa se houvesse outra? Porque é que ver e ouvir seriam iludirmo-nos Se ver e ouvir são ver e ouvir?” Como a memória antiga daquelas paredes, que foram sempre lugar de outra coisa que agora já não é mais, o tempo da minha memória azul foi esse breve instante singular e notável na ressonância de infinitos diferenciais que perfazem, redimensionam e continuamente expandem o espaço universal. “O instante qualquer é o instante equidistante do outro”

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Filomena Vasconcelos, Porto, Junho 2009 Não sei bem que dizer desta equidistância – há qualquer coisa de perturbador na geometria que mede a igual distância entre as diferenças… mas de que geometria estamos a falar? Talvez pudéssemos antes falar de uma geometria das diferenças, em que as distâncias que as separam são sempre dados de uma certa incerteza, de uma subtil indeterminação? São valores relacionais? Dostoievski cria a metáfora do “palácio de cristal” a propósito da Exposição Universal londrina, nos finais do século XIX, para identificar a “cristalização” de toda uma civilização massificada, hedonista, decadente – “o emblema para as ambições finais da modernidade”, diz Peter Sloterdijk (O Palácio de Cristal, 2005).

O problema é o da fuga, o da saída, mas que saída…? E fuga de quê? A libertação do mal no ser humano, como antevia Dostoievski? Mas que mal? Ainda Sloterdijk: “O mal, privado dos seus pretextos históricos e das suas roupas utilitárias, só no tédio pós-histórico se pode cristalizar sob a sua forma quinta-essencial: purificado de todos os subterfúgios, passa a ser manifesto – para surpresa talvez dos ingénuos – quo o mal detém a qualidade do puro capricho. Exprime-se como acto de posicionamento abissal, como um gosto arbitrário pelo sofrimento e o fazer-sofrer, como uma destruição vagabunda sem motivos específicos. O mal moderno é a negatividade desempregada – um produto típico da situação pós-histórica. (…) Valor ou não-valor – tanto um como o outro se fundem no resultado de um lance de dados” (Sloterdijk 2005). A mesma expressão utiliza Sartre – Les Jeux sont faits – ao pretender provar a inevitabilidade do erro e do mal na vida humana, mesmo quando, nos limites da ficção hiper-real, fantástica... fantasmática... – se pode viver duas vezes. Regressar, voltar atrás, repetir para não repetir o mesmo erro… são meras ilusões, ironias de um caminho sem volta … que, por isso mesmo, devem ficar como são… UN COUP DE DÉS… JAMAIS… N’ABOLIRA… LE HASARD – Mallarmé (“Un Coup de Dés”). Já não interpreto… é demasiado inteligente para a minha cabeça obtusa, toldada, atrás de uma cortina espessa. “O essencial é saber ver, Saber ver sem estar a pensar.” Repito Caeiro. Na minha ausência, na fuga do que ficou para trás, na memória fortuita de tudo o que ficou esquecido e do que se rompeu para sempre, o meu corpo e os meus sentidos falam o silêncio do rescaldo … a pura imprevisibilidade do acidente, a ressonância de todos os acasos, na factualidade de todos os casos e na “autonomia de um universo sem origens” (Habermas. O Discurso Filosófico da Modernidade”, 1985). “Das Geschehen”, o acontecimento, que é também “l’evénement” foucaultiano, não é nada de positivo, “uma decisão”, “um contrato”, “uma batalha”, mas antes de mais um movimento em negatividade, um espaço funcional e relacional, “como a inversão de uma relação de forças, a queda de um poder, uma língua reformulada e utilizada contra os que a falam” (Habermas, Ibid) O acontecimento é assim algo de perverso, de natureza auto-envenenada e em desagregação, no qual a única coisa que perdura “é o poder que volta sempre a aparecer sob máscaras novas na mudança dos processos de subjugação” (Ibid.). Foi então que regressei… não para rememorar uma experiência, não para ir buscar lá atrás mais razões ou nexos do que ficou por explicar – Será que é assim tão importante explicar? Pode ser… mas não neste instante – notável, singular – yet, so like all the others… and that’s perhaps what’s so troubling, so absolutely disturbing, that it no longer matters… no longer matters, no longer, no longer… “Our talk had been serious and sober But our thoughts they were palsied and sere – Our memories were treacherous and sere –“ Poe, “Ulalume”, iii, 1-3

“Cada um no falar fora frio, / Mas na alma dum gelo mortal /Na alma dum dolo mortal” (Poe, “Ulalume”, tradução de Fernando Pessoa)

(“Fomos graves e sóbrios nas palavras – /Mas no pensar, paralisados e murchos – /Traiçoeiras e murchas eram nossas memórias” - trad. F.V.)

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JONATHAN SALDANHA CORREDOR, 2009 Impregnar um espaço físico específico, neste caso um corredor, de uma tensão que possa evocar e conduzir ao colapso físico desse espaço, tanto pelo auxílio da imposição de sons que traduzem o rasto de uma destruição como também pela transposição sónica para o universo táctil da vibração e da oscilação da matéria que constitui o espaço físico do corredor.

Evocação do colapso do corredor pelo rebatimento sobre si das reminiscências espectrais da sua própria destruição. Sem uma relação linear de tempo, essa destruição pode ser um eco ou uma premonição em tensão, que conta o ponto mediador que antecede e precede a catástrofe física e que se replica e sustenta no tempo numa euforia própria de uma colónia de térmitas que constroem os seus labirintos pela subtracção do seu meio ambiente numa função temporal que simultaneamente avança e recua, num precoce ponto de equilíbrio atemporal.

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Fotos de ectoplasma (fluido espectral) a emanar da médium Mary Marshall tiradas por Thomas Glendenning Hamilton (Winnipeg, Canada. 1932)


Gritou, pois, o povo, tocando os sacerdotes as buzinas; e sucedeu que, ouvindo o povo o som da buzina, gritou com grande brado; e o muro caiu abaixo, e o povo subiu à cidade, cada um em frente de si, e tomaram a cidade. Josué 6:20 A Batalha de Jericó, por Julius Schnorr von Caroslsfeld (1794-1872).

Rumor e Marte, por Vincenzo Cartari (1531-1571), Images Deorum, p. 264.

Há um lugar no centro do mundo, entre as zonas da terra, mar e céu, no limite dos três mundos. Daqui, o que existe é visto, por mais distante que esteja, e cada voz alcança ouvidos que estão à escuta. O rumor vive aí, escolhendo uma casa para si num cume alto de montanha, adicionando entradas inumeráveis, mil aberturas, e nenhuma porta para barrar o limiar. Está aberta noite e dia: e é toda de bronze sonoro e ressonante. Tudo sussurra com barulho, ecoa vozes, e repete o que é ouvido. Não há nenhuma paz lá dentro: nenhum silêncio em qualquer lugar. Porém, não há nenhum clamor, só o murmúrio subjugado de vozes, como as ondas do mar quando ouvidas à distância, ou como o som de trovões distantes quando Júpiter faz as nuvens escuras ribombar. As multidões enchem os corredores: uma populaça inconstante vem e vai, e, misturando verdade casualmente com ficção, mil rumores vagueiam, e palavras confusas circulam. Ovídio, “Metamorfoses” Livro XII - “A Casa do Rumor”, 8 AD

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Entre as quatro portas dos aposentos de dormir e a estreita passagem que conduzia à cabina do rádio estendiam-se vários corredores, formando o desenho de uma estrela. De súbito, surgindo na abertura que conduzia ao quarto de banho comum, apareceu uma silhueta alta, que mal se distinguiaa na penumbra do ambiente. Estaquei, petrificado. (p. 33) À distância ouvia-se um ligeiro ruído de pés descalços a andar sobre o soalho. O eco abafado desses passos arrastados ressoava de modo fantasmagórico por entre o equipamento niquelado e laminado e as altas colunas, cheias de tubos de vidro, que protegiam as complicadas instalações electrónicas. (p. 38) Segui um corredor longo e vazio, depois bifurquei à direita. Nunca vivera na Estação, mas durante o treino na Terra vivera seis semanas numa réplica exata. (p. 39) Stanislav Lem, Solaris, 1961.

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Fotogramas do filme Solaris (URSS, 1972) de Andrei Tarkovski, adaptação ao cinema do livro de Stanislav Lem.

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EVOCAÇÃO DE RESSONÂNCIA Com a duração de 20’, são usados os sons dos seguintes modelos de sirenes: Carter Siren, Alte WK2 Sirene, Weltkrieg Sirene, Maiden Newton, Chrysler Air Raid Siren.

Sirene de ride aéreo a ser testada, Londres 1938. (Modelo - Carter Siren)

A performance sonora sobrepõe ao espaço um ataque sonoro proveniente da reutilização de samples (sons de segunda geração, que já existiram num espaço próprio mas que foram entretanto cristalizados) provenientes de arquivos de sirenes antiaéreas usadas na Segunda Guerra Mundial. A capacidade de pressão sonora destas sirenes será usada numa tentativa de revelar o pânico impregnado no seu som, num misto de evocação pela ressonância no edifício da Reitoria do eco das sirenes com a desencriptação das propriedades simbólicas das sirenes enquanto aviso e encantamento. 78


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Folhas Paulo Mendes

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INÊS MOREIRA BIBLIOTECA/LABORATÓRIO/ESTALEIRO 2009 Instalação espacial de Inês Moreira Para slides de André Cepeda Perfil e prateleiras Dexion Reutilizado da Biblioteca do 3ª piso 6 mesas, perfil e prateleiras Dexion Dimensões: - Módulo da prateleira 1x0.3m (1 módulo Dexion) - Tampo da mesa 1x4.2m (14 módulos Dexion) - Altura da mesa 0.9m (3 módulos Dexion) - 28 Módulos por mesa - Perfil Dexion para todos os contornos e travamentos 3 ecrãs, estrutura Dexion e tela de retroprojecção Dimensões: 1 – 4x3m 2 – 3x2m 3 – 3x2m 4 projectores de slide de carrossel

O Improdutivo e o performativo A minha intervenção neste projecto debruçou-se sobre o aspecto material e performativo do rescaldo. Materializa-se numa estrutura metálica, estática, composta por 6 bancadas semi-vazadas e por 3 grandes ecrãs de retro-projecção em algodão pobre. A instalação hospeda e expõe as projecções de slides de André Cepeda, serve de suporte espacial às suas 240 imagens e foi concebida em colaboração entre os dois. Espaço e imagem interligam-se.

“biblioteca/laboratório/estaleiro”

Chamei esta estrutura sublinhando o nome dos lugares que as estruturas modulares de Dexion que reutilizei já compuseram. Os materiais usados foram resgatados das estantes da Biblioteca de Zoologia que ficou inundada pelas águas do combate ao fogo no 3ª piso. O lugar do conhecimento deu espaço a um vazio ocupado por estantes e prateleiras expectantes. Removido todo o entulho e despojos, as estruturas de Dexion foram o remanescente deste incêndio. Reactivando o vazio, a mesma equipa de homens que transportou os resíduos do incêndio para o exterior do edifício, foi contratada para desmontar, transportar e remontar as estruturas metálicas no 4ª piso. 86


A deslocação de um piso e a reformulação da sua distribuição permitiu que este material modular incorporasse uma nova história. Os Dexions recriam agora a espacialidade dos laboratórios incendiados onde decorriam as actividades de investigação, mais um lugar tornado improdutivo pelo incêndio.

Aqui se iniciou o fogo. Na exposição não é visível a dimensão performativa desta montagem. Aconteceu antes da inauguração, no processo de produção da exposição e a sua função de suporte expositivo, tal como com uma estante, um andaime, ou uma bancada em uso, torna-as invisíveis ao olhar de quem procura uma obra. Apenas as páginas deste caderno documentam e recordam que o material que sobreviveu ao fogo e à inundação serve agora de ecrã de projecção das imagens em slide captadas por André Cepeda. Participam na improdutividade do epicentro vazio e negro do incêndio:

repositório imaginário de materiais e imagens. 87


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Desmontagem da Biblioteca e transporte para o 4Âş piso (Imagens de InĂŞs Moreira)

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Biblioteca/laboratório: Remontagem na exposição (Imagens de Inês Moreira)

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ANDRÉ CEPEDA S/TÍTULO PROJECÇÃO DE SLIDES 2009

Slide do conjunto projectado na exposição (original a cores). Imagem: André Cepeda

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Slide do conjunto projectado na exposição (original a cores). Imagem: André Cepeda

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Folhas AndrĂŠ Cepeda

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INSTRUÇÕES GERAIS DE SEGURANÇA A TER EM CONTA DURANTE A VISITA

“RESCALDO E RESSONÂNCIA” Tentámos tornar o local o mais seguro possível para a Sua visita, contudo a sua colaboração é fundamental. Siga as recomendações contidas neste folheto: - Não se aproxime de locais que desconhece, ainda que lhe pareçam ser seguros; - Circule apenas pelas zonas seguras, respeitando as áreas que se encontram delimitadas, por meio de fitas sinalizadoras vermelhas; - Tome cuidado com os degraus ou objectos que se podem encontrar espalhados no chão; - Respeite o percurso normal da exposição, nomeadamente o sentido de entrada e saída do local; - Não mexa nos objectos expostos; - Não tente abrir as janelas.

O que fazer em caso de emergência? - Tranquilize quem se encontra junto a si. - Abandone o local calma e ordeiramente. Não corra; muitos acidentes graves dão-se porque as pessoas se empurram e atropelam. - Siga as indicações de saída do local.

- Não bloqueie as saídas. Não fique parado junto a portas, escadas e corredores. - Em caso de incêndio nunca use os elevadores. Vá pelas escadas. - Avise o Vigilante que se encontra na Portaria, em situação de emergência pessoal ou colectiva. Telef.: 220 408 000

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Agradecemos a Sua visita!


Em 5 de Maio de 2008 parte do edifício da Reitoria da Universidade do Porto ardeu. Como muitos incêndios em edifícios de pedra, aguentaram os alçados, ruiu o telhado e os estragos foram partilhados entre o fogo e a água projectada do céu pelos bombeiros. Não sei nada sobre a perda, dizer que foi uma biblioteca não deixa de ser demasiado abstracto (dizer da perda dos milhares de livros da Biblioteca de Alexandria, que nunca teria tempo para ler é demasiado abstracto). A perda de um só livro específico poderia dizer mais, isto é, dizer da ausência que está para lá daquilo que já guardamos em nós, dizer da dependência que temos por coisas e objectos que ampliam a nossa identidade, a nossa existência específica, que resguardam a nossa memória até à temperatura dos 451 graus fahrenheit em que se queimam os livros e ficamos novamente por nossa conta, auto-exilados na floresta de Ray Bradbury e de François Truffaut. É este o lugar que nos interessa. Esqueçamos então, como propõe a Inês, a parte espectacular do incêndio, esqueçamos o som da Cavalgada das Valquírias misturado com o cheiro matinal de Napalm. This is the end. O que resta depois do incêndio? Há incêndios que levam tudo, que nos arrastam como fagulhas, como da violência da madeira que estala quando arde, como da violência do fumo espesso que sufoca ou do calor que queima e derrete a pele. Mas disso não sei nada, sei apenas quando o isqueiro ou o cigarro queima uma mecha de cabelo em fracção de segundos e um cheiro tão particular. Ardeu. Ficamos apenas com o que somos nesse mesmo momento. E se temos a memória das coisas que perdemos é porque ainda temos alguma coisa. Fica sempre algo depois do incêndio. Se eu escrevesse como o Auster, depois do fogo deambulava errantemente, fazendo por esquecer tudo, tudo o que se perdeu e tudo o que ficou em nós por perder. E isto nada tem de romântico, na realidade trata-se de um gesto niilista, mas porque acontece tantas vezes nos seus livros ele não deve acreditar verdadeiramente na perda total. Alguém acredita? E a perda total não se imagina, acontece, e quando se imagina persiste um resquício de esperança. E, então, deambulase na procura de um pouco de sentido. Melhor é não ganhar nada. Isto é, não guardar nada. Nem as cinzas. No ashes, no remains. Diziam os situacionistas que eram contra os cemitérios e as obras de arte guardadas em museus (eram contra todas as coisas mortas, portanto), que o seu Urbanismo Unitário deveria ser resultado de um crescimento unidireccional das cidades, deixando para trás, permanentemente, um rasto de ruínas que depressa seriam absorvidas pela natureza selvagem, como de resto aconteceu com as cidades Incas. E deste modo, desta cidade sempre moderna, construir-se-ia uma oposição à fixação da cidade no tempo, isto é, a qualquer sentido de património e de valor. E por isso gritavam em voz alta: “onde há fogo, nós levamos gasolina”. Que nada se colha, que nada reste. Viva o momento. E pegaram fogo à capela da Sorbonne, diz-se. Maio 68. “Viva o momento”, gritou Lefebvre e agora a Vodafone. Infelizmente nós, os arquitectos e os artistas, não soubemos desprezar as ruínas, não soubemos dizer que não sendo funcionais não seriam necessárias. Encontrámos-lhe beleza, Encontrámos-lhe uma essência capaz de destronar qualquer lógica, um paradoxo: “a ruína dos nossos edifícios irá testemunhar

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a força da nossa vontade e a magnitude da nossa fé” confessou Hitler a Speer antes de tudo se tornar verdadeiramente ruína. E por isso tivemos que nos desfazer de algumas ruínas, pelo que continuaram a significar. Como nas séries do CSI em que alguém, mais inteligente do que os outros, afirma que os cadáveres também falam. E dizemos também nós, arquitectos e artistas, que “nada se perde, tudo se transforma” conscientes da pesada herança de uma cultura assente nas ruínas clássicas e nas anteriores, fantasma de Babel e da convicção de que tudo o que se ergue, o que quer que seja, representa logo à partida um acto contra a natureza do tempo efémero, uma provocação associada à procura ingénua de eternidade que não sendo possível, se disfarça com apropriações e reciclagem sendo esta também a história material do conhecimento. Evolução. Ilusão. A minha história é curta, “começa e acaba em mim”, em Godard, e construo a aparência de que aquilo que a materializa e nos pertence, na nossa condição de proprietários, nos será sobranceiro e nos representará para todo o sempre. Escrevo estas linhas num catálogo que será guardado na biblioteca da Universidade e sobretudo agora uma nostalgia virá que garantirá a sua preservação em papel para lá de mim e, no entanto, nada saberei sobre o que se ler e o que se disser, porque a morte, e eu deverei ser cremado, será fatal para mim. Até lá o mais importante é o que escrevo agora, agora que escrevo agora. Escrevo para mim e nem sequer me vejo na obrigação de dizer quem sou no princípio ou no fim do texto conforme a vontade da designer gráfica, que também só existe quando desenha. É este o momento, agora, e não outro. E desde que não esteja a arder, literalmente por dentro (porque há quem acredite na combustão humana espontânea) ou por fora, é este o momento que interessa. E não preciso de mais nada. Talvez do computador, da mesa de porta, do rádio algures entre o 92 e o 94, da luz natural. Mas conseguiria ter menos. Poderia estar de olhos fechados e escreveria as mesmas linhas que poucos irão ler. Is everybody in? Se é que isso interessa. Onde eu quero chegar é que nada se perde se nada tivermos para perder. O que não invalida que não haja uma troca que se for justa não implica ganho. Simplesmente troco. Toma lá da cá. E sem ganho e sem propriedade, ficaríamos mais livres, não só porque “a propriedade é um roubo” como escreveu Proudhon nos oitocentos, mas porque esse roubo não deixará de ser exercido também sobre o proprietário, condenado a ter para, inevitavelmente, mais tarde ou mais cedo, perder. E no entanto persistimos em coleccionar. Guardar para lá de nós. Coisas. Arte sacra ou vasilhame. Não interessa. E se os budistas andam mais perto de uma desmaterialização incombustível, os situacionistas afirmam que até a memória é um roubo, porque é o tempo que se perde do agora para deixar de fazer agora e dizer o que fez antes. Tempo perdido, redundância, portanto. E por isso eles quase nunca usam, câmaras de filmar ou fotografar. Viva a situação. Quando o André entrou no edifício da Reitoria do Porto, foi para “tirar” fotografias do espaço ardido. Tirar é um verbo que significa um deslocamento de algo por roubo. O André tornou-se proprietário desse espaço deslocado. E o espaço que era livre, ainda mais porque tinha ardido e já nada o apropriava, deixou de o ser. Mas o André quis devolver o espaço para que isso não lhe pesasse como herança e usou filmes fotográficos estragados que com o tempo fizeram desaparecer as imagens. Redimiu-se. O filme parece ter ardido. E não fosse este catálogo ambicionar eternizar a propriedade desta ruína e a ruína não seria mais nada por mais algum tempo. Um espaço livre da responsabilidade que a academia lhe atribui de guardar. 98


Não sei nada sobre a perda, dizer que foi um laboratório não deixa de ser demasiado abstracto, tão abstracto que poderíamos incluir o incêndio como experiência. Afinal a Ciência baseia-se nisso, na simulação do acidente. Químicos contra químicos, bactérias contra bactérias, partículas contra partículas. À excepção da imagem cuidada que eu tenho do manuseamento da nitroglicerina e da radioactividade, os laboratórios são espaços borbulhantes na eminência de explodir e os cientistas têm o mesmo cabelo do cientista do “Regresso ao Futuro” (na realidade temos um aspecto normal de fato e gravata e mão esticada à porta da FCT). Mas em abstracto os laboratórios são espaços em que o agora está mais presente que tudo o resto. São espaços em que o momento se sobrepõe ao conforto da propriedade, em que a perda é estimulada como forma de investigação e liberdade, e a possibilidade de fracasso como instrumento de experimentação. Agora atiramos automóveis, a 90km hora, com bonecos lá dentro, contra paredes de betão, mas nem sempre foi assim. Descíamos rampas em carros de rolamentos sem travões para descobrir como se gastam em segundos uma sola de sapatilhas Sanjo, que faziam chuac se, inadvertidamente ou não, pisássemos uma poça de água. As crianças nisso são menos hipócritas, para quê pôr um boneco no lugar de um automóvel ou um cão na orbita da Terra se podemos lá estar nós mesmos? Johan Huizinga descreveu-nos o Jogo como forma de cultura e de experimentação, e nem por isso seguimos os nossos instintos mais primordiais. Tivesse eu coragem de dizer como Proudhon: “consultei os mestres da Ciência, li CEM volumes de filosofia, direito, economia política e história; e quis Deus que vivesse um século em que tanta leitura me fosse inútil”. E aqui com toda a contradição de quem não consegue deixar o vício e a dependência do que se quer dizer subjugado à legitimidade da forma académica. Amanhã lá estarei eu a negar o que escrevi agora. As universidades deveriam arder por combustão espontânea, a partir do seu interior, incinerando o desfile de togas e abajures e os estatutos que mais que não fazem do que garantir a eterna dependência ao poder que promove o “empreendedorismo” e a “sustentabilidade” financeira como se fossem compatíveis com a pura Experimentação, com o Jogo, com a Arte. Experimentar implica perdas. A quem estamos enganar? A arte nunca foi funcional. As ruínas não são funcionais. E no entanto significam. Ao menos se tudo ardesse poderíamos tentar começar de novo, sem referências nem citações (“não vou a museus para não me deixar influenciar”) a não ser as que a memória teimosamente decidiu seleccionar, colocando no mesmo pé de igualdade o golo de calcanhar de Madjer em 1987 com a convicção perene de Siza de que a “arquitectura é uma profissão poética”, é Arte. Talvez por isso Siza não tenha tempo para a universidade. E as minhas orelhas começam a ficar vermelhas, de arder, e o espaço entre o teu pescoço e o teu peito a ficar vermelho de ler e daqui a duas horas estarão os Sizo (não Siza) a fazer perder o Passos Manuel, o João a fazer voar o tripé do microfone, o André inclinado sobre guitarra à altura dos joelhos, o Eurico a martelar nas teclas imprimindo um castigo ensurdecedor às colunas e o outro que nada tem de Zen, com as baquetas, todos em conjunto a “partir a louça”, que é expressão que se pode usar quando um material é incombustível. Vou lá partir aquela merda toda. Revolução. E saio de lá com os ouvidos cerrados por um zumbido que me acompanha na cama e depois de manhã, um ruído branco. E isto a FCT não financia e ainda bem porque estragava tudo e pelo mesmos motivos, oh Isabel, não está a contracultura em Serralves a não ser que perca o seu tempo, o seu sentido de momento, o agora.

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E com tantos doutores na rua cada vez é mais difícil encontrar um homem. Uma mulher. Páginas e páginas que

nada fazem arder, isto é, que não aquecem nem arrefecem. E talvez alguém secretamente saiba que tem de ser assim para que, em CENTO E UM livros, o de Proudhom faça sentido. Mas a revolução essa terá de esperar pelo fogo real. Estaremos preparados? Fecho a porta do carro e aquilo que penso ser electricidade estática, provoca-me um choque na ponta do dedo. E como isso me inquieta. Provavelmente é melhor deixar tudo como está. É mais cómodo seguramente. E enchemos as universidades com sinalética de saídas de emergência. E ninguém parece querer sair. Como num duche quente no inverno. Porquê? Para fazer o quê? A arte da política não é “adiar um problema até que deixe de fazer sentido”? Temos medo, temos tanto medo. Em Rescaldo e Ressonância deveremos ler antes de entrar: “não se aproxime dos locais que desconhece, ainda que lhe pareçam ser seguros; circule apenas pelas zonas seguras respeitando as áreas que se encontram delimitadas por meios de fitas sinalizadoras vermelhas; tome cuidado com os degraus ou objectos que se podem encontrar espalhados no chão; não mexa nos objectos expostos; não tente abrir as janelas; abandone o local, calma e ordeiramente; não corra; não bloqueie as saídas; não fique parado junto a portas, escadas e corredores; em caso de incêndio nunca use os elevadores; tranquilize quem se encontre junto a si”. Dá-me um Xanax. Devagar. E nas embalagens de Rojões com Migas e Feijão Frade, do Pingo Doce, podemos ler: “pode conter vestígios de peixe e crustáceos, de frutos de casca rija, leite, ovos, amendoim, aipo, soja, mostarda, sulfitos, tremoços, moluscos e sementes de sésamo”. Só falta poder conter o esperma do porco que cedeu os rojões. Não nos vá alguém processar. Sei de um homem sexagenário que na Suécia processou o Estado pelos anos perdidos com o ensino obrigatório, eu deveria ter feito o mesmo. O tempo passa depressa. Não há tempo a perder porque não quero ser proprietário do tempo. E alguns dos meus alunos continuam a perguntar: “e agora, professor, está bem?” e eu controlo-me para não me imolar com fogo à frente de todos. Se nem tu acreditas que está bem… E pomos sinalética de emergência também no interior das igrejas. Se nem tu acreditas na protecção divina… Deixa estar. Haverá uma qualquer legislação, um qualquer regulamento que nos protege. E se não existir as universidades inventam: “higiene, segurança e ambiente”. E um dia, também nós Portugal, seremos competitivos, empreendedores, inovadores, auto-suficientes e haverá sustentabilidade, cidadania e excelência. E até lá cantam em coro de opereta os Super Dragões: “eu só quero ver Lisboa a arder”; e respondem os No Name Boys: “o Porto a arder”; o Jerónimo: “os patrões a arder”; o Louçã: “os bancos a arder”; o Sócrates: “os jornais a arder”; o Portas: “o Bairro da Bela Vista a arder”; Manuela: “democracia a arder”; o Verão: “florestas a arder”. E um dia Portugal todo iluminado pelas nossas mentes brilhantes. Será ecológico? Tens lumes?

O amor é fogo que arde sem se ver. Disso sei eu.

Pedro Bandeira, Maio 2009

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Pedro Bandeira, IncĂŞndio, 1999

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www. rescaldo ressonancia project. blogspot. com 102


Eventos paralelos 23 Abril 09, 19h

PERFORMANCE

Evocação de ressonância Por Jonathan Saldanha

5 e 6 de Maio 09, todo o dia

WORKSHOP*

Rescaldo e Ressonância! Expor para além do acidente Com Inês Moreira e o Mestrado de Museologia FLUP

15 de Maio 09, 21h30 No âmbito do Dia Internacional dos Museus

PERFORMANCE

Evocação de ressonância por Jonathan Saldanha

5 de Junho 09, 16h

VISITA FICCIONADA Por Filomena Vasconcelos

26 de Junho 09, 18h30

LANÇAMENTO DO CATÁLOGO Rescaldo e Ressonância!

6 de Julho 09, todo o dia

petit THINK TANK**

Ocupar espaços não convencionais

LEITURAS EM TEMPOS DE CRISE Contingência e oportunidade Sílvia Guerra e Inês Moreira

*participantes apenas por marcação **participantes a confirmar, será feito um open-call para alunos e participantes de todas as faculdades

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Imagem cedida por Miguel Ângelo Costa Serviço de Património Edificado e Contratação Pública da Reitoria da U.Porto

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RESSONÂNCIA ARQUIVO

(páginas, legendas e autores) p108.109 4º piso (fotografias: Vítor Ferreira)

p110.111 S/TÍTULO, PROJECÇÃO DE SLIDES (2009) projecção de slides de André Cepeda BIBLIOTECA/LABORATÓRIO/ESTALEIRO (2009) instalação de Inês Moreira (fotografias: André Cepeda)

p112.113 CELL, NOIRE (2009) instalação de Paulo Mendes (fotografias: 112 superior Vítor Ferreira, restantes André Cepeda)

p114.115 CELL, NOIRE (2009) (stills do vídeo de Paulo Mendes)

p116.117 desmontagem da biblioteca do 3ª piso e montagem da instalação no 4ª piso (fotografias: André Cepeda)

p118.119 CORREDOR (2009) instalação de Jonathan Saldanha (fotografias: André Cepeda)

p120.121 vista de sala de aula após o incêndio (fotografia: André Cepeda)

inscrição no quadro concebida para imagem gráfica do projecto (concepção de Paulo Mendes e fotografia de André Cepeda)

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FICHA TÉCNICA CATÁLOGO Edição Reitoria da Universidade do Porto

Concepção e coordenação Inês Moreira

Design Carla Ferreira

Capa Concepção de Paulo Mendes e fotografia de André Cepeda

Textos Pedro Bandeira Filomena Vasconcelos Inês Moreira Paulo Ribeirinho Soares

Fotografia do catálogo André Cepeda Vitor Ferreira Paulo Santos Paulo Mendes Joana Bourgard/Jornal de Notícias

Cedência de Imagens Serviço de Património Edificado e Contratação Pública da Reitoria da U.Porto Unidade de Gestão de Informação da Universidade Digital da U.Porto Rodrigo Oliveira Jonathan Saldanha Pedro Bandeira galerias do flickr: stephanieetstephan e / 安布雷斯 / VahidG e os sites quando referidos

Impressão: Invulgar Artes Gráficas

Tiragem: 500 exemplares

ISBN 978-989-8265-14-2

Depósito legal xxx

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FICHA TÉCNICA PROJECTO Organização

Reitoria da Universidade do Porto

Curadoria Inês Moreira / petit Cabanon

Concebido em colaboração com André Cepeda, Paulo Mendes e Jonathan Saldanha

Gestão do Projecto Alexandra Araújo

Design Carla Ferreira

Produção executiva Ruben Rodrigues

Montagem e Transportes Transportes Super Rápido do Rosário

Divulgação Raul Santos e Nuno Almeida

Patrocínio exclusivo: Ribeirinho Soares, Centro de Projectos de Construção, Lda

Agradecimentos Paulo Ribeirinho Soares Francisco Vieira (Escola Superior de Enfermagem do Porto) Pedro Miguel de Almeida Sousa (Faculdade de Direito da U.Porto) Cristina Grande (Fundação de Serralves) Cristina Soares (Coordenadora do Centro de Eventos da Faculdade de Engenharia da U.Porto) Alice Semedo (Faculdade de Letras da U.Porto) Paulo Santos (Faculdade de Ciências da U.Porto) Filomena Vasconcelos (Faculdade de Letras da U.Porto) Rui Faria (Faculdade de Desporto da U.Porto)

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