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6 anos de histÓria 2
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Índice
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A “bala” é para atingir os artistas emergentes
Naguib e Shot-B: unidos pela rebeldia
DIA-A-DIA
ARTES
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REPORTAGEM
(Re)descobrir Maputo à Pé
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Das mortes de joão da boa morte
“Não tenho dúvidas que a cultura sempre precisará de apoios”
Poesia deLino Mukurruza e Leco Nkhululeko
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Da falta fazer o génio
Rebelde com causa
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LITERATURA
TEATRO
ENTREVISTA
MÚSICA
POESIA
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PROSA & CONTOS
Textos de Miguel Luís e Álvaro Taruma
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LITERATURA BRASILEIRA
Ficha Técnica LITERATAS – Novembro 2018 EDIÇÕES DIGITAIS – Periodicidade: Mensal | Ano: VI PROPRIEDADE : Associação Movimento Literário Kuphaluxa GESTÃO DE MARCA E CONTEÚDO: Vice Versa Ideias, Lda. Av. Ahmed Sekou Touré, no 1919, 9º Andar-Direito, Maputo, Moçambique. DIRECTOR: Eduardo Quive EDITOR: Elton Pila COLABORADORES PERMANENTES: Lucas Muaga, Leonardo Duarte, Álvaro Taruma, Miguel Luís, Hermínio Alves e Sérgio Tavares
COLABORADORES DESTA EDIÇÃO: Lino Mukurruza, Leco Nkhululeko e Nara Vidal FOTOGRAFIA: Literatas SELEÇÃO DE POESIA: Jaime Munguambe DIRECTOR DE ARTE: Mélio Tinga REVISÃO DE TEXTO: Francelino Wilson e Nélio Nhamposse
GESTÃO DE WEBSITE: Samuel Maculuve . ADMINISTRAÇÃO E PUBLICIDADE: Pedro Afo ASSINATURA E PUBLICIDADE: comercial@literatasmz.org I +258849204944 I +258822717645 LEIA LITERATAS TODOS OS DIAS: www.literatasmz.org
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Dia-a-Dia
A “bala” é para atingir os artistas emergentes
Lucas Muaga I lucasmuaga@literatasmz.org
Akino Café, 16Neto e Deal – Espaço Criativo são três de muitos outros espaços criativos de Maputo que prepararam, para 2019, uma agenda rica e atraente. Os três espaços, por pura coincidência, procuram ser um palco dos e para os mais jovens. São, se permitem, um espaço de reflexão sobre as artes e cultura de uma dimensão que se comparam com os grandes e tradicionais centros culturais de uma cidade que culturalmente não dorme.
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Dia-a-Dia
É
um dos espaços culturais alternativos da cidade de Maputo, localiza-se na Avenida Albert Luthuli, no famoso Jardim dos Madjermanes. Chama-se Akino Café, nome emprestado ao apelido da sua fundadora e directora Otília Aquino. O Akino Café não tem muita visibilidade e dele pouco que se fala. Está entre algumas barracas do Jardim dos Madjermanes. É um espaço pequeno e fechado. Mas a sua programação cultural tem o tamanho do mundo. A sua agenda é rica e se aproxima a dos grandes centros culturais da cidade de Maputo. “É um espaço de venda de livros, discos, filmes. Queremos congregar todas as actividades de cultura, no âmbito muito nacional. Pessoas conhecidas na área da cultura vêm conversar, tomar café, fazer lançamento de livros e discos, debates de filosofia e outras áreas da cultura e cidadania”, explica Otília Aquino. O rol de actividades do Akino Café começou a 7 de Fevereiro. O ateliê filosófico é o primeiro evento a ser executado e vai, segundo Otília Aquino, acontecer todas as terças-feiras ao longo do ano. A ideia é reflectir sobre a “Democracia: o que temos falta em Moçambique”, um tema que o Akino escolheu para 2019. Sobre “Democracia: o que temos falta em Moçambique”, no ateliê filosófico, buscam-se soluções com base nas experiencias dos outros países. O primeiro ateliê conta com a contribuição, dentre outras, de um palestraste e académico guineense. Otília Aquino diz estar a dar-se continuidade ao trabalho iniciado de 2018, quando o ateliê discutiu a “Paz e Reconciliação” e contou com a contribuição de intelectuais, historiadores, analistas e embaixadores. “Tivemos diversos exemplos da África do Sul, da Argentina e do caso francês para comparar com o nosso exemplo da paz e reconciliação”, explica Aquino. O AKino Café formou um grupo e uma programação virada ao teatro e literatura. Segundo Otília Aquino, a última sexta-feira de cada mês será destinada a estas duas artes. Uma vez mais, a continuação do que já se tem feito. “Eles já realizaram saraus de poesia e stand up comedy. Vamos ter um programa mais
estabelecido e mais seguro em termos de agendas e datas”, disse. Sobre as ideias futuras, Otília Aquino revelou ao “LITERATAS” que está a projectar um Festival de Gastronomia da Cidade de Maputo. “O nosso parceiro vai ser o Ministério da Cultura. Acho que vai gostar, porque a cidade não é só este edifício, mas é aquilo que as pessoas pensam em termos de comer e cozinhar os cheiros e sabores de Maputo, onde se encontra muito de Moçambique”, esclareceu. Dentre os objectivos traçados, o Akino se pretende uma espécie de embaixada da cultura de Moçambique no mundo. “Há pouco espaço para se demonstrar o que fazemos em termos de comida. A maior crítica é que nunca pomos o que é nosso em evidência. Vamos sempre a procura de outras coisas. Vamos encontrar sempre espaços onde se come o bacalhau e não o peixe seco a moçambicana”, explica. A limitação do espaço, infelizmente, define o tipo de actividades que o Akino dever realizar. “Não temos ideias de ter espectáculos aqui”, diz Otília Aquino, que já realizou encontros com dois músicos conhecidos no mercado discográfico nacional. “A Xixel iniciou o ciclo de debates. Depois, o Azagaia, pela sua irreverência, criou um bom debate. Em termos de música e conversas com músicos, acho que estes dois marcaram”, conta Otília. A limitação do espaço não só tem implicações na realização de espectáculos musicais e teatrais. Ainda que a vontade não falte, o Akino Café não tem uma sala de cinema. Entretanto, a exibição, ano passado, de um documentário sobre o musico João Paulo, é um exemplo de que alguma coisa será feita pela sétima arte neste espaço. “Não temos meios, nem as capacidades instaladas, mas temos um espaço iniciado por Félex Mula, vamos ver alguns filmes e realizadores em cima da mesa e vamos debater”, revela a directora do Akino. A ideia do AKino é atingir a juventude, que segundo Otília Aquino, não consegue resistir a certas manifestações de arte. “Temos a intenção de chegar aos mais jovens. Este ano vamos ter um debate sobre a cultura hip-hop, que vai ser liderado por dois jovens: Simba e Ivan Laranjeira”. Revista Literatas
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Otília Aquino criou um espaço que valoriza o espolio cultural nacional. Entre 2016 e 2017o falecido artista plástico moçambicano, Malangatana Valente Nguenha, foi alvo de uma homenagem no Akino Café. “Tivemos uma apresentação de música usando os instrumentos tradicionais moçambicanos, por um grupo polivalente de músicos”, esclarece.
A BALA É PARA OS ARTISTAS EMERGENTES A 30 de Janeiro, o 16Neto deu o ponta-pé de saída na sua programação cultural para 2019. Entre os objectivos, o 16Neto pretende superar 2018, um ano que entre os altos e baixos deu maior atenção a música e quase se esqueceu das exposições. De cabeça erguida, o 2019 do16Neto é para dar continuidade, com uma e outra novidade. A casa de arte e cultura já identificou o seu principal objectivo, trabalhar com os jovens, diga-se, com artistas 6
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emergentes. Produtor cultural do 16Neto, Evaro de Abreu, reconhece a força que, ano findo, a casa teve na musica, foi já lançada a semente. “Mais concertos musicais, o que foi bom para lançar os jovens”. Do mesmo jeito, Abreu aceita um certo fracasso nas exposições. Mas a motivação é alta. “Não tivemos muitas (exposições). Esperamos que este ano tenhamos mais, vamos fazer um esforço tremendo.” As exposições requerem um cuidado especial, conta Evaro de Abreu, exposta uma das razões de um plano quase fracassado. “Gostaríamos de ter tido mais. Infelizmente, não foi possível porque exposições exigem um trabalho e cuidado maior”. Evaro de Abreu ve uma nova vida na agenda cultural do 16Neto, onde embora sejam os jovens a prioridade, há mais contemplados, independentemente das faixas etárias dos artistas. Concertos de música, dança e teatro, encontros criativos, sessões de cinema e debates, serão um
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dos caminhos na empreitada do 16Neto em busca de novos talentos. “Queremos apoiar mais jovens com talento, que não tem uma plataforma que lhes possibilite mostrar os seus trabalhos. Queremos abrir mais espaço para mostrar os seus trabalhos, para que possam fazer parte da nossa vida cultural”, conta Evaro de Abreu. O produtor cultural espera, por esta via, muita música alternativa. “Composições de vários estilos de música alternativa e música tradicional”. Abreu está ainda esperançoso, a agenda do 16Neto inclui o que pouco ou quase nunca se vê-se naquele espaço. “Novos estilos de arte, dança contemporânea e teatro, se possível”. Sendo a juventude o principal alvo, o 16Neto aposta na cultural digital, a nova tendência de um mundo dominado pelas novas tecnologias de comunicação e informação. Segundo Evaro de Abreu, os novos talentos estão nas redes sociais como o facebook, twitter, instagram e whatsapp. “Estamos a apostar no trabalho da área digital, que nos possa trazer mais jovens. Queremos que os jovens saibam que este é um espaço aberto para mostrarem os seus
trabalhos”. Investir numa parceria estratégica com festivais culturais moçambicanos é também um dos objectivos do 16Neto. “Do inicio, nós vamos fazer uma colaboração com o Kinani, mas está ainda no processo e com o Festival Raiz, que não é só dança tradicional, mas se foca muito em trazer aquilo os instrumentos e a cultura tradicional moçambicana”, finalizou o produtor cultural do 16Neto, Evaro de Abreu.
NOVO TERRITÓRIO, MESMO ALVO O Deal é uma destas casas de arte que vivendo a sua infância, afirma-se importante. Trabalha com diferentes manifestações artísticas, onde o design, a literatura e o entretimento são parte delas. Apresenta e promove marcas como “piratas de pau”. Conta com dois ateliê de duas artistas plásticas, as irmãs Nelsa e Nelly Guambe e, não menos importante, um café que mistura a arte e gastronomia. A LITERATAS, a artista plástica, Nelsa Guambe, fundadora do Deal (fundado a 15 de Setembro de 2015), destacou os colóquios de literatura organizados pela Cavalo do Mar, uma editora encabeçada por Mbate Pedro, jovem poeta que, ao lado do escritor António Cabrita, lançou a colecção de poesias “Os Crimes Montanhosos”, no Deal. Foi a Cavalo do Mar que também promoveu conversas com escritores como Lucílio Manjate, a propósito de “A triste historia de Barcolino”, romance que saiu sob alçada da mesma editora. “2018 foi um ano muito interessante de trabalho”, analisa Guambe, artista que entende que não só de eventos se fez 2018, um ano que de resto impôs grandes desafios ao espaço criativo, pela sua natureza, limitado. Foi um bom ano também “em termos de investimento, de organização, dos espaços e da maneira como a gente devia fazer”, disse Nelsa. No café do Deal, acontece, desde 2018, no último sábado de cada mês, o “Txiling out”. “o ano todo, trouxe mais de 100 e 150 pessoas”, revela Nelsa Guambe, que a par disso lembrou-se das noites de jazz, nas quartas-feiras. Revista Literatas
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Dia-a-Dia
2019 ainda é uma criança, mas já existe um plano para os próximos três meses. O Deal procura fazer diferente e acolher mais exposições. “No ano passado, tivemos duas exposições apenas. Neste, queremos melhorar e ter conversas sobre a exposição, o que não tivemos ano passado. Vamos procurar ter um pouco mais de debate nas actividades por nós organizadas’, revela a Nelsa Guambe. Debate com os expositores e um único objectivo. “Acho que é um ano que vamos procurar, não só apresentar, mas interagir um pouco e dar espaço para que se conheçam as pessoas que fazem, portanto, e ter uma interacção directa e pessoal”, refere Guambe. O mês da mulher internacional está a portas. O Deal prepara-se para homenageá-la. Será em Maço.
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“Faremos exposição de várias artes de mulheres, literatura, design, tudo aquilo que a gente acha que representa o trabalho de boa qualidade e que é bom para os outros, nós vamos procurar trazer para o mês da mulher”, explica Nelsa. Na última sexta-feira de Março, o “txilling out” será liderado pela ala feminina. “DJ’s vão ser mulheres. Teremos literatura de mulheres. Vai ser um mês cultural com foco na mulher no design, nas artes e cultura” contou Nelsa Guambe. Igual aos outros centros culturais alternativos, o Deal procura apoiar a os artistas jovens. “Queremos trazer mais pessoas e explorar talentos emergentes de Maputo, onde estamos. Queremos que o Deal seja um hobbie onde os novos talentos possam ser encontrado”, conclui a artista plástica.
Literatura
A imortalidade possível Elton Pila I eltonpila@literatasmz.org
Não lhe chegou ainda o centenário, mas é publicada uma colectânea de poemas que nunca foram coligidos em livro. “Moçambique e outros poemas dispersos” mostra-nos um José Craveirinha conhecido, mas também deixa-nos ver os andaimes do seu edifício poético
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uando em 2017 a plataforma Mbenga Artes e Reflexões decidiu organizar um debate sobre a gestão do espólio de José Craveirinha e Malangatana, abriuse uma janela para discutir o futuro e presente das obras de artistas já idos – pelo menos, fisicamente. O facto de Craveirinha e Malangatana terem parte das obras dispersas pelo país a fora colocou várias questões em cima da mesa. O que seria feito do espólio disperso pelo mundo, se regressado à casa? O que tem sido feito do que ficou por publicar ou expôr? Se para o caso do artista plástico, pelo custo do transporte, da conservação e/ou restauração, até mesmo pelos espaços para exposição das obras – com a associação cultural em Matalana a ser vandalizada, a questão tornase complexa e sensível, sobretudo, num país pronto a dar às costas as palmadinhas pelos elogios aos “filhos da pátria”, mas que
faz ouvidos de mercador (não de Veneza, porque Shakespeare nada lhes diz) quando confrontado pela necessidade de fazer alguma coisa pela eternização da obra dos mesmos; para o caso do poeta, a resposta pode ser mais simples: editar os poemas que fazem o espólio em livro. O que não seria difícil pela dimensão do poeta, riscos mínimos as editoras que se propusessem a editar. Este “Moçambique e outros poemas” é a materialização desta proposta. E importa celebrar esta publicação pertinente e sempre urgente. Num país em que o grosso das obras morrem na primeira edição, as reedições são quase inexistentes, estas edições póstumas tiram a laje de pedra do esquecimento sob os autores e suas obras e os mantém vivos - a imortalidade possível - na memória colectiva. Em todos os textos deste livro reconhecemos Craveirinha dos livros lançados em vida, das temáticas que sempre nos
habituou: a identidade, o amor, o erotismo, as configurações político-sociais. Mas também nas formas de nos apresentar estas temáticas, a escrita próxima da linguagem oral e uma composição textual que nos coloca a pensar se estamos diante de poemas, contos ou memórias. Antes da leitura do primeiro poema deste livro, talvez seja importante lembrar do “Poema do Futuro Cidadão”. Este retrato do dilema de não se sentir, mesmo fazendo parte do espaço geográfico que a comporta, parte duma determinada nação, porque ser parte duma nação tem, menos que ver com a delimitação de fronteiras físicas, mais que ver com a construção de uma consciência, sentimento e sofrimento comum. Talvez por isso escreva: “Vim de qualquer parte/de uma nação que ainda não existe./ Vim e estou aqui!”. Urgia (ou urge) inventar uma nação para o futuro cidadão Revista Literatas
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Literatura
aludido no título, mas Craveirinha não fala apenas por ele, fala por todos nascidos de um país de que não se sentiam parte. “E/ tenho no coração/ gritos que não são meus somente/ porque venho dum País que ainda não existe.” O país precisava ser inventado, com cores e dores próprias. O primeiro poema – Moçambique, pág. 22 - deste “Moçambique e outros poemas dispersos”, que não sabemos quando foi escrito, mas pelo cariz talvez acreditemos que tenha sido escrito depois do “Poema do Futuro Cidadão”, parece-nos que o sujeito-poético encontrou o fio que une os cidadãos que inventaram um país. Um poema que, como muitos de Craveirinha, o título soa ao primeiro verso, porque é a partir dele que se começa a construir o significado. “Não te diz mais do que o nome/de um lugar geográfico de um continente/ de um território português em África./ Mas a mim não me diz isso/ diz-me tudo./ Somos homens e mulheres de hábitos/ corpos no lúcido vício de amar/ ideias fixas/ animais de caprichos/ mas cidadãos naturais de um país.”, pág. 22. Sobressaem desta estrofe, também das outras cinco que fazem o poema – e talvez tenha sido por isso escolhido para abrir o livro, as linhas que serão usadas para urdir os demais textos do livro. Percebemos no poema um sujeito-poético atento ao que acontece a sua volta, 10
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que conta sem grandes malabarismos na escolha de palavras, que não fala só por ele, fala por todos, porque é em todos que está a sua poesia e o poema “Renúncia a um título” é disto ilustrativo: “Ah!/ Chamam-me poeta/ eu que apenas falo das crises triviais/à minha volta antes ou depois acontecidas/ na linguagem comezinha que sei/(...) Mas ainda/ nao sou eu o poeta dos meus poemas/ mas os homens e as mulheres/os meninos e os frutos na sua beleza/ é que fazem a poesia dos meus versos.”, pág. 28. Mas também percebemos no poema que abre o livro um sujeito-poético que quase sempre recorre ao corpo para permitir-nos um prazer ou imagem material das metáforas que compõe. Os textos, quando Craveirinha se coloca com auscutador dos problemas sociais, soam actuais, talvez porque volvido tanto tempo o país e o mundo não tenham mudado tanto. Com o sarcasmo que nos habituou, em “Viva o dólar americano” por exemplo, olha para a guerra das coreas, que nos vai lembrar a da Síria, do Iraque, do Afeganistão e todas as outras que os Estados Unidos da América metem as mãos. Neste texto – também noutros - que nos é apresentado em duas versões, temos noção da oficina do poeta. De um lado, temos o texto escrito
Literatura
à máquina, mas com correções manuscristas que foram incorporadas a versão final colocada do outro lado. Enquanto na primeira versão , a primeira estrofe dizia “Na manha confusa/ Da guerra na Coreia/Bombas ianques abriram valas nos arrozais coreanos.” Na versão final, consideradas as correções do poeta, temos “Na manhã confusa/Da guerra na Coreia/ Bombas ianques abriram valas/ de morte nos arrozais coreanos”. Então percebemos esta busca do poeta em construir imagens que choquem e por isso tornem o texto mais significativo. Mas por outro lado - exemplo de “Calor Sujo”, pág. 82 – temos apenas descrições de situações: um “cacho de crianças” a dormir “nos gelados degraus de pedra mármore” e o sujeito poético a passar uma loção de “duzentos escudos o frasco”. Estas imagens são-nos dadas sem palavras para marcar o contraste entre uma e outra,
vai a consciência do leitor arvorar as desigualdades sociais. Mas há também aquelas repetições, que já nos habituamos na poesia do primeiro africano vencedor do Camões, que buscam impor um ritmo – também sentimento – à leitura. No poema “Epístola Maconde”, pág. 77, que se estende por quatro páginas, a repetição invoca raiva, invoca combate. E talvez seja preciso chamar “Quando o Poeta vai embora”, esta negação de morte para quem faz da arte vida, porque “quando o poeta emigra é assim:/ Parte para qualquer lado/ mas nunca vai embora”. E este livro é a prova material deste ideal de imortalidade.
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Da falta fazer o génio Elton Pila I eltonpila@literatasmz.org
Conhecemo-los nos palcos tradicionais. Mas, à margem, criaram um festival de rua para levar o teatro aos subúrbios de Maputo. Chamaram-no Khu Phanda, nome duma das peças que é um divisor de águas no seu percurso. São a Companhia de Artes Makwerhu e este é um texto sobre eles
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Teatro
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necessidade faz o engenho. Esta frase é um lugar-comum dos manuais de empreendedorismo, mas que faz todo sentido usamo-la, quando nos propusemos a falar da Companhia de Teatro Makwerhu. Composta por actores amadores, ensaiam nos fundos da Igreja Nossa Senhora da Aparecida no Bairro de Mavalane. Começaram por representar obras religiosas, mas depois esticaram os tentáculos para outras temáticas. Mas chama mais atenção as formas que os espectáculos nos são dados. Sem grande pompa – há circunstâncias que não permitem - fazem dos actores actores e mais cenário e mais a trilha sonora. “Trabalhamos com o que temos para fazer o que queremos” diz Ernesto Langa, coordenador da companhia. Com a geração de actores que hoje representa, conhecemo-los, já desde Khu Phanda. Um espectáculo que lhes valeu, na edição de 2016 do Festival de Teatro de Cazenga – Angola, os prémios de Grupo Revelação, Melhor Obra Estrangeira e Melhor Encenação. A peça existe há mais de cinco anos. O tempo fê-la divisora de águas da história da Companhia fundada nos anos
90. Existe um Makwerhu antes e outro depois de Khu Phanda, sobretudo, pela encenação. Neste espectáculo, os jogos de encenação levam-nos ao circulo. Os actores, apenas três, (e)levam o corpo ao limite. O que no início era a única forma de fazer o espectáculo, tornou-se o diferencial do grupo. E a bandeira maior é “A Boca”, numa encenação que trabalha os movimentos dos actores para fazer os cenários pretendidos, desde a Redacção do “Jornal A Boca” até ao quarto que se acredita de hotel. Mas fá-lo – os movimentos - ancorado em situações dramáticas reais, tudo se encaixa de forma subtil, nada parece forçado. “A Boca” é encenada com tal cuidado que reforça a ideia do encenador como aquele que organiza os corpos no espaço, no palco. Os actores fora de cena, mas também dentro dela nalguns momentos, emprestam suas vozes para fazer a trilha sonora do espectáculo, entre músicas, murmúrios e onomatopeias. “Khu Phanda” e “A Boca” levantam a bandeira da intervenção social. Para o coordenador e encenador todo artista é descontente. “O descontentamento
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Teatro
vem dalgum lado. Não conseguimos e não podemos resistir aos problemas sociais”. É para a iluminar estes problemas, chamar atenção ao que a sociedade deixa de lado, que aos espectáculos são criados. “Khu Phanda” retrata o drama dos meninos de rua tirando-lhes o véu da marginalidade, conta a estória - podia ser história - de três meninos de rua: Dapsipsas, Mulato e Odjinhas, cada tem uma história diferente que lhe 14
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empurrou para rua. A peça transporta-nos para dentro de suas famílias, a partir de flashback’s encenados, e o espectador é confrontado com o drama familiar que propiciou a ida deles à rua. Que alternativas de paraíso existem, quando o inferno é dentro de casa? É sobre isto que o texto nos coloca a pensar, permitindo-nos olhar como homens - vencidos pela vida, mas homens - aos que fazem da rua casa. E “A Boca” toca
Teatro numa ferida profunda do nosso tempo, a liberdade de expressão. Na verdade, toca na ausência da liberdade de expressão, tem no jornalismo o mote para esta discussão que não diz respeito apenas ao jornalismo, mas a todo um sistema montado para calar vozes insurgentes ou que destoam da opinião dominante. Criar espectáculos para rua Era o último dia da 15ª edição do Festival Internacional de Teatro de Inverno. Os dois espectáculos estavam marcados para o palco do Teatro Avenida. Mas até a hora do início do primeiro espectáculos as portas negavam-se a abrir. Os espectadores, às centenas, estavam do lado de fora. Perceberíamos, com algum espanto, que também os actores. Afinal, o primeiro espectáculo para aquele dia, seria apresentado na parte de fora do Avenida. Munhama, criado, enquanto skeetch, em 2017, e ampliado em 2018, é uma obra criada propositadamente para a rua. As bandeiras maiores do espectáculo são o medo e os esteriótipos – apontar os dedos a quem aponta os dedos pela aparência - trazidos sob facto real “Tatá Papá, Tatá Mamã”, nesta valorização da realidade enquanto matéria-prima para ficção. O encenador – que também fez de dramaturgo neste espectáculo – buscou fazer jogos cénicos para adaptar o espectáculo para a rua. E é nesta adaptação do espectáculo para rua que os espaços alternativos podem ganhar força. “Os fazedores do teatro devem levar espectáculos que se adaptem aos espaços. Grupos há que margin-
alizaram estes espacos. Levaram coisas não próprias para estes espaços”, entende Langa. E este despreparo percebe-se no pouco uso que fazem dos objectos permanentes do espaço que podiam dar mais cor aos espectáculos, mas apresentam-se como objectos desajustados. O Festival “Khu Phanda” é criado para colocar-se longe das salas tradicionais e maximizar os espaços alternativos, levar o teatro aos bairros. “Mas espectáculos para rua com qualidade”. O Festival vem depois duma série de eventos mensais, realizados ao último domingo de cada mês, a que chamavam “Tardes de Teatro”, realizados ao fundo da Igreja que viu o grupo nascer. Estas tardes – e também o festival – são, na verdade, uma forma de oferecer teatro ao bairro. “Mesmo depois de já termos uma frequência nas salas da cidade, sempre pensamos em criar um espectáculos no bairrro”. Nestas tardes, apresentavam-se não apenas as obras do Makwerhu, também doutros grupos dos bairros vizinhos. Depois desta experiência mensal, decidiram dar um salto. E, em 2017, fizeram uma semana de Teatro, um ensaio do Festival que em 2018 teve a primeira edição. Passaram pelo “Khu Phanda” cerca de 14 grupos, a maioria dos subúrbios da Cidade de Maputo que não têm grande espaço nas salas convencionais. Mas tambem grupos da Matola e mais alguns com mais Estrada. Tiveram uma média de 250 espectadores por dia. “Ao teatro na rua nunca falta público”, Langa.
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Artes
Naguib e Shot-B: unidos pela rebeldia Eduardo Quive I eduardoquive@literatasmz.org
Olhar para a cidade a partir de dois artistas tão diferentes, mas iguais por derrubar paredes de galerias e levar a arte ao espaço público. Seja o clássico das artes plásticas de Naguib ou o marginal do grafite de Shot-B, a rebeldia os une e, para além de influenciar movimentos alternativos, mudam a imagem da cidade.
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ndar por uma cidade, olhar para as paredes, muros, praças e outros espaços públicos e ver anúncios de todo tipo, as publicidades dos doutores que curam todas as doenças, incluíndo a traição, a inveja, a infertilidade e a falta de dinheiro que contrastam com a imagem de grandes marcas internacionais de consumíveis que, por sua vez, contrastam com a miséria que canta e desencanta as almas que caminham pelos caminhos opostos da cidade; ora paredes com avisos de multa para quem deitar lixo ou urinar; ou simplesmente envelhecidas, com cores que já não se distinguem. Um cenário de uma cidade qualquer, mas esta é Maputo. Quando se entra na capital moçambicana compreende-se desde logo como ela se divide, entre o velho e o novo desordenado, os prédios que surgem a rítmo em que outros desaparecem. Bares e cafés tradicionais que dão espaços a restaurantes com cardápios internacionais. Nota-se também ao olhar para as pessoas, quanto mais quando se as 18
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ouve, que se está numa cidade cosmopolita, primeiro de dentro para dentro de Moçambique e de fora para dentro do país. Os espaços públicos, para além do que já narramos, estátuas de figuras da luta de libertação nacional é que fazem a diferença, desde Eduardo Mondlane, que abre a avenida com seu nome, com o livro na mão esquerda e o braço erguido, no mesmo gesto se encontra Samora Machel, trocando o livro pela mão na cintura e o dedo indicador erguido, símbolo nas habituais intervenções que ainda hoje se repetem com saudosismo. Ou ainda, mais recentemente, Filipe Samuel Magaia, interceptando a Av. De Moçambique, com uma pasta nas costas e uma AK47. Associando essas figuras emblemáticas da nossa história ainda recente aos nomes das avenidas, pode-se traçar uma ideia sobre o país. Na Av. Da OUA (Organização da União Africana) o muro do Arcelor Militar surge a romper com a “normal” imagem quase ideológica da cidade.
Artes Uma obra em grafite já gasta ainda chama atenção. Estavam alí rostos de homens como Malagatana e outros desconhecidos, mas com uma ideia estética que vai para a afirmação do grafite – uma prática artística associada ao vandalismo –, como pode ser o prenúncio da necessidade de colocar outro figurino na fotografia urbana. Esse mural, uma intervenção artística de Shot-B, no muro de 200 metros, era parte do projecto Ocupações Temporârias, ora descontinuado. Na altura justificava-se a obra como a “afirmação de uma nova geração que não rompe com os legados nem com as memórias, mas que numa linguagem própria relata o presente e exige visibilidade que é ao mesmo tempo um desejo de futuro, num discurso directo para um público assumidamente eclético.” Ora, continua valendo a ideia, mesmo com o mural praticamente destruído, tendo, já agora, ficado na imagem com que a sociedade conota o grafismo – uma sujidade na parede. Porém, fica esse acto como um marco no que se pode fazer com as tantas paredes sem expressão que esta cidade possui. O que continua a valer ao Shot-B, um lugar de distinção nas artes de rua, tão pouco vistas no país. Caminhando pela Mafalala, a cidade-berço das artes
e até do desporto de Maputo, a arte de Shot-B volta a chamar atenção, pela homenagem que presta às figuras emblemáticas que ultrapassaram os muros de madeira e zinco do histórico bairro. Noémia de Sousa a “mãe dos poetas moçambicanos”, como viera a ser nomeada por um outro poeta, Nelson Saúte, o poeta e nacionalista, herói nacional, José Craveirinha e Eusébio da Silva Ferreira, a lenda do futebol que representou Sport Lisboa Benfica e ainda Joaquim Chissano, antigo Presidente da República, dão luxo e nobreza ao grafite, numa parede que ninguém passa sem olhar, nem entre os residentes do bairro. Aqui, a arte de Shot-B, que concretizou o projecto a convite da Associação Iverca, cumpre mais do que o seu dever, de contar a história cultural do bairro através dos filhos mais prestigiados, desmarginaliza e devolve a justiça a um género artístico que, como se nota, é capaz de mudar não só a imagem de um bairro de lata, como de uma cidade e, o mais importante, das pessoas que vivem e passam por ela. Com mais de 25 anos de carreira, influenciado, como vários nesta área, pela cultura hip-hop e já inserido no mundo das cores inspirado pelo pai, Shot-B, torna-se a imagem de referência de uma arte que poucos dão peito às balas. Ao ter transportado ainda mais a arte marginal para a galeria – em 2018 realizou uma exposição intitulada “Paragem”
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na Galeria do Kulungwana nos CFM – é um trofeu erguido. Quem sabe não olhamos por mais paredes com a sua obra ou de outros “marginais”.
Paralelamente às cores do graffiti, na Av. Marginal encontra-se uma das mais notáveis intervenções artísticas do artista plástico Naguib. Com o oceano de um lado, a parede da marginal, mesmo no limite entre a estrada e o mar, encontra-se por cerca de 700 metros um mural em homenagem a Samora Machel, primeiro presidente de Moçambique. Feito a partir de azuleijo, com um azul que caminha em imagens em ondulação, com o pincel a realçar mensagens indeléveis de Samora Machel – afinal o nome do mural é Ode a Samora Machel! – Naguib compõe uma obra que rompeu com a estética da cidade e deu uma nova perspectiva à arte urbana.
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Naguib que é um clássico das nossas artes plásticas consegue ser, ao mesmo tempo, um rompedor de horizontes, ao pretender que a vida da sua obra não se limite às quatro paredes. É assim com o mural “Ode à Samora Machel”, ou “Os percursos de Água”, na Av. Amilcar Cabral ou até no mais formal, na Praça da OMM, sem fazer a arte de rua como os grafiteiros, fez com que a arte ocupasse o espaço nos muros da cidade. Olhar para a cidade a partir de dois artistas tão diferentes, mas actores de uma acção que, se levada com atenção, pode influenciar movimentos alternativos e de ruptura até com os modos sociais habituais de intervenção artística, fazendo com que a arte ocupe mais espaços públicos e conviva mais com as pessoas.
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Entrevista
“Não tenho dúvidas que a cultura sempre precisará de apoios” Henny Matos Olhar a cultura como um bem maior e de uma utilidade que se torna indispensável, quando se trata da formação do indivíduo. É assim que a gestora cultural, Henny Matos, funcionária pública reformada que decidiu dedicar-se ao trabalho da cultura, na Associação Cultural Kulungwana, já lá vão 13 anos. O que começou como uma simples ideia de realizar um Festival de Música Clássica em Maputo, tornou-se numa importante associação para o desenvolvimento e promoção cultural com provas dadas Revista Literatas
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Entrevista
A
ndava pela cidade de Maputo deixando para trás uma carreira de funcionária pública, em Portugal e com uma passagem pelas Nações Unidas já em Moçambique, para entregar a alma ao movimento artístico da capital moçambicana. Nesses tempos já conhecia Malangatana de quem ainda recorda com saudosismo e admiração, a fotografia de Ricardo Rangel e Kok Nam, como as raízes da não só tradição de fotografia de Moçambique, mas como homens de cultura. Basta lembrar que Malangatana, por exemplo, além de pintor e até escultor, escreveu poesia, cantou e dançou e era um exímio contador de histórias. Henny, envolta a esse manto sagrado das artes, não podia trilhar outros caminhos senão o de agitar a cena artística, promovendo, com um grupo de artistas nacionais – incluindo Malangatana – o Festival Internacional de Música de Maputo, em 2005, o que mais tarde provocou a ideia de realizar com regularidade e a curtas distâncias actividades nessa área. Assim surge um dos projectos mais destacados da Kulungwana, o Xiquisti. O Xiquitsi – nome de um instrumento musical de percursão fina – compõe-se pela realização de temporadas de música clássica e por um projecto de formação de orquestras e coros. Já vão cinco anos de existência do projecto que tem a direcção artística de Kika Materula, cuja criação, em 2013, ditou o “fim” dos festivais de música que vinham a se realizar desde 2005. “Achamos que devíamos fazer uma coisa mais consistente durante o ano” explica a ideia Hanny Matos. Hoje, quando já passam cinco anos, o projecto musical que já é uma tradição na cidade, tem cerca de 200 alunos, com os melhores formandos a passarem a ser monitores, sob a supervisão de professores experientes estrangeiros. Assim o Xiquitsi constitui, prossegue, numa ideia de criar bases locais para a criação e execução da música clássica, o que inclui ter alunos com capacidades de fazer composição – Estêvão Chissano é uma dos que já deu as provas nesse campo – passando também pela orquestração da música moçambicana.
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Em 2018, aliás, por ocasião do seu quinto aniversário, o Xiquitsi, na sua última série colocou os músicos Mingas, Stwart, os irmãos Willy e Aníbal, Wazimbo, Xixel e Hortêncio Langa, a cantar acompanhados pela orquistra, facto destacado pela directora executiva da Kulungwana. “É para mostrar que o instrumento clássico não tem que ser só para um estilo de música, é possível fazer arranjos para tocar a nossa música, muitas vezes não está escrita na pauta. Assim preservámo-la e valorizámo-la.” Oficializada em 2006, a Associação para o Desenvolvimento Cultural, Kulungwana, apostou sempre na música até que foi crescendo em ideias e explorando outras possibilidades. Em 2008, abriu a uma galeria na Estação Central dos Caminhos-deFerro de Moçambique (CFM) que passa desde então, anualmente, a realizar exposições, basicamente, em cada seis semanas. “A ideia é de, estando a Galeria num local privilegiado, que tem muitos visitantes locais e estrangeiros, poder servir como referência para o acesso às obras de arte moçambicanas.” Explica Henny Matos que acrescenta que foi se percebendo a necessidade de evoluir em actividades. “Além de exposições fomos realizando oficinas sobre algumas técnicas de artes plásticas que aqui são menos desenvolvidas, por que não há condições, como, por exemplo, a fundição do Bronze, a serámica Raku, que é uma técnica japonesa, os trabalhos com a fotografia, e outras actividades.” Ano após ano, as responsabilidades de uma entidade bastante activa na cena artística nacional como a Kulungwana, foram crescendo, assinala Henny, destacando a necessidade de realização de projectos no campo da preservação da herança cultural. Foi assim que a associação inicia uma série de publicações “sobre os fotógrafos Ricardo Rangel e Kok Nam, sobre a música urbana na Lourenço Marques (designação do tempo colonial da cidade de Maputo), um trabalho sobre o maestro Machiane”, por exemplo. Mas o que mais se destaca no trabalho com as artes visuais é a Colecção Crescente. A exposição que é
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uma constante realização da Kulungwana, coloca artistas consagrados, em ascensão e estudantes finalistas da Escola Nacional de Artes Visuais, na mesma exposição e catálogo, com as obras a serem vendidas ao mesmo preço. “Para jovens é uma grande oportunidade de se mostrar e porque também estão entre os consagrados. E temos o catálogo que nos é importante para o registo de artistas contemporâneos e ajuda-nos a ter uma ideia do que se faz na área das artes plásticas.” Tudo isto, diz Henny Matos, que agora colocamolá em discurso directo, não era possível projectar quando tudo começou.
TUDO COMEÇA COM MALANGATANA Malangatana foi um dos membros fundadores da nossa associação. É da sua autoria o logótipo da nossa associação, aliás, e viveu por dentro toda a emoção dos nossos passos iniciais. E, como artista
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Entrevista
era versátil, fazia tudo, pintava, esculpia, fazia poesia, e gostava de cantar. Ele adorava a música e era um grande amante da músca clássica. Quando em 2005 se fez o primeiro concerto de música clássica, ele estava envolvido, foi uma experiência bastante positiva e foi um dos defensores da continuidade do projecto de música clássica. Mais tarde é que surgiu a ideia de estabelecar uma associação para o desenvolvimento cultural no geral. A coisa foi envuluíndo. Não posso dizer que em 2005 nós sabíamos o que seríamos em 2018.
A PROMOÇÃO DAS ARTES PLÁSTICAS Nós fazemos exposições para dar visibilidade ao trabalho dos artistas e das suas obras. Temos feito um esforço para igualmente participar em eventos internacionais. Em 2013, por exemplo, participamos no Joburg Art Fair com três artistas nacionais, foi um sucesso não só pela exposição directa no estrangeiro das obras, mas por permitir intercâmbios entre artistas, isso foi muito importante. Trazemos artistas de fora para expor em Maputo, organizamos oficinas e debates, onde os artistas tem a possibilidade de interagir, fazemos coisas em conjunto, são as portas que se abrem. 26
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ARTE PARA ALÉM DE MAPUTO Este país é muito grande! Batemo-nos com a vontade de não estarmos a agir só em Maputo, isso é um grande desafio. Agora em 2019 na Colecção Crescente, a que estamos a preparar, teremos artistas de Nampula, Sofala e Inhambane. Portanto, estamos a fazer um esforço para trazer estes para Maputo e nós também levarmos as coisas para lá. Em Novembro do ano passado fizemos concertos em Nampula e Ilha de Moçambique, com o Xiquitsi. E mesmo dentro da cidade de Maputo fazemos igual esforço de não ficar só na zona de cimento, fazemos nos bairros suburbanos, e temos tido muito sucesso na música. Temos feito trabalho com as artes plásticas também, nas escolas e comunidades. Faz parte do nosso papel. Toda a gente gosta de arte e tem interesse. Faz parte da educação. A cultura é que faz um povo é isto que vai sobrar depois.
A NOVA GERAÇÃO DE ARTISTAS Há artistas fantásticos que estão a crescer. Por exemplo, na área da fotografia, Moçambique sempre
Entrevista esteve no lugar de destaque já no tempo de Ricardo Rangel, Kok Nam, José Cabral. Hoje temos uma geração mais nova que está lançada, Mário Macilau, Mauro Pinto, Filipe Branquinho, Mauro Vombe. Uma das acções através das quais pretendemos reconhecer essa nova geração é Prémio Mozal de Artes e Cultura, cuja primeira edição foi no ano passado É outra forma de se olhar para o que se está a passar. Esta é uma maneira de se destacar e estimular os jovens que são consistentes no trabalho artístico.
escolas, mas é muito difícil. Dirigimos-nos às escolas com material e com pessoas para fazer a formações, apenas queremos o espaço e os alunos, metem-nos burocracias, ora é preciso autorização da direccção da cidade, da direcção da província e uma série de coisas. Nós ofeerecemos actividades e somos tratados como pedintes. São estas coisas que devem mudar. E isso não precisa de dinheiro, precisa de uma coordenação entre instituições. Isso estumula os artistas, mas também é importante para o futuro do país.
POLÍTICAS CULTURAIS E VALORIZAÇÃO DO TRABALHO ARTÍSTICO
ARTE PÚBLICA
Os artistas dizem sempre que não tem apoio. Mas penso que, provavelmente, o Orçamento do Estado, neste momento, não tem condições para isso, mas há outras formas de estimular e valorizar. Acho que ai se podia fazer mais, facilitar certas coisas que permitam o artista ter maior campo e isso não implica dinheiro, estamos a falar de facilidades. A criação de espaços culturais públicos, as criação de escolas de arte noutros locais. Nós temos feito um trabalho nas
Maputo é uma cidade que tem uma arquitectura mais antiga, mas tem agora novos prédios e está a crescer. E nesse crescimento tem que se pensar na arte pública que é importante. Em todas as cidades há isso. Isso faria muito bem aos artistas. O município podia lançar concursos para que se faça uma intervenção no espaço “x” envolvendo artistas para erguer obras em espaços públicos. Acho que as pessoas gostariam, toda a gente gosta quando está bonito.
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Música
Rebelde com causa Elton Pila I eltonpila@literatasmz.org
Em “Go and tell the world” Ras Haitrm apresenta-se – como já nos habituou – um rebelde e percebemos-lhe logo a causa
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uando ano passado, a UNESCO proclamou raggae património imaterial da humanidade, a celebracão foi global, mesmo estando a distinção voltada ao raggae jamaicano, porque dizer raggae jamaicano não quer significar necessariamente raggae feito na jamaica. O ritmo nascido em Kingston - tornado universal pelo humanismo de Bob Marley - esticou os seus tentáculos por todo o mundo. Em cada voz ganha cor própria, mas o raggae do mundo deve muito ao raggae jamaicano. Tanto por isso celebramos todos. No princípio estava a rebeldia, no presente também, e enquanto as injustiças e desigualdades não se tornarem letra morta, lá estará o raggae a reivindicar um mundo mais justo, mais igual, mais humano, para o desespero de quem com isso perde. Talvez por isso seja coisa de marginais - e isto não deve soar ao elogio que a “voz dos marginalizados” patente na justificação da UNESCO sugere, também porque esteja - o raggae, também a voz e a vida de quem canta - associado ao movimento Rastafari e ao consumo da cannabis sativa. Num mundo em que
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tudo que parece politicamente incorrecto - o que é o politicamente correcto, se não um monumento à hipocrisia? - é rapidamente rotulado marginal. Mas o que há de marginal num género que nos ajudou a compreendermo-nos como homens, que serve de trilha sonora em campanhas de amor ao próximo tão em falta hoje com o individualismo que nos cega. É tudo isto que nos vem à cabeca, quando lemos o título do álbum, lançado finais de ano passado, de Ras Haitrm e The Firehouse Crew: Go and tell the World. É apenas e tanto este o título, não há mais complementos, uma ambiguidade que se torna concreta em cada uma das 12 faixas que compõem o álbum. A faixa que lhe dá título talvez sirva de farol para compreendemo-lo. Go and tell the world é o grito de um rebelde - e esta é a causa - que se nega a postrar-se de joelhos ante a quem dita as regras, pelo contrário, lembra-nos do passado que nos foi roubado e a cultura, a nossa, que nos obrigaram a desprezar. “They made my past so overcast/Stoled my roots and culture”, canta na faixa que marca o primeiro passo desta odisseia - its not for long, sobre
Música
uma base que nos convida a andar de peito aberto e dar a cara a bater em nome do que acreditamos. E as produções neste álbum não fogem muito do que o raggae já nos habituou, as composições – das letras - são o que há de mais interessante a acompanhar. Algumas faixas depois - Do you remember - como se falasse aos dissidentes, aos que abandonaram a luta, aos que têm memória curta e talvez pensem que hoje caladas as armas, sem correntes aos pés ou grilhões ao pescoço, a ajuda internacional seja uma oportunidade para nos refazermos das cinzas, canta: “They did never never gave us a chance/They brought them colonialism,and now we face them neocolonialism”. E o vídeoclipe feito para a promoção
da música, mas também do álbum, é aterrador. Lá estão imagens reais a lembrar-nos os grilhões ao pescoço, as correntes aos pés e as marcas de chibata às costas, sem o masoquismo celebrado em 50 Tons de Cinza. É por isso este convite à resistência, mas sempre num campo ideológico, cultural, espiritual, ainda que Sometimes i solve my problems fisically. Talvez seja preciso pensar em “Bad Time” tão reveladora do caos que as desigualdades anunciam. E nem precisamos esperar pelo futuro para ver cumprida a profécia, as guerras civis, os extremismos, os refugiados estão sempre abrir-nos a porta das incertezas.
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Reportagem
(Re)descobrir Maputo à Pé Lucas Muaga | lucasmuaga@literatasmz.org
Maputo, uma cidade desenhada e - diga-se para o bem da verdade - construída por portugueses, é hoje um alvo turístico. Quer pela sua misticidade ou pela sua peculiar beleza, é visitada por pessoas de quase todos os cantos do mundo. Aproveitamos o programa “Maputo à pé”, passeamos pela cidade que cada pedaço guarda um rastro de história de uma urbe cuja típica correria dos centros urbanos não nos deixa contemplar o que resta beleza. Tudo aconteceu num sábado, a 19 de Janeiro do novo ano, junto de uma dezena de turistas suecos interessados em explorar a África Austral.
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a Catedral Metropolitana de Nossa Senhora da Conceição, um edifício emblemático e histórico, inaugurado em 1944, quando Maputo era Lourenço Marques e Moçambique, uma província portuguesa, iniciamos a nossa caminhada turística por alguns dos principais pontos da cidade Maputo. A Catedral de Maputo – também assim conhecida - é uma grande atracção turística, pela sua história e pelo seu projecto arquitectónico. Conduzidos pela guia turística do programa “Maputo à Pé”, Ângela Macamo, exploramos cada compartimento do edifício católico. Foi num dia de grande sorte, visto que o ambiente da missa fazia suspeitar um sábado de bodas. Saindo da Sé da Arquidiocese de Maputo, atravessamos a estrada que separa a Catedral do Conselho Municipal de Maputo, uma outra maravilha arquitectónica. Ficamos em frente a esta aparente fantasia, inaugurada na mesma década que Catedral Metropolitana de Nossa Senhora da Conceição, em 1947. O Conselho Municipal de Maputo é um projecto
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arquitectónico clássico, na Praça da Independência. Em frente ao edifício de arquitectura colonial, algo despontou a curiosidade dos turistas suecos. Um gigante de bronze dá costas à edilidade de Maputo. É a estátua de Samora Moisés Machel, explica Ângela Macamo, a guia turística. Presenciar este cenário, se alguma viagem extra se permite, é como ler alguns versos do jovem poeta Sangari Okapi: “Ergues-te inteiro busto ou enfige! Sobre o mármore da memoria. Para trás o edifício onde descansa a escoria.” Ângela Macamo, no seu inglês, complementa o triângulo que se faz. Propositadamente ou não, são três poderdes que se cruzam: o religioso (representado pela Catedral), o administrativo (representado pelo Conselho Municipal/Governo) e o Militar (representado pela Estátua de Samora Machel). Com os turistas, descemos as escadas da Praça da Independência. Esquivamos, novamente, os carros
Reportagem
desgovernados. De cabeça erguida, olhamos com firmeza para os 9 metros de altura e 800 quilos de bronze de uma das maiores estátuas da África. Ângela Macamo volta a entrar em cena. Aos suecos, conta quem foi, de facto, Samora Moisés Machel. “Vencedor contra o colonialismo e líder da revolução socialista”. Os turistas mostram interesse. Foi, entretanto, sobre Josina Machel e da Graça Machel, as esposas do primeiro Presidente de Moçambique independente, que os mesmos soltaram gargalhadas de satisfação.. Fartos de Machel, descemos pela avenida que tem o seu nome. Visitamos o Centro Cultural Franco Moçambicano (CCFM). Era, como dissemos, sábado. O CCFM estava, aparentemente, fechado. Apreciamos, contudo, as obras do Gonçalo Mabunda, arte de ferro exposta no pátio do CCFM, o retrato de um cavalo e uma avioneta a francesa. Falando em arquitectura, o que dizer da casa de
ferro? Foi pré-fabricada na Bélgica e importada para Moçambique em 1892, para acomodar o Governadorgeral da província submarina de Moçambique. Hoje, a casa metálica está nas mãos do Ministério do Turismo. Sob os comandos da guia turística, descemos pela avenida Samora Machel. Ignoramos uma outra estatua do herói nacional, uma mais pequena, de madeira (Maputo parece agora um amontoado de estatuas). Entramos no botânico Jardim Tunduru. Foi como invadir a mata. Ângela Macamo apresenta preciosidades naturais (os suecos tiveram o prazer de soletrar: “jambalão”). Ainda no Tunduru, atrapalhamos os morcegos no seu desassossegado sono. Foi irresistível tirar algumas fotografias. Reinaugurado em 2015, o Tunduru é, também, um projecto arquitectónico dos portugueses. Data de 1885, antes da independência de Moçambique. Por essa altura, foi conhecido como jardim Vasco da Gama. Revista Literatas
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Reportagem Ainda ao longo da avenida Samora Machel, passamos pelo Cine Teatro Gil Vicente, outro projecto colonial, sobre o qual quase nada se disse, senão que é o Cine Teatro Gil Vicente. Fechado e guarnecido, talvez por isso, a proposta de Ângela foi a de prosseguirmos. E saímos da avenida Samora Machel pela rua que nos levou para avenida Karl Marx. Entre ruínas, Ângela Macamo mostrou aos turistas suecos dois prédios gigantes, o famoso “33 andares” e o edifício sede do Banco de Moçambique. Os vendedores de rua, sob fortes ameaças da polícia camarária, mais do que o “33 andares” e o “Banco de Moçambique”, impressionaram os suecos. Por isso, foi inevitável chegar a um dos mais antigos mercados do País, o Mercado Central de Maputo, inaugurado no século XX. Já foi chamado de Marcado Vasco da Gama.
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Falando de produtos típicos da terra, as capulanas, embora sua origem árabe, foram apontados pelos próprios turistas como algo “obrigatório” a ser apreciado. Os guias cederam. Ângela Macamo levounos à “Casa elefante – o império das capulanas”. A casa elefdente está ao longo da Avenida 25 de Setembro, em frente ao Mercado Central de Maputo. Está próxima à rua da Mesquita, nome que deriva da Mesquita da Baixa, a “Jumma Masjid”. Um pouco mais a frente, encontramos um lugar perfeito para uma pausa. O “Uptown Café”, onde serviu-se uma das melhores cervejas de África, a famosa “2M”. Depois da cerveja, fomos a quinta estação de comboio mais bela do mundo. São mais de 123 anos de historia, reflectidos tanto no Museu da Estação Central dos Caminhos de Ferro de Moçambique, fechado na altura, e numa exposição, que narra a
historia do sistema ferroviário em Moçambique e exibe as mais belas estações de comboio de todo o mundo. Na quinta estação de comboio mais bela do mundo, os turistas suecos aproveitaram para tirar uma foto conjunta. Depois, voltamos à história, à estoria e às estatuas. Na famosa Praça dos Trabalhadores, Ângela Macamo aproveitou para contar a lenda da “Mulher Cobra”, uma estatua antiga que, na verdade, foi inaugurada antes da independência, em 1935, para homenagear os mortos da Primeira Guerra Mundial. Entramos pelo centro de prostituição, a famosa Rua de Bagamoyo (parece que falar dela não interessa à guia). Prosseguimos, (até porque sobre isso, não precisam perguntar os turistas, visto que algumas miúdas estavam quase despidas ao sol).
Mais a frente da Rua de Bagamoyo, passamos pelo Arquivo Histórico de Moçambique e pelo Cine Teatro Gilberto Mendes. Chegamos a Praça 25 de Junho, onde após uma pausa, deu-nos a direcção de onde iria terminar o “Maputo a Pé”, a Fortaleza. Finalizamos dizendo que a Fortaleza de Maputo “é a representação de uma ideia militar portuguesa”, pelo menos assim explica Ângela Macamo. Daí, sem muito esforço, podermos contemplar a heroicidade dos militares portugueses, é o caso de um Mouzinho de Albuquerque prendendo o Leão de Gaza, Ngungunhane. Mas enfim, na mesma Fortaleza, jazem os restos mortais do mesmo Ngungunhane, que morreu 23 de Dezembro de 1906, em Angra do Heroísmo, Portugal.
A Rua de Bagamoyo, diga-se, é mesmo um império. Não foi possível identificar nela uma igreja. Caminhamos por ela, em direcção a Fortaleza de Maputo. Passamos por bares e por duas escolas de arte: a Escola Nacional de Dança e a Escola Nacional de Artes Visuais. Lembramos, que antes da pausa, no Uptown Café, soubemos da Mesquita da Baixa, que dá nome a Rua da Mesquita. Revista Literatas
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Poesia Lino Mukurruza, poeta moçambicano (Nasceu em Lichinga e Quelimane). Publicou os seguintes títulos; Vontades de partir & outros desejos (FUNDAC, 2014) e Almas em Tácitas (LUA DE MARFIM, 2015. Co-autor dos seguintes títulos; Clepsydra (COISAS DE LER, 2014), Flor da alma (SOL, 2014), Vozes do Hiterland (LETRAS DE ANGOLA, 2014), Premonições (LUA DE MARFIM, 2015), Poema-me (LUA DE MARFIM, 2015), Poesia de pintar e ser feliz (LUA DE MARFIM, 2015), Obsessões (LUA DE MARFIM, 2016), Galiza-Moçambique: Numa linguagem e numa sinfonia (ROTEIRO DAS LETRAS, 2016), entre outras.
[…]
sombra lençol do teu lexema mastigar solidão com dentes frágeis
há entre o nervo e a paciência
e boca submersa de insectos
uma imagem a deslizar
onde no púcaro da mão tenho esta infância
instante negreiro sobre as águas
grudada com a lentidão emotiva
há nessa geometria
e intima da gaivota que somos na asa
um ângulo conjugado sobre a matéria do corpo
bronzeada a anel do tempo
uma cinza que ainda queima a sangue
(inédito)
uma faca que ainda corta a lâmina batido sobre memória da tua pele curtida no amor do nosso sol em silêncio e no abraço de sempre (inédito)
[…] adormeço
[…]
com a palma da mão este conforto com a palavra
no borrão da alvorada
onde a palma excita o poema
obro-te uma ventã de borriço
(inédito)
corpo opaco mão maleável que engulo sol sobejo
[…]
do dia devo estender-te toda a cor? (inédito)
espalhar na tua língua o humanismo e entregar-te o ângulo do fogo finalmente esparso na sombra da linguagem
[…]
e com o teu corpo
(à Deuza de África)
como gorjeio interjectivo dos corvos (inédito)
«es muss sein» engolir barco do teu silêncio oculto na língua Revista Literatas
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Poesia
Leco Nkhululeko, pseudónimo de Paulo Paulo. Recebeu distinções do Prémio Nósside, na Itália, pelos poemas: Sangue de Darfur, 2009. Casa de Ninguém, 2010. África Esperança, 2013. Eutanásia-2014, em Maputo e Mediterrâneo, 2015. Activista cultural, leco Nkhululeko dedica-se à intervenção literária, em concertos. Publicou «Há Gritos no silêncio» em 2011, em Moçambique e em 2013 no Brasil, sua estreia em livro. Em 2018 publicou «Bíblia Lounge».
GÉNESIS
TIMIDEZ SOBERANA
O AMOR, única moeda!
É importante que anoiteça para que haja na manhã seguinte novos horizontes.
EVOCAÇÃO É preciso que o amor seja soberano Ao Rui de Noronha
para que o ódio não altere a consciência humana
E digam em supremo tom Pátria ou patos malandros sobre o Índico ou sobre suas caudas enriçadas
EXÍLIO
de barcos e armas Içarei a bandeira líquida da minha timidez XIKHÊLENI
em tua clitoriana colina urge inundar-te com segundos de êxtase
Ao Eduardo, o White
e aluviões de gozos
Há um livro sem rosto a intimidade
5:30
Redefinindo capítulos.
Âncora solta no poema nem Maputo nem Rovuma Marechal agora impunes deambulam por ínvios caminhos
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Prosa&Conto
Testamento do mendigo Miguel Luís
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á vícios que desde que comecei a viver nesta condição tratei de os evitar, porque me fazem mais vivo do que preciso. Um mendigo sempre vive às metades. Nesta noite, cedo a um desses vícios, escrevo, porque vejo este rio enviesado, que é a minha vida, desaguar num oceano que sempre me foi muito vizinho. Prometo não escrever muito. Eu sempre soube, perdi-me naqueles acontecimentos. Nasci João Carlos Esteves Cabral, “nome de médico reputadíssimo” dizia minha mãe com o espírito sobrelevado tentando convencer a si própria que um dia eu seria um médico de renome. O que sucedeu é que o menino que um dia sua mãe augurou médico reputadíssimo passou a vida carente de tratamento de outros senhores que se tornaram médicos de verdade.
querendo se deixar colorir com a mancha daquele sangue suicidou-se em seguida. Nunca me ocorreu reviver o que se passara, e agora me vejo no meio de tudo. Perdi-me naqueles acontecimentos. Tinha quinze anos quando tudo acontecera. E sem dúvida, perdi-me naqueles acontecimentos. Nos tempos que se seguiram a tudo, fui visitado por uma depressão tão profunda que cabia toda a tristeza do mundo. Perdi o sentido da vida, fiquei parado naquele longínquo ano do início do século. Há realidades que parecem ter sido antes ensaiadas noutras vidas. O início do século marcava o chegar de sinuosidades que marcariam perpetuamente a geografia deste rio.
Tudo começou com o assassinato de Maria Flor Esteves Cabral por seu marido naquele longínquo ano do início do século presente. O lar daquele casal de Bombarral que até ali se tinha destacado entre as demais casas pela bonomia e pacifismo ganhara com aquele homicídio uma mancha indelével na sua história. A mancha fez-se tempo infinito até que minha mendicidade fosse um dos seus reflexos.
Tentando me curar daquele estado que dentro de mim clamava dia e noite vaguear por onde era desconhecido, reconhecer em mim uma estrela sem noite, um sol sem dia, um beijo sem boca, um ser ninguém, fugi de tudo à primeira oportunidade que me espreitou. Corri e aos intervalos ensaiei passos apressados que só cessaram quando me vi nas ruas desta cidade, onde o ser ninguém se casou a mim, e tudo o que um dia eu tinha sido se perdeu no vácuo que sempre temeu a solidão.
Sempre me custou crer, mas a verdade não mudou ao longo destes anos. Meu pai assassinara a minha mãe depois de descobrir que aquela o traíra e não
Quinze anos se passaram e tudo o que me lembro é viver este estado, que os mais cultos chamam mendicidade. Lisboa tornou-se minha casa. Nestes Revista Literatas
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Prosa&Conto
anos conheci cada canto da cidade, cada segredo, cada cheiro. Inúmeras vezes me confundo e ao olhá-la vejo meu corpo. Dia e noite passam por este lugar, onde não querendo ser reconhecido me reconheci ninguém, muitas pessoas. Confesso, algumas delas fazem-me perguntar para além do asseio o que as distingue de mim. Ter lar, ter quem os dê carinho? Muitas delas não vivem, sinto. Algumas olham-me com desdém, outras com pena, outras reconhecem em mim tudo que são. A palavra comum pela qual todos me qualificam é mendigo, um ninguém que tem as ruas da cidade por casa. Disse que não escrevia muito e já concluo, não se
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apoquentem. As dores que aos poucos me fazem perscrutar o lado de lá já não me permitem muito. As lágrimas que molham este papel confundem-se com a chuva que cai nesta noite fria. Temendo tudo isto, vivi evitando este vício. Escrever é para quem vive, e a única coisa que mendigo sabe fazer é ser ninguém. Algo entra no meu corpo, desenhando movimentos rectilíneos, e sai, criando em mim fraquezas. Não sei se aguento mais isto, sinto tudo se esvair de mim. Esta cidade, o papelão onde as minhas lágrimas ganham eterno descanso, o meu corpo frágil, a minha barba branca e a minha história é tudo que consigo vos deixar em testamento. Dava mais se pudesse, mas que mais pode dar um mendigo senão a si mesmo?
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Crónica do fim da tarde Álvaro Taruma
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enho estado a pensar em tantas coisas por fazer e, como sempre, quase nunca as consigo concretizar; há, na verdade, um fosso alargado entre o vivido e o sonhado ou vice-versa, um vão dez vezes maior que a distância entre os pés e a cabeça do maior gigante que a terra alguma vez testemunhou (reza a lenda que as suas mãos quase amassavam a lua). Eu sou escravo dessas nuances; escravo no sentido de que o meu tempo reparte-se entre duas metades: tenho, por vezes, tempo para pensar, fantasiar, sonhar e, noutra, para criar, trabalhar, “pôr a mão na massa” fora das divagações imaginárias. A mente deveria ter uma espécie de impressora, uma fotocopiadora que traduzisse fielmente as ideias em coisas, o abstracto em concreto, para cimentar a realidade; a chave necessária para acessar a caixa de pandora. Por exemplo, agora escrevo estas linhas, não sei a que propósito, mas a intenção inicial era escrever um conto, um texto curto, sei lá, alguma coisa que se assemelhasse às cartas que tenho vindo a receber de um amigo meu, expatriado, que me tem escrito, nestes dias, umas cenas bem fodidas. Puxa! Nunca acerto na muche! Dá-me até uma sensação de inépcia. Caramba! Imaginem que já havia encontrado a estória, título e tudo (tenho um fraco pelos títulos -começo sempre por eles - e não resisto à sedução de uma frase apelativa, a carne é fraca) mas ops!: esfumou-se tudo e terminei aqui numa recolecção de palavras insossas e intragáveis. Então perguntome como, num ápice, perdi a trama, o cenário, a reverberação azul do mar que tornava azul os passos
da menina que corria na margem ao encontro da crista azul das ondas brincando com os peixes, cavalos-marinhos, estrelas e outras coisas líquidas. Como perdi os nomes, um a um, das crianças, anjos rolando na areia como se fossem seixos, pedras contemplando o silêncio ou espreitando o sexo das águas? Como, de repente, tudo ficou noite? (Outra vez a noite: gosto do modo como ela invade e ensombra os meus textos). Porque razão não pude teletransportar aquelas imagens para o branco deste papel? Perguntas e perguntas que faço e de nada me servem a não ser o avivar do fogo da minha inquietude. - Pobre menino! - Digo de mim. E agora, olhando para extensão do texto que se arrasta para um lugar ignoto, sem parágrafos, como uma viagem sem estação de chegada, só de partida, vou pensando no modo de terminá-lo sem nenhum alarde, sem ser necessariamente um desses finais felizes com direito a cereja no topo do bolo. Vou descascando a cebola, em pensamento, junto caldo às rodelas. Apetece-me uma refeição qualquer. Corto os tomates, a cenoura, em cubos pequeninos para despí-la da sua viril insinuação, procuro pelos pimentões, o feijão verde, a couve-roxa, o vinho tinto, os frutos secos, o pepino inglês, o alho francês, a carne vermelha, e, de súbito, revejo-me envolto em lágrimas rosto abaixo. Será da cebola? Decerto não! Ou será do vinagre de ervas que comprei na estampa de uma revista gourmet? Tambem não. O fim da tarde sentencia a verdade sobre a mesa: esta noite não tenho nada o que comer. Revista Literatas
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A secção “Seletos Brasileiros” traz um conto inédito da escritora mineira Nara Vidal. Radicada na Inglaterra desde 2001, Nara concluiu mestrado em Artes pela London Met University. Tem livros voltados para o público infantil e para o adulto, e prêmios a exemplo do Maximiano Campos, na categoria contos, e do Press Awards, por três vezes, pelo seu trabalho com literatura. Escreve ainda sobre artes, viagens e vinho para diversas publicações. Seu livro mais recente será publicado em holandês este ano. Nara também é dona da Capitolina Books, livraria que tem por objetivo divulgar a literatura brasileira contemporânea por todo continente europeu. Sérgio Tavares
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ACTON TOWN
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sso aconteceu mais pra frente. Dou um pulo no tempo. A razão mais escancarada de cortar caminho e narrar o que se passou naquele fim de tarde é fazer o leitor sentir raiva de alguém, de mim ou do A. Tanto faz, mas um de nós era pra ter se livrado do outro há muito tempo. Ainda assim, aquele dia. Mais dois casais e dois solteiros moravam com a gente nessa casa em Acton. Divisa de Acton e Ealing, Rosebank Way. Nosso quarto de casal era um capricho. Eu comecei a estudar design de interior por correspondência. Uma estante fazia o quarto ter dois ambientes. Os violões dele num canto, meus livros na estante, um poster de Shakespeare na parede acima da escrivaninha que só eu usava. Ele voltava pra casa. Já tinha jantado. Eu também. Eu esperava por ele com uma camisola branca de seda curta. Tirei o sutiã, a calcinha e esperei que ele entrasse no quarto, cansado do dia de trabalho. Eu escrevia um cartão postal para uma amiga do Rio. Sentada na nossa cama, pernas cruzadas, cabelos presos, eu pulsava tanto no meio das minhas pernas quanto na boca enquanto ouvia seu carro estacionar e seu corpo subir as escadas. A porta bateu com ele já dentro. Seus olhos estavam em fogo. Peguei uma toalha e me protegi da nudez que tentava oferecer a ele. Rejeitada, precisava me explicar
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e não sabia ainda a razão. A boca dele espumava. Tinha um ódio tão forte de mim que os olhos, questão de tempo, iam atear fogo na casa. Pedi desculpas ainda sem saber o que eu tinha feito. Ele sussurrava no ódio palavras como puta, piranha, vagabunda. De certo eu não deveria mesmo ter me oferecido com aquela camisola pra ele. Ainda eram seis da tarde. Só tinha putaria mesmo na minha cabeça. Só pensava em dar pra ele desde a hora que acordava até a hora que a gente transava à noite. Planejava dar pra ele enquanto a gente trepava. Era um desespero. Eu, claro, era uma puta, sem dúvida. Pedi desculpas. Eu ia parar de ser tão oferecida. Desculpa, vem que vou te acalmar, você tá cansado. Deita no meu colo. Espera, vou colocar uma calcinha, uma bermuda, vou me cobrir. Calma, estou aqui. É só me explicar o que eu preciso saber, não tem que ter raiva de mim. Não fiz por mal. Amanheceu. Nossas mãos dadas e o resto dos corpos sem roupas. Ele sorriu bom dia. Na minha cabeça, o galo. Doía. Eu estava aliviada. Soube que foi o colega de trabalho comentado com ele que, por sorrir demais, eu tinha jeito de oferecida. Estavam falando de mim no trabalho dele. Praticamente uma piranha. Eu precisava mudar, trocar as roupas. O galo doía. Ele se levantou, me trouxe café e uma compressa com gelo. - O galo vai diminuir logo. Aqui um analgésico. É pra
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dor de cabeça. Saímos pra jantar hoje? É sexta. - Vocês não tocam hoje? - Amanhã, sábado. Quero você lá, primeira fila. Canta com a gente. -Eu te amo. - Eu também, e nem é pouco. Tira uma foto dos seus peitos e me manda ao meio dia? Meu namorado era nada menos que o máximo. (As horas avançavam.) Solidão, referência, descontrole, desespero de encontrar casa, pertencimento Não preciso passar por isso Minha mãe sonhou com minha avó dizendo que viu um homem quebrar uma mesa e me bater com a cadeira. Superstição de gente latino-americana. Polícia. Desculpa, policial, não foi nada, um engano. Desculpa desperdiçar seu tempo. Isabel. Posso ficar com você? São 3 da manhã. Claro. Úrsula, posso ir praí? Você precisa terminar com ele. Eu vou. São 2 da manhã. Estou em perigo. Venha vou falar com minha patroa que você precisa. Não me exponha. Você já está exposta, olha seu rosto. Não volto de jeito nenhum. (As horas avançam) Ele não vai mais fazer isso. Prometeu. Nunca vi ele chorar tanto. Você é inteligente, espero que não volte mesmo. Você não precisa disso. Quanto homem maravilhoso gostaria de ter sua companhia! Preciso me libertar. Qual vai ser meu plano? Não tenho casa. Moro com ele. Saio de casa e vou me encontrar com outro homem esperando que me salve do meu namorado. Mas preciso voltar todo dia pra dormir com ele. (As horas mordem.) Vi seu celular. Você recebeu uma mensagem de um tal Jack. Piranha. Vadia. Celular arremessado no meu rosto. Dói. Um tapa. Me empurra. Bato o ombro na parede. Arranca meu poster do Shakespeare. Ele sabe o quanto eu amo Shakespeare. Foi ele que me trouxe aqui, seu canalha. Covarde. Não me bate que eu grito.
Eu grito. A casa está cheia de gente. Ninguém vem me salvar. Ninguém. Só eu, uma hora vou conseguir. Minha caixa com CDs, meu discman que minha irmã me deu, comprou em prestações, tudo voando pela janela do terceiro andar onde nosso ninho de amor foi arrasado. O rosto dele está vermelho. Ele vai me matar. Pela janela, minha mala verde que minha tia me deu voa. Veio com brigadeiros, cajuzinhos. Minha mala verde agora está na rua com minhas calcinhas, blusas, minha carteira de identidade com o nome dos meus pais, tudo no meio da rua. Preciso descer. Dói meu ombro, dói meu rosto. Na escada estreita ele está voltando da rua onde pisou no discman que minha irmã me deu. Guardei todos os cacos. Ele me acurrala na escada. Piranha. Me bate no rosto de novo. Aperta meu pescoço. Começo a tossir. Ele está vermelho, vai explodir, mas vai me matar antes. Chega alguém. Arranca ele pelo braço. Tranca ele num quarto que, chorando grita o quanto me amava e que eu, veja, eu arruinei tudo. Lá em baixo, cato peça por peça, o nome dos meus pais na carteira de identidade. Alguém chama um táxi. Entro no carro. Não sei pra onde vou. São seis da manhã. Começaria um trabalho às 8:30 cuidando de uma menina de 4 anos. Preciso de uma banho. Úrsula preciso de você. Vem, Nara. Estou te esperando.
(As horas passam.) Deixo as crianças na escola. Meu corpo já está mole. Mesmo depois de todos esses anos, ele ainda existe. Pego um trem. É um café com uma amiga. Tenho tempo para matar. Escolho, como escolhi a Piccadilly Line sentido Uxbridge. Desço em Acton Town. Tudo está no lugar. O tempo não passa numa cidade já velha como Londres. Saio da estação, viro à direita. Passo em frente ao pub, desço a rua e lá está, feito uma torre de medos ainda de pé, como sobrevivem forte a violência e a covardia, o prédio e o sétimo andar que guardam um quarto que foi o que eu era em desejos, morte, riscos até virar fantasma. A torre do medo imponente e covarde começa a desmoronar Revista Literatas
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Seletos Brasileiros diante dos meus olhos secos, sem roxos, sem marcas e eu não estou lá dentro da torre. Começo a escapar, como se num processo, de uma violência. Não ilesa, começo a ser salva. Aperto meus dedos em punho firme. Não há ninguém para bater, não há olhos de fogo, bocas que espumam, rostos que explodem. A queda da torre demora. Preciso ir encontrar minha amiga. Nada é urgente, nem mesmo a salvação. Mas salvar-se é como nascer. E não é possível nascer de novo.
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