Revista moçambicana& a complexidade da nossa identidade
LITERATAS Junho | 2016 | Edição 65
Artes Plásticas
‘’Arte é representação da realidade’’ Tsenane
Literatura
‘’Sem artista a humanidade teria se esfumado’’ Rafo Diaz
Teatro
“La Na Morgue”
Dadivo José, dramaturgo, convida-nos a visitarmos a morgue com o seu enigmático personagem Joaquim da Silva – homem que vende pedaços de mortos para mortos incompletos.
‘’A identidade das pessoas
é a combinação do passado, presente e futuro’’ “Alguns jornais converteram-se em alugadores de espaço a metro e tornaram-se totalmente ilegíveis.”
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“Prolifera nas páginas dos nossos jornais gente ocupada em construir brigas, a canalizar ódios e raivas em ataques pessoais.”
Mia Couto
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Ed. 2
CIDADE DE LIVROS 21, 22 e 23 de OUTUBRO 2016 AUDITÓRIO MUNICIPAL DA MATOLA
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festivalliteratas@gmail.com www.facebook.com/festivalliteratas
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ÍNDICE 05
CONCURSO LITERÁRIO FIM DO CAMINHO 2016
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POESIA
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“A MIOPIA ENRAIZOU-SE NO NOSSO PAÍS” LÍRICAS
DIA-A-DIA
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“IN THE GROOVE” DE JIMMY DLUDLU: QUANDO A ESTÉTICA E A TRADIÇÃO RENOVAM-SE NUMA ÚNICA NOTA
MÚSICA
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“O GRANDE PRÉMIO DE UM ESCRITOR É SER ÚNICO”
ENTREPALAVRAS
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“OS ‘MORGUEIROS’ CRIARAM UMA REPÚBLICA DENTRO DA MORGUE”
TEATRO
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PROSA&CONTOS
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LITERATURA INFANTIL
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FLOR-DE-LIS EM RIO DE NUBENTES
“CASAS DA CULTURA COXEIAM” ARTES PLÁSTCICAS
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33 SEMENTE
VAGENS
UM ROMANCE EM VERDADEIRA POLIFONIA MÚSICA
FICHA TÉCNICA
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Propriedade: Associação Movimento Literário Kuphaluxa | Av. 25 de Setembro, Nr.1728 (Centro Cultural Brasil-Moçambique), Maputo Colaboradores: Poeta Militar, Nelson Mucandze, Eduado Quive, Matiangola, Edmar Monteiro Filho, Álvaro Fausto Taruma, Sérgio Tavares, Eltânia André, Mélio Tinga e Arnaldo Mosse. Director Editorial: Nélio Nhamposse (825661276) Projecto Gráfico e Paginação: Mélio Tinga (844846486) Fotografia: Steven La Vourche Publicidade: Vice Versa (viceversa.servicos@gmail.com) Email: r.literatas@gmail.com
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EDITORIAL LITERATAS
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ECOS DA PALAVRA
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A metáfora é a poesia por estrear. E enquanto navegantes desse itinerário seremos inevitavelmente essa forma abstracta de se tecer no mundo. Seguimos o mesmo trilho dela e nela nos mergulhamos para tal como a águia que se renova a cada inverno, florarmos a cada verão que se anuncia. A “Literatas” é isso e o espaço onde a palavra ganha eco e flutua. Somos, enfim, esses caminhantes solitários dos eternos devaneios de Jean Jacques Rousseau. A odisseia que trazemos conduz-nos por labirintos e desertos que nos guiam para o enigmático mundo das artes, do inconformismo e da fascinante partida, esse mundo onde tudo são vírgulas, vírgulas e vírgulas. O princípio do questionamento, a palavra. O tempo é sempre a incerteza por desvendar e é ai onde reside toda a cosmovisão da “Literatas”. Forjamo-nos no tempo e estabelecemo-nos e configuramo-nos nele. Hoje, somos esse “país de mim” chamado Amor: artes, na sua totalidade. Somos, em rigor, um tradicional que se moderniza e moderno que se tradicionaliza, mas sempre com artes no sonho. Um cenário que nos parece inverso ao que se assiste nosso país, onde o sonho se vai diluindo a cada noite e onde o passado transforma-se nesse tempo que se eterniza. O Prémio Camões de 2013 diz que os escritores vivem no passado “por causa da crise de valores que temos hoje, por causa das dúvidas sobre que futuro vamos ter, é por causa de tudo isso que nos viramos para o passado como sendo o único chão para construir identidades. Estes momentos de crise convidam-nos muito a buscar certeza do tempo passado, naquilo que muitas vezes erroneamente chamamos de tradição, como se as tradições não se estivessem modernizando todo o tempo. E isso é perigoso porque a identidade das pessoas têm que ser encontrada numa combinação entre futuro, presente e passado”. Mia Couto não poupa nas palavras. Diz que nunca se ocupou da crítica de pessoas e sim dos comportamentos desviantes que se estabelecem e normalizam-se. “Nunca me ocupei da crítica de pessoas. Existem demasiadas pessoas ocupadas em atacar pessoas em Moçambique. A mim interessam-me tendências, comportamentos e formas de pensar. Prolifera nas páginas dos nossos jornais gente ocupada em construir brigas, a canalizar ódios e raivas em ataques pessoais. A maior parte nem tem coragem para sair da máscara do pseudónimo”.
Estamos, no fundo, num país onde o anormal normaliza-se e o normal “desanormaliza-se”, ou seja, escrevemos, inversamente, da esquerda para a direita. Estamos, a bem da verdade, quase que em Gomora. Senão vejamos: os sequestros instituíram-se; os assassinatos sacralizaram-se; igrejas milagrosas e messiânicas habitam os bolsos dos crentes; uma guerra sangrenta vai ceifando vidas e nisso há duas vozes dentro de uma – diálogo – mas com balas para o mesmo cano. Os inocentes e indefesos. Tsenane, artista plástico, banha-se em lágrimas e encerra: “penso que não é ético ainda estarem nessa situação depois de vários encontros entre o Governo e a Renamo. O povo está a perder confiança e está de joelhos. E o curioso é que por detrás de um alegado diálogo entre as partes há um ataque a uma coluna, base ou escola”. Na sua pintura, a palavra e o verso ganham eco e transformam-se na imagem flutuante do tempo. O homem, o eterno centro do furacão, celebra a sua pintura e a odisseia ética e moral, que o digam Cristo e tantos sodomitas - Da Vinci entre outros - que soçobraram, continuam sendo os princípios inatingíveis que busca representar. E sobre isso, Dadivo José, dramaturgo, embala-nos para esse mundo da moral: Joaquim da Silva, um dos seus personagens na peça “La Na Morgue”, é despromovido do cargo de chefe do armazém de medicamentos, no Ministério da Saúde, para administrador da morgue. Mantém relações sexuais com cadáveres e vende água dos mortos para ladrões, o que, invariavelmente, indigna a polícia. Não por o mesmo (Joaquim da Silva) estimular e patrocinar o crime, mas porque os polícias perdem o dinheiro de aluguer de armas para os “amigos do alheio”. Da Silva “bola” até parte de corpos para mortos incompletos. Entre devaneios ou não; entre regressos e partidas ou não, o certo é que trazemos nesta edição uma sociedade em decadência, um “país de mim” que se fragmenta e onde se impõe uma “kalashi in love”. O que lhe pedimos é que apenas viaje e deixe-se embalar nas flores que se tecem nas palavras. Apenas, isso. Nélio Nhamposse Director Editorial
DIA-A-DIA
REDACÇÃO
Concurso Literário Fim do Caminho 2016
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ntre cinema, literatura e formação de jovens, o Festival Fim do Caminho, que vai na sua terceira edição, e segunda em que inclui um Fórum Literário, já é um evento de prestígio ao nível da zona norte e a ganhar uma grande influência a nível nacional. Em 2016, para além de uma programação especialmente moçambicana e africana dos filmes, o destaque também vai para o Concurso Literário cujos vencedores já são conhecidos, sendo Sérgio Raimundo (Poeta Militar) o grande vencedor desta primeira edição.
Poeta Militar, o grande vencedor Uma d o é a
das faces destacadas na presente edição Festival de Cinema Fim do Caminho criação de um concurso literário que leva o re-
spectivo nome. O concurso literário Fim do Caminho 2016 escolheu estrear-se com o tema “O Crime em Moçambique” em homenagem ao escritor e dramaturgo sueco Henning Mankell, célebre autor de enumeras obras criminais e com forte ligação a Moçambique, onde trabalhou com a Companhia de Teatro Mutumbela Gogo.
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Não nos enganemos com o nome, a jornada é longa e não se prenuncia o fim. O Festival Fim do Caminho só arrancou em 2014 e já reclama seu espaço na programação cultural nacional. É um evento misto e que coloca em destaque, durante o mês de Agosto, a província de Nampula, norte de Moçambique, partido da sua capital, passando pela ilha bastante poética, a Ilha de Moçambique, até Mossuril. A diversidade paisagística e histórica desses locais e a simplicidade das gentes que nelas vivem dão um retoque ao evento. Neste ano, o Fim do Caminho quer projectar mais de 20 filmes, quase na totalidade africanos, sendo de destaque filmes moçambicanos. “Maputo etnografia de uma cidade dividida” de Fábio Ribeiro e João Graça é cartaz do Fim de Caminho 2016. A obra é, como nos sugere, sobre o quotidiano da cidade de Maputo, onde “os prédios brotam do solo, as ruas alimentam-se de parcelas dos bairros, os becos de terra inundam-se de chuva e as pessoas estão cada vez mais afastadas, tudo em nome do progresso.” Lê-se na sinopse que ainda classifica Maputo como “uma capital africana a emergir ao ritmo frenético da demanda financeira global”. No entanto, o filme conta-nos a história de Nhez, que se encontra no meio dessa cidade “dividida” entre os prédios organizados e os subúrbios que albergam a maior parte da população da cidade. Nhez é um aspirante à estrela de rap, que vive nos subúrbios à espera de uma oportunidade para entrar no mundo da fama, enquanto vende clandestinamente fatos executivos no centro da cidade para conseguir sobreviver. E por aí vai o público que acorrer ao festival navegar no cinema nacional, entre os dias 12 e 22 de Agosto de 2016.
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DIA-A-DIA
REDACÇÃO
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Com o texto intitulado “Quando o piano de Bernardo Mavique soprou um la de luto”, Sérgio Raimundo, mais conhecido por Poeta Militar, no meio literário, distinguiu-se e tornou-se no primeiro vencedor do prémio em questão em solo pátrio. De acordo com o júri, o texto de Poeta Militar “obedeceu rigorosamente à temática do concurso ‘o crime em Moçambique’, e leva-nos a um assassinato que ocorre em espaço inesperado, o palco do Teatro Avenida, em Maputo, em plena actuação do célebre pianista Bernardo Mavique, por sinal a principal personagem. Esta ficção parece-se com uma realidade que nunca se registou. A leitura do texto sugere um domínio da escrita por parte do autor, o conhecimento dos recursos do texto narrativo, o conhecimento claro dos caminhos que pretende levar o leitor ao construir as paisagens e todo o enredo em torno do crime que só se vem a confirmar no fim da história, com o assassinato do pianista cujo percurso só presa que tem apenas admiradores.” Em comunicado, diz ainda o júri em relação ao texto vencedor, que “a metáfora predominante neste texto acompanha uma viagem sobre uma cena de crime bem construída, desde os cenários, as personagens, a articulação da língua, a escolha cuidadosa do vocab-
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ulário, levando o rigor que se exige de um texto que se pretende vencedor e digno de realce na colocação de expoentes da literatura moçambicana e universal. É um vencedor legítimo e que, de certo, a escrever assim, coloca-se no caminho certo da literatura.” O júri, composto pelo escritor e jornalista Eduardo Quive e pelo poeta Mbate Pedro, também classificou os textos intitulados “Os movimentos insondáveis de uma madrugada”, de autoria de Ilídio Roque José, e “Direitos Humanos”, de Leonardo Jossai Unguana, como o segundo e terceiro melhor classificados respectivamente. Entretanto, também foram classificados outros oito textos da autoria de Danito Avelino, Japone Arijuane, Oscar Manuel Fanheiro, José Carquete, Isaac Zavala, Silvério Uaquessa, Rui Catona e Hélder Mangumo, para constarem da antologia a ser publicada pelo “Fim do Caminho” em 2017. De resto, os três melhores classificados, para além de prémios monetários – 12 mil meticais para o primeiro, sete para o segundo e quatro para o terceiro - irão receber obras clássicas da literatura africana e constarão da antologia de contos criminais moçambicanos a sair no próximo ano.
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“In the Groove” de Jimmy Dludlu: quando a estética e a tradição renovam-se numa única nota
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ogo que me comprometi a tecer algo sobre o tema exposto, veio-me na varanda da memória um pensador, George-Louis Leclerc, Conde de Buffon (1707-1788), filósofo naturalista do século XVIII. Leclerc, como refere Artur Morão, foi deveras criticado, no seu tempo, pelos enciclopedistas e principalmente por Condorcet, justamente quanto ao seu estilo. Todavia, o seu discurso foi muito apreciado pelos românticos como Baudelaire, Flaubert e Barbey d’Aurevilly. Leclerc, no seu Tratado sobre o estilo, diz no início que o estilo é apenas a ordem e o movimento que se instaura nos pensamentos. E
que se eles forem encadeados de modo apropriado, se forem ajustados, o estilo torna-se robusto, nervoso e conciso; se eles se sucederem de forma lenta e se juntarem apenas por meio das palavras, por elegantes que sejam, o estilo será difuso, desligado e moroso. Ora! O tempo ensinou-nos que só ele determina o nosso estilo. Através da sua outra companheira, a experiência. Jimmy Dludlu inverte-nos tudo em cada número de “In the Groove”. Neste álbum, Jimmy, parece-me que dá ao tempo seu estilo e não faz o contrário. Sempre maduro em cada número. O modo apropriado
como ordem e o movimento instauram-se, o estilo, neste álbum, faz-se afirmar que há músicos que parecem nascer já maduros para produzir e executar. Impossível parece, em grande parte, esperar ainda que Jimmy amadureça. O estilo (único), a execução, os cortes permanentes (que não desunem) que unem o que é artisticamente um pensar estético, através de notas à tradição fazem de Jimmy neste álbum um cientista do Afrojazz. “In the Groove” constitui um verdadeiro encontro entre a estética (impossível) e a tradição; todavia, esses dois elementos sempre estiveram
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em todas as produções de Jimmy. Aqui eles reaparecem com os seus rostos lavados, pintados de simplicidade, habitando a mesma nota, buscando em cada execução a recombinação. E Jimmy voa. Abre as asas da sua guitarra e rasga com gestos leves e concisos o céu de algumas canções populares. Traz essas canções com todos os preconceitos que temos delas. Recria-as. Reinventa-as. Queima-as e como um autêntico domador de “Fénix’s” as faz ressurgir das suas próprias cinzas; bem polidas, engomadas e com a barba feita. Ri-se como rira-se em criança em Hlamankulo das circunstâncias tristes e amargas que o seu povo fotografou em canções. Jimmy percorre os caminhos de canções, tradições, que cresceu ouvindo, e realiza, neste álbum, o sonho de toda a criança: trans-
formar tudo que a rodeia; fazer tudo ao seu modo sem tirar a sua essência. Reflecte e celebra todos os estilos, como ele o diz. Homenageia Alberto Machavele, ressuscita a estrondosa voz de Brenda Fassie que cedo se calou e pôs-se com muita nostalgia a recordar Samora Machel e anestesia sua alma de esperança e sonha, uma vez mais, com um país justo. Transbordam-lhe na alma canções de revolução que um dia guiaram o país e o continuador que foi. Volta ao presente e deixa-se cantar com Judith Sephuma, Isabel Novela, Vincent Mondlane e nos jogos rápidos da palavra de Simba. Faz da sua alma um verdadeiro tambor. E deixa mãos talentosas como as de Tony Paco, Nelson Lifanisa tocarem nele. Ao transpor as fronteiras nacionais, Jimmy não pretende deixá-
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las na gaveta da inexistência. Faz desse salto um laço de união. E deixa brilhar no seu “Groove” o cidadão do Mundo que é. Este álbum não só se configura nas ricas canções tradicionais, entra por nós adentro no primeiro instante com outros ritmos e sonoridades. Este bornal melódico tem dentro de si o Semba, o Blues, o Gospel, o Ximurenga e entre outros. Essas viagens, esses mundos que este álbum nos traz, reafirmam, como referira Leclerc, que verdadeira eloquência pressupõe o exercício do génio e a cultura do espírito. E Jimmy despe o génio que lhe escorre nas mãos e a cultura do espírito que lhe faz viver. Coeso e firme sobe as escadas de si próprio para sempre não se cansar de se superar.
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NELSON MUCANDZE
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“
O grande prémio de um escritor é ser único”
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Mia Couto, em entrevista, lembra que literatura não é prestação de serviços
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ecentemente, Mia Couto, figura plural por estar, efectivamente, envolvido com a política, ambiente e literatura, que melhor lhe representa, abriu-nos as portas do seu escritório para uma conversa de horas a fio, na qual o ponto de partida foi a complexidade das correntes literárias. Na entrevista que se prendeu no presente, sem dar destaque ao passado, Couto, autor de dezenas de obras, fez uma profunda leitura sobre a literatura no país e lamentou a erosão de valores morais no seio da sociedade. Lembrou também que, por definição, a literatura, com papel importante na transformação social, “não é prestação de serviços. A poesia, por exemplo, obedece apenas à sua própria lógica (…)”. Numa entrevista densa e fecunda, partilhamos com o caro leitor os excertos mais significativos da mesma.
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NELSON MUCANDZE
Nelson Mucandze (NM): Mia, considerando o seu percurso literário, penso que é legitimo começar por convidá-lo a fazer uma leitura do estágio actual da literatura em Moçambique. Mia Couto (MC): A ideia que tenho é de que estão a surgir novos valores que são muitos promissores, principalmente na área da poesia, que melhor conheço. Claramente, surge uma geração que vai pôr em causa os consagrados (…) propondo novos estilos, novas correntes. Mantenho, assim, uma grande esperança. Recordo que há dez anos discutia-se se a literatura moçambicana tinha ou não morrido. Esse repto só podia ser entendido como uma provocação, pois uma literatura nunca morre. Mas hoje há jovens que se impõem com uma voz e com propostas inovadoras no que respeita à forma, ao estilo e ao conteúdo. (NM): Nos seus pronunciamentos é possível perceber que não concorda com as limitações das correntes literárias. Para si, cada escritor é único no universo da literatura. (MC): Não faço guerra com as classificações, compreendo que para um certo tipo de abordagem é importante classificar. Mas penso que classificar poesia/ literatura é sempre um grande risco, porque a intenção de um escritor ou poeta não é e nem pode ser encaixada numa certa corrente. O seu propósito é não ter comparação. Não se trata de pensar que é o melhor. Mas o grande prémio de um escritor é ser único, fazendo o que só ele pode fazer.
(MC): Rosa não foi senão uma inspiração, alguém que, num contexto geográfico e temporal muito diferente, resgatou as
(NM): Dentro da nossa literatura, parece haver um profundo apego ao passado, à ancestralidade, a guerras e tradições, até pelos novos escritores… (MC): Essa é uma grande questão, não só na literatura. Mas é por causa da crise de valores que temos hoje, é por causa das dúvidas sobre que futuro vamos ter, é por causa de tudo isso que nos viramos para o passado como sendo o único chão para construir identidades. Estes momentos de crise convidam-nos muito a buscar certeza do tempo passado, naquilo que muitas vezes, erroneamente, chamamos de tradição, como se as tradições não se estivessem modernizando todo o tempo. E isso é perigoso porque a identidade das pessoas têm que ser encontrada numa combinação entre futuro, presente e passado. Por estarem a fechar outras portas, achamos que o único caminho é a tradição. Ora, como disse, a tradição é retrabalhada no presente. E ela é plural. Há tradições e não tradição. É triste ver que o único espelho
que temos para nos rever é o passado. (NM): Não podia ser esse o desafio da nova geração de escritores? (MC): Há esperança de que se inspirem no quotidiano do presente que, apesar de duro e conflituoso, é altamente inspirador. Nesse sentido, o escritor é um garimpeirando, trabalha como um mineiro no chão do tempo. (NM): É o único escritor moçambicano que tem obras literárias que deram origem a longas-metragens. Isso lhe acrescenta algo? (MC): Preferia não comentar. Geralmente, o escritor vive essa adaptação de forma equivocada. Ele pretende ver o livro no filme, pretende ver o prolongamento da linguagem escrita. Mas é preciso entender que aquilo é outra coisa, é cinema, é um outro registo. (NM): Por que outra coisa, se inspirada nas suas ideias como escritor? (MC): Está baseada na minha inspiração mas é outra coisa. É como um filho, você não é uma transcrição da sua mãe ou do seu pai. Você é você mesmo. Quando olhamos para os nossos
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(NM): Falando em ser único, o seu estilo literário confundese muito com o de Guimarães Rosa.
vozes ocultas do mundo da oralidade. Esse processo foi também aquele que me envolveu desde o início. Mas fazemos coisas absolutamente distintas.
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filhos temos (mesmo de modo escondido) a expectativa de a vida deles ser o prolongamento da nossa própria vida. Temos a esperança de nos eternizarmos neles. Na verdade, eles vão ser outros, e quanto mais outros forem, melhor para eles e mais felizes são. Quanto mais outro for o filme, melhor é. Um filme não pode ser o prolongamento da uma obra literária.
Literatura não é prestação de serviços (NM): Escrever não é exactamente um serviço que em parte reflecte nossas relações sociais... (MC): A escrita é um trabalho mas não um serviço. A poesia (que é o meu principal caminho) obedece apenas à sua própria lógica. Ela vive por via de uma outra linguagem metafórica, da sua proximidade com aquilo que não é visível. É isso que define a própria poesia. Quando se escreve um poema para servir uma coisa qualquer, seja uma
causa política ou religiosa, não se está a fazer poesia. Por definição, a literatura e a poesia não são uma prestação de serviços. (NM): Estatísticas mostram que leitores em Moçambique não passam de um 1% a avaliar pelos exemplares que as editoras produzem, que raramente passam de sete mil, num país de cerca de 25 milhões de habitantes. Que comentário faz? (MC): É preciso dizer que essa crise não é só de Moçambique. Brasil e Europa também sofrem essa crise. Não só de leitura, mas a percentagem dos que compram livros é assustadora. Claro que em Moçambique é muito grave ainda porque a nossa taxa de analfabetismo é muito grande. E a taxa de pobreza também é ainda alta, de maneira que a pessoa não compra um livro se tiver que optar por comprar arroz. Mais grave ainda é que há já uma elite que pode comprar, mas que não compra porque não está educada para esse tipo de sensibilidade. No meu
caso, para contornar este obstáculo, tentei desdobrar-me noutros registos. Trabalhei com grupos de teatro, de maneira que a mensagem não ficasse restrita ao livro. Escrevo textos nos jornais, e participo em debates para alcançar mais formas de dizer o que quero dizer. (NM): E temos crise de livros de ficção científica. Estou errado? (MC): É verdade. Mas também faltam outros géneros, por exemplo, quem temos como dramaturgo? Temos pouca gente que se especializou em escrever para teatro. E mesmo para literatura infantil, existem mas são muito poucos. Ficção científica é uma área ausente, é verdade. Mais estranho, porém, é não termos gente a escrever banda desenhada com tantas crianças que temos.
Para acabar com o segundo volume da trilogia vou ter que me isolar (NM): Penso que os escritores andam de mãos dadas com o silêncio. Como consegue dar existência aos personagens
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enquanto está efectivamente ligado às suas responsabilidades familiares, sociais e profissionais? (MC): É difícil. Para acabar com o segundo volume desta trilogia (As Areias do Imperador), vou ter que fazer o que fiz com a primeira parte. Que é escolher um lugar fora ou dentro de Moçambique, um sítio onde estou só eu e os meus personagens. Longe do telemóvel, fora dos emails, afastado do mundo e de todos.
Nunca me ocupei criticar pessoas
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Leitura à política (NM): Foi homenageado pela Universidade Politécnica. Fale-nos desse momento. (MC): Senti um grande orgulho. Mas não são as honrarias nem os títulos que me interessam. Na altura, senti que era importante usar aquela tribuna para dizer alguma coisa, alguma coisa que pensei ser importante. (NM): Sua aula no momento lamentava a degradação dos valores morais, mas somente no intervalo dos últimos dez anos. Porque essa limitação? Penso que a erosão dos valores morais não deve ser vista como um fenómeno novo, e nem de dez anos. (MC): Tem razão. Houve uma leitura segundo a qual estaria apenas a criticar um certo período de governação deste país. Mas eu questionei tendências que vão para além desse tempo. (NM): A aula chegou também como uma crítica velada a Armando Guebuza… (MC): Nunca me ocupei da crítica de pessoas. Existem demasiadas pessoas ocupadas em atacar pessoas em Moçambique. A mim interessam-me tendências, comportamentos e formas de pensar. Prolifera nas páginas dos nossos jornais gente ocupada em construir brigas, a canalizar ódios e raivas em ataques pessoais. A maior parte nem tem coragem para sair da máscara do pseudónimo. Os desvios de comportamentos, as fugas à ética não são típicas de um certo partido. É um mal bem distribuído.
(NM): Mia está preocupado em incentivar a sociedade a conquistar um certo espaço que nos foi tirado pelos partidos políticos... Estou certo?
(NM): Também dirigiu um jornal… (MC): Sim, e tenho a impressão que fiz bem e mal. Também sofri de uma visão que era muito partidarizada. Era uma fase de grande embriaguez, era fácil acreditar que todos os moçambicanos queriam a mesma coisa. Tínhamos acabado de sair da independência e vivemos um desses raros momentos de consenso nacional. Mas logo deixou de ser verdade e nem sempre eu e o jornal que dirigia tivemos essa sensibilidade. Não percebi, falo de mim, a diversidade e a complexidade da nossa sociedade. Foi nessa altura que pedi para deixar a informação para me dedicar à escrita literária. Foi nessa altura que me afastei da política partidária. Eu poderia ter ficado, e ter mantido essa atitude crítica dentro do partido. Mas era como um ser marinho que descobre que só pode respirar fora de água, eu precisava voar e olhar o mundo numa outra dimensão. (NM): O livro “Cada homem é uma raça” é uma consciencialização para que se respeitam as diferenças. (MC): Quando se diz que cada homem é uma raça é no sentido de consolidar aquilo que é a nossa semelhança como humanos, a nossa própria humanidade. O texto que dá título ao livro conta a história do João Passarinheiro, que responde ao polícia que lhe pergunta qual a sua raça e ele diz: a minha raça sou eu mesmo, cada homem é uma raça. O sentido desta resposta encerra algo mais fundo, que é o conceito de que cada pessoa é uma humanidade individual. Somos particulares mas partilhamos aquilo que é essencial, na maneira como sofremos, como pensamos, como sentimos. (NM): Isso está em quase todos os seus livros, as personagens vêm com uma profunda carga de frustrações… Tem a ver com o quotidiano? (MC): É porque são essas pessoas que têm histórias, se você for uma pessoa muito feliz, muito realizada, você não escreve. Eu escrevo por que tenho coisas por realizar, sonhos distantes, há esse sentimento de inquietação. Quem está completamente feliz não
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Estão repetindo discursos de chefes
(MC): Sem dúvida. Nós damos demasiada importância ao que é político e, muitas vezes, de forma injusta, porque vejo, muitas vezes, 90% dos jornais são ocupados por aquilo que os políticos dizem. Esses políticos não têm opinião nenhuma, é tudo vazio, se for a ler o que escrevem, verá que não estão a produzir nenhuma ideia nova, não são capazes de se questionar a si mesmo, não têm a humildade de pensar que podem estar errados e que precisam escutar os outros. Na sua maioria, são papagaios, estão repetindo discursos dos chefes, qualquer que seja o seu chefe. Portanto, acho que este é um grande empobrecimento do espaço da comunicação do nosso país. Alguns jornais converteram-se em alugadores de espaço a metro e tornaram-se totalmente ilegíveis.
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percebe que tem uma história. As histórias partem de busca para compensar uma carência. (NM): Muitas vezes no exterior elogiou a passividade e generosidade dos moçambicanos, mas, ao mesmo tempo, temos uma certa cultura de violência, concorda? (MC): A passividade não elogiei. A generosidade sim. Mas eu defendo que não existe um povo que não seja pacífico. Mesmo entre nós criámos clichés, alguns simpáticos, outros não. Dizemos, por exemplo que: “Inhambane é terra de boa gente”, como se não houve outras terras e gentes que não fossem igualmente generosas. O importante aqui é perceber que não somos o que somos por uma qualquer essência biológica. É a História que nos fabrica de uma maneira ou de outra. Você tornouse no que é hoje por causa da sua história em particular. (NM): Levando isso para vertente política, sou levado a acreditar que somos intolerantes ou violentos… (MC): Exactamente. O povo moçambicano foi confrontado com uma violência histórica. Vamos herdando conflitos que não foram totalmente
resolvidos. Alguns desses conflitos resultam de ganâncias de pequenos grupos e são obras de manipulação. O que está a acontecer agora é uma obra de manipulação política. (NM): Há um certo fracasso que assenta no facto dos nossos representantes políticos não nos conseguirem devolver a paz. O que a sociedade pode fazer para devolver a tranquilidade sem interferência política? (MC): A sociedade já está fazer. Só que há um apelo que tem que ser transformado numa coisa mais concreta. É importante que a sociedade civil seja crítica aos dois lados duma maneira balanceada. Não há quem não diga que não quer paz. Mesmo quem está fazer a guerra diz que quer paz. Esse desejo de paz implica que ambos os beligerantes sejam capazes de rever os seus próprios pressupostos. Todos nós temos dificuldade em admitir os próprios erros. Isso é humano e normal. Mas não ajuda. Porque se trata, afinal, de conquistar confiança no outro lado. Quando se convida alguém para vir dialogar, há que receber esse outro com respeito e dignidade. Essa foi uma lição que o país aprendeu nas negociações de 1992. E se há lição que não pode ser esquecida é essa: que somos capazes de construir a paz.
MESA
LITERÁRIA CENTRO CULTURAL
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BRASIL-MOÇAMBIQUE
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TODAS QUARTAS
17HORAS
ORGANIZAÇÃO
Por um Moçambique Literário
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“Os ‘morgueiros’ criaram uma República dentro da morgue”
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ntre choros e lágrimas caminhamos, quase sempre e senão sempre, para o inevitável: a morte. É sobre este trilho que trazemos esta semana o dramaturgo Dadivo José para uma viagem sobre o mundo teatral. Fazemos uma passeata pela peça “Lá Na Morgue” e, nesse itinerário, submergimos para o mundo com o personagem Joaquim da Silva, despromovido do cargo de chefe do armazém de medicamentos, no Ministério da Saúde, para administrador da morgue. Um homem que mantém relações sexuais com cadáveres e vende água dos mortos para ladrões, o que, invariavelmente, indigna a polícia. Não por o mesmo (Joaquim da Silva) estimular e patrocinar o crime, mas porque os polícias perdem o dinheiro de aluguer de armas para os “amigos do alheio”. Da Silva não pára com as suas incursões: “bola” até parte de corpos para mortos incompletos
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Literatas (LT): Qual é a relação que se estabelece entre a vida e a morte?
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Dadivo José (DJ): Há uma relação directa como a complementaridade do final do começo de um ciclo e final de outro. Olhando para a dramaturgia africana, tendo sido ela durante o período pré-colonial e até colonial caracterizada por uma forte inspiração ritualista,
não há como fugir da morte e celebração da vida nas criações teatrais. A maneira como a morte é tratada, os medos, mitos e receios acabam sempre criando espaço para vários debates que constituem material importante para a dramatização. LT: Esta temática da morte é sempre rebuscada nas suas abordagens, sobretudo na
peça “ Lá Na Morgue”. Por que banalizar a morte? DJ: Na verdade, a peça “Lá Na Morgue” não banaliza a morte, a peça levanta todas as questões inerentes ao tratamento pouco adequado aos mortos. A questão da morte apenas serve de pretexto para se criticar os serviços de saúde do país. Os trabalhadores da morgue não têm respeito pelos mortos, mas
TEATRO
NÉLIO NHAMPOSSE
também não são respeitados pelos familiares dos mortos. Eles divertem-se fazendo sexo com os cadáveres, criando uma República dentro da morgue. Quando trabalho com a morte, deixo-me inspirar por todas as percepções que as pessoas têm em volta da morte. É também um convite para as pessoas que têm reservas à volta do assunto, para que possam encarar o assunto sem fatalismos LT: Joaquim da Silva é despromovido do cargo de chefe do armazém de medicamentos, no Ministério da Saúde, para as funções de administrador da morgue e é a sua personagem que dessacraliza a morte, chegando ao extremo de manter relações sexuais com cadáveres. Que paralelismo se estabelece entre o actual comportamento da sociedade e a peça?
LT: Nunca se assumiu como músico, no entanto, canta e tem um disco engavetado. Porquê?
LT: A morgue é um mistério na nossa sociedade e existe a ideia de que os “morgueiros” vendem água com a qual lavam cadáveres para os ladrões. Pode-nos falar desse episódio?
DJ: Acredito que ainda não tenha chegado a altura para deixar a vergonha do lado e mostrar ao público o tal disco. Por outro lado, o teatro, que é a minha paixão, ocupa-me por muito tempo.
DJ: Na verdade é mais uma crença popular, segundo a qual os “morgueiros” vendem água para os ladrões. Essa ideia de se acreditar que a água adormece as pessoas foi muito difundida em épocas de grandes assaltos, em circunstâncias estranhas. A questão é: vendemos a água e patrocinamos os assaltos ou paramos? Não resolvemos nada deitando fora a água, só perdemos dinheiro. Na verdade, os polícias só intervêm porque também perdem dinheiro de aluguer de armas para os assassinos. Isto é apenas uma brincadeira da peça para nos fazer pensar na ploriferação de armas de fogo nas mãos de assassinos. De onde vem?
LT: Foi docente de História no ensino secundário, director do curso de Teatro e, actualmente, lecciona na ECA-UEM. Como olha para o nosso actual sistema de educação? DJ: É um bocadinho complicado avaliar o sistema de educação, principalmente por fazer parte do sistema. Às vezes acreditamos que fazemos o melhor, mas a educação é algo complexa, com várias interligações. De todas as maneiras, sinto que no dia que se resolverem os problemas de infra-estruturas e motivacionais dos professores e o envolvimento dos encarregados de educação,
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DJ: Infelizmente, são coisas que a gente ouve que acontecem na morgue. A partir do momento que existem essas falácias, ficamos com a ideia de que é sempre bom fazer alguma coisa para provocar uma reflexão na sociedade. O exemplo da morgue é apenas mais um de tantos que poderíamos pegar para mostrar que é preciso se lutar na rebusca de valores. Coisas que nunca imaginávamos que fossem acontecer neste nosso belo Moçambique acontecem com uma naturalidade arrepiante.
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teremos um sistema que agrade a todos sob ponto de vista de resultados pedagógicos e assimilação dos valores da identidade e o saber-estar. LT: Como dramaturgo, o que se pode fazer a nível do Ministério da Cultura e Turismo para estimular a nossa indústria cultural, se é que a temos… DJ: Acredito que precisamos de um pensamento de artes como negócio, assumindo que isso só é possível onde não haja medo em investimentos para termos salas de espectáculo atraentes, media comprometida com a promoção da imagem dos seus artistas, bem como uma política de incentivo à massificação de gosto para o que é local.
PERFIL Dadivo José começou a fazer teatro a 21 de Março de 1992. Na altura, pouco percebia de artes dramáticas – algo que se tornou a sua actividade profissional. A sua relação com o teatro começou no Grupo Cultural Voz Verde, uma colectividade que desenvolvia várias actividades artístico-culturais, incluindo o canto, a dança e a música. Dadivo José é docente na Escola de Comunicação e Arte (ECA-UEM), onde forma actores. Fundou a grupo cultural Mahamba e, ao longo de mais de duas décadas, colaborou com vários grupos culturais como, por exemplo, o Mutumbela Gogo, o Mbeu, o Luarte, o Xindiro, o Ntiyiso, o Ximbitana, o GTO, a Casa Velha, entre outros.
O ADEUS DE RAFO DIAZ:
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ra uma vez… um peruano chamado Rafo Diaz, que chegou em Moçambique há oito anos, inseriu-se no movimento cultural do país e deu-se bem na cultura de contador histórias da terra que só conheceu quando chegou. Parece ficção? Não, é real e esse homem existe, só que está de partida…
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Quando Rafo chegou a Moçambique, em 2008, talvez não fosse para ficar muito tempo. Do interior da viatura que o transportava, um rapaz diz-lhe: “Rafo, olha ali fora, é muito parecido com a tua terra”. Era Maputo. Ficava para trás uma história de vida nos Camarões, onde passara algum tempo depois de ter abandonado Peru, com a sua esposa, onde nasceu, cresceu e formou-se. Não se sabe ao certo se foi por influência do seu primogénito, mas Rafo logo convenceu-se que Maputo não é, de perto, distante de Peru. “Tentei ver com os olhos do
meu filho a cidade. As avenidas são interessantes, as infra-estruturas das casas são pareci-
das. Acabei relacionando com a minha cidade. A arquitectura tem uma grande influência
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EDUADO QUIVE
portuguesa. Digamos que a infra-estrutura da minha cidade natal é muito parecida com Maputo, porque os portugueses desenharam-na. As casas antigas têm toda a uma aparência igual com de Maputo. Acho que senti-me voltando para casa.” Viveu nesta terra e fez a vida, entre contar histórias oralmente e por escrito, e outras formas de fazer, sobrevivendo de conflito a conflito entre personagens encruzilhadas. Rafo é um eterno dependente e refém das inverdades que conta, emocionando desde crianças e aventurando os adultos. Este peruano é uma maldição, conta que conta e sempre aumenta um ponto, como diz o ditado (quem conta um conto aumenta um ponto!). Um homem que vive contando histórias e outros hobbies com as artes parece impossível em Maputo. São poucos que poderão se gabar de tal proeza. Afinal qual é o valor de tudo isto, da arte, portanto? Não se bateu para responder: “sem artistas, a humanidade teria se matado entre si”. E mesmo passando “tanto” tempo em que se instalou em Maputo, não romantiza, “Não é fácil mudar de país, tentar realizar projectos pessoais num contexto diferente, onde você mesmo é um desconhecido”, diz. Rafo saiu das margens do rio Amazonas. Esteve obstinado a adorar a natureza, as plantas, os animais e o arco-íris. Estava, antes de mais, destinado a representar em tudo que faz na sua vida. Afinal, entre o mar e a terra há muitas histórias por contar. Das aventuras dos marinheiros e pescadores às nuances dos caçadores e de animais que há muito tempo, no tempo em que falavam e se encantavam pelas belas jovens. Toda a sua vida gira em torno das mitologias e ele agradece, tudo isso se tornou o roteiro da sua epistemologia. Tudo começa na rua…
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“Quando chego numa cidade, a primeira coisa que tento descobrir é uma biblioteca. Quais são os autores, as literaturas, as histórias, tudo isso preciso saber e conhecer. E nesse acto de pesquisar, já tinha feito algo nos Camarões, já tinha histórias de lá. Ao chegar a Moçambique conheci o universo das histórias e pesquisas do professor Lourenço do Rosário e encantei-me
de imediato.” Há sempre um princípio em tudo. Para Rafo, a rua foi o começo. A Rua de Arte para falar sem ilusionismos. Chegado a Maputo, o actor, pintor e contador de histórias foi apresentado por uma conhecida do Peru, ao produtor cultural Nuno Maia, organizador, na altura, da Feira Internacional do Livro de Maputo, entre outros eventos e ainda geria, com Rui Pinto, o espaço artístico Rua de Arte. Essa foi a oportunidade de Rafo. Na primeira noite, a casa estava cheia, contou as histórias com a representação irreverente. Convenceu os espectadores que pouco se preocuparam com o “portunhol” (a junção de português e espanhol). E voltaram para a segunda vez com mais e mais convidados. O espaço, que era um bar, já reclamava lotação abusiva, então era chegado o momento de dar outros saltos para lugares mais amplos. Também não vacilou. “Depois comecei a incorporar a música às histórias. Passaram a ser contos musicados e o público encheu ainda mais. A sorte de ter conhecido uma pessoa que me apresenta alguém que me brinda com a oportunidade de me apresentar em público foi mesmo boa”, reconhece Rafo, que concluiu a partir daí que era o personagem de uma nova história da sua vida, na cidade em que a intimidade o fez lembrar as suas tradições. Rafo rende-se às histórias moçambicanas: “acho que esse nível de universo de tradição oral não tem nada que invejar nem às lendas, às mitologias gregas, nem romanas, nenhuma mitologia do mundo.” E arrasa nos elogios. “A história da cobra da água da Zambézia, por exemplo, é mágica e espectacular como mitologia que pode ser comparada a qualquer outra do mundo. E assim como ela tem muitas histórias que são parte da tradição moçambicana e que eu desde o meu refúgio aqui tento trabalhar nelas para partilhar com o público.” E inspirado nessas histórias que de longe se comparam com as aventuras das mitologias das margens do Amazonas, no Peru, surgiram os livros o “Mar de Maputo” e “Menina Leão” E mesmo na hora do adeus a Maputo, Rafo deixa a lição que aprendeu da arte. “Sem os artistas, o resto da humanidade há muito tempo que se teria matado entre si.”
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ARTES PLÁSTICAS MATIANGOLA
“Casas da cultura coxeiam”
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om tinta e mãos ecléticas, Tsenane tece e se tece no mundo ao seu redor. Sonha e faz sonhar. Voa e faz voar. E, nisso, transforma-se num eterno viajante do tempo. Um garimpeiro do barro.
O barro, essa areia argilosa que dá vida e alimenta sonhos e partidas; regressos e idas, ganha forma e verbo e configura uma tecelagem que inebriada quem pela estética se deixa levar. Talvez Ferreira Gullar saiba para onde nos leva este homem com a sua moça de neve branca. A palavra e o verso ganham eco na sua pintura e transformam-se na imagem flutuante do tempo. O homem, o centro
do furacão, celebra a sua pintura e a odisseia ética e moral, que o digam Cristo e tantos sodomitas - Da Vinci entre outros - que soçobraram, continuam sendo os princípios inatingíveis que busca representar. Ou talvez tenhamos que construir uma nau, ao estilo Noé, e submergirmos a fundo para bebermos do lodo e dali descortinarmos todo o enigma dos dedos que dedilham o barro. Talvez nem isso e nem
Nada. Ou talvez simplesmente contemplemos, apenas isso. Viagens à parte. Tsenane olha para a escola como um pináculo da procura de algo intangível, esse motor de busca que nos move e transforma em eternos caminhantes de devaneios solitários: o conhecimento. E as artes, diga-se, são esse infinito mar de quesitos e questionamentos. Simplesmente, algo e inconcluso – assim diria Paulo Freire – e
ARTES PLÁSTICAS MATIANGOLA inconcluso da sua inconclusão, daí as guerras, as intrigas e lutas. Para uns, por causa de uns ossitos de patos, para outros, por causa de gargantas afiadas para conquistar o poder. Mas as artes são inconclusas nas suas vastas águas, na estética e, sobretudo, na viagem que permitem a quem a elas se deixa levar com o vinho, a poesia e o sexo: a vida. E sobre a guerra, Tsenane é peremptório: “penso que não é ético ainda estarem nessa situação depois de vários encontros entre o Governo e a Renamo. O povo está a perder confiança e está de joelhos. E o curioso é que por detrás de um alegado diálogo entre as partes há um ataque a uma coluna, base ou escola”. Haja Santa Paciência. Para Lourenço Abner Tsenane, de Hulene B, “as casas de cultura institucionalizaram-se, são do Estado e já imagina o que quero dizer. O orçamento é direccionado talvez para um funcion-
amento administrativo da casa e não para projectos de arte e cultura, estão a coxear”, ironiza. Fortemente influenciado por Miguel Ângelo, Rembrandt, Zandamela, Celestino Mudaulane e Victor Sousa, Tsenane diz que o óleo sobre tela e cerâmica, batik, bronze, desenho a lápis e tinta-da-china, artes gráficas, mosaico, relevo com cimento em murais e outras várias técnicas inseridas nas artes visuais são o móbil que alimenta o sonho: a partida e o regresso – a arte que se esculpi nas suas veias. E nisso, constata: “Para mim, a arte representa realidade (…) e, por isso, sou parte dela e ela de mim”. De resto, lembre-se, Tsenane começou a sua vida artística em 1994, aprendendo a técnica de pintura na ADPP - Cidadela das crianças em Maputo - sob tutela de Fernando Mbeve, Alberto Macie (Vatanha) e Guilherme Emílio.
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CRÍTICA LITERÁRIA EDMAR MONTEIRO FILHO
Um romance em verdadeira polifonia
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ito novamente “Memória e sociedade”, de Eclea Bosi, para registrar um episódio narrado pelo historiador Heródoto e reproduzido pela autora em seu livro. O rei egípcio Psamênito foi vencido em batalha e caiu prisioneiro do rei dos persas, Câmbises; este, decidiu humilhar o adversário, colocando-o na rua para assistir ao desfile dos cativos. Psamênito viu passar sua filha, vestida como escrava, mas, ao contrário do povo egípcio, que lastimava a sorte da princesa, permaneceu impassível. Em seguida, o rei prisioneiro viu seu filho arrastado e maltratado pelos soldados persas, mas, ainda assim, não manifestou qualquer sinal de pesar. Enfim, quando desfilou diante dele um de seus servos, homem velho e pobre, Psamênito prostrou-se e chorou, demonstrando sua profunda dor. A narrativa de Heródoto encerra-se aí, deixando no ar a pergunta: por que o rei chorou? Talvez a passagem do servo tenha atingido o limite do seu autocontrole, fazendo jorrar a emoção contida a custo. Talvez, ao se deparar com o velho servo, fiel à sua casa por gerações, o rei tenha recordado os momentos de sua vida e se deixado levar pelas emoções. Talvez, ainda, o servo fiel fosse a última esperança do rei para tramar uma revolta que libertasse sua família. Mas, quem poderá afirmar quais os verdadeiros motivos que levaram o rei às lágrimas? A narrativa de Heródoto segue viva até hoje porque imaginamos a cena, buscando compreendê-la em toda a sua grandeza e tragicidade. Vale repeti-la, recontá-la, porque seu conteúdo encerra lições que buscamos cada qual à sua maneira. Como afirma Ecléa Bosi, citando Walter Benjamin, sua força está concentrada como numa semente que expande seus limites por tempo indefinido, transmitindo suas verdades pelo exemplo e pelo conselho. O romance moderno é o retrato de tempos em que desaparece esse processo. O herói romanesco já não se expressa para nos ensinar nada porque sua desorientação é exemplar em si mesma. Na época da informação, de que vale buscar a sabedoria se tudo é relativo?
Eltânia, entretanto, não se limita simplesmente a compor o retrato duro de uma infância e juventude feridas pelas mãos ásperas da mãe, através das lembranças do filho que retorna. Em meio ao livro, surge como contraponto a voz de Miguel, o irmão mais novo, através da qual o leitor passa a rever os mesmos episódios já narrados, agora sob nova perspectiva. Assim, coloca-se em cheque a versão inicial acerca das preferências pessoais, da figura da mãe rigorosa e dos episódios que marcaram fundamente a vida em família. E, não bastasse esse ponto de vista alternativo e conflitante, a autora também não se furta a deixar transparecer em alguns momentos sua própria voz, entremeada à narrativa. O que daí resulta é a potência de um romance em verdadeira polifonia: as ideais não se constroem exteriormente à narrativa e a ela são impostas, mas discutem entre si na medida em que os personagens se contradizem, a autora implícita lança suas impressões e o leitor interfere com suas escolhas pessoais. Em “Para fugir dos vivos”, o sentimento do inconcluso nos faz sentir parte dessas lembranças, dessa história de vidas tão comuns, mas retratadas em toda a sua peculiaridade e seus contrastes. Ao final da leitura, seguimos buscando a resolução do enigma: por que motivo chorou o rei?
(*) Escritor, crítico e ensaísta premiado, é doutorando em Teoria e História Literária pela Unicamp e autor, dentre outros, de “Halma úmida” (1997), “As vésperas do incêndio” (2000), “Fita azul” (Ed. Babel, 2010) e “Um rei condenado à morte” (Contos, Ed. Penalux, 2015), reside em Amparo (SP), Brasil.
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A ausência de certezas, o vazio das lições que o passado sonega, eis o substrato em que se desenrola “Para fugir dos vivos”, o belo romance escrito por Eltânia André. Ausente de sua cidade natal desde a adolescência, um homem recebe um chamado, dando
conta de que sua mãe caiu muito doente. Tentando evitar a penosa obrigação de retornar e reencontrar a mãe, aciona o irmão, a cunhada: sem sucesso. Assim, contrariado, retoma o caminho que já não trilhava há muito. Ao longo da jornada do personagem, o leitor vai conhecendo o passado desse homem tocado pela tristeza, seus rancores, desilusões e mágoas que o fizeram partir para sempre, tempos após a morte do melhor amigo e do pai. A memória do personagem se desenrola no fio da estrada. Sua vida solitária e seu egoísmo buscam justificar-se como consequência das impressões causadas pelo exemplo da relação dos pais ou pela vida pequena numa cidade do interior.
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CRÍTICA LITERÁRIA ÁLVARO FAUSTO TARUMA
UM ROTEIRO PARA O SONHO: PARA UMA CARTOGRAFIA DA NOITE
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maginemos um homem, sentado, olhando para dentro de si, ou melhor, imaginemos uma criança trancada num quarto, sozinha, com a escuridão latejando pelas paredes afora. Imaginemos esses dois seres; ao primeiro coloquemos, diante de si, a angústia, as mágoas alojadas algures no peito, as agruras que se foram tecendo com o tempo, a saudade de um instante impreciso na memória, o pássaro vagaroso da nostalgia ou a vontade de alcançar o infinito. Ao segundo decifremos-lhe o medo, a solidão, a insegurança, um choro redesenhando as feições do seu rosto, o imponderável clamor que o atravessa o espaço vago da garganta e desfaz-se nos lábios num grito nunca antes sentido. Imaginemos um país sem rumo, um país com frio e sangue, um país com seca e chuva, um país cujos turistas passeiam em acampamentos de fome. Imaginemos o inimaginável e questionemos o inquestionável: gente com armas ama ou arma a paz? Agora, o que diremos desta criança, deste homem, deste país?
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Diremos: todos estão numa encruzilhada e só o sonho os pode libertar. Somente o sonho pode desapertar o nó no qual se prendem os seus destinos. Somente o sonho os fará acreditar na possibilidade dos seus desígnios, afinal só sonhando é que nos mantemos vivos, já advertira, amiúde, o poeta. É por isso que o sonho se faz necessário; pois o sonho é a bússola almejada para esta navegação rente à noite e seus abismos; só assim hastearão a vela pelo mar da escuridão que os atravessa. Só com o sonho viveremos num país sem escoltas para a nossa consciência, só com o sonho viveremos num país onde os hospitais sirvam para curar e não para matar, só com o sonho viveremos num país onde o pão não seja sonho, só com o sonho viveremos num país onde a polícia sirva para proteger não para roubar, só sonhando viveremos num país mais digno, mais justo, mais igualitário, só sonhando...
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Mas atenção: sonhar alude a mudanças, a uma caminhada, e a caminhada alude a um mapa, a uma cartografia. Somente com esse mapa preciso podemos alcançar aonde nos levam os nossos passos, e esse mapa reside aqui no coração; dentro deste livro eu abro o meu para que o vistam com os vossos olhos, para que sintam o seu pulsar e juntos caminhemos à busca do bem supremo: o amor. Somente com o amor podemos sonhar um país de todos, o país que somos, o país que temos, o país que queremos,
um país onde nos reconheçamos todos como irmãos, irmãos na paz duradoura; a paz que emana no canto de uma ave, a paz que emana na rebentação não das minas, não de morteiros e bazukas, não de Kalashnikovs a cagarem munições de sangue mas da rebentação das ondas, do azul do mar. Somente com o amor podemos alcançar o mais longínquo espaço, a viagem mais funda: dentro de nós, pois depois de revisitado aqui, esta criança olhará o escuro com fortaleza e o homem alumiará o seu interior, porque o sonho convoca a coragem, porque o sonho convoca a esperança, porque um pai que não sonha seus filhos não vive, porque um país que não sonha seu povo está no mais profundo sono – e quem diz sono diz o mais puro esquecimento, a mais desprezível ignorância. Minhas senhoras e meus senhores, neste momento em que vos falo há um poeta emboscado na Estrada Nacional número 1, há um poeta emboscado em Muxúnguè, em Murupula, em Zove... há um poeta prestes a morrer; não leva outras armas senão simples versos, de onde extraio esta passagem: mandaram-me morrer aqui, em defesa do nada, longe da minha família porque só eles e suas famílias merecem gozar o luxo das suas vidas! Minhas senhoras e meus senhores, pergunto-vos: um país assim pode sonhar? Um país que mata os seus poetas, gente mais humilde que existe? Gente sem nada senão uma caneta, um tecto qualquer onde abrigar a ilusão? Não, meus caros, um país destes não sonha, a não ser que sonhe apenas mais um carro importado, mais uma casa de luxo, um ar-condicionado no gabinete para refrescar a sua preguiça, fora isso o país adormece, e um país adormecido é um país que não avança. Meus irmãos, camaradas das lutas antigas e das novas, irmãos das trincheiras lembradas e das esquecidas; sonhemos: Caso contrário continuaremos sendo aquele homem e aquela criança que não sabem o que é a esperança, porque para eles não passa de uma palavra sem sumo. Senhoras e senhores: este país precisa de pessoas que o sonhem, pessoas que o possam ver para além das sombras, das guerras, da nudez e da fome; pessoas que o possam ver para além dos tumultos urbanos, da miséria ambulante pelas avenidas, dos bandidos armados e dos armados em bandidos; pessoas que o possam vestir de luz...Com amor...Por amor... E no amor... é por isso que hoje vos tenho esta proposta: PARA UMA CARTOGRAFIA DA NOITE. Sonhemos!
POESIA
KUPHALUXA
DÍvida A poesia me foi dada De mãos dadas Como aos pobres foi dada De mãos dadas Uma dívida.
Resta-me escrever Sem prazer Ser poeta Escravizado pela palavra
Congelados pelas lágrimas do sofrimento.
Enchem-se os peitos de orgulho, Encantam-se certezas imaginárias do conforto, Pois, das suas mãos calejadas pelo cabo da enxada Enrugada pelo tempo, Alimentam um povo ingrato e inocente, Que os chamam de” machambeiros”.
machambeiros”.
Nas madrugadas nevoiradas, Vejo a alegria de um povo trabalhador que, Com dor, desconhece a linguagem das canetas Rabiscados em papel de paz. Patuxandre76
Minha Filosofia
Lucas Muaga O seu orgulho não falece jamais, pois, O machambeiro
São aquela mãos com tacto perdido,
Celebro o silêncio Dentro do escuro Escuto minha nostalgia
Que seguram o estômago de uma nação. Minha filosofia
Nas madrugadas nevoiradas, Oiço pés enchinelados e botas galopantes De homens, mulheres e jovens que
É aquele corpo enrolado em trapos envelhecidos Pela bravura da mata, que não descansa.
Nas caminhadas apressadas, Vão em busca do que o estômago exige.
Oiço sons descartáveis de” xipadoras” vazias Caminhando passos apressados e vagarosos, Que num disfarce alegre, não desistem do
Direitos Reservados
Onde caminho mil vezes Sem o tocar
E se filosofar São aqueles pés rasgados pelo frio quente da terra Enlamada no meios das” marachas”, Que fortalecem os cérebros dos engomadinhos.
For a arte da busca pelo saber Escolho filosofar em sua boca Para descobrir de quantos tons És composto. Pré destinada
Desconhecidos da linguagem verde do campo, Continuam lhes chamando “os
literatas
Chicote forte da brisa gelada nos seus rostos
É teu corpo
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POESIA
KUPHALUXA
Flutuando nos pensamentos
Preferia ser criança Para não ouvir disparates… Para não ouvir gritos de ameaça Oriundos das quatro paredes. Ser criança para viver fantasias, Esquecer a dor de ser amargurado, Viver sonhos e esbanjar alegrias… Afogar a raiva de ser maltratado.
Ser criança para não ser odiado, Não ser condenado A contar mentiras.
Quando eu morrer, cantai canção de amor Com letras solitárias do alfabeto Pra que as palavras livrem deste preto Toda a vileza, tédio e rancor. Pintai-me uma pintura incolor. No fundo, desenhai-me um esqueleto Que vagueia risonho mais inquieto Da injustiça dos homens sem pudor. Cantores e pintores da cidade Com violas e pincéis ser-me-eis arcanjos Que me levarão para as divindades. Quando o tempo chegar, irei sem arranjos. Partirei deste mundo sem saudades Deixarei fuckyoupra muitos gajos. Tsemba
Ser criança para mostrar a verdade Da verdadeira felicidade E esquecer a dor das palmatórias.
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Manuel Carlos Chionga
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Direitos Reservados
Pedro Solta a árvore seus cabelos Em seus braços balouçam Lembranças do teu rosto Estilhaços de lua da tua boca Me fazem crer no universo Do teu olhar. Carla Júlia
POESIA
KUPHALUXA
Cantiga para não morrer
País de mim
Soneto de Fidelidade
Quando você for se embora,
O peso da vida!
moça branca como a neve,
Gostava de senti-lo à tua maneira
De tudo ao meu amor serei atento
me leve.
e ouvi-la crescer dentro de mim, em carne viva,
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto
Se acaso você não possa
não queria somente
me carregar pela mão,
rasgar-te a ferida,
Dele se encante mais meu pensamento.
menina branca de neve,
não queria apenas esta vocação paciente
Quero vivê-lo em cada vão momento
do lavrador,
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
me leve no coração.
Se no coração não possa por acaso me levar, moça de sonho e de neve, me leve no seu lembrar.
mas, também, a da terra e que é a tua Assume o amor como um ofício onde tens que te esmerar, repete-o até à perfeição,
E se aí também não possa
repete-o quantas vezes for preciso
por tanta coisa que leve
até dentro dele tudo durar
já viva em seu pensamento,
e ter sentido
menina branca de neve,
Deixa nele crescer o sol
me leve no esquecimento.
até tarde,
Ferreira Gullar
deixa-o ser a asa da imaginação, a casa da concórdia, só nunca deixes que sobre para não ser memória.
E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure.
Vinicius de Moraes
Eduardo White
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MATIANGOLA
LÍRICAS
MATIANGOLA
“A miopia enraizou-se no nosso país”
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uando paramos e contemplamos, vemos a palavra ganhar forma e vida. Vemos o silêncio solidificar-se e, mais a fundo, vemos, novamente, a palavra metamorfosear-se. Deusa d’ África é essa poetisa que, a cada vez que mergulha no Limpopo, rejuvenesce e fica ali, no Xai-Xai, imponente. Deusa diz que “o que há em excesso nesta nação é um médico que só conhece a injecção e a aspirina, nunca ouviu falar de Xingomane; um físico que só conhece as leis de Newton e não sabe que importância têm as línguas moçambicanas”.
Literatas (LT): Comecemos par ai, ainda existem Deusas, num país onde a sociedade está formatada para não sonhar? Deusa de África (DA): Nenhuma nação formata a sua sociedade para que não sonhe, porque os sonhos, à priori, são o resultado das nossas ideologias e nossos escritos. Não há nenhum ser humano que não tenha este direito, o sonho é a casa onde habitamos em nossas meditações e intronspecções, onde ninguém tem o direito de interferir, salvo se o anuirmos. Se os sonhos fossem por alguém monitorados, não existiríam no mundo os fascistas e nazistas, portanto, sejam eles benignos ou malévolos são a reflexão da nossa personalidade. Sonhar é ter fé em si mesmo, é descobrir o narcisismo – a beleza da sua imagem, não há espelho nem relâmpago que destrua o nosso reflexo. Mas, há que referenciar uma virtude que poucos têm, a de saber o que dizer e não dizer tudo o que se pensa como tem acontecido. O cérebro humano é como o vento, arrasta tudo o que encontra, contudo, pouco do que se arrasta é útil.
LT: “Voz das minhas Entranhas”. Que vozes e entranhas se descortinam neste livro? DA: Debruçam-se sobre o livro, as vozes duma sociedade inteira, sem género, singram as suas ansiedades e sonhos, abrem as suas entranhas para comungar com os outros a sua visão. É a voz de uma mulher, dum homem, dum escritor (a) inconformado e duma nação que se fazem homem através da sua irreverência, índole e sensatez. É a voz de um homem que dispondo de integridade, honestidade e irascibilidade diz não às injustiças, escravidão, e a outros comportamentos vilipendiosos. É a voz do mosquito que evidencia que também tem veneno por cravar em outros
hospedeiros.
LT: No poema “Hoje apetece-me”, a palavra ganha significação, vida e ama, navegando sobre as sumptuosidades do corpo, ganhando a erecção com o dedilhar de uma musa e, ai, o erotismo sobressai. Que significados e sentidos se podem descodificar deste poema? DA: “Hoje Apetece-me” não é um poema, é a poesia abstracta oriunda do inconsciente, é a incorporação e possessão duma mulher pelo sentimento de amor e desejo de que também dispõe, porque também é feita de carne e osso, sem pudor do conservadorismo em que vivemos, e inebria-se por um sentimento genuíno e confessa perante a sociedade que também sabe acalentar o homem. Nesta poesia, quem a escreve torna-se um instrumento do qual a poesia se faz homem e se tece com naturalidade sem esforço de dizer imbróglios difíceis de se entender nem do que a sociedade pode imbuir, apenas deixa a voz das entranhas confessar que – “hoje apetece-me”.... LT: “Malditos crocodilos/que atacam outros crocodilos, irmãos”. Existe a ideia da cobardia, da traição, neste texto. Há que irmãos se refere?
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A existência de divindades é incondicional, não há ser vivo que viva sem ancestrais e protectores, porém a existência das Deusas é o sinónimo de ainda estarmos vivos, respirarmos o ar, contemplarmos
o sol e a lua, entre todos os outros elementos da natureza e ter fé na procriação e no sucesso irrefutável das nossas acções que são caracterizadas pelos sonhos que idealizamos, com a euforia de aceitarmos que ontem houve alguém como nós e que sonhara, mesmo não tendo realizado na plenitude as suas acções, entretanto, houve necessidade de existir outro alguém, que somos nós, com mais virilidade que os primeiros, para atingir a perfeicção. Os Deuses são o nosso sujeito (o nosso eu) - a esperança do que há por vir...
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MATIANGOLA
DA: Os que dormem connosco na mesma cama, e apunhalam-nos durante o crepúsculo. São tantos os que exibem seu esmalte, nos abraçam, e na sua identificação exibem o mesmo sobrenome que nós porque dizem ser nossos, mas nas entranhas deita-se a verdade, ódio e intolerância, que neles se oculta, deixando reinar a pusilanimidade, só para comerem do nosso pão e beberem do nosso copo, enquanto do que somos e o que fazemos nada entendem. Deixam as dissonâncias cognitivas construirem seu castelo em suas vidas, onde se abre a porta para que o medo e outros monstros habitem. Dizem ser a paz mesmo promovendo a guerra, só para matar feras inocentes.
LT: Como é que os crocodilos e peixes podem nadar no pão? DA: Pelo pão vivem e morrem os homens, só não se lembram que o pão sempre existirá, com ou sem, o homem...Por prepotência os homens deitam o pão que devia ser servido a quem necessita, também se corrompem tirando o pão do outro sem se importar com quem o tem em falta, não para o consumir, não, apenas para o ter em sua posse e satisfazer sua presunção. LT: Em “Xigubo” de José Craveirinha denunciam-se as masmorras do sistema colonial português e o poema “Escravatura”, de Deusa d’ Africa, ressuscita esse velho
fantasma, denunciando um novo colonialismo, com novas roupagens, encapuzado por FMI, Banco Mundial, China, entre outros player makers. DA: Vejo a miopia enraizandose na nossa sociedade, onde nos limitamos a viver de esmolas doadas pelo Sistema Financeiro da diáspora até para comer pão. A colonização é feita de diversas formas, como através da monopolização do mercado, que inibe a participação de outros agentes económicos, a competição no uso de sistemas de comunicação avançados, onde os pioneiros se tornam donos do mundo explorando sociedades através da sua sobreposição sobre os valores de outros povos: é a neocolonização, onde para produzir
LÍRICAS
MATIANGOLA
arroz dependemos de outros povos que nos prestam serviços em contrapartida de nos tomar a terra durante anos, ou meramente exportar o produto para o seu país.
LT: Neste caso, o que significaria liberdade no nosso actual contexto político, social e cultural? DA: a liberdade começa dentro de nós. Não se pode ser livre sem ter paz consigo próprio. No actual contexto político, há liberdade tanto que houve momentos em que só por ligar televisão deparávamos com uma população vilipendiando o Presidente da República. Se não houvesse a televisão não existiria mais. A nivel social e cultural, a liberdade só se limita no território em que começa a religião.
LT: É docente e, recentemente, o Ministro da Educação e Desenvolvimento Humano, num entrevista concedida ao jornal Savana, disse que o futuro de uma criança não se podia qualificar através de números. Como é que olha para estes pronunciamentos, sobretudo tendo em conta que, muitas vezes, os professores são obrigados pelas suas direcções a apresentar números e não qualidade? DA: Enquanto nos preocuparmos com os números nunca formaremos intelectuais em nossa sociedade, mas sim inoperantes. Os jovens não leêm, vivem de trapaceiras, também porque seus pais nunca os apresentaram um livro sequer...
O que me preocupa na educação é formarmos gente sem cidadania, um indivíduo com nível médio é uma aberração sem pudor, escreve asneiras como se também fosse uma asneira. O que há em excesso nesta nação é um médico que só conhece a injecção e a aspirina, nunca ouviu falar de Xingomane, um físico que só conhece as leis de Newton e não sabe que importância tem as línguas moçambicanas, porém falto-nos um médico que seja contribuinte na construção da sua identidade, um historiador que divulgue a história de Moçambique… Se a escola fosse uma estrada teríamos as pontes destruídas e desintegradas da estrada…
LT: Francisco Noa disse que o país nunca tinha tido tanta publicação literária sem qualidade. Como é que vê estes pronunciamentos e, particularmente, que futuro augura para a nova vaga de escritores que emerge? DA: É de pequeno que se torce o pepino. Não é hoje que tem que se questionar a qualidade das publicações, é um exercício que devia ter sido feito à outrora, em que publicar um livro era preciso ter cabelos brancos. Hoje inconformada a juventude, conseguiu perfurar em busca de autonomia e proclamando que a literatura não é uma aldeia restrita para uma oligarquia, mas sim é feita por uma colectividade, que funde o seu gnose e reafirma “ somos donos da literatura Moçambicana”. Em qualquer Estado ou nação, quem garante a continuidade da existência humana é a nova
geração, porque não seria para estes pais e país?! Para evidenciar que a problemática desta qualidade questionada é algo que vem já há anos, quantas referências literárias existem numa multidão que existe? Se isto fosse feito com sensatez e seriedade, existiria um órgão soberano que padronizasse a qualidade do que produzimos. Quantas obras moçambicanas se recomendariam a um jovem potencial escritor moçambicano?! O arquipélago que parece ter sido criado por este vulcão que se chama juventude é apenas a continuidade do que outros montes e oceanos começaram. Não estou a querer defender uma literatura paupérrima, que tem havido, onde as pessoas começam a escrever hoje e publicam dia seguinte, só pela facilidade que tem em publicar um livro, sem nenhuma idoniedade, apenas estou dizendo que não é de hoje a catástrofe é um legado deixado. Por que não se pode encarar com serieade e profissionalismo este ofício?! Por que não pode existir um órgão soberano que promova a poesia ou prosa nas escolas, que produza concursos literários para os jovens, que produza festivais de literatura e faça feiras de livros nos distritos e provincias, para que haja valorização do livro e gosto pela leitura?! Como pode se exigir qualidade numa nação em que só lê o livro quem é escritor?! Onde o professor de língua portuguesa nunca leu um livro inteiro e mal conhece a literatura nacional?! Onde fazer literatura é ser desocupado?!
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LÍRICAS
MATIANGOLA
PERFIL Deusa d’Africa nasceu a 05 de Julho de 1988, na cidade de Xai-Xai. Tem dito poemas desde 1999 e tem-se apresentado em saraus desde 1997, o ano em que se torna membro do Núcleo Literário Xitende. Muitos dos seus poemas, contos, e artigos de crítica literária (assinados
por um heterónimo), porém, encontram-se na imprensa, como é o caso de “Jornal Notícias”, “O País”, “Pirâmide”, “Diário de Moçambique”, em revistas tais como “Xitende” e Varal do Brasil. Foi antologiada em Brasil na Colectânea Veríssimos “O Escritor Diante do Espelho…” editada em 2012 por Alpas XXI, e na Antologia Brasileira “Mil Poemas para Gonçalves Dias” em 2013.
Hoje Apetece-me Hoje apetece-me Pintar os teus lábios, Com a tinta da minha boca, E este pincel nela mergulhado até ela ficar oca. Hoje apetece-me Soletrar em surdina Tudo o quererias ouvir Como o sopro que deu a vida a Adão E ulteriormente tornar-me Tuas vestes Desse corpo despido Pelo meu desejo E os deuses dando-me um ensejo De alcançar a carreira de estilista Só para te vestir Com a tua nudez que almejo.
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Hoje apetece-me Fazer sem cunhas Mas sim, usando minhas unhas na textura da tua tez.
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Co-apresentadora do programa Literário Xiziku Gazence do Xitende, na Rádio Xai-Xai, em 2013, Deusa é co-fundadora do Grupo Cultural que herda o nome do único Núcleo Literário de Xai-Xai, denominado Xitende, onde actualmente é Coordenadora Geral.
Hoje apetece-me Fumar as tuas mágoas E aliviar os pulmões Com um charuto. Hoje apetece-me Ao altar, levar-te, E casar-te Só e só por hoje, Ter a lua-de-mel, E esquecer a acerbidade Desse coração fel Na escolha de homem, cheio de sumptuosidade. Hoje apetece-me Nas tuas entranhas, arquejar Nelas manejar Mergulhar no mar da incerteza, só para te ter.
Deusa de África
PROSA&CONTOS
*SÉRGIO TAVARES
SEMENTE
Q
e dizia: “Nascemos mínimos como a semente, mas há um tanto de vida dentro de nós”, depois apenas o ruído dos barbeiros furando o barro. Por muito tempo, acreditei que era apenas uma brincadeira. Mas quando a realidade tornou isso impossível, preferi portanto sonhar, como se o corpo não mais amanhecesse e dormitasse em lembranças. Para Bárbara, viver era sonhar. Sonhar que o dia não nasceria com o cio da terra precedendo a aurora, o acordar espantado e ruminante, catando, com as unhas encardidas, as sementes para o dever da lavoura. Sonhar com o desaparecimento das ferramentas de furo e da dor, que começava onde dão os joelhos para terminar no ferrão do animal colérico, rasgando as costas de dormir em desespero. Sonhar que não havia nascido com o pé deformado, quase pata, quase garra, sem o andar grotesco sobre a planta e os dedos tortos que atrasavam o plantio, ainda que seu pai dissesse que suas mãos eram boas com as sementes, que traziam as melhores colheitas
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uando eu era criança, meu pai fazia uma brincadeira comigo. Ao fim de um dia de lavoura, um pouco depois de me deitar sobre a esteira de cipó com o corpo dolorido demais para ceder ao sono, ele esticava os punhos fechados sobre meu rosto, propondo um desafio de adivinhação. Era sempre assim. Eu já não precisava desviar os olhos para ver que, encasulado na rede suspensa contra as estrelas que ataviavam as falhas entre as palhas, ele sustentava um sorriso desdentado, quase imperceptível no fundo da barba desgrenhada que mentia a aspereza de seu semblante. Então, só me restava escolher entre uma das opções, mesmo sabendo que ambas estavam corretas. No meio da palma de pele rochosa, descansava uma pequena semente, que era prontamente transferida para a minha miúda mão, servida em concha. Ato contínuo, ele se dobrava sobre o tecido e arranhava o solo, retornando com um punhado de terra, com o qual encobria o grão. Olhava fundo nos meus olhos
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PROSA&CONTOS
*SÉRGIO TAVARES
literatas
e o coronel confiasse. Sonhar que esta confiança aflorasse o amor, no dia em que o coronel surgisse entre os ramos de café e a levasse para viver com ele, cheirando a água limpa e dormindo em cama de lençol de mulher de fino trato. “Bárbara ainda não dorme. Ela não entende porque o coronel deixara de se interessar por ela. Relembra a toda hora de quando o casarão se abria para as festividades. Nessas ocasiões, o coronel era sempre bom com ela, dando presentes e frutas frescas, a tratando com carinho. Ele pedia que ela tirasse os trapos e vestisse roupas novas de mulher, colocando uma colônia doce, que ela gostava. Era o coronel que a ajudava a se despir. Depois nos convidava a sentar no sofá e ele a colocava sobre a ponta do joelho. Servia um licor, perguntava sobre a colheita, sobre o casebre. Enquanto conversávamos, ele acariciava as costas dela por debaixo da malha fina do vestido, como se passasse um unguento, descendo até as coxas. O coronel dizia que ela estava na idade, que logo seria uma mulher, então por que ele deixara de se interessar por ela? Ela sabe cuidar de homem, cuida de mim desde que a mãe se foi. Aprendeu a fazer o que lhe manda, sentar quando lhe manda. Poderia até se deitar com nela. Homens, como o coronel, gostam de se deitar, eu entendo. Então por que não a leva para morar no casarão? Talvez por causa do pé. Homens, como o coronel, não vivem com mulheres com o pé enraizado”. Bárbara rola sobre a esteira e senta-se na terra crua. Os trovões haviam lhe despertado. Por entre as falhas das palhas, gotas gordas despencam, escurecendo o barro. Ao lado, seu pai dorme suspenso na rede. Olha em volta. Penduradas em cordas de sisal, as ferramentas de furo acendiam na frequência dos relâmpagos. Ela se levanta e manca até elas. Pega uma tesoura de ferro e, da saca, um punhado de sementes. Quando cruza a portinhola,
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ouve seu pai dizendo que suas mãos são boas com as sementes e trazem as melhores colheitas, um fantasma que lhe acompanha até a lavoura. Sentase entre os ramos de café curvados pela força do vento, no solo enlameado. Encara por um tempo as sementes que começam a boiar na palma alagada. Mínimas, com um tanto de vida dentro. Feito ela, feito o pai. Bárbara explode no rastro de um trovão. Estoca a terra com a ponta da tesoura, golpeia. Cava violentamente, com a energia que seus braços alcançam, contra a resistência do véu d´água. O coronel confia em suas mãos com as sementes, então por que ele deixara de se interessar por ela? Por que não lhe dá mais roupas de mulher, não lhe beija mais onde seu pai não pode ver, na quentura de onde seus dedos acabou de afundar? Ela fura a terra. Penetra as lâminas com força. Repetidas vezes. Cava a carne, fundo e mais fundo. A profundidade necessária para a irrigação. Bárbara sonha com o fogo. Sonha que o fogo devora a lavoura num avante que alcança o casebre e o casarão. Sonha que tem os pés iguais, perfeitos, mas apenas assiste ao seu pai rodopiar ensandecido com labaredas rasgando-lhe a carne viva. Sonha que o coronel toma-lhe a mão e, juntos, caminham para dentro do casarão em chamas. Bárbara sonha até a terra ceder e o punhado de sementes enterrar-se, a vida. Quando eu era criança, meu pai fazia uma brincadeira comigo, mas eu não me lembro mais.
*Sérgio Tavares nasceu em 1978. É autor de “Queda da própria altura”, finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e “Cavala”, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura. Alguns de seus contos
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ELTÂNIA ANDRÉ (*)
ANA: POESIA QUE NINGUÉM LÊ
Direitos Reservados
de cabeça indeciso, e alguns poemas com tintas desbotadas que ninguém leu. Preferia o tiro, desejei o fim a ter que obedecer novamente. Não, senhor! Não tenho nada a lhe oferecer. O tempo compacto durava menos que supunha. Sem perceber, por hábito, não por pânico, obedeci. Diga sim, mulher, sussurrava uma voz. Reconhecime em seu eco. Diga sim e viva. A vida ou a bolsa? Rendida novamente, entreguei o celular que quase nunca tocava tão velho e mumificado por durex fixando a bateria. O homem correu com o prêmio em suas mãos, um banal sim de minha coleção. Correu como um animal que consegue inocular seu veneno, correu com as pernas atléticas e esguias e por fim desapareceu dentro da esquina. Por que a esquina sempre nos engole? Não satisfeito com o tédio que plantou em mim, com sua autoridade, protagonizou uma espécie de luz, de espanto: retirou a venda que, de tão gasta, já se encaixava tão perfeitamente. Revisitei a angústia. De frente, cara a cara. Sólida. Mineral. Bruta. Meu desejo também se camuflava em lugares improváveis. Escondia-se na rotina. Em meus movimentos. Se corajosa, tirava a venda dos olhos, via um medo maior. Na tentativa de avistar o horizonte; acídia. Se a tirasse de vez; o terror. Eu tão desacostumada de mim. Pudica, evito tocar-me. Inevitável; desisto cotidianamente do embate, aprisiono-me sem gana na antessala
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Meus pés avançaram, eu sem olhar para trás, esperando. Ouvido suscetível ao trágico. “Passa tudo, perdeu, passa tudo, senão morre”. Parei. Retrocedi. Pensei em coisas tão remotas. Temi não caber em mim a avidez, o inesperado, as lembranças; muitas intocáveis. Como posso dar o tudo, se tenho o nada como semblante de mim? Já havia concordado com o que ouvi um dia numa discussão sobre a morte da literatura: nada garante que a literatura seja imortal... O mundo pode passar muito bem sem ela, mas pode passar ainda melhor sem o homem; ouço o filósofo e penso em mim. Eu sou esse animal a ser extinto, portanto também não farei falta alguma. Ele, o homem trêmulo e seu revólver, do qual nada sei; gritou ratificando sua prepotência belicosa, com aquela arma raquítica, desbotada e de cano curto. “Não corra, senão atiro”. O suor escorria pelo rosto desconhecido, adrenalina, fúria, medo. Poderia apertar o gatilho. Não o fez. Gritava, trovejando suas ordens. “Vadia, vagabunda, pensa que é esperta, passa tudo”. Eu que tanto obedeci na vida, tanto me concentrei na sintaxe da boa convivência, tanto evitei erros de concordância, agora estava diante de mais uma guerra surda que tudo impõe e assalta. Seria bom transgredir, mas minha boca do avesso reverbera: Sim, senhor! Temi a guerra, sempre. Nunca. Jamais o rotundo não, no máximo o talvez, ou o balançar
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PROSA&CONTOS
ELTÂNIA ANDRÉ (*)
literatas
com agulhas e linhas ou com papel e caneta. O homem da arma raquítica, miúda, mas potente, não atirou. Desgraçado. Minhas costas esperando o abate, alguém delineando o trajeto da bala pela fresta da janela; meu corpo antecipando a queda; o asfalto gasto a se servir de leito - ontem. Mesmo depois que ele se foi, depois do copo d’água, eu esperei por algo que não vinha. E a sede sem fim. Não é o mundo lá fora que é cinza, mas o sótão onde caminho, dentro. A arma que eu desconhecia, ainda inerte. Estamos ou não numa batalha? Bombardeios silenciosos. Eu sempre dissimulada, de porcelana; obedecia, servindo o almoço especial de domingo. O acúmulo de paz azedando no estômago. O amanhã tão igual e resignado, persistia na expectativa do vazio, do oco. Cadê o disparo? O Sangue vivo? Preparada, coração com suas batidas excitadas, mãos trêmulas, o labirinto no alto da torre aguardando o que seria o estampido. Minha morte. Talvez, tenha desejado apenas conhecêla, sou deveras curiosa; não a morte em si, mas a vida corroída pelos dias de tensão, o destampar do fosso, fitar o abismo e reconhecer-me nele e depois revelar a mim mesma: o seu escuro, a imensidão. E no desfecho, acordar e esquecer. Talvez. Incrível: a sensação das costas perfuradas permanece, mesmo depois, mas o pequeno vaga-lume sacode meu mundo pálido; sim, é pálido, descorado. Lembreime do meu (descabido pronome de posse) marido, dos filhos. E as vasilhas na pia aguardando-me. Sujas, engorduradas. Os filhos, bons meninos, mas não preenchem o rasgo. Viver! É essa angústia iceberg. É solidão em meio a multidões. Não sou eu que provoco, é a vida – esse mistério sem fim. A casa de anos, a mesma cortina de anos, a cama dura, ortopédica, onde dois corpos desajustados unem vez ou outra. Sempre o raspar de garganta do meu (novamente o descabido e irritante pronome de posse) macho dando notas vulgares da convivência. Depois da novela, ou depois do silêncio, nós dois monossilábicos. Ele: Café? Eu: sim. Sigo para a cozinha, sabendo que com a cafeína no sangue, mesmo com a brutalidade da mesmice, abrirei as pernas e ele penetrará sem grande entusiasmo. O esperma escorrendo pelo lençol, o que importa? Abrirei as pernas outras e outras vezes... Disponível para ser engolida, penetrada. Eu querendo gemer,
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querendo morrer, mas a bala não atravessou minha pele. Antecipo meus ouvidos, agora para o ronco cotidiano depois do sexo, depois do escarro, ato de limpar a garganta que ele pratica ao escovar os dentes. Ele escarra. Eu? Olhos fixos no mofo da parede do quarto ou no escuro, tentando me convencer de que assim mesmo é feita a minha história, essa matéria impalpável que inutilmente tento tocar com alguns dos sentidos. Há sempre algo que me escapa, dentro. Penso em Camille Claudel: Há sempre de ausente que me atormenta. O que eu busco? O que foi que perdi? Deixa quieto, está tudo certo, prefira a paz, dizem-me. Ouço essas vozes. Meu lar um campo iluminado, família perfeita. Os filhos no mundo dos sonhos, o marido saciado – afinal eu sempre o alimento com minha boca escancarada, faço café, lavo as louças acumuladas na cozinha, digo com sorriso nos lábios: “estou bem”; “também te amo”; não é uma mentira, mas então por que me desconheço nas frases que digo?: “sim, sou feliz”; “bom dia”; “boa noite”; “Deus abençoe”. Deus? Vez ou outra, uma poesia na gaveta. Ordinária, é certo. Intensa, talvez, mas ordinária como os vinhos que tomamos duas ou três vezes no ano na casa de um amigo. Que ninguém lê. Ninguém lê. E outra vez com olhos fixos no escuro encarei a insônia arquitetando palavras, pois os versos inacabados ainda estarão sobre as contas a pagar na segunda gaveta do criado. E o amanhã poderia ter sido outro dia. Covarde, por que não atirastes se eu disse a princípio um não. Foi minha melhor rebeldia, antes de seguir a velha estrada. Quase um fim de papo. Quase um fim de linha.
(*) Nasceu em Cataguases (MG), reside em São Paulo (SP), Brasil, onde trabalha como psicóloga. É autora dos livros de contos “Meu nome agora é Jaque” (Ed. Rona, BH, 2007) e “Manhãs adiadas” (Ed. Dobra, SP, 2012) e do romance “Para fugir dos vivos” (Ed. Patuá, SP). Este conto faz parte do livro inédito “Duelos”, a ser lançado em breve.
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MÉLIO TINGA
O SUICÍDIO DO LHATA
E
ao meu corpo cansado de tanto esperar por ela. Essa ansiedade, de espera, na verdade, era o que me matava. Tossi algumas vezes, e senti como se meus pulmões dançassem por dentro se misturando com o coração, e juntos inundados no sangue fazendo de tudo para sobreviver, e depois morrer vítima de suicídio. Merda! Que gosto tem a morte? Se não, a dor de ser enterrado num esquife, muitas vezes desconfortável, com aquele formato horrível, algumas vezes com madeiras pregadas como um brinquedo. Mesmo depois de se estar dentro tem de se ter a paciência de sentir o peso da terra, metros abaixo da superfície. E depois reservar o tempo para começar o estado de purificação do corpo. E assim é a morte. Ardina das Cores não está em casa, é minha esposa, tem vinte e sete anos e tem uma beleza que supera
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stou aqui. Sentado, trinta e dois minutos antes do meu próprio suicídio. Sinto um forte aperto no peito, a voz me é escassa, as palavras nuas, o tempo não mais importa, os olhos parecem inundados num eterno abismo chamado rio de lágrimas, os dedos fazem um único punho e tremem, o iris ora some, ora aparece. Transpiro. Sinto meu corpo conversando com a morte, algumas vezes rimo-nos ironicamente um do outro, outras, olho para morte com pena. Estou prestes a morrer! Fazia três dias que pensava no suicídio e faltavame coragem. Agora, sentado neste tronco de embondeiro, sinto que não é a coragem a faltarme, sinto que só tenho de esperar os trinta e dois minutos e subir aquela merda da corda, de degolar cabritos, pendurar o pescoço, chutar a cadeira e esperar a morte, lenta e dolorida, vir de encontro
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PROSA&CONTOS
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MÉLIO TINGA
as esculturas gregas, parece, verdadeiramente, uma filha de Deus e, por causa de sua beleza, seus actos têm grandes efeitos na natureza. Tem sorriso de anjo, lábios de deusa e olhos divinos, e, apesar de tudo, tem corpo santo. Neste momento, penso nela, estou descalço e os pés tremem, muito mais que as mãos. Passaram-se dois minutos, e a ideia do suicídio me parece a única solução que tenho ao meu alcance, é horrível causar a própria morte, mas não penso nisso como pecado, tenho direito de decidir sobre qual fim dar à minha vida, antes que os outros dêem. Levanto-me, caminho de um lado a outro, sinto uma tempestade, de loucura, e penso que estou realmente louco e, por isso, vou-me matar de uma vez por todas. O suor escorre-me pela face e falo palavras apenas mexendo os lábios, chuto latas e piso-as, seguro a parede e reparo na porta da casa, que entrando dá acesso ao quarto onde durmo, e a cama encontra-se ao centro, por cima dela deixei uma cadeira, no barrote, exactamente no centro está lá a corda, de degolar cabritos, esperandome, pacientemente. É um quarto suficientemente maior para um casal se amar à vontade em qualquer canto como animais selvagens, as roupas ficam à direita do centro do quarto, Ardina decorou-o ao seu gosto e mandou pintar de branco, porque assim o quarto tal como a casa encherá de paz, feito um santuário. O chão é multicolor tal como é o seu sorriso emprestado dos céus. Do lado esquerdo uma grande obra de pintura se encontra, do autor não me lembro pelo estado em que me encontro, um estado de pré-suicídio misturado com loucura. Caminho em direcção à porta, paro na sala, procuro por um papel e não acho. Entro para o quarto e vejo esse cenário de um suicídio já preparado, sinto a tentação de subir e acabar com isso de uma vez para todas. - Não. Digo para mim. Desvio e encontro um caderno velho e uma caneta, sento-me a escrever, na mesa do centro da sala: E Depois do Suicídio: Adeus, meu amor! Querida, essa ideia de me matar é antiga. Sei que essa é a maior bujarda que um homem pode cometer, o problema é que não sou homem suficiente para não a cometer. Nunca antes te contei. Te conto agora, que ergo o punho para escrever a última carta de um louco que em pouco tempo irá cometer a maior merda da sua vida: a morte. De princípio, vai isto tudo doer profundamente, mas a morte junto com seu luto passam e os do lado da vida continuarão a desfrutar dos sabores do mundo.
Tenho dois pedidos e uma confissão: Cuide eternamente da nossa inocente criança, que depois de escrita e assinada esta carta, ficará sem colo de pai, passará a ser designada “órfã de pai”. De pai! E a mãe estará lá, sempre pronta a erguê-la pela sua mãozinha para desafiar a vida e nunca cair nessa fragilidade em que eu cai. Merda. Desatei a chorar como pueril, até ranho me saiu. Parei. Olhei ao redor. Peguei a cabeça e pensei em desistir de escrever e de cometer o suicídio. Continuei. Nunca perca a esperança, amor. Hei-de voltar. Um dia. Confesso que foste parte das minhas grandes ambições. Depois de morrer, não quero que me esqueça. Lembre de mim como um grande amor, que partiu com rosto de idiota, que um dia volta, já homem! Agora, posso matar-me? Sei que a resposta é não, mas vou, mesmo assim pendurar-me nesta humilde corda que faz tempo que me espera pacientemente. Adeus! Domintos de Abreu Lhata, seu eterno amor. Sempre. Agora, sinto uma estranha paz dentro de mim. Sorrio. Deixo a esferográfica na mesa da sala, levo o papel para o quarto, deixo por cima da cama e subo para cadeira, como quem viaja e sobe para nunca voltar. Paro, um turbilhão de coisas me passa pela mente. Lembranças. Os sorrisos. As tristezas. Os dias de chuva e de sol. Os dias de minha juventude. Os dias de sexo. Os dias dos beijos incontáveis. Voume matar e prontos! Tive apenas de puxar a corda um pouco para baixo, coloquei o pescoço, puxei a corda e senti um sufoco, uma dor forte na garganta, olhei para porta. Parei. Tenho mesmo de me matar? Sim. Chutei a cadeira e vi-me pendurado como um cabrito. A língua ficou para fora, a dor era enorme, pensei que fosse a pior merda e que tinha de ser feita, mesmo assim. Perdia ar, sentia uma enorme fadiga, doíam-me os pulmões, o coração pesava com a desaceleração, os olhos ficaram com um tamanho assustador, as veias apareceram sobre a pele. O coração e os pulmões transformaram-se no mesmo órgão e por dentro pareciam ter ganho o formato de um falo normal. A porta foi aberta. Num estado de um profundo sono, quase de inconsciência, ouvi cinco minutos depois, um grito quase ensurdecedor da minha mulher, Ardina das Cores: - Lhata! Havia sido consumada a minha tão desejada morte.
LITERATURA INFANTIL
Criançarte Ler e saber Curiosidades Saúde oral A cárie deve-se à decomposição de restos de alimentos que ficam entre os dentes e não são removidos depois das refeições. Esta decomposição ocorre por acção de bactérias que existem na boca. Para ter dentes sãos e evitar o mau hálito, é importante que escove todos os dias com raízes (como mulala, hangula, ou com uma escova). Curiosidade 25 de Junho de 1975 é dia da independência de Moçambique do sistema colonial português.
ARNALDO MOSSE
Ler, brincar, aprender Histórias infantis
literatas
O coelho gostava de procurar as coisas mais belas para si, sempre ele quis ser o ser na floresta que tinha as melhores coisas para si. Sempre procurava estar onde estavam as coisas mais belas e sempre se esquecia dos amigos que tanto o ajudavam. Sempre orgulhava-se por ser o ser com mais e lindos objectos brilhantes. Um belo dia os amigos decidiram pregar-lhe uma partida para nunca se esquecer dos amigos que conviviam sempre com ele nas horas triste, amparando-o sempre que quisesse. A gaivota, o zebra, o porco-espinho, a gazela, o cágado e caracol decidiram colocar enormes buracos bem próximo dos objectos brilhantes do coelho com a ajuda das formigas, as minhocas e os ratos que perfuravam a terra sem muitas dificuldades. Os dias passaram-se e ele estava a dormir cercado dos tesouros, desprezando os amigos que ele achava que podiam roubar os seus objectos. A temperatura mudou, um enorme vendaval movia-se em direcção à floresta, os animais estavam em pânico, os amigos do coelho decidiram em conjunto fazer um buraco bem próximo a um rochedo para protegerem-se do vendaval que estava se aproximando. O coelho estava desesperado para esconder o seu tesouro, que não sabia o que fazer, a sua toca estava cheia que não podia entrar mais nada, que até transbordava, não tinha mais espaço para ele. O vendaval aproximou-se e já começava a abrir buracos e fendas na terra, as árvores pequenas eram arrancadas do solo, o tesouro do coelho foi espalhado por toda a parte. Todos os objectos entraram nos buracos feitos pelas minhocas e pelos ratos e com ajuda da tempestade foram enterrados. O coelho estava agarrado a uma árvore que já estava a ser arrancado pela tempestade que invadia a selva. Os amigos, apercebendo-se, uniram-se e foram ajudar o amigo que estava quase a desaparecer na tempestade. - Amigo coelho, aprenda desde já que na vida não pode viver sem os amigos, falavam todos em coro para o coelho - a amizade é o melhor tesouro que podes ter, que suporta qualquer tempestade. E todos viverem felizes como amigos…
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LITERATURA INFANTIL
ARNALDO MOSSE
Ler, brincar, aprender Aprendendo através de jogos Piadas 1.Todas as crianças haviam saído na fotografia e a professora estava tentando persuadi-los a comprar uma cópia da foto do grupo. - ‘Imaginem que bonito será quando vocês forem grandes e todos digam ali está Catarina, é advogada, ou também este é o Miguel. Agora é médico’. Ouviu-se uma vozinha vinda do fundo da sala: -’E ali está a professora. Já morreu’.
literatas
Três colegas de escola começam a exaltar as qualidades de seus pais durante o recreio. Num momento da conversa, um deles diz: — O meu pai é quem corre mais rápido. Ele é capaz de atirar uma flecha, começar a correr e ultrapassar a flecha. — Você acha isso rápido? O meu pai é caçador. Ele consegue dar um tiro e chegar ao alvo antes da bala. — Vocês dois não sabem o que é rapidez. — Ah, é? O que seu pai faz? — O meu pai é funcionário público. Ele trabalha até às 18h, mas consegue estar em casa às 16:45.
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O sol estava bem ao alto, existiam poucas nuvens e a águia já estava cansada de tanto voar à procura de alimento. Voou pela savana olhando para todo o lado e decidiu descansar para reunir as forças. Viu um búfalo e decidiu aconchegar-se nas costas do búfalo. O búfalo a muito que não gostava das atitudes da águia e decidiu pregar-lhe uma partida. Carregou-se para cima e depois rebolou para o relvado passado por cima da águia que estava distraída, repetiu por três vezes depois de retirar a águia das costas e acabou por dizer: _ Se tratasses o leão assim já terias sofrido com as mandíbulas fortes dele, eu só estava a educar-te para saberes respeitar os seus próximos companheiros da savana. _ Eu desprezava os fracos e obedecia os fortes_ falava a águia assustada_ sabia a diferença entre todos. A quem devia intimidar e a quem poderia obedecer, mas hoje vejo que devo respeitar a todos, até aos seres mais inferiores dos seres, pois tem importante tarefa nesta savana. A partir desse dia, a águia passou a descansar nos pontos mais altos para poder respeitar os próximos.
VAGENS
MATIANGOLA
FLOR-DE-LIS EM RIO DE NUBENTES a sacudirem recorrentemente a cidade. A água a transgredir o seu limite e a habitar a cidade. A lama a achocolatar toda a cidade e os seus habitantes, atónitos e loucos, a zarparem num zaplin ainda por descobrir. Os saltimbancos a tomarem por completo a cidade. Lojas inteiras assaltadas. Escavações atrás de escavações de nada a valerem até ao banco local. E nada senão a fome a reinar entre os convivas que ainda permaneciam na cidade. O rio e os seus mistérios ainda ali impunes. Ora as águas a vazarem, ora dias depois a subirem de nível. O desespero a voltar a reinar e a instituir-se entre os convivas. Uma tonelada de gado engolida. Porções e porções de machambas tomadas. Um número sem nome de pessoas mortas e qual pobreza pobre de si e dos demais. O rio ali parado e fixo. A água a escorrer pela cidade e corpos a seguirem-no na mesma mecânica. Fezes a espamarem e os viventes que por ali sobreviviam a lançarem seus dejectos perante uma cidade já sem passado e memória. O rio a regressar e novamente a cidade seca. Um cheiro nauseabundo a assaltar a cidade, dejectos a formarem pequenos riachos pela cidade toda lodada e impregnada de suspiros. O cemitério já sem nenhum morto. Tudo arrasado, as lojas, todas saqueadas e os saltimbancos a vangloriarem-se na Praça pelas suas façanhas. O rio paulatinamente a voltar. Chókwè a renascer entre as cinzas. No seu centro, a Praça, mais um pouco a descer, as lojas a perfilarem-se entre si. Os bancos e, depois, o famoso Hotel Limpopo, um rio de voluptuosidades. O supermercado, as bombas de combustível e, mais um pouco, mais uma vez, a luta titânica a restabelecer-se, o Tunduro ali inerte. Um campo na cidade. E, atrevo-me a dizê-lo, escrevo nessa imensidão de verde com olhar taciturno da cidade, entre buzinadelas e a algazarra típica das metrópoles. Chókwè ali parada, entre o rio e os seus amantes. Nisso, os seus habitantes loucos de amor pela sua cidade. Um eterno ir e vir a estabelecer-se numa mecânica que as noites de inverno podem desvendar. A riqueza a escorrer e a cidade ali a raiar.
literatas
I Estava ali, soberbo e imponente. Sinuoso e a respirar a alacridade que transportava no seu leito. As margens esverdeadas e puras. O capim a submergir entre os arbustos que por ali despontavam. Os pássaros a esvoaçarem voos rasantes ante o olhar impávido e vencido dos camponeses. Campos inteiros a serem dizimados e inteiras plantações simplesmente a soçobrarem. Uma povoação toda a definhar e o rio ainda ali, imponente e soberbo. As suas margens novamente a venderem o parnasianismo perante o rural que se desconcertava desse sacrilégio. E o rio, de todo e decerto, ali, apenas ele e a vegetação que por ali emergiam. Ora numa época varia todos que viviam nas zonas ribeirinhas, encharcando de água as plantações e habitações, ora secava e os empobrecia desse cicerone por lapidar, o verde. Com um formato sinuoso e uma esbeltura ainda por descobrir, o rio Limpopo guardava mistérios que só o sol nas manhãs de inverno podia descortinar. Com uma cor achocolatada das águas, o lodo era a marca que o fazia não se confundir com os demais. Quem quisesse o quisesse, bastava para o mesmo se dirigir e, mergulhando a fundo, tomar do seu leite para o que quisesse se tornasse real. Homens e mulheres daquela região haviam sacralizado o rio. Ouvia as suas preces e respondia. Um guardião do enigmático. O seu leito tomava a forma de uma deusa e, não raras vezes, via-se, de longe, os seus seios palpitarem. O rio tinha vários amantes que nas madrugadas incensadas e tresloucadas banhavam-se naqueles hirtos seios. Nas noites densas de luar, era comovente vê-lo nesse inebriante e hilariante silêncio, a ausência. Os mochos a pousarem sobre as suas águas à procura da bênção, os homens a tomarem do seu leite para prosperarem. Uma cidade a submergir entre o rio e a vegetação. E novamente uma batalha a reacender as feridas ainda não cicatrizadas de Pessoa e Cesário Verde. Não, não, não. Uma oposição entre campo e cidade fascinante. O modernismo e parnasianismo. Velhos fantasmas
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