Natação

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natação

sérgio tavares

Uma gota de chuva cai a uma velocidade de 720km/h. Se não contássemos com a resistência do ar, essa gota, ao atingir a nossa cabeça, causaria o mesmo estrago que o de uma bala de pequeno calibre. Um temporal de vinte minutos seria suficiente para matar milhares de pessoas. Ontem choveu muito, mas apenas não teve aula. A chuva de ontem poderia ter matado a todos da minha cidade, mas apenas inundou bueiros e o fosso dos trilhos, e não pôde circular o transporte público. O homem do tempo, na televisão, disse que choveu o equivalente ao volume de cinco piscinas olímpicas, 13 milhões de litros. Fiquei imaginando a minha cidade submersa, com todos os movimentos afetados pela resistência da água. As pessoas, os ônibus e os trens locomovendo-se em câmera lenta, como sob o efeito daquela tecla do videocassete. Na minha escola tem uma piscina olímpica. Uma vez por mês, a aula de educação física é praticada com exercícios subaquáticos. Eu não posso fazer exercícios porque só tenho um rim. Aos dois anos, tive de extrair um rim por conta de um câncer. Isso me ocasionou um sistema imunológico fraco. Com qualquer esforço, fico doente. Por isso quando tem aula de educação física, sou dispensado mais cedo. Minha casa não é longe da escola, mas sempre pego o ônibus. Da chuva de ontem ainda restaram algumas poças pelas ruas. Gosto de pisar no centro dos círculos d’água e ver as bordas atacarem as minhas pernas feito plantas carnívoras. Elas fazem um splash e reagem. Vou pisando de poça em poça, até chegar ao ponto de ônibus. Tem uma menina lá. Está sentada no banco, com a cabeça inclinada. Parece que lê um livro. Usa uma capa de chuva rosa, uma galocha branca e outra roxa e uma boina de pelos cinzentos, com proteção de orelhas. É mais velha que eu. Um pouquinho. 91


O menino se senta no banco. Embora estejam a poucos centímetros, a menina não reage à presença dele, vidrada no livro sobre a mochila emborcada ao longo das coxas. Volta a chover, mas agora uma chuva fina. Ele aperta o gorro de lã contra a cabeça e puxa o zíper do moletom, sob a capa de chuva amarela, até a presilha. É fim de outono. O que está lendo? A menina vira-se para ele, com um leve muxoxo. 20.000 Léguas Submarinas. É bom? Você gosta de ler? Gosto muito. E nunca leu 20.000 Léguas Submarinas? Quem escreveu? Júlio Verne. Não. Então o que você lê? A testa dela se enruga sob a boina peluda. Estou lendo Sambo, o Negrinho. É para criança? Não sei. Eu gosto muito dos livros do Júlio Verne. Você deveria ler. Esse eu estou lendo de novo, é da biblioteca da escola. Eu não gosto dos livros da escola. Em que ano você está? Quinto. Eu estou no sexto. Eu acho que já te vi algumas vezes no refeitório. Meu nome é Antônio. Ele estende a mão. Eu preciso dizer o meu nome? Não. Ela aperta a mão dele. Não foi a aula hoje? Não. Eu vim para esse banco para ler. Moro aqui perto. E você? Hoje teve aula de educação física. Então fui dispensado mais cedo. Não posso fazer exercícios porque só tenho um rim. Quer ver? O menino desocupa a mochila das costas e a deposita ao seu lado, no canto do banco. Corre o fecho ecler e afasta duas camadas de pano sob o plástico da capa. Inclina levemente o corpo e exibe um trecho do flanco riscado por uma cicatriz de aspecto rosado. O que aconteceu? 92


Eu tive câncer, aos dois anos. É por isso que sua pele é dessa cor? É. Ele se recompõe. Por que usa galochas de cores diferentes? Eu tentei encontrar o par certo, mas não consegui. Procurou debaixo da cama? Não tive vontade. Ficou com medo? Um pouco. Por isso veio ler nesse banco? Eu venho para esse banco desde que o meu tio foi morar na minha casa. Você não gosta dele? Meu tio faz coisas de que eu não gosto. Você já contou para o seu pai? Eu não tenho pai. Contou para a sua mãe? Já. O que ela disse? Nada. Ela deve gostar do seu tio? Gosta. Meu tio esteve numa Olimpíada. Ele fez parte de uma equipe de natação. Desde que veio morar na minha casa, diz que vai me ensinar a nadar, que tenho o corpo certo. Ele entra no meu quarto e me empurra na cama de barriga para baixo. Depois deita sobre mim. Estica os braços sobre os meus e vai fazendo movimentos circulares. Devagar, deixando que eu assuma o ritmo pouco a pouco. Diz que estou indo bem e desocupa as mãos para me apertar. Aí vai ficando muito pesado e não consigo nadar mais. Ele ganhou alguma medalha? Não sei. Você não perguntou? Não. Eles encaram a chuva fina por um tempo. Na escola, tem uma piscina olímpica. Eu sei. Já nadou lá? Já. Gosto de afundar e abrir os olhos debaixo d’água. Sempre me imagino dentro do Náutilus, fazendo parte da tripulação do Capitão Nemo. Do tempo em que consigo prender o fôlego, fico esperando a lula gigante aparecer. Se eu afundar na piscina, morro afogado. Você tem medo de morrer? Acho que não. Eu também acho que não. A menina fecha o livro. 93


Na chuva de ontem, um cachorro morreu afogado. O corpo ainda está à beira do riacho. Quer ir lá ver? Quero. E saímos contra a chuva fina, com os capuzes das capas levantados. No percurso, fico imaginando que, se andássemos na cidade submersa, levaríamos meses para chegar até lá. Mas aí não haveria chuva e cachorros também não morreriam afogados. Se vivêssemos embaixo d’água, o tio dela não precisaria ensiná-la a nadar. Ninguém na nossa idade precisaria, de fato.

sérgio tavares é jornalista e escritor, autor de Queda da Própria Altura (Confraria do Vento/2012), finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala (Record/2010), vencedor do Prêmio Sesc Nacional de Literatura, categoria Contos. Tem textos publicados em antologias, jornais, revistas e sites literários nacionais e internacionais. Vive atualmente em Niterói, Rio de Janeiro.

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