Livro História Viva Morro do Pilar

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Morro do Pilar... Minas... “Minas é a montanha, montanhas, o espaço erguido, a constante emergência, a verticalidade esconsa, o esforço estático; a suspensa região — que se escala. Atrás de muralhas, caminhos retorcidos, ela começa, como um desafio de serenidade. Aguarda-nos amparada, dada em neblinas, coroada de frimas, aspada de epítetos: Alterosas, Estado montanhês, Estado mediterrâneo, Centro, Chave da Abóbada, Suíça brasileira, Coração do Brasil, Capitania do Ouro, a Heróica Província, Formosa Província. O quanto que envaidece e intranquiliza, entidade tão vasta, feita de celebridade e lucidez, de cordilheira e História. (...) ...Sobre o que, em seu território, ela ajunta de tudo, os extremos, delimita, aproxima, propõe transição, une ou mistura: no clima, na flora, na fauna, nos costumes, na geografia, lá se dão encontro, concordemente, as diferentes partes do Brasil. Seu orbe é uma pequena síntese, uma encruzilhada; pois Minas Gerais é muitas. São, pelo menos, várias Minas. A que via geral se divulga e mais se refere, é a Minas antiga, colonial, das comarcas mineradoras, toda na extensão da chamada Zona Mineralógica, a de montes de ferro, chão de ferro, água que mancha de ferrugem e rubro a lama e as pedras de córregos que dão ainda lembrança da formosa mulher subterrânea que era a Mãe do Ouro, deparada nas grupiaras, datas, cavas, lavras, bocas da serra, à porta dessas velhas cidades feitas para e pelo ouro, por entre o trabeculado de morros, sob picos e atalaias. (...) ...Se são tantas Minas, porém, e contudo uma, será o que a determina, então, apenas uma atmosfera, sendo o mineiro o homem em estado minasgerais? Nós, os indígenas, nem sempre o percebemos. Acostumaram-nos, entretanto, a um vivo rol de atributos, de qualidades, mais ou menos específicas, sejam as de: acanhado, afável, amante da liberdade, idem da ordem, anti-romântico, benevolente, bondoso, comedido, canhestro, cumpridor, cordato, desconfiado, disciplinado, desinteressado, discreto, escrupuloso, econômico, engraçado, equilibrado, fiel, fleumático, grato, hospitaleiro, harmonioso, honrado, inteligente, irônico, justo, leal, lento, morigerado, meditativo, modesto, moroso, obstinado, oportunidade (dotado do senso da), otário, prudente, paciente, plástico, pachorrento, probo, precavido, pão-duro, personalista, perseverante, perspicaz, quieto, recatado, respeitador, rotineiro, roceiro, secretivo, simples, sisudo, sensato, sem pressa nenhuma, sagaz, sonso, sóbrio, trabalhador, tribal, taciturno, tímido, utilitário, virtuoso.

Sendo assim, o mineiro há. Essa raça ou variedade, que, faz já bem tempo, acharam que existia. Se o confirmo, é sem quebra de pejo, pois, de mim, sei, compareço como espécime negativo. Reconheço, porém, a aura da montanha, e os patamares da montanha, de onde o mineiro enxerga. Porque, antes de mais, o mineiro é muito espectador. O mineiro é velhíssimo, é um ser reflexivo, com segundos propósitos e enrolada natureza. É uma gente imaginosa, pois que muito resistente à monotonia. E boa — porque considera este mundo como uma faisqueira, onde todos têm lugar para garimpar. Mas nunca é inocente. O mineiro traz mais individualidade que personalidade. Acha que o importante é ser, e não parecer, não aceitando cavaleiro por argueiro nem cobrindo os fatos com aparatos. Sabe que “agitar-se não é agir”. Sente que a vida é feita de encoberto e imprevisto, por isso aceita o paradoxo; é um idealista prático, otimista através do pessimismo; tem, em alta dose, o amor fati. Bem comido, secularmente, não entra caninamente em disputas. Melhor, mesmo — não disputa. Atencioso, sua filosofia é a da cordialidade universal, sincera; mas, em termos. Gregário, mas necessitando de seu tanto de solidão, e de uma área de surdina, nos contactos verdadeiramente importantes. Desconhece castas. Não tolera tiranias, sabe deslizar para fora delas. Se precisar, briga. Mas, como ouviu e não entendeu a pitonisa, teme as vitórias de Pirro. Tem a memória longa. Não tem audácias visíveis. Ele escorrega para cima. Só quer o essencial, não as cascas. Sempre frequentado pelo enigma, pica o enigma em pedacinhos, como quando pica seu fumo de rolo, e faz contabilidade da metafísica; gente muito apta ao reino-do-céu. Não acredita que coisa alguma se resolva por um gesto ou um ato, mas aprendeu que as coisas voltam, que a vida dá muitas voltas, que tudo pode tornar a voltar. Até sem saber que o faz, o mineiro está sempre pegando com Deus. Principalmente, isto: o mineiro não usurpa. (...) Aí está Minas: a mineiridade. ...Disse que o mineiro não crê demasiado na ação objetiva; mas, com isso, não se anula. Só que mineiro não se move de graça. Ele permanece e conserva. Ele espia, indaga, protela ou palia, se sopita, tolera, remancheia, perrengueia, sorri, escapole, se retarda, faz véspera, tempera, cala a boca, matuta, destorce, engambela, pauteia, se prepara. Mas, sendo a vez, sendo a hora, Minas entende, atende, toma tento, avança, peleja e faz. Sempre assim foi. Ares e modos. Assim seja.”

João Guimarães Rosa

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HISTÓRIA VIVA

Morro do Pilar

CULTURA, MEMÓRIA, SUSTENTABILIDADE E A ANTECIPAÇÃO DO FUTURO

1ª Edição

Instituto Espinhaço

Morro do Pilar 2014

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HiSTÓRia ViVa – MoRRo do PilaR – Cultura, Memória, Sustentabilidade e a antecipação do Futuro / Morro do Pilar: instituto Espinhaço, 2014 - 432 páginas.

Idealização e Realização: instituto Espinhaço Coorddenação Geral: luiz Cláudio Ferreira de oliveira Presidente do instituto Espinhaço

Prefixo Editorial: 68680 Publicação idealizada, organizada, coordenada e editada pelo instituto Espinhaço.

Apoio Cultural: MaNaBi

iSBN: 978-85-68680-00-1 1. Morro do Pilar. 2. História. 3. Cultura Mineira. 4. História Regional. 5. Serra do Espinhaço. 6.Geo-História de Morro do Pilar. 7. Morro do Pilar 313 Anos de História. 8. Ruínas e Incertezas: Como Identificar e Preservar a História e a Memória dos Sítios Arqueológicos de Morro do Pilar. 9. A Importância do Levantamento Histórico e Arqueológico da Real Fábrica de Morro do Pilar em Minas Gerais. 10. O Povo Morrense nos Cenários da Cidade em Diversas Temporalidades. 11. Biodiversidade em Morro do Pilar. 12. O Minério de Ferro na História Subterrânea do Mundo e na Alquimia. 13. Geomancia: Dimensões da Energia Vital. 14. Morro do Pilar: A Construção de um Futuro Sustentável. 15. Gestão Integrada de Território em Morro do Pilar: Uma Nova Visão Para o Uso Inteligente do Território.16. Água, Educação e Culturas: Redes Hídricas e Simbólicas na Teia da Vida. 17. Morro do Pilar: Imaginário e a Natureza Animada. 18. A Hora dos Quintais.19. Morro do Pilar: Novas Subjetividades para uma Vida Sustentável.20. Por uma nova Cidade: Possibilidades de Urbanismo Regenerativo em Morro do Pilar.

Pesquisas e Textos: Francisco Javier Rios Francisco Robério Abreu Célio Macedo Alves Fabiano Lopes de Paula Diego Prata Melo Igor Lacerda Vanda Praxedes Bernardo Machado Gontijo Luiz Cláudio Ferreira de Oliveira Marko Pogacnik Luiz Oosterbeek Vera Margarida Lessa Catalão Manuel J. Gandra Eduardo Avelar Loryel Rocha Fernando Luiz Lara

I. Rios, Francisco Javier, Abreu, Francisco Robério. II. Alves, Célio Macedo. III. Paula, Fabiano Lopes. IV. Paula, Fabiano Lopes, Melo, Diego Prata, Ferreira, Igor Lacerda. V. Praxedes, Vanda. VI. Gontijo, Bernardo Machado. VII. Ferreira de Oliveira, Luiz Cláudio. VIII. Pogacnik, Marko. IX. Ferreira de Oliveira, Luiz Cláudio. X. Oosterbeek, Luiz. XI. Catalão, Vera Margarida Lessa. XII. Gandra, Manuel Joaquim. XIII. Avelar, Eduardo. XIV. Rocha, Loryel. XV. Lara, Fernando Luiz.

Auxiliar de Pesquisa: Samuel Francisco Praxedes lopes ana Flávia Calábria

CDD: 981.512

Copyright © 2014 by instituto Espinhaço, Morro do Pilar – MG - Brasil Todos os direitos reservados e protegidos ao instituto Espinhaço, pela lei no 9.610 de 19/02/1998. Proibida a reprodução parcial ou integral por quaisquer meios eletrônicos, mecânicos, xerográficos, fotográficos, etc., sem a permissão por escrito do instituto Espinhaço.

Transcrição de Entrevistas: Renato Marcio Mourão Projeto Gráfico e Editoração: P design Gráfico Design e Produção Gráfica: Bruno abrahão Vania Pio Fotografias e Edição de Imagens: Jorge Santos Revisão: lúcia Helena de Sá

Morro do Pilar, Minas Gerais, Brasil – 2014

Impressão: Rona Editora

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Sumário Apresentação ...................................................................................... 12 Prefácio............................................................................................. 16 Capítulo 1 Geo-história do Morro do Pilar ........................................................... 22 Capítulo 2 Morro do Pilar: 313 anos de história 200 anos da primeira fundição de ferro em alto-forno do Brasil ............ 48 Capítulo 3 Ruínas e incertezas: como identificar e preservar a história e a memória dos sítios arqueológicos de Morro do Pilar.......................... 108 Capítulo 4 A importância do levantamento histórico e arqueológico da Real Fábrica de Morro do Pilar em Minas Gerais.................................... 122 Capítulo 5 O povo morrense nos cenários da cidade em diversas temporalidades ..................................................................... 138 Capítulo 6 Biodiversidade em Morro do Pilar ....................................................... 200 Capítulo 7 O minério de ferro na história subterrânea do mundo e na alquimia........ 220 Capítulo 8 Geomancia: dimensões da energia vital em Morro do Pilar..................... 238 Capítulo 9 Morro do Pilar: a construção de um futuro sustentável ........................... 270 Capítulo 10 Gestão integrada de território em Morro do Pilar: uma nova visão para o uso inteligente do território ................................ 288 Capítulo 11 Água, educação e culturas: redes hídricas e simbólicas na teia da vida...... 216 Capítulo 12 Morro do Pilar: imaginário e a natureza animada ................................... 340 Capítulo 13 A hora dos quintais ............................................................................. 364 Capítulo 14 Morro do Pilar: novas subjetividades para uma vida sustentável.............. 374 Capítulo 15 Por uma nova cidade: possibilidades de urbanismo regenerativo em Morro do Pilar .......................................... 392 Referências Bibliográficas .................................................................. 412 Imagens e Lembranças .......................................................................... 426 Agradecimentos .................................................................................. 434

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Apresentação

A História Viva de Morro do Pilar

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onhecida no mundo todo por suas belas e variadas paisagens, Minas Gerais apresenta riquezas que vão além das montanhas, dos rios e das cachoeiras majestosas, de seus cerrados, das florestas e da biodiversidade: a história e a cultura de seu povo. Morro do Pilar, município inserido na região da Serra do Cipó, no Médio Espinhaço, possui indícios de ter sido um grande centro de mineração, cujas atividades se iniciaram em 1701, conforme a tradição local. Todavia, a mineração do ouro, fator de origem e desenvolvimento do arraial, já estaria, praticamente, abandonada em princípios do século XIX. Segundo relatos, a primeira fábrica de ferro do Brasil — a Real Fábrica de Ferro — funcionou de 1814 até por volta de 1830, marcando o empreendimento siderúrgico em terras mineiras. Mais de 300 anos se passaram e, hoje, Morro do Pilar planeja os caminhos de seu desenvolvimento e preservar o patrimônio não é contraditório com o crescimento econômico e social. Pelo contrário, impulsiona-o. Um povo sem acervo de conhecimentos, arte e memória não tem alicerces que lhe permitam a projeção para o futuro. Portanto, é fundamental priorizar trabalhos de registro literário. A Manabi orgulha-se de ter contribuído para a elaboração desta importante obra. Convidamos o leitor a percorrer os caminhos da história de Morro do Pilar e conhecer este ambiente vivo e rico, repleto de referências fundamentais para a afirmação e para a construção da identidade do município.

A Manabi

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Apresentação

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Prefácio 1

♦ José Santiago Naud2 ♦

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atural de Minas Gerais, Luiz Cláudio de Oli­ veira preside o Instituto Espinhaço, sediado em Conceição do Mato Dentro, devotado à cultura, sustentabilidade e desenvolvimento sociocultural. Talhado, com certeza e de modo efetivo, para dedicar-se aos questionamentos da História do homem, da biodiversidade, memória viva da Terra e sustentabilidade, antecipa com sabedoria o futuro, marca de sua obra. O fato de ele ser exemplar no ato sinérgico mineiro, força autêntica da vitalidade nacional, reflete igualmente a dinâmica independente de uma literatura singularmente autônoma. Desde os tempos coloniais essa evidência é pujante. Tem valores universais e, na modernidade, pelo menos os cetros de dois nomes o comprovam, e com suprema genialidade, no gênero da ficção e da poesia. Sem dúvida, dois gênios asseguram a organicidade de um enorme conjunto de autores que, na teoria e na prática, confirmam a vitalidade de Minas, sua culminância sustentada pelo exercício de ensaístas ou autores de nível universitário, diuturnos construtores de uma extensa e consistente bibliografia.

Traça-se com isso na linha dos tempos a continuidade humaníssima de uma geomancia primordial, cujo panorama teve início na palavra figurada em signos parietais, posteriormente iluminados pela sabedoria dos antigos: entre inúmeros, os orientais, o pensamento místico da Índia, Egito, Grécia e a Natureza com o divino no homem. Credencial do Espírito. Transmutações da universalidade, confirmação do eterno temporal. Eis o sucesso de tal desvelamento empreendido por tal obra: ciência e fé à luz da realidade. Não será outro o caminho seguido pelo autor. Da geo-história à visão da cultura, e nela a nossa identidade, biodiversidade com o devido respeito ao desenvolvimento sustentável. A partir do Espinhaço Meridional e o reconhecimento que

conferiu à imensidade da região o topônimo de Minas Gerais, pode-se constatar por senso comum acima de conflitos a importância arqueológica da história e a gestão integrada do território. Situam-se o cenário do povo morrense e uma nova visão de suas temporalidades. Fundamental o capítulo sobre o papel das mulheres no campo da cura e, com ele, a chama da compaixão. Também a presença africana é outro assunto importante. Ainda, todo o processo urbano e rural. As riquezas assomam. O veio mineral e a divisória de águas da bacia dos rios São Francisco e Doce, ensinam mil narrativas, as memórias, “saberes, sabores, dissabores”. Uma lição de ecopedagogia: o respeito das águas, o fluxo dos rios e as trilhas humanas. Educação ambiental. Natureza. Homem. Deus. O sonho de uma nova Cidade é pauta e conceito em Morro do Pilar. Um desafio. Pessoalmente, faz anos, Luiz Cláudio, a partir do aeroporto de Confins, levou-me de automóvel a conhecer essa região que agora me brinda com intuição e investigação científica. Acompanhavamnos em espírito as almas generosas do político José Aparecido de Oliveira e do pedagogo Agostinho da Silva, ligados em devoção pelo hífen (hoje cassado por gramáticos) entre integridade e plenitude, as quais, no ato político, antes que usufruto vê serviço e, na ação pedagógica, a busca libertária. Forma régia de respeito ao regional e ao universo. Nisto, nosso prefaciado já comunga intuição e razão, dando voz à de Fernando Pessoa quando afirmou - “A intuição não é senão a socialização da ciência do oculto e ao oculto podem-se achar 3 figuras: O passado, o futuro e o oculto verdadeiramente”. Nesta condição, conforme o mesmo Poeta, “O sábio conhece o que o neófito sabe”. Agora somos todos neófitos!

2 Poeta, ensaísta e “antecipador do futuro”, foi um dos fundadores da Universidade de Brasília (UnB), em 1962. Foi professor de literatura luso-brasileira nas universidades de Yale e na UCLA – EUA; ex-diretor do Centro de Estudos Brasileiros em La Paz (Bolívia), Rosário (Rep. Argentina), Panamá e México.

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Prefácio

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Prefácio 2

MORRO DO PILAR♦ J

osé Carlos Carvalho1

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inas Gerais destaca-se pela variedade do seu território, pela abundância de minerais, pela sua rica biodiversidade, pelas águas que jorram da terra e pela paisagem entrecortada por montanhas, serras e os vales escarpados que lhe dão identidade própria. Neste contexto geomorfológico e fitogeográfico, se sobressai a Serra do Espinhaço — a cadeia de montanhas brasileira que mais se parece com uma cordilheira — que se estende das serranias de Ouro Branco, em Minas, até a Chapada Diamantina, na Bahia.

provavelmente, uma das mais significativas epopeias de deslocamento e migração da população em direção às terras inóspitas e desconhecidas de uma nação continental como a brasileira que, ainda no limiar do século XVIII, apresentava condições extremamente precárias de transporte e logística de deslocamento.

No Espinhaço Meridional, encontramos Morro do Pilar, cidade altaneira encrustada nos alcantilados da Serra, na sua porção leste, erguida como uma sentinela no alvorecer da colonização mineira, nas bordas do Sertão do Mato Dentro, por um punhado de pioneiros: gente destemida movida pela esperança e pela ambição que semeou o embrião de várias vilas e do que é, hoje, a hospitaleira Morro do Pilar.

Graças às Bandeiras e aos bandeirantes, as minas gerais ganharam importância econômica e grande visibilidade política. Aqui se instalaram, entre outros, Gaspar Soares que encontrou a “terra prometida” nas escarpas de uma serra, bem ao redor de um morro que viria ter o seu nome. Durante todo o ciclo do ouro e do diamante, esta região recebia toda a atenção da Coroa portuguesa que, ao deslocar para cá os seus interesses e suas prioridades em relação à Colônia, auferia recursos das minas. Sob controle de suas autoridades, o metal precioso lhe permitia maior inserção em uma Europa, praticamente, dominada pelo poderio inglês.

As jazidas de ouro, no início, e as de ferro, em seguida, serviram como a motivação dos primeiros colonizadores, garimpeiros e faiscadores que não temiam as trilhas sinuosas e íngremes das montanhas, escalando as serras e galgando o morro onde se estabeleceriam, constituindo uma saga de gente altiva que é a marca perene dos morrenses.

Ao mesmo tempo em que se expandia demográfica, econômica e socialmente, crescia na região o sentimento autonomista que atingira seu apogeu com a Inconfidência Mineira. Mas, é relevante mencionar que Minas Gerais tornou-se Província sem antes ter sido Capitania Hereditária, ou seja, os habitantes da época conquistaram um território sem donatário.

Assim como outras vilas que surgiram em virtude da mineração e em torno das jazidas, Morro do Pilar, também, foi construída sob o mesmo formato: exploradores e escravos dedicavam-se ao árduo trabalho do garimpo, constituindo os aldeamentos que contribuíram para sedentarizar a população ao lado, ou próximo, dos jazimentos auríferos descobertos.

Este período foi marcado pela religiosidade do povo e pela fé cristã trazida pelos portugueses. Não por acaso, nossas cidades coloniais, de arquitetura barroca setecentista, encontram nas igrejas sua maior expressão e esplendor. Em virtude da construção da capela, na localidade, em homenagem a Nossa Senhora do Pilar, o Morro Gaspar Soares tornar-se-ia Morro do Pilar. Esta toponímia desafiou o tempo, as gerações e as procelas para orgulho dos seus moradores.

A chegada dos bandeirantes e a descoberta das minas de ouro foram decisivas para a ocupação do território que é hoje o do Estado de Minas Gerais: um exemplo modelar de nossa cultura. As Bandeiras vindas de São Paulo representaram,

No alvorecer do século XIX, com a decadência da produção aurífera, as pessoas de maior vocação empreendedora

Ambientalista, foi ex-Ministro de Estado de Meio Ambiente e ex-Secretário de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais. 1

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começam a vislumbrar na exploração do minério de ferro, abundante no Morro do Pilar, uma alternativa para expansão dos negócios. Surge daí, graças ao empreendedorismo de Manuel Ferreira de Câmara Bittencourt, o Intendente Câmara, a ideia pioneira de se instalar uma fábrica de ferro em Morro do Pilar. A esta iniciativa, Manuel Ferreira, que já havia sido designado Intendente da Coroa, o primeiro brasileiro a ser designado para esta elevada função, se devotou inteiramente, colocando de pé a primeira fundição de ferro do Brasil em uma época ainda marcada e dominada pela pura e simples extração dos recursos minerais. Com Intendente Câmara, em Morro do Pilar, nasce, também, a vocação siderúrgica de Minas. Na mesma época em que o Intendente lutava para realizar seu sonho de produzir ferro, Morro do Pilar e a região eram visitadas pelo francês Auguste de Saint’Hilaire, autor de uma vasta coletânea de estudos das plantas brasileiras e dos costumes da nossa gente durante a primeira metade do século XIX, tendo sido considerado o mais renomado naturalista que esteve no Brasil por mais de uma oportunidade e em grandes expedições para estudos botânicos da flora tropical. Três séculos depois dos primeiros habitantes, que ocuparam o morro encrustado nas cumeeiras da vertente leste do Espinhaço, a vida da cidade e a de seu povo

continua gravitando em torno da mineração que alimentou os sonhos dos pioneiros. Do ouro ao ferro, a população de Morro do Pilar é testemunha da história de Minas, do ciclo do ouro e da era ferrífera que se encontra no seu apogeu. No início do terceiro milênio, os morrenses têm clara noção da importância que a mineração continua desempenhando para o seu desenvolvimento econômico e social, mas, têm, também, conhecimento de que uma civilização, um povo e uma cidade não vivem sem os recursos naturais que lhes asseguram a sobrevivência e a permanência na história. Por isso, além das minas de ferro e de outros minerais, Morro do Pilar está atenta às outras minas: as minas d’água sem as quais a vida não se viabiliza; à sua tradição secular que é a mina da sua cultura e da sua identidade; à sua rica biodiversidade que é a mina da vida vegetal e animal e sem a qual a vida humana emurchece e morre; à beleza cênica de sua paisagem, mina do encantamento e da autoestima do seu povo. É em um ambiente austero e lúdico, mas eminentemente bucólico, que se destacam as trançadeiras, mulheres especiais que cultivam os ensinamentos ancestrais, artesãs que muito além de trançar a palha, trançam os fios invisíveis das aspirações do povo morrense. Com um passado três vezes secular, Morro do Pilar quer antecipar o seu futuro.

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Geo-História de Morro do Pilar ♦ Francisco Javier Rios1 ♦ ♦ Robério Abreu2 ♦

Morro do Pilar: na fronteira leste do Espinhaço Meridional

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Município de Morro do Pilar apresenta uma grande variedade de rochas e paisagens que se estendem desde as montanhas do Espinhaço, em seu limite oeste, até os campos de peneplanícies que moldam sua porção leste. As montanhas de quartzitos, com planaltos e depressões que formam a estrutura da Serra do Espinhaço, uma espécie de coluna vertebral do Brasil Central, constituem um caráter distintivo do município. A procura e a extração do ouro, no século XVIII, e do ferro, já no século XIX, estão intimamente ligadas ao povoamento colonizador português da Serra do Espinhaço Meridional e à própria origem da vila de Morro de Gaspar Campos que gerou a cidade de Morro do Pilar. Hoje, o município caracteriza-se pela presença de diferentes tipos de bens minerais, alguns deles raros, que o diferenciam de outras regiões do Espinhaço. A indústria da mineração, especialmente a do ferro, surge como um atributo fundamental na economia regional. Entretanto, metais nobres como, por exemplo, a platina, e concentrações de fósforo constituem reservas minerais que poderão adquirir importância no futuro. A maioria dos pesquisadores define a Terra como um planeta rochoso, com mais de 4,5 bilhões de anos, formado por dezenas de blocos de diferentes tamanhos que estão em constante movimento relativo e recebem o nome de placas tectônicas. O Espinhaço está localizado na placa tectônica da América do Sul. A Terra pode ser vista como um corpo em constante transformação, o que é confirmado pelas características de sua evolução. De forma muito simplificada, isto significa que terrenos, hoje em áreas continentais, podem ter-se originado em áreas marinhas ou oceânicas. A integração de boa parte das diferentes “porções” que constituíram a América do Sul e, portanto, o Brasil, ocorreu entre 600 e 500 milhões de anos (lembrar que a idade da Terra é de 4,6 bilhões de anos). Antes disso, a região, hoje, conhecida como Espinhaço, onde está inserido Morro do Pilar, formou parte de outros continentes, migrando por diferentes latitudes do planeta.

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Francisco Javier Rios é Pesquisador Titular da CNEN / CDTN. Possui DSc em Geologia Econômica e MSc em Geoquímica. Francisco R. Abreu é Geólogo Consultor. Possui Msc em Geociências. Especialista em Geologia Econômica. Foi Diretor-Presidente da Sociedade Geológica Brasileira, Núcleo Minas Gerais.

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Primeiras minas de Ouro de Morro do Pilar, datadas do Século XVIII

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A rica geodiversidade da porção sudeste da Serra do Espinhaço, onde está inserido o município de Morro do Pilar, além de ter atraído os primeiros colonos no início do século XVIII, tem sido objeto de estudos de cunho geológico nos últimos duzentos anos.

Geologia da região de Morro do Pilar A rica geodiversidade da porção sudeste da Serra do Espinhaço, onde está inserido o município de Morro do Pilar, além de ter atraído os primeiros colonos no início do século XVIII, tem sido objeto de estudos de cunho geológico nos últimos duzentos anos. Os terrenos da região representam um conjunto diversificado de formações rochosas de idades précambrianas que estão associadas a ocorrências de importantes bens minerais dos quais se destacam grandes jazidas de minério de ferro e as antigas lavras de depósitos de ouro e platina. O aproveitamento econômico desses bens foi o fator determinante para o povoamento da região durante os tempos coloniais e, mais recentemente, tem atraído empresas de mineração de grande porte que estão interessadas na produção de minério de ferro. O acervo bibliográfico existente sobre a região, desde a descoberta dos depósitos diamantíferos no século XVIII, inclui mais de quatro centenas de trabalhos especialmente a partir do trabalho de Eschwege (1822) que definiu o termo Serra do Espinhaço. Sínteses parciais desses trabalhos podem ser encontradas, por exemplo, em Freyberg (1932), Pflug (1965), Renger (1979), Uhlein (1991), Almeida-Abreu (1989, 1993), Knauer e Grossi-Sad (1995), Renger e Knauer (1995). O substrato rochoso da região de Morro do Pilar é constituído por formações que foram geradas desde os tempos Aqueanos, há mais de dois bilhões e meio de anos, até o final do Proterozóico, quinhentos milhões de anos atrás. Sobre o substrato antigo 24

desenvolveram-se perfis de solos e formações superficiais mais recentes, representadas por pavimentos de canga ferruginosa e depósitos aluviais arenosos. A caracterização das formações geológicas aflorantes na região e a descrição de suas principais ocorrências minerais serão apresentadas a seguir.

As Rochas Metamórficas mais Antigas As formações rochosas mais antigas da região de Morro do Pilar ocupam a porção leste do município e apresentam terrenos que fazem parte de um antigo continente sobre o qual foram depositados os sedimentos que hoje edificam a Serra do Espinhaço. Esse embasamento mais antigo é composto por duas unidades principais: o Complexo Cristalino e a Sequencia Mata-Cavalo. O primeiro, que aflora ao longo do Vale do Rio Santo Antônio, é constituído por rochas metamórficas de alto grau, geradas há mais de dois bilhões de anos, representadas por gnaisses bandados e granitos foliados. Os terrenos onde ocorrem essas rochas são os de altitudes mais baixas da região e facilmente reconhecíveis pela coloração alaranjada de seus solos. Constituem o típico relevo em mares de morros com colinas suavemente onduladas. A Sequencia Mata-Cavalo reúne os corpos de rochas denominadas “meta-ultramáficas”, mais conhecidas como pedra-sabão, e distribui-se desde a sede do município até seu limite norte com Conceição do Mato Dentro. Essas rochas são constituídas por minerais ricos em magnésios, apresentam um forte magnetismo e foram formadas a partir da

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Paredões de rochas do Espinhaço, formadas entre 900 e 1700 milhões de anos atrás, no Período denominado Proterozóico

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cristalização de magmas gerados por fusões rochosas a grandes profundidades. Sobre elas desenvolveu-se um espesso manto de solo muito fértil, de coloração marrom-avermelhada, ao qual se associam, com frequência, cristais milimétricos de magnetita. Exposições frescas de rochas desta unidade podem ser observadas ao longo do leito da Estrada real, exatamente, no trecho da saída norte da cidade.

as forMações ferríferas bandadas o conjunto serras, alinhado na direção norte-sul na porção central do município, onde foi edificada a cidade de Morro do Pilar, está sustentado por rochas predominantemente ferruginosas do Grupo Serra da Serpentina. Tais rochas ferruginosas são conhecidas como formações ferríferas bandadas, caracterizadas pela alternância em três níveis, claros e escuros, de espessuras milimétricas. os níveis claros, geralmente de coloração branca, são compostos, de maneira dominante, por cristais de quartzo de granulação muito fina. os níveis de coloração negra, ou avermelhada, possuem composição mineralógica e apresentam cristais de hematita e outros óxidos de ferro. as rochas de tal unidade, também, ocorrem no extremo leste do município, sustentando o conjunto montanhoso conhecido como Serra da Serpentina. Essas formações ferríferas foram geradas em uma antiga plataforma marinha, com idade estimada entre dois bilhões e um bilhão e setecentos milhões de anos (vide adiante). as feições topográficas diagnosticadas dos terrenos do Grupo Serra da Serpentina são as elevações de encostas íngremes, com topos aplainados sustentados por crostas ferruginosas. Boas exposições de formações ferríferas podem ser observadas em vários cortes e barrancos nas margens das ruas da cidade.

sobre os terrenos do denominado Supergrupo Espinhaço. Este conjunto de rochas, resistentes à erosão, sustenta as principais elevações da Serra do Espinhaço, reúne formações depositadas em bacias sedimentares que evoluíram, durante o Proterozóico Médio, no período entre novecentos milhões e um bilhão e setecentos milhões de anos atrás. os sedimentos antigos foram depositados em um conjunto de ambientes marinhos, costeiros e continentais. o variado conjunto de terrenos do Supergrupo Espinhaço, aflorantes nas encostas da cordilheira homônima, na porção oriental do município de Morro do Pilar, foi dividido em: ♦ Unidade

itambé do Mato dentro é formada por

rochas depositadas em um ambiente deltaico com atividade vulcânica associada e está representada por rochas quartzíticas de granulação fina com finas lâminas ricas em hematita nas quais se intercalam corpos de origem vulcânica (filitos hematíticos) e porções de metaconglomerados. ♦ Unidade

rio Preto é constituída por rochas que

podem ter sido geradas em ambiente lacustre, ou marinho, sobre a influência de marés. reúne rochas quartzíticas de granulometria fina, de coloração branca à esverdeada, que gradam para quartzitos bandados carbonáticos com teores elevados de fósforo. ♦ Unidade

Serra do lobo está representada por

rochas metareníticas (são arenitos deformados por processos de alta pressão), de granulometria fina à grossa, com coloração branca ou rosada e intercalações de conglomerados que representam uma sedimentação do tipo lençol de seixos. ♦ Formação

Galho do Miguel, de ocorrência

restrita ao extremo leste do município, onde é

as rocHas das encostas da serra do esPinHaço a porção leste do município de Morro do Pilar é dominada pela paisagem montanhosa desenvolvida

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representada por paredões de arenitos formados pela acumulação de cristais de quartzo depositados ao longo de milhares de anos em ambiente eólico costeiro.

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MaPa GeolóGico de Morro do Pilar

Mapa Geológico do Município de Morro do Pilar. Modificado do Mapa Geológico do Estado de Minas Gerais, elaborado pela CODEMIG Geo-História de Morro do Pilar | CaPÍTUlo 1

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As Rochas Escuras ou Máficas

Sobre a origem do ferro

Corpos de rochas escuras (máficas), localmente conhecidas como pedras cabo-verde, ocorrem de forma aleatória, recortando os terrenos das unidades anteriormente descritas. Estas rochas escuras, conhecidas como Suite Pedro Lessa, foram originadas por fusões magmáticas, durante a separação de placas tectônicas, há novecentos milhões de anos e sobre elas desenvolveram-se mantos de solos férteis ferruginosos, caracterizados pela cor avermelhada. Diferenciam-se facilmente dos solos arenosos, mais claros, gerados sobre as unidades de origem sedimentar.

Os primórdios dos depósitos de ferro encontrados em Morro do Pilar e na Serra do Espinhaço Meridional originaram-se em bacias oceânicas há, aproximadamente, dois bilhões de anos (ROLIM; ROSIERE, 2011), época em que a atmosfera do planeta era redutora, ou seja, quase não havia oxigênio no ar.

O Movimento Orogênico Araçuaí Os terrenos do município de Morro do Pilar, assim como toda borda leste da Serra do Espinhaço, foram submetidos a processos de deformação e metamorfismo relacionados com a elevação da antiga cadeia de montanhas conhecida como Orógeno Aracuaí que está associado com a geração, em torno de quinhentos e trinta milhões de anos, do supercontinente conhecido Gondwana.

Os Pavimentos Ferruginosos No Município de Morro do Pilar, podemos encontrar, com frequência, rochas mais jovens conhecidas como formações superficiais das quais destacamos um das mais importantes: os pavimentos de crostas ferruginosas. Estes são denominados cangas ou cangueiros que ocorrem no topo das formações ferríferas bandadas do Grupo Serra da Serpentina e foram geradas por um longo processo de formação de perfis de solo, conhecido pela denominação de lateritização, desenvolvido nos últimos sessenta milhões de anos. Um grande pavimento de canga pode ser observado no topo da serra, imediatamente ao sul da cidade sede do município (vide mais adiante). Outras formações superficiais, de ocorrência expressiva, são os aluviões arenosos associados aos leitos dos principais rios e suas superfícies de inundação que são as unidades mais jovens da região.

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Como foi que o ferro se concentrou nas águas do mar até formar gigantescos depósitos? Tentaremos explicar. Consideremos a existência de um oceano “estratificado” que apresente águas superficiais oxigenadas e águas profundas sem oxigênio (BEKKER et al., 2010). Ao mesmo tempo, imaginemos que nas profundezas do mar havia vulcões submarinos como, a título de exemplo, acontece nas atuais cordilheiras que estão no fundo dos oceanos. Esses vulcões, naquelas épocas, exalavam permanentemente grandes quantidades do íon ferro (Fe+2) que se acumulava nas águas profundas dos oceanos. Entretanto, as correntes submarinas, sempre presentes, poderiam “carregar” o ferro até os níveis superficiais onde havia oxigênio disponível. Nesses níveis oxidantes próximos à superfície marinha, o ferro junta-se a outros compostos, formando óxidos, carbonatos ou silicatos. Posteriormente, esses compostos, ou partículas coloidais, depositarse-iam no fundo do mar, formando gigantescos mantos coloidais. Os colóides de ferro poderiam ser novamente transportados pelas correntes submarinas de turbidez até as bordas das bacias marinhas. O progressivo aumento de oxigênio na atmosfera teria incrementado o processo de formação de colóides, gerando os depósitos de óxidos de ferro nas profundezas e consumindo, aos poucos, a maior parte do ferro (Fe+2) disponível nos oceanos. Com o passar do tempo, o incremento contínuo do teor de oxigênio tornou a água do mar pobre em ferro, impossibilitando a formação de novos grandes depósitos desse metal. Então, é pelo motivo acima exposto que, após a formação dos depósitos de Morro do Pilar, há dois bilhões de anos, quase não há registros de formação

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Provável perfil do mar, em Morro do Pilar, há 1700 milhões de anos

Modelo que explica a origem das formações ferríferas no fundo do mar há quase dois bilhões de anos. Modificado de Becker et al., 2010. Etapas: (1) Os vulcões do fundo do mar expelem ferro magmático. (2) Os íons de ferro se dispersam no fundo do mar, e, posteriormente são arrastados para níveis mais rasos pelas correntes denominadas “upewelling”. (3) O ferro entra em contato com o oxigênio das águas superficiais e se oxida. Assim forma óxidos, carbonatos e silicatos, que se depositam no fundo do mar na forma de películas, como se fosse um “gel”. As capas desse gel originarão, com o passar do tempo, as formações ferríferas. Milhões de anos depois, o mar desaparece. E, pela atividade das forças tectônicas, as rochas do fundo desse mar (as formações ferríferas) se transformarão em montanhas, a exemplo da Serras da Escadinha e da Serpentina. (4) Paralelamente, na borda desse mar, foram-se depositando, ao longo de milhares de anos, grandes quantidades de sedimentos (mormente areias), trazidos pelos ventos, rios e mareias. Com o passo do tempo, e também devido às forças tectônicas, esses sedimentos se transformaram nas montanhas do Espinhaço.

de novas jazidas de ferro. Entretanto, na Serra do Espinhaço, aconteceu uma exceção, entre oitocentos e cinquenta e seiscentos e trinta milhões de anos, que coincidiu com uma das maiores eras glaciais suportadas pelo planeta Terra. O avanço dos gelos abarcou todo o Espinhaço, gerando glaciares, até mesmo no setor de Morro do Pilar. Os poucos registros que ficaram da presença desses mantos de gelo estão presentes nas Formações Serra do Catuni e Nova Aurora, nos centro e norte da Serra do Espinhaço. Na região de Porteirnha, em especial, existem registros da presença de uma capa de gelo que isolou a atmosfera oxidante, possibilitando que exalações submarinas recarregassem em ferro as águas oceânicas. Ao término dessa era glacial, em contato com a atmosfera, ocorreu uma nova sedimentação de ferro, originando formações ferríferas ricas em hematita e jasper (ROSIERE; RIOS, 2004). A eficiência do modelo que originou as formações

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ferríferas no fundo do mar já foi testada e comprovada por especialistas de diferentes partes do mundo. Resulta mais difícil explicar os mecanismos que produziram o incremento dos níveis de oxigênio na parte mais superficial desses oceanos antigos. O aumento de níveis poderia ser provocado: (a) pela decomposição da água do mar; (b) pela radiação solar ultravioleta; (c) pela fotossíntese localmente induzida por algas verde azuladas ou cianobactérias (CORREIA NEVES et al., 2008); e (d) pela influência de emanações vulcânicas que alimentariam oásis oxigenados, potenciais focos de origem de sedimentos ferríferos. Após o estabelecimento das formações ferríferas de Morro do Pilar, constituídas basicamente por hematita e quartzo, ocorreram outros eventos que modificaram essas rochas, deixando-as com a aparência que apresentam hoje em dia. Tais eventos foram (a) estruturação tectônica; (b) metamorfismo; e (c) hidrotermalismo.

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Os primeiros mineradores, que procuravam ouro nos depósitos de aluviões nas margens e nos leitos dos principais rios que recortam o município, depararam-se com uma surpresa. Além do ouro, algumas dessas antigas lavras apresentaram a ocorrência de grãos de platina.

De forma simplificada, a “estruturação tectônica” nada mais é do que a deformação das formações ferríferas, gerando dobras, produzidas pela pressão associada à movimentação dos blocos que constituem a crosta do planeta. O metamorfismo é um processo originado a grandes profundidades e pressões que gera novos minerais que substituem os préexistentes. Já o hidrotermalismo é produzido pela circulação de soluções muito quentes que podem transportar metais ou compostos moleculares (CO2, CH4), precipitando minérios (ex. ferro). Por meio desses processos, gera-se o minério de ferro que pode ser diferenciado das formações ferríferas. Diferentemente destas, aquele é constituído por concentrações altíssimas (até 70%) de óxidos de ferro com pouco ou nenhum quartzo.

in southeastern of Brazil, de V. Rolim e C. A. Rosiere, inserido em Let´s talk ore deposits (2011, p. 927-929). A “corrida” pelo ferro, no Espinhaço Meridional, começou no início da década de 2000 quando quatro grandes empresas mineradoras, a MMX, VALE, Terrativa (associada com a multinacional BHP-BILITON) e Rio Tinto começaram, em forma independente, programas de prospecção na região, abrangendo estudos aerogeofísicos, mapeamento geológico detalhado em escalas de até 1:5000, e importantes trabalhos de perfuração para obtenção de amostras. Os estudos feitos, somados aos testes geometalúrgicos, geotécnicos, hidrogeológicos e logísticos, provaram a viabilidade econômica dos depósitos de ferro, incluindo a possibilidade de minerá-los em curto prazo (ROLIM; ROSIERE, 2011).

Características distintivas do minério de ferro de Morro do Pilar

As reservas da MMX foram repassadas para o grupo multinacional Anglo Ferrous que concentrou suas atividades em Conceição do Mato Dentro. Já em 2011,

Os depósitos de ferro das Serras da Serpentina e Escadinha são espessas camadas de minério ferrífero (hematita) e quartzo com teores variáveis entre 30% e 65% de ferro, contendo algumas impurezas de fósforo e alumina. As formações ferríferas estão concentradas em dois horizontes: o inferior apresenta uma espessura maior, em torno de 120m, podendo atingir 350m; e o horizonte superior é bem mais fino, não ultrapassando os 30m. Essas jazidas projetam-se, ao norte, no município de Conceição do Mato Dentro.

foi criada a mineradora pré-operacional MANABI

Oitenta por cento das reservas de Morro do Pilar são da variedade “minério duro” e de teores menores de hematita de alto grau, conforme está analisado no artigo The Conceição do Mato Dentro Iron Province

de ferro. O minério concentrado será levado por

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que adquiriu os ativos de Morro do Pilar Minerais. A nova empresa planeja desenvolver a mineração de ferro em Morro do Pilar (que será do tipo céu aberto) e deverá entrar em operação em 2018. A MANABI detém reservas medidas de minério de ferro da ordem de 1,33 bilhões de toneladas. Ainda de acordo com Rolim & Rosiere, as reservas potenciais de Morro do Pilar podem chegar até 4 bilhões de toneladas. O teor do minério de ferro, depois de beneficiado, poderá atingir 68% de óxido meio de um mineroduto até o porto de Linhares, no Espírito Santo, e será exportado para o Oriente Médio e a Ásia.

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As maravilhosas serras de quartzito do Espinhaço na borda oeste do município de Morro do Pilar. Geologicamente compõem as Unidades Galho do Miguel e Serra do Lobo

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As ocorrências de metais nobres em Morro do Pilar A Platina, o Cromo e o Irídio de Morro do Pilar O povoamento do município de Morro do Pilar ocorreu em função das descobertas de ouro na região pelos Bandeirantes no final do século dezessete (vide próximo item). Os primeiros mineradores, que procuravam ouro nos depósitos de aluviões nas margens e nos leitos dos principais rios que recortam o município, depararam-se com uma surpresa. Além do ouro, algumas dessas antigas lavras apresentaram a ocorrência de grãos de platina. Os registros mais importantes da ocorrência de platina, um metal nobre, estão localizados na porção noroeste do município, nos aluviões dos córregos Salvador, Lajes e Ouro Branco. A platina, também, ocorre na região central de Morro do Pilar, em um trecho do Rio Picão, próximo à Fazenda Limeira. Estas ocorrências de platina fazem parte da faixa planitífera que bordeja, a leste, a Serra do Espinhaço desde a região de Ouro Preto até as proximidades de Serro. A fonte primária, ou seja, a rocha que originou tal faixa de ocorrências de platina, ainda é um tema em aberto. Em alguns locais, a platina e outros metais, conhecidos como platinóides, estão associadas ao ouro dos depósitos, conhecidos como Jacutingas, que foram gerados a partir de fluidos hidrotermais associados ao processo de desidratação dos pacotes rochosos envolvidos na orogênese Araçuaí. Esses fluidos foram capazes de lixiviar os metais nobres presentes em pequenas quantidades nas diversas formações geológicas da região e, posteriormente, transportar e depositar novamente os metais sobre a forma de veios com teores metálicos elevados. A platina poderia, originalmente, estar associada a sulfetos e sulfosais disseminados em corpos de rochas máficas e ultramáficas que são denominadas Sequencia Mata-Cavalo e que, também, apresentam

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cromitas e cromomagnetitas. Esta última liga é interessante, pois pode apresentar irídio. Em Morro do Pilar foi encontrada uma liga metálica, associada às cromomagnetitas, denominada platinirídeo, com até 72% de irídio (AGNELI; CARVALHO, 1996).

Sobre o Ouro de Morro do Pilar A descoberta de depósitos de ouro na borda leste da Serra do Espinhaço pelos bandeirantes, no final do século XVII, foi responsável pelos primeiros assentamentos de colonos nessa longínqua e inóspita região. Os primeiros povoados correspondem a sítios onde se localizavam as principais jazidas auríferas até então exploradas. A título de exemplo, citamos a jazida de Iviturui, no Serro, cuja exploração teve início em 1702. Geralmente, os depósitos de ouro estavam associados a aluviões que são sedimentos acumulados ao longo de milhares de anos nos leitos ativos e abandonados dos principais rios e córregos que drenam a borda da Serra do Espinhaço. Assim, os teores auríferos dos aluviões deveriam ser muito altos para justificar os custos de lavra deles em região tão isolada. Entretanto, o primeiro ouro descoberto na atual cabeceira do município não foi encontrado nos vales fundos dos córregos e, sim, no alto do morro que contorna o setor sul da cidade. O ouro aí encontrado pelos garimpeiros de Gaspar Gomes continha paládio. Assim, desde o tempo das descobertas pelos Bandeirantes, a produção aurífera na região tem sido feita de forma artesanal por garimpeiros e faiscadores moradores da região. Apesar do decréscimo paulatino dos teores de ouro, a extração, durante o século XVIII, foi realizada em forma continuada até 1743. Neste ano, foi que aconteceu um grande desabamento em uma das principais galerias, o que tomou a vida de 18 escravos garimpeiros, fato que levou ao fechamento das tarefas de extração. Hoje, a produção de ouro na região encontra-se praticamente extinta.

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Montanhas de quartzitos da Unidade Rio Preto que podem apresentar teores de fósforo

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Onde estão as rochas com fósforo de Morro do Pilar O elemento fósforo, utilizado na fabricação de fertilizantes químicos, também, está presente na Serra do Espinhaço. No distrito de Morro do Pilar, estão localizados alguns dos minérios fosfáticos mais antigos do Brasil e do mundo, originados na época em que se formou a Bacia do Espinhaço. O fósforo aparece associado no nível específico dos quartzitos, denominado Unidade Rio Preto. Estudos detalhados revelaram que os depósitos de fosfato da região de Conceição do Mato Dentro (BOUJO et al., 1994; ALCANTARA MOURÃO, 1995) estão associados a rochas ricas no mineral apatita e apresentam teores de 12% de óxidos de fosfato.

Perfis geoturísticos mais representativos de Morro do Pilar Reconhecendo a geologia e as escavações minerais antigas de Morro do Pilar Percorrendo a região central da cidade em direção ao topo da serra, podem ser observados grandes afloramentos nos cortes de pedra que margeiam ruas, praças e outros espaços públicos. Esses cortes foram, em grande parte, escavados nas formações ferríferas bandadas pertencentes ao Grupo Serra da Serpentina. Diz-se, ainda, que são rochas de fácil identificação graças à presença de bandamento marcado pela alternância entre camadas de coloração negra ou avermelhada, compostas por óxidos de ferros e por camadas brancas (ou em tons de cinza), constituídas, predominantemente, por cristais milimétricos de quartzo. No topo da serra, ao sul da cidade, ocorre uma grande área plana de vegetação rasteira cujo solo é sustentado por uma crosta ferruginosa denominada de canga laterítica. Este tipo de canga é uma rocha ferruginosa gerada a partir da lixiviação seletiva de rochas, originalmente, ricas em ferro. No caso de

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Morro do Pilar, as cangas foram geradas a partir da dissolução dos níveis de quartzo das formações ferríferas bandadas, gerando um resíduo rico em óxidos e hidróxidos de ferro. As áreas de canga costumam funcionar como zona de “recarga” de águas subterrâneas. O próprio sistema ferruginoso constitui um aquífero com alta capacidade de recarga e armazenamento de água. Assim sendo, o potencial de poluição de todo o sistema é bastante elevado quando ocorrem alterações de magnitude nas partes mais altas do relevo (FONSECA DO CARMO et al., 2012). Portanto, a preservação das cangas é muito importante já que objetiva o futuro aprovisionamento de água da população. É nesse platô do alto da serra onde se encontram os principais vestígios de mineração da região. Nas bordas, várias escavações superficiais com dimensões variando entre dezenas e centenas de metros podem ser vistas. Nas paredes de algumas das cavas a céu aberto, podem ser encontradas as entradas das galerias de antigas minas subterrâneas de pequeno porte. As minas subterrâneas foram escavadas nas formações ferríferas bandadas logo abaixo da superfície recoberta por cangas. O que representam os antigos registros de mineração? Provavelmente, dois tipos de minérios foram lavrados no alto da serra: corpos muito ricos em minério de ferro e veios primários de ouro do tipo Jacutinga. Os corpos ricos em minério de ferro foram lavrados para a produção de ferro e usados na primeira fundição de ferro do Brasil que foi construída em Morro do Pilar. Os veios de ouro, conhecidos como do tipo Jacutinga, representam a fonte primária dos depósitos de ouro aluvionar dos riachos e córregos das porções mais baixas da cidade.

Os quartzitos e a divisória d’águas das bacias do São Francisco e do Doce O acesso ao município de Morro do Pilar, vindo pela estrada MG 030, permite conhecer alguns dos pontos topográficos mais altos da região, localizados

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Rochas quartziticas da Unidade Serra do Lobo, dobradas e deformadas por processos tectônicos há milhões de anos

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logo antes de chegar ao trevo da MG 232. Este alto topográfico, de até 1450m, marca a divisa dos municípios de Morro do Pilar e Santana do Riacho. E, ao mesmo tempo, constitui uma das divisórias de águas mais importantes do Brasil, separando as bacias do Rio São Francisco e do Rio Doce. As águas de todos os córregos de Morro do Pilar descem em direção ao Rio Doce que fornece uma conexão direta com o Oceano Atlântico. Assim, diferentemente do que ocorre com boa parte dos municípios inseridos na Serra do Espinhaço, Morro do Pilar não forma parte da bacia do São Francisco, pois suas águas orientam-se para o Espírito Santo. No trecho, após a Pedra do Elefante, entre a histórica Fazenda Palácio e o trevo na interseção das estradas MG 030 e 232, podemos acompanhar uma sucessão de rochas esbranquiçadas que formam pequenos morros. São reconhecidas, geologicamente, como quartzitos finos, englobados na Unidade estratigráfica Serra do Lobo. Tais rochas formaram-se, ao longo do tempo geológico, a partir de areias que foram submetidas a grandes pressões devido a eventos deformacionais que originaram o Espinhaço. Como resultado, originouse uma rocha de baixa porosidade em partes xistosa e com muito quartzo e micas. Geograficamente, a região da Serra do Lobo é uma savana estépica com pouca vegetação, conhecida como gramino-lenhosa. Nos morros de quartzito, ao costado do caminho, é frequente a presença de canelas-de-ema que podem ter mais de 200 anos, o que evidencia a importância da sua preservação. É interessante observar que todos os quartzitos da Serra do Lobo, que formam esses morros, estão inclinados ao oeste. Tal fato fica claramente perceptível para quem olha as serras desde a estrada em direção ao Canyon do Minuto ou ao Vale do Travessão. Verifica-se que as montanhas mais altas, a exemplo da Pedra do Elefante, apresentam uma ladeira bem pronunciada. Trata-se da face orientada para oeste, uma consequência direta da “direção de mergulho do acamamento”, ou seja, da inclinação estratigráfica resultante de esforços tectônicos e da erosão ao longo dos tempos, favorecida por essa 36

característica geológica. Interessante notar, também, que todas as grandes cachoeiras do município, a exemplo da do Funil, estão localizadas dentro da Unidade Serra do Lobo. Após o trevo das MG 030 e MG 232, podemos acompanhar as rochas quartzíticas, ao longo da estrada MG 232, em direção à cabeceira do município. Na altura da ermida da Virgem, as rochas tornam-se mais avermelhadas, com grandes fendas verticais, o que é um indicador de que estamos chegando aos denominados níveis fosfatados de quartzitos nos quais é possível encontrar o mineral apatita, um dos principais portadores de fósforo. No corte da estrada, esses quartzitos, denominados geologicamente de Unidade Rio Preto, são caracteristicamente estratificados, apresentando bandeamentos acinzentados e até levemente avermelhados e amarelados. As fraturas verticais, ou de grande inclinação, favorecem a formação de pequenas aberturas por causa da erosão, chegando a constituir pequenas grutas. São frequentes as lapas. A parte superior dessas estruturas, geralmente, está formada por quartzitos estratificados resistentes, com níveis compactos, comumente silicosos. O “teto” das lapas, devido à composição, foi mais resistente à erosão do que as paredes que o sustentam, formando beirais naturais que têm servido de proteção aos povos primitivos da região. Não é por acaso que boa parte das pinturas rupestres é encontrada nessas lapas.

De Morro do Pilar à Serra da Escadinha pela Estrada Real O trecho da antiga Estrada Real que ligava o distrito Diamantino até Vila Rica, conhecido como Caminho dos Diamantes, era o principal acesso à Vila de o Morro do Pilar durante os tempos coloniais. Este antigo caminho transformou-se em estrada ao longo da qual foi instalada a linha de transmissão telegráfica. Hoje, o trecho da Estrada Real que recorta, diagonalmente, de norte para sudeste, o município de Morro do Pilar pode ser percorrido por

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Minério de ferro hematita, magnetita e especularita que podem aparecer associados ao ouro no interior das galerias exploradas até o século XX

veículos leves de passeio. O trecho com a geologia mais interessante é o que se inicia nas cercanias da cidade e termina na centenária Fazenda das Lages que se localiza no limite norte do município.

dos cortes de estrada, uma série de afloramentos de formações ferríferas bandadas, de coloração negra, e um forte brilho metálico com intercalações de rochas xistosas pertencente ao Grupo Serra da Serpentina.

Logo depois da saída da cidade em direção à Conceição do Mato Dentro, a 400 metros a norte do marco No-358 da Estrada Real, observa-se no leito da estrada um afloramento de pedra-sabão, de coloração ocre, pertencente à Sequencia MataCavalo. No local, pode-se notar o típico perfil de solos argilosos, de coloração marrom-avermelhada, que se desenvolvem sobre esse tipo de rocha ultramáfica.

Logo a frente, na ponte sobre o córrego MataCavalo, no marco No-355 da Estrada Real, ocorre um afloramento raro onde pode ser notado um contato, por falha tectônica, entre rochas xistosas do Grupo Serra da Serpentina sobrepostas sobre quartzitos laminados da Unidade Itambé do Mato Dentro. Daí até o norte do município são frequentes pequenos afloramentos e blocos de diferentes rochas ferruginosas do Grupo Serra da Serpentina. Uma boa exposição dessas rochas encontra-se bem à frente do casarão centenário da sede da Fazenda das Lajes próximo ao marco No-353 da Estrada Real.

Seguindo na direção norte, percorrem-se terrenos suavemente ondulados, dominados por solos avermelhados, até as margens do Córrego do Bento, a 300 metros a norte do marco No-357 da Estrada Real. No leito da estrada, ocorre mais um grande afloramento de pedra-sabão. Continuando no sentido norte, a estrada torna-se mais sinuosa na subida da elevação que divide as águas entre o Córrego da Escadinha e o Ribeirão Mata-Cavalo. Na crista desta elevação, a 650 metros a sul do marco No-355 da Estrada Real, pode-se observar, ao longo

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Percorrendo-se mais cerca de 850 metros, já entrando em terras de Conceição do Mato Dentro, ocorrem grandes aforamentos de formações ferríferas bandadas do Grupo Serra da Serpentina. Neste ponto final, a paisagem é dominada pela visão contrastante entre a imponente elevação da Serra da Escadinha e o vale sinuoso do Rio Santo Antônio.

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Curiosidades geo-históricas de Morro do Pilar A primeira fundição de ferro do Brasil e as dificuldades geológicas e geográficas

A história da primeira fundição de ferro do Brasil, construída em Morro do Pilar, é abordada no capítulo do professor Célio Macedo que conta a história do município. Focaremos aqui alguns aspectos geológicos e metalúrgicos interessantes que contribuem para complementar a história e para termos uma noção desta fabulosa empreitada em um dos pontos mais afastados da Estrada Real. O empreendimento liderado pelo Intendente dos Diamantes, Manoel Ferreira Câmara, foi a tentativa, bem sucedida, de implementar, em 1809, a primeira fundição industrial no Brasil. É certo que durou pouco tempo. Entretanto, pelas inúmeras dificuldades encontradas, nas quais se incluem as geológicas, devemos reconhecer que o trabalho desenvolvido por Câmara e seus ajudantes foi uma façanha. Ressaltemos que estamos falando de fundição em escala industrial. De fato, existem vários registros anteriores de fundições de ferro no Brasil em escala não industrial. Pequenas fundições artesanais de ferro sempre houve e nelas a presença de mão de obra escrava era fundamental. As pesquisas de Pena (2010) mostram claramente o interesse de lusobrasileiros na captura de ferreiros africanos, notadamente angolanos, com o intuito de suprir uma necessidade básica da época colonial. Os mestres fundidores africanos, geralmente, eram líderes religiosos e até militares. Vários quilombos possuíam, no seu núcleo mais protegido, uma casa de fundição, elemento essencial para supervivência (PENA, 2010). Voltemos às tentativas de industrialização das fábricas de ferro. Por volta do ano 1600, o bandeirante Afonso Sardinha tinha descoberto uma jazida de ferro no Sertão do Rio Sorocaba, Freguesia de Santo Amaro (SP), e havia construído uma fábrica e dois fornos de ferro em “Biraçoiaba”, em Araçoiaba (SP), que, em 1620, já estava abandonada por falta de mão de obra (VERGUEIRO, 1978). Os empreendimentos do Morro de Araçoiaba foram retomados por Luiz Lopes de Carvalho, em 1682, e continuados por Domingos Ferreira Pereira no ano de 1765. Segundo Zequini, foram enormes as “[...] dificuldades em conseguir produzir um ferro de boa qualidade mesmo depois de terem realizado por diversas vezes experiências com aquele minério, e mesmo assim, não era possível acertar a caldeação do ferro nem fazê-lo igual às primeiras amostras.” (2009, pag.7). Domingos Ferreira Pereira chegou a receber “[...] encomendas de Diogo Lobo da Silva, Capitão General de Minas Gerais, para a fabricação de 38

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Interior das galerias subterrâneas de onde foram extraídos ouro e ferro. As bandas claras são formadas por quartzo boudinado. Nas escuras, observam-se minerais de ferro secundários

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armamentos, tais como balas, bombas e granadas, além de munições.” (idem). Todavia, até inícios do século XIX, foi impossível idear fábricas industriais de ferro. O motivo é bem apresentado por Zequini. De acordo com ele, [...] a técnica de produzir ferro, até pelo menos o século XVIII, estava baseada no conhecimento prático e na experimentação, e todos os trabalhos relacionados àquelas atividades estavam baseados no puro empirismo, no saber-fazer e nas experiências práticas daqueles trabalhadores, que sabiam realizar as operações de fundição de forma prática, mas não tinham instrumentos para explicá-las. Somente com o advento da Ciência Moderna, especialmente com a Revolução Científica, principalmente a da Química, é que aqueles mineiros e fundidores puderam compreender as operações produtivas que realizavam. Até esse período, não havia também nenhum conhecimento que pudesse explicar o processo da redução do minério em metal. Só a partir daí foi possível, por exemplo, explicar a atuação do Carbono, obtido pela queima do carvão vegetal; a combustão, no processo produtivo do ferro; como também o desenvolvimento de processos para a obtenção do aço. (Zequini, 2009)

Somente em 1780, foi desenvolvida pelos ingleses a tecnologia de refino do ferro-gusa. Nas Américas, o desenvolvimento industrial de fundições de ferro seguiu dois caminhos diferentes. Cita-se o dos norteamericanos que precisaram se tornar independentes da Inglaterra para dar início ao desenvolvimento da siderurgia. É bom lembrar que os britânicos, em

O empreendimento de Morro do Pilar acompanhou os avanços técnicos daquela época. Já se sabia que, para a primeira parte do processo de fundição, era necessário dispor de outros materiais além de ferro e carvão. E o principal deles eram os carbonatos. Provavelmente, foi um dos grandes desafios que enfrentou o Intendente Câmara: Morro do Pilar não dispunha de carbonatos! Os mais próximos ficavam bem do outro lado do Espinhaço, na Serra da Vacaria, aproximadamente, a 50km em direção oeste. Os carbonatos pertencem ao Grupo Bambui e foram originados há quase um bilhão de anos no fundo de um imenso mar que se estendia desde o Espinhaço até Goiás. Hoje, o Mar do Bambui não existe mais e o que ficou dele são as montanhas de pedras escuras carbonáticas, antigo fundo marinho, que podem ser reconhecidas, por exemplo, na Vila do Cipó. São as mesmas rochas que aparecem em Lagoa Santa onde estão localizadas algumas das mais bonitas cavernas do Brasil. Conta Cristiano Ottoni (2005) que, para o transporte, o Intendente Câmara utilizou o denominado caminho dos escravos que foi calçado com pedras nas rampas das montanhas. Não é difícil imaginar o desafio que significava transportar o minério no lombo dos animais, subindo centenas de metros pelas montanhas de quartzito. Nas épocas de chuva, a lama causava acidentes frequentes e a chegada era incerta. Não teve outra opção o Intendente. Os carbonatos da Serra da Vacaria eram necessários para viabilizar o processo de fundição e estavam em falta no Morro do Pilar.

1850, tinham proibido o desenvolvimento industrial desse tipo de empreendimento em solo norteamericano. Na América Latina, a primeira fundição industrial de ferro e aço foi instalada em Michoacán (México), em 1807, pouco antes da iniciativa de Morro do Pilar. O empreendimento mexicano foi desenvolvido no povoado de Coalcoman pelo cientista Don Andrés Del Rio Duró e manteve-se em atividade até 1811. Neste ano, as atividades finalizaram-se devido ao início da guerra da independência entre México e Espanha.

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De Morro do Pilar até Londres em 1802: A saga do descobrimento do paládio, elemento mais valioso do que o ouro

A história do descobrimento do elemento químico denominado paládio é muito interessante e pouco conhecida. O paládio é um metal nobre, muito raro na crosta terrestre, sendo mais valorizado do que o ouro. É utilizado na indústria automotora, na manufatura de joias, na indústria eletrônica e na odontologia. Sua principal qualidade é a alta

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Rochas quartziticas e Mata Atlântica compõem cenários de rara beleza em Morro do Pilar

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resistência à corrosão mesmo em altas temperaturas (SILVA; GUERRA, 2010). Nas Minas Gerais, o paládio aparece, geralmente, associado ao ouro, platina, cobre, ferro e manganês. Assim, forma um composto escuro que, quando associado ao ouro nativo, é denominado “ouro preto”. Em Vila Rica, antiga capital das Minas, aparecia em tanta quantidade que foi necessário mudar o nome da cidade para a atual Ouro Preto. Contudo, para entender a história do descobrimento do paládio, precisaremos voltar no tempo até o ano 1802, na antiga Londres da época pré-vitoriana. Por volta dessa data, o químico William Hyde Wollaston, um dos mais brilhantes pesquisadores do século XIX, e Smithson Tennant desenvolveram um método físico-químico para processar o minério de platina (WOLLASTON, 1805; LEONARDOS, 1969; MC. DONALD; HUNT, 1982). Ficaram ricos com o descobrimento. Porém, Wollaston arrumou problemas com a sociedade científica da época. Fato que aconteceu não por causa do método e, sim, porque durante essas pesquisas descobriu um novo elemento da tabela periódica que o aproximaria involuntariamente de Morro do Pilar. Tratavase de um metal nobre que aparecia em pequenos grãos, associado à platina, proveniente de um lugar longínquo do Brasil. Wollaston denominou o novo elemento, inicialmente, de “ceresium”. Mais tarde, em homenagem à Pallas, Deusa grega da sabedoria, trocou para paládio. Registrou a descoberta no seu caderno em 1802. E fez uma primeira difusão do descobrimento já em 1803 enquanto tentava ganhar tempo para estudar melhor o novo elemento. Alguns químicos da época, injustamente, suspeitaram de fraude. Com a confusão já arrumada, Wollaston precisou de mais dois anos para demonstrar a originalidade da sua descoberta. O professor Daniel Atencio, da Universidade Paulista, na sua excelente Memória da Mineralogia Brasileira, resgata parte dessa história e fornece dados que permitem inferir qual seria a proveniência certa do

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paládio. Vamos lá. Wollaston recebeu, no início do século XIX, nove amostras provenientes das “minas de ouro do Brasil”, cedidas pelo Embaixador da Corte de Portugal, Sr. Souza Coutinho. Durante o estudo, descobriu grãos de um metal diferente, o paládio, que aparecia junto aos de platina e irídio (ATENCIO, 1999). Pois bem, Wollaston não conheceu o Brasil nem a origem exata das amostras. A denominação “Minas de Ouro do Brasil” poderia nos remeter a diferentes lugares que foram explorados intensamente no século XVIII como, a título de exemplo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. Entretanto, os resultados obtidos por Wollaston forneceram pistas preciosas que permitiram ir fechando o cerco. Assim, “minas de ouro” poderiam ser muitas. Se, junto com o ouro, aparece o paládio, a procura fica restrita a regiões geográficas específicas. Se adicionarmos platina, o cerco fecha-se sobre uma ignota região, localizada entre a borda leste do Espinhaço Meridional e o Quadrilátero Ferrífero. Mas, as amostras também possuíam irídio, um raríssimo elemento que, geralmente, provem de meteoritos que colidiram com a Terra em tempos remotos. Agora sim, com todos esses dados, um Sherlock Holmes da mineralogia bem que poderia descobrir a origem das amostras do Wollaston. Um dos maiores mineralogistas brasileiros, Eugen Hussak, foi nosso “Sherlock Holmes” e matou a charada. Hussak, nascido na Áustria, e brasileiro por opção, merece umas linhas antes de retomar nossa história. Foi petrógrafo do Instituto Geográfico Militar (IGM) e professor de mineralogia do filho mais velho de D. Pedro II na cidade de Petrópolis. Posteriormente, desenvolveu pesquisas em São Paulo e em Minas Gerais, em especial, no Planalto de Poços de Caldas, Ouro Preto e nas montanhas do Espinhaço Meridional. Neste setor estudou, com detalhe, os minerais de platina e publicando, na Escola de Minas de Ouro Preto, a primeira descrição de minerais platiníferos do Brasil (HUSSAK, 1906). Por causa de sua competência, Eugen Hussak foi escolhido para participar, em 1892 e 1894, da equipe

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Vale intermontano, escavado em metassedimentos quartzíticos da Unidade Rio Preto

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de notáveis que compôs a lendária Comissão de Exploração do Planalto Central (também conhecida como Missão Crulzs). Esta equipe escolheu o sítio onde seria construída a futura capital brasileira. De acordo com os relatórios de Crulz, foi ele o único geólogo da comissão. A Missão Crulz utilizou, como ponto de apoio estratégico, o povoado de Pirenópolis e a Serra dos Pirineus e descobriu, oficialmente, o setor geográfico que emenda as bacias dos rios São Francisco, Prata e Amazonas, denominado “nascente das águas emendadas” (FREITAS MOURÃO, 2010). Voltemos agora ao enigma do paládio. Após examinar os resultados dos estudos de Wollaston, o mineralogista Hussak não teve dúvidas: as amostras estudadas pelo inglês só poderiam ter sido extraídas de um setor específico localizado no Córrego das Lages, ao sul de Conceição do Mato Dentro, no atual município de Morro do Pilar. Hussak afirmou que “[...] somente neste lugar encontra-se platina nativa com esta forma particular.” (ATENCIO, 1999, p. 9).

Era a peça que faltava no quebra-cabeça do paládio. E aqui se fecha a história do descobrimento de William Hide Wolaston. Muito provavelmente, há mais de 200 anos, algum garimpeiro emboaba retirou amostras de platina do Córrego da Fazenda Limeira ou do Córrego das Lajes. De Morro do Pilar, as amostras, entregues às autoridades portuguesas, foram levadas ao Rio pela Estrada Real e atravessaram o Atlântico. Em Londres, do outro lado do mundo, chegaram até as mãos do célebre pesquisador inglês. E, assim, foi Wollaston quem, pela primeira vez na história, identificou o elemento paládio nos pequenos grãos das amostras de Morro do Pilar. Enfim, todo estudante, quando olha para a Tabela Periódica dos Elementos, deveria saber que o paládio, identificado internacionalmente com o símbolo Pd, está intimamente relacionado com Morro do Pilar. O DNA do paládio, mais valioso do que o ouro, é mesmo morro-pilarense.

Já em 1969, outro notável mineralogista, Othon Henry Leonardos I, adicionou um novo dado. Sugeriu que Wollaston separou o paládio de grãos de platina oriundos da Fazenda Limeira, situada no Córrego das Lajes (LEONARDOS, 1969). Mais recentemente, o professor Alexandre Cabral, especialista em depósitos minerais da Universidade de Clausthal (Alemanha), estudou em detalhe o cinturão de mineralizações de ouro, platina e paládio, localizados no leste do Espinhaço Meridional, apresentando um mapa no qual são situadas algumas áreas potencialmente favoráveis para platina. Entre elas, o Córrego das Lajes, ao norte de Morro do Pilar, e a Fazenda Limeira, ao sul (CABRAL et al., 2009). Porém, não menciona Fazenda Limeira alguma no setor norte do município.

A geologia e Morro do Pilar: passado,

Tentando resolver a questão da potencial localização da amostra de Wollaston, decidimos visitar a Fazenda Limeira, localizada 10km ao sul da cabeceira do município. Fomos, gentilmente, recebidos pelo dono da propriedade, Sr. Geraldo Duarte, que confirmou

em parte das rochas quartzíticas da Serra do

o achado, em anos retrasados, de grãos milimétricos de platinóideos em um dos córregos da fazenda.

foram originados os depósitos de ferro. Já na borda da bacia, em setores de pouca profundidade, foram

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presente e futuro

O Passado As marcas do passado geológico de Morro do Pilar ficaram registradas ao longo de partes muito representativas do município. Os dados obtidos pelos pesquisadores que estudaram a região confirmaram que Morro do Pilar já foi fundo de mar e palco de intrusões magmáticas provenientes das capas mais profundas do planeta. Posteriormente, a região do oeste do município foi submetida a forças tectônicas que a elevaram até formar uma cordilheira. E, ainda, em tempos idos, suportou fortes glaciações. As marcas da presença de mar antigo estão presentes Espinhaço, na Unidade Rio Preto e nos depósitos ferríferos. O mar que aí esteve foi originado a partir da abertura de uma gigantesca fenda, denominada rift, há 1700 milhões de anos. Nas profundezas marinhas,

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Interior das galerias abertas na época da Colônia para a extração de ouro. Este metal nobre aparece mais concentrado na cobertura laterítica

depositadas camadas de areias ao longo de milhões de anos. São as provas de que Morro do Pilar já foi oceano e que a parte do município pertencente ao Espinhaço migrou por várias partes do planeta antes de passar a formar parte da estrutura geológica atual do Brasil.

O Presente e o Futuro É inconteste que as atividades de extração mineral são imprescindíveis para o funcionamento e crescimento da sociedade dentro dos parâmetros tecnológicos predominantes na atualidade como é o caso da mineração de ferro. Este metal constitui uma das bases primárias do desenvolvimento tecnológico e é utilizado na construção de prédios e moradias, fabricação de aço para indústrias, automóveis etc. No momento, não existe outro metal ou material economicamente viável que possa substituí-lo para tais fins. Sua extração é uma necessidade para

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o desenvolvimento de uma sociedade. Porém, a implantação de qualquer tipo de mineração gera desequilíbrios na natureza da região afetada. Sendo assim, essas atividades devem ser muito bem planejadas para modificar minimamente as condições naturais originais, devendo tomar-se medidas preventivas para evitar contaminações ou desequilíbrios ecológicos, compreendendo a proteção de áreas de recarga de águas subterrâneas. E, finalmente, planificar e programar, ao logo da vida útil da mina, a recuperação das áreas atingidas. O futuro é promissor. Morro do Pilar tem pela frente uma oportunidade ímpar para viabilizar um desenvolvimento sustentável, apoiado economicamente na mineração de ferro. Comprovadamente, lavras desse tipo costumam apresentar uma vida útil de várias décadas. Uma vez fechada a etapa de extração, lavra e beneficiamento mineral, esse prazo pode ser o suficiente para programar, paralelamente, vias alternativas de crescimento para os municípios mineradores.

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capítulo 2

Morro do Pilar: 313 anos de história 200 anos da primeira fundição de ferro em alto-forno do Brasil ♦ Célio Macedo Alves1 ♦

Gaspar Soares e a origem do Morro

N

este ano de 2014, Morro do Pilar comemora 313 anos de fundação. Pelos cálculos, verificase, portanto, que a origem do município encontra-se no ano de 1701. Em torno desta data, entretanto, é necessário tecer alguns comentários. Em primeiro lugar, e de uma maneira mais específica, não se pode tomar estritamente a referida data como o ponto inicial de formação do primitivo arraial; e, em segundo lugar, de uma maneira mais geral, é sabido que tal data, ou o final do século XVII, demarca o momento em que toda a região, que depois compreenderia a antiga Comarca do Serro do Frio, estava sendo explorada. Época inserida dentro do processo que Diogo de Vasconcelos denominaria de “Últimos Descobrimentos” (VASCONCELOS, 1904, p. 125), isto é, aqueles que vieram depois das espetaculares descobertas realizadas na parte mais central de Minas Gerais, em fins do século XVII, que gerariam, posteriormente, as cidades de Ouro Preto e Mariana, na Comarca de Vila Rica; Sabará e Caeté, na Comarca do Rio das Velhas; e São João Del Rei e Tiradentes, na Comarca do Rio das Mortes.

Pela documentação oficial, sabe-se que foi a Bandeira chefiada pelo Capitão Antônio Soares Ferreira, o moço, que primeiramente explorou a região à procura do ouro e de outros metais por volta de 1701. Teve por companheiros de jornada o seu filho, João Soares, o Capitão Manuel Correia Arzão e Lourenço Carlos Mascarenhas de Araújo que serviu de escrivão. Sobre o referido assunto, um relato surgido em 1750, intitulado “Notícias dos Primeiros Descobridores das primeiras minas do ouro pertencentes a estas Minas Gerais...” registra a seguinte notícia: Antônio Soares deu maior salto, mais comprida e laboriosa diligência à parte do norte, que chegou ao Serro do Frio — nome que os portugueses traduziram em língua própria, sendo que na “gentílica é Iviturui, que quer dizer serro do frio, aludindo ao muito e relegado frio que faz pelo cume daquela serra, com frigidíssimos ventos pelo seu dilatado cume, por onde passa o caminho que hoje serve e então servia aos gentios [índios] e sertanistas, que para se passar, não sendo ao meio-dia, morriam entanguidos, e quase um mês de viagem naquele tempo — e descobriu ouro com grande conta, para onde concorreu grande parte do povo desacomodado, povoando-o e pondo-o cultivado como está, e hoje com maiores haveres e ínclitas opulências de finíssimos e preciosissímos diamantes... (MATOSO, 1999, p. 184).

1 Mestre e Doutor em História social pela USP e professor Universitário. Nestes últimos anos, tem-se dedicado ao estudo da arte colonial mineira e ao inventário, identificação e organização de acervos museológicos.

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Carlos Julião – Biblioteca Nacional Digital

Antigas lavras de mineração no Século XVIII

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De descobridor, Antônio Soares passou a ser um funcionário a serviço da Coroa Portuguesa, assumindo o cargo de guarda-mor, como indicam os seguintes documentos: O primeiro, datado de 13 de fevereiro de 1701, presente em Documentos Interessantes para a História e Costume de São Paulo (1930, p. 20), trata-se de uma provisão com o seguinte teor: “Passou-se provimento de guarda Mor das Minas do distrito de Tocambira [Itacambira] ao Capitão Antônio Soares Ferreira em 13 de fevereiro de 1701. O secretário José Rebelo Perdigão.” O outro documento, datado do mês seguinte, é o Livro referente à Receita da Fazenda Real das Minas do Serro do Frio e Itacambira que narra o seguinte em sua abertura: Ano de nascimento de N. S. Jesus Cristo de mil setecentos e dois, aos quinze dias do mês de março do dito ano, nestas minas de Santo Antônio do Bom Retiro do Serro do Frio, Arraial do Ribeirão delas, em pousadas [residência] do capitão Antônio Soares Ferreira, guarda-mor e descobridor destas minas... mandando a mim, escrivão, declarasse aqui a muita pertinácia que havia feito por descobrir novas minas e, explorando a sua custa este sertão, como com efeito tinha descoberto... explorando com todo zelo e cuidado do serviço de Sua Majestade, de que Deus guarde, todo este sertão do Serro Frio e Tucambira, não só pelos lucros que dos quintos do ouro que delas se tirasse resultavam a sua Real fazenda, mas também das datas, que ao dito Senhor se haviam de dar em Ribeiros, deixando de assistir nas Minas Gerais, ou do Rio das Velhas, ainda separasse com os negros que bem podia ter lucrado muitos cabedais, no tempo que gastou por este sertão, publicando que como bom e leal vassalo, e ter grande desejo de que houvesse mais descobrimentos para que assim tivesse a fazenda Real maiores lucros, vinha para estas partes tão distantes a descobrir estas novas minas, como com efeito descobriu à sua custa, com grande trabalho, e perda de sua fazenda, calamidades e perigos de vida, a que se opôs por este deserto, a cuja diligência não houvesse quem se opusesse, pelas grandes dificuldades que lhe achavam, e o acompanhou seu filho João Soares e o Capitão

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Manoel Correia Arzão. Escrito e assinado por Lourenço Mascarenhas de Araújo. [em grafia moderna]. (RAPM, 1902, p. 939-940)

Do primeiro documento, deduz-se que inicialmente a região ficou conhecida por Minas do Itacambira (Tocambira), o que pode significar que o descobrimento das riquezas auríferas daquele distrito antecedeu o das do Serro do Frio, região esta por onde passaram os sertanistas, entre eles, o próprio Antônio Soares que havia sido nomeado pelo governador Artur de Sá e Menezes como autoridade daquele distrito constituído em 13 de fevereiro de 1701. O documento seguinte demonstra que logo a seguir fora criado o distrito do Serro do Frio, do qual Antônio Ferreira também se tornou guarda-mor, despachando de sua residência (pousada). Depois de 1711, os documentos oficiais referem-se somente ao distrito do Serro do Frio e já não se fala mais em Itacambira. Outro aspecto sobre o aludido documento é que ele relata de forma oficial o episódio da descoberta do território do Serro do Frio. E tal certidão, como o relato é denominado ao seu final, foi passada e assinada por Lourenço Mascarenhas de Araújo que acompanhou a comitiva desde seu início. Pelo documento, verifica-se que a enorme região descoberta por Antônio Soares, e compreendida pelos distritos de Itacambira e Serro do Frio, não era considerada ainda como Minas Gerais ou “Rio das Velhas”, mas, sim, como o sertão: aquelas regiões muito distantes e desertas, repletas de calamidades e perigos de vida. A grande recompensa de Antônio Soares pelas descobertas foi, então, ter sido nomeado guarda-mor das ditas terras, cargo no qual tinha as atribuições, entre outras, de conceder licença a quaisquer pessoas que quisessem descobrir minas; fazer medição das lavras auríferas e reparti-las, separando-as da Fazenda Real e dando ao descobridor uma data de trinta braças (145,2 m²); arrematar, em nome do rei, a mina pertencente à Fazenda Real; verificar o número de escravos ocupados na mineração; e quitar o ouro em pó (SALGADO, 1990, p. 283-284). Também,

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Carta Topográphica das Terras Entremeyas do Sertão – 1731. Em detalhe, Morro de Gaspar Soares. Arquivo Histórico do Exército – RJ

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tinha por tarefa cobrar as devidas taxas de quem passasse (da) ou entrasse para Bahia e Pernambuco. Ao guarda-mor, no entanto, era impedido possuir lavra de ouro para exploração em benefício próprio. Antônio Soares serviu no cargo de guarda-mor do Serro do Frio e Itacambira até o ano de 1707, data do último registro de seu nome no Livro da Receita; já a partir de 1709, no registro seguinte, o nome que figura ocupando esse cargo é o de Manoel Correia Arzão, seu companheiro de jornada. E Antônio Soares, depois disso, teria um trágico final: em 1718, contrariando uma ordem do Conde de Assumar para que encerrasse a exploração no novo descoberto que fizera, Antônio Soares Ferreira teve sua prisão decretada e ao resistir foi morto em um tiroteio. (BARBOSA, 1995, p. 341). O local onde Antônio Soares explorava ouro recebeu o seu nome, Morro de Antônio Soares. O curioso é que, em um mapa de 1731, um registro com essa denominação é indicado como se fosse um povoado e em localização bem próxima ao povoado de Morro do Pilar, já existente por essa época, e não indicado no mesmo mapa. Teria aqui o cartográfico confundido o nome dos Morros, denominando de Antônio Soares aquele que seria o de Gaspar Soares? O interesse aqui nestas primeiras descobertas e, mais especificamente, no papel que teve o capitão Antônio Soares, é que ele, investido no importante cargo de guarda-mor de toda aquela região, tinha como uma de suas atribuições, como se indicou acima, distribuir as lavras auríferas entre os interessados em minerá-las e, sendo assim, coube a ele distribuir as lavras na região em que se formou e desenvolveu o atual município de Morro do Pilar. Local, aliás, onde ele teria passado seus últimos dias de vida, como se relatou anteriormente. Um dos possíveis mineradores que teria recebido uma dessas lavras foi Gaspar Soares, tido por alguns como irmão e, por outros, como filho do Capitão Antônio Soares. Obviamente, a presença de Gaspar Soares, minerando naquele morro, acabou ganhando outras versões, algumas até meio fantasiosas, o que gerou certa dúvida quanto a sua real presença naquelas paragens. Isto porque, muito dos fatos relatados ainda carecem de uma comprovação documental. Vejamos, então, como ele é tratado na historiografia referente à história antiga da região.

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Diogo de Vasconcelos, talvez o primeiro a tratar do assunto, sem citar fontes, admite que a expedição chefiada por Antônio Soares era composta, além de João Soares e Manoel Correia Arzão, citados acima, por Gaspar Soares, tido por irmão de Antônio Soares, e por mais um representante da família Arzão. Segundo este historiador: Satisfeitos com os auspiciosos indicativos de ouro nesta região, o Coronel Manoel Correa e Antônio Correa prosseguiram com Lourenço Carlos [Mascarenhas de Araújo] e Baltazar Leme e foram descobrir e repartir as minas do Serro Frio (Ibituruí); ao passo que Gaspar Soares ia também fazer o mesmo às do Morro, que adquiriu seu nome (1703) [...] [grifo meu]. (VASCONCELOS, 1904, p. 126)

Para Diogo de Vasconcelos, Gaspar Soares era irmão do Capitão Antônio Soares. E as informações passadas por ele foram tomadas por Basílio de Magalhães, em 1935, que em sua obra Expansão Geográfica do Brasil Colonial, afirma em nota que “Antônio Soares Ferreira também era filho Gaspar Soares, que foi quem descobriu, em 1703, o morro que lhe tomou o nome, ‘Morro de Gaspar Soares’, mais tarde chamado Morro do Pilar.” Geraldo Dutra de Morais, em sua História de Conceição do Mato Dentro, sofistica ainda mais a saga do nosso Gaspar Soares. Toma inicialmente a frase acima de Basílio de Magalhães, ipsis litteris, para explicar o parentesco deste com o descobridor das minas do Serro do Frio. A seguir, menciona o referido Livro de Receita da Fazenda para indicar a descoberta do ouro no Serro do Frio, sendo que depois dali a Bandeira, a qual se deveu esse auspicioso descobrimento, dividiu-se em duas: uma partindo para o norte, para se descortinar as riquíssimas minas do Fanado (atual Minas Nova e adjacências); e outra partindo para o sul, penetrando “mato-a-dentro” até se alcançar o Morro do Pilar. Desta forma, sem citar fontes, Dutra de Morais insere Gaspar Soares na expedição de Gabriel Ponce de Leon e Manuel Correia de Paiva, descobridores e fundadores do povoamento que mais tarde tornarse-ia o arraial de Conceição do Mato Dentro. Valendo-se de uma incrível imaginação histórica,

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Antiga casa de residência e Câmara Municipal

Antiga agência de Correios e Telegráfos de Morro do Pilar Morro do Pilar: 313 anos de história | CaPÍTUlo 2

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relata a saga desses três aventureiros, avançando intrepidamente por aquelas serranias, afrontando as intempéries e as flechas da temível nação dos gentios botocudos, para descobrir, inicialmente, as minas de Tapanhoacanga e de Córregos de Nossa Senhora de Aparecida e, finalmente, chegar até o córrego do Cuiabá, local onde se formaria o referido arraial de Conceição (MORAIS, 1942).

Soares tinha sua casa no alto do Morro, lugar denominado Canga, cujas ruínas ainda se podiam ver na época em que escrevia o livro. Ali, teria florescido o arraial velho com cerca de 40 e poucas casas erguidas em torno da primitiva capela dedicada a Nossa Senhora do Pilar. Menciona-se, aliás, que a construção desta capela, por volta de 1710, deveu-se ao zelo do próprio fundador. (MATOS, 1921, p. 54).

Gaspar Soares, entretanto, não permaneceria no recém-descoberto povoado. Segundo Dutra de Morais,

Gaspar Soares extraía muito ouro em sua lavra e quando a mineração, em talho aberto, foi aproximando-se do povoado, resolveu-se, então, que deveria mudar de lugar, tendo sido deslocado para a parte mais baixa, no local onde hoje se encontra o conjunto mais antigo da cidade. Esse deslocamento foi acompanhado, até mesmo, pela igreja (idem, p. 28-29). Gaspar Soares teria residido e minerado em Morro de 1703 ou 1704 até 1743, aproximadamente, ano em que teria ocorrido a sua morte. (idem, p. 50)

Organizando outra bandeira constituída de vinte brancos e cerca de quinze mamelucos, sulcou Santo Antônio Abaixo até as proximidades do Morro do Pilar, onde erigiu uma ermida. Tornouse o proprietário das mais ricas lavras do Morro e a sua fazenda de criação era a mais próspera de toda a redondeza. Graças ao seu esforço e capacidade de trabalho, o arraial do Morro do Pilar foi um dos mais afortunados da Comarca do Serro Frio. (idem, p. 16-17)

Um antigo vigário da Paróquia do Morro de Pilar, durante 50 anos, o Cônego Antônio Vieira de Matos, em um pequeno livro, surgido em 1921 e intitulado Indagações e notícias sobre o Morro de Gaspar Soares, acrescenta novos fatos a respeito do fundador do antigo arraial do Morro. Sobre a descoberta do ouro na região, no entanto, ele nada acrescenta. Aliás, segue, também, ipisis litteris, o relato exposto por Diogo de Vasconcelos em sua História Antiga de Minas Gerais. O que ele traz de novo, sendo verdadeiro ou fantasioso, são informações a respeito da atuação de Gaspar Soares na formação do núcleo primitivo do lugar. Cônego Matos era natural do lugar e pertencia a uma família tradicional do Morro cujos ancestrais, como ele mesmo diz, inserem-se no rol dos primeiros povoadores da região. O padre, nascido em fins do século XIX, cresceu escutando de seus avôs e outras pessoas idosas do lugar histórias sobre a formação do povoamento e sobre a atuação de Gaspar Soares em tal episódio. Obviamente, quem conta um conto aumenta um ponto. Mas, o núcleo original do conto, ou da história, sempre tem alguns elementos de verdade que não devem ser desprezados mesmo que nunca sejam comprovados a partir de outras fontes como, por exemplo, os documentos escritos ou visuais. O Cônego ouviu de antigos moradores que Gaspar

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Mas quem teria sido este misterioso Gaspar Soares? Não foi ainda encontrado registro algum de seu nome na documentação oficial sobre os primeiros tempos dos descobrimentos das minas de ouro e formação dos primeiros arraiais. Muitas das referências a ele mencionadas, como se mostrou acima, são apenas meras suposições baseadas na história oral coletiva que é transmitida por várias gerações. Diogo de Vasconcelos, um dos autores mais antigos a fazer referência ao Gaspar Soares, pode até ter deparado com algum documento a respeito, mas, lamentavelmente, não se encontra indicado em sua obra. Informações mais seguras sobre quem teria sido Gaspar Soares podem ser localizadas na obra Genealogia Paulistana, de Luiz Gonzaga da Silva Leme. Trata-se de um monumental trabalho de pesquisa, cujos resultados foram publicados entre 1903 e 1905, com mais de duas mil páginas, distribuídas em nove volumes. É considerada a maior compilação histórico-genealógica brasileira. Encontram-se, na aludida obra, abordadas as mais relevantes famílias no povoamento de São Paulo e interior do Brasil. Da Genealogia Paulistana, infere-se que o Capitão Gaspar Soares Ferreira descendia de nobres famílias portuguesas, dos Cunhas Cagos e Cubas, que se estabeleceram na Capitania de São Vicente ainda na primeira metade do século XVI, ou seja, poucos anos depois do descobrimento do Brasil. De

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Antiga residência da cidade de Morro do Pilar

Detalhe de maquinário da antiga usina de energia elétrica da cidade de Morro do Pilar Morro do Pilar: 313 anos de história | CaPÍTUlo 2

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suas fileiras, saíram vários dos bandeirantes que andaram por Minas Gerais e por outras paragens do Brasil, incluindo o Capitão antônio Soares Ferreira, de quem Gaspar Soares era primo de 2º grau e, não, irmão, muito menos filho, como se conjecturou. a confusão pode ter sido gerada pelo fato de que, na família, isto ainda lá no século XVii, existiu um antônio Soares Ferreira, com a patente de sargentomor (indicado pelo nº 1 no quadro abaixo), e um Gaspar Soares (nº 1), que eram irmãos. Esse antônio Soares veio a se casar com domingas antunes, tendo o casal seis filhos, entre os quais, o Capitão antônio Soares Ferreira (nº 2, grifado no quadro) que foi o descobridor das minas do Serro do Frio. Este segundo antônio Soares casou-se com Maria de

Freitas e tiveram um filho de nome João Soares que aparece acompanhando o pai nos descobrimentos. Quanto a Gaspar Soares (1), falecido em 1671, irmão do 1º antônio Soares Ferreira, casou-se com ana Maria da Cunha e tiveram sete filhos. Um deles, luiz Soares Ferreira, falecido em 1716, veio a se casar com Catarina Siqueira Mendonça. desta união, nasceram seis filhos, entre os quais o Capitão Gaspar Soares Ferreira (nº 2 no quadro, grifado no quadro) que, certamente, foi o descobridor do Morro do Pilar em 1703 ou 1704. Este se casou com Bárbara ribeiro e veio a falecer em São Paulo em 1715, portanto, um ano antes do pai. Não há menção de que tenha deixado filhos, pelo menos em São Paulo.

linha GenealóGica de antÔnio soares ferreira e GasPar soares isaBel CUBas

antonio soares

lUiZ soares (sÉCUlo Xvi/Xvii)

GasPar soares (1)

aNtÔNio soares Ferreira (1)

antÔnio soares

Maria soares

henriQue

ana soares isaBel cuBas

José

Maria ferreira (1)

luiZ soares MiGuel ferreira (2)

aNa maria da CUNHa (sÉCUlo Xvii)

Maria

lUiZ soares Ferreira (+1716)

ana vidal

MiGuel

domiNgas aNtUNes (sÉCUlo Xvii)

gasPar soares (1) (+1671)

luiZ soares

isaBel

GasPar soares antonio soares ferreira (2) (+1715)

Maria

verÔnica

isaBel ferreira

CatariNa de siQUeira meNdoNça (sÉCUlo Xvii)

Joana soares

Maria Pires

féliX soares

Quadro 1 – Fonte: Genealogia Paulistana

É interessante assinalar que, ao longo do século XViii e início do XiX, o povoado fundado por Gaspar Soares recebeu várias denominações, como se infere de muitos documentos existentes. ora é conhecido por Morro de Gaspar Soares, ora somente por Morro; às vezes, por Morro do Mato dentro ou Morro do Mato;

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e, por último, por Morro do Pilar, em referência à capela ali erguida pelo fundador, dedicada a Nossa Senhora do Pilar. aliás, é o nome oficial atual, tomado após sua elevação à condição de cidade em 1953. Essas variações são bem perceptíveis em alguns mapas da capitânia mineira elaborados no período:

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Em Mapa (detalhe), datado de 1772-1780, aparece indicado como Gaspar Soares

Em Mapa (detalhe), data de 1788, do Cartógrafo José Joaquim da Rocha, é indicado também como Gaspar Soares

Em Mapa, de 1816, conhecido por Guia dos Viajantes (detalhe) já está indicado simplesmente por Morro

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É a mineração aurífera, no entanto, que vai determinar qual desses modelos se imporá na conformação final do povoado: se ele será pequeno ou grande; se ficaria só no nível dos córregos e rios ou se avançaria pelas encostas, serpenteando os pequenos cursos d´água que descem dos cumes.

Evolução urbana e social do Morro do Pilar O surgimento de todos os povoados, arraiais e vilas, na região das Minas Gerais, seguiu um princípio único: oferecer um apoio direto ao trabalho das lavras auríferas. Não foi a agricultura, nem os currais, nem o comércio que serviram como aspecto motivador para o homem se fixar nas inóspitas paragens do sertão dos cataguases. A evolução social e urbana de cada um dos povoados surgidos, no entanto, ocorreu de forma específica, adequando-se a fatores referentes ao relevo, ao clima, ao potencial de exploração das lavras, à capacidade de recursos material, humano e financeiro dos mineradores, ao distanciamento ou aproximação em relação aos centros comerciais, fornecedores de gêneros alimentícios, ferramentas e escravos — elementos imprescindíveis no desenvolvimento de qualquer atividade praticada nos século XVIII e em boa parte do XIX. O relevo acidentado de Minas Gerais, notadamente em sua zona central, cortada pela Serra do Espinhaço, foi, no momento inicial, um fator preponderante na conformação física dos primeiros povoados que

depois, vão escalando as encostas dos morros na medida em que o ouro começa a escassear no leito dos rios. Isto é o caso típico de Vila Rica (atual Ouro Preto) que teve seus primitivos núcleos mineradores às margens do córrego do Funil e, depois, na proporção em que a Vila foi prosperando, calcaramse os morros laterais até obter a conformação atual: com casarios e igrejas dispostas nas inúmeras ladeiras íngremes da cidade. É a mineração aurífera, no entanto, que vai determinar qual desses modelos se imporá na conformação final do povoado: se ele será pequeno ou grande; se ficaria só no nível dos córregos e rios ou se avançaria pelas encostas, serpenteando os pequenos cursos d´água que descem dos cumes. Devemos lembrar que a água não é apenas um elemento importante para o uso doméstico das pessoas, mas também, para o sucesso da mineração, especialmente, nos morros. Não é à toa que, por volta de 1720, é criado o Regimento das Águas, imposto para normatizar o seu uso e conceder as datas de águas minerais. Naqueles primeiros tempos, matava-se pela água da mesma forma que se matava pelo ouro.

surgiram ora nas encostas dos morros, como Vila Rica, Diamantina, Caeté e Santa Bárbara, ora no fundo de vales, ladeando o leito dos ribeiros e rios, como Sabará, Raposos, Mariana, São João Del e Tiradentes. Ocorre também um combinado disso. Os primeiros núcleos surgem, inicialmente, à beira dos córregos e riachos onde o ouro aflora em abundância, mas,

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É a mineração, igualmente, que vai determinar a duração e o sucesso do povoado. É sabido que muitos povoados foram abandonados ou desapareceram em virtude da precoce extinção do ouro no local em que surgiram. Outros foram se estagnando, ao longo do século XVIII e início do XIX, com a exaustão das lavras; outros, por fim, exaurida a áurea fase da mineração, especializam-se no comércio e/ou na

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Descendentes dos índios Krenak que ainda habitavam a região no Século XIX

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agricultura e criação de gado. E, assim, sobreviveram nos séculos seguintes. Estudar a evolução urbana de núcleos populacionais mineradores, notadamente no que tange a sua formação e ao seu primeiro desenvolvimento, não é uma tarefa das mais fáceis ao historiador. Na escassez de documentos escritos (livros de aforamentos,

outras pessoas são atraídas ao local para minerar nos córregos adjacentes e até mesmo ao pé do morro, no leito do Rio Picão. O aumento do número de mineradores com seus respectivos escravos implicaria uma melhora no povoado que, antes provisório, assume agora ares de definitivo, com uma capela e casas construídas de forma mais sólida.

de taxas de ofícios mecânicos, de termos de

O modelo a seguir é aquele tradicional verificado nas

arrematações de obras públicas etc.), há necessidade

pequenas vilas e arraiais portugueses: delimita-se um retângulo com a capela em um extremo e as casas nas laterais; o centro, também chamado de largo, fica livre para reuniões festivas e cívicas. Do outro extremo oposto à capela, parte uma rua de onde se chega e se vai do povoado; com o passar do tempo, casas vão surgindo ao longo dessa rua que, em alguns lugares, chama-se Rua Direita.

de recorrer a fontes arqueológicas e orais, quando estas puderem ser acionadas. É o que ocorre com quem se intromete a investigar a origem de Morro do Pilar. Não há muitos documentos, há poucos vestígios arqueológicos e os relatos orais existentes são apenas os que já foram coligidos em livros antigos, como o do Cônego Matos, citado anteriormente.

a ele, com toda certeza, por seu primo Antônio Soares

Mas, o primeiro povoado que foi levantado em terras de Gaspar Soares não durou muito tempo ali. Foi transferido para um patamar mais abaixo onde se encontra, hoje, o núcleo mais antigo da cidade. Este

Ferreira, investido no cargo de guarda-mor do distrito

episódio é assim relatado pelo Cônego Matos:

Por meio dos relatos, sabemos que Gaspar Soares adquiriu braças de terra no alto do morro, em um lugar denominado Canga. Essas terras foram doadas

do Serro e que tinha a incumbência de fazer medição das lavras auríferas e reparti-las, separando-as da Fazenda Real e dando ao descobridor uma data de trinta braças (145,2 m²). Por ser descobridor de ouro ali naquelas paragens, o Capitão Gaspar Soares, por volta de 1703 ou 1704, ganhou suas trinta braças de terra para minerar. Minerar no alto das encostas não era tão fácil quanto batear ouro no leito dos córregos e riachos. Exigia uma mão de obra enorme, especialmente composta por escravos, para cavar, abrir talhos nos morros, desviar cursos d´água, promover o desmonte de barrancos etc. Por conseguinte, uma estrutura mínima e precária de abrigos para as pessoas e escravos envolvidos na mineração tinha de ser montada. Primitivas casas em pau a pique foram construídas e, como não se podia deixar de ser, uma igualmente primitiva capelinha, com paredes de pau e coberta de capim, foi edificada para abrigar um retábulo de taquaras onde se entronizava o santo(a) da devoção do dono da lavra. No caso de Gaspar Soares, Nossa Senhora do Pilar. Se a mineração se mostra muito promissora, 60

Contou-me também o Capitão Miranda, que ouviu ainda referir-se o seguinte fato. Quando Gaspar Soares extraia muito ouro no morro, e a mineração a talho aberto se aproximava do arraial deste tempo, como se pode observar a vista das quebradas do lugar chamado Ogó ou Hogó, ele conhecendo que não podiam continuar assim como as coisas se achavam, trocou com o povo ou a igreja os lugares. Cedeu para o povo levantar suas casas e fundar a nova povoação o lugar onde hoje se acha; para onde também ele mudou a capela, ficando ele com o direito e possibilidade de continuar sua mineração para cima. (MATOS, 1921, p. 28-29)

Em um trecho posterior, referindo-se ainda ao arraial velho, relata o Cônego: O primeiro arraial, ou arraial velho, colocado no alto, em um plano inclinado, quase planalto no alto do Morro, ainda que a serra continue a elevar-se até chegar a Cordilheira do Cipó, ou Espinhaço, era muito pequeno. Ainda se veem os alicerces de pedra da primeira e pequena Capela, indícios de poucas e pequenas ou curtas ruas, e estas estreitas; uma principal que corria do norte a sul, passando em frente a capela; outra

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que era a entrada e talvez uma viela, que levava a casa de Gaspar Soares, cujo lugar houve quem me mostrasse e estava acima da povoação. Parece que não mais de algumas 40 casas e choupanas; seriam para morada dos primeiros habitantes, que, provavelmente, em grande parte, seriam ou empregados e mesmo escravos, e trabalhadores, dependentes de Gaspar Soares; e, mais, lá um ou outro explorador, ou aventureiro por conta própria. Ali mesmo, tanques, minas, tuneis e regos, etc. (idem, p.79)

Quase 100 anos separam os dias atuais da data em que o Cônego Matos escrevia as mencionadas memórias e, portanto, não há mais vestígio algum das ruínas referidas por ele e que pudessem comprovar a veracidade dos fatos. E qual seria a data aproximada em que floresceu o antigo arraial? Fixar datas quando se toma por fonte relatos que se inserem na memória coletiva de uma comunidade, ou mesmo que sejam tomados em sua individualidade, é uma pretensão muito arriscada, pois, no meio do processo de memorização, as datas e eventos se misturam e se confundem. O próprio Cônego Matos, ao expor o caso do desastre com escravos ocorrido no povoado, alerta-nos quanto à exposição a esse risco, diz ele: Então dizem que aconteceu um desastre: estando os escravos trabalhando, desceu uma enorme porção de terra e pedras, matando 18 escravos; pelo que parou o serviço aí mesmo, tal qual ainda hoje se vê no Hogô. Devo dizer, contudo, segundo dizia um outro velho, e acho com menor probabilidade, que este desastre teve lugar quando trabalhavam os escravos do Comendador Roberto de Heredia Vasconcelos. Digo com menor probabilidade, porque a remoção e reedificação das capelas e do arraial denotam uma data mais antiga do que a época do Comendador. (idem, p.29)

Se levarmos em conta que o antigo arraial surgiu e, também, foi transferido depois para outro local ainda em época de Gaspar Soares, todo esse processo deve ser fixado, portanto, até 1715 aproximadamente. Isto porque, foi nesta data que Gaspar Soares veio a falecer em São Paulo e aqui tomando como

certa a informação passada por Silva Leme em sua Genealogia Paulistana. Não há referência de qual documento o pesquisador usou para fixar a data, se o testamento ou inventário ou ainda um assento de óbito do aventureiro paulista. Entretanto, um dado reforça a informação. Ao folhear o livro de assento de óbitos da freguesia de Nossa Senhora da Conceição (referente aos anos de 1735 a 1752), no qual se encontram lançados todos os sepultamentos realizados na Matriz de Conceição e em suas capelas filiais, abrangendo a capela do Morro do Pilar, não se encontrou assento algum alusivo ao nome Gaspar Soares Ferreira. Gaspar Soares, homem branco e de certo prestígio, ostentando ainda o título de Capitão, não poderia ser enterrado sem as devidas pompas que sua nobre figura merecia e não poderia ficar sem um assento de óbito. Quanto ao novo povoado surgido na parte mais baixa do morro, vejamos o que o Cônego Matos conta sobre ele: Como ficou dito, Gaspar Soares conseguiu mudar o lugar da povoação para o lugar que hoje ocupa todo o arraial então chamado arraial novo. Logo no começo o arraial se fixou na encosta, onde depois Sancho Bernardo de Heredia tinha seu palácio, ou dele gozou, e bem tempo depois o Câmara fundou a grande fábrica de ferro. Eu ainda ouvi uma velha, que morava bem em baixo, no arraial de hoje [c.1920], referir um fato, em que dizia de uma pessoa, que ali morava, ter falado assim: — eu vou ao Morro — ainda que ela estivesse no Morro. Assim correm as coisas, e se foram os lugares pequenos, passando por muitas transformações. Este arraial também era pequeno; uma capela coberta de palha, e depois outra maior, que foi sendo aumentada aos poucos. Eram poucas casas quer estivessem perto da Fábrica, ou junto à capela. Destas casas as mais importantes, das quais algumas eu conheci, não passavam de 20; as menores eram em maior número. Havia em baixo, na rua do Fogo, um sobrado grande, com varanda larga, fechada com venezianos, à maneira das casas antigas da cidade de Lima, no Peru. Nesta mesma rua, ainda hoje existe uma grande casa, que dizem ter sido construída pelo Capitão João Francisco de Paiva, e depois pertenceu ao primeiro vigário; aí se celebraram

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grandes festas; e, em uma extensa e larga varanda, sobre grandes mesas, com dobradiças, serviam copiosos e laudos banquetes e vinhos caros [...]. Rua do Fogo, porque muito ruidosa, com muita gente. Além da capela principal, outra menor dedicada então à Senhora Santana. Quando houve umas em doenças, em que se achavam 16 sacerdotes, O capitão-mor Sancho construiu uma grande casa, junto à Matriz, para os receber a todos; esta casa foi depois diminuída, e ainda assim, é bem grande, e hoje, concertada, é propriedade de Altino Fernandes Maltes [...]. (idem, p. 79-81)

O trecho é um pouco longo, mas foi inserido na íntegra, porque expõe alguns fatos interessantes sobre a evolução da cidade. Deve-se alertar para o fato de que o autor, na passagem acima, mistura acontecimentos de três eras distintas: do século XVIII, quando se deu a mudança do povoado velho para o novo; do século XIX, quando da instalação da Fábrica de Ferro; e mesmo do início do século XX, já que ele insere no trecho fatos relativos a suas lembranças. Faz, igualmente, menção a personagens de épocas diferentes, como o Capitão João Francisco de Paiva, dono de lavra e morador no arraial a partir da 2ª metade do século XVIII; o Intendente Câmara e o Capitão-Mor Sancho Bernardo de Herédia que conviveram em uma mesma época, no início do século XIX, até mesmo terão um relacionamento no que diz respeito à construção da fábrica, como se verificará mais adiante. Outro aspecto importante que se infere daquela passagem diz respeito às capelas que existiram no povoado. Isto porque, o edifico da igreja, no período colonial, desempenhou nas vilas, arraiais e pequenos povoados um papel preponderante na vida de seus habitantes. No caso de Minas Gerais, pode-se dizer que os povoados surgiram e cresceram à sombra da igreja. Vivendo sempre à mercê da boa sorte e do bom sucesso, é natural que os mineiros se apegassem à proteção dos santos (LATIF, 1960). Para a Igreja convergiam todos os habitantes do lugar para rezar, comungar, confessar, batizar seus filhos e os dos escravos, casar e enterrar seus entes e, ainda,

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tomar conselhos do padre. Mas, é ali, também, que se vai buscar o “entretenimento dominical”, já que é a Igreja que patrocina todos os festejos, oferecendo ao povo os divertimentos que tanto anseia. Não prometendo apenas para a vida futura, a religião se humaniza, transforma-se em um verdadeiro meio de socialização que serve para absorver o pouco tempo que sobra além das pesadas e longas horas e dias de trabalho (idem, ibid). Nestas pequenas comunidades, afastadas do poder exercido pelos Senados da Câmara e órgãos da administração e justiça, a Igreja, também, exercia o seu papel de moralizadora e reguladora dos costumes locais. O padre, em seu papel de pároco, valia-se das missas dominicais para alertar: os fregueses quanto ao desrespeitar os dias santos e domingos em atividades de negócio (comércio), trabalho e jogos; os senhores de escravos quanto aos pecados da carne; e as mulheres negras escravas e forras quanto à prática da prostituição e do concubinato. Por conta dos motivos expressos acima, verificase que os bispos e ou seus representantes legais, quando das suas Visitais Pastorais e de passagem pela Freguesia de Nossa Senhora da Conceição, durante os séculos XVIII e XIX, sempre alertavam seus párocos quanto ao [...] “inveterado costume destas Minas de pecar”[...] (Morais, 1942, p. 92). Antes de entrarmos na história propriamente dita das capelas construídas em Morro do Pilar, é interessante expor aqui as normas impostas pela Igreja para a ereção de capelas, igrejas, matrizes, ermidas e conventos. Deve-se assinalar, inicialmente, que uma capela, mesmo que fosse modesta, não era construída a partir do nada, aleatoriamente, orientada apenas pela devoção e fé do construtor. Dois aspectos fundamentais tinham de ser observados naquela época para a ereção de uma capela, fosse ela pública (como as igrejas matrizes) ou particular (como igrejas de irmandades, de fazendas e povoados, como o caso da primeira capela do Morro do Pilar): em primeiro lugar, deviase ter a permissão da autoridade eclesiástica maior, no caso de Morro do Pilar, do Bispado do Rio de

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Janeiro, ao qual a administração religiosa de Minas

mor e que nesta se faça com maior pressa para haver bastante luz, por estar demasiadamente escura e que se comprem três véus de cálice, um roxo, outro branco e outro encarnado e um Missal novo, tudo no tempo de seis meses, sob pena de suspensão da mesma Capela; e no caso que por justa causa se não possam concluir as ditas obras e comprar o Missal, o Reverendo Pároco lhe concederá mais tempo que lhe parecer conveniente, para que não fique sem Missa tanta gente como há no distrito da dita Capela. (MORAIS, 1942, p. 103)

Gerais encontrava-se submetida inicialmente — o primeiro bispado de Minas Gerais só iria ser criado em 1748, sediado na cidade de Mariana, tendo por primeiro bispo D. Frei Manoel da Cruz; o outro aspecto era que o responsável pela capela deveria dotá-la patrimonialmente — a Igreja estipulava algo em torno de seis mil réis ao ano — visando torná-la decente para o culto, com ornamentos e possíveis reparações

conforme

consta

de

Constituições

Primeiras, Livro IV, Título XIX, nº 692. A obediência a esses dois preceitos devia ser levada à risca, pois não se permitia que padres celebrassem qualquer ofício em templos não licenciados e sagrados pela autoridade maior da Igreja — no caso, o Bispo — sob a pena de excomunhão. Não há registros documentais sobre a primeira capela erguida em terras de Gaspar Soares, a não ser aquelas informações já citadas anteriormente: que ali fora construído uma primitiva capela, por volta de 1710 ou, talvez, anterior a esta data, e que, depois, por volta de 1745, foi reconstruída mais abaixo, conjuntamente com o novo arraial. E tudo, supõe-se, com as devidas licenças do Bispo do Rio de Janeiro. O Cônego Matos afirma em um de seus relatos que em sua época ainda se via os alicerces da primitiva capela no alto do morro. Seguindo mais uma vez o relato do Cônego, este diz o seguinte sobre a segunda capela: “De 1745 para cá se faria a mudança da capela do alto da Canga para o lugar, em que, como se disse, ficou provisoriamente, aí esteve coberta de colmo, até provavelmente 1760, quando João Francisco começou a construção da atual [a que existia ainda em início do século XX].” (MATOS, 1921, p. 48)

O curioso é que ao final de suas recomendações para o Morro, o Reverendo Doutor Alexandre Nunes Cardoso faz uma reprimenda quanto à maneira dos fiéis praticarem uma religiosidade mais de viés popular: E, outrossim, estranho muito que no tempo do Santo Sacrifício da Missa se cante o terço do Santíssimo Sacramento nem outra alguma devoção, por servir mais de embaraço ao Sacerdote, do que de louvar à Deus e assim mando, com pena de desobediência, que no tempo em que se dizer missa se não cante coisa alguma, nem rezem Padres Nossos, por ser contra o que determina a Constituição, mas antes da Missa poderão cantar o dito terço e o de Nossa Senhora que isso é louvável. (idem, ibid)

O Cônego Matos assegura, como já foi exposto antes, que uma terceira igreja de Nossa Senhora do Pilar foi construída no povoado a partir de 1760. Isto contrasta com uma informação fornecida por Cônego Raimundo Trindade que afirma, em sua importante obra Instituições de igrejas no Bispado de Mariana, que [...] “a segunda capela, construída em local mais acessível, foi visitada e benzida por provisão de 2 março de 1789” [...] (TRINDADE, 1998, p.208). E,

À segunda capela refere-se, provavelmente, um

no dia seguinte, foram bentas as “novas imagens de

registro feito pelo visitador da Comarca do Serro do

Nossa Senhora do Pilar e do Rosário”[...]. Presume-

Frio, o Reverendo Doutor Alexandre Nunes Cardoso,

se que não estejam errados em suas colocações. Na

datada de 20 de fevereiro de 1748. Deste registro, se

verdade, o que ocorreu foi que a capela transferida

deduz que o templo encontrava-se ainda em obras:

para baixo, que Cônego Matos denomina de segunda,

Na Capela de Senhora do Pilar do Morro de Gaspar Soares, mando que se assoalhe o pavimento da Capela, toda ou ao menos o cruzeiro e Capela-

passou por um processo de reconstrução e ampliação, cujas obras se findaram por volta de 1789, quando foi reinaugurada com a benção.

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O próprio Cônego Matos fornece alguns indícios sobre esta reconstrução quando cita um testamento de certo Alferes Pedro Aires Barbosa, datado de 1787, no qual o testador deixava um legado a favor da nova Matriz que de novo se encontrava sendo erguida em Morro do Pilar (MATOS, 1921, p. 22). Em outra passagem, narra o Cônego Matos uma curiosa história sobre a construção da nova igreja: Contava o velho Capitão Clemente Ferreira de Miranda, que do Padre João Roberto Ferreira de Miranda, natural desta freguesia, ouviu que os antigos referiam-se o seguinte fato: quando a pequena capela de Nossa Senhora do Pilar foi transferida do alto do Morro (arraial velho do Canga), e foi colocada provisoriamente no alto da rua que vem da Praia, em frente a casa hoje dos herdeiros de Antônio Joaquim Leite, ao alcançar a explanada, onde está hoje a grande Matriz, e isto a esquerda de quem sobe (ainda eu vi o antigo estacado), deu-se o seguinte: o Capitão João Francisco de Paiva, chamado pelo Padre José Pereira Biderde (sic), protetor benemérito da Capela, como hei de mostrar adiante; este pediu ao Capelão que avisasse ao povo na estação da missa, que no fim dela, todos olhassem para ele capitão, e fizesse o que ele fizesse. À estação da missa o capelão de então disse: o Senhor Capitão João Francisco de Paiva manda avisar e pedir que, no fim da Missa, todos olhem para ele, e façam o que ele fizer. Assim foi. Todos olharam para ele, e ele muito sério tomou o seu lenço, fez uma rodilha, que pôs na cabeça, saiu da pequena capela coberta de palha do coqueiro indaiá. Quando já fora disse: todos os domingos tratemos de por esta forma, como hoje, de ajuntar pedras para construirmos uma capela maior e melhor, e ajuntemos esmolas para este fim. Então foi que se construiu a atual hoje matriz. Como de fato, ao concertar esta atual matriz se deparou com tábuas já pintadas, e que serviam para tapar armários e o fundo do altar-mor; tábuas que não poderiam ter servido para uma capela coberta de palha e de tão curta duração. As pinturas que ainda hoje se veem no teto da capela-mor, são bem parecidas com as da casa da rua do Fogo, que foi do vigário Anastácio Cardoso Neves, e foi construída, segundo me disseram, pelo mesmo célebre João Francisco de Paiva. Tudo grande, como é costume, hábito e arrojo do gênio paulista; paulista era João Francisco [...]. (idem, p. 27-28)

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Trata-se de uma passagem extensa, mas que foi transcrita na sua íntegra devido a informações preciosas sobre a antiga Matriz de Morro do Pilar, infelizmente, já desaparecida. Se, por um lado, fica demonstrada a mobilização dos moradores em dotar o local de uma igreja mais decente e maior, ora ampliando, ora reconstruindo a capela já existente, como ocorreu praticamente em todos os arraiais e vilas mineiras do período colonial; por outro, a narrativa apresenta algumas inverdades, fruto, certamente, das confusões propiciadas pelas lembranças mais remotas. Vejamos o porquê disto: o Capitão João Francisco de Paiva, considerado o benfeitor da igreja do Morro do Pilar, foi morador ali na segunda metade do século XVIII. Entre 1781 e 1782, no livro de óbitos da Freguesia de Conceição do Mato Dentro (ÓBITOS, 1786-1809), encontramos alguns assentos de sepultamentos de escravos do referido capitão no adro da capela do Pilar e, mais tarde, em 1787, no cemitério que passou a existir na sua Fazenda da Boa Vista. O que atesta a sua presença, ali no povoado, em data bem próxima àquela assinalada pelo Cônego Matos (1787), quando em testamento, outro morador deixa um legado para as obras da nova igreja que se estava construindo. Portanto, nota-se que estamos fazendo referência ao avançar do século XVIII, de 1770 para diante. É improvável que, nesta época, o Capitão João Francisco e todos os outros moradores do povoado tivessem ainda que frequentar missa em uma capela provisória e coberta de folha de coqueiro de indaiá. Contesta esta versão, até mesmo, o relato do visitador citado anteriormente, datado de 1748, no qual se infere que a capela — a 2ª antes da reforma e ampliação — já tinha sua construção bem adiantada, faltando apenas o assoalhamento de seu piso. Digo apenas, porque, se percebesse outros problemas construtivos, o padre visitador teria mencionado, exigindo as devidas reparações. Uma capela coberta de palha e provisória, já no avançar da década de 40, então, teria sido reprovada veementemente! Do trecho, também, se infere que a antiga Matriz

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Atual igreja situada no alto da Serra do Canga

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— em verdade, vai fazer jus a este título somente a partir de 1818 quando é elevada à condição de igreja paroquial — possuía pinturas barrocas em seu interior, porém, algumas foram retiradas em alguma reforma, tendo as suas tábuas utilizadas para forrar fundo de armários, só restando a pintura do teto da capela-mor, ainda visível no tempo do Cônego Matos. A igreja possuía três altares, sendo um principal no qual se entronizava a imagem de Nossa Senhora do Pilar, a maior, benta, segundo nos informa Cônego Raimundo Trindade, em 3 de março de 1789. Os outros dois altares, situados na nave, junto ao arco cruzeiro, seriam dedicados a Nossa do Rosário (lado esquerdo) e, provavelmente, a São Miguel (lado direito). Comprava-se a existência do altar do Rosário por um assento de óbito, datado de 1788, no qual se diz que Alexandre Moreira Carneiro, preto forro, foi sepultado “ao pé do Altar do Rosário em cova do Rosário.” (ÓBITOS, 1786-1809). Quanto ao altar de São Miguel, são testemunhas de sua existência a presença da Irmandade de São Miguel e Almas e a própria imagem de São Miguel, entronizada no trono do altar, como ocorre comumente nas igrejas matrizes mineiras. Esta afirmação pode ser igualmente confirmada pelas impressões do bispo de Mariana, Dom Frei José da Santíssima Trindade, em sua visita pastoral pelo arraial, no ano de 1821: [...] igreja matriz está situada em lugar de pouca largueza e sem adro. A fábrica do templo pouco segura e por dentro sem forro, no corpo da igreja, sepulturas mal arranjadas e 3 altares que ornam o mesmo templo com pouca decência. A sacristia muito falta de ornamentos para as festividades e para o comum [...] (SANTÍSSIMA TRINDADE, 1998, p. 89)

Por meio de duas fotos antigas (ver mais adiante), do final do século XIX, quando a antiga Matriz ainda encontrava-se de pé, nota-se que era uma igreja de grande porte, cuja arquitetura se inseria dentro do modelo típico das matrizes mineiras, com planta de partido retangular, com duas torres frontais, nave e capela-mor e dois cômodos laterais, um para servir de sacristia e outro de consistório onde as 66

irmandades ali presentes faziam suas reuniões. Sabemos pelos testamentos e assentos de óbitos que na matriz floresceram as seguintes irmandades: Nossa Senhora do Pilar, ocupando o altar-mor; São Miguel e Almas, ocupando o retábulo lateral direito; Nossa Senhora do Rosário no retábulo lateral esquerdo; Santíssimo Sacramento que, por tradição, ocupa o retábulo principal; Confraria do Cordão do Seráfico São Francisco de Assis que ocupava o nicho de um ou outro retábulo lateral. Cônego Matos nos informa que a igreja tinha, em sua época, as seguintes imagens que ainda continuam presentes na atual Matriz: duas imagens de Nossa Senhora do Pilar, uma pequena que ficava na primitiva capela (da época do Gaspar Soares, mas que se pode tratar de uma Nossa Senhora do Rosário) e uma grande (que foi benta no ano de 1789), entronizada no altar principal; uma grande do Senhor do Bonfim e de uma de Santana Mestra (estas duas da antiga Capela de Santana e Bonfim), Santo Antônio, São Miguel (da irmandade), São Sebastião, São Francisco de Assis (da confraria) e uma de Nossa Senhora do Rosário — que Cônego não faz referência, pertencia à irmandade e foi benta, também, em 1789 — que à época, talvez, se encontrasse na Capela do Rosário (MATOS, 1921). No povoado, existiu uma capela dedicada ao Senhor do Bonfim e Santana que teria sido construída por iniciativa de Dom João da Cruz, Bispo do Rio de Janeiro, que em junho de 1745 visitou a localidade. Em 1821, a capela encontrava-se de pé, e ainda em obras, como se infere da Visita Pastoral de D. Frei José da Santíssima Trindade: “Dentro do arraial, tem uma capela do Senhor do Bonfim e Santana, que no ano de 1821, em que foi visitada, ainda se trabalhava pela sua perfeição.” (SANTÍSSIMA TRINDADE, 1998, p. 89) Não se sabe o local onde teria sido erguida a referida antiga capela. É provável que ela se situasse no sítio onde, hoje, se ergue a atual Capela de Nossa Senhora do Rosário. O Cônego Matos acredita que tenha havido, posteriormente, uma troca, passando a irmandade do Rosário a ocupar a capela que outrora

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Nossa Senhora do Pilar antiga. Talvez, uma Nossa Senhora do Rosário – início do século XVIII

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foi dedicada ao Senhor do Bonfim e Santana e cujas irmandades foram ocupar o retábulo lateral esquerdo da igreja Matriz, antes pertencente à irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Na época do Cônego, virada do século XIX para o XX, as imagens do Bonfim e de Santana já se encontravam dentro da Matriz e lá se encontram até hoje (MATOS, 1921). A antiga Matriz e a capela do Senhor do Bonfim e Santana, depois Nossa Senhora do Rosário, além de símbolos da religiosidade do povo local, podem ser considerados marcos importantes de referência no que diz respeito à evolução urbana do povoado. Em torno deles, se ergueram as casas dos moradores e se demarcaram as ruas. Fotos antigas de fins do século XIX, mostra a igreja Matriz, onde podemos delimitar claramente o traçado original do antigo arraial, com uma rua que vinha do alto do Morro — onde se situava o povoado velho e a primitiva capela — e que,

chegando próxima à Matriz, se bifurcava em duas: uma descendo em direção ao Rio Picão (à esquerda) e a outra para o lado oposto. Com data aproximadamente da mesma época, há um relatório sobre a situação dos municípios que foi apresentado ao Governo da Província de Minas Gerais, em 1899, no qual se verifica que o arraial tinha 173 casas, 6 ruas e 3 praças; uma igreja Matriz que estava sendo “reconstruída” e a igreja do Rosário, em mal estado de conservação, e aqui já não há mais referência a uma igreja de Santana (RAPM, 1899). Em outro documento, um censo estatístico, de data bem anterior, 1830, o Arraial de Morro do Pilar apresentava 116 fogos (domicílios/casas), o que significava a quarta posição dentro da Comarca da Vila do Príncipe, como demonstra o quadro abaixo:

povoações e número de fogos – 1830 Povoações

Número de Fogos

1

Vila do Príncipe (Serro)

500

2

Arraial e Matriz de Conceição do Mato Dentro

150

3

Arraial de Formigas

126

4

Arraial e Matriz do Morro do Pilar

116

5

Arraial de Santo Antônio do Rio do Peixe

113

6

Arraial e Matriz do Rio Vermelho

99

7

Arraial e Matriz de São Gonçalo do Rio Preto

98

8

Arraial da Paraúna

84

9

Arraial do Itambé

82

10

Arraial do Gouveia

63

11

Arraial do Curumataí

60

12

Arraial de Tapanhoacanga

56

13

Arraial e Matriz da Barra do Rio das Velhas

51

14

Arraial de Congonhas

48

15

Arraial do Inhaí

44

16

Arraial de São Domingos

42

17

Arraial e Matriz do Peçanha

39

18

Arraial do Andrequicé

38

19

Arraial de São Gonçalo do Milho Verde

25

20

Arraial de Córregos

19

21

Arraial da Senhora do Porto de Guanhães

9

Quadro 2 – Fonte: RAPM, ano II, 1897, p. 26-27.

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Sede de antiga fazenda no município de Morro do Pilar

Antiga Cooperativa dos Rodoviários no município de Morro do Pilar

A caça foi uma prática comum entre morrenses, contribuindo para a perda da biodiversidade do local Morro do Pilar: 313 anos de história | CaPÍTUlo 2

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Referente ao século XIX, também, encontramos impressões sobre o arraial de Morro do Pilar em relatos escritos por viajantes da terra e estrangeiros que por ali passaram. É o caso de José Vieira Couto, naturalista mineiro (natural do Serro), que por ali esteve em 1801. Referindo-se ao povoado, diz o seguinte: O arraial do Morro é pequeno, e poderá ter cem fogos; todo ele se arranja ao comprido pela lombada do mesmo morro, que lhe deu o nome. Casas pequenas, muitas delas arruinadas e nenhum edifício é o que se observa. (COUTO, 1905, p. 72-73).

Um pouco mais tarde, em 1818, o viajante francês Auguste de Saint-Hilaire descreve o povoado da seguinte forma: Entre morros que limitam um espaço aproximadamente circular, há uma colina alongada, muito menos elevada que eles, e que se assemelha a uma espécie de passadiço. É na crista dessa colina que está construída a povoação do Morro de Gaspar Soares. As montanhas que a contornam pelo lado direito quando se vai a Vila do Príncipe, tem os flancos cobertos de relva e os cumes cobertos de mata virgens. Sobre a da esquerda está edificada uma casa muito grande e de boa construção pertencente ao capitão-mor [Sancho Bernardo de Heredia], e um pouco mais longe, porém em plano inferior, elevam-se em anfiteatro os edifícios das forjas reais, aos que vão dar caminhos bastante largos e bem traçados, que circulam pela encosta da montanha. A povoação de Gaspar Soares se compõe de pequeno número de casas que, como as de tanto outros povoados, só anunciam decadência. Quase nenhuma tem caiação, e a terra vermelha, que serviu para construí-las, mostra-se por toda parte. (SAINT-HILAIRE, 1975, p. 131) Pernoitei em Gaspar Soares em um albergue que fora antigamente muito cômodo para os viajantes, mas que o proprietário tinha relaxado completamente. Não era mais que uma pocilga caindo em ruína por todos os lados, que jamais se limpava; os porcos entravam em completa liberdade, e servia de abrigo aos morcegos. (idem, p.134)

Pela mesma época, o geólogo inglês John Mawe, em sua obra Viagens pelo interior do Brasil, relata que Gaspar Soares era uma aldeia abandonada. Refere-se a uma grande casa na qual o dono não se encontrava e que foi recebido pela mulher dele — seria a do Capitão-Mor 70

Sancho de Herédia (MORAIS, 1942). Outro que registrou suas impressões sobre o povoado do Morro foi Johann Emanuel Pohl, naturalista austríaco, que por ali passou por volta de 1818: Perto desse ribeiro [Mata-Cavalos] alcançamos a Fazenda Pé do Morro e, após uma jornada de três léguas, o Rancho do Morro do Gaspar Soares. Nesse rancho grande, mas arruinado, protegido de um lado contra a penetração da chuva, acampamos todos [seria a mesma estalagem descrita por Saint Hilaire]. O arraial em si é pequeno e conta cerca de sessenta casas e duas igrejas pequenas [as Capelas do Pilar e de Santana], ficando situado numa encosta da serra calva que se estende de oeste para leste, na confluência de dois riachos auríferos, o Ribeirão Picão e o Córrego Caldeirão. Destacase ali na mesma encosta a Real Fábrica de Ferro e os pequenos edifícios dispersos da mineração, que ficam bem acima do arraial, e o edifício do Capitão-mor [Sancho Bernardo de Heredia], situado em plano ainda mais alto, com os seus edifícios anexos, [...]. (POHL, 1976, p. 373)

No que se refere à evolução populacional de Morro do Pilar, é necessário salientar que não temos para o seu primeiro século de existência censos que indiquem essa população. Mesmo porque, em se tratando de uma economia mineradora, de caráter bastante volúvel, a população assume uma condição muito flutuante. Em documentos da época, como registros de batismos, casamentos e mesmo óbitos, verifica-se que uma mesma pessoa se encontra mencionada, ora residindo em um distrito, ora em outro da enorme comarca do Serro do Frio. Neste aspecto, nota-se uma relação muito estreita entre o povoado do Morro do Pilar e o arraial de Conceição. No século XVIII, quando a capela do Morro era somente uma filial da Matriz de Conceição, constatase que muitos senhores de escravos, moradores do Morro, aparecem enterrando seus escravos no adro da Matriz de Conceição. O contrário, também, costuma ocorrer. No caso dos escravos, no entanto, temos até um censo sobre a população escrava nos principais povoados da freguesia de Conceição, para o ano de 1749, em que o Morro aparece na terceira posição, o que demonstra ser o local um forte centro de mineração naquele período.

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Matrícula de Escravos da Comarca do Serro do Serro Frio - 1749 Conceição e Distritos

Nº escravos declarados

1

Conceição

252

2

Córregos

251

3

Morro Pilar

238

4

Itapanhoacanga

237

5

Tapera

236

6

Santo Antônio Rio Abaixo

220

7

Rio do Peixe

102

8

Paraúna

27

9

Sumidouro

12

10

Congonhas

4

11

Três Barras

4

12

Itambé

1

_____

TOTAL

1584

Quadro 3 – Fonte: Documentação da Casa dos Contos – Cx 1081

Dos escravos matriculados no Morro do Pilar, 87 deles eram propriedade do Capitão Francisco Moreira Carneiro. Trata-se de número surpreendente, levando em conta que o plantel médio de escravos em Minas Gerais girava em torno de quatro a sete escravos por dono.

Serro do Frio, porém, na maior parte deles, Morro do Pilar e alguns outros arraiais aparecem recenseados e inseridos dentro do Município de Conceição ao qual se ligavam administrativamente. Dessa forma, torna-se difícil extrair dos quadros elencados a população somente do Morro. Um exemplo disso é o quadro que se segue em que Conceição e sua freguesia apresentam a seguinte população no ano de 1811:

Durante o século XIX, foram até elaborados alguns quadros populacionais referentes à Comarca do

Mapa População do Termo da Vila do Príncipe em 1811 Homens

Mulheres

C

S

C

S

261

1570

35

263

233

492

C

S

C

S

C

S

C

S

Nas

Mor 211

S

371

C

216

S

32

C

755

S

Pras

248

C

Mulas

1600

S

Mulas

Escravas

587

C

1544

Pras

586

Bras

671

Mulos

159

Pros

562

Mulos

381

Pros

Livres

856

Bros

Escravos

197

Livres

Freguesia de Conceição do Mato Dentro

Quadro 4 – Fonte: Seção Colonial, Cx 85, Doc. 27 (Bros/as = Brancos/ Brancas; Mulos/as = Mulatos/Mulatas; Pros/as = Pretos/Pretas; C = Casados e S = Solteiros; Nas = Nascimentos e Mor = Mortos)

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No mapa acima, que foi elaborado e assinado pelo Capitão-Mor do Termo da Vila do Príncipe, Sancho Bernardo de Herédia, morador em Morro do Pilar, repara-se que, no universo de 11.198 habitantes, a população de pessoas livres (7.818) supera em mais da metade, na proporção 2,3/1, a população de escravos (3.380), tendência que tende a manter nos distritos da Freguesia de Conceição do Mato dentro. Por essa época, pertenciam à Conceição os

seguintes arraiais: itambé do Mato, Santo antônio do rio abaixo, Santana dos Ferros, Morro do Gaspar Soares, Senhora do Porto, São domingos, Córregos, Paraúna, Congonhas (do Norte) e Tapera. Em um quadro demográfico de 1826, elaborado quando da proposta de uma nova divisão administrativa para a Província de Minas Gerais, a freguesia de Conceição aparece com a seguinte conformação:

MaPa de PoPulação e foGos da coMarca do serro do frio - 1826 distritos itambé do Mato dentro Traías Morro do Pilar Conceição do Mato dentro São Joaquim do Salobro Córregos riacho Fundo Paraúna Congonhas Mato dentro Tapera TOTAL

Fogos 328 313 424 775 147 191 112 128 110 2.528

PoPUlação 2.062 1.814 1.807 1.748 836 821 741 660 515 191 11.195

Quadro 5 – Fonte: Geraldo Dutra Morais, 1942, p. 206-207

Pelo quadro, verifica-se que Morro do Pilar consta na terceira posição no que se refere ao número de população, sendo superado apenas pelos distritos de itambé e Traíras (atual Santana de Pirapama). Porém, supera o de Conceição do Mato dentro. Curiosamente, confrontando o total da população deste quadro com o anterior, separados por um período de 15 anos, nota-se que a população encolheu em 3 habitantes, ou seja, passou de 11.198 para 11.195. Já no relatório de 1899, citado anteriormente, o

arraial do Morro aparece com 3.000 habitantes — destes, 256 são eleitores —, distribuídos pela sede e por outros dois povoados, o da Ponte de Maria Martins e o de ribeirão dos Porcos. No primeiro, havia 15 casas e 50 pessoas, e, no segundo, 15 casas e 200 pessoas. a seguir, elaboramos o seguinte quadro no qual se verifica o processo de evolução urbana e populacional de Morro do Pilar, durante os séculos XViii e XiX, a partir das informações relacionadas até aqui:

evolução urBana e PoPulacional do Morro do Pilar séculos Xviii/XiX Época até cerca de 1730 1749 1801 1816 1818 1826 1899

Habitantes 238 escravos 1.807 3.000

Fogos/Casas 40 100 Pequeno número de casas 60 424 173

Fonte Cônego a. V. Matos Matricula de escravos José Vieira Couto a. Saint Hilaire J. Emanuel Pohl G. dutra de Morais raPM, iV

Quadro 6

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Antigo croqui proposto para Morro do Pilar e vizinhos à época da emancipação do município

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Os primeiros centros mineradores surgiram na região central de Minas Gerais onde se formaram as primeiras vilas mineiras: Sabará, Vila Rica (Ouro Preto), Vila Nova da Rainha (Caeté), Vila do Carmo (Mariana), São João Del Rei e Vila de São José (Tiradentes).

O ouro e o comércio Durante todo século XVIII, a principal atividade desenvolvida no Morro do Pilar, como no geral em toda Minas Gerais, como não poderia deixar de ser, foi a mineração. As expedições e Bandeiras que penetraram pelo inóspito sertão, em fins do século XVII, à procura de pedras preciosas encontrariam, finalmente, as primeiras provas: pequenas fagulhas de um metal cintilavam nas águas dos córregos e rios transpostos na dura jornada. Amostras foram remetidas ao Reino para confirmação. Era o esperado ouro. A auspiciosa descoberta foi comemorada com júbilo pela Corte portuguesa. Agora era preciso explorá-lo, da maneira menos onerosa para os cofres reais, mas da forma mais produtiva possível a fim de alcançar o máximo do rendimento dos quintos reais. Assim a Coroa portuguesa estimulou o povoamento das minas; montou ali, em princípio, uma incipiente estrutura administrativa que foi comandada pelo Governo do Rio de Janeiro. Instalou as primeiras Vilas e demarcou as Comarcas. Estabeleceu um regimento apropriado para as terras minerais, elegendo os guardas-mores como funcionários responsáveis pela distribuição das lavras mais produtivas. A distribuição das lavras seguia o seguinte procedimento: ao descobridor

cabia a primeira data; a segunda permanecia na mão da Fazenda Real e devia ser vendida em leilão público; o descobridor tinha direito a mais uma data, agora como minerador, a sua escolha. O minerador com menos de 12 escravos somente tinha direito a 2 ½ braças por cada escravo para evitar que a data ficasse inexplorada, fato que demonstra a importância, desde cedo, da escravatura na atividade mineradora. No começo, a mineração desenvolveu-se no leito dos rios ou em terrenos pouco acima do nível de seus leitos e não havia problema com o uso da água. Era o ouro aluvial, retirado por bateias. Com o passar do tempo, a busca por novas minas alcança as nascentes dos cursos d´água e eleva-se sobre os morros, o que deve ter ocorrido a partir da década de 1720. Neste momento, se introduz o método do talho aberto onde o desmonte do terreno era feito com o uso de água corrente com auxílio de alavancas e almocafres. Outros métodos foram ainda adotados posteriormente, notadamente, após o esgotamento do ouro aluvial, como os buracos, poços e as minas. Os primeiros centros mineradores surgiram na região central de Minas Gerais onde se formaram as primeiras vilas mineiras: Sabará, Vila Rica (Ouro Preto), Vila Nova da Rainha (Caeté), Vila do Carmo (Mariana), São João Del Rei e Vila de São José (Tiradentes). Depois, as expedições foram penetrando pelo denominado Sertão das Gerais, sendo descobertas novas minas, propiciando o surgimento de novos núcleos populacionais como Paracatu, Itacambira, Grão Mongol e a Vila do Príncipe, cabeça de uma extensa comarca com muitos e importantes centros de mineração, como o Morro de Gaspar Soares ou do Pilar. Gaspar Soares foi o descobridor do ouro no morro

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Antiga residência que posteriormente foi casa do Sr. Gervásio

Antiga pensão no centro da cidade de Morro do Pilar Morro do Pilar: 313 anos de história | CaPÍTUlo 2

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que levaria mais tarde o seu nome e onde se desenvolveria o povoado. Certamente, foi um dos primeiros a minerar nessas paragens, em lavras que o seu primo Antônio Soares, como guarda-mor das Minas do Serro do Frio, lhe doou por volta de 1703 ou 1704. Sobre a descoberta dessas minas, aliás, há até uma curiosa história de cunho lendário que o naturalista Emanuel Pohl escutou dos moradores locais e registrou em seu diário:

Antônio Correia e Francisco Machado de Andrade, senhores de enorme escravaria e donos de produtivas lavras auríferas, espalhadas pelos rios e córregos da região, tanto para o lado de Conceição quanto para o de Santo Antônio do Rio Abaixo. Só o Capitão Moreira Carneiro, como se citou antes, possuía 87 deles. Na segunda metade do século XVIII, os trabalhos na mineração ainda continuam como a principal atividade. Apesar de ter recuado em áreas próximas ao local onde se desenvolvia o povoado, novas lavras surgiram em áreas e córregos adjacentes onde foram se estabelecendo fazendas e pequenos núcleos populacionais, muito deles familiares. Dos núcleos familiares, podemos citar, entre outros, Lajes, MataCavalos, Brumado, Baú, Achupé, Tanque, Barroso, Rio Preto, Santa Cruz.

O Rancho do Morro do Gaspar Soares fica perto do Arraial do Morro de Gaspar Soares, cujo nome procede de seu primeiro possuidor que, nestas redondezas, lavrara ouro, que antigamente aqui se extraia em grande quantidade. Atribuise às formigas o descobrimento do ouro nesta região. Construindo os seus formigueiros, elas conduziam grãos de ouro na cabeça, revelando a ocorrência do metal precioso aos escravos do fundador do arraial. Este importante achado logo atraiu para cá vários colonos e assim foise desenvolvendo aos poucos o arraial, que primitivamente teve o nome de Morro de Nossa Senhora do Pilar, devido à padroeira da igreja. (POHL, 1976, p. 373)

Nesta mesma época, as mais importantes lavras encontravam-se no poder da família Herédia: Roberto de Herédia de Vasconcelos, o Capitão-Mor D. Sancho Bernardo de Herédia e o Tenente Coronel D. José João de Herédia (+1788) — este tinha até uma sociedade com o Alferes João de Almeida e Souza. Além destes, o Alferes Pedro Aires Barbosa, Antônio Teixeira de Leão, Vicente Francisco de Leão, Alferes Antônio Gonçalves Chaves, Manoel José Viera e o Capitão João Francisco de Paiva, o benfeitor da nova Matriz, como se comentou antes, também, possuíam produtivas lavras.

Gaspar Soares e seus escravos foram certamente os primeiros moradores do arraial. Depois dele vieram outros a garimpar nos córregos auríferos do Picão e do Caldeirão. Não há, contudo, documentos que nos permite levantar outros moradores que vieram explorar o ouro ainda em tempo de Gaspar Soares. Provavelmente, a chegada de muitos outros mineradores coincidiu com o surgimento do arraial, narrado anteriormente. Antes de 1750, no entanto, segundo dados levantados em documentos (assentos de óbitos) e nos fatos narrados pelo Cônego Matos, podemos citar alguns deles como, por exemplo, o Capitão de Ordenança Francisco Moreira Carneiro, Manoel Tavares de Sampaio, Francisco Afonso Padrão, Antônio da Costa Ribeiro, os irmãos João e

No início do século XIX, a mineração já se encontrava em franco declínio na região do Morro do Pilar. Na verdade, tal fato acompanhava um fenômeno que ocorria em quase toda a Capitania de Minas Gerais. O Barão de Eschwege, em sua obra Pluto Brasiliensis, apresenta um quadro estatístico sobre a situação da mineração na Comarca do Serro do Frio, por volta de 1814, onde se demonstra bem a situação de declínio. Em tal obra, Morro do Pilar apresenta a seguinte condição:

Produção do Ouro em Morro do Pilar - 1814 Nome dos Mineiros

Denominação Antônio C. Teixeira José Gonçalves Josefino José Francisco Teixeira Manoel Soares Total

Trabalhadores

Lavras Rib. do Morro Rib. do Morro Brumado Cor. Das Duas Cor. Brumado

empregados

Faiscadores

Produção das lavras

Cascalho

Livres

Escravos

Livres

Escravos

Oitavas

X X X X X 5

0

3 1 4

14 14

10 10

59 ¾ 8¼ 11 31 ½ 9 119 1/2

Quadro 7 – Fonte: RAPM, ano II, p. 648

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Carlos Julião – Biblioteca Nacional Digital

Antigas lavras de ouro no Século XVIII

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Verifica-se, pelo quadro acima, que apenas cinco lavras funcionavam ainda na região, porém, não mais dentro do povoado, requisitando apenas o trabalho de poucos escravos. Eram lavras de cascalho, ou seja, que requeriam uma exploração apenas superficial, sem maiores investimentos, fato que estimulava a ação de faiscadores livres e escravos, indicando que não se tratava mais de uma atividade muito atrativa. A própria produção do ouro no distrito era bastante pífia. Quando confrontada com a produção total da Comarca do Serro do Frio, estipulada, para o mesmo ano, em 59.894 ¼ oitavas de ouro, não representava mais que 0,20%. Cota produtiva muito distante daquelas verificadas durante os primeiros tempos do século anterior. É sabido que a extração de ouro, desde o início, não foi a única atividade exercida no ambiente das Minas Gerais. As pessoas precisavam de se alimentar, vestir, morar, enfim, suprir suas necessidades básicas de vida. Tudo relativo a isto tinha de, de certa maneira, chegar até a região. Ou dito de outra maneira, a região tinha de ser abastecida: mercadorias tinham de vir de fora, quando não eram produzidas no local, e comercializadas. Aí entravam em cena os mascastes, os tropeiros, os comerciantes estabelecidos no povoado, além dos oficiais mecânicos e negros forros ambulantes, sobretudo, mulheres. É esta combinação de atividades comerciais e prestação de serviços que irá manter por muitos anos, mesmo após o declínio considerável da mineração, a coesão de várias pequenas localidades mineiras, até mesmo a de Morro do Pilar.

Um documento datado de 1736, intitulado Manifesto das lojas e ofícios do Serro do Frio, indica que em Morro do Pilar, quando a exploração do ouro encontrava-se a todo vapor, possuía uma loja pequena e uma venda. Contava com os serviços de cinco carpinteiros, um alfaiate e um ferreiro. Uma particularidade nisto era que a única loja pequena existente pertencia a certo Diogo Dias Correia, uma espécie de empresário da época, pois mantinha uma rede de lojas espalhadas pelas localidades da região: uma loja pequena e outra mediana no Tijuco (atual Diamantina) onde residia e outras quatro lojas pequenas em Andrequicé, Gouveia, Conceição e Morro do Pilar (Cód. 53-1736). Pelo referido documento, sabemos que toda a Comarca do Serro do Frio, naquele ano de 1736, registrava 3 boticas pequenas, 1 loja grande, 22 lojas medianas, 36 lojas pequenas, 60 vendas, 1 corte de carne mediano e 3 pequenos e 132 ofícios mecânicos. Não se pode deixar de mencionar que, ao lado da mineração, mas sem concorrer com ela, surgiram nas fazendas e roças, que se estabeleceram na aplicação da Capela do Morro do Pilar, engenhos que produziam melaço e cachaça. Dados provenientes da antiga Câmara do Serro Frio indicam que, em 1776, Morro do Pilar teve uma produção de cerca de 200 barris de cachaça e, em 1792, a produção elevou-se para cerca de 600 barris (DOSSIÊ, 1994). Na virada do século XIX para o XX, no distrito do Morro, cultivava-se o café, o milho e cana-de-açúcar e criava-se o gado vacum e cavalar. Como não havia armazéns no arraial, os gêneros alimentícios eram comercializados por altos preços: sendo assim, pagava-se 10 réis por 80 litros de feijão; por 15 kg de toucinho, 13 réis; por 80 litros de arroz com casca, uns 16 réis e a farinha alcançava 15 réis. A região contava ainda com pequenas fábricas que produziam queijo, manteiga e açúcar, oficinas de cerâmica para fabricar tijolos e telhas. Mas, as melhores fábricas eram as que produziam o ferro — uma herança da Real Fábrica de Ferro do Morro (RAPM, 1899).

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Fragmento antigo do Livro de Tombo, encontrado na pesquisa do projeto História Viva

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Morro do Pilar, no século XVIII, era o povoado mais desenvolvido dessas paragens, o que veio a justificar, por exemplo, a elevação de sua capela à condição de paróquia em 1818.

Primeiros povoadores

Um sério problema para se tentar estabelecer quais famílias estavam, efetivamente, ligadas a Morro do

Executar uma pesquisa com a finalidade de levantar as famílias que povoaram e participaram, ativamente, da evolução de uma cidade ou de um município não é uma tarefa das mais fáceis. Exigi-se uma exaustiva pesquisa em diversos tipos de documentos antigos e recentes, dispersos por diversos arquivos, procurando estabelecer os laços de parentesco que vão ligando as famílias ao longo de quase trezentos anos. Para tal trabalho, então, teríamos de buscar informações em testamentos, inventários, assentos de casamentos, batismos e óbitos; registros de vendas e compras de propriedades; registros de eleitores; títulos de propriedades etc. Além, é claro, de informações provenientes de fontes orais. Tudo demandaria um tempo muito longo de pesquisa que fugiria aos propósitos do texto aqui apresentado.

Pilar durante seus primeiros 150 anos, deve-se ao fato de que essas primeiras famílias nem sempre residiam dentro do que, hoje, seria o atual território da cidade ou mesmo do município. No século XVIII, principalmente, muitos pequenos lugares que atualmente se encontram localizados nos atuais municípios limítrofes (Santo Antônio do Rio Abaixo, Conceição, Itambé e Santana do Riacho) pertenciam ao curato ou aplicação da Capela de Nossa Senhora do Pilar. Morro do Pilar, no século XVIII, era o povoado mais desenvolvido dessas paragens, o que veio a justificar, por exemplo, a elevação de sua capela à condição de paróquia em 1818, tendo por filiais as capelas de Oliveira de Itambé, Santo Antônio do Rio Abaixo, Santana de Ferros e Joanésia. Outro aspecto, neste sentido, é que pessoas que

Levando em conta o motivo exposto, resolvemos, neste tópico sobre famílias, adotar as informações fornecidas pelo Cônego Antônio Vieira Matos, em seu livro (já citado e utilizado aqui em diversas passagens), que faz um relato cronológico das famílias que participaram da evolução urbana e social de Morro do Pilar desde o século XIX até a

residiam longe da capela, em lugares que hoje estão

época da primeira metade do século XX. Muitos ramos de famílias citados pelo Cônego encontramse presentes na cidade nos tempos atuais. Neste aspecto, as informações passadas pelo Cônego Matos foram enriquecidas e cotejadas com outros dados, aliás, pesquisados em outros documentos não contemplados pelo antigo pároco de Morro do Pilar.

dos benfeitores da nova capela de Morro do Pilar, que

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localizados em outros distritos (Rio Preto, Fazendas Boa Vista, Mata-Cavalos e Viamão, entre outras), vinham ao arraial do Morro enterrar seus escravos e entes queridos, casar e batizar seus filhos. Um exemplo bem típico desta situação refere-se ao Capitão João Francisco de Paiva, já citado como um estabeleceu em sua fazenda um cemitério em fins do século XVIII. Ao que parece, ele sempre viveu em sua lavra e Fazenda da Boa Vista que hoje se localizaria no município de Santo Antônio do Rio Abaixo. Mas, por diversas vezes, o vemos ir ao arraial enterrar seus escravos. Isto até por volta de 1786 e 1787 quando

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Uma das mais antigas fotografias que ainda retratam construções no Alto do Canga, em Morro do Pilar

Encontro entre os frades Capuchinhos e descendentes indígenas que ainda existiam na região

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o Capitão Francisco de Paiva, visando eliminar a questão da distância entre sua Fazenda e o arraial do Morro, resolve construir o cemitério — obviamente com a licença da autoridade eclesiástica – onde passa a enterrar seus escravos e pessoas que residiam nas adjacências (Achupé, Ponte da Cachoeira, Brumado, Barra do Rio Preto etc.). Dos lugares que pertenciam ao curato da Capela do Morro do Pilar nos séculos XVIII, XIX e boa parte do XX (antes da criação do atual município), mencionados em antigos documentos e pelo Cônego Matos, temos: Ribeirão, Tenda, Contendas, Achupé, Baú, Colônia (Turquia), Tanque, Cariocas, Lapinha, Lages, Rio Preto, Santa Cruz, Milho Verde, Rio do Peixe, Brumado, José Pedro, Gentio, Barroso, Boa Vista, Mata-Cavalos, Ponte da Cachoeira, Rio Abaixo, Bananal, Batista etc. Do fundador do Morro, que levou inicialmente seu nome, Gaspar Soares, é improvável que tenha deixado descendentes que vivam atualmente no município. Se levarmos em conta que ele veio a falecer em 1715, em São Paulo, como nos informa Silva Leme em Genealogia Paulista, sua permanência por essas bandas durou pouco tempo. Aliás, em São Paulo, ele foi casado com Bárbara Ribeiro e não consta que tenha deixado descendentes, também, naquela cidade. Nas primeiras décadas, temos como moradores no Morro e adjacências os irmãos Manoel e Lucas Francisco, Manoel Velho Maciel, Domingos Martins Pereira, Bernardo da Costa Oliveira, Francisco Alves de Oliveira, Francisco Alves Padrão, Antônio da Costa Ribeiro, Manoel de Souza Coelho, Antônio Pinto Ferreira, Antônio Lajes de Figueiredo, Manoel Tavares de Sampaio e o Capitão Francisco Moreira Carneiro que possuía plantel de 87 escravos. Dos óbitos consultados (de 1770 a 1788), podemos levantar alguns nomes e famílias, moradores no arraial do Morro e adjacências: • No Morro: Francisco Alves Saraiva; Vicente Francisco Leão, falecido em 27 de novembro de 1776, enterrado na Matriz de Conceição do

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Mato Dentro, na capela-mor, já que foi provedor da Irmandade do Santíssimo; João de Almeida e Souza, que mantinha uma sociedade com o Tenente Coronel Dom José João de Herédia; Alferes Antônio Gonçalves Chaves, homem pardo, casado com Joana da Silva Velha, falecido em fevereiro de 1780, foi sepultado na Matriz de Conceição do Mato Dentro; Antônio Martins, natural do reino, casado com Luiza Correia Pires, falecido em 28 de maio de 1781; Anastácio Pereira, casado com Francisca Ribeira; Manoel José Vieira; Inácio Francisco da Costa; José de Lima Barros, natural do reino, casado com Micaela Teodora Felícia, falecido em 5 de fevereiro de 1782; João Ferreira Coimbra, homem pardo; Manoel Álvares Couto; Manoel Pereira do Nascimento; Capitão Antônio Lourenço de Araújo; Francisca Moreira Carneira; Francisco Ferreira Passos; Antônio Pereira Samora; Domingos Antunes de Siqueira, casado com Joana Maria da Assunção, pardos. • Ainda no Morro: Manoel Godinho Ferreira Tavares, falecido em abril de 1786; Capitão Manoel Pinto Ribeiro; Antônio Álvares de Azevedo; Manoel Carneiro Ramos, preto forro; Capitão Inácio Dias Passos; Licenciado Antônio Botelho da Silva; Francisco Frutuoso de Brito, casado com Quitéria Francisca Ferreira; Bernardo Ferreira Pontes, casado com Hilária Ferreira de Araújo; João de Vaz Magalhães; Félix de Araújo, casado com Maria Pinta Silva; José Correia, casado com Maria Constança; José Leonardo, casado com Joaquina Rodrigues da Silva; Francisco da Costa Ribeiro, casado com Maria dos Anjos; Brás José de Oliveira, casado com Ana da Paixão; Francisco da Costa Ribeiro, casado com Maria dos Anjos, pardos; Alferes Jerônimo Ferreira da Paz, falecido em 22 de fevereiro de 1788; Jerônimo Ferreira, natural do reino, falecido em 22 de junho de 1788; Ventura Barbosa de Oliveira, natural do reino, falecido em 3 de julho de 1788. • Em Mata-Cavalos: Antônio Valadares, homem pardo, casado com Maria Fernandes Porto; Manoel de Oliveira Guerra, natural do reino, falecido em 8 de março de 1783; Manoel Rodrigues

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Imagem típicada família morrense, registrada na metade do Século XX, no interior do município

Inauguração da telefonia em Morro do Pilar e encontro de lideranças políticas locais com políticos nacionais, destacando ao centro o ex-prefeito Clélio Lima e o ex-embaixador José Aparecido de Oliveira

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Tavares; Ventura da Costa Guimarães; Domingos Fernandes Porto; João Coelho Ferreira. • Em outras localidades: Capitão João Francisco de Paiva, morador em sua Fazenda da Boa Vista; Antônio Teixeira de Leão, natural do Reino, falecido em estado solteiro em 20 de novembro de 1781, foi morador no Engenho no distrito de Santo Antônio do Rio Abaixo; Sargento-Mor Antônio Martins da Cruz, morador no Rio Preto; Alferes Pedro Aires Barbosa, viúvo, falecido em janeiro de 1786, era natural de Santos e foi morador no córrego do Espírito Santo, no Achupé; Vasco Fernandes Maltes, casado com Josefa Gonçalves Martins, moradores na Ponte da Cachoeira; Antônio Rodrigues da Rocha, casado com Maria de Jesus, moradores em Achupé; Brás Nunes de Oliveira, morador na Ponte da Cachoeira; Manoel Rodrigues Tavares, casado com Maria de Souza, moradores no Rio Preto. Uma família importante que veio a se estabelecer em Morro do Pilar, por volta da 2ª metade do século XVIII, foi a dos Herédias. Parece que eram originários da Ilha da Madeira, como se infere do óbito do Tenente-Coronel D. José João de Herédia, falecido em 1788. Pesquisando a origem da família Herédia na Ilha da Madeira, temos o seguinte: O fidalgo espanhol D. Antônio Herédia fez parte do exército que sob o comando do Duque de Alba entrou em Portugal em 1580. Em 1602 veio para a Madeira como Capitão da Companhia do Presídio Castelhano, sendo depois comandante do mesmo Presídio, e mais tarde governou todo o arquipélago, na ausência do governador efetivo. É este o tronco da Família Herédia na Madeira, que teve como últimos representantes Francisco Correia Herédia, Antônio Correia Herédia e Francisco Correia Herédia, Visconde da Ribeira Brava. (Elucidário Madeirense, v. II)

se que era filho de D. João de Herédia (1637-1711) e de D. Maria de Bettencourt (+1722). Segundo o Cônego Matos, era o Capitão Roberto de Herédia, casado com D. Úrsula de Herédia Vasconcelos, o pai do Capitão-Mor D. Sancho Bernardo de Herédia que foi casado com D. Maria Senhorinha Francisca Fremiot de Chantal que, ao fim da vida, vivia no arraial [...] “socorrida às esmolas” [...] (MATOS, 1921, p.12). Tiveram um filho por nome Sancho Bernardo de Herédia Antoguoia; residiam em um palacete, com muitas dependências no alto do Morro. Existiu, também, o Comendador Roberto de Herédia Vasconcelos (neto do Capitão Roberto de Herédia Vasconcelos? E também filho do Capitão Sancho Bernardo de Herédia?), conhecido por “Sinhôzinho”, que era muito rico. Em 1831, residia em uma casa situada acima do arraial (certamente a que fora do pai). Após as segundas núpcias, mudouse para Gouveia e, depois, para Pitangui, lugar em que veio a terminar os seus dias. Em um documento (título de venda) datado de 1806, aparecem os seguintes nomes com o apelido Herédia no Morro e adjacências: Gabriel Rodrigues de Herédia (filho do Capitão Roberto de Herédia e D. Úrsula de Herédia Vasconcelos), Sancho Bernardo de Herédia e sua mulher Maria Senhorinha Fremiot de Chantal, Francisco Roberto de Herédia Vasconcelos, Ildephonso Rodrigues de Herédia e Gertrude Rosa Rodrigues de Herédia Vasconcelos. O Tenente-Coronel D. José João de Herédia era natural da Ilha da Madeira, como se registrou antes, porém, não se conhece o nome dos pais. Morreu em 25 de agosto de 1788, solteiro e ab intesto, ou seja, sem deixar testamento por falecer de repente. Foi enterrado na igreja de Nossa Senhora do Pilar, em sua capela-mor, em sepultura dos provedores da Irmandade do Santíssimo Sacramento, por ter ocupado, por muitas vezes, esse cargo (ÓBITOS, 1786-1809).

O primeiro Herédia a chegar à região parece que

Além de sua importante função de tenente-coronel,

foi o Capitão Roberto de Herédia Vasconcelos que

2º maior posto dentro do Estado Maior das Milícias

adquiriu uma sesmaria de terras no rio Cipó. Supõe-

da Capitânia de Minas Gerais, D. José João de

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Antigo Livro de Registro de Batizados, datado do início do Século XX, de Morro do Pilar

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Herédia, certamente, tinha, na mineração aurífera,

na história do Morro do Pilar, deve-se ao fato de ter

um de seus principais negócios na região. Chegou

sido em terras cedidas por ele onde veio a se instalar

a ter uma sociedade com João de Almeida e Souza e

a Fábrica de Ferro do Intendente Câmara. Aliás,

possuíam muitos escravos. Cônego Matos afirma que

aqui cabe até outra importante revelação. Já que

D. José João possuía terras nas vertentes dos Rios

estamos a falar sobre famílias, é necessário relatar

Picão e Preto, denominadas Córrego do Monjolo e

que, também, a família do Intendente Câmara tem

Jaboticabas (MATOS, 1921).

suas origens, pelo menos por parte materna, na Ilha

Quanto a Sancho Bernardo de Herédia, parece que era filho do Capitão Roberto de Herédia que tinha por esposa D. Úrsula de Herédia Vasconcelos. Foi casado com D. Maria Senhorinha Francisca Fremiot de Chantal com a qual teve dois filhos: Sancho Bernardo de Herédia Antoguoia e Roberto de Herédia

da Madeira. Manuel Ferreira da Câmara Bettencourt Aguiar e Sá, o Intendente Câmara, nascido no atual município de Itacambira, era filho de Francisca Antônia Xavier de Bettencourt e Sá e do Tenente Bernardino Rodrigues Cardoso. Teve um irmão por nome José de Sá Bettencourt Accioli.

Vasconcelos (?), conhecido por “Sinhôzinho”. Tinha

Pois bem, os apelidos Bettencourt (ou Bethencourt)

a patente de capitão-mor de toda a Comarca do Serro

e Sá, Câmara, Aguiar e Acciaioly (ou Accioli) e,

do Frito. Diga-se que, em termos de importância

como se disse, do próprio Herédia, são todos

dentro do quadro administrativo da Capitânia,

pertencentes a antigas famílias da Ilha da Madeira,

o referido capitão-mor figurava logo abaixo do

estando essas entre os descobridores e povoadores

Governador. Faleceu entre 1828 e 1831.

das principais vilas da Ilha. Ao longo dos tempos, as

O Capitão-Mor Sancho construiu sua casa no plano mais elevado do povoado, lugar de onde tudo se avistava e era vista por todos. Cônego Matos referese a esta construção como um palácio ou palacete com muitas dependências no alto do Morro (idem). Os viajantes que por ali passaram, também, não deixaram de perceber a grande edificação: SaintHilaire a descreve como “uma casa muito grande e de boa construção pertencente ao capitão-mor”; Emanuel Pohl a ela se refere como um edifício “situado em plano ainda mais alto, com os seus edifícios anexos”. Sancho de Herédia foi proprietário de uma grande fazenda denominada Viamão, hoje, distrito de um município vizinho. Conta-se que quando precisava de mão de obra de graça para servir em sua fazenda, mandava prender alguns rapazes — o que era uma de suas atribuições, de mandar prender pessoas infratoras — e quando estes lhe suplicavam que tivesse compaixão, então, como recompensa, os enviava para Viamão por certo tempo e nada lhes pagava (idem).

famílias misturaram-se, formando novos troncos, dos Bettencourt e Sá com os Câmaras, destes com os Accioli e, por fim, dos Accioli com os Herédias. No século XVIII, por exemplo, encontra-se na Madeira um Francisco Correia Herédia casado com D. Ana Margarida de Bettencourt Acciaioly (ou Accioli) e Sá; pela mesma época, ou um pouco antes, existia um D. João de Herédia que foi casado com D. Maria de Bettencourt. No começo, registra-se o casamento de uma D. Maria de Bettencourt com Rui Gonçalves da Câmara, Capitão donatário da ilha de S. Miguel. Há ainda muitos outros casos dessas uniões e muitos dos representantes desses troncos vieram a se estabelecer no Brasil. Infere-se, então, que a decisão de montar a Fábrica em Morro do Pilar não foi somente uma questão estratégica devido à existência das minas de ferro, de matas e cursos d´água, mas também, repercutiria os antigos laços “familiares” entre os Câmaras Bettencourt e os Herédias, tendo sido o Intendente Câmara e o Capitão-Mor Sancho Bernardo de Herédia os fiéis representantes em Minas Gerais.

Mas, um dos fatos mais significativos a ser assinalado

Não foi por acaso que um Herédia ofereceu,

sobre o papel do Capitão-Mor Sancho de Herédia,

gratuitamente, o terreno para a construção da

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fábrica além de doar uma sesmaria de terras

No caso de casamentos, encontramos os seguintes

para o fabrico do carvão e auxiliar com serviços

registros:

importantes os primeiros trabalhos de Câmara em sua empreitada (SANTOS, 1976). Não seria nada estranho, também, D. Sancho, em 1828, oferecer um plano de contingência para reerguer a fábrica do conterrâneo Câmara que, naquela época, passava por difíceis momentos de funcionamento.

Em 1892, José Bento de Herédia, viúvo de Rita Gonçalves de Herédia, casa-se com Sebastiana Rosa do Espírito Santo; uma das testemunhas foi João Frederico de Herédia. No mesmo ano, Antônio Panteão de Herédia (ainda vivo em 1904), filho de Fernando José de Herédia e Maria de Souza

Concretamente, sabemos que o ramo dos Herédias

Gonçalves, casa-se com Altina Longina de Souza;

ainda existia à época em que Cônego Matos escrevia

uma das testemunhas foi Henriqueta Placidina de

seu livro (1921). E estava ao lado do ramo de outras

Herédia. E o casamento de João Frederico de Herédia

famílias antigas que ainda se encontravam no Morro,

(ainda vivo em 1905), filho de Frederico Ribeiro de

como os Vasconcelos, os Almeida Leite, os Teixeira

Herédia, com Maria Cândida de Jesus.

de Leão, os Gomes Ayres, os Soares de Castro e os Alves Fontes. O Cônego cita o nome do Reverendo Pedro Gomes Ayres de Herédia que foi batizado na Capela de Nossa Senhora do Pilar e ordenado em 1903 (MATOS, 1921).

Em 1893, figura o nome de Joaquim Manuel de Herédia como testemunha de um casamento. No ano seguinte, Raimunda Fernandes da Silva, viúva de Frederico Ribeiro de Herédia, casa-se com Joaquim José de Araújo; João Gualberto de Herédia, filho de

Dos antigos livros paroquiais de Morro do Pilar

Tobias José de Herédia, casa-se com Tereza Alves

(registros de batismos, casamentos e óbitos) —

Guedes; e ainda o casamento de Maria Gualberto de

atualmente guardados na secretaria da Paróquia —

Herédia com Pedro Gomes Ribeiro.

arrolamos os seguintes nomes de descendentes da numerosa família Herédia:

Em 1899, Jorge José de Herédia casa-se com Delfina dos Santos de Jesus. Ele já havia sido casado com

• Em um registro de batismo, para o ano de 1871,

Joana Gonçalves Figueiras com quem tinha um filho

aparece o nome de D. Maria Pilar de Herédia,

por nome Juscelino de Herédia Figueiras que, em

como testemunha de batizado.

1899, contrai matrimônio com Idalina Rita de Jesus. Nesta mesma data, América Cândida de Herédia,

• Em 1877, foi batizado João, filho de Bernardino Soares dos Santos e Salverina Pereira d´Herédia. • Para o ano de 1879, há referência aos batizados

filha de Joaquim Avelino Pereira (já falecido por essa época) e Ana Fernandes de Herédia, casa-se com Henrique Germano da Silva.

de Donana, filha de Ana Fernandes de Herédia e

Outros Herédias têm nomes que aparecem ainda

Joaquim Avelino Pereira; foi madrinha Henriqueta

citados nos referidos livros paroquiais: Etelvina

Paulina de Herédia; e de Pedro (seria este o futuro

Joana de Herédia (1900), filha de Jorge José de

reverendo Pedro Gomes Ayres de Herédia?), filho

Herédia e Joana Gonçalves Figueiras; Joaquina Maria

de Maria Fernandes de Herédia e Antônio Gomes

de Herédia (1914); Idalina de Herédia (1916), casada

Aires; em 1883, registra-se o batismo de outro

com José Pereira.

filho do casal, por nome Fernando.

Em 1940, falece Leofírico da Silva Herédia, aos 55

• Em batismos do ano de 1887, encontramos como

anos de idade, que era filho de Joaquim Manoel de

padrinhos os nomes de Jorge d´Herédia de Santana,

Herédia; no mesmo ano falece Levi de Herédia, com

como padrinho de um escravo por nome Higídio;

33 anos de idade, era filho de Caetana Maria de Jesus

Fernando José d´Herédia e Tobias José d´Herédia.

(o pai não é citado).

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Segundo informações dos moradores mais antigos, eram ali realizadas com muito fervor e pompa as festas de Nossa Senhora do Pilar, padroeira do lugar, São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, protetores dos negros, e do Divino Espírito Santo.

Festividades Nos tempos antigos, as festas ou eram patrocinadas pelo poder público ou pela Igreja. No caso do primeiro, temos as festas realizadas pelas Câmaras Municipais para comemorar nascimentos e casamentos reais. Essas festas ocorriam nas vilas e tinham seus ecos na população dos pequenos povoados. Não temos registro de festas desse teor comemoradas no arraial do Morro. No entanto, há o registro de uma festa civil que deve ter deixado uma lembrança muito forte na memória dos antigos habitantes do Morro do Pilar. Ela não ocorreu diretamente no arraial, porém, foi motivada por um acontecimento gerado ali. Trata-se da festa patrocinada pelo Intendente Câmara para comemorar o sucesso da produção do ferro-gusa no ano 1815. Foi uma festa de caráter tão estridente para a época que chegou a ser noticiada no Jornal Investigador Português, publicado, mensalmente, na cidade de Londres. Em 1815, então, três carros abarrotados de barras de ferro fundidas na Real Fábrica foram conduzidos até o arraial do Tijuco (atual Diamantina) onde residia o Intendente Câmara. A viagem durou cerca de seis dias, passando por uma estrada nova, cortando as serras, até chegar ao seu destino em 21 de outubro do referido ano. Os três carros que conduziam o precioso produto encontravam-se todos enfeitados com figuras e dizeres referentes àquela fábrica e aos fatos que envolveram a sua construção. Pouco antes de chegar ao Tijuco, encontrou-se a festiva comitiva com um regimento miliciano, vestido de gala, que

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promoveu a escolta dos carros até o seu destino final: o armazém da Intendência do Diamante. Já era de noite quando o cortejo, finalmente, entrou no arraial que ficou todo iluminado pelos fogos de artifício e luminárias pendidas nas janelas das casas, tendo as suas principais ruas tomadas pelo povo. A festividade foi prolongada por três dias seguidos e jantares foram realizados na casa do Intendente para as pessoas mais nobres e importantes de toda a Comarca. Tudo acompanhado de música, danças e recital de poesias. A festa foi encerrada no quarto dia com uma representação teatral. Quanto às festas de cunho religioso, diz-se que já são mais comuns no Morro do Pilar. Segundo informações dos moradores mais antigos, eram ali realizadas com muito fervor e pompa as festas de Nossa Senhora do Pilar, padroeira do lugar, São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, protetores dos negros, e do Divino Espírito Santo. A festa dedicada a Nossa Senhora do Pilar deve ser a mais antiga realizada no povoado, pois vem da época da ereção da primitiva capela pelos idos de 1710. Originalmente, devia ser realizada no dia 12 de outubro, data em que se comemora liturgicamente a santa em outras localidades. Depois, foi transferida para o mês de agosto; mais tarde, já em meados do século XX, em época do padre Tarcísio, vigário da paróquia, foi ela transferida para o dia 8 de dezembro, para fugir da concorrência de outras festas, como as do Rosário, São Benedito e do Divino Espírito Santo. De grande antiguidade são, também, as festas consagradas a Nossa Senhora do Rosário, São

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Festa do Divino, uma das mais fortes tradições de Morro do Pilar

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Benedito e Santa Ifigênia, devoções tradicionalmente

com novenas, levantamento de mastros, procissão

ligadas à religiosidade dos escravos e forros. Em

com acompanhamento de bandas e queima de

Minas Gerais, a população negra foi muito grande e

fogos. O que as torna diferente das festas de santos

especialmente composta de escravos utilizados nas

patrocinadas pelos brancos é que a elas são (ou eram)

lavras auríferas. Em muitos lugares, esta população

incorporados elementos do folclore afro-brasileiro,

chegou a suplantar a dos brancos e mestiços. Depois

como congado, marujos, catopé, reisados e caboclos

de cristianizados, os negros procuravam exercer a sua

com roupas coloridas e danças típicas acompanhadas

religiosidade erguendo uma capela dedicada a Nossa

de instrumentos musicais apropriados.

Senhora do Rosário e criando a sua irmandade, já que eram, em muitos casos, impedidos de entrar nas irmandades de brancos.

A festa de Nossa Senhora do Rosário dos pretos pode ter sido, ao lado da festa do Pilar, a mais antiga a se celebrar no Morro pelos escravos. Posteriormente,

Em Morro do Pilar, parece que a irmandade de Nossa

começou-se a comemorar, também, São Benedito

Senhora do Rosário, em seu primeiro século e meio,

que é um santo negro muito querido pela população

ocupou simplesmente um altar dentro da capela

de cor. Sua devoção se difundiu, no Brasil, por volta

e, posteriormente, a Matriz de Nossa Senhora do

de 1743, antes mesmo de ser autorizada oficialmente

Pilar. Só muito tempo depois, no avançar do século

pela Igreja, talvez, por ter sido negro e filho de cativos

XIX, que a irmandade veio a ter uma capela própria,

africanos. Mas as duas festividades têm seus rituais

erguida no local onde existiu a antiga Capela de

bem semelhantes, inclusive com a celebração feita

Santana. Pelos antigos assentos de óbito da Capela

na mesma época, no mês de agosto. Originalmente,

de Nossa Senhora do Pilar do Morro, sabemos

São Benedito é comemorado no dia 3 de abril e Nossa

que os irmãos defuntos da confraria do Rosário,

Senhora do Rosário é comemorada durante o mês de

geralmente escravos e forros (homens e mulheres),

outubro.

eram acompanhados até a capela pela irmandade, sendo, depois, sepultados, em seu no interior, em cova, o que não ocorria com os escravos que não eram irmãos, enterrados no adro da capela. Portanto, o pertencer à irmandade significava uma forma de prestígio dentro de uma sociedade extremamente desigual e opressora com os escravos e negros forros. Fazer-se enterrar dentro da principal capela do povoado era um meio de demonstrar prestígio, assim como realizar e participar das festividades de seus santos prediletos.

Apesar das desfigurações que atingiram as festas nos tempos atuais, as duas ainda apresentam em suas comemorações grupos de marujada, congado e catopé. Grupos estes oriundos de comunidades rurais que guardam com zelo as danças e músicas cultivadas por seus ancestrais escravos há duas gerações. É o caso do catopé, que segundo informações colhidas por Conceição Piló e inseridas no livro Culto e Tradições de Conceição do Mato Dentro, ter-se-ia originado no século XIX, na Fazenda Mata-Cavalos. Os antigos escravos da fazenda teriam ensinado aos seus

Em todos os locais de Minas Gerais onde existiu uma

descendentes danças e cânticos originários da África

confraria do Rosário, a realização da festa tornou-se

e até mesmo a fabricação de instrumentos típicos

uma ocasião para a irmandade demonstrar a sua força

para marcar o ritmo. Das danças, que varavam altas

vital. Isto ocorria não só durante a festa dedicada à

madrugadas na Fazenda Mata-Cavalo sob os aplausos

padroeira Nossa Senhora do Rosário, mas também,

dos donos, é que surgiram os grupos no antigo Arraial

naquelas dedicadas aos santos “negros” Benedito e

do Morro do Pilar para participar das comemorações

Ifigênia. De uma maneira geral, as festividades eram

de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Estes

realizadas seguindo um mesmo ritual que outras

grupos participavam, também, de festas do Rosário

festas de santos patrocinadas pela Igreja, ou seja,

realizadas em Conceição do Mato Dentro.

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Participação de crianças na Festa do Divino, realizada todo mês de agosto em Morro do Pilar

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Reza a lenda que a descoberta de ouro ali foi resultado do esforço das formigas ao escavar seus formigueiros.

Lendas, casos e fatos interessantes na história do Morro A primeira lenda criada sobre o Morro diz respeito à própria descoberta das minas de ouro na região e foi mencionada pelo viajante Johann Emanuel Pohl, certamente, reproduzindo aquilo que ouviu dos moradores locais. Reza a lenda que a descoberta de ouro ali foi resultado do esforço das formigas ao escavar seus formigueiros na medida em que iam conduzindo, do fundo da terra para a superfície, o cobiçado metal. Assim que descobriu o ouro em volta dos formigueiros, Gaspar Soares tomou a decisão de fundar um povoado que foi crescendo aos poucos conforme a chegada de novos mineradores. Outra história famosa da região diz respeito à “Mãe Tança” que versa o seguinte: um primitivo proprietário da Fazenda Mata-Cavalos, José Pereira de Abreu e Lima — vindo de Córregos com numeroso plantel de escravos por volta de 1800 —, ao falecer, reconhece por filhas e herdeiras universais D. Ana Inês Abreu e Lima e D. Constância Fortunato de Abreu e Lima (conhecida pelos escravos da fazenda como Mãe Tança devido a sua bondade). Esta, por sua vez, ao falecer, deixa em testamento as suas terras, incluindo a Fazenda, para os negros forros que ali viviam. Conta-se, também, que foram dois casais de escravos da famosa Mãe Tança (Patrício e Mafalda, Toninho e Amélia) que criaram a dança conhecida por catopé. A bondosa senhora estimulou até mesmo a fabricação de dois instrumentos de madeira de lei, sendo um pequeno (“Chama”) e outro maior (“Santana”). No calor da dança, Chama faz soar Santana em cadência evocativa e dolente.. Há ainda outra interessante lenda narrada pelo Cônego Antônio Vieira Matos, em seu já referido livro, que se relaciona à escolha do local para construção da nova capela pelo descobridor Gaspar

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Soares. Por esta ocasião, encontrava-se no povoado um frade missionário. Em um de seus sermões, o frade censurou a vida dissoluta dos amasiados de Soares que, é claro, não gostou muito e prometeu vingar-se do religioso. Certa feita, chamou ele o padre e pediu-lhe que apreciasse o local escolhido abaixo do morro para se erguer a nova capela. No entanto, pelas costas, mandou que dois de seus capangas abrissem uma sepultura no local próximo onde o frade iria passar e nela o enterrassem com terra fina, porém, sem quebrar-lhe os ossos ou derramar algum sangue. Assim que o religioso desceu do alto para ver o local indicado, os capangas anunciaram a ordem recebida e sepultaram vivo o pobre frade que sofreu o martírio sem se resignar, porém, sem antes rogar uma praga: de que da pia batismal da nova capela não haveria de sair padre algum. (MATOS, 1921) O Cônego Antônio Vieira Matos registra em um dos livros paroquiais (LIVRO de Batismos, 1877-1879) que, em 8 de maio de 1887, foi celebrada, na freguesia do Morro do Pilar, e pela primeira vez, uma missa cujo Sacrifício da Eucaristia teve por matéria uma hóstia feita com farinha de trigo colhido em terras localizadas no distrito do Morro, em propriedade de D. Maria Guilhermina Leite, filha de Antônio Joaquim Leite e Guilhermina Catarina de Jesus, em lugar denominado Brumado onde ficava a plantação. Cônego Matos achou a notícia tão relevante que resolveu constá-la no livro para os “vindouros”, como conclui ao final do registro. Outro registro interessante foi o encontrado em um livro de óbitos, já mais recente, que faz referência ao primeiro enterro ocorrido no novo cemitério do lugar em 08 de novembro de 1839. Trata-se do sepultamento da recém-nascida por nome Maria, falecida aos nove meses de vida, filha de Joaquim dos Santos Pereira e Caetana Rosa. O enterro ocorreu sete dias depois da benção inaugural do cemitério, ocorrida dia 1º de novembro (dia de Finados), feita pelo Frei Vicente de Licódia, pároco de Conceição do Mato Dentro.

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Os sons e tambores sempre fizeram parte das lendas e do imaginário de Morro do Pilar

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É neste cenário de mudanças que surge a figura de Manuel Ferreira da Câmara Bettencourt, o primeiro brasileiro a estabelecer um alto-forno para fundição de ferro no Brasil.

A Real Fábrica de Ferro do Morro do Pilar A Fábrica de Ferro implantada pelo Intendente Câmara no Morro do Pilar pode ser considerada como um divisor de água na história do município: antes da vinda da fábrica e já sentido fortemente os efeitos da queda vertiginosa da exploração do ouro, Morro do Pilar tornara-se um lugar [...] “insignificante e miserável povoação já em decadência” [...], no dizer de Joaquim Felício dos Santos (1976, p. 216). Depois da Fábrica de Ferro, o povoado revive, pois chegam famílias de fora que se estabelecem definitivamente no arraial, há aumento do movimento de pessoas e há certa abundância de dinheiro. Era uma grande alegria entre os trabalhadores quando chegavam tropas que traziam da parte do Rei, entre outras mercadorias, os cobres. (MATOS, 1921). Depois de fechada, por volta de 1830, a história de Morro do Pilar já não seria mais a mesma. Montar uma fábrica próxima a um lugarejo pequeno “quase inteiramente baldo de recursos”, como aponta Felício dos Santos, não seria uma tarefa das fáceis. Mesmo para alguém com conhecimentos teóricos sobre o assunto como no caso do Intendente Câmara que, no entanto, nunca se aventurou a tal tipo de empreendimento. Além do mais, de seu país nada poderia herdar de útil neste campo específico. Durante os 300 anos de colonização do Brasil, a Coroa portuguesa só teve olhos para as riquezas que daí pudesse extrair: primeiro o pau-brasil; depois o açúcar e, já no século XVIII, o ouro das Minas Gerais. Era a lógica do conhecido pacto colonial no qual a colônia deveria existir tão somente para gerar matérias-primas e não para produzir manufaturados que deveriam ser adquiridos da metrópole. Obviamente, funcionaram pequenas fundições em 94

vários pontos do território, porém, eram de cunho doméstico, valendo-se da técnica do cadinho, trazido da África pelos escravos, no qual o ferro era fundido e transformado em toscos utensílios usados na agricultura e mineração. Este tipo de mentalidade só veio a mudar em fins do século XVIII. Os ventos dos ideais iluministas, que varriam parte da Europa, sopram, tardiamente, sobre Portugal, fazendo com que os ministros do Rei buscassem novos meios de modernizar a economia portuguesa que estava bastante defasada em relação a outras Nações. No bojo disto, também, surgiam instruções e ideias para aproveitamento das riquezas minerais da colônia até então desconsiderados devido ao exclusivo colonial. Assim, começou-se a ter olhos para o cobre, o nitrato, o estanho e, em especial, para o ferro. Permitir a fundição do ferro em alta escala era a solução para amenizar a crise da própria mineração aurífera e da agricultura, atividades cuja sobrevivência dependia essencialmente do uso de instrumentos feitos de ferro. É neste cenário de mudanças que surge a figura de Manuel Ferreira da Câmara Bettencourt, o primeiro brasileiro a estabelecer um alto-forno para fundição de ferro no Brasil. Natural de Minas Gerais, ele conhecia bem as dificuldades dos mineradores e agricultores da capitania em obter as ferramentas necessárias para exercício de suas atividades que chegavam aqui a preços exorbitantes e impraticáveis já que tudo era importado de outros países. Nem mesmo a incipiente produção da metrópole dava conta de um enorme mercado que se abria para o Brasil. Câmara, depois de formar em Leis e Filosofia, na Universidade de Coimbra, o principal centro de irradiação do pensamento iluminista em Portugal, passa alguns anos viajando pela Europa, aprendendo

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Manuel Ferreira da Câmara Bettencourt e Sá – Intendente Câmara – o primeiro brasileiro a estabelecer um alto-forno para fundição de ferro no Brasil

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técnicas para extração e beneficiamento de minérios e sobre administração de minas, além de aprimorar seus conhecimentos de mineralogia em geral. Isto ocorre entre 1790 e 1798, momento, certamente, em que começa a esboçar o seu sonho de estabelecer uma fábrica para produção em larga escala do ferro em Minas Gerais. De retorno a Portugal, Câmara é indicado pela Coroa para avaliar locais para extração de carvão para fábricas do Reino. Também, usou seus conhecimentos técnicos e científicos para realizar projetos econômicos e administrativos sobre as colônias, esforços que lhe valeram a indicação para ocupar o prestigioso e importante cargo de Intendente de Diamantes na capitania — um cargo que, desde sua criação, em 1739, nunca havia sido ocupado por um brasileiro. Câmara retorna ao Brasil logo depois, em 1801, entretanto, apesar da indicação, tem de aguardar ainda alguns anos para ser empossado, o que vem a ocorrer somente em outubro de 1807. Assim que assume suas funções na administração diamantina, o novo Intendente já deixa bem claro os seus propósitos: diversificar a mineração na colônia, modernizar os processos de extração dos diamantes e, o mais audacioso deles, estabelecer a fabricação de ferro para abastecer o Brasil e até alguns países da América do Sul. A transferência da Corte de Lisboa para o Brasil implicou a transferência de todos os órgãos da administração real para a capital brasileira, entre eles, a Diretoria Diamantina, com orçamento anual de 120:000$000 (cento e vinte contos de réis) para os Serviços da Real Extração do Diamantino no Distrito do Serro. O Intendente encontrava-se presente na Corte do Rio, nesta oportunidade, e, de retorno à Capitânia, trazia outra boa notícia: o Ministro Dom Rodrigo autorizou-lhe a tomar providências para instalação da sonhada fábrica de ferro em Minas Gerais que ficaria sob sua responsabilidade. A confirmação oficial para estabelecimento da fábrica veio a partir de uma Carta Régia datada de 10 de outubro de 1808. Nela, o Intendente ficava

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autorizado a deduzir dos 120:000$000 réis da assistência anual do distrito, que pela Fazenda se fazia para os trabalhos da extração, a quantia de 18:000$000, sendo 10:000$000 réis no ano de 1809 e 4:000$000 em 1810 e 1811. Deveriam ser aplicados, como mais conveniente fosse, ao estabelecimento de uma fábrica de ferro, no lugar mais apropriado da Comarca do Serro do Frio, a fim de suprir os trabalhos da extração com o ferro que fosse necessário para os serviços diamantinos, devendo o seu preço ser calculado pela média do preço do ferro vindo do Rio de Janeiro nos três anos próximos anteriores e não pelo que se vendesse aos particulares. Além da construção da fábrica, o Intendente tinha planos mais ousados: produzir ferro tanto para o consumo na extração diamantina quanto para suprir o mercado brasileiro, o que o levou a projetar e até iniciar a construção de uma estrada ligando o povoado do Pilar ao Rio Doce de onde a produção, por via fluvial, seria encaminhada diretamente ao porto de Vitória. Entretanto, por falta de apoio político do governo, a construção do caminho foi interrompida no ano de 1819. Restava, agora, escolher o local adequado para instalação da fábrica, uma tarefa não tão árdua assim para alguém com vastos conhecimentos adquiridos sobre as minas européias e a sua administração. Neste aspecto, logo sua atenção seria despertada pela imensa e inexaurível riqueza de ferro depositada no Morro de Gaspar Soares, junto ao povoado do Morro do Pilar, termo da freguesia de Conceição do Mato Dentro, na estrada que liga o Tijuco a Vila Rica, que, segundo ele, oferecia ferro em abundância, matas para gerar o carvão, pasto para os animais que são necessários na produção e muita água. Só iria encontrar dificuldades na obtenção de material para construção, que teve de vir de longe, e em conseguir mão de obra qualificada para o funcionamento da fábrica. Neste aspecto, a falta de gente para tocar o forno fazia com que ele mesmo experimentasse, por várias vezes, esta função, ocasião em que deixava de lado suas obrigações de Intendente. Muitos dos empecilhos seriam contornados, como se disse antes, pelo prestimoso auxílio do

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Imagem ilustrativa do primeiro alto-forno de fundição de ferro em Morro do Pilar e detalhe das ruínas da fábrica do Intendente Câmara

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“compatriota” Capitão-Mor Sancho Bernardo de Herédia que fez a doação do terreno para construção da fábrica, situado em nível abaixo de sua residência. Exatamente em 5 de abril de 1809, iniciaram-se as obras de construção da fábrica de ferro do Intendente Câmara. As dificuldades foram imensas, exigindo obstinada determinação. As pedras para as dependências e o real moinho da fábrica tiveram de vir em carros de boi de Congonhas do Norte, exigindo a abertura de uma estrada. Outro empecilho foi que no povoado não havia mão de obra suficiente e qualificada para a construção (pedreiros, oleiros, carpinteiros, ferreiros etc.), o que ocasionou a vinda de trabalhadores juntamente com escravos de arraiais vizinhos. A este respeito, Cônego Matos afirma que João Vieira Costa e sua família vieram de Diamantina com o propósito de empregar seus escravos na fábrica; e com a mesma finalidade, José Francisco Rodrigues e família, vindos de Gouveia (MATOS, 1921). Para a fundição do ferro propriamente dita, Câmara também não iria encontrar trabalhadores especializados em fundição e foi obrigado a atuar ele próprio em todas as frentes, sendo, ao mesmo tempo, projetista, engenheiro, pedreiro, oleiro e fundidor. Isto implicava a sua permanência ali por longos dias ou, por vezes, meses a fio, além das constantes viagens que tinha de realizar entre o Tijuco e a sua fábrica. O plano inicial da fábrica constava da construção de um alto-forno, com vinte e oito pés de altura (8,5 metros), para vazar o ferro pelo sistema da Alemanha. Mas, a insuficiência de água para movimentar os malhos e foles, fez o Intendente alterar o plano

primitivo e levantar outros três fornos baixos pelo sistema catalão. Aliás, fornos que deviam funcionar ao mesmo tempo e auxiliar o forno maior. A falta de água, algumas vezes, deixava os fornos sem funcionar por dois ou três dias por semana. A primeira tentativa para se fundir o ferro ocorreu no final do ano de 1812 quando se iniciou o aque­ cimento do forno. O ferro principiou a correr e estender-se por todo o cadinho, mas a operação teve de ser suspensa devido a um transtorno ocorrido nas máquinas, causando a completa destruição do forno. Câmara não desanimou, fez reparos e até solicitou do Governo o envio de um mestre fundidor estrangeiro. No final de 1813, foi enviado o mestre alemão João Schönewoff que até então trabalhara com o alemão Barão de Eschwegw em sua Fábrica Patriótica, localizada em Congonhas do Campo. Entre agosto e setembro de 1814, com a supervisão do mestre alemão, a fábrica de Câmara conseguiu fabricar, pela primeira vez, ferro líquido em alto-forno no Brasil não obstante ainda terem ocorridos problemas. Somente em 15 de outubro do ano seguinte, no entanto, o ferro correu do alto-forno sem nenhum problema, sendo produzidas 180 arrobas do metal. Estas, como se mencionou antes, foram conduzidas festivamente até o arraial de Tijuco (atual Diamantina). A fábrica já contava com 15 fundidores e carregadores de forno, 8 ferreiros, 6 carpinteiros, 2 negros, 2 moços e um feitor, perfazendo um total de 34 trabalhadores ao todo. O Intendente acompanhava tudo de perto, rodeado de sua comitiva, composta por umas 16 pessoas. Câmara encolerizava-se facilmente e reprima seriamente os trabalhadores quando acontecia algum deslize ou descuido. Lamentavelmente, nada restou da fábrica além de simples ruína de uma de suas paredes. No entanto, para se ter uma dimensão do que teria sido essa 1ª Fábrica de Ferro, construída em Minas Gerais, temos as impressões que dela nos deixaram os viajantes que passaram pelo Morro entre os anos de 1816 e 1820. Época em que a fábrica se encontrava em pleno funcionamento.

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Os primeiros a terem passado por ali, por volta de 1817, foram os viajantes J. B. Von Spiux e C. F. P. Von Martius. Suas impressões sobre a fábrica foram as seguintes: Está situada acima dum ressalto da montanha e consta de um alto-forno e duas refinações. Os fornos, o moinho de pilões, os armazéns, as habitações do mestre-fundidor e dos operários estão montados amplamente e teriam custado uns 200.000 cruzados. Para forrar os fornos, mandou-se vir grés de Newcastle na Inglaterra, pois o xisto quartzítico do país torna-se facilmente friável ao fogo. Não encontramos o mestre-fundidor, um alemão [João Schönewoff], que não estava presente. Havia justamente partido para Vila Rica e, por esse motivo, não funcionava a fábrica. De fato, já desde alguns anos o alto-forno não trabalha, por estarem à espera de diversos fundidores da Alemanha. Provisoriamente, produzem ambas as refinações o ferro necessário para o uso da vizinhança e do Distrito Diamantino. A água motriz é acumulada no cume do monte, num grande tanque, cimentado com minério de ferro e conduzida para baixo num canal. Alguns censuram ter sido feita a instalação da fábrica nessa altura, porque sofrerá falta de água nos meses de seca. Também o carvão precisa ser tirado das matas situadas embaixo, pois as da montanha não bastariam. Quanto ao minério de ferro, é tão excelente e está em tal quantidade à mão que seria suficiente para abastecer, durante séculos, todo o Brasil [...]. A fim de estender a Fábrica, o Sr. Ferreira da Câmara, amigo de grandes empreendimentos, propôs ligar o Rio Santo Antônio com o Doce, e assim transportar o ferro até a costa marítima por via fluvial e, de retorno, trazer-se o sal, assim como outras necessidades do sertão. Esse desígnio influiu sobretudo na escolha do lugar, contra o qual se elevaram protestos, por motivo da altitude e da falta de água, crítica que Ferreira da Câmara refutou perante o governo, pois ele mesmo tomaria a fábrica a seu cargo com reembolso de todas as despesas. (SPIUX; E MARTIUS, 1981, p. 24)

Um pouco depois, seria a vez de Saint-Hilaire passar pelo arraial e descrever de maneira minuciosa — e crítica — o empreendimento do Intendente Câmara: Construiu-se inicialmente um alto-forno no plano dos da Alemanha, que são os mais bem

compreendidos, e se mandou vir um fundidor alemão para dirigir as operações. Esse forno tem vinte e oito pés de profundidade; sua abertura superior mede três de diâmetro, e nele se podiam fundir trinta quintais [1 quintal = 58,758 kg] de minério de cada vez. Como não existe na vizinhança da fundição nenhuma queda de água natural, escavou-se a um quarto de légua do estabelecimento, um grande reservatório donde se escapa a água destinada a por em movimento os martelos e os foles. Esse reservatório, disposto como nossos tanques, é de forma alongada, e sua calçada, construída na largura, a quatrocentos e tantos palmos, ou 360 pés. A água sai por dois orifícios que se abrem e fecham à vontade. Abaixo desse reservatório há um outro menor, para o qual passa a água do primeiro, e que só tem uma abertura. O edifício em que está o alto-forno não tem mais de vinte e oito passos (cerca de 84 pés) de comprimento; a sua escassa extensão acresce uma altura bastante medíocre, e o ar não penetra aí senão por duas portas e algumas aberturas circulares feitas nas paredes. É fácil sentir como, sob os trópicos, o calor devia ser insuportável aos operários em local tão acanhado. Um inconveniente mais grave, ainda, porém, não tardou a se fazer sentir. Não se forjaram mais de dois mil quintais de ferro e logo se foi obrigado a interromper o trabalho, não só porque a água era insuficiente, como também, porque se reconheceu que as pedras do país não podiam resistir à altíssima temperatura da forja. Desse modo esse alto-forno, de tão dispendiosa construção, tornou-se inútil. No entanto não se desanimou. O Intendente pediu ao governo permissão para mandar vir da Inglaterra pedras capazes de resistir ao fogo; e, enquanto esperava, ordenou que em uma plataforma que se estende por baixo das antigas forjas, se construíssem outras. Estavam-nas construindo quando passei pela primeira vez pelo Morro de Gaspar Soares; mas, na volta, que se verificou no fim do ano, achei-as terminadas. Compõem-se de três fornos catalães; mas, desde que esses fornos foram inaugurados, a falta de água impedira de trabalhar mais de duas ou três vezes por semana. Tinham, portanto, razão os que se queixavam, no lugar, de que as forjas se tivessem instalado em um local em que a água era insuficiente; todavia, é preciso também que se diga que choveu muito pouco no correr do ano,

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e os tanques não se puderam encher. (SAINTHILAIRE, 1975, p. 132)

A seguir, Saint-Hilaire descreve o que fez o Intendente para suprir a pequena quantidade de água: Mais abaixo do que as segundas forjas de que já falei, construía-se, por suas ordens, por ocasião de minha volta, um edifício destinado ainda a novos fornos que não deviam ser postos em atividades pela água dos reservatórios. Em plano inferior ao da povoação corre o regato chamado Picão, do qual já se disse uma palavra, e que tem suas nascentes nas montanhas vizinhas. O Intendente teve a ideia extremamente feliz de fazer um canal que, com largura de dez palmos (cerca de 7 pés e 6 polegadas), devia medir meia légua de comprimento, e que, recebendo as águas do regato em sua nascente, poderia em todas as estações por as forjas em movimento. Na parte mais próxima dessas últimas, foi necessário que esse canal, já começado por ocasião de minha viagem, atravessasse o morro em uma extensão de trezentos palmos (225 pés, aprox.), e a abobada para esse fim construída foi interiormente revestida de peças de madeira. Em quase todos os pontos em que o canal fora escavado, atravessava a mina de ferro; o minério fora quebrado, e devia ser fundido nas forjas depois de trazido pelo próprio canal em pequenas canoas. Finalmente, como este devia passar por grandes matas antes de chegar ao Morro, tencionava-se fazer carvão em suas margens e embarcá-lo como o minério.

Por fim, depois de expor suas impressões sobre as dependências do estabelecimento, passa a narrar sobre os trabalhadores da fábrica:

Para a descrição do estabelecimento do Morro, direi que, muito abaixo das novas forjas, se construiu, mais ou menos segundo o modelo duma das estampas da arquitetura hidráulica de Bolidor, um moinho que é posto em movimento pelas mesmas águas que serviram às forjas. (idem, p.133)

Cada mestre de ofício, fundidor, carpinteiro, serralheiro, etc., tem a lista dos seus homens, e deve anotar os que não se apresentam; mas o Rei, disseram-me, pagou muitas vezes jornais de homens que estavam bem longe dos fornos, ou de que os empregados se serviam para coisa muito diversa do serviço do estabelecimento. (idem, 1975, p. 132-134)

Apesar dos elogios ao Intendente por suas performances na construção da fábrica, SaintHilaire, como bom observador, não deixa de fazer, também, as suas críticas, censurando o alto custo do empreendimento devido à falta de um melhor planejamento e conclui: Jamais se entregou uma planta aos mestres da obra; fez-se sempre tudo sem plano determinado, e quando uma construção era julgada muito alta, abaixavam-na, e, se achava muito pequena, demolia-se para construir outra maior. Tais

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apalpadelas seriam imperdoáveis na Europa; mas eram-no muito menos em uma região onde não havia ainda modelos a imitar, e onde recordações e livros, frequentes vezes inexatos e incompletos, constituíam os únicos modelos. (idem, ibid)

Subordinado ao Intendente, um administrador é encarregado de dirigir as forjas de Gaspar Soares e recebe quatrocentos mil réis (2.500 francos) de ordenado. Cento e poucos operários trabalham no estabelecimento, e se pagam a jornal, em razão do que são capazes de fazer: a importância média é de cerca de seis vinténs de ouro (1 franco e 40 centavos). Os escravos alugados a particulares são pagos na base de três vinténs (70 centavos), e nutridos como os do Distrito dos Diamantes. Quando o Intendente está no Morro anima os trabalhadores com sua atividade; mal, porém, se retira, tudo esmorece. Em uma região em que o calor convida à preguiça, em que o homem tem poucas necessidades, onde o trabalho, de certo modo é considerado uma vergonha, e, parece dever ser somente coisa de escravos, nada é tão difícil como radicar operários livres; por isso o administrador calculava que mensalmente havia, em geral, um milheiro de dias de trabalho perdidos.

Depois de um efêmero período de florescimento, a Fábrica Real do Pilar começou a entrar em decadência pela falta de trabalhadores e oficiais competentes. Por conta disso, em 1820, D. João VI manda contratar mestres e peritos na metalurgia do ferro e nos serviços de alto-fornos para as fábricas do Brasil. Foram destinados à Fábrica do Pilar dois fundidores prussianos em alto-forno, o mestre Hermann Utsch e um oficial, seu filho João Henrique Utsch, que ali deviam permanecer por cerca de 10 anos.

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Peça produzida na antiga fábrica de ferro do Intendente Câmara

Em 1822, Câmara deixa de ser Intendente para assumir uma cadeira na Assembleia Constituinte Brasileira. Em seu lugar é nomeado como novo Administrador da fábrica, Francisco de Paula Cardoso, profundo conhecedor de mecânica e mineração. No mesmo ano, atendendo a uma solicitação do Governo, o Capitão-Mor Sancho Bernardo de Herédia procede a um inventário da Fábrica no qual descreve o seguinte: O comprimento e largura que tem a Casa de Fundição é de 86 polegadas de frente e 68 de largo. Nesta acha-se o forno do meio que tem 30 polegadas de alto. Mais acima está o Paiol de Carvão, que mede 85 polegadas de frente, por 48 de largura. Sua Varanda (que é onde a mina que se funde no alto-forno) tem 20 polegadas de largura e o cumprimento integral da casa. A casa do Mestre Fundidor tem 62 polegadas de frente por 31 de largura. A casa do primeiro martelo tem as dimensões de 87x54 de larg. O paredão que sustenta o terreno é todo de pedra. Mais o alto-forno e canais que vêm do bicame em represa d’água para o martelo e trompas

que dão vento às duas forjas e seus respectivos foles. Pouco além, está se construindo uma casa para o mestre-moldador, com dimensões de 60x35 de largura. A casa do segundo martelo tem 110 polegadas de frente por 53 de largura, onde estão instalados o martelo, duas forjas de refinar, quatro fornos de fundir e quatro trombas competentes e o bicame que represa a água indispensável ao funcionamento do martelo. Mais adiante estão as casas grandes do Moinho e do Armazém, por onde passa um bicame que leva água à roda de virar a pedra. A casa que serve de cozinha do Moleiro está sendo aproveitada para o Armazém de Cangalhas, cujo comprimento é de 60 palmos de frente por 35 de largura. (MORAIS, 1942, p. 274-275)

O inventário enumera ainda os funcionários da Fábrica Real do Pilar naquele ano de 1822, sendo: 1 administrador Geral; 1 padre capelão; 1 administrador do Armazém e Moinho; 3 feitores; 1 carreiro; 1 fundidor do alto-forno; 5 oficiais do alto-forno; 1 moldador; 1 oficial do baixo-forno; 2

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jornaleiros serventes; 6 refinadores ajudantes de

Governo encerrado em 1830, resolvem permanecer

baixo-forno; 6 jornaleiros ajudantes de baixo-forno;

no país, abrindo sua própria fundição. Adquirem

1 oficial de serralheiro; 2 ajudantes de serralheiro;

um terreno junto à ponte do Sumidouro, a 7km de

6 aprendizes de serralheiro; 3 carpinteiros; 7

Conceição, e aí constroem a Fábrica do Sumidouro

ajudantes de carpinteiro; 5 jornaleiros serventes de

com forja do tipo catalã. Esta seria a primeira fábrica

carpinteiro; 1 mestre pedreiro; 1 oficial de pedreiro;

de ferro de propriedade particular de um alemão no

6 jornaleiros serventes de pedreiro; e 71 jornaleiros

Brasil. Já outro membro da família, Daniel Henrique

carvoeiros.

Utsch, construiu uma forjaria na Fazenda Mata-

Por volta de 1828, a decadência da produção de ferro na Fábrica do Morro já era bem acentuada quando o Capitão Sancho de Herédia propõe um plano para a sua reorganização, sugerindo até o nome do novo administrador, uma pessoa de grande visão e conhecedora da metalurgia. O plano proposto, no entanto, não foi aceito pelo Governo. Além disso,

Cavalos, conhecida como “Fábrica Daniel” e nela trabalhou até ficar cego; e seu filho, de mesmo nome, fundou a Fábrica de Ferros Cubas para fabricação de enxadas, foices e cravos, tendo sido a melhor fábrica da região pela excelência de seu ferro. Outros descendentes dos Utschs, também, tiveram suas forjarias na região.

em 1830, encerrava-se o contrato com os mestres

Mais tarde, inúmeras outras pequenas fundições se

fundidores prussianos que resolvem explorar, por

espalhariam pela região, como aponta um relatório

conta própria, as jazidas de ferro existentes entre

elaborado por Joaquim Candido da Costa Sena,

Itambé e Morro do Pilar.

então jovem engenheiro formado pela Escola de

Sem direção, a Fábrica Real do Morro do Pilar foi praticamente abandonada e, por ordem do Conselho de 26 de fevereiro de 1831, foi determinado que se fizesse um inventário de todos os bens da fábrica que era composto por uma casa de pedra e taipa destinada ao carvão; uma casa de pedra com alto-

Minas de Ouro Preto, intitulado Viagem de estudos metalúrgicos no centro da Província de Minas (1881), que enumera alguns dos empreendimentos visitados por ele, indicados pelos nomes dos donos, pelo tipo de forja usada, pela quantidade e qualidade de ferro produzida e pelos utensílios fabricados.

forno, foles e roda; casa de pedra do martelo grande,

Além das fábricas dos Utschs acima mencionadas,

com três fornalhas de fundir e duas de resfriar; casa

Sena cita ainda a Fábrica de ferro do Tenente João

com moinho; rego que conduz água para a fábrica na

Martins, a Fábrica de Ferro do Coronel Antônio

extensão de meia légua; 70 cabeças de bois para carro,

Rodrigues, a Fábrica do Tenente Jorge, a Fábrica

uma sesmaria de terra sita no lugar denominado

de Ferro do Sr. Joaquim

Paiol ou Congonhas, doada à Fábrica pelo falecido

Batista, a Fábrica de Ferro

Capitão-Mor Bernardo de Herédia e uma mata no

do Capitão Modesto, a

lugar denominado Fernandes.

Fábrica de Ferro do

Findou, assim, a aventura da Fábrica do Morro do Pilar, sonho do Intendente Câmara em fazer desenvolver a fundição de ferro em larga escala no país. No entanto, a sua tentativa não foi em vão, pois as suas arrojadas ideias serviram de motivação para o surgimento de inúmeras pequenas fábricas e forjarias na região.

Sr. Eduardo Félix, a Forja do Português e a Fábrica de Ferro do Capitão Domingos, considerada a mais importante de todas elas. A maior parte delas estava situada entre Morro

Prova disto é que os próprios Utschs, mestres

do Pilar e Conceição de Mato

fundidores da Real Fábrica, tendo seu contrato com o

Dentro (MORAIS, 1942).

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Brasão da família Utsch

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Peça de ferro produzida na antiga fábrica de ferro do Intendente Câmara e, no detalhe, ferro líquido no processo de fundição

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Evolução administrativa e eclesiástica de Morro do Pilar • Aplicação (povoado) com denominação de “Morro Gaspar Soares” e, posteriormente, “Morro do Pilar” do Termo de Conceição do Mato Dentro (durante todo século XVIII). • Capela de Nossa Senhora do Morro de Gaspar Soares (1710) – pertencente à Paróquia de Conceição de Mato Dentro. • Capela curada de Nossa Senhora do Pilar a partir de 1740. • Distrito e Paróquia de “Morro do Pilar” pela resolução régia nº 7, de 13-04-1818, confirmado pela lei estadual nº 2, de 14-09-1891, subordinado ao município de Conceição do Serro; como paróquia teve incorporado as capelas de Itambé, Rio Abaixo, Ferros e Joanésia. • Pela lei provincial de nº 171, de 23/3/1840, Conceição é elevada à condição de Vila, compreendendo as povoações do Morro de Gaspar Soares e a de São Miguel e Almas. • A lei de nº 553 de 10/10/1851 eleva Conceição à condição de cidade, passando Morro de Gaspar Soares a ser um Distrito. • Elevado à categoria de município com a denominação de Morro do Pilar, pela lei nº 1039, de 12-12-1953, desmembrado de Conceição do Mato Dentro, tendo por único distrito a sede. • Instalado oficialmente em 01-01-1954.

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Crianças na Festa do Divino em Morro do Pilar

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Importância do levantamento histórico e arqueológico da Real Fábrica de Morro do Pilar em Minas Gerais | CAPÍTULO 4

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capítulo 4

A importância do levantamento histórico e arqueológico da Real Fábrica de Morro do Pilar em Minas Gerais ♦ Fabiano Lopes de Paula ♦ ♦ Diego Prata Melo ♦ ♦ Igor Lacerda Ferreira ♦

A

memória humana é frágil e finita. Armazenamos mentalmente nossas expe­riências como memórias, mas estas são, com facilidade, esquecidas e sua recuperação, pelo ato de lembrar, é inexata e defeituosa. Devido a nossa capacidade finita de mentalmente armazenar nossas memórias, as sociedades humanas têm produzido uma série de dispositivos para seu armazenamento em forma extracorpórea que inclui osso entalhado, argila e tábuas de pedra, estelas esculpidas e, posteriormente, mapas, desenhos, fotografias, fonógrafos e outros registros tecnológicos e, finalmente, o computador. Cada um desses dispositivos oferece uma capacidade crescente para o armazenamento de memória. Cada nova tecnologia, portanto, atua como um suporte cada vez mais eficiente para a memória humana (JONES, 2007). Neste texto, o foco está na construção da realidade de um local que foi absolutamente importante para a história do Brasil e que merece ser resgatado para as gerações futuras: um empreendimento pioneiro na fundição de ferro: a Fábrica Real. Implantada pelo Intendente Câmara, no século XIX, em área denominada Morro do Ogó, município de Morro do Pilar, Minas Gerais, neste ano de 2014, comemora 200 anos de existência, porém, pouco conhecida e sendo valorizada, apenas, no meio científico. Ressalta-se o uso do potencial histórico e arqueológico para fins didáticos e científicos ocorre de maneira restrita em Minas Gerais, Estado portador de valoroso acervo. A Mina da Passagem, em Mariana, do período inglês e que mostra parte da evolução tecnológica, talvez, seja o único exemplo de aproveitamento turístico com infraestrutura de apoio à visitação, enquanto outras sequer são conhecidas. Também, a Mina de Chico Rei, em Ouro Preto, conta com galerias remanescentes do período colonial e são abertas à visitação. No Estado, a história da mineração permanece ainda incipiente embora esteja, diretamente, atrelada a essa atividade. O pouco que se conhece deve-se a restritas iniciativas, tais como: projetos de mapeamento de minerações antigas, inventários do patrimônio cultural gerado pelos próprios municípios nos últimos anos (motivados pelo repasse do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual, Intermunicipal

Arqueólogo, Historiador, Pesquisador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais IEPHA, foi Superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Mestre em Arqueologia pela Universidade de São Paulo USP, Doutor em Arqueologia pela Universidade Trás-os-Montes e Alto D’Ouro, Vila Real, Portugal. 2 Licenciado em História, Pesquisador e Professor na Rede de Ensino da Secretaria Estadual de Educação do Estado de Minas Gerais. 3 Bacharel em Geografia, Mestrando em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais UFMG. 1

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Ruina da antiga forja da família do mestre fundidor Hermann Utsch, próxima da ponte do Sumidouro

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e de Comunicação – ICMS Cultural); divulgação dos relatórios de Estudos de Impacto Ambiental (EIA) em áreas pretendidas para novos empreendimentos; empreendimentos já em processo de licenciamento ambiental. A maioria daqueles estudos focaliza áreas já mineradas nos séculos anteriores ou em suas proximidades e acontecem quando nos deparamos com testemunhos de antigos empreendimentos ou obtemos a informação da comunidade científica. Inúmeros são os vestígios da atividade exploratória. O que fazer com tanta ruína?

A abordagem legal do patrimônio cultural A natureza, além de sua composição física e paisagística, é parte integrante do acervo patrimonial, especialmente, como paisagem modificada pelo trabalho humano. Assim sendo, compõe parte do processo da construção cultural, englobando os recursos naturais, a materialização das relações sociais e, por isso, deve ser preservada e protegida. As intervenções político-sociais do espaço urbano,

referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: “[...] Art. 216-A”. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 71, de 2012). • Pelo Art. 207, as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. § 1º É facultado às universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma da lei. § 2º O disposto neste artigo aplica-se às instituições de pesquisa científica e tecnológica. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 11, de 1996).

muitas vezes, são depreciadas e nem sempre os

• Pelo Art. 215, o Estado garantirá a todos o pleno

projetos de planejamento e desenvolvimento urbano

exercício dos direitos culturais e acesso às fontes

são contemplados por planejamentos mitigatórios

da cultura nacional, e apoiará e incentivará a va-

satisfatórios e pertinentes.

lorização e a difusão das manifestações culturais.

José Afonso da Silva (1994) afirma ser o meio

Assim, o patrimônio cultural é uma modalidade do

ambiente cultural integrado pelo patrimônio

gênero “meio ambiente”, significando que todo bem

histórico, artístico, arqueológico, paisagístico e

relativo a nossa cultura, a nossa identidade, a nossa

turístico que, embora artificial, difere do ambiental

memória, entre outros, desde que considerados

(que também é cultural) pelo sentido de valor

como patrimônio (caso do patrimônio arqueológico),

especial. Tem-se, portanto, a garantia de que a

pertence ao rol dos bens ambientais e constitui, por

proteção do patrimônio cultural (art. 216) e do

isso, um bem difuso.

exercício dos direitos culturais (art. 207, 215) constituem direitos fundamentais conforme consta

Para Hugues de Varine-Bohan (apud PAULA, 1997),

no Título II da Constituição da República. Os artigos,

o Patrimônio Cultural deve ser estudado em três

nesta ordem, estabelecem que:

aspectos. Inicialmente, por meio dos elementos pertencentes à natureza (recursos naturais e meio

• Os bens de natureza material e imaterial cons-

ambiente). Em seguida, pelo conhecimento das

tituem patrimônio cultural brasileiro, tomados

técnicas, o saber fazer, que possibilita a sobrevivência

individualmente ou em conjunto, portadores de

humana em seu meio ambiente, considerando-se, até

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Entrada de uma das minas do complexo do Morro do Ogó

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mesmo, as crenças. Por último, pelo levantamento dos bens culturais, traduzidos como as coisas, artefatos resultantes do saber fazer.

Essa abordagem, na prática, é aplicada em casos escassos, sendo mais rara ainda nos casos em que o Patrimônio Cultural seja objeto de estudos de maneira ampla e abrangente, conforme preconiza a Constituição Federal de 1988, reiterada por vários outros instrumentos, entre os quais o

Decreto 9465/2001. Neste, fica estabelecido que se proceda a um zoneamento ecológico-econômico do território brasileiro, obedecendo a uma abordagem interdisciplinar que considere os valores históricos, culturais e biológicos do país. Os bens culturais são, portanto, representações da

• •

memória e o patrimônio arqueológico é uma das suas materializações que deve ser incorporado à memória local, estadual e nacional, como é o caso da Real Fábrica do Intendente Câmara, uma das pioneiras da fundição de ferro no Brasil. A proteção de bens de valor para a arqueologia constitui-se em uma obrigação moral de todo ser humano além de ser responsabilidade coletiva, traduzida pela adoção de uma legislação adequada que proíba a destruição, degradação ou alteração de qualquer monumento, sítio arqueológico ou seu entorno (MIRANDA, 2006). Tanto na cidade quanto no campo, os sítios arqueológicos encontram-se contemplados na Lei Federal 3.924/1961 para efeito de proteção. Já os parâmetros que definem um “bem arqueológico” constam do capítulo II do Decreto-Lei 25/1937, do art.2º da Lei Federal 3.924/1961 e das Portarias 7/1988 e 230/2002 do Instituto do Patrimônio

construídas com o objetivo de defesa ou ocupação; Vestígios de infraestrutura (vias, ruas, caminhos, calçadas, ruelas, praça, sistema de esgotamento de água e esgotos, galerias, poços, aquedutos, fundações remanescentes das mais diversas edificações, entre outras que fizeram parte do processo de ocupação iniciados nos núcleos urbanos em outros lugares); Lugares e locais onde possam ser identificados remanescentes de batalhas históricas e quaisquer outras dimensões que envolvam combates; Antigos cemitérios, quintais, jardins, pátios e heras; Estruturas remanescentes de antigas fazendas, senzalas e engenhos de cana e farinha; Estruturas remanescentes de processos industriais manufatureiros; Vestígios, estruturas e outros bens que possam contribuir na compreensão da memória nacional pós-contato (BASTOS; SOUZA; GALLO, 2005, p.31).

Vale dizer, entretanto, que o patrimônio Cultural Arqueológico pode ser um instrumento de desenvolvimento turístico somente após ter sido instrumento de Educação Patrimonial e de Inclusão Social. Não há como transformar verdadeiramente o Patrimônio Cultural Arqueológico em veículo de desenvolvimento turístico “sustentado” sem antes garantir a ele os atributos necessários da apropriação pública, uma vez que os bens arqueológicos, por definição, são bens de alcance social (BASTOS, 2005). Sendo assim, falar de Patrimônio Cultural Arqueológico como vetor de desenvolvimento turístico nos remete a questões ligadas, essencialmente, à publicização, socialização e inclusão destes bens na construção da cidadania.

Histórico e Artístico Nacional (IPHAN): Sítios arqueológicos históricos em áreas urbanas são espaços geográficos delimitados pela presença de vestígios materiais oriundos do processo de ocupação do território póscontato, tais como: • Todas as estruturas, ruínas e edificações

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Descrição do ambiente O complexo da antiga mineração da Real Fábrica de Morro do Pilar situa-se junto ao Centro Histórico de Morro do Pilar e no Morro do Ogó, conforme as figuras ao lado:

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Mapeamento das estruturas arqueológicas. Perímetro preliminarmente sugerido para a preservação

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A fábrica funcionou em regime de produção

foi mandar levantar três fornos baixos, pelo sistema

relativamente regular entre 1814 até o início da década

catalão, que deveriam funcionar ao mesmo tempo

de 1830, época em que encerrou suas atividades,

para auxiliar o forno alto de vazar ferro (APM, 1910).

devido a diversas dificuldades, especialmente quanto

No entanto, isso não resolveu o problema, fazendo

aos altos-fornos, cujas primeiras informações

com que os trabalhos dos fornos fossem paralisados

históricas datam do século XV. Ainda hoje essa

muitas vezes em duas ou três dias por semana.

técnica consiste no principal recurso para reduzir minérios de ferro (BAETA; PILÓ; NEVES, 2013). O pioneiro desse empreendimento foi o Intendente dos diamantes, Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt

O Barão Wilhelm Ludwig von Eschwege fez inúmeras críticas ao projeto, afirmando, em 1811, “[...] que nem em um ano e meio estaria a instalação em

Aguiar e Sá.

condições de funcionar [...].” (ESCHWEGE, 1944, p.

Ao avistar os depósitos de minérios de ferro no

percebe-se certo tom de rivalidade em seu discurso,

caminho que leva ao Tejuco, abraçou a ideia de

pois ele faz menção de passar à frente dos outros

344). Conquanto sejam válidas as críticas do barão,

[...] estabelecer um forno para o fabrico desse metal tão necessário aos trabalhos que ia superintender e cuja importação constituía a maior despesa com que tinha de arear [...] (APM, 1903, p.1022).

diretores e vangloria-se pela “[...] honra de ter sido o primeiro no Brasil a produzir ferro em escala industrial [...].” (idem, ibid). Portanto, é provável que, mesmo que predominantes, os problemas não fossem apenas técnicos, mas também, políticos.

Com os recursos garantidos e o local escolhido, Câmara

Era comum ser apresentado perante a Corte “[...]

ainda recebeu a doação do terreno e de sesmarias

como um visionário extravagante [...].” (APM, 1903,

do guarda-mor Sancho Bernardo de Herédia, um

p.1023; APM, 1910, p.76).

mineiro abastado do Pilar, para iniciar as operações. Assim, no dia 5 de abril de 1809, começaram as obras da fábrica de ferro no Morro do Pilar. A proposta de Câmara era “[...] a construcção de um só forno alto ou de vasar ferro pelo systema da Allemanha, que pudesse fundir de cada vez até trinta quintaes de mineral de ferro [...].” (APM, 1910, p.75). Esse “[...] empenho de assegurar à gente mineira ferro barato e abundante [...]” fez o Intendente construir o “[...]

Eschwege relata as dificuldades da Real Fábrica de Ferro em conseguir fundir o ferro devido ao seu isolamento e à falta de um fundidor. Percebido o problema, Câmara buscou o mestre alemão Schonewolf, colaborador de Eschwege, em Congonhas. Nilton Baeta relata a relutância de Eschwege em cedê-lo, sendo essa resistência “[...] vencida pelas ordens terminantes do Conde de

primeiro alto forno não só do Brasil como da América

Aguiar, que determinou sua transferência para o

do Sul [...]” (MENDONÇA, ALFAGALI, 2013 p.1-2).

Morro do Gaspar Soares.” (1973, p. 242).

O forno possuía 8,5 metros de altura e um metro de diâmetro na abertura superior, com capacidade de correr duas toneladas de minério por vez.

Vencidas as dificuldades, a fábrica conseguiu obter sua primeira barra de ferro, no dia 20 de dezembro de 1813, diante do governador de Minas Gerais. As

O pequeno povoado do Morro do Gaspar Soares,

experiências prosseguiam, e Schonewolf relata a

fundado, em 1701, pela Bandeira do Coronel Antônio

Eschwege a operação em que

Soares Ferreira, não dispunha de mão de obra qualificada para os serviços. A isso, acrescia-se o fato de que o local escolhido para a fábrica, embora próximo ao rio Picão, não facilitava o fornecimento de água para movimentar os malhos e os foles. A solução

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“[...] queimaram-se 60 carros de carvão, fabricando-se cerca de 300 arrobas de ferro, inclusive um revestimento para malho, duas bigornas, sendo uma pequena, para ferreiro, e uma peça para moinho. O resto consistiu de sobejos.” (ESCHWEGE, 1944, p.354).

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Ruína da estrutura da fábrica de fundição de ferro do Intendente Câmara

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Em 1815, o fundidor alemão observa que “[...]

Uma das possíveis causas da crise foi a saída de

com os dois pequenos fornos pode-se produzir,

D. João VI do Brasil, resultando em instabilidade

semanalmente, 50 a 60 arrobas de ferro e no máximo

econômica e política no país, mas o fim da extração

70, quando a água for bastante, como acontece agora,

exaustiva de diamantes teve sua participação nesse

com as chuvas [...].” (ESCHWEGE, 1944, p.354).

resultado.

Informa, ainda, Eschwege que a fábrica receberia mais trabalhadores e materiais: “Não se pensa mais em fundir no alto forno, antes da chegada do pessoal que o Sr. Câmara pediu ao Governo.

Os mestres Ustch não tinham experiência suficiente para gerir os trabalhos do forno alto e “[...] limitavamse a fabricar pequenas barras e peças nos fornos catalões, já modificados nos seus successivos reparos

Fato é que o relativo sucesso experimentado pela

[...].” (idem, ibid). A decadência da fábrica já havia

fábrica fez-se com esforços e sacrifícios imensos

se iniciado e era questão de tempo seu fechamento.

e as “[...] limitadas perspectivas de êxito do

Em 1830, quando expirou o prazo do contrato com os

empreendimento siderúrgico [...].”, possivelmente,

Ustch, “[...] a fabrica se achava em estado lamentável

provocaram “[...] o desinteresse das providências

e era uma fonte constante de despesas [...].” (APM,

[...].” (BAETA, 1973, p.246). Esta situação agravou-

1903, p 1024). Por isso, no dia 4 de dezembro de

se à proporção em que crescia o prestígio de Câmara

1831, o tesouro nacional fez um inventário dos bens

que acentuava a rivalidade com seus contemporâneos.

do empreendimento, pondo a execução da venda dos

No entanto, até 1821 “[...] apesar dos atropelos, a

objetos da referida fábrica.

fábrica se manteve em funcionamento numa fase perfeitamente delineada [...].” (BAETA, 1973, p.248). O êxito foi comemorado, especialmente, na ocasião em que as primeiras barras foram transportadas em

Na atualidade, as ruínas da fábrica simbolizam o período dos primórdios da produção industrial no Brasil. Sua proteção e preservação tornam-se

três carros de bois “[...] adornados de folhagens e de

imprescindíveis para que essa história seja percebida

figuras allegoricas no meio de festas e de acclamações

tanto na escrita quanto no olhar do observador e,

populares [...].” (APM, 1903, p.1024).

assim, contribuir para o desenvolvimento cultural, econômico e social do país e de Morro do Pilar.

Já no fim do governo de D. João VI, o Rei resolveu trazer ao Brasil mestres e técnicos metalúrgicos para

Contudo, a proteção desse patrimônio cultural

atuarem nos lugares onde havia fornos a fim de que

vai além da conservação de suas propriedades

auxiliassem na operação. Para a Real Fábrica de Ferro

físicas quando se compreendem os conceitos de

foram dois mestres prussianos: Hermano Ustch e

“patrimônio” e “cultura”. Segundo Clifford Geertz

seu filho João Henrique Ustch. Curiosamente, foi a

(2008), a cultura é uma rede de significados que o

partir deste momento que começou a decadência da

próprio homem criou e se prendeu para dar sentido

fábrica, “[...] precisamente quando tudo fazia crer

para suas experiências e para explicar o mundo.

que ela era a capacitava, com a presença desses dois

Uma vez que o ser humano parece ser o único animal

técnicos, para uma arrancada mais afirmativa [...].”

cujas informações genéticas intrínsecas não ditam

(BAETA, 1973, p.248).

os comportamentos, os homens criam, junto à

Pouco depois da chegada dos Ustch ao Pilar, Câmara exonerou-se do cargo de Intendente e demitiu-se

coletividade a que pertencem, um mecanismo de controle externo em forma de símbolos significantes.

da fábrica, indo ocupar outras posições a que fora

Portanto, o modo de vida dos seres humanos não é

chamado. Na verdade, antes mesmo de sua abdicação,

natural e o homem torna-se cada vez mais dependente

já havia instalado-se uma crise das finanças com o

de seus predecessores e de seu grupo social, ligando-

consequente atraso nos pagamentos dos salários.

se, cada vez mais, a esse emaranhado de significados

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Detalhe da estrutura geológica do interior de uma das minas

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partilhados. Pode-se dizer que o material não tem

histórica e em constante reformulação, e para

um fim em si mesmo, mas um significado, um

resguardar

sentido ou uma função atribuída pelo ser humano.

sociedade, é imperativo que se dê uma atenção

Nesse sentido, afirma Vítor Oliveira Jorge que

singular à Real Fábrica de Ferro de Morro do Pilar,

[...] toda a realidade material foi desde sempre manipulada por nós, em maior ou menor grau, quanto mais não fosse através de um esquema conceptual pelo qual ela ‘entrou’ no universo social e psicológico através das múltiplas representações colectivas e individuais (JORGE, 2003a, p.844).

O autor ainda completa que [...] mesmo a tecnologia não se deve ver como uma ‘variável independente’, mas como um conjunto de experiências encaminhadas por (envolvidas em) valores, objectivos, intenções

valores

partilhados

pela

mesma

de grande relevância para a história do Brasil.

Levantamento arqueológico Os bens culturais, materiais ou imateriais, vinculados à história da Real Fábrica, tiveram grande importância no contexto do desenvolvimento da cidade de Morro do Pilar, mas, sobretudo, têm papel relevante na história e na evolução da tecnologia industrial cujo começo foi desenhado no início do século XIX.

sociais — um acto técnico nunca é puramente

O intuito deste levantamento inicial é obter

técnico, é um facto social (idem, p.845).

um panorama de parte do acervo arruinado e remanescente da antiga Real Fábrica de Ferro de

Assim, o objetivo da conservação é menos os bens

Morro do Pilar. Esta etapa tem importância no

culturais em si mesmos do que os valores sociais

dimensionamento das futuras ações, sejam elas na

agregados e as funções sociais partilhadas pela sociedade no decorrer dos tempos. Por trás da Real Fábrica de Ferro há um conjunto de projetos, escolhas, engajamentos e enfrentamentos de um determinado contexto social com determinadas finalidades. Ainda hoje a edificação apresenta um sentido, ou seja, uma relação com a sociedade: é alvo de iniciativas, projetos, imaginário etc. O patrimônio é o conjunto de bens que o ser humano, de uma determinada cultura, produziu e que foi herdado para as gerações seguintes. Desta forma, patrimônio cultural passa a representar o que um conjunto social considera como cultura própria, [...] que sustenta sua identidade e o diferencia de outros grupos — não abarca apenas os monumentos históricos, o desenho urbanístico e outros bens físicos; a experiência vivida também se condensa em linguagens, conhecimentos, tradições imateriais, modos de usar os bens e os espaços físicos.” (CANCLINI, 1994, p. 99).

Portanto, para respeitar a formação da identidade local, construída no decorrer de uma trajetória 132

delimitação da ocorrência, sejam na escolha das medidas emergenciais, que poderão ser variadas, pois o complexo de ruínas não possui proteção efetiva frente ao crescimento da cidade de Morro do Pilar, estando em risco de desaparecimento. É apresentado a seguir a localização das galerias, de algumas das edificações pertencentes ao complexo, tais como os arrimos, as barragens e as vias de acesso. Embora ainda preliminar e carente de uma pesquisa aprofundada, este trabalho mostra, de imediato, o potencial da dimensão das ocorrências. A partir dele, já há ideias dos pontos que deverão ser contemplados prioritariamente para conter a ocupação desordenada, quiçá, indicando a necessidade de um instrumento provisório de planejamento até que uma pesquisa mais detalhada seja planejada (veja no esquema na página ao lado). Corroboramos entendimentos de Tânia Tomázia do Nascimento (2007) de que a natureza do conhecimento depende de uma constituição social e histórica, inserida em um tempo e espaço definido

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Mapeamento preliminar do complexo da Real Fábrica, Morro do Pilar, MG

e, logo, circunstancial na construção do saber científico. É de senso comum afirmar que [...] ‘os dados não falam por si’. Mas, se não falam por si, como fazê-los falar através do olhar do arqueólogo? Na interpretação dos contextos arqueológicos joga-se, explícita ou implicitamente, toda uma determinada maneira de fazer arqueologia segundo paradigmas interpretativos, que devem ser constantemente testados na sua operacionalidade (JORGE, 2003b, p.21).

práxis arqueológica, “[...] uma concepção dinâmica da realidade concebida a partir da compreensão da vida social dos grupos humanos que outrora habitaram [...].” (OOSTERBEEK; BASTOS, 2007, p.39). Além do conjunto do Morro do Ogó, a pesquisa pretende contemplar o local de instalação da fábrica onde se encontra preservada, em parte, uma parede de taipa. Um projeto de pesquisa arqueológica deverá ser elaborado e submetido ao IPHAN para aprovação. Vários projetos específicos, em diversas áreas do conhecimento, farão parte desta empreitada de resgate histórico, envolvendo pesquisadores,

Em uma obra historicamente modificada, os critérios de intervenção não são rígidos, parecendo até, algumas vezes, contraditórios. O que deve prevalecer na intervenção, em um monumento, é a busca de um resultado arquitetônico capaz de revelar os testemunhos históricos, valorizar os monumentos

administradores municipais, entidades de pesquisa,

arquitetônicos de maior expressão e garantir, por

Outra vertente, a geografia histórica, também, vai evocar a questão das periodizações, fundamentada na relação entre tempo e lugar. Sabe-se que a ocupação de um território é o resultado de estratégias variadas e bem sucedidas, uma vez que deixam vestígios

meio de uma correta adequação à nova destinação, a revitalização do uso. (LYRA, 1984). A linha estratégica deste texto analisa, por meio da

além de dados museológicos, entidades de proteção ao patrimônio histórico nos três níveis da federação e arquivos municipais, arquivos de universidades européias por onde atuou o Intendente Câmara.

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importantes, testemunhando um sistema estável e organizado (HIGGS, 1975; VITA-FINZI, 1978). Esta organização é o resultado de tentativas e do sucesso dos modelos testados e desenvolvidos nas sociedades que o envolvem, uma otimização ou integração com os códigos estabelecidos por essas sociedades (usos e costumes, conduta moral e manifestação religiosa) para a aplicação disciplinada de boas práticas (DJINDJIAN, 2010). Há, portanto, para cada sociedade investigada pelo arqueólogo, um sistema a explorar, juntamente com seus processos, e a informação geográfica da área não deve ocultar a face oculta do iceberg, ou seja, a aplicação de técnicas para identificar e caracterizar o processo de localização dos sítios, sua hierarquia administrativa, comercial ou logística, a organização da produção e do comércio e de sua governança (CHAPMAN, 2006).

O estudo desse fenômeno do ponto de vista arqueológico constitui de fato a Arqueologia da Paisagem e, subjacente a esta denominação, podemos entender um programa de investigação orientado ao estudo e à reconstrução de paisagens arqueológicas, ou melhor, o estudo com metodologia arqueológica dos processos e das formas de culturalização do espaço ao longo da história.

Caracterização das Minas do Ogó

De fato, [...] nossa necessidade histórica é a de encontrar um método que detecte e não que oculte as ligações, as articulações, as solidariedades, as implicações, as imbricações, as interde­ pen­ dências, as complexidades (MORIN, 1999, p.29).

Entretanto, a paisagem permite apenas supor um passado. Se quisermos interpretar cada etapa da evolução social, [...] cumpre-nos retomar a história que esses fragmentos de diferentes idades representam juntamente com a história tal como a sociedade a escreveu de momento em momento. Assim, reconstituímos a história pretérita da paisagem, mas a função da paisagem atual nos será dada por sua confrontação com a sociedade atual. (SANTOS, 2006, p.69)

Nesse sentido, conforme Carlos Augusto Monteiro (1991), a paisagem é história congelada, mas participa da história viva. São suas formas que realizam, no espaço, as funções sociais e, assim, pode-se falar de um funcionamento da paisagem. Esses entendimentos são especialmente úteis para fundamentar um estudo arqueológico da paisagem social, pois mesmo que a artificialização progressiva

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do meio tenha-se acelerado na história recente da Humanidade, o fenômeno não é exclusivo das sociedades industriais nem das organizações sociais complexas, como também da generalização do modo de vida agrícola. Esse fenômeno é, antes de mais nada, “[...] uma característica básica que define o que significa ‘Humanidade’ e a diferencia de outras formas de vida.” (CRIADO BOADO, 1999, p.6).

O conjunto de ruínas pode ser considerado cavidade ou mina por tratar-se de uma cavidade natural que foi escavada por escravos, provavelmente no século XIX, para obtenção de ferro. Localiza-se na Serra da Canga (bairro de Morro do Pilar), nas coordenadas UTM 669489/7873905, 794 m de altitude, com 117,2 m de desenvolvimento linear. O duto principal dessa cavidade tem orientação leste-oeste. A Mina do Ogó possui área de 258,4 m² e volume de 442 m³, em uma projeção horizontal de 110,1 metros com desnível de 1,6 metros (veja no esquema a seguir). As Minas do Ogó foram escavadas a partir de cavidades naturais em uma cobertura laterítica ferruginosa na região conhecida como Serra da Canga, dentro do território urbano do município de Morro do Pilar. Os numerosos fragmentos são de itabiritos e hematitas, em solo argilo-arenoso de cor marrom-avermelhado a ocre; às vezes, em solo arenoso cinzento, são encontrados fragmentos hematíticos. A cavidade apresenta sinais de degradação de origem antrópica e possui uma quantidade expressiva de lixo em seu interior, mas não apresenta acúmulo de água em seus dutos. Na parte externa, a vegetação é de campo sobre canga, apresentando arbustos típicos do cerrado.

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• Mina 3 – Coordenadas UTM: 669277 / 7873841 – Cavidade escavada de grande porte, a Mina 3 é a maior de todas as cavidades. Sua extensão mostra ter sido escavada com desenvolvimento linear de aproximadamente 120 metros. A porta de entrada possui uma altura de 2,0 metros e o desenvolvimento da mina segue a direção de norte para sul. O acesso dessa mina é bem visível, próximo à estrada que leva à Mina do Ogó e à Mina 2. Possui algumas bifurcações no seu interior e a grande variedade de cores nas paredes internas das cavernas mostra a significativa presença de óxidos de ferro. Diferentemente das outras, esta cavidade possui água em seu interior, formando uma lamina de água de aproximadamente 10 metros. Não foi encontrado artefato algum e/ ou estrutura dentro da mina.

Mapa esquemático das minas e cavidades

O conjunto das Minas de Ogó é formado por 4 minas descritas no mapa a seguir: • Mina 1 – Coordenadas UTM: 669408 / 7873833 – Essa cavidade, originalmente natural, foi escavada pelos escravos em uma litologia de cobertura laterítica ferruginosa onde se mesclam rochas de itabirito e quartzito. Possui 24,25 metros de desenvolvimento linear em direção leste-oeste. Ao fundo, apresenta um muro de arrimo que impede a passagem para outro duto. O acesso dessa cavidade dá-se a 100 metros à esquerda da Mina do Ogó e possuí 1,50 metros de altura. Também, não possui água em seu interior. • Mina 2 – Coordenadas UTM: 669280 / 7873828 – Essa cavidade foi escavada e localiza-se próxima à estrada. Semelhante às outras cavidades do conjunto, essa mina é do século XIX. Localizase entre a Mina do Ogó e a Galeria/Mina maior. Possui uma profundidade de 20,70 metros, tendo sido escavada em rochas de itabirito e quartzito. Seu desenvolvimento é linear e dá-se no sentido de norte para sul. A entrada dessa cavidade possui 1,30 metros de altura e, igualmente, não possui água no seu interior.

• Mina 4 – Coordenadas UTM: 669226 / 7873813 – Localiza-se a, aproximadamente, uns 500 metros abaixo da estrada que leva à Mina Ogó. Essa cavidade possui grande beleza na composição com a paisagem por apresentar uma entrada com 2,90 metros de altura, formando portais esculpidos nas rochas de quartzito e itabirito. A galeria possui um desenvolvimento linear de 22 metros na direção leste-oeste. Também, possui água no seu interior. Finalizando este texto, pode-se dizer que — quando refletimos sobre o desenvolvimento da Arqueologia como ciência, da mesma forma quando se pensa a paisagem como um problema de estudo e trabalho — torna-se necessário pensar, dentro do discurso científico, o homem em termos metafísicos, idealistas e subjetivistas. Isto significa que, ao invés de falar sobre o homem, devemos olhar para a sociedade e, em vez de apelar para a história, urge reconstruir as forças e os conflitos do processo histórico. Se invocarmos o efeito humano, isso deve ser feito de forma radical, sem retornar ao imaculado humanismo autoexplicativo. Na realidade, [...] o homem não é mais do que qualquer coisa, é um ponto no espaço, um espaço atravessado por relações de poder, e a maneira de tratar a dimensão social é descobrir formas e determinações dessas relações. (CRIADO BOADO, 1999, p.4).

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capítulo 5

O povo morrense nos cenários da cidade em diversas temporalidades ♦ Vanda Praxedes 1 ♦

A história é um objeto em construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras. (Walter Benjamin)

M

orro do Pilar é o palco e território no qual se desenrolaram diversos enredos desde sua origem. Uma das cidades remanescentes do ciclo do ouro, outrora pertencente à antiga comarca do Serro Frio, conseguiu manter, ao longo do tempo, determinadas características que marcam as cidades de pequeno porte do interior de Minas Gerais. Tendo como mola propulsora a economia de mineração, o primeiro traçado urbano nas Minas do ouro entranha-se ao longo dos Setecentos e Oitocentos em um dinâmico e complexo processo de formação social e espacial. Quase toda a malha urbana de Minas Gerais formou-se nos lugares onde o ouro e o diamante certamente podiam ser encontrados e, por isso, povoamentos foram surgindo ao longo dos caminhos, das estradas e das encruzilhadas, bem como nas encostas dos morros ou nas travessas dos cursos d’água, riachos e rios (TELLES apud Mello, 1985). Os rios e a proximidade dos caminhos foram elementos centrais nas fixações de vários povoados, tendo influenciado a própria arquitetura que refletiu as condições geográficas, econômicas e sociais da época.

Desse modo, a descoberta do ouro e diamantes em Minas Gerais definiu em boa medida os contornos geográficos, influenciou a forma de ocupação da região e a distribuição da população em torno do território. O ouro e os diamantes conformaram o território urbano e promoveram o adensamento populacional. Aliada às migrações internas das populações locais e regionais, houve ainda uma grande migração transatlântica de várias procedências.

1 Doutora em História Social da Cultura pela UFMG, Pós Doutoranda em Educação-PNPD/CAPES/FAE/UEMG; Professora da Universidade do Estado de Minas Gerais, membro dos núcleos de pesquisa e linguagem – NEPEl e do Núcleo de Pesquisa em Relações Étnico-Raciais – NEPER/UEMG; Pesquisadora e Colaboradora do Núcleo de Estudos e Relações Étnico Raciais e Ações Afirmativas – NERA/UFMG e do Programa de Ações Afirmativas na UFMG.

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A simplicidade e força do povo morrense são marcas na sua história

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A adaptação ao novo ambiente incluía, em um primeiro momento, o aprendizado da língua portuguesa de maneira a ter condições de entender as ordens e bem executar as tarefas a que estava destinado para o aprendizado da doutrina católica e de valores e traços da sociedade portuguesa.

Para cá, acorreram homens da administração colonial metropolitana que muito frequentemente deixavam para trás as famílias. Vieram magistrados, militares e clérigos além de centenas de homens comuns — que, certamente, vislumbravam não só a possibilidade de trabalho e de enriquecimento —, algumas mulheres, além de uma leva significativa de cativos, composta de homens em sua maioria, mulheres e crianças. Este contingente só tendeu a crescer ao longo do século XVIII, fazendo com que a capitania abrigasse a maior parcela populacional de todas as suas unidades administrativas. No entanto, reconhecer a centralidade da mineração não significa desconhecer a existência de outra frente de ocupação do território mineiro: a pecuária. A rapidez desse crescimento demográfico acontecido nas Minas de ouro produziu um significativo despovoamento de outros núcleos coloniais mais antigos. Alguns deles sofreram certa desarticulação produtiva devido ao êxodo migratório na virada do século XVII para o XVIII (STROFORINI, 2006). O redesenho da estrutura demográfica provocou substanciais transformações na formação social e espacial assim como na paisagem humana do território mineiro ao longo do tempo. O processo de urbanização ocorreu, programou-se e se efetivou não só por meio da intervenção do aparelho estatal, mas também, devido à diversificação das atividades produtivas, quer seja nas áreas urbanas então existentes, quer seja nos inúmeros espaços que foram criados, alterando sensivelmente a paisagem política, econômica, social e espacial. Acompanhada da agricultura e do comércio, a mineração motivou o crescimento de diversos arraiais e vilas que, posteriormente, se transformaram em cidades.

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A cidade como um território de possibilidades e construções históricas

Apesar de uma herança colonial comum, cujo nascedouro é a atividade mineratória, as cidades mineiras guardam diferenças regionais tanto no que se refere à dinâmica econômica, aos seus processos de constituição, quanto na composição da população. Essa diferenciação pode ser creditada à conjunção de uma série de fatores: de um lado, a forma como se organizou e se desenvolveu a exploração aurífera, reconhecidamente uma herança do século XVIII, e, de outro lado, os múltiplos aspectos de ordem geográfica que influíram nas especificidades e dinâmicas econômicas regionais. Apresentam, ainda hoje, desenvolvimento regional desigual, características, vocação e organização econômica heterogênea, estruturas sociais e demográficas espacialmente diferenciadas. Também, a paisagem humana, assim como a econômica, não foi e não é homogênea. Está em constante transformação em virtude de injunções de diversa natureza (PAIVA; GODOY, 2002; MONTE-MOR, 2001; CUNHA; GODOY, 2003). Morro do Pilar situa-se em uma área montanhosa que é cercada de cachoeiras, rios e corredeiras. Assim figurada, o município ganha importância não só por ser o espaço com diversidade social e ambiental, étnica e cultural, demográfica e de desenvolvimento por onde circulam homens e mulheres, mas também, por suas possibilidades de projeção no cenário econômico regional e nacional na atualidade. É nesta diferenciação dos espaços socioeconômicos e da paisagem humana que reside a chave para a compreensão de uma sociedade em

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Os tambores seculares que entoavam os cânticos e danças dos escravos

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permanente construção. Aí, talvez, esteja de fato, sua peculiaridade.

que vão mudando de sentido ao longo da vida e de um contexto para o outro.

As cidades, especialmente as originárias das áreas mineradoras, de modo geral, apresentam traçados muito semelhantes como: ruas, becos, morros e travessos. Seus arruamentos formam o cenário composto por casas de residência — seja para moradia permanente, seja para o descanso de finais de semana, para o período de férias, para os dias santos e festejos suntuosos ou não —, pela praça ou largo da Matriz, igrejas, capelas, fontes, casas comerciais, lojinhas e cômodos de comércio, cadeia, casa sede da câmara, da Prefeitura. Em seu entorno, nos arredores próximos ou léguas de distância, estão as casas de vivenda, rocinhas e fazendas, algumas delas atravessadas por rios, córregos, fontes, poços d’água, às vezes, terras com plantações conjugadas, algumas áreas de currais, moinhos, pastos e plantações de frutas.

A noção de território a que me refiro não diz respeito apenas a um espaço geográfico. Um dos territórios que se deve prestar a atenção é, também, o território relacional. Neste território, o que está em questão não é apenas o território como “[...] conjunto físico de paisagens materiais, mas o território enquanto expressão e produto das interações que os atores protagonizam. O território nestas circunstancias é proximidades, atores e interações.” (REIS, 2005, p. 7). Pode ser compreendido, ainda, como resultado de apropriações e domínio de um dado espaço, localizando-se em um campo de correlações de forças, disputas, relações de poder econômico e político. De modo que em tal ordem os processos sociais não apenas produzem e dão significado, mas também, modificam e sustentam, reforçam e conservam determinado espaço territorial (REIS, 2005; EPINDOLA, 2006).

As cidades são espaços onde gravitam pessoas de diversas procedências; são locais de moradia, de lazer e trabalho; são espaços para a realização e fechamento de negócios, troca de informações, espaços de chegada e de saída, de circulação e integração de várias gentes, moradores ou não, espaços de sociabilidade e ponto de encontro das pessoas e dos burburinhos das conversas. Portanto, o viver na cidade (e a própria cidade) propicia aos sujeitos experiências sociais, existenciais e de pertença diferenciadas. Em virtude disso, o espaço urbano, o território e o tempo de transformações da cidade estão entrelaçados na experiência, no viver e na biografia do seu povo e muito bem demarcado na lembrança dos mais velhos, dos moradores mais antigos. A cidade é um espaço onde seus habitantes circulam tanto física quanto simbolicamente. Essas pessoas movimentam-se, quase que diariamente, por áreas urbanas e rurais, transitam em uma realidade social heterogênea e desigual, caracterizada por rápidas e lentas mudanças. Guia-se por uma espécie de “mapas simbólicos” com qual podem localizar-se. Mapas que funcionam como territórios, cartografias

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De um lado, deve-se reconhecer a “natureza matricial” do território e sua relevância como “ordem material e socioeconômica”, pois as cidades além de serem construtos conceituais, são, antes, realidades materiais bastante complexas. De outro, a compreensão do território implica conhecimento de suas territorialidades que “estão imbricadas na subjetividade dos sujeitos”. Nesta perspectiva, o território das Minas e de Morro do Pilar é composto por “múltiplas territorialidades”. O conceito de território ganha expressão e significado a partir das condições históricas em que foram forjadas as diretrizes políticas portuguesas de dominação sobre os extensos domínios ultramarinos. Diretrizes que tiveram continuidade, no Brasil, após a Independência. O território não é algo dado nem estático e homogêneo, posto que é lugar construído historicamente, conforme Carlos Brandão, no artigo “Territórios com Classes Sociais, Conflitos, Decisão e Poder”: “[...] um lugar em que se inscrevem relações de poder. Mas, antes de tudo, um lugar em que se define a morfologia das relações de poder.” (ORTEGA, 2007).

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A música , presente na alma dos morrenses, ecoa por suas ruas e ladeiras

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A metodologia Optamos por reconstruir uma dimensão da história de Morro do Pilar adotando a metodologia da história oral por ser uma das vertentes dos chamados Estudos Qualitativos, ancorados por determinados pressupostos teórico-epistemológicos que permitem a compreensão e importância dos sujeitos sociais

Levamos em consideração as memórias socialmente construídas. Memórias que falam sobre as condições de vida, estratégias de sobrevivência, de sonhos, de esperanças, de realizações, de valores, de crenças e de expectativas. Memórias que narram histórias de superação, vivências de preconceitos, de segregações, de perdas, de travessias, de encontros, desencontros, de partidas e de retornos.

na construção histórica. Entre os pressupostos, destacamos, consoante ponderações de Inês A. de Castro Teixeira, em artigo intitulado “História Oral e Educação: tecendo vínculos e possibilidades pedagógicas”, a noção de que os “[...] sujeitos ou atores sociais são seres de memória, de cultura e de história. São sujeitos de ação, de intencionalidade, de paixões, de sentimentos, de reflexividade, que são capazes de interpretar, de produzir significados e dar sentido ao mundo, às suas ações, às suas vidas e a suas experiências.” (VISCARDI; DELGADO, 2006, p. 155-168).

Ao fazermos essa opção metodológica aliada à análise histórica, queremos tentar estabelecer um diálogo que conecte a longa duração (condições materiais, históricas, sociais mentalidades, tradições culturais e identidades) com o tempo presente (construção atualizada de narrativas da memória). Essa perspectiva permite a construção de outro olhar para a história da cidade de Morro do Pilar. Uma história no qual o povo morrense possa tomá-la como referência e que nela possam ver-se incluídos como sujeitos sociais, construtores e participantes dessa história do tempo presente e como agentes de mudanças históricas tal como foram seus antepassados (ALMEIDA; RIBEIRO, 2011). Uma história que deve e pode conter o “poder de perenidade” da memória de um povo e que possa ser a “memória afetiva” em um processo “revivescente” segundo Marcio Almeida (2013). Trazer à tona a história — os registros da memória de um povo, do seu modo de pensar, sentir, agir, em contar e identificar elementos que caracterizam sua pertença, sua identidade, o reconhecimento de seus territórios simbólicos — significa entender a formação e constituição civilizatória dos habitantes da cidade. 144

Na impossibilidade de trazer à tona as vozes de todos os habitantes de Morro do Pilar, trouxemos as narrativas de determinados sujeitos sociais que representam em boa medida o povo morrense. Como sujeitos de história expressam-se por diversas linguagens. São sujeitos falantes embora, durante muito tempo, tenham sido silenciados, excluídos da história. Estiveram ausentes de uma história que apresentava apenas uma versão dos fatos e eventos, uma escrita da história a partir da elite, dos vencedores, como se a história fosse composta apenas de grandes feitos, atos heroicos e grandes e ilustres personagens. Estes são princípios teóricoepistemológicos que justificam a nossa opção pela centralidade da narrativa dos sujeitos, dos habitantes de Morro do Pilar, aqui representados por um grupo de pessoas entrevistadas. Em suas narrativas, os sujeitos não apenas trouxeram à tona suas lembranças, reminiscências e suas interpretações, mas também, as revivificaram e reinterpretaram. Ao narrarem suas vidas, os sujeitos revigoraram, significaram e ressignificaram o que viveram, o que viram, o que ouviram contar, o que testemunharam, o que protagonizaram, em uma dinâmica em que vão (re)conhecendo-se e se vendo como sujeitos históricos e sujeitos de suas histórias, seus artífices. Em relação às narrativas orais, Yara Khoury afirma que [...] cada pessoa, valendo-se dos elementos de sua cultura, socialmente criados e compartilhados, conta não apenas o que fez, mas o que queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que agora pensa o que faz. As fontes orais são únicas e significativas por causa de seu enredo, ou seja, do caminho no qual os materiais da história são organizados pelos narradores para contá-la. Por meio dessa organização, cada narrador dá uma

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Os idosos são a memória viva de Morro do Pilar

interpretação da realidade e situa nela a si mesmo e aos outros e é nesse sentido que as fontes orais se tornam significativas. (2001, p. 84)

Portanto, tendo como pressuposto a capacidade humana de narrar, de reconstituir, de significar, interpretar e reinterpretar o vivido e as experiências, de atribuir sentido ao mundo e a vida, de produzir saberes, convidamos os sujeitos a falar. Chamamos à palavra homens e mulheres de diversos segmentos sociais, faixas etárias e profissões, rompendo os silêncios impostos aos sujeitos da história, especialmente, as mulheres e a população negra que, historicamente, foram alijadas da construção histórica das cidades. Homens e mulheres, construtores e partícipes da história de Morro do Pilar que se movimentam e transitam por áreas urbanas e rurais, que circulam pelos espaços da

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cidade, movendo-se em uma realidade social heterogênea e em constante construção. Os entrevistados, em suas falas, circularam por territórios simbólicos nos quais puderam localizarse e transitar de um contexto ao outro, da família para o trabalho, da infância para juventude, da maturidade para a velhice, tendo como pano de fundo a cidade e seus espaços de sociabilidade. Diversos homens e mulheres emprestaram suas vozes, suas memórias, suas lembranças, retomando e interpretando os fazeres e aconteceres de suas vidas presentes e pretéritas e, também, a de seus precursores e contemporâneos. Ao lado das transformações recentes, sensíveis a todos, evidenciaram a permanência de valores e práticas sociais.

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Mulheres de Morro do Pilar: trançando a vida, traçando rumos e construindo histórias — ontem e hoje Pois não somos tocados por um sopro do ar que não foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, eco de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. (Walter Benjamin)

Segundo Michele Perrot “[...] no teatro da memória as mulheres são sombras tênues [...].” (1989, p. 9). Na nossa historiografia tradicional, a pouca ou a falta de informações concretas sobre as mulheres contrasta com a abundância de discursos e imagens construídas sobre elas ao longo do tempo. Na realidade, as mulheres são mais imaginadas do que descritas e contar suas histórias é romper com representações cristalizadas e imagens desfocadas da realidade. Na história das cidades, até então, a presença das mulheres oscila entre silêncios profundos ou ruídos frenéticos. Aparentemente, nossa história foi construída com a presença de raras mulheres, cujas imagens são mitificadas ao longo do tempo, sendo lembradas ora como submissas, humildes, recolhidas ao recesso do lar, ora como bondosas e mãe de todos, ora como mandonas e maldosas e cujo poder é acentuado pelo poder de mando local. Ao ouvir as vozes das mulheres de Morro do Pilar, no tempo presente, rompe-se o silêncio que fora imposto à maioria de suas ancestrais no passado pela historiografia tradicional. Somente nas últimas décadas do século XX essas vozes passam a ser ouvidas. A atuação e a história das mulheres, enfim, passam a fazer parte da cena histórica. Os estudos e pesquisas nas Ciências Sociais foram responsáveis por essa emergência e ampliação dos estudos sobre a mulher, sua participação na sociedade, na organização familiar e no trabalho 146

e mais recentemente na reescrita da história das cidades, entre outros aspectos. A atuação do movimento feminista e as transformações pelas quais passou a historiografia da década de 1960, aliadas às contribuições da História Social e Cultural e da Antropologia, foram responsáveis pela eclosão da História das Mulheres. No entanto, a emergência da História das Mulheres como um campo de estudos foi acompanhada pelas lutas e campanhas pela melhoria das condições de trabalho, promovendo vigorosa expansão dos domínios e campos da História. Os avanços na produção historiográfica sobre mulheres no Brasil, nas últimas décadas, deveramse, ainda, ao aprofundamento da pesquisa empírica e à ampliação das fontes. Esses elementos tornaramse indispensáveis para que os poderes e lutas femininas fossem recuperados, mitos reexaminados e estereótipos revistos e outras histórias foram e são possíveis de serem contadas. Diversos estudos demonstram, cada vez mais, a crescente participação feminina, ao longo da história, em diversas atividades produtivas para prover sua subsistência e a dos familiares sob sua responsabilidade devida, até mesmo, ao aumento de lares chefiados por mulheres. Muitas vezes, enfrentando condições adversas, aliadas à necessidade de sobrevivência e manutenção da família e dos negócios familiares, muitas mulheres assumiram papéis e atividades antes consideradas prerrogativas “masculinas”, jogando por terra a ideia de permanência de uma sociedade com características patriarcais, especialmente, em cidades de pequeno porte, no interior de Minas Gerais. No meio urbano, o exercício de papéis informais, improvisados, servem, cada vez mais, para desmistificar a rígida divisão de tarefas e incumbências concebidas como femininas ou masculinas. Em Minas Gerais, desde o século XVIII, no que se

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As mulheres representam um pilar na sociedade morrense

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Mulheres, cujas ancestrais tiveram suas vozes silenciadas durante longo tempo na historiografia, vão trançando fios, tramas e palhas, traçando novos ordenamentos sociais e construindo suas histórias individuais e coletivas.

refere às ocupações femininas, constata-se, de um lado, a presença majoritária de mulheres exercendo os ofícios de fiadeiras, rendeiras, tecedeiras, costureiras, trançadeiras e muitas outras atividades manuais e mecânicas, e, de outro, um grupo de mulheres proprietárias ou trabalhadoras em fazendas, roças, comércio. São mulheres comuns, brancas, negras, pardas, casadas, solteiras e viúvas, ricas, medianas e pobres. Mulheres construindo histórias individuais e coletivas e, ainda assim, que permaneciam à margem da história contada, escrita, mas sempre presentes na história vivida e na dinâmica de cada cidade (SAMARA, 1993). São mulheres reais ocupando a cena histórica em um universo sociocultural complexo, vivo e dinâmico que não se restringia e nem se restringe a modelos específicos, mas, antes, é resultado da mistura, de entrelaçamento de várias culturas, raças, valores, costumes, crenças, tudo caracterizado por mediações, permeabilidades, rupturas e permanências históricas (PAIVA, 2001).2 São mulheres guerreiras que, no cotidiano e rotina dos dias, algumas vivendo sob muitas vezes em condições adversas e mesmo sob determinadas contingências, subverteram e ainda subvertem um ordenamento social muito centrado no masculino para darem conta de suas vidas, da família e, às vezes, das demandas da comunidade. Ao se referir sobre as mulheres de Morro do Pilar, Maria Alice Chaves Martins — 64 anos, nascida e residente em Morro do Pilar, casada, três filhos, pedagoga, professora aposentada, tendo sido diretora da Escola Cardeal Mota e Secretária de Saúde do Município — foi uma de nossas entrevistadas que nos 2

afirmou, em entrevista concedida em 21/01/2014, na sua residência em Morro do Pilar, que [...] elas [as mulheres] aqui trabalham muito, aqui é um lugar de mulheres trabalhadoras, trabalham com muito compromisso e em todas as áreas, procurando crescer [...], por exemplo, na Educação: diretoras de escolas aqui sempre foram mulheres, agora é que estão aparecendo homens... Tinha D. Conceição Aguiar que era líder paroquial que arrumava o altar e bordava maravilhosamente; tinha D. Zina do Chico que cuidava dos quintais da paróquia plantando e organizando a horta comunitária; tinha as obstetras, nossas parteiras que ninguém esquece [...]; muitas mulheres chefes de domicílios; mulheres que ficam viúvas novas; mulheres que são responsáveis pela educação dos filhos e pela manutenção da casa, responsáveis pelos estudos dos filhos. É essa maioria que esforça e que tem iniciativa. Então as mulheres exercem um papel fundamental para animar a família [...] é o que eu falo aqui todo dia ‘gente uma comunidade sem história é uma comunidade sem memória. Então a gente tem de saber sobre as pessoas que ajudaram e ajudam a construir a nossa história, nossa vida aqui’[...].

Mulheres, cujas ancestrais tiveram suas vozes silenciadas durante longo tempo na historiografia, vão trançando fios, tramas e palhas, traçando novos ordenamentos sociais e construindo suas histórias individuais e coletivas. Portanto, não seria diferente na construção e cena histórica de Morro do Pilar a presença dessas mulheres. Embora sem visibilidade historicamente, são, também, protagonistas da história que está sendo construída. Mulheres, cujos rastros e sombras estão aqui desde antes do ciclo do ouro, estão escrevendo quase que anonimato as páginas da rica história da cidade.

Eduardo França Paiva tem trabalhado com o conceito de hibridismos, impermeabilidades, para compreender a sociedade mineira colonial.

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Em Morro do Pilar, a arte de trançar chapéus confunde-se com a arte de tecer almas

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As trançadeiras de Morro do Pilar Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como relampeja no momento de um perigo... (Walter Benjamin)

A arte do trançado com fibras vegetais é considerada uma das mais antigas no mundo. O trabalho com fibras vegetais, historicamente, teve grande impor­ tância para as culturas tradicionais como modo de adaptação à natureza, como forma de subsistência ou mesmo para atender à necessidade de utensílios para o uso das famílias e da comunidade. É sabido que, desde a antiguidade, diversos povos utilizavam fibras nativas de suas regiões para que pudessem tecer cestas, balaios, esteiras e uma série de outros produtos de utilidade doméstica. Em muitos casos, passaram a ser vistos como afirmação da identidade cultural e étnica de um determinado povo ou grupo. De uma atividade voltada para atender somente às necessidades básicas, passou a ser uma fonte de geração de renda para as famílias. E, embora seja um importante instrumento de geração de trabalho e renda para um grande contingente da população brasileira, os trabalhos e o artesanato de fibras vegetais têm sido pouco abordados nos estudos e pesquisas acadêmicas até os dias de hoje, sobretudo, no campo do design. No Brasil, tradicionalmente, diversas fibras vege­ tais são utilizadas para o trançado e feitura de artesanatos: folhas de coqueiro indaiá, taquaraçu, fibra de bananeira, piaçava, sisal, vime e entre outros. Dependendo da espécie utilizada, os processos de preparação, beneficiamento e transformação são variados. Algumas recebem tratamento específico, são cozidas e colocadas para secar e, logo após a secagem, são trançadas, enquanto que outras são trançadas ainda úmidas. Existem, ainda hoje, diversos tipos de técnicas de trançado, nos tingimentos podem ser usados corantes naturais

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extraídos de folhas, sementes ou casca de árvores (como o urucum e açafrão, entre outros) e, também, são muito utilizados vernizes e pigmentos artificiais (como a anilina). A técnica e escolhas dos produtos utilizados nos tingimentos dependem da tradição e da comunidade que trabalha com as fibras. No caso da palha do indaiá, comumente utiliza-se o enxofre no processo de clareamento das fibras. A arte e a tradição de trançar a palha e fazer chapéus fazem parte da história e cultura da cidade do Morro do Pilar. A arte de confeccionar chapéu de palha tem resistido ao tempo e ultrapassado gerações. A matéria-prima (o coqueiro d’indaiá e o taquaraçu) é abundante na região. Boa parte dos chapéus usados nas festas juninas no sudeste é produzida, em sua maioria, com a fibra do coqueiro d’indaiá. Os chapéus são, habilmente, trançados e costurados por um grupo cada vez menor de mulheres e alguns raros homens. De acordo com a fala das mulheres entrevistadas, o ofício foi aprendido com a mãe que aprendeu com a avó. Há um saber acumulado que tem sido e é transmitido de geração em geração. D. Fabíola Maia de Oliveira, mais conhecida como D. Loca, de 85 anos, nascida e residente em Morro do Pilar, viúva, hoje aposentada, exerceu, durante longa data, a profissão de padeira, o que era incomum para as mulheres na época. Exerceu, também, a profissão de quitandeira. Além dessas profissões, tornouse chapeleira. Como muitas mulheres da região, conseguia tempo para confeccionar chapéus como forma de complementação da renda familiar. Conta que começou a trabalhar por necessidade. Devido ao casamento, teve de trabalhar para ajudar no orçamento familiar, pois os filhos, em um total de 14, foram nascendo. “Então, aprendi a fazer o pão, quitanda e, ainda, fazia chapéu”. Em entrevista concedida em 20/01/2014, em sua residência em Morro do Pilar, narra seu aprendizado sobre o ofício de chapeleira: Aprendi a fazer chapéu de palha, da palha do Taquaraçu e fazia muito para vender e em grande quantidade. Eu posso contar assim: eu aprendi com minha avó! Ela aprendeu com a avó dela a fazer chapéu. De primeiro não tinha nada, nada! O correio vinha a cavalo. Vinha assim uma vez por mês, trazendo as notícias, correspondências

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A arte de confeccionar chapéu de palha tem resistido ao tempo e ultrapassado gerações em Morro do Pilar

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e aquelas malas... E um viajante ensinou a minha vó. Minha vó aprendeu e como aqui tinha muito daquele taquaraçu, que é um bambu grosso. Corta as folhas dele e fazia as palhas.[...] Ela ensinou as mulheres onde tinha o taquaraçu nas roça [...] Eu comecei a fazer chapéu também. Fazia chapéu e fazia o pão, porque o pão tinha que sair cedo. Então eu fazia pão de madrugada e o resto do dia costurava o chapéu. Quando eu comecei a fazer chapéu tinha também muita gente para vender. Fui uma costureira que costurava o chapéu mais bem feito. Isso eu tenho orgulho de falar [...].

D. Maria de Lourdes de Almeida, de 65 anos, nascida na Lapinha, área rural de Morro do Pilar, mora no Bairro Paredão, casada, mãe de 6 filhos, trançadeira, é mais comumente conhecida como D. Mariinha do Vicentinho. Ela começou a trabalhar desde a mais tenra idade na zona rural. Muitas outras mulheres da região aprenderam o ofício com sua avó. Segundo sua narrativa, em entrevista concedida em 21/01/2014, em sua residência em Morro do Pilar: [...] minha vó me ensinou a trançar e minha mãe me ensinou a costurar e eu ensinei para as minhas seis filhas. A minha mãe aprendeu com a mãe dela, minha avó. Na minha casa eram onze ao todo, sendo sete mulheres. As mulheres faziam tudo! De dia a gente capinava, a gente plantava o milho, a mandioca, a cana e depois quando a gente chegava do serviço da roça pegava na trança. Trabalhava de noite, não tinha lamparina, aí era iluminado com a candeia. Aquelas candeias cheirosas sabe! Enfiava aquelas lasquinhas de candeia nos buracos das paredes. Na casa da minha vó era assim! Então era assim, o oficio passava de mãe para filha, de filha para neta e assim vai passando, mas hoje os jovens não querem mais saber [...]. Aqui em casa não! Eu tenho as netas e elas não se interessam pela palha [...]. Filhos eu tive oito, mas morreram dois e eu fiquei com as seis meninas. Todas elas sabem mexer com isso, mas só tem duas que mexem, porque as outras foram embora para Belo Horizonte.

Em tom de pesar e lamento, D. Mariinha afirma que as moças mais jovens não querem e não manifestam interesse em aprender a fazer chapéus da forma artesanal e fala, também, das netas e do modo como as profissões mais tradicionais vão acabando, porque não vai tendo continuidade entre as novas gerações.

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Essas profissões antigas lá vai acabando. O povo fazia as coisas por precisão. Não tinha esse negócio de ter história [...]. Não acha mais quem faz certas coisas aqui no Morro. Aqui antigamente tinha fábrica de sapato, de faca, foice. Hoje você não acha mais nada né, ninguém aprendeu. Tinha o seleiro que era o João, morreu e não passou a profissão dele para ninguém. Mas ninguém quer também!

A preocupação com a extinção dos ofícios em Morro do Pilar aparece, também, na fala de outras entrevistadas, especialmente, no que se refere à arte de trançar a palha e fazer chapéus. Uma preocupação que vem sendo revelada já faz algum tempo. E uma publicação em Diálogo, destinada às comunidades de relacionamento Anglo Ferrous Brasil (2009, p. 7), D. Maria Vicente da Silva, mais conhecida como D. Maria do Lilico, viúva, até essa data, exercendo o ofício de chapeleira há mais de 35 anos, já acenava com a possibilidade de extinção do ofício. Na reportagem, segundo ela, as moças jovens da cidade não aparentam ter interesse em manter a tradição: “Ninguém está querendo aprender. [...] fiz muitos chapéus. Mas não tenho o mesmo pique que há anos atrás, quando chegava do trabalho e ficava na máquina de costura até meia noite.” A preocupação com a extinção do ofício pode ser comprovada, empiricamente, se levarmos em conta a faixa etária daqueles que se dedicam a essa atividade. Salvo raríssimas exceções, a produção está concentrada nas mãos de pessoas na faixa etária situada entre 50 e 72 anos, o que significa que não tem tido uma renovação dos profissionais que se dedicam à produção artesanal dos chapéus. Para as mulheres da região, trançar a palha do coqueiro, costurar e confeccionar os chapéus tornou-se uma fonte de geração de renda ou sua complementação. Grande parte dessas mulheres exerce a função de chefes de domicílio não só no que se refere à autoridade moral e simbólica da família, mas também, à responsabilidade pela manutenção do núcleo familiar. De certo, essa condição, provavelmente, influencia na preocupação com a preservação do meio ambiente. Estão conscientes de que a preservação da matéria-prima é primordial

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As artesãs em Morro do Pilar perpetuam antigas tradições e saberes

para manutenção dessa fonte de renda familiar. É o que diz D. Maria de Lourdes de Almeida em uma entrevista, datada de 21/01/2014, também, em sua residência em Morro do Pilar: A gente vai para o mato, tira a palha mais nova, com cuidado [...] porque não pode quebrar o coqueiro, para não estragar o pé. Não pode cortar e nem quebrar o coqueiro. Vai tirando a folha de jeito que aquela parte cresça de novo. Não podemos estragar o coqueiro, nós vamos tirando as folhas, que viram palhas. [...] Os antigos ensinavam para a gente, falavam que não podia quebrar [...] e ninguém sabia que ia vir esse negócio de não poder cortar mais, a gente cuida porque é vida e sustento para nós.

No entanto, se de um lado tendem cada vez mais a valorizar práticas sustentáveis de uso e manejo dos recursos naturais, de outro, ressentem da ausência de políticas que resgatem esses saberes e habilidades tradicionais para atrair os mais jovens e de uma política de valorização da identidade cultural. Todas as entrevistadas narraram com desenvoltura e conhecimento todo o processo de confecção de um

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chapéu. Um procedimento que não é tão simples quanto parece à primeira vista, já que envolve várias etapas ou processo de produção que começa com a identificação dos locais mais adequados para a recolha da palha do indaiá que é a matéria-prima do chapéu. A busca da matéria-prima existente na região dá-se em locais mais afastados, no entorno da cidade de Morro do Pilar, onde se encontra o coqueiro de indaiá. Essa primeira etapa exige um esforço mais comunitário do que individual. Em geral, é feita por grupo de mulheres e, às vezes, alguns homens, pois exige, além da imersão no meio da mata, um bom manejo de foice ou facão para o corte das folhas. Podem enfrentar situações de perigo, entre elas estão o risco de picada de cobra, quedas, acidentes com os equipamentos e as outras dificuldades inerentes às caminhadas em terrenos acidentados, carregando a matéria-prima coletada. Estando em grupo, uma vai ajudando as outras. O segundo passo é realizar a separação, o corte, a lavagem, o cozimento e a secagem das folhas coletadas. Uma vez preparada a palha, é realizada a chamada “riscagem” ou “desfiagem” com um

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pequeno instrumento de ferro, com dentes finos conhecido como (pente) para, em seguida, iniciar o trançado que logo se transforma em diversas tiras (largas ou finas) de acordo com o tipo de chapéu a ser confeccionado. A seguir, utilizando uma espécie de “forma”, essas tiras trançadas vão sendo costuradas manualmente em várias voltas, o que vai dando formato aos chapéus de diversos tamanhos. Nas diversas entrevistas, ficou evidente a existência de um grande número de pessoas envolvidas na cadeia de produção dos chapéus. Ocorreu ao longo do tempo certa complexificação do processo de produção, resultando na especialização e divisão social do trabalho. Um grupo de pessoas especializouse na coleta e preparação da matéria-prima. Outros se dedicam a trançar a palha de indaiá e os demais recebem as tranças prontas, fazem a costura e dão o acabamento final aos chapéus. Poucas pessoas detêm, de fato hoje, o domínio integral da cadeia de produção. D. Loca, por exemplo, conta que sua avó aprendeu o ofício com um viajante que percebeu a abundância da matéria-prima na área rural onde ela morava. Ele ensinou a usar as palhas e ela ensinou para as mulheres que viviam no entorno. Essas mulheres passaram a trabalhar para sua avó, fornecendo as tranças já prontas para costurar o chapéu. Ela nos diz, na entrevista concedida em 20/01/2014, em sua residência em Morro do Pilar, que Assim as mulheres forneciam tudo para ela, a palha já trançada e ela fazia o chapéu e vendia para todo canto e aproveitava e fazia ainda cestas, as cestinhas, as bolsinhas. Todo mundo andava com uma cesta ou bolsinha na mão naquele tempo. Depois vai modificando [...].

Os chapéus, depois de prontos, já realizado o acabamento final costumam ainda, passar por um processo de embranquecimento à base de enxofre. Feito isso, ainda hoje, os chapéus são distribuídos e vendidos de formas diferenciadas. Alguns preferem vender sua produção mediante a procura. Outro grupo vende seus produtos para lojas do Mercado Central, em Belo Horizonte, ou mesmo para particulares que se encarregam de revendê-los para boa parte da região sudeste. Esses chapéus de palhas fabricados,

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artesanalmente, em Morro do Pilar, são largamente utilizados, em especial, nas festas juninas. D. Maria de Lourdes e sua filha Marisa de Lourdes de Almeida (43 anos, nascida em Morro do Pilar e moradora do Bairro Paredão, em Morro do Pilar, trançadeira e chapeleira) contam com muito orgulho que diversas pessoas vêm de longe a sua casa para fazer encomendas e comprar seus chapéus para levar para diversas partes do Brasil e, até mesmo, para o exterior. Chegam a fazer encomendas, solicitando tamanhos diferenciados. Marisa de Lourdes Almeida, diz que aprendeu a trançar com a mãe D. Mariinha. Em seu relato, em entrevista informal na casa de sua mãe em 19/03/2014, conta que [...] certa vez chegou aqui uma mulher, proprietária de restaurantes no Rio de Janeiro, ela olhou para os chapéus e perguntou se eu não conseguiria fazer algumas cortinas de chapéus para levar. Fiquei algum tempo aqui pensando em como construir cortinas com chapéus. Tive a ideia de costurá-los em fileira de três bem juntinhos para não ter buracos entre as abas. Depois costurei com ajuda de outras mulheres as laterais com tira trançada. E não é que deu certo! Então pensei, se a mulher não gostar desmancho tudo e peço meu pai para levar os chapéus. Era um total de doze para cada cortina. E quando a mulher veio buscar fiquei esperando para ver o que ela falava, pois eu nunca tinha feito aquilo. Só sabia fazer chapéu. Ela adorou! Levou tudo. E percebi que a gente pode fazer outras coisas além de chapéu!

D. Loca relata que vendia os chapéus por todo canto e que, também, recebia as encomendas em casa. Mas era vendido muito barato, “vendia o chapéu por pouco mais que nada. Fazia muito chapéu, mas entrava pouquinho dinheiro.” Conta que chegou a fazer mais de mil chapéus para a Escola de Engenharia da UFMG, foi quando recebeu pelo trabalho em uma condição um pouco melhor. Com satisfação, relata, também, em entrevista concedida em 20/01/2014, em sua residência em Morro do Pilar, que recebia muitos pedidos provenientes de vários grupos ou lugares. Recebi uma encomenda de mil e duzentos chapéus ou mais. Eles mesmo fizeram a pesquisa no mercado e deram o preço. Me deram a fitas

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Conhecido na região como “esgarçador”: instrumento criado para abrir e amaciar a trança que será costurada para confeccionar o chapéu

para pôr no chapéu, anilina para tingir, um material com o emblema da Escola escrito na frente. Fiz e entreguei no prazo. Foi o único dinheiro que ganhei melhor [...] Eu fazia mito chapéu para Escola, para Escola de Samba, quando era carnaval. Fazia tanto chapéu .... Mas eu colocava costureira comigo, tinha mais máquinas, ensinava as mocinhas. Mas eu mesma chegava a fazer dez dúzias...

Todas as mulheres entrevistadas que trabalham no processo de confecção dos chapéus, foram insistentes e unânimes em dizer que a arte de trançar está desaparecendo, porque as jovens e adolescentes já não se interessam mais por essa atividade que faz parte da cultura local. Afirmam que suas filhas e netas preferem procurar outra atividade, até mesmo, fora da cidade. E, agora, com novas oportunidades de trabalho com a vinda das mineradoras, preferem ter outras oportunidades de trabalho e vão esquecendo a tradição. Falam isso com certa tristeza e nostalgia, falam de um tempo e de um aprendizado que era transmitido de geração para geração e que vai se perdendo no tempo.

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Pente, chamado de“ferro de desfiar palha” para se tecer a trança

Tais narrativas revelam as modificações que vão ocorrendo nas relações de trabalho e com o trabalho ao longo do tempo. Uma das razões seria o que M. C. Ribeiro, em sua dissertação de mestrado (2013), chama de uma crescente “[...] monetarização das relações sociais e de trabalho, impulsionadas pelo turismo nestes locais [...]”, por novas demandas do mercado. Segundo a autora, fenômeno semelhante ocorre no caso de famílias com tradição no trabalho na agricultura. Com o incremento da construção civil, a prática da agricultura foi abandonada pelas novas gerações. Deve-se considerar, ainda, que o aumento da empregabilidade na região, com novas frentes de trabalho, em virtude das recentes demandas, especialmente as companhias mineradoras, tendem a deslocar a mão de obra, antes voltada para o trabalho de confecção de chapéus e outros ofícios tradicionais, para outras demandas de acordo com a nova realidade. Diante das novas possibilidades, os jovens não prosseguem o trabalho que os mais velhos vêm realizando de longa data.

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As mulheres de Morro do Pilar no universo da cura: as benzedeiras e raizeiras Finalmente, decidi abrir a caixa. Ao fazê-lo, fui atingido pela poeira de duzentos anos de história. Era como mergulhar fundo nos meus ancestrais... (Allen Kurzweil)

A expressiva atuação das mulheres neste universo e as práticas de cura podem ser compreendidas no âmbito dos papéis sociais e da divisão de trabalho entre os gêneros. As mulheres, tradicionalmente, têm assumido o papel de cuidar da casa, do bemestar da família nuclear e as de seu entorno. Esta perspectiva do cuidado e de guardiãs da vida entrelaça-se ao universo do sagrado. Nas diversas sociedades tradicionais, as benzedeiras sempre tiveram um papel social bem definido: o de aliviar os males do corpo e da alma daquelas pessoas que não encontram conforto algum ou não querem procurar na medicina oficial a solução para seus problemas, suas dores e seus dissabores. Ainda que o ofício das benzedeiras atravesse o campo da saúde institucionalizada, há uma relação em muitos casos conflituosa. Na cultura popular, corpo e espírito não estão separados. Parte de nossa herança africana acredita que o homem não está totalmente desligado do cosmos ou a vida da religião. Para todos os males que possam atingir o corpo e a alma dos humanos, há sempre a possibilidade de uma reza para curar. É, por isso, que, apesar do tempo e dos avanços da medicina, a tradição dos benzedores ainda resiste na nossa sociedade moderna, globalizada e capitalista. Mesmo aqueles que afirmam não acreditar no poder da reza, das benzeções, em algum momento, poderão procurar nas rezas e nas bênçãos uma cura para a sua doença ou um alívio para a sua dor. O uso das benzeções, das promessas e das plantas como recursos terapêuticos e naturais na luta contra as doenças, intempéries e mordidas de

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animais, foram herdadas dos nossos ancestrais indígenas, africanos e portugueses. No entanto, no Brasil, essas práticas assumem características próprias e singulares. Os conhecimentos e saberes produzidos ou ressignificados, as orações especiais são repassadas, de geração em geração, por meio da oralidade e foram atravessando os séculos. Em Minas Gerais, esta prática ainda é recorrente em muitas regiões do Estado e nas periferias dos grandes centros. Para alguns autores, o ofício de “benzeção” e sua permanência ao longo do tempo explicitam o confronto entre a cultura popular e a cultura erudita. Na sua prática, os benzedores confrontam o seu conhecimento, seus saberes, com outras formas de conhecimento, como o saber médico, dito científico, e com o saber teológico atribuído, especialmente, aos padres e pastores. Trata-se de uma produção de saberes que propõe, segundo alguns estudiosos, uma releitura da religião e da medicina. O oficio de “benzeção”, bem como outras práticas religiosas e médicas populares, conhecidas ainda hoje em diversas regiões do Brasil, foi recriada no período colonial brasileiro. Na chamada “arte de curar”, estava incluída a medicina, mas, também, incluíam boticários, sangradores, cirurgiões, curandeiros, raizeiros, benzedores e padres. Muitas pessoas exerciam a medicina informalmente no cotidiano no Brasil e nas Minas colonial. Homens e mulheres, mestiços, africanos, indígenas e europeus usavam várias formas de tratamento: magia, benzeções, ervas, raízes, infusões, sangrias e unguentos. Em geral, a utilização de esses saberes não era de todo separado da medicina européia tradicional. Segundo Frei Francisco van der Poel, em O processo de cura na cultura popular (1970), cujo trecho transcrito a seguir é recolhido de http://www. religiosidadepopular.uaivip.com.br/medicina.htm [...] medicina popular de origem européia, nela encontramos elementos celtas, greco-romanos, árabes, juntamente com partes da cabala, da alquimia, da medicina dos mosteiros e dos cirurgiões práticos. Acrescentam-se a isso rituais e remédios que vem da medicina indígena e da medicina africana, isto é, elementos banto e nagô.

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O conhecimento empírico das propriedades das ervas e plantas medicinais é parte do universo cultural das benzedeiras e raizeiras de Morro do Pilar

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Na perspectiva de Márcia Moisés, vários elementos contribuíram para a expansão e utilização da chamada medicina popular, entre eles [...] a precariedade da vida material, marcada pela raridade de médicos, cirurgiões e produtos farmacêuticos, e o sincretismo dos povos, responsável pela formação multifacetada e afeita ao universo da magia. (1997, p. 16).

A invocação a santos católicos para se obter a cura faz parte do repertório do ritual da benzeção, pois ela ocorre por meio da intercessão divina. Na realidade, a cura é obra e graça de Deus Pai, sendo as benzedeiras o instrumento de tal ação. Com o argumento de que muitas enfermidades só podem ser tratadas pelas orações ensinadas por “Jesus Cristo quando andava pelo mundo”, a comunidade, de um modo geral, legitima a atuação das benzedeiras, porque partem da crença de que existem doenças para médicos e doenças para benzedeiras. Como afirma Frei Chico, A prática da medicina popular não pode ser isolada da realidade social e da história do povo portador da cultura popular. É grande a diferença entre o oficial e o popular, desde o lugar do tratamento, os nomes dados aos membros do corpo até à própria interpretação da doença e, consequentemente, à prática dos curadores. Na cultura popular, corpo e espírito não se separam em nenhum momento. Tampouco desliga-se o homem do cosmos, nem a vida da religião. (POEL, op. cit.)

Nesse universo da cura, as benzedeiras costumam invocar os santos de acordo com a necessidade de cura de cada pessoa. Assim, é muito comum invocar o auxílio de São Brás para curar doenças da garganta ou engasgamento; em caso de feridas, invoca-se a ajuda de São Lázaro; em casos de quebranto, pedese o auxílio de São Raimundo; Santa Luzia para os olhos; São Clemente para mordedura de cobras; Santa Apolônia em caso de dor de dente; para obter emprego, evoca-se São José; e São Francisco no caso de ocorrência de doença ou proteção de animais. Além disso, de acordo com Frei Chico, segundo as tradições populares, invocam-se os santos canonizados como, por exemplo: Santa Iria, Santa

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Luzia, São Sebastião, São Lázaro, Santo Antônio, São Brás, Santos Reis, São Raimundo Nonato, São Bento; como, também, os santos ainda não canonizados: Doutor Guerra, a parteira Maria Conga, Padre Eustáquio, Padre Frei Clemente e muitos outros. Observamos que o santo curador, às vezes, conhece a doença por experiência própria: Santa Luzia, que perdeu a vista, cura os olhos; São Lourenço, que foi martirizado no fogo, cura as queimaduras; Padre Frei Clemente morreu envenenado e é invocado contra a picada de cobra. As mulheres que realizam benzeduras são conhecidas na comunidade onde vivem como rezadeiras ou benzedeiras e tratadas com muito respeito e consideração. Essa realidade fica evidente quando os próprios membros da comunidade conseguem distinguir essas pessoas entre a população da cidade. Aqui em Morro do Pilar, por exemplo, D. Maria Alice Chaves Martins, assim como outros habitantes da cidade, conseguem nomear alguns dos benzedores e benzedoras reconhecidos e respeitados pela comunidade. Em entrevista a nós fornecida em 21/01/2014, em sua casa, em Morro do Pilar, diz assim: Ah! As benzedeiras! A minha mãe sempre levava. Eu cheguei a levar meu filho mais velho, sabe! Benzer de vento virado. As benzedeiras, nós tínhamos a vó da Vilma, a D. Vivi do Sr. Jorge [Virgínia Andrelina dos Santos], a D. Zilda do José Agostinho [Zilda Rodrigues]. Tem mais, tem a Dona Preta [Geralda Vieira Soares], a Dôdora do Toninho [Maria Auxiliadora Rodrigues Campos], a Maria do Sr. Joaquim Batista [Maria José Batista]. Se perguntar, o pessoal vai lembrar de mais. Ah! Tinha o Sr. Rufino [Rufino Augusto Vieira] que era também fantástico, ele benzia, cortava cobreiro. Ele já faleceu, mas sei que ensinou para alguém!

Os benzedores acionam conhecimentos do catolicismo popular, súplicas e rezas e conhecimentos homeopáticos ou medicina popular para executarem seu ofício com o objetivo de restabelecer o equilíbrio material ou físico e espiritual das pessoas que buscam a sua ajuda.

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As plantas simples do dia a dia da comunidade, também são utilizadas para curar doenças do corpo e do espírito

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Entre os diversos benzedores e benzedoras do município, encontramos D. Castorina Ribeiro de Almeida, 68 anos, nascida no Samora, moradora na região de Carvalho, zona rural de Morro do Pilar, casada, mãe de 02 filhos, lavradora e benzedeira, também, gentilmente, deu-nos entrevista em 28/01/2014 em sua residência, na região do Carvalho, Zona Rural de Morro do Pilar. Em seu depoimento, conta que aprendeu a benzer aos vinte e um anos, no Rio de Janeiro, onde morou por um tempo, depois de casada. Conta que o aprendizado deu-se com uma senhora velhinha e que [...] ela era sabida mesmo. Ela sabia tudo enquanto era benzeção. Eu ia lá benzer minha menina e ela disse assim: ‘vou te ensinar tudo enquanto é benzeção. A senhora quer aprender? Porque tem muita fé!’. Eu disse: se a senhora me ensinar, eu quero! Quem é que não quer! Ela foi me ensinando tudo, as simpatias que fazia e tudo. Mas não era uma vez só não, eu ia duas vezes na semana para ela me ensinar [...].

Um ano depois, quando voltou para Morro do Pilar, aos vinte e dois anos, começou a prática de benzer. O que significa que há 46 anos vem exercendo o ofício de benzedeira. Afirma que benze de tudo que for preciso, porque tem muita fé, reza muito e, também, porque recebeu uma graça, Eu benzo! Eu sei benzer tudo! Eu benzo sangue, eu benzo e tiro berne, eu benzo de mal olhado, benzo a pessoa que fica abrindo a boca sem parar! Tudo que você pensar eu benzo. Aqui fica cheio de gente o dia inteirinho e eu benzo mesmo! E todo mundo que vem aqui é feliz! Ou busca o caminho da felicidade!

Na cidade de Morro do Pilar, também, foram encontradas benzedeiras reconhecidas e bastante respeitadas na comunidade, entre elas, D. Benedita Pereira da Silva, mais conhecida como D. Ditinha, moradora do Bairro Santa Luiza. Na sua família, constatamos, ainda, que um dos seus filhos, o jovem Delson Pereira da Silva, de 39 anos, nascido em Morro do Pilar, casado, pai de dois filhos, além de professor do Ensino Fundamental no município, também, já exerce o ofício de benzedor. E ao contrário do que se possa pensar, o aprendizado não

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foi transmitido de mãe para filho. O professor Delson, na entrevista concedida em 21/01/2014, na residência de D. Benedita Pereira da Silva, no Bairro Santa Luzia, Morro do Pilar, conta que aprendeu com o Sr. Rufino. Mas aprendeu olhando, ouvindo, prestando atenção quando ia ser bento. Toda vez que a gente tinha um problema ia lá para ele benzer. E ele sempre falava: ‘eu vou estar passando para você o conhecimento, porque talvez lá na frente, em falta minha você pode estar fazendo o papel que hoje estou fazendo. Mas ficou aí, então ele morreu [...]. Eu ia lá para ser benzido, não tinha aquela preocupação de aprender, só ficava ouvindo ele falar aquelas palavras quando estava me benzendo, fui gravando aquilo, realmente ele não chegou a me ensinar, mas através das palavras que ele falava comigo aprendi e depois que ele faleceu eu continuei. Agora, estou tentando prosseguir com esse dom que me foi concedido naquele momento. Acho que isso é um dom que você recebe. A pessoa não aprende só, tem de ter dom. Acho que ela é chamada, como um serviço para estar ajudando.

No caso de Benedita Pereira da Silva, D. Ditinha, 69 anos, nascida em Morro do Pilar, solteira, mãe de 2 filhos, é uma das descendentes dos Pereira de Abreu, famílias negras que foram donos da Fazenda MataCavalo. Ela é funcionária aposentada da Prefeitura Municipal de Morro do Pilar e benzedeira há mais de quarenta anos. A nossa entrevista aconteceu em 21/01/2014 em sua residência, no Bairro Santa Luzia, Morro do Pilar. Durante a boa conversa, ela relata que o aprendizado aconteceu por meio de uma amiga que sabia benzer, hoje já falecida. Ninguém nem pensava dela morrer tão nova. Ela benzia muito bem. Um dia ela falou comigo assim: ‘Ditinha, vou falar com você um negócio, vou te ensinar a benzer, porque às vezes em falta minha vai servir para você e servir para outras pessoas que te procurar. Vou ensinar você como é que benze mau olhado’. Ela morreu e eu fui comprar, quer dizer, a gente não fala comprar e sim trocar uma imagem de Nossa Senhora do Desterro. É com ela que eu benzo mau olhado, olho gordo e outros. [...] Na minha família não tinha ninguém que sabia benzer. Então a minha amiga me ensinou e um amigo do meu filho ensinou a ele.

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A intimidade do tempo vista a partir do interior das casas de Morro do Pilar

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Para compor o ritual de cura, as benzedeiras podem utilizar vários elementos: ramos verdes, gestos em cruz feitos com a mão direita, cruz, imagens de Nossa Senhora, imagens de santos, agulha, linha, pano e reza, garrafadas de ervas. O ritual pode ser executado na presença da pessoa ou até mesmo à distância. Essas mulheres benzem os males de pessoas, animais ou objetos. E, em muitos casos, não é necessário o deslocamento dos entes até ela como é o caso de algumas benzeções relatadas pela D. Castorina em informação dada em entrevista concedia em 28/01/2014 em sua residência, na região do Carvalho, Zona Rural de Morro do Pilar. Eu benzo de longe também. Daqui eu sabendo o nome e onde que a pessoa mora, eu benzo. Elas têm uma fé viva comigo! Eu benzo animais! Sabe de um caso: o Paulinho ele castrou um boi e o sangue estava que não parava. Aí ele foi e falou: ‘ô mãe, eu castrei um boi aqui e o sangue não quer parar, não pára, a senhora não podia benzer para mim?’. Só fui ali arranquei raiz de sapé e chequei lá na porta da sala, olhei para a casa lá. Perguntei em qual direção que o boi está? ‘tá aqui no curral, eu ajoelhei no chão e benzi e o sangue parou na hora! Tinha também uma mulher muito rica que não saia daqui para eu benzer os filhos dela e a fazenda.

Além do oficio de benzer, o profundo conhecimento empírico de ervas e plantas medicinais torna essas e outras mulheres (comumente conhecidas como raizeiras ou fazedeiras de remédios), entendedoras e guardiãs de muitos segredos da natureza. Conhecedoras da terra utilizam ervas e plantas com o objetivo terapêutico e, desse modo, vão se tornando conhecidas em seu meio social, obtendo legitimação como portadoras de um dom especial, quase divino, por tratar e curar pessoas de diversos males. Para muitas mulheres que habitam o município de Morro do Pilar, o quintal de suas casas pode ser vistos como espaço de produção de saberes. No quintal, ocorre a reprodução de saberes, dos conhecimentos com as plantas, destinadas ou para o alimento ou para fins medicinais. São saberes historicamente adquiridos, transmitidos por gerações (PEREIRA; ALMEIDA, 2011, p. 47-64). Os quintais são signos de cultura e de identidade do povo e evidencia a mescla 162

de cultura e de conhecimentos dos nossos ancestrais, indígenas, portugueses e negros africanos. Como conta D. Castorina na mesma entrevista: Eu sei tirar berne com simpatias e folhas. Eu benzo e se tiver alguma coisa e precisar eu dou as folhas, eu dou as raízes, eu explico [...] porque as vezes a gente benze e a coisa está muito ruim, que tem que dar não é!

O mesmo ocorre com D. Maria da Conceição Tomaz,­mais conhecida como Maria do Joaquim Tomaz, carinhosamente apelidada como Maria dos Remédios por alguns. Uma pessoa muito respeitada na comunidade por conhecer muito bem o universo da cura. Com profundos conhecimentos no campo da homeopatia, da medicina popular, especialmente, das propriedades terapêuticas de diversas plantas, folhas, ervas. Conhecimentos, práticas e saberes milenares sempre colocados a serviço da comunidade. Essas e as demais mulheres raizeiras, fazedoras de remédios e/ou benzedeiras carregam consigo aprendizados, conhecimentos e memórias de saberes milenares que são transmitidos de geração a geração, das mais velhas para as mais novas, mas não necessariamente da mesma família. São compartilhados ou aprendidos por quem tem esse dom especial, porque são memórias que estão situadas no campo do simbólico e do sagrado. É, nessa esfera, que estão focadas suas energias, centradas suas vibrações e suas práticas e na profissão de fé. Nesse universo da cura, as benzedeiras, com simpli­ cidade, afirmam que não têm o poder da cura, afirmam que quem cura é Deus e Nossa Senhora, como disseram D. Castorina e D. Ditinha, entre as diversas mulheres benzedeiras, dizem que sabe benzer, mas que é que está na frente. “É que a gente não tem o poder de benzer, é Nossa Senhora que benze, a Nossa Senhora do Desterro. Eu tenho a minha Nossa Senhora do Desterro ali...”. Assim, quando uma benzedeira está no exercício do seu ofício, passa a ocupar outro papel, a de mediadora, a intercessora, aquela que interpela a Deus e Nossa Senhora por quem estão necessitando do seu auxílio.

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Mães e mulheres, exemplo do cuidado em Morro do Pilar

É vista pela sociedade como pessoa que detém o dom da cura, o poder de rezar, costurar e interceder por seus irmãos. No ato de benzer, traz em sua memória saberes milenares, gestos e rituais repetidos por ancestrais. Memórias que fazem parte do ritual seguido por estas mulheres nos seus fazeres, nas suas benzeções e no gesto de manipular determinadas ervas e raízes transformando-as em remédios. Com raras exceções, a grande maioria dessas mulheres é sofrida, muitas vezes, não teve oportunidade alguma de frequentar escola, não detém o domínio da escrita, vive sempre na luta e na peleja, mas carrega, na memória e no tempo, todo o saber acumulado por diversas gerações que a antecedeu. Segundo D. Ditinha, apesar de ter aposentado por invalidez, a vida ficou melhor. Contou em entrevista que desde pequena viveu com dificuldade, doenças, problemas financeiros e pessoais. Depois, vieram os filhos e teve de criá-los sozinha. O pai das crianças não a ajudou, mas não perdeu a alegria ao criar os filhos.

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[...] pedindo esmolas, depois comecei a trabalhar na Prefeitura, na varreção de rua, ganhava muito pouco, não dava para nada! [...]. Lavava roupa para os outros, era no sol, na chuva, às vezes, sem comida, buscava lenha no mato na cabeça para vender! Ia para o mato, arrancava aquelas touceiras de capim, carregava aquela trouxa na cabeça, trazendo para vender para aqueles que faziam colchão. Hoje, nem usa mais colchão de capim, buscava aquela areia branquinha lá longe, pelos lados do Lajeado. Trazia aqueles sacos de areia na cabeça para vender, para trocar por um feijãozinho, uma peneira de toucinho. Era sol e chuva desse jeito. A minha vida não foi boa não! Foi uma peleja só! Adoeci no serviço e aposentei assim. Hoje em dia está melhor! Os meus dois filhos, porque a moça mais velha Deus levou. Mas Ele deixou esses dois para mim e deu sorte, todos bem empregados, casados, tem a família deles. Eles casaram, mas cuidam de mim melhor do que quando eram solteiros. Hoje em dia eu estou no céu. Mas que eu sofri muito, eu sofri [...]. Lutei sozinha e com Deus... Agora a benzeção não se faz para ganhar não! Claro que não é para cobrar.

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A pessoa que a gente está benzendo, tem de ter fé. Se a pessoa que estou benzendo não tiver fé, não vale de nada.

E é, exatamente, por suas trajetórias que estão sempre dispostas a ajudar quem quer que seja, colocando ao seu dispor o seu saber tradicional presente no seu ofício, nas suas práticas de cura. Para algumas, são orações, preces, sabedorias e conhecimentos que, para o bem de todos, devem ser muito bem guardados e somente repassados no momento considerado adequado para aquela ou aquele que reúne as condições necessárias para se tornar guardião desses segredos de vida e de morte. Como afirma Delson, filho de D. Ditinha: A benzeção é mesmo um dom e aquele que recebe, está recebendo para ajudar. Tem que ser usado para ajudar, não pode cobrar. E se está dando certo, tem de prosseguir, você não pode parar com aquilo e com o tempo passar para outras pessoas! Os mais velhos ensinam o seguinte: que se você pegar um escrito e decorar não tem sentido nenhum. Você tem de realmente ter aquele dom e pegar através das palavras e da fé. E a pessoa que a gente está benzendo, tem de ter fé. Se a pessoa que estou benzendo não tiver fé, não vale de nada.

E, ainda na perspectiva de que o ofício de benzer é, também, um dom, não basta só querer, D. Ditinha acrescenta que quando o Sr. Rufino faleceu, soube pela esposa dele, que ele havia deixado um livro escrito com todas as benzeções. O Sr. Rufino Augusto Vieira, já falecido, foi um benzedor muito respeitado em Morro do Pilar, inclusive por benzer cobreiro. Segundo depoimento de D. Ditinha e outros, quando faleceu deixou registrado em livro todas as suas rezas, benzeções e simpatias. Por meio dos seus ensinamentos, iniciou algumas pessoas mais jovens no ofício de benzer como, por exemplo, Júlio Cesar Viana Pereira e, ainda que de modo indireto, o Delson, filho da D. Ditinha. Na conversa com a esposa, ela lhe confidenciou o 164

seguinte: “Fala para o Delson que se ele quiser o livro da benzeção do meu marido, ele pode levar. Eu dou para ele, assim ele pode ficar mais prático ainda.”. Conta ainda que Delson, seu filho, aprendeu a benzer vento virado de criança, a coser entorses, destroncamentos, torções, problemas e dores na coluna e vem muita gente procurá-lo e que ela também atende. Mas tem benzeções que é só para ele. Quebranto, cobreiro, mau-olhado, espinhela caída, erisipela, vento virado, torção, sentido, olho gordo. Quem quer que percorra os povoados da zona rural e na cidade de Morro do Pilar, assim como nas pequenas cidades do interior ou mesmo as periferias das grandes cidades, vai deparar-se, em algum momento, com algumas dessas pessoas que fazem parte de um mundo mágico-religioso, povoado de rezas, crenças, simpatias, benzeções, garrafadas, porções de ervas e raízes, transformadas em remédios. Pessoas como as mulheres entrevistas e, também, pessoas como D. Vivi, D. Zilda, Sr. Rufino (in memorian), bem como D. Preta, Dôdora, Maria José e tantas outras que não foram mencionadas, mas, estarão sempre presente no imaginário social dos habitantes de Morro do Pilar, porque algumas já construíram e outras estão construindo a história, quer como partícipes, quer pelo respeito e consideração da comunidade, quer pela presença na memória e imaginário social. Pessoas iluminadas que fazem parte do universo da cura e que dedicam parte de suas vidas em preservar vidas. De serem instrumentos a favor da vida! Em um momento no “ato de benzer”, em Minas Gerais, o benzedor está prestes a ser reconhecido como patrimônio imaterial, registro que pode ser dado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA). Preservar esse ofício é manter esse patrimônio vivo para as futuras gerações, é o que revelou a reportagem do Jornal Estado de Minas (2014, p. 3-4).

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Benzedeiras e raizeiras: pela relação estabelecida com a natureza e as plantas, transformam o quintal de suas casas em espaços de produção e reprodução de saberes milenares

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As mulheres de Morro do Pilar no universo da celebração da vida

Creio que naqueles instantes o encantamento me pegou. [...] Retirei os objetos vagarosamente [...]. Em pouco tempo percebi que os objetos falavam uns com os outros, e comigo... (Allen Kurzweil)

Conhecidas em várias culturas por diversas denominações, “Anjos”, “Comadres”, “Santas”, “Guardiãs da vida e da morte”, “mulheres da luz”, as mulheres parteiras estão presentes na sociedade desde tempos imemoriais como responsáveis por ajudar a trazer as crianças, as novas gerações, para mundo, para a cultura. Pelo poder de trazer a “luz e a escuridão aos recém-chegados ao mundo”, as parteiras sempre despertaram sentimentos ambíguos. Ao mesmo tempo em que sempre gozaram de prestígio e simpatia, com status de quase uma santa, especialmente em contextos rurais e nas periferias da cidade, também, sofreram, ao longo da história, o peso do estigma de poder provocar a morte, eliminando vidas. Perpetuadas por meio de passagens bíblicas, histórias, símbolos, expressões artísticas e por representações e sentidos, cada sociedade, em cada tempo e em cada contexto, lhe atribui que o ofício de partejar sempre esteve associado ao fazer, ao cuidado e ao universo feminino. Para Mary del Priore

competência médica, o ofício de parteira passou a ser alvo de normatização, com exigência de registro e formação técnica, em uma sociedade que vivia cada vez mais um processo de hospitalização e higienização. Assim, a assistência ao parto começa a ser um processo mais complexo e, nesse contexto, vão surgindo vários profissionais além dos médicos. Surgem vários tipos de parteiras: as práticas, as ocasionais, as examinadas e as parteiras diplomadas. O ofício de parteira começou, então, a ser institucionalizado em 1832 quando foram estruturados os primeiros cursos de formação, que funcionavam anexos às Escolas de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, dando origem às parteiras diplomadas. Em conformidade com as medidas higienistas, a prática de partejar passa a ocorrer no espaço hospitalar sob o controle médico e não mais de forma independente como antes. Tais cursos existiram até meados do século XX, em diversas cidades brasileiras, permitindo que muitas parteiras práticas se transformassem em parteiras diplomadas. As chamadas obstetrizes passaram a atuar junto às equipes médicas e em menor proporção o atendimento em domicílio. Sobre este assunto, sugerimos a leitura do artigo “A expedição e o nascimento”, de Maria Lúcia Mott (2004).

O momento do parto não era só o leque de movimentos físicos aprendidos e descritos pela ciência médica. A dor e a angústia que envolviam a parturiente eram, sim, interpretadas por gestos e práticas de uma cultura feminina que de certa forma caminhava paralela ao olhar da medicina. Através dessa cultura feminina sobre o parto, as mulheres resgatavam sua individualidade e exercitavam suas alianças de gênero. Adestrada a madre, cuidada e sanada no sentido de tornarse permanentemente procriativa, cabia às mulheres conceber e aos médicos historicizar esse momento que foi, até a obstetrícia firmar-se como ciência, um momento de exclusiva vivência feminina. (1993, p. 255)

Em que pese todo um processo histórico de estigmatização, desqualificação e até de invisibilidade reservado a essas mulheres e a outros ofícios relacionados à medicina popular, por uma historiografia conservadora, as parteiras persistiram, exercendo o seu oficio. Mesmo diante de toda a política higienista e da modernização das condutas no campo da saúde pública no Brasil, seguiram ajudando as mulheres darem a luz, trazendo os recém-chegados ao mundo, salvando vidas, espe­ cialmente, em regiões onde os serviços públicos de saúde não conseguem atender toda a demanda, ou são precários ou ainda não chegaram ou, quando chegam, não funcionam ou em virtude dos avanços das políticas de humanização da parte defendida por diversos movimentos.

No Brasil, até o século XIX, o parto ocorria no espaço doméstico e quando passou a ser assunto de

Em seu depoimento sobre a história de Morro do Pilar, Maria Alice Chaves Martins chama a atenção

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A arte de receber e cuidar da vida foi preservada pelas parteiras de Morro do Pilar

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para importância das parteiras na região. Relembra, entre tantas, de D. Maria do Socorro Ferreira, hoje com 75 anos, mais conhecida como Socorro do Zé Aristeu, D. Tereza Maria Ferreira, mais conhecida como D. Tereza do Carioca e, ainda, Filomena Rosa de Jesus e mais outras duas que, também, se tornaram ícones na comunidade, tendo seus nomes associados a Postos de Saúde da Família, PSF da cidade. A primeira, D. Margarida Soares, mais conhecida como D. Garidinha, além de parteira, era homeopata. A segunda, D. Ana Soares Vieira, mais conhecida como D. Donana. Desse modo, tiveram seus nomes e suas histórias inscritos, oficialmente, na história cidade por reconhecimento aos serviços prestados. No Brasil e na América Latina, de modo geral, as parteiras continuam fundamentais no cotidiano em várias regiões como, por exemplo, nas áreas rurais, indígenas, entre as populações ribeirinhas e mesmo nas periferias das grandes cidades, como São Paulo, Recife, Belo Horizonte, conforme atesta os estudos de Amauri Ferreira e Ione Grossi (2012), Maria Lucia Mott (2004). A este respeito, vale a leitura de “Religião e cidade: a narrativa das parteiras e sua religiosidade na Belo Horizonte dos anos 90”, de Amaury Carlos Ferreira e Yone Souza de Grossi. Para Nestor Canclini, a sobrevivência desse ofício aponta a resistência das culturas populares em contextos de globalização, especialmente, na América Latina. Um contexto em que “[...] as tradições ainda não se foram e a modernização não terminou de chegar [...].” (1998, p. 17). No rol dessas parteiras, reconhecidamente, encon­ tram-se diversas mulheres sem formação acadêmica, atuando na assistência ao parto e em outros sistemas de cura que passam ao largo do sistema médico institucionalizado, sendo chamadas de leigas ou tradicionais. D. Tereza Maria Ferreira, mais conhecida como D. Tereza do Carioca, é uma dessas mulheres. Casada, mãe de 15 filhos, sendo 10 vivos, exerceu, simultaneamente, várias profissões e ofícios: entre eles o de parteira. Nascida na zona rural de Morro do Pilar, na conhecida e histórica Fazenda Mata-Cavalo.

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Mora na área rural de Morro do Pilar, denominado Carioca há 59 anos. Aos 78 anos, impressiona sua vitalidade, seu humor, sua alegria, experiência, conhecimentos e saberes acumulados ao longo da existência. Reconhecida como parteira experiente, líder comunitária, trabalhadora rural, funcionária da Prefeitura, como Auxiliar de Serviços Básicos em Escolas da área rural no Carioca. Está, agora, aposentada com 37 anos de serviços prestados. Foi benzedeira, trançadeira. Ao narrar um pouco de sua história e trajetória, D. Tereza do Carioca revela o profundo conhecimento da história de seu povo, o orgulho dos seus ancestrais, suas lutas, suas vitórias, seu modo de ser e de estar no mundo e sobre o trabalho na Escola do Carioca. Ao falar sobre D. Tereza, Maria Alice Chaves Martins, entrevistada em 21/01/2014, na sua residência em Morro do Pilar, relata o seguinte: [...] quando fui Diretora do Cardeal Mota, no governo Hélio Garcia, foi implantado um plano de melhorias educacionais e existia uma brecha na legislação que permitia a gente vincular as classes da zona rural à Escola Sede Cardeal Mota. Montamos o processo, tudo direitinho e conseguimos [...]. Isso foi muito bom, eu visitava a escola da zona rural e a D. Tereza era servente escolar lá no Carioca. Precisava ver a horta que a Escola do Carioca tinha, além do trabalho de Servente, ela era o ponto de apoio dos professores. Assim qualquer dúvida dos professores, um conselho. Isso era muito importante. E D. Tereza assim como a Socorro do Zé Aristeu foram parteiras. Essa última trabalhava no Hospital. Mas como dizia, D. Tereza andava a pé por todos os lugares para fazer os partos. Nossa D. Tereza como a senhora aguenta, está longe demais — Ela dizia: ‘Nada, é ali mesmo.

Sobre o ofício de parteira, D. Tereza, que nos concedeu entrevista em 22/01/2014, em sua residência no Carioca, zona rural de Morro do Pilar, conta que já fez 213 partos, contando com doze, dos quinze filhos. E mais, aprendeu a fazer parto sozinha e relata assim o aprendizado: [...] eu ganhei 15 filhos, De parteira eu tive três. O resto eu ganhei sozinha; eu e Deus, sem médico, sem parteira, sem nada. Eu mesma cortei o umbigo deles, cuidei deles, dei banhozinho...

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Experiência, conhecimentos e saberes acumulados ao longo da existência de senhoras em Morro do Pilar

Sabe como é que aprendi? Os três primeiros elas (as parteiras) fizeram o parto. Eu ficava prestando atenção. Eu estava assim com uns vinte anos. Eu fui prestando atenção, como ela fazia. Nossa família é muito inteligente, uns negros muito inteligentes viu! Aí eu fui olhando, quando foi no primeiro, no segundo, no terceiro. Quando foi no quarto eu fiz, quando olhei para a Valéria tudo certo, então depois da Valéria para cá eu mesma fiz os partos. Porque era muito filho, não tinha dinheiro para pagar a parteira. Como é que pagava? O neném não podia morrer. Quando eu cheguei aqui tinha a Maria Eduarda e a Raimunda (já falecida) como parteiras. Elas fizeram meu parto, o resto não teve parteira, fui eu e graças a Deus correu tudo direitinho.

Assim como D. Tereza, são muitas mulheres que aprenderam sozinhas, observando o trabalho da outra e fazendo seu próprio parto, pois, quiçá, o saber está relacionado com a produção de saberes, circulação de conhecimentos e informações acerca dos partos no universo feminino. Após fazer o sexto parto, com o acúmulo de experiência, comecei a ser chamada para fazer

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partos de outras mulheres. Fala com alegria sobre o primeiro parto que saiu para fazer. “A primeira que me chamou foi a DuCarmo do Sebastião Almeida. Ela mora no Morro. Depois disso eu ainda ganhei muitos filhos. E de tanto fazer parto, cheguei aos 213. Sabe de uma coisa: teve um dia que fui fazer o parto de uma mulher lá perto do Rio Vermelho. Eu estava para ganhar o Evaristo. Quando eu terminei de fazer o parto da mulher, eu comecei a sentir. Subi aquele morro correndo, correndo muito, porque eu estava sentindo muita dor. Eu sabia que ia ganhar ele, então fiquei com medo de ganhar ali, desci o morro correndo, quando eu cheguei aqui (em casa) eu ganhei ele [...]. Teve um dia que eu parei, pensei e lembrei de todas as mulheres, lembrei dos meninos e meninas e fui falando alto e cheguei aos 201. Os outros 12 foram os meus. Pensei: e não morreu nenhum. Só um que teve complicação.

São mulheres cujo ofício são legitimados pelas comunidades onde atuam a partir da utilização de critérios como experiência, vocação, conhecimento prático. Há, também, mulheres que, por contin­ gência, atendem esporadicamente ou com frequência parturientes em situações de urgência. D. Tereza,

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em vários momentos atendeu casos emergenciais, muitas vezes, deveria ser um caso para cesárea. Em um dos casos a criança estava com o [...] bracinho preso no cordão umbilical. Coitada dessa mulher. Soquei meu joelho no chão e rezei (nessa época eu rezava), eu rezei e falei com o Senhor. O Senhor é que sabe, o senhor que é o médico dos médicos! Eu não tenho médico aqui, mas o Senhor é médico e eu não tenho ninguém para me ajudar. Eu peguei e falei: Oh! Minha filha, fica tranquila, o negócio não está muito fácil não! Quando eu acabei de rezar consegui pegar a cabecinha, veio a cabeça, eu peguei o neném, mas ele nasceu desacordado! Já tinha passado da hora! Ela falou: ‘Esta morto’. Olhei! O coração não batia, o pulso não batia. Olhei o pulso não tinha. Tirei a fralda que estava na minha cintura, dobrei, pus na boca dele e fui fazendo respiração. O negócio era fazer respiração boca a boca com ele e o coração então funcionou. Hoje ele está fortão, um rapagão. Chama-se Isac. Não teve nenhum problema, nada, nem com ele e nem com ela (a mãe) [...]. Teve outros casos. Muitas vezes tinha de ser cesárea. Teve muito menino que estava sentado. Nasceu sentado e eu consegui tirar tudo. Eu não, porque é Deus quem tirou. [...]. Muitas vem me agradecer! Eu digo: não fiz nada. Quem sou eu! Quem sou eu mesmo para poder fazer! Deus fez tudo. Deus me escutou! Deus ungiu a minha mão para isso!

Se levarmos em consideração os dados da Organização Mundial da Saúde, as parteiras leigas são responsáveis por mais de 60% dos partos em países em desenvolvimento. No caso brasileiro — diante do precário funcionamento de um sistema oficial de registro e dos contextos de trabalho dessas mulheres em várias regiões brasileiras, que operam em outra lógica como, por exemplo, o não registro dos partos que atendem, estatística que ainda permanece no campo da oralidade — estima-se um número expressivo de parteiras tradicionais em exercício no país. A assistência ao parto não é homogêneo no Brasil. Embora possa constatar que a maioria dos partos ocorra em hospitais, o parto e nascimento em domicílio assistidos por parteiras tradicionais fazem parte do cotidiano em muitas regiões, especialmente, na região norte e nordeste, sobretudo, em áreas rurais, entre as populações ribeirinhas, em regiões de difícil

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acesso e entre populações tradicionais quilombolas e indígenas. Para saber mais desse assunto, é bom que se veja os estudos de K. F. Souza sobre Mortalidade materna e parto domiciliar: desafios à vigilância epidemiológica (2002). Os novos estudos e reflexões sobre a temática, na última década, apontam ainda que em virtude das novas políticas de humanização do parto, ganha novamente destaque a figura da parteira ao mesmo tempo em que reascendem os velhos conflitos e tensões de gênero, classe e formação entre médicos e não médicos que sempre marcaram a história da assistência ao parto e à mulher na sociedade brasileira. São pertinentes os estudos de Denise Pires sobre A Hegemonia Médica na Saúde e a Enfermagem (1989). A trajetória e a história de vida das mulheres aqui apresentadas sumariam e evidenciam, em boa medida, as histórias de todas as mulheres de Morro do Pilar de ontem e hoje. São mulheres brancas, negras, pardas, ricas, pobres e médias. Mulheres crianças, jovens, mais velhas, de várias gerações. Mulheres solteiras, casadas, viúvas. Mulheres fortes, guerreiras, trabalhadoras e batalhadoras; mulheres que fazem histórias, assim como fizeram suas ancestrais. São mediadoras culturais, carregam consigo os resultados de uma mescla de povos, de culturas, de costumes, de saberes milenares. Estão presentes no cotidiano, na direção de Escolas, frente às Secretarias Municipais, frente ao Executivo Municipal. Apresentam-se como lideranças de Movimentos Sociais e de Igreja e em diversos outros campos. Vozes que, hoje, se apresentam na cena histórica, porque há muito já se foi o tempo do silêncio. No teatro da vida e da memória, as experiências vividas concretizam-se, tendo como fio condutor as narrativas de diversas mulheres de Morro do Pilar, histórias que, dificilmente, aparecem nos manuais escolares, mas, agora, inscritas nos cenários da cidade, pois imprimem suas marcas, seus registros, suas narrativas. Apresentam-se, desse modo, como protagonistas, agentes construtoras da história, como sujeitos sociais. Cada uma, a seu modo, é um ser de história e de memória!

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D. Maria de Jesus Pereira, aos 102 anos, pode ser vista como monumento/ documento, uma das principais guardiãs da tradição viva da Fazenda Mata- Cavalo e da presença negra na região

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A presença Pilar

Morro

africana na história de

do

Há coisas que estão presas na memória do tempo, como um monumento, uma obra de arte, uma peça antiga. Através delas pode-se desfiar a teia do acontecimento instituinte, desvendar a trama das relações indeterminantes, descobrir momentos engendrantes processos. (Yone Grossi)

A Vila de Nossa Senhora do Gaspar Soares, assim como toda a sociedade mineira colonial, apresentava-se como um efervescente universo sociocultural marcado pela mistura de várias etnias, pelas informações, trocas, tradições, religiosidades, práticas, crenças e culturas. Além de portugueses, estabeleceu-se, na região, uma grande leva de africanos escravizados procedentes da África Ocidental, em um processo secular de imigração forçada para o trabalho nas minas de ouro e de diamantes. Povos de diversos grupos, nações, etnias trouxeram, como parte de seu acervo civilizatório, profundos conhecimentos técnicos e tecnológicos, modos de viver, modos de ser e de pensar. Conhecimentos e saberes esses desenvolvidos dentro dos próprios territórios africanos e outros resultantes do processo de intercâmbio, mediações e trocas comerciais com a Índia, China e com o mundo árabe. Comércio que fora intensificado a partir da penetração e interiorização da cultura mulçumana no continente africano, especialmente, a partir do século XII. Como parte desse repertório de conhecimentos e saberes trazidos pelos povos africanos que vieram para o Brasil, destacam-se os conhecimentos matemáticos, tais como a geometria e a teoria dos sistemas dinâmicos, conhecimentos de sistemas construtivos, conhecimentos da fauna e flora, conhecimentos de tecelagem, tinturas e trabalhos com fibras vegetais e animais, além de conhecimentos da tecnologia do ferro, bronze e fundição, que nas mãos

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de diversos povos africanos, sofreram significativas inovações (GIORDANI, 2009; VERCOUTTER, apud KI-ZERBO, 2010). Cunha Junior considera a possibilidade de os africanos “[...] terem chegado a uma liga próxima à do aço antes do século XVI. O aço ou ligas próximas só foram realizadas na Europa no século XIX.” (2010, p. 11). Os estudos mais recentes sobre as sociedades africanas indicam que a produção de conhecimentos técnicos e tecnológicos ou o seu aprimoramento e difusão encontraram, no Continente Africano, solo fértil em virtude das rotas comerciais, do intenso trânsito cultural e da rede de trocas estabelecidas entre as múltiplas sociedades africanas e outras regiões do mundo desde a antiguidade. Foram séculos de conhecimentos e saberes acumulados que vieram com os povos africanos para diversas partes do mundo, para o Brasil e, especialmente, para o trabalho nas minas de ouro e de diamantes em vilas e arraiais mineiros. A significativa presença africana, em Morro do Pilar, pode ser atestada desde a origem do Arraial com a vinda de Gaspar Soares, familiares e de africanos escravizados. Os saberes e ofícios de transformação de metais dessa escravaria foram largamente utilizados nos trabalhos de extração do ouro, na metalurgia e fundição. Não é por acaso que os avanços dos estudos e pesquisas, nas últimas décadas, reafirmam uma grande concentração de escravizados oriundos da região da Costa da Mina no universo do trabalho da América portuguesa dos séculos XVII e XVIII (PAIVA, 2001; LIBBY; PAIVA, 2005). Uma das razões dessa concentração deve-se aos saberes desses povos, especialmente, aos ofícios relacionados às atividades mineratórias. O conhecimento desses saberes de diversos povos africanos tem sido possível devido à atenção dada, nos últimos anos, aos novos estudos sobre a história antiga e pré-colonial do continente africano na medida em que esse conhecimento afeta o entendimento da história da sociedade brasileira. Esses novos estudos sobre a história africana têm indicado que os ferreiros ocupavam lugar de destaque e prestígio

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Os negros trouxeram profundos conhecimentos técnicos e tecnológicos, modos de viver, modos de ser e de pensar para Morro do Pilar

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na vida da comunidade em diversas sociedades africanas. Temidos por deterem a habilidade sobre a transformação dos metais, conhecerem a arte de lidar com fogo e com o ferro, acreditava-se que eles eram dotados de poderes especiais. O ferreiro tradicional era visto como o “depositário do segredo das transmutações”. Eram, também, respeitados pelas funções que desempenhavam nos rituais e no cotidiano da comunidade. Acreditava-se ainda que os ferreiros estabeleciam uma contínua conexão com os ancestrais. Pela capacidade de criar inúmeros tipos de ferramentas, utensílios para uso doméstico e armas, eles eram considerados os mediadores entre os homens e os espíritos, ocupando sempre um papel de destaque nas cerimônias e rituais tradicionais das comunidades (HAMPATÉ BÂ apud KI-ZERBO, 2010, p. 167-212). Os estudos de Eduardo Paiva (2001), entre outros, chamam a atenção, ainda, para as possíveis conexões entre a devoção dos escravizados às entidades como Ogum, senhor do ferro e dos instrumentos de ferro, e Iemanjá, mulher de Ogum, a quem pertencia o ouro e a prata. No entanto, a associação entre técnicas de mineração e metalurgia e a demanda por escravos de determinada etnia africana, no caso dos “minas”, não parece ter-se dado de forma tão automática. Ocorre na medida em que se toma conhecimento do acúmulo de saberes desses grupos. Desse modo, circulavam pelo Arraial, um expressivo contingente de homens, africanos e mulheres de diversas etnias, acentuando a diversidade étnica, cultural, demográfica, o trânsito e intercâmbio de saberes, definindo, em boa medida, sua história, a produção e reprodução de conhecimentos e o perfil demográfico da população local. O papel e a relevância do trabalhador africano escravizado são enfatizados na historiografia econômica brasileira, especialmente, nos estudos sobre trabalho e sobre a produção de ferro em solo brasileiro. Segundo Douglas Libby, a [...] siderurgia da época era quase inteiramente dependente do braço escravo. Quando há informações acerca da mão-de-obra empregada,

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a predominância do trabalhador escravo — inclusive entre os chamados mestres fundidores — fica muito clara. [...]. Têm-se notícias de forjas que tiveram de fechar após a morte dos fundidores escravos, demonstrando que os donos, tal como seus antecessores de séculos anteriores, pouco ou nada entendiam da arte de fundir o ferro. (2003, p. 17)

Na mesma direção, estão os relatos de viajantes e naturalistas que circularam pelo Brasil e por Minas Gerais, tais como von Eschewege e os estudos de pesquisadores da Escola de Minas ao escreverem sobre a siderurgia. De acordo com os estudos de Paul Ferrand, Henri Gorceix e Bovet, a própria técnica empregada nas tendas advinha em grande parte dos conhecimentos africanos. Esses saberes traduzidos em conhecimentos técnicos, intelectuais e culturais, trazidos do Continente Africano que foram adaptados e largamente utilizados na América Portuguesa e apropriados pelos senhores em proveito próprio, também, foram fundamentais para a sobrevivência dos escravizados. Ao deixarem seus territórios, seus povos, grupos e familiares forçadamente e trazidos para diversas partes das Américas, tiveram de adaptar, aprimorar e ressignificar os saberes. Qual seja: compreender e dar novos sentidos às palavras, as coisas, às relações, às práticas sociais e religiosas, ritos e rituais. Saberes e heranças culturais que milhares de homens, mulheres e até crianças foram obrigados a trazer na única bagagem possível: o corpo, a mente e o coração. Uma vez que não lhes era permitido carregar seus pertences e objetos pessoais na longa travessia da “Kalunga Grande”. A travessia começava na África e terminava nas Américas. Entre os dois Continentes estava a Kalunga Grande, o hostil e indomável Oceano Atlântico. Nessa longa travessia, chegar em terra firme era uma incógnita, uma incerteza, devido às condições de insalubridade, doenças graves e contagiosas e maus tratos durante meses de cativeiro e a bordo nos porões dos navios sem condições higiênicas. Nesse sentido, a Kalunga Grande poderia ser o destino final para todos aqueles que não chegassem vivos ou em boas condições de saúde.

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A tradição dos tambores ainda resiste ao tempo em Morro do Pilar

A adaptação ao novo ambiente incluía, em um pri­ meiro momento, o aprendizado da língua portuguesa de maneira a ter condições de entender as ordens e bem executar as tarefas a que estava destinado e para o aprendizado da doutrina católica e de valores e traços da sociedade portuguesa. Segundo Liana Reis, “[...] a adaptação desses saberes e culturas à nova realidade foi fundamental para a sobrevivência

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e para abertura de espaços de negociação com os senhores.” (2006, p. 12). Espaços de negociação que possibilitaram a conquista da liberdade por meio de Cartas de Alforria que serviam de pagamento ou representavam um estado sob condição, como o caso dos escravos de Constança Fortunata de Abreu e Lima que viviam na histórica Fazenda Mata-Cavalo, área rural de Morro do Pilar.

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A Fazenda Mata-Cavalo — cenário e palco de histórias, de lutas e conquistas

historiografia sobre a escravidão, sobre alforrias e processos de liberdade, sobre vivência e experiência dos povos negros, nos últimos anos do sistema escravista e nos primeiros anos pós-abolição no

Graças à memória, o tempo não está perdido, e se não está perdido, também o espaço não está. Ao lado do tempo reencontrado está o espaço reencontrado ou para ser mais preciso, está um espaço, enfim reencontrado, um espaço que se encontra e se descobre em razão do movimento desencadeado pela lembrança.

Brasil e Minas Gerais, só foi possível graças a um alentado trabalho de pesquisa, realizado pelo professor Fábio Martins, professor do Departamento de Comunicação da UFMG, natural de Morro do Pilar, e pela professora Yone Grossi, do Departamento de Sociologia da PUC- Minas, no final dos anos oitenta e início de noventa.

(G. O. Poulet)

O Projeto intitulado Memória Histórica da Fazenda do Mata-Cavalo foi desenvolvido no âmbito do Grupo Para que fique ciente o leitor, este item teve como base e suporte documental os artigos referentes às pesquisas empreendidas por Fabio Martins e Yone Grossi sobre a Fazenda Mata-Cavalo e seus proprietários na década de 1980, uma vez que, devido a mudanças administrativas, toda a documentação histórica que se encontrava no Cartório do 2º Ofício de Conceição do Mato Dentro, foi para outros cartórios e arquivos do Fórum e, até o final desse trabalho, ainda não havíamos conseguido localizálos, seja para consulta, seja para transcrição. A história da Fazenda do Mata-Cavalo, localizada na zona rural do município do Morro do Pilar, faz parte da memória coletiva e histórica do povo de Morro do Pilar. Evidencia, ainda, a presença dos africanos e seus descendentes como sujeitos sociais e agentes históricos, parte integrante da formação social, cultural e histórica da região e das dificuldades de inserção social no período pós-abolição. No entanto, as histórias de liberdade, de conflitos, de relações de poder, de luta pela manutenção da terra e de exclusão dos negros alforriados e seus descendentes de uma série de direitos, vão perdendo força e foco em favor de um imaginário construído e reconstruído em torno da figura de Constança Fortunata de Abreu e Lima, proprietária da Fazenda Mata-Cavalo, no final do século XIX. Do ponto de vista acadêmico, a memória histórica da Fazenda do Mata-Cavalo, sua importância na

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de Trabalho “História Social de Minas Gerais no século XIX” do Centro de Estudos Mineiros – CEM/ FAFICH/ UFMG, sob o patrocínio do Ministério da Cultura quando era titular da pasta José Aparecido de Oliveira. A escrita da história dessa fazenda incluiu, além do levantamento bibliográfico, um trabalho de pesquisa documental em Arquivos Públicos e Particulares, Cartórios de Conceição do Mato Dentro e entrevistas com descendentes das famílias dos negros alforriados, de pessoas da região e familiares de exproprietários da fazenda na época. A utilização de diversas fontes documentais e métodos de pesquisa para reescrever a história dessa fazenda do século XIX e dos sujeitos sociais envolvidos nessa trama histórica — com atenção especial ao contexto sócio-político, às práticas sociais e às relações senhoriais dos anos finais do sistema escravista, bem como ao complexo processo social, às interações, disputas e conflitos entre grupos sociais, práticas sociais instituídas e instituintes, engendradas pelos diversos sujeitos nas primeiras décadas pós-abolição da escravidão, com questões e interrogações do presente — tem-se mostrado vigorosa e sensível o suficiente para fazer uma revisão de pressupostos até então cristalizados e que, durante longo tempo, funcionaram como verdadeiros entraves epistemológicos para o estudo da história do negro no Brasil.

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A história da Fazenda do Mata-Cavalo faz parte da memória coletiva e histórica do povo de Morro do Pilar

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Dos entraves epistemológicos, citamos a crença na anomia das estruturas familiares e sociais dos escravos e dos libertos e de seus descendentes; a ideia da despersonalização subjacente à violência do regime; a desconsideração dos processos de desenraizamento a que foram sujeitos os africanos na diáspora e, consequentemente, a afirmação do vazio cultural deixado pelas rupturas inerentes à escravização e aos processos sócio-históricos que engendram não só a exclusão social dos povos afrodescendentes, mas também, a um processo de invisibilidade e subalternidade na sociedade brasileira.

tendo, anteriormente, vivido no Serro e Conceição do Mato Dentro.

Essa nova perspectiva analítica e a interpretação histórica devem vir acompanhadas de um esforço empírico redobrado, capaz de apreender a vida e a vivência dos escravizados como sujeito social em sua complexidade. Nesse sentido, o uso de diversas fontes, especialmente, os inventários, testamentos, processos criminais, registros civis e paroquiais, amplia os horizontes da pesquisa histórica, assim como amplia as possibilidades de reinterpretar, rever, recontar e analisar aspectos da vida e da organização sociocultural não só dos escravizados, mas também, dos grupos egressos da escravidão.

A partir do século XIX, mais especificamente 1820,

Ao mesmo tempo, cabem alguns cuidados e atenção redobrada. Deve-se ter em mente que, ao lançar mão de fontes históricas que foram produzidas sob a égide de um Governo que tinha como um de seus objetivos o controle social, a disciplina e a repressão sobre os comportamentos de determinados segmentos sociais vistos como indisciplinados, indolentes e marginais, exige dos historiadores um esforço redobrado de crítica documental na busca de novas interpretações, enfoques e abordagens sobre o corpus documental selecionado, disponível em diversos arquivos.

posses, educado e de perfil conservador, como boa

A Fazenda Mata-Cavalo, situada no município de Morro do Pilar, pertencera a Antônio Francisco Soares. Segundo Antônio Vieira de Matos (1921), Antonio Soares, ao ficar viúvo, desgostoso com o falecimento de sua esposa, decidiu vender a fazenda,

um círculo de amigos influentes, ampliando sua rede

adquirida, então, pelo Dr. José Pereira de Abreu e Lima que veio para a região no início do século XIX, trazendo seus escravos do Arraial dos Córregos,

de Morro do Pilar, o Padre Anastácio Cardoso,

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A formação intelectual de José Pereira, médico e poeta, indica que era originário de família abastada. De modo geral, as famílias mais abastadas de Minas Gerais, interessadas na instrução de seus filhos, adotavam a prática de contratar mestres particulares para os estudos de primeiras letras ou mandavam seus filhos aos colégios no Rio de Janeiro e na Bahia ou em Seminários para depois enviá-los à Coimbra e a MontPellier onde prosseguiam os estudos superiores.

muitos desses filhos, cujos pais eram fazendeiros, comerciantes e militares passaram a estudar no Colégio Caraça (ANDRADE, 2001). Era costume das famílias da elite manter pelo menos um de seus filhos na Universidade de Coimbra, Portugal, no curso de Direito, em sua maioria, e, em MontPellier, na França, no curso de Medicina (VALADARES, 2004). A partir da instalação de Faculdades no Brasil, no século XIX, a maioria desses herdeiros passou a ser formado nas escolas de renome daqui. Dr. José Pereira de Abreu e Lima era um homem de parte da elite senhorial. Era um privilegiado, como seu irmão, Lucas de Abreu e Lima, como alguns outros poucos que detinham o saber e o letramento, em uma sociedade em que a maioria da população não sabia ler, nem escrever, mesmo entre os portugueses que para cá vieram. Era proprietário de diversos bens e escravos e, também por isso, detinha o poder econômico. Portanto, ele possuía todas as marcas de distinção, de privilégio e de poder na escala social. Como membro da sociedade mineira, Lima mantinha de relacionamentos por meio de alianças comerciais e uniões familiares com famílias ilustres e abastadas de outras regiões mineiras como, por exemplo, com o casamento de seu irmão Lucas com a irmã do Vigário cuja família era originária de Sabará. Tudo indica que possuía relações estreitas com representantes

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A Fazenda do Mata-Cavalo tem fundamental importância na historiografia da escravidão em Minas Gerais

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do poder religioso local, especialmente, com o Vigário citado e este com outros sacerdotes seus contemporâneos. Era pessoa influente em Morro do Pilar e adjacências não só pelo poder sacerdotal, mas também, pelos bens que possuía: uma grande casa, um rancho de tropas, uma fábrica de ferro e a Fazenda do Barroso (MATOS, 1921). Provavelmente, participavam do círculo de convivência do Dr. José Pereira, além de padres, advogados, militares de alta patente, fazendeiros e políticos influentes. Fazia parte daquele grupo da elite senhorial, chamada “nobreza da terra”, devia circular regularmente nos meios sociais e políticos da Corte, no Rio de Janeiro, não só pelo fato de ter recebido o título honorífico de Fidalgo Cavaleiro da Casa Imperial que era um título honorífico brasileiro, uma antiga herança da aristocracia portuguesa. Era concedido por decreto do imperador, em geral, a membros descendentes da pequena nobreza ou iniciantes na escala aristocrática. Como no Brasil, a rigor, não tinha os “nobres de sangue”, passou a ser uma honraria concedida aos súditos, ricos proprietários de que uma forma ou de outra prestavam bons serviços à casa Imperial, chamados de “nobres da terra”. A rigor, o Fidalgo Cavaleiro passava a fazer parte do séquito e corpo da nobreza brasileira, participando de solenidades de gala, integrando cortejos, recepções para o Imperador. Esse título costumava preceder à concessão de titulação nobiliárquica dos futuros barões e viscondes. Não só recebeu a comenda de Cavaleiro da Real Ordem do Cruzeiro pelo Imperador, mas também, porque se dizia amigo pessoal de D. Pedro II (idem, p. 8-11). A Ordem Imperial do Cruzeiro foi criada, em 1° de dezembro de 1822, por D. Pedro I para comemorar a sua Aclamação, Sagração e Coroação. Tornouse, então, a primeira ordem honorífica realmente

brasileira. Seu objetivo era premiar brasileiros e estrangeiros, sendo distribuída fartamente no dia da Coroação e Sagração de D. Pedro I. Aos agraciados foram cobrados emolumentos para o feitio da insígnia e o registro dos diplomas e a obrigação de fazer a doação de alguma jóia para formar uma espécie de pecúlio ou Caixa de Assistência destinada à manutenção dos membros pobres da Ordem ou daqueles que, por infortúnio, ficassem na pobreza. Fica evidente que José Pereira de Abreu e Lima, residente em Morro do Pilar, movia-se em um meio social em que conviviam famílias ricas, poderosas, ligadas a fazendas e à produção e fábricas de ferro, coronéis: pessoas que detinham títulos de nobreza, senhores de terra e de prestígio e, como tal, tratou de fazer seu testamento de modo a deixar registradas suas últimas vontades3. Em 3 de março de 1857, na então cidade de Conceição, atual Conceição do Mato Dentro, na época pertencente à Comarca do Serro, Província de Minas Gerais, José Pereira faz seu testamento4. A estrutura textual do testamento, naquela época, obedecia a determinados cânones: continham uma apresentação ou prólogo, o preâmbulo, as disposições espirituais, a distribuição do legado e as assinaturas das testemunhas. De um modo geral, eram indicados entre dois a quatro nomes testamenteiros de modo que, caso algum declinasse da tarefa, tinha sempre outro nome para ser designado testamenteiro. Na maioria das vezes, dependendo da condição financeira do testador, o testamenteiro nomeado que aceitava a incumbência era remunerado ou compensado de alguma forma. O prólogo incluía em primeiro lugar o (sinal da cruz) e a identificação do testador (nome, origem, filiação, estado conjugal e local da residência) e, a seguir, o preâmbulo religioso com a encomendação, a invocação dos santos de devoção, as considerações

3 Oriundo do latim “testamentum”, testamento configura-se como um ato destinado a testemunhar a vontade do indivíduo, um ato pessoal, solene, gratuito e revogável. Ato jurídico válido pelo qual alguém declarava suas últimas vontades e dispõe de seus bens para depois de sua morte. O testamento pode ser redigido de próprio punho ou por outra pessoa a seu pedido. Ao final das disposições, deve ser assinado pelo próprio testador ou pela pessoa que o escreveu. De modo geral, durante os séculos XVIII e XIX, o conteúdo dos testamentos incluía não apenas as disposições patrimoniais, mas também, as disposições dos legados pios e profanos. Em muitos casos, ao apresentar-se também como uma espécie de acerto de contas com o passado, era comum aproveitar esse momento para se fazer o reconhecimento do(s) filho(s) natural(is) ou ilegítimo(s). Havia, também, as chamadas cartas de consciências, instrumento utilizado pelo testador para mencionar alguma disposição em segredo ao testamenteiro. Seu conteúdo de caráter sigiloso tinha como um dos objetivos preservar a memória do testador e, ao mesmo tempo, solucionar pendências, dívidas de consciência, questões afetivas e de ordem moral mal resolvidas ao longo da vida. Essas cartas válidas legalmente, eram incluídas e “apensas ao testamento”. Ver: FREITAS, Maira de Oliveira. Inventários post-mortem: retrato de uma sociedade – estratégia patrimonial, propriedade senhorial, posses e enfermidades de escravos na Comarca do Rio das Velhas, 1780-1806. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG/PPGHIS, 2006. Dissertação de Mestrado. 4

Testamento, José de Abreu e Lima, Cartório 2º Oficio de Conceição do Mato Dentro, MG, na época da pesquisa realizada por Fabio Martins e Yone Grossi.

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A força dos negros ainda resiste no Bairro Santa Luzia

sobre o estado de saúde, sobre a vida e a morte e, por fim, a razão do testamento. Em seguida, faziamse as determinações e as disposições espirituais e cuidados para bem da alma como, por exemplo, a escolha da mortalha, do lugar da sepultura, indicação do acompanhamento ou constituição do cortejo fúnebre, número dos ofícios e missas com as respectivas intenções, custo de cada uma das cerimônias, legados de caridade e legados pios. O testamento ditado por Jose Pereira de Abreu e Lima, diante de testemunhas, foi registrado pelo Tabelião Francisco Honório dos Santos. Como homem cristão, preocupa-se com o corpo e com a salvação da alma. Como muitos de seus contemporâneos, e seguindo o cânone testamentário, também, manifesta suas preocupações com o destino de seu corpo após a morte. Assim, pede para ser sepultado envolto no hábito de São Francisco, na Igreja Matriz de sua freguesia. Além desse cuidado com o corpo, providencia a encomendação de missas para sua alma, pede que “se digam duzentas missas por sua intenção, com a brevidade possível”. Como vários de seus contemporâneos que viviam na região, Jose Pereira afirma em testamento que sempre viveu no estado de solteiro e, que nesse estado, por “fragilidade humana” teve duas filhas. Aproveita o testamento para se redimir e reconhece Ana Ignes e Constança Fortunata como suas filhas e herdeiras. No entanto, mesmo reconhecendo as duas

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filhas, não faz referência alguma à mãe. O concubinato e as relações transitórias foram frequentes durante todo o período colonial e imperial, o que contribuía, significativamente, para o aumento da prole considerada ilícita pela Igreja. Raros foram os ajuntamentos e ligações transitórias que não resultaram em filhos. E só mesmo uma rede de relações sociais e afetivas construídas ao longo do tempo poderia permitir que pais ocultassem a existência dos filhos ilegítimos até determinado momento da vida, utilizando-se, de modo inclusivo, de diversas estratégias para criá-los e, posteriormente, reconhecê-los seja em testamento, seja por carta de legitimação que necessitava de aprovação real por meio do Desembargo do Paço que era o tribunal superior de justiça do Império português sediado em Lisboa, muito ativo entre o século XVI e o início do século XIX, em virtude das intensas demandas das possessões ultramarinas. A partir de 1808, com a transferência da Família Real para o Brasil passou a funcionar no Rio de Janeiro. Finda a parte dedicada às questões religiosas no testamento, dava-se início às disposições materiais ou herança, com a enumeração dos herdeiros e legatários, a atribuição da terça, a repartição da herança, o pagamento e a cobrança de dívidas, a reserva de usufruto, a estipulação de encargos e pensões e a nomeação do testamenteiro. Ao final, faziam-se as indicações das testemunhas, do escrivão, do local e data.

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Segundo a legislação portuguesa, o testador poderia dispor da terça parte de seus bens, depois contemplar seus diretos necessários de acordo com a lei, da forma que melhor lhe conviesse. Isto porque, segundo Maria Lúcia Viveiros (2005), pelas antigas leis do reino, incluindo as Ordenações Filipinas de 1603, todo homem com 14 anos e mulher com 12 anos podiam deliberar livremente sobre a distribuição dos seus bens. No entanto, os testadores com herdeiros forçados ascendentes (pais, avós) e descendentes (filhos, netos) podiam legar apenas um terço de seus bens (terça). No caso de José Pereira de Abreu e Lima, em março de 1857, dispôs de sua terça beneficiando [...] seus escravos, isto é, aqueles a quem suas herdeiras julgarem dignos de liberdade, com a condição, porém, de só gosarem (sic) de suas liberdades depois da morte das referidas suas filhas e herdeiras. (GROSSI, 1991, p. 235).

José Pereira, ao dispor de uma terça parte do seu testamento, acena para os escravizados de sua fazenda Mata-Cavalo com a concessão de alforria, mas de forma condicional. Só obteriam a liberdade aqueles que fossem considerados merecedores por suas herdeiras. E, ainda, só poderiam gozar a liberdade depois da morte as duas filhas herdeiras. Seguindo a prática jurídica da época, Constança e Ignês contavam com um prazo de dois anos após o falecimento do pai para prestar contas em juízo da execução da testamentaria. Constança Fortunata vai, posteriormente, cumprir algumas das disposições testamentárias do pai, entre elas, a proposição da alforria aos escravos ao fazer seu próprio testamento em 1883. Nele, registra a disposição de deixar livre seus escravos, nomeando-os herdeiros dos seus bens após sua morte. Mais uma vez, os escravos da Fazenda Mata-Cavalo terão de esperar mais um tempo para usufruir o sonho de liberdade. A busca da liberdade para os diversos homens e mulheres,

que viveram a maior parte de suas vidas na Fazenda MataCavalo, começou com a promessa de liberdade registrado em testamento por José Pereira e só se concretiza, de fato, com a morte de Constança Fortunata em 1887, ou seja, um processo que durou trinta anos. Muito provavelmente, nesse intervalo de tempo, muitos escravos da fazenda morreram sem ter tido a possibilidade de usufruir dessa liberdade5, uma vez que existia uma alta taxa de mortalidade entre a população escravizada. Levando em consideração que a liberdade desses sujeitos esteve condicionada a uma série de eventos, quase todos alheios à vontade daqueles que seriam os principais beneficiários, não se pode falar na concessão dessas alforrias como uma dádiva dos proprietários da Fazenda Mata-Cavalo. Considerando o mérito como uma das condições para serem alforriados, “aqueles a quem suas herdeiras [Constança e Ignês] julgarem dignos de liberdade”, é de se supor o quanto tiveram de trabalhar, de amargar o “pão que o diabo amassou”, quantos suores e lágrimas, quantos medos, angústias, quantas humilhações; quantas vezes tiveram de engolir seco e reprimir gestos de fúria, de contrariedade, de sublevação; quantas simulações de afeto, respeito, subserviência diante do poder de vida e de morte, de prisão e de liberdade, concentrado nas mãos de seus senhores. Trinta anos esperando por um tempo que não passava, um fim que não chegava, anulando o desejo, a vontade de corpos e espíritos, alquebrados pelo tempo, de um tempo implacável. É bastante provável que devido a esse longo espaço de tempo para a efetivação dessas alforrias, alguns escravos acabaram sendo alforriados por outras vias em virtude de algumas leis que foram promulgadas a partir da segunda metade do século XIX como, por exemplo, a Lei Saraiva-Cotegipe, de 28 de setembro de 1885, mais conhecida como a Lei dos Sexagenários, que concedia a liberdade aos negros escravizados com mais de 65 anos que já não dispunham de força e disposição para continuar com as péssimas

As pesquisas recentes, no Brasil e em Minas Gerais, indicam que a prática de alforrias com o consentimento dos cativos era de suma importância para o bom funcionamento do sistema escravista. Existia uma alta incidência de manumissões no Brasil, uma das mais expressivas da América. A partir de 1850, com a Lei Eusébio de Queiróz, com a proibição de tráfico de escravos para o Brasil, lei que na prática só surtiu efeito a partir de 1870 em virtude da intensa fiscalização, o fechamento dos mercados de mão de obra de africanos comprometia, de certa maneira, as negociações em torno da liberdade dos escravos em diversas áreas no Brasil, demandando um rearranjo nas práticas de alforria. Na prática, quase não existia concessão de alforria gratuita. Em sua grande maioria, ocorria de forma condicional ou paga pelo próprio escravizado de determinada quantia em dinheiro ao seu senhor. Quantia que era negociada diretamente com o proprietário em relação a valor e a forma de pagamento. As práticas de manumissão foram, sem dúvida, a principal responsável pelo crescimento da população livre de cor ao longo da Colônia e do Império brasileiro.

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condições de trabalho no cativeiro. Poucos escravos chegavam aos 60 anos, tornando a lei, praticamente, letra morta. Apesar da Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, conhecida também como Lei Rio Branco — a lei nº 2040, aprovada pela Câmara e pelo Senado após intensos e calorosos debates entre conservadores e liberais — ser anterior a do Sexagenários e estabelecer que todo filho de mulher escrava nascido a partir da promulgação da nova lei seria livre, na prática isso não se efetivou. As crianças não ficaram livres, pois essa mesma lei determinava que essas crianças, chamadas de “ingênuos”, ficariam sob a responsabilidade do senhor da mãe para criá-lo, sustentá-lo até completar oito anos. Completado esse tempo, o proprietário poderia receber uma indenização do Estado Imperial que ficava com a incumbência de “cuidar” dessas crianças ou usufruir dos serviços delas até completarem 21 anos. De um modo geral, quase todos os senhores preferiam ficar com as crianças, dispensando somente aqueles que estavam doentes, cegas e deficientes físicos ou que tinham alguma outra dificuldade que limitassem sua condição de trabalho em vez de obter a indenização do Estado Imperial. As crianças, ao ficarem sob os cuidados do senhor, na verdade, continuavam a prestar serviços como escravos, com o agravante de que agora os proprietários se sentiam desincumbidos da responsabilidade de sustentar os filhos de seus escravos como antes. Agora, sob a argumentação de que essas crianças geravam encargos de manutenção, passaram a cobrar por isso. Desse modo, quando o “pseudo-liberto” atingia a maioridade, já estaria atolado em dívidas com seus senhores que alegavam ter investido muito em seus cuidados. A estratégia senhorial, para não perder mão de obra e nem ter despesas extras, era forçar os libertos a prestar serviços gratuitos até quitar as dívidas, o que continuava a manter uma relação de trabalho análoga à situação de escravidão vivida anteriormente, gerando uma pequena alteração nas relações de trabalho sem, no entanto, gerar mudanças no sistema econômico e na sociedade.

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A Lei do Ventre Livre, na prática, deixou as crianças negras, de certo modo, ainda mais vulneráveis, pois o que ocorreu, de fato, foi o aumento do índice de mortalidade infantil por conta do descuido, do descaso com os recém-nascidos, por parte dos antigos proprietários, o que colaborou para o alto índice de desnutrição, especialmente, na primeira infância. A partir da década de 1870, intensificaram os debates abolicionistas, a intervenção do Estado nas relações senhor/escravo. Embora a ação do Estado possa ser vista como o prenúncio da abolição e mudança de regime no Brasil, seus efeitos se deram a passos lentos devido à grande força dos senhores de terra como sustentáculo do regime imperial. Os processos de alforria eram negociados entre senhores e escravos de forma que o senhor pudesse obter maior lucro possível, daí o grande número de alforrias pagas e condicionais, identificadas nos testamentos, inclusive na região que abrangia a Comarca do Serro Frio, como no caso de José Pereira de Abreu e Lima e Constança Fortunata, caindo por terra algumas vertentes historiográficas que, mesmo partindo do suposto de que os escravos são agentes históricos, viam as alforrias apenas como concessão paternalista dos senhores. A história dos escravos da Fazenda Mata-Cavalo como sujeitos sociais evidencia outra face da moeda no processo de luta e resistência ao cativeiro. Importante lembrar que escravizado não se fez sujeito apenas quando procurou romper com a escravidão — por meio de fugas ou revoltas, por exemplo — mas também, quando conseguiu criar espaços de sobrevivência, isto é, situações cotidianas em que pode negociar a melhoria das condições internas ao cativeiro que possibilitasse condições de sobrevivência durante uma longa espera para obter a sua liberdade prometida, muitas vezes, durante anos por seus senhores, como no caso dos escravos da Fazenda Mata-Cavalo, no século XIX. Nessa perspectiva, é que, certamente, foi possível construir algumas formas de relações entre senhores e escravizados, como a construída com Constança Fortunata de Abreu e Lima, a mãe Tança, no interior da Fazenda Mata-Cavalo.

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Constança Fortunata de Abreu e Lima, filha reconhecida e legitimada por testamento pelo Capitão José Pereira de Abreu e Lima e de Inácia da Silva Campos, era uma mulher solteira, sem filhos, sem herdeiros. Embora o reconhecimento legal tenha vindo tardiamente, é de se supor que sua filiação era “pública e notória” devido à posição que

[...] todos os seus trastes de prata [...] e pedaço de terras de cultura, que estão além do rio e principia pelo espigão que vem do alto do Tejucal ao rio, divisando com terras dos herdeiros do finado Salvador Martins Correia, e outro pedaço de campos com poucas capoeiras, no lugar denominado Terra Quebrada, que divisa, por um lado, com Francisco Rofino Ferreira e, por outro, com o mesmo Francisco. (idem, p. 226)

ela e, também, o seu pai ocupavam naquela sociedade. Constança ao fazer seu testamento, em 8 de agosto de 1883, informa que seus pais e sua irmã Ignês eram falecidos e manifesta o desejo de ter seu corpo enterrado no Distrito de Morro do Pilar onde era sua freguesia, na Igreja Matriz, próximo de onde sua irmã Ignês havia sido enterrada. Assim com seu pai, José Abreu e Lima, deixa disposições referentes a questões de ordem espiritual, talvez, para se redimir de alguns pecados e obter a salvação eterna. Pede que celebrem “dois oitavários de missas”. Solicita que se “distribua aos pobres a quantia de cinquenta mil réis e mais cinquenta mil para consertos da Matriz” . 6

Seguindo a praxe e formalidades jurídicas em relação à feitura, leitura e aprovação de testamentos, o Tabelião recebe o documento lacrado. Como um documento público, abria diante de testemunhas para proceder a leitura, saber se estava tudo conforme a vontade do/a testador/a e sem elementos para contestação no futuro. Fazia-se a verificação do documento, levando em consideração se não continha rasuras ou borrões e se estava devidamente assinado por quem fez a redação, com as assinaturas das testemunhas. O testamento de Constança Fortunata foi lido e achado tudo conforme, foi aprovado pelo Tabelião Fernando José de Herédia. Após a aprovação, foi “cozido com

Segundo Yone Grossi e Fábio Martins (1991), a

cinco pontos de retrós preto e outros tantos pingos

testadora solicita que “essas providências devem ser

de lacre vermelho por banda, na Fazenda do Mata-

tomadas enquanto seu corpo estiver sobre a terra”.

Cavalo, em 8 de agosto de 1883.” (idem, p. 225).

Constança registra, também, em seu testamento, sua

Constança Fortunata de Abreu e Lima, dona da

última vontade:

Fazenda Mata-Cavalo, faleceu quatro anos depois,

Deixo todos os meus escravos livres como se de ventre livre nascessem e os instituo herdeiros dos meus bens, com a condição, porém, de ficarem morando, vivendo em sociedade nesta minha fazenda, sem poderem vender nem alienar, por qualquer forma e aqueles que assim o não fizerem não terão parte alguma e serão excluídos. (GROSSI, 1991, p. 232)

em 21 de agosto de 1887. Como dito anteriormente,

Além de seus escravos, Constança Fortunata

embora o porte da “carta” fosse um instrumento

beneficia ainda um compadre chamado Tenente Jorge

fundamental para assegurar a liberdade, sem ela

Benedito Ferreira. Deixa-lhe como herança,“pelos

não havia garantia dos direitos legais dos alforriados

bons serviços” prestados, o está delineado no trecho

como, por exemplo, o direito de receberem as terras

de seu testamento

da fazenda como herança.

sem ter herdeiros diretos, pois sua irmã Ana Ignês já havia falecido, institui e nomeia seus antigos escravos herdeiros da Fazenda Mata-Cavalo e suas extensas terras além de serem alforriados, pois, para que possam herdar as terras legalmente, não podiam continuar na condição de escravos. Nesse sentido,

6 Ver ARAUJO, M. L. V. Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica com os testamentos. Revista Histórica, São Paulo, n.6, out. 2005. Disponível em: http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/. Para a autora os testamentos ao longo do século XVIII foram-se tornando documentos cada vez mais complexos do que a forma original. Passaram a informar questões sobre a vida familiar do testador, suas devoções, suas prioridades espirituais, os anseios, receios, medos e segredos, alguns inconfessáveis em vida, mas que se poderia tornar um tormento quando chegada a hora da morte e, em muitos casos, praticamente faziam um balanço dos bens materiais para orientar a partilha dos bens. Entretanto, no século XIX, eles foram perdendo o caráter místico, tornando-se somente uma indicação pessoal para a distribuição de parte dos bens, mas não parece ser esse o caso do testamento de Constança Fortunata, redigido em 1883, nos moldes do século XVIII.

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Consta nos documentos assinados por Constança os nomes dos 43 escravos, homens e mulheres, casados e solteiros, beneficiados com a alforria e propriedade das terras da cobiçada Fazenda Mata-Cavalo. São eles: Antonio, Benigna, Bina, Bobaça, Branca, Brenato, Celestina, Cornélia, Custódia, Diniz, Elax, Emília, Ernesto, Etelvina, Faustino, Francelina, Felício, Generosa, Hipólito, Honório, Irene, Janoaria, João, Jose, Jose II, Josino, Justa, Lino, Margarida, Maizes, Maria, Mônica, Nuno, Patrício, Processo, Regina, Rita, Rofino, Rosalina, Sammuel, Sofia, Tito e Urbano. Essa “herança seria para os descendentes dos escravos até a quinta geração”. Entre esses contemplados, foi constatado que 4 eram viúvos, 27 casados e 12 considerados solteiros por não terem o estado civil declarado nos documentos7. Muitos deles, talvez, eram ainda crianças em 1857, quando faleceu o pai de Constança, prometendo-lhes a liberdade. Quando a recebem em 1887 já estão bem mais velhos. E, muito provavelmente, alguns dos que foram libertos ainda nem tinham nascido em 1857. Concretiza-se, por fim, o longo processo em busca da alforria para muitos desses homens e mulheres. Uma alforria “sob condição” é verdade, mas alforria. Diversos estudos sobre alforrias, no Brasil e especialmente em Minas Gerais, têm evidenciado essa questão. E as conclusões são praticamente unânimes: a de que a concessão “gratuita” de uma alforria “sob condição” constituiu-se muito mais em uma estratégia senhorial de poder e controle sobre trabalho e ação dos escravizados do que, de fato, uma demonstração de bondade ou um ato de generosidade por parte dos senhores de escravos. Katia Mattoso, ao estudar escravidão e as alforrias na Bahia, faz a seguinte observação: Será realmente ‘gratuita’, como gostam de escrever certos senhores, essa liberdade concedida sob a condição de o forro permanecer escravo enquanto vivos forem o senhor, ou seu filho, sua irmã ou qualquer dos outros membros da família? Na verdade, ela é paga muito caro, é sempre revogável e torna o escravo libertável ainda mais dependente, pois ele sabe que a menor desavença, um instante de mau humor,

pode pôr abaixo o edifício duramente construído de sua futura libertação. (1990, p. 184)

Nessa perspectiva, caminha a análise de Eduardo Paiva em seus estudos para Minas Gerais. Ao encontrar o mesmo tipo de situação nas Minas, observa que “[...] essa ‘gratuidade’ acabava sendo compensada com árduo trabalho, humilhações e discriminação”. Mas, ainda que sob condições, a alforria pode ter sido “[...] o feliz resultado de uma negociação cotidiana com o senhor.” (1995, p. 50). Mesmo “sob condição”, os diversos processos de alforrias evidenciam e reiteram o pressuposto de que a busca e a conquista da liberdade, pela maioria dos escravos, foi um processo de mão dupla. Diversas estratégias foram utilizadas, também, pelos escravos e escravas no processo de obtenção da alforria devido à importância atribuída a esse documento. A carta de alforria constituía uma espécie de “salvo-conduto” que possibilitava aos sujeitos transitarem livremente de um local a outro, cuidarem de suas vidas e dos seus. Em vista disso, a carta de liberdade, ou mesmo a “carta”, como era familiarmente conhecida, não só se traduzia em materialização da liberdade desejada e obtida, como também, constituía-se como o documento, efetivamente, capaz de distinguir os indivíduos forros dos escravos. Portanto, esta carta deveria acompanhar os libertos diariamente, até mesmo, para evitar que fossem presos por suspeita de serem escravos fugitivos. A “carta” possuía um sentido quase mágico, tal como afirmou Jean-Pierre Albert: a carta de alforria aproximava-se [...] aos amuletos que os escravos traziam consigo e no interior dos quais guardavam orações dedicadas a santos católicos ou trechos dos livros sagrados dos muçulmanos. (1993, p. 186).

Com a alforria e propriedade da Fazenda, com suas grandes porções de terra para a sobrevivência das diversas famílias ali instaladas, seria de se imaginar que esses africanos e seus descendentes teriam um destino bastante diferenciado da grande massa de ex-escravos na sociedade brasileira, especialmente, no período pós-abolição.

7 Dados levantados e transcritos do Testamento de Constança Fortunada de Abreu e Lima, em 1883, aberto em 1887 quando da feitura do inventário, pelos pesquisadores Yone Grossi e Fábio Martins. Ver GROSSI, Y. Constança do Serro Frio. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte , n. 73, p. 232, jul. 1991.

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Fazenda Mata-Cavalo dos Pereiras de Abreu: palco de conflitos, de mortes, lutas pela posse da terra e de exclusão dos negros

“Toda consciência do passado está fundada na memória. Através das lembranças recuperamos consciência dos acontecimentos anteriores, distinguimos ontem do hoje e confirmamos que já vivemos um passado.” (David Lowenthal)

Com a herança, em 1887, nasce uma nova geração de Pereiras de Abreu, agora de origem africana, proprietária da grande extensão de terras da Fazenda Mata-Cavalo. Não seria de admirar a cobiça que essas terras poderiam despertar em alguns, aliada, muito provavelmente, ao mal estar de que os negros ali, proprietários daquela fazenda e de grandes extensões de terras ao redor, estavam fora de lugar devido ao ambiente social reservado aos negros naquela sociedade e ao contexto socioeconômico da época. Antônio Vieira de Matos, por exemplo, ao se referir às famílias conhecidas e reconhecidas socialmente, todas nomeadas pelos sobrenomes, que viviam na região de Morro de Pilar, elencadas em uma longa lista e, ao final, refere-se aos proprietários da Fazenda Mata-Cavalo da seguinte forma: [...] há algumas outras, menos importantes ou numerosas – vg. (sic) de libertos, que trazem ou não os nomes dos antigos senhores; ou ainda de pretos (muitos), mulatos, cablocos, os Pereira de Abreu, libertos e numerosíssimos, que formão grande fazenda, deixada para eles em testamento do Dr. José Pereira de Abreu e Lima [...] são os Nuno, Patrício, Diniz, Donato, etc, que são hoje donos da fazenda do Mata Cavalo. (1921, p. 8-9)

Embora registrado em testamento, o desejo de Constança Fortunata de que seus herdeiros ficassem morando e vivendo na Fazenda em sociedade, sem nunca vender e nem alienar os bens, não vingou. Várias foram as frentes de lutas, os impasses, desafios

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e dilemas vivenciados por esses negros e mulatos na tentativa de obter condições de acesso aos novos direitos civis e políticos em um esforço de inserção na nova ordem econômica e social brasileira. A história dos negros da Fazenda Mata-Cavalo, segundo Yone Grossi (1991) é uma história que se rompe em vários pontos na medida em que interesses entram no cenário em jogo. A herança dos libertos será desafiada pelo desencadeamento de novas forças sociais. A liberdade alcançada com alforrias ou com o término da escravidão teve contornos e significados diferenciados para os ex-escravos tanto na área urbana como rural. O novo regime, apesar de todas as promessas, não chegara para democratizar a sociedade ou criar espaços para uma maior mobilidade social. Por suas características marcadamente oligárquicas, a República brasileira viera para manter intocada uma estrutura elitista, clientelista, hierarquizada e excludente. A mudança de regime político, que transformou súditos em cidadãos, não trouxe de imediato uma mudança de mentalidade na sociedade brasileira, contribuindo para uma inserção social do negro paradoxal e incompleta. O que levou Florestan Fernandes a afirmar A desagregação do regime escravocrata e senhorial se operou, no Brasil, sem que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema de trabalho livre. Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou qualquer outra instituição assumisse encargos especiais, que tivessem por objeto preparálos para o novo regime de organização da vida e do trabalho. [...]. Essas facetas da situação [...] imprimiram à Abolição o caráter de uma espoliação extrema e cruel. (1965, p. 29)

Sob o signo republicano, dá-se o processo de regulamentação das normas jurídicas relativas à propriedade da terra, revogando os últimos resquícios de uma legislação que frequentemente misturava o legal com o costumeiro. Ocorre, ainda, em finais do século XIX, o estabelecimento de impostos territoriais, tan-

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Foto: Ézio Goulart

Descendente de escravo, Zezinho Mata-Cavalo, foi uma forte presença na história de Morro do Pilar

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to no Rio de Janeiro quanto em Minas Gerais, mesmo que aparentemente permanecesse letra morta. Do ponto de vista das rendas estaduais e da restrição do latifúndio, comprometeram a posse da terra para alguns, a transmissão de heranças e manutenção de propriedades. Em muitos casos, serviu de instrumento para apropriação de terras alheias. Em se tratando dos herdeiros da Fazenda MataCavalo, a partir da década de 1930, há ocorrência de uma série de tensões, enfrentamentos e conflitos que se vão configurando como a construção de uma fina trama muito bem urdida e tecida para a tomada das cobiçadas terras cujo enredo final foi a perda das terras para uma fração da elite agrária da região naquela época, ou seja, as terras da Fazenda MataCavalo vão passando para as mãos de “fazendeiros poderosos da região”. Na análise de Yone Grossi ou de um Fábio Martins [...] os negros libertos e, seus descendentes tornam-se então, sujeitos de uma dupla herança: herdeiros da situação de escravidão que dificulta o acesso à cidadania, e da luta para reaver a terra. (1997, p. 9)

Segundo informações encontradas na pesquisa de Yone Grossi e Fábio Martins, os proprietários da Fazenda Mata-Cavalo e seus descendentes começam a perder suas terras, em dezembro de 1930, em função de uma ação executiva, movida contra Benedito Pereira de Abreu, para a cobrança de custas. Como não é apresentado embargo algum, procede à penhora de seus bens. Já morando na cidade de Morro do Pilar, Benedito Pereira não tinha meios para dispor da quantia de 473 mil réis para efetuar o pagamento devido e suas terras vão a leilão. Ainda, em dezembro do mesmo ano, novas terras da fazenda vão sendo penhoradas e postas em leilão. Em abril de 1932, as terras penhoradas, pertencentes a Manoel e Honório Nunes Pereira, foram vendidas ao advogado Oscar Silva. De novo em 1935, uma carta de arrematação, que foi extraída dos autos referente à ação executiva movida por Jorge dos Santos Pereira, foi passada a favor do mesmo advogado e perdem as terras: Benedito Raimundo Pereira de Abreu, Manoel Nunes Pereira de Abreu, Frederico Pereira de Abreu

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e Benedito Primo Pereira de Abreu. Constata-se, ainda, que, embora Jorge dos Santos Pereira fosse, também, descendente dos escravos de Mata-Cavalo, em conflito com os demais proprietários, move contra eles, uma ação executiva. Segundo Yone Grossi, no auto de penhora estão elencados os seguintes bens: [...] uma casa nova de vivenda coberta de telhas, com cinco compartimentos, sendo três assoalhados e dois térreos, com esteios de braúna, somente barreada, inclusive uma área de dois ou três litros mais ou menos, plantações de bananeiras, com uns pés de café, situada na Fazenda de Mata-Cavalo, município de Morro do Pilar, avaliada por 600 mil réis; um casebre muito ordinário, com bananeiras e pés de café; uma pequena área de terra, na serra, no lugar denominado Costa, distrito de Morro do Pilar, pertencente Manuel Nunes de Abreu. (1991, p. 229-230)

Com base nos dados e documentos levantados pela pesquisadora Yone Grossi e Fábio Martins (1989; 1991), as terras dos negros proprietários da Fazenda Mata-Cavalo leiloadas foram arrematados pelo Dr. Oscar Silva, advogado de Conceição do Mato Dentro e vendidas ao fazendeiro de Morro do Pilar, Sr. José Batista Ferreira (Inhôzinho), em 26 de fevereiro de 1941. Inhôzinho era filho do fazendeiro Teófilo Thomaz Ferreira (GROSSI, 1991; GROSSI; MARTINS, 1997). Em 1939, as terras adquiridas por Teófilo Thomaz, ao longo dos anos, foram sendo ampliadas e passaram a compor área de três fazendas: a da Laje, do Salvador e a do Mata-Cavalo que são herdadas pelo filho José Batista Ferreira (GROSSI op. cit.). Uma das netas do Teófilo Thomaz, D. Ana de Moura Thomaz Rodrigues, mais conhecida como Ana do Zé Maia, casada, depois de morar muitos anos em Belo Horizonte, passa a maior parte do seu tempo nas terras que herdou do seu pai, na área rural de Morro do Pilar, no Rancho Samora. Ela relata que, além de Inhôzinho, seu avô teve mais dois filhos: Marisinha e Joaquim, de quem é filha. Conta, em entrevista informal, de 19/03/2014, que as três fazendas foram divididas entre os três filhos de Teófilo, cabendo ao

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Joaquim de Aguiar Ferreira, seu pai, as áreas que compunha a fazenda Salvador. Ainda segundo D. Ana, as terras eram tão extensas que seu pai, mesmo tendo doze filhos, ao dividir a herança, aquele que recebeu a menor porção de terra foi agraciado com mais ou menos 90 hectares. Em 1941, ao comprar a outra parte das terras do Mata-Cavalo, do advogado Oscar Silva, providenciou a demarcação das terras. O fazendeiro Inhôzinho, tal como o pai Teófilo, foi ao longo dos anos adquirindo outras áreas de pequenos proprietários e lavradores negros que ainda viviam na região, ampliando, assim, suas propriedades até o ano de 1956. Em 1957, a Fazenda Mata-Cavalo, com o nome de Fazenda Cachoeira ou Bom Retiro, é vendida para Leandro Ordones de Castro. A partir de 1985, a fazenda já esteve nas mãos de vários donos (GROSSI op. cit., p. 227). De acordo com informações obtidas em entrevistas e encontro informais com moradores da região, durante o primeiro semestre de 2014, a Fazenda Mata-Cavalo, tal e qual se conhece hoje, sofreu algumas modificações, teve algumas partes reconstruídas e que a propriedade já pertenceu a Fernando Gomes, entre outros, e, no momento atual, o proprietário é um empresário de Belo Horizonte. Durante mais de vinte anos, as terras e áreas construídas da fazenda foi palco de lutas e reinvindicações, “sucederam-se conflitos judiciais, contestações e assassinatos pelas terras da Fazenda do Mata-Cavalo.” As pesquisas de Fábio Martins e Yone Grossi trouxeram à tona uma série de documentos referente às contendas, conflitos judiciais e assassinatos na Fazenda Mata-Cavalo. Traziam ainda a informação de que nos diversos cartórios da cidade de Conceição do Mato Dentro, cidade próxima a Morro do Pilar, existiam vários processos movidos tanto por negros quanto por latifundiários envolvidos na luta pela propriedade dessas terras. Chamava a atenção, ainda, para o Cartório do Crime onde se encontrava intrigantes processos sobre a questão. A documentação compulsada trouxe evidências de muitas histórias que até então só eram contadas pe-

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los descendentes dos Pereira de Abreu. De resto, foram as narrativas em torno da figura mítica da “Mãe Tança”, aquela que concedeu alforria aos seus escravos, deixando-lhes como herança a histórica fazenda, que ficaram como construção histórica na região. Para alguns dos antigos moradores da Fazenda MataCavalo, os tempos de lutas foram tempos difíceis, de muito medo. D. Maria de Jesus Pereira, de 102 anos, viúva, nascida e criada na Fazenda Mata-Cavalo, residente em Belo Horizonte, no Bairro Pindorama, filha de Alfredo e Idalina e neta pelo lado materno de Rita (negra alforriada pela Constança Fortunata) e Clarindo e, pelo lado paterno, de Vitória e Josino, pertence à 3ª geração dos Pereira de Abreu. Ela mantém viva, ainda hoje, a memória daqueles tempos. Em entrevista concedida em 30/08/2014, relata: Nós ficávamos lá era assustado, porque o pessoal de Conceição [do Mato Dentro] mandava a polícia ficar de plantão, para vigiar as pessoas, não podia nem entrar na propriedade dos outros. [...] o meu pessoal foi saindo de lá, uma saía de noite escondido, outros ficavam lá pro mato durante o dia e vinha em casa só para comer, mas ficava no mato. Fora não tinha sossego, não tinha sossego não. [...] foi indo, foi indo, os mais velhos foram acabando e os novos só queriam saber de cascar fora. Tinham medo.

D. Maria Pereira da Conceição, 72 anos, casada, nascida na Fazenda Mata-Cavalo, por lá viveu um bom tempo de sua vida. Aposentada, hoje, reside em Belo Horizonte. Ela, que é uma das filhas de D. Maria de Jesus, complementa o relato da mãe, Era uma terra que era da gente e a gente não tinha direito. E onde tinha uma terra melhor, se você fosse fazer uma plantação, se você fosse mexer ali era embargado. Eles não deixavam, então era assim! Pelo menos na minha época já era assim, na minha época quem estava lá era o Inhôzinho. Tinha lá uns capangas, que mandavam ficar vigiando os outros [...].

Ainda sobre esse período de tensões e conflitos, D. Tereza Maria Ferreira, na entrevista de 22/01/2014, em sua residência no Carioca, zona rural de Morro do Pilar, também relembra as histórias que seu pai contava:

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[...] eles passavam muita luta e depois disso eles foram lá, ajuntaram e mataram dois negros lá e, por isso, que eles ficaram muito tristes, né! Mataram dois negros e um ficou baleado. Foi um povo que entrou lá para tomar o terreno, aí eles pelejaram, pelejaram, mas não teve jeito. Na verdade, antes não teve crime, nem nada, é porque eles serraram madeira para vender, serravam nas mãos as tábuas para vender, para comprar as coisas, então, os que chegaram não queriam deixar eles tirarem as coisas [a madeira]. Era deles mesmo, mas os outros eram mais poderosos, não queriam que tirassem as madeiras [...]. Nós largamos a terra lá, muitos largaram lá sem vender, perdeu e aí ficou para aqueles poderosos que ficou lá, nós não vendemos, ninguém, quase ninguém vendeu, largaram, perderam a terra [...].

Mais conhecida como D. Tereza do Carioca, casada, 78 anos, nasceu e viveu muitos anos na Fazenda Mata-Cavalo. Filha de Maria Oscarina, que nasceu na Lapinha, e de Benedito Primo Pereira de Abreu, nascido e criado na Fazenda do Mata-Cavalo. Pelas histórias contadas, cotejadas com documentos, sabese que o seu pai foi um dos herdeiros que perderam as terras em uma ação executiva movida por Jorge dos Santos Pereira, também herdeiro, em 1935.

a estrada e viu o meu tio que se chamava Baiano, que levou ele de carro de boi até Conceição do Mato Dentro, onde teve recurso para cuidar dele. No outro dia, chegaram os guardas e levaram o pessoal [os mortos].

Também em entrevista de 30/08/2014, em sua residência em Belo Horizonte, D. Maria Pereira diz que as mortes na fazenda é uma questão dolorosa. Segundo sua narrativa [...] um tal de Morro do Pilar foi quem mandou! Foi em Conceição, juntou a polícia, esconderam em um lugar chamado Areias. Tinha um tal de Nuno que morava próximo a casa grande, com seu filho Diomedes. Ele foi um dos quer morreram. Ele tinha chegado, foi amolar uma foice para pegar um roçado e este tal de Morro do Pilar estava escondido na Areia com a polícia para pegar eles, para não deixar ele começar o roçado. Mas quando eles chegaram, morreram todos coitados. Lá no solo ficou o soldado que Diomedes deu a foiçada nele no pescoço. Ele também caiu por lá. [...]. Não teve justiça pra nada. Tudo isso só para ficar com a nossa terra, que eles falavam que o José Pereira não pagava os impostos da terra. Eles falavam que o Zé Pereira deixou a terra para nós [...].

Para outros descendentes, os conflitos e as mortes ficaram marcados na memória dos que vivenciaram e as gerações seguintes que ouviam as histórias como, por exemplo, Júlio César Viana Pereira, mas conhecido como Cecesar, 41 anos, nascido em Morro do Pilar, solteiro, funcionário da Prefeitura Municipal de Morro do Pilar, faz parte da 4ª geração dos descendentes dos negros da Fazenda Mata-Cavalo. Ele conta, também em entrevista concedida em 20/01/2014, em Morro do Pilar, na sede da Prefeitura, que ouviu dos antigos que

Essas histórias contadas de diferentes maneiras

[...] eles estavam lá todo mundo tranquilo e daí a pouco chegou multidão de gente de outro município, com armas e começou a atirar, matou várias pessoas, inclusive um tal de Nuno, Diomedes, José Francisco e João Viana que foram mortos lá. Então ficou um lá num cantinho com o pescoço cortado, bem quietinho para ninguém matar ele. Ele estava vivo, mas o pessoal achava que ele estava morto. [...]. Depois que tudo acalmou, ele caindo daqui e dali chegou em frente

República e mantém as marcas de distinção:

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demonstram que, apesar dos diferentes textos e contextos, ao largo de uma sociedade que se modernizava, os negros e seus descendentes vão sendo relegados ao seu próprio destino, desterrados em suas próprias terras, banidos de seus territórios enquanto lugar e enquanto espaços indentitários, pela força das armas e das leis que lhes eram desconhecidas. A antiga classe senhorial, agora elevada à condição de elite agrária, amplia seus poderes na Primeira o letramento, o saber jurídico e as relações clientelísticas que sempre podiam ser acionadas para a manutenção do status quo. A ideia, o acesso e alcance dos direitos estavam, ainda, atrelados a hierarquias, papéis sociais, conhecimentos e apropriações de saberes jurídicos e, quiçá, a categorias raciais e à definição de quem eram cidadãos!

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A Cerimônia do Fogo guarda o símbolo e a fé dos antigos morrenses

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Enredo final As histórias recontadas: o destino dos Pereira de Abreu da Fazenda Mata-Cavalo – narrativas, memórias, saberes, sabores e

um fator de grande peso para um político, porque ter a parceria dele aumentava muito a chance do sujeito ser eleito. Porque além das pessoas que moravam e trabalhavam na fazenda, tinha a família de todas essas pessoas que moravam em outras terras.

dissabores

Não existirá um verdadeiro porvir para a humanidade e não existirá um verdadeiro progresso, se o futuro não tiver um ‘coração antigo’, isto é, se o futuro não se basear na memória do passado. (Carmelo Distante)

Com a perda das terras, boa parte dos Pereira de Abreu e seus descendentes passaram a trabalhar como empregados nas terras que por algum tempo lhes pertencera ou nas fazendas próximas, como a Fazenda Salvador que fazia divisa com a do MataCavalo que, também, pertencera a Teófilo Thomaz e foi herdada pelo seu filho Joaquim Tomaz. Segundo Liliane Tomaz de Oliveira, bisneta de Teófilo Thomaz e neta de Joaquim Tomaz, o avô teve muitos que viraram trabalhadores na fazenda além de meeiros e até “[...] criou um armazém de troca onde os meeiros e terceiros que moravam na fazenda, aquele que plantava o arroz trocava pela mandioca [...] justamente por ter muitos agregados [...].” É o que nos diz Liliane Tomaz de Oliveira, 52 anos, nascida em Morro do Pilar, moradora no Rancho Samora, zona rural de Morro do Pilar, solteira, design de Móveis e Interiores, entrevistada em 28/01/2014, em sua residência. Também D. Ana Tomaz Rodrigues, mãe de Liliane e filha de Joaquim Tomaz, confirma a presença entre os trabalhadores da Fazenda Salvador de um grande contingente de pessoas oriundas da Fazenda MataCavalo. Liliane ressalta ainda o papel político do avô na região: [...] a palavra dele era lei, acho que a importância política que ele tinha é porque tinha também muitos seguidores. Então, estar, ter o apoio dele politicamente era extremamente importante. Era

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A política da primeira República manteve o sistema de dominação oriundo do período colonialimperial, constituída em torno de relações pessoais clientelistas, compadrio, reforçando o poder da elite agrária, agora, chamado de coronelismo. Era essa elite que dominava o país com a chamada política do café com leite. O povo pobre continuava na dependência dos favores do grande fazendeiro desde um serviço médico até a concessão de terras para a exploração de uma pequena roça no sistema de meação. Em troca, poderiam prestar alguns serviços ao coronel. Nessa perspectiva, as eleições representavam apenas um desdobramento dessas relações de favores materializadas no cotidiano dessas populações. Com o ritmo acelerado do desenvolvimento in­ dus­ trial entre os anos de 1940 e 1960, houve oportunidades para que vários descendentes dos negros da Fazenda Mata-Cavalo pudessem deixar a cidade de Morro do Pilar e migrar para outras cidades onde passaram a integrar-se no mercado de trabalho como assalariado. E, assim, foram se espalhando por várias cidades próximas a Morro do Pilar, tais como Serro, Diamantina, Conceição do Mato Dentro, Sete Lagoas, Lagoa Santa, Santa Luzia, Belo Horizonte, Pedro Leopoldo e Matozinhos. Atualmente, ainda é possível encontrar uns poucos descendentes dos Pereiras de Abreu vivendo na zona rural de Morro do Pilar e entre os que residem na área urbana, curiosamente, estão quase todos concentrados no Bairro Santa Luzia. Embora tenham se espalhado, conservam uma ancestralidade e história comum. As histórias e experiências vividas dos ancestrais vão sendo recontadas de geração em geração. Vários descendentes dos Pereiras de Abreu de diversas gerações, que foram entrevistados, recontaram histórias do cotidiano da Fazenda Mata-Cavalo, seja porque viveram, seja porque ouviram as histórias contadas pelos pais, pelos tios, pelos avós.

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Histórias vividas e recontadas: uma geração de saberes e descobertas identitárias

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[...] na época que eles moravam lá [Fazenda MataCavalo] a vida deles era mexer com couro, com o plantio de café, arroz, feijão, colheita em geral e viajavam para o sertão para poder vender uma parte da produção, para recolher dinheiro.

D. Tereza do Carioca, filha e neta de descendentes dos Pereira de Abreu, por exemplo, nos contou várias histórias que ouvia de seu pai, especialmente nos dias de chuva, quando ficavam reunidos esperando o tempo melhorar. Na entrevista que nos concedeu em 22/01/2014, em sua residência no Carioca, zona rural de Morro do Pilar, conta, ainda, que não teve condições e oportunidade de estudar, porque “era muita luta, nem professora tinha, era difícil ir à escola, era longe, a distância de uns 5 a 10km”, mas repete a história do José Pereira de Abreu e Lima e Constança Fortunata, contada por seu pai, como se estivesse lendo as páginas do testamento: Naquele tempo, o tempo do Zé Pereira velho, Zé Pereira era o que eles falavam que era como um rei, aí ele tinha duas filhas. Uma chamava Ana e a outra chamava Constância, e aí tinha os escravos. Todo mundo trabalhava lá com ele. Buscava lá as comidinhas. Tinha um lugar lá de fazer as comidinhas, pra todo mundo ir lá buscar, tinha as esposas deles, tinha as coisinhas para elas, mas para elas comerem alguma coisa lá, tinha de ir buscar [...] lá, na fazenda dele lá, eu me lembro que ainda tem o lugar lá! Nós moramos lá. Depois quando ele foi ficando mais velho [o Dr. Jose Pereira de Abreu e Lima] ele fez um testamento falando assim: ‘por minha felicidade tive duas filhas Ana e Constância, nenhuma delas [ele falava assim: que não era de mãe de pai, quer dizer, ele não era casado: tive duas filhas natural Ana e Constância]. Nenhuma delas são filhas legítimas, mas são filhas naturais, então deixo os meus bens que eu possuo, porque tudo o que era dele, era 1.800 alqueires. Era dele o terreno, deixo o meu bem, uma pela outra e em falta de uma e outra, fica com meus escravos. Assim ele morreu, aí morreu a Ana primeiro e ficou a

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Constância, que era chamada de mãe Tança. Aí quando ela foi ficando mais velha, ele contava [o seu pai] que ela tinha uma rapadura de ouro, tinha um caixinho de banana de ouro, tinha um saco de ouro em pó. Então entrou um povo lá, que disse que era para cuidar dela, e foi carregando aqueles trem. Esse trem está lá no Rio, mas não podia vender, porque está com a assinatura dele. E depois que ela morreu a Fazenda ficou sendo dos escravos. Eles podiam tudo. Depois teve um deles que falou: ‘eu preciso de um branco aqui e aí vendeu um pedacinho para um e dali foram vendendo. Um vendeu ali para um mais inteligente. [...] e foram vendendo, vendendo...

Ainda sobre a vida e o cotidiano da Fazenda MataCavalo, Júlio Cesar Viana, em entrevista concedida em 20/01/2014, em Morro do Pilar, na sede da Prefeitura Pereira, relata algumas histórias que ouviu de seus ancestrais: [...] na época que eles moravam lá [Fazenda Mata-Cavalo] a vida deles era mexer com couro, com o plantio de café, arroz, feijão, colheita em geral e viajavam para o sertão para poder vender uma parte da produção, para recolher dinheiro. Cada família lá tinha seu cantinho. O meu avô, ele tinha a parte de cima que era do meu avô Oscar e a mulher dele Oscarina e tinha a outra família que é o João Viana que era meu tio, e tinha também meu outro avô que chamava José Camilo [...] na época lá, os antigos contavam que quando na parte da tarde terminavam o serviço, a colheita, juntava a comunidade todinha e faziam aquela festança, matava porco, matava boi e faziam churrasco para as famílias. [...] Ao entardecer eles faziam essas reuniões e ficavam batendo catopé. Quem batia catopé eram o Nuno, José Viana, José Viana Filho, Antônio, Zé Diomedes e tinha também Joaquim Raimundo. Esse aí é

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uma parte da história que eu sei, do meu tio que ele contou [...] eu fiquei sabendo dessa história de uns anos para cá quando eu comecei a bater o catopé. E todos eles já morreram e agora quem mexe com o catopé sou só eu e mais um que mora ali em cima [...].

O catopé, ou catopés como é mais conhecido na região, provavelmente, tenha-se originado da tradição africana de reverenciar aos deuses do candomblé e ressignificados no Brasil. Em geral, os membros do grupo tornam-se intérpretes e transmissores de saberes a partir do momento em que herdam aspectos de sua cultura e recebem os ensinamentos dos ancestrais. Nesse ir e vir, vão reconstruindo memórias e identidades enquanto sujeitos socioculturais e representantes de um determinado grupo étnico. No universo cultural africano, a dança e a música ocupavam lugar de destaque para diversos grupos. O canto de louvação e de lamento sempre esteve presente durante a faina diária no campo e nos trabalhos coletivos, bem como nas festas religiosas. Poucos registros documentais foram encontrados sobre a origem das festas de agosto em Morro do Pilar quando se comemora a Festa do Rosário, São Benedito e a Festa do Divino. É de se supor que essas vivências e práticas culturais tenham sobrevivido não somente como uma das marcas identitárias da cultura negra na região, mas também, por expressar a existência de uma forte tradição oral “afrobrasileira” como ponto fulcral para a reconstituição da história local. Esses festejos religiosos e danças, com o passar dos anos, vão sendo incorporadas ao calendário cultural da cidade. Sobre as festas e as danças ensaiadas na Fazenda Mata-Cavalo, Júlio Cesar conta que [...] naquela época tinha festa aqui no Morro, descia aquela montoeira de gente lá do MataCavalo. Desciam todos para a praça e eles se encontravam ali. Faziam uma fogueira para esquentar o catopé para bater na hora do levantamento da bandeira, para acompanhar o reinado de uma casa para a outra, cantando as músicas do catopé, [...]. O catopé surgiu na minha vida porque só tinha pessoas idosas que

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tocava. Aí meu avô chegou perto de mim e de um rapaz com o apelido de Brechinha e disse: ‘vocês têm de pegar isso como lição de vida e levar para frente, porque nós já estamos indo e vocês são jovens, vão ficar. Vocês estão a fim de aprender?’ Aí nós falamos: estamos sim! Olha, as pessoas viam eles batendo, acha que é fácil, mas é super difícil.

Conhecidas e chamadas genericamente de batuques, as festas, músicas e danças de terreiro dos escravos negros no Brasil quase sempre foram objeto de descrições depreciativas e vistas com reserva e certa desconfiança pelas autoridades coloniais, sempre prestes a reprimir tais manifestações. A visão censora pode ser encontrada em várias referências documentais que, a partir do século XVIII, tendem a tornar-se mais frequente, uma vez que vai aumentando a participação de mestiços e brancos pobres nos eventos musicais dos negros tanto nas áreas mais urbanizadas quanto nas áreas um pouco mais afastadas. Há evidências de que essa participação popular torna-se motivo de crescente preocupação por parte das autoridades policiais que passam a coibi-las, temendo as desordens motivadas pelas danças chamadas batuques. No entanto, os festejos associados às Irmandades negras, marcadas pelos rituais do catolicismo, por festas e celebrações, os discursos e relatos dos cronistas tendem a ser mais brandos, benevolentes e vistos até com admiração. Segundo Paulo Dias (2001), [...] tratam-se de dois aspectos complementares da festa negra no Brasil: no terreiro, a celebração intracomunitária, recôndita, noturna, onde se reforçam, sem grande interferência ou participação do branco, os valores de pertencimento a uma matriz cultural e religiosa africana; na rua, a festa extracomunitária, em que o negro, através das danças de cortejo, busca inserir-se nas festividades dos brancos e ganhar certa visibilidade social, mediante a adoção de valores religiosos e morais da classe dominante.

A festa entendida como “forma de produção de identidade”, tende a assumir, especialmente nas últimas décadas, um papel relevante em muitas cidades brasileiras, sendo um instrumento de distinção e diferenciação, pois, segundo Fernanda

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Sanchez (2003), tal festa é um dos veículos que mantém atualiza e sintetiza a identidade.

Ah! Quando chegava em Conceição, nós íamos com eles. Já na hora que ele chegava no Boa Vista, eles esquentavam os tambores e baita e subia gente lá de cima para encontrar com a gente lá no alto!

Júlio César relata seu aprendizado com o avô e a importância dos tambores no Catopê. Eu principalmente levei anos para aprender a bater os três primeiros toques do catopé. Inclusive tem quatro instrumentos: são dois tambores maiores que é o José e Maria, o recoreco e a cuíca. A cuíca e o reco-reco sumiram, mas o Maria e José estão aí. O Maria que é o grande e José o menor. Só eu é que sei bater ele aqui na região atualmente. [...] Eu ficava ali no meio deles batendo catopé. A gente viajava para as cidades de Conceição, Serro. Depois eles morreram e nós tomamos a frente. Só que depois parou. Ninguém mexe, a não ser eu e o rapaz que mora lá em cima [...]. Os dois tambores são antigos, eles têm mais de duzentos anos os dois e ainda tem várias cantigas. Eu mesmo sei umas doze cantigas.

Paulo Dias (2001) confirma em seus estudos sobre a festa que:

Em várias sociedades africanas, o tambor constitui-

O menino pequenino com o que samba na cacunda, perguntei aonde vai, vou pró o zambe de Zombá, há quem zombe de zombá, não é coisa de zumbi, ai, ai, ai, ai, Menino pequenino com que samba na cacunda eu perguntei aonde vai, vou pro zombe de zombá, não é coisa de zumbi.

A associação dos tambores maiores com a mãe, comum na África, também é tradição em algumas Comunidades do Tambor do Sudeste. [...]. Nos candombes mineiros, o tambor grave chamase “Santana”— segundo a lenda, o tambor sobre o qual Nossa Senhora sentou-se; Santana é a genitora de Maria José, representando, portanto, a ideia de ‘mãe’.

Ainda sobre o Catopê e as festas na Fazenda MataCavalo e em regiões vizinhas, D. Maria de Jesus Pereira, durante a entrevista relembrou, também, algumas cantigas, dizendo que tinha uma assim:

se como um importante vínculo que conecta os homens entre si e estes às divindades. Ponto central das comunidades e suas forças, “arauto de soberanos e Orixás, ele próprio é de essência divina”. O tambor, por reunir a força vital dos três reinos da natureza — a do animal que lhe fornece o couro, a do vegetal que lhe dá a madeira e a dos minerais metálicos que fixam tudo no lugar — é um ser pleno de energia. E mais, a

Ou ainda Ô candinha na horta não come couve! Candinha na horta não come couve! Êiiiiiieie, ei ieieieie.

atribuição de nomes aos tambores, evidencia o status que têm como seres portadores de vida. Em muitos lugares, os tambores recebem nomes de batismo, especialmente, os maiores que fazem a marcação do ritmo da dança. Bastante comum em várias sociedades africanas, principalmente as matriarcais, há a associação do tambor maior com a mãe. D. Maria de Jesus Pereira, também, se recorda muito bem dos Tambores do Catopê, que ela chama de Caxambu. Vai relembrando, durante a entrevista concedida em 30/08/2014, em sua residência em Belo Horizonte, falando com calma [...] tinha dois tambores, um mais grosso se chamava Maria e o pequeno José. Mas quando eles afinavam aqueles tambores, minha filha! Saia gente de tudo enquanto era lugar para ver.

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D. Maria de Jesus Pereira, aos 102 anos, pode ser vista como monumento/documento, uma das principais guardiãs da tradição viva da Fazenda Mata- Cavalo e da presença negra na região. Nascida em setembro de 1912, conviveu com boa parte da primeira geração dos negros proprietários do Mata-Cavalo, todos conviviam com sua avó Rita e com o avô Josino. Alguns deles eram compadres de seus pais, alguns padrinhos de seus tios. Viu muitos casamentos serem realizados na Fazenda. Suas histórias desmitifica a áurea mítica criada em torno de Mãe Tança. Segundo D. Maria, alguns dos que viviam na fazenda falavam [...] que ela era muito ruim para alguns. Eles trabalhavam muito. [...]. Ela era a dona da Fazenda e tudo o que eles faziam naquela fazenda era para tratar dela. Era igual uma abelha rainha,

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A religiosidade é parte integrante da história de Morro do Pilar, entre elas, a festa de São Benedito é uma das expressões mais fortes na comunidade

todo mundo trabalhando para ela. Contavam que era uma mulher rica, o povo falava dos ouros, das jóias dela. As jóias eram trancadas a chave e que segundo eles ficavam enfiadas na algibeira.

Fortemente enredados na tradição oral, esse grupo de descendentes dos negros da Fazenda Mata-Cavalo foi elaborando, com o passar dos anos, uma visão de mundo de suas experiências vividas que têm na oralidade suas referências. Mais do que fontes inesgotáveis para a compreensão da inserção dos negros na sociedade brasileira a partir do período pós-abolição, representam o processo histórico de exclusão social e tudo que envolve a história e cultura negra no Brasil.

escravista no mundo a abolir o trabalho escravo de pessoas de origem africana, em 1888, após ter recebido, ao longo de mais de três séculos, aproximadamente, quatro milhões de africanos como escravos. Essa presença no Brasil deixou marcas visíveis nos

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afetam a população afro-brasileira. Os legados da diáspora africana aqui e no mundo podem ser reconhecidos, também, em práticas culturais diversas, abrangendo as religiosas e musicais que sobrevivem em comunidades urbanas, rurais e remanescentes de quilombos. Além disso, não se pode perder de vista os diversos saberes oriundos do continente africano e reproduzidos e ressignificados em vários lugares do mundo e que influenciaram e continuam a influenciar diversos povos e culturas. São histórias e saberes que podem ser transmitidos

Não se pode esquecer que o Brasil foi o último país

indicadores sociais que revelam as desigualdades que

para todas as gerações e que precisam ser apropria­ das como parte integrante da história de Morro do Pilar. Relembrando as memórias esquecidas ou desconhecidas, é possível contrapor a uma memória oficial em que a presença negra esteve sempre alijada da construção histórica.

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capítulo 6

Biodiversidade em Morro do Pilar ♦ Bernardo Machado Gontijo1 ♦

Q

uando se chega ao Travessão, em pleno coração do Parque Nacional da Serra do Cipó (PARNACIPÓ), uma das vistas mais bonitas do Estado de Minas Gerais é descortinada. Damo-nos conta de estar em plena encruzilhada de biomas e, caso direcionarmos nosso olhar para o sol nascente, observaremos um pequeno e tímido curso d’água em meio a dois enormes escarpamentos da Serra do Cipó, adornado por uma mata de galeria ainda incipiente e que segue em linha quase reta até se perder de vista entre os mares de morros de leste. Mares que um dia foram repletos de uma exuberante vegetação florestal: a grande Mata Atlântica brasileira. As belíssimas escarpas, a nossa esquerda, correspondem à ponta sudoeste do município de Morro do Pilar e aquele curso d’água, ainda pequeno, corresponde a uma das cabeceiras do Rio do Peixe, que marca o limite sul de nosso município com o vizinho Itambé do Mato Dentro, e que desaguará, mais adiante, no Rio Preto do Itambé, próximo à cidade, também vizinha, de São Sebastião do Rio Preto. A encruzilhada de biomas que se verifica no Travessão é, igualmente, uma encruzilhada de municípios dos quais quatro deles cruzam-se, de maneira caprichosa, naquele alçado do relevo que marca a separação entre a porção norte do PARNACIPÓ — onde estão Santana do Riacho a oeste e Morro do Pilar a leste — e a porção sul onde estão Jaboticatubas a oeste e o já citado Itambé do Mato Dentro a leste. Estes quatro municípios dividem entre si a parte mais protegida da Serra do Cipó, exercendo um papel essencial para a conservação das águas e da biodiversidade da região. Morro do Pilar é, portanto, um dos principais guardiões da biodiversidade da Serra do Cipó e, neste caso, do assim chamado “outro lado” da Serra. Diz-se “outro lado” pelo fato de a Serra figurar como um magnífico conjunto montanhoso tanto para quem chega da região oeste (como é o caso da maioria dos turistas que sai da região metropolitana de Belo Horizonte) como para aqueles que a conhecem pelo lado leste, o do “mato dentro”, especialmente, quando se percorre o trecho local da Estrada Real. A riqueza em espécies endêmicas, aquelas que só existem lá e são únicas em todo o planeta, foi fator primordial para a criação do Parque Nacional pelos idos dos anos oitenta do século passado. A singularidade desta biodiversidade, também, tem sido responsável pela criação de outras unidades de conservação que existem na região.

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Biólogo e Geógrafo, professor nos cursos de Geografia e Turismo no Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais.

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Canela-de-Ema – Da família das Velloziaceae, as Canelas-de -Ema são plantas típicas dos Campos Rupestres de Altitude, abundantes da porção oeste do município de Morro do Pilar

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Depois do PARNACIPÓ, foi criada, em 1990, uma Área de Proteção Ambiental (APA) que o envolve, formando uma zona de amortecimento de facto — a APA Morro da Pedreira. Mais áreas protegidas foram criadas tanto em Morro do Pilar como em municípios vizinhos e, bem assim, a criação de outras novas vai sendo cogitada. É sobre a biodiversidade única, protegida (e que se quer proteger), deste conjunto de unidades de conservação — que se revela como grande mosaico e corredor ecológico — de que iremos falar ao longo deste capítulo. Começaremos por Minas Gerais. Enfatizaremos, depois, a importância geográfica e ecológica da grande Serra do Espinhaço para nosso Estado. Em seguida, falaremos da Serra do Cipó que se constitui na extremidade meridional do Espinhaço. Finalizaremos com alguns elementos da biodiversidade do Morro do Pilar que realçam a importância de nosso município como guardião de parte da porção leste da Serra do Cipó.

Minas de Biodiversidade Baseado no artigo intitulado “Minas Gerais em Piemonte”, escrito por mim para a exposição realizada sob os auspícios da Secretaria Estadual de Turismo, em 2008, na cidade de Turim (Itália), este item aponta que o Estado de Minas Gerais é um microcosmo biodiverso que está inserido no macrocosmo da biodiversidade brasileira que é a maior do planeta. Se Minas são muitas, uma delas é a Minas da diversidade biológica, pois as condições ambientais para a manifestação da vida são facilitadas por suas características geográficas. Ademais, é o Estado mais alto do país, longe o suficiente do subtrópico frio do sul e da quente faixa equatorial do norte, afastado o suficiente do calor úmido do leste atlântico e não muito interiorizado, o que ameniza os rigores do verão quente do oeste interiorano. O clima mineiro tropical de altitude fornece o tempero ecológico ideal para que a vida se manifeste

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de uma forma extremamente variável e rica. Devido à variação de clima tropical, a chuva tem data marcada para cair, geralmente, a partir de outubro, e tem hora certa para acabar a partir de março e abril. Em função de estações assim bem marcadas, os seres vivos adaptam seus ritmos de vida e encontram as melhores soluções de sobrevivência. As chuvas bem marcadas sobre a grande extensão de terras altas fazem com que a água seja absorvida em grande quantidade e liberada sob a forma de uma infinidade de nascentes que irão alimentar, pelo menos, cinco grandes bacias hidrográficas. Minas Gerais é um Estado mediterrâneo, separado dos outros por cadeias de montanhas como a Mantiqueira e o Caparaó ou pelos rios que nascem em suas terras altas: o Grande, o Paranaíba e o Carinhanha. Na Serra da Canastra, nasce o São Francisco, o maior rio interiorano do país. Em Minas, também, nasce, se é que se pode dizer assim, a mais extensa cadeia montanhosa do país, a Serra do Espinhaço que é a espinha dorsal e o elo dos quatro biomas do Estado. Do alto da cadeia, vislumbra-se, ao virarmos para o poente, as grandes extensões preenchidas pelos Cerrados. Olhando para o nascente, a visão é dos mares de morros cobertos pela Mata Atlântica, algo que se conjectura desde o Travessão da Serra do Cipó. Já no limite norte do Estado, quando o Espinhaço perde altura ao entrar no Estado da Bahia, é a Caatinga que preenche seus espaços. Por fim, o Espinhaço também abriga os particularíssimos campos rupestres sobre quartzito e os praticamente únicos campos rupestres sobre canga ferruginosa. É desta grande encruzilhada ecológica que surge um universo de nichos, hábitats e ecossistemas que acolhem uma flora e uma fauna rica e diversa, destacando-se no panorama da biodiversidade nacional. O Cerrado — savana brasileira — ocupa a maior porção do território mineiro, cerca de 60%. Preenche grande parte da depressão do São Francisco, além dos chapadões do norte, noroeste e do triângulo mineiro. É rico em biodiversidade, pois apresenta

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Dois exemplares da biodiversidade faunística de Morro do Pilar: A Perereca-das-Pedras (Hyla alvarengai, Anphybia - Hylidae) e a Onça Parda ou Suçuarana (Puma concolor, Carnivora - Felidae)

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várias fisionomias que vão desde os campos cerrados até os cerradões, verdadeiras florestas de árvores retorcidas em meio a um tapete graminoso que serve de alimento à fauna, igualmente, biodiversa. Marcado pela sazonalidade e pelas limitações ecológicas de seus solos ácidos e aluminizados, o Cerrado sofre com a falta d’água no inverno, porém, explode em vida quando as chuvas começam a partir da primavera. Observa-se, então, uma profusão de frutos e frutas que alimentam não só as populações da região, mas também, a biota animal, eclética e exuberante, que abrange desde grandes mamíferos (como o tamanduá, o tatu, o veado campeiro, o loboguará e os felídeos) até insetos, répteis, anfíbios e a multiplicidade de aves. Na Mata Atlântica, em especial na floresta estacional semidecidual mineira, a biodiversidade é exuberante. Por ser mais interiorana que a Mata Atlântica litorânea, a floresta estacional semidecidual mineira sente a falta de chuva no inverno e algumas de suas árvores perdem suas folhas. Contudo, os ventos úmidos do oceano Atlântico são suficientes para manter a exuberância desta região mineira que se estratifica em um, dois ou até mais de três andares que sombreiam e mantêm a umidade do sub-bosque. Nessas matas pontificam os jequitibás, perobas e vinháticos, testemunhos de uma longa história de ocupação vegetal. A Mata Atlântica preenche os veios dos rios, suas nascentes e seus cursos. Temos aí, então, as matas ciliares e de galeria. As matas, também, sobem as encostas dos morros e serras, diferenciando-se na medida em que os patamares altimétricos vão elevando-se e constituindo as matas submontanas, montanas e altimontanas. A Mata Atlântica que, por fim, penetra, desde o leste, o território mineiro adentro, abrigando uma rica fauna de vertebrados e invertebrados em constante interação entre si e com as plantas, confere a esta região mineira uma das maiores densidades de diversidade de espécies do planeta. O norte mineiro, por sua vez, testemunha a transição

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do Cerrado do planalto central brasileiro com o sertão nordestino onde está alojada a Caatinga. Trata-se da vegetação que consegue suportar a irregularidade das chuvas e o calor do verão. Mais do que a pouca chuva, é a incerteza de sua chegada que faz com que a Caatinga se apresente de uma forma rude. Mesmo constituindo-se em um aspecto áspero, que revela as adaptações que as plantas encontram para suportar o imprevisto de uma estiagem prolongada, explode em verde diante das primeiras chuvas. As soluções para a reserva de água e energia aparecem na variedade de cactáceas, nas raízes de suas árvores, nos bulbos de suas orquídeas e nas folhas de suas bromélias, todas conferindo um perfume intenso como poucos ecossistemas revelam. E, diante dos rigores do clima, as plantas ainda servem como base de uma cadeia alimentar para os grandes mamíferos, onipresentes na paisagem mineira. Base de uma complexa rede de vida, as plantas sentem, entretanto, não sucumbem à falta d’água. Finalmente, aqui ocorrem os Campos Rupestres de altitudes que se constituem em verdadeiros tapetes vivos que revestem os afloramentos rochosos de suas altas montanhas. São rupestres pelo fato de conviver com as rochas que afloram, pois que resistiram à erosão do tempo. O material que sofreu erosão preencheu as grandes planuras dos Cerrados e das Caatingas ou foi preencher os terraços aluviais que acompanham os rios que permeiam os mares de morros da Mata Atlântica. Ficaram os quartzitos do Espinhaço e as cangas ferruginosas do Quadrilátero Ferrífero. E todas as rochas foram cobertas por uma vegetação sui generis que se constitui em um dos ambientes com maior número de endemismos do país, ou seja, de plantas que só ocorrem nesta região. A vegetação suporta os rigores e limitações das alturas: pouca água, ventos constantes, solos pobres ou quase inexistentes, temperaturas mínimas nas madrugadas e altas no meio do dia. Eis os verdadeiros crivos ecológicos que fazem com que permaneçam formas de vida únicas e raras. Daí, portanto, resultam os endemismos. Gramíneas, sempre-vivas, orquídeas, velózias, bromélias, plantas únicas que comportam uma fauna exclusiva: insetos e pequenos vertebrados igualmente endêmicos.

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Detalhe do dossel da Floresta Estacional Semidecidual, remanescentes de Mata Atlântica que ainda estão presentes na porção oriental do município de Morro do Pilar. Percebe-se que algumas árvores perdem a totalidade das folhas na estação seca

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No nosso entender, os campos rupestres de altitude do Espinhaço Mineiro constituem-se em um dos quatro grandes biomas do Estado e possuem uma importância que vai muito além do mero arranjo florístico/fitofisionômico. Trata-se de uma paisagem grandiosa, profundamente gravada no imaginário mineiro, uma vez que acompanha nosso histórico de conquista mineral, pois está associada ao magnífico embasamento quartzítico, seja ele mais silicoso (como no caso do Espinhaço), seja ele mais ferrífero (como no caso do Quadrilátero Ferrífero e de algumas pequenas manchas em Morro do Pilar). A história das “minas gerais” passa, necessariamente, pelos seus campos rupestres. Como as maiores áreas contínuas de campos rupestres, em Minas, localizam-se na grande cordilheira do Espinhaço, é sobre esta que falaremos a seguir, pois Morro do Pilar encontra-se, de maneira caprichosa, abrigado em suas escarpas de leste e orgulha-se em pertencer à Reseva da Biosfera da Serra do Espinhaço, o que atesta, mais uma vez, a importância e a relevância de sua biodiversidade.

A Cadeia do Espinhaço Biodiversidade

sob a ótica da

Neste item, faço valer um artigo meu, intitulado “Uma geografia para a Cadeia do Espinhaço”, publicado na revista Megadiversidade (2008) para dar ênfase a uma das grandes questões que saltam aos olhos quando se fala da Cadeia do Espinhaço. Refiro-me à existência de uma grande biodiversidade em meio a um ambiente, aparentemente, limitante em termos ecológicos. Para além de sua geologia, que possibilita a ocorrência de um conjunto de feições geomorfológicas marcantes na paisagem, a Serra do Espinhaço é um grande divisor de biomas e, o sendo, vamos contextualizála geograficamente. A geologia singular da Serra do Espinhaço é o elemento definidor de seu esqueleto fisiográfico sobre o qual o clima atuou (e ainda atua) no sentido de modelar o relevo e definir a hidrografia. Em relação ao relevo e à hidrografia, os

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solos e a biota vêm interagindo-se e condicionandose mutuamente. Considerando o aspecto regional, o Espinhaço Meridional surge como um grande divisor de biomas e comporta em si um daqueles quatro biomas mais significativos da paisagem mineira. A bacia do rio das Velhas, na encosta ocidental do Espinhaço Meridional, invade o Cerrado mineiro; a encosta oriental do Espinhaço Meridional detém o avanço do “mato dentro” ao longo da bacia do rio Doce. Aludi-se, aqui, ao mesmo “mato dentro” que batizou os municípios próximos a Morro do Pilar — Conceição, Itabira e Itambé que são testemunhas da grande floresta estacional semidecidual, versão mineira do bioma da Mata Atlântica, como já foi dito anteriormente. Estamos diante de um mosaico fitofisionômico e florístico que imprime, na paisagem daquela serra, um de seus grandes fascínios — o que está refletido em suas vertentes ocidental e oriental — que definem as transições altitudinais, ora entre campos rupestres e Cerrados (bacia do São Francisco), ora entre campos rupestres e Mata Atlântica (bacias de leste), ora entre campos rupestres e Caatinga (latitudes menores). As interfaces com a Mata Atlântica, perceptíveis no município de Morro do Pilar, dão-se na medida em que a vegetação mais densa penetra pela encosta oriental. Persistente, vai ao longo dos cursos d’água (matas ripárias ou de galeria) e, também, se instala nas depressões geológica e geomorfologicamente favoráveis do altiplano da serra (capões de mata). Este mosaico de biomas acaba por produzir um grande mosaico de biodiversidade, pois a concentração de ecótones propicia uma profusão de alternativas ecológicas de adaptação. Soma-se a isto a posição geográfica da Serra do Espinhaço que corresponde àquele alinhamento montanhoso nortesul, relativamente interiorizado em relação ao litoral brasileiro, em uma distância curta — o suficiente para ainda sofrer os efeitos orográficos da penetração das massas tropicais atlânticas quentes e úmidas — e em uma distância longa o suficiente para confinar as grandes formações abertas do sertão brasileiro.

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Exemplar da Canela-de-Ema Gigante (Vellozia gigantea, Velloziaceae), endêmica dos Campos Rupestres de Altitude do município de Morro do Pilar

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É no final do período de maior deficiência hídrica que ocorre um grande número de queimadas na região, o que, em grande medida, reflete em uma série de adaptações morfológicas nas plantas que possibilitam a sobrevivência ao fogo. A grande pressão ecológica do fogo sobre os campos rupestres define, até mesmo, muito de sua composição florística (GIULIETTI et al., 1987). As queimadas são comuns na serra e não é raro o testemunho de habitantes da região sobre incêndios que duram dias para cobrir grandes áreas de escarpamento quartzítico. As formações florestais, por sua vez, sofrem influência tanto do regime climático quanto da litologia e da geomorfologia. A presença da água, ao longo da grande quantidade de cursos d’água que drenam as vertentes orientais da serra (as cabeceiras do rio Santo Antônio, no caso, de Morro do Pilar), e a relativa proximidade oceânica oferecem níveis de umidade suficiente para sustentar o que,

consta na primeira edição (COSTA et al., op.cit.), é bastante elucidativo e resume bem muito do que aqui foi enfatizado sobre a importância ecológica de todo o conjunto: A Serra do Espinhaço, de notável relevância, destaca-se no cenário nacional e internacional, pois além de abrigar nascentes de diversos rios que drenam para diferentes bacias, constitui uma área ímpar no contexto mundial, no que se refere à formação geológica e florística. Apresenta extraordinário grau de endemismo de várias famílias de plantas e é considerada o centro de diversidade genética das sempre-vivas. Nela se concentram cerca de 80% de todas as espécies de sempre-vivas do país e cerca de 70% das espécies do planeta. A Serra abriga, ainda, 40% das espécies de plantas ameaçadas do Estado. Esses fatores, aliados à sua importância como eixo de migrações pré-históricas, justificam a recomendação de criação de uma Reserva da Biosfera que englobe todo o maciço do Espinhaço. Para viabilizar essa proposta, o Estado deverá requerer ao Programa “Man and Biosphere – MAB”, da UNESCO, a criação da reserva.

originalmente, consistiu na grande massa florestal da nossa Mata Atlântica. Cobrindo os mares de morro, assim chamados por Ab’Saber, aquelas florestas cobriam uma extensão mais dilatada no leste mineiro, chegando às encostas da vertente leste do Espinhaço. A Serra do Espinhaço prossegue ainda desconhecida em grande parte de sua extensão, especialmente, se considerarmos seu elevado grau de endemismos. Ou seja, cada um de seus grotões permanece como alvo potencial de investigações mais aprofundadas, notadamente, em um momento em que os estudos da biodiversidade de Minas Gerais ganham fôlego e nos quais se incluem os trabalhos da Fundação Biodiversitas (COSTA et al., 1998; MENDONÇA; LINS, 2000; DRUMMOND et al., 2005). Nas duas edições dos atlas para a conservação da biodiversidade em Minas Gerais (COSTA et

A Reserva foi, de fato, criada em 2005. Em seu grande território, o município de Morro do Pilar encontra-se totalmente contido, atestando ainda mais a importância de se conhecer e proteger a sua biodiversidade. Ao lançar a Serra do Espinhaço como importante patrimônio ecossistêmico a ser olhado e cuidado com o carinho que merece, a Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço (RBSE) acabou por englobar, também, o Quadrilátero Ferrífero. Fato que resgata, de alguma forma, as concepções originais de Eschwege e Derby, naturalistas geólogos que pesquisaram a Serra do Espinhaço no século XIX. Embora um “pecado geológico”, trata-se mais da materialização espacial de uma (boa) ideia conservacionista: quanto mais áreas estiverem incorporadas a nossa RBSE, mais chances teremos de proteger nossa biota.

criação urgente de (mais) Unidades de Conservação

A RBSE pode ser considerada como sendo um grande mosaico de unidades de conservação e de outras áreas protegidas. Quanto mais se buscar a demarcação e criação de novas áreas, bem como a recuperação de outras, mais rapidamente serão atingidos os objetivos da criação da RBSE, uma vez

(UCs). O texto referente à Serra do Espinhaço, que

que áreas isoladas são mais eficazes ecologicamente

al., op.cit.; DRUMMOND et al., op.cit.), a Serra do Espinhaço, na porção mineira, aparece como uma das áreas prioritárias de conservação, com importância biológica especial cuja área demanda a

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Comunidade de indivíduos do gênero Actinocephalus, uma variação de Sempre-Vivas que até pouco tempo atrás eram conhecidas como Paepalanthus

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quando localizadas próximas ou lindeiras a outras. Assim, grandes corredores ecológicos podem ser efetivados, garantindo o fluxo gênico e a perpetuação de algumas espécies endêmicas da região.

que fala da antiguidade de seu isolamento, restrita como está ao alto das serras isoladas, verdadeiras ilhas no planalto brasileiro, únicos pontos onde se encontram as condições geo-climatológicas (sic), razão de sua existência [...]”.

A região da Serra do Cipó, por sua vez, está inserida na parte sul da RBSE, ao norte do Quadrilátero Ferrífero, e, também, pode ser considerada um mosaico de áreas protegidas. A âncora desse mosaico é, sem dúvida, o PARNACIPÓ. Próximos a ele, uma série de outras áreas protegidas vêm sendo criadas. E Morro do Pilar tem somado esforços nesse mutirão preservacionista. Vamos fazer, então, uma rápida jornada por sua bela paisagem.

Os isolamentos montanhosos aos quais o professor Aylthon Joly referiu-se, naquela época, podem ser contrapostos aos isolamentos que, hoje, as unidades de conservação representam na paisagem degradada do planeta e, evidentemente, do Brasil e de Minas Gerais. Ele chamou a serra de “jardim do Brasil” e os desdobramentos de seu trabalho implicaram o lançamento da âncora protecionista que passou a significar a existência de uma UC de proteção integral em ambiente único. Joly morreu prematuramente, porém, o levantamento florístico prossegue até os dias de hoje (GIULIETTI et al., op.cit.).

A Serra do Cipó e suas múltiplas faces Atravessada por exploradores, colonos, naturalistas, tropeiros, romeiros, pesquisadores, empreendedores e, hoje, por turistas, a Serra do Cipó continua exercendo um fascínio único, resultante de sua biodiversidade exclusiva. Saint Hilaire, Langsdorff e Von Martius já haviam atestado isso na primeira metade do século XIX. Naturalistas mineiros, como Álvaro da Silveira (1908) e Mello Barreto (1935) também o fizeram ao longo da primeira metade do século XX. A partir de meados dos anos 60 do século passado, entretanto, um novo ritmo de revelação da biodiversidade da região passou a ser experimentado. A biodiversidade passou a ser redescoberta por pesquisadores paulistas que foram capitaneados pelo professor Aylthon Joly. O referido professor estabeleceu um ritmo de prospecção e coletas que acabaram por recolocar a serra no mapa da biodiversidade planetária, pois ocorreu um percentual inédito de descoberta de espécies endêmicas. Joly contava com a colaboração de pesquisadores e pós-graduandos da Universidade de São Paulo, Universidade de Campinas e do Instituto de Botânica de São Paulo. Em relação aos campos rupestres, Joly, apesar de ter publicado apenas em 1970, escreveu, afirmando, em 1969, “[...] que não há na flora brasileira outra associação, com tal índice de endemismos, [...]

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Temos de realçar a importância de Morro do Pilar como guardião de significativas fatias da Serra do Cipó, do Parque Nacional que leva seu nome e da APA Morro da Pedreira. A Serra do Cipó comporta particularidades que podem ser percebidas a partir da análise de seus componentes históricos e pré-históricos, geográficos, sejam eles físicos ou humanos, e biológicos. A litologia define as características pedológicas da região uma vez que fica claro o contraste entre as limitações ecológicas impostas pelos solos arenosos e quartzosos dos topos de serra e pelos solos eutrofizados das áreas limítrofes. A cobertura vegetal revela-se, então, fortemente marcada pela litologia e pela forma dos campos de altitude que serão rupestres na medida em que estiverem associados aos afloramentos rochosos (necessariamente presentes por serem seus definidores nos topos da Serra). De acordo com, por exemplo, Giulietti, a fisionomia dos campos rupestres da Serra do Cipó é uniforme. A uniformidade mantém-se ao longo da cadeia do Espinhaço, porém, a continuidade é quebrada pela presença de manchas de cerrado e matas de galeria e de encosta e, também, pelos capões de matas. Menezes e Giulietti (2000), destacando a riqueza florística dos campos rupestres da Serra do Cipó, registraram a presença de 1590 espécies (de um total

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Trecho de uma Vegetação Ribeirinha (Floresta Ombrófila Densa Aluvial), também conhecida como Mata Ciliar, no qual se observam briófitas (Musgos), Pteridófitas (Samambaiaçus) e diversas Fanerófitas (Árvores de grande porte)

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de 149 famílias) em uma área de, aproximadamente, 200km². Além disso, chamam a atenção para o elevado índice de endemismos da flora local, fato já constatado por Aylthon Joly desde os anos 60 do século passado. Os botânicos enumeram um grande número de famílias de plantas, mas, aos olhos dos leigos, destacam-se na paisagem as “canelas-de -ema” (Velloziaceae), as “parasitas” (Orchidaceae

Enquanto as matas ripárias “[...] ocupam estreitas franjas ao longo dos riachos que drenam os campos rupestres, alargando-se aquém da cota de 1000 m.” (MEGURO et al., 1996b); os capões “[...] formam pequenas manchas nas proximidades dos topos arredondados e encostas suaves das serras e, à jusante, fundem-se, muitas vezes, com as florestas presentes nas íngremes vertentes dos anfiteatros de erosão e dos vales [...].” (MEGURO et al., 1996a).

e Bromeliaceae) que, na verdade, são epífitas, pois não exercem qualquer tipo de relação de parasitismo com o hospedeiro e, muitas vezes, encontrandose diretamente sobre o substrato rochoso. Ainda há diversas cactáceas (Cactaceae) e um grande número de “sempre-vivas” (Xyridaceae, Cyperaceae, Eriocaulaceae) segundo Menezes e Giulietti (1986). São exemplares dessas famílias as que mais têm sido coletadas ao longo dos anos por toda a serra. Enquanto os caules das “canelas-de-ema” são coletados para serem usados como combustível, as bromélias, as orquídeas e os cactos são retirados pelo alto valor de mercado que atingem em função da beleza e singularidade de seus aspectos. Já a coleta das “sempre-vivas” tem sido sistemática e indiscriminada ao longo de todo o Espinhaço Meridional, porção onde certas populações já tiveram seu número drasticamente reduzido e outras já são consideradas como extintas (GIULIETTI et

Microcosmo do Espinhaço, a região da Serra do Cipó também se constitui em uma transição de biomas. Pode-se dizer que aquele ponto emblemático do Travessão está localizado bem no seu coração e dele se visualizam os cerrados de oeste, as matas de leste e os campos nas alturas. A ocorrência de tal encruzilhada é um fator agregador de riqueza biótica e ato contínuo da existência de um grande número de áreas protegidas: Parques, Áreas de Proteção Ambiental, Reservas Particulares de Patrimônio Natural (RPPNs). Uma consulta aos planos de manejo de duas delas, tanto do PARNACIPÓ, quanto da APA Morro da Pedreira, acessíveis via site do ICMBio, permite vislumbrar toda a riqueza florística e faunística da região. Grande parte do Município de Morro do Pilar está contemplado nesses dois planos de manejo, entretanto, é a perspectiva de criação de novas UCs no município que fornece informações que serão detalhadas a seguir.

al., 1988). Cabe ressaltar que a lista vermelha das espécies ameaçadas de extinção da flora de Minas Gerais registra 351 espécies ameaçadas no âmbito dos campos rupestres (MENDONÇA; LINS, 2000, p. 113-148). Além dos campos rupestres, foram estudados, também, matas ripárias e capões pelo grupo de São Paulo. Conforme se lê em Caracterização florística e estrutural de matas ripárias e capões de altitude (Serra do Cipó - MG) e em Estabelecimento de matas ripárias e capões nos ecossistemas campestres da Cadeia do Espinhaço, Minas Gerais, inseridos no Boletim de Botânica da USP (1996), foram caracterizadas tanto pelo aspecto florístico quanto pela relação aos seus processos de instalação e dispersão:

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Chegando a Morro do Pilar Abrigar partes do PARNACIPÓ e da APA Morro da Pedreira, ao mesmo tempo em que se constitui em um privilégio, é uma responsabilidade muito grande. Considerando toda a área municipal, a maior parte dessas duas UCs encontra-se na porção ocidental do município, aquela mais alta e que acolhe os campos rupestres e de altitude que aqui ocorrem. Na medida em que se vai descendo as escarpas do Espinhaço, especialmente a partir da cota altimétrica dos 1200 metros, adentra-se no domínio da Mata Atlântica, ou seja, nas áreas outrora preenchidas por uma densa floresta estacional semidecidual. O mapa da vegetação de Morro do Pilar revela esses dois

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Vista da variação da vegetação de encosta, de maior porte nas porções mais baixas, e que vai diminuindo de tamanho na medida em que se vai ganhando as maiores altitudes. Destaque para as inflorescências e comunidades da Candeia (Vanillosmopsis erythropappa, Asteraceae), típicas do município de Morro do Pilar

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grandes conjuntos de formações vegetacionais (mapa anexo). Revela, igualmente, o excessivo grau de fragmentação dessa mata, especialmente, nas regiões não abarcadas por áreas protegidas. Antes de considerar as possibilidades de proteção maior do que resta da Mata Atlântica no município, é importante apontar para uma iniciativa que tende a ampliar a proteção integral que hoje se verifica, em termos de Morro do Pilar, apenas na área do PARNACIPÓ. Trata-se da proposta de criação do que seria o “Parque Estadual das Vellosias Gigantes”, uma vez que Morro do Pilar, ainda, preserva grandes comunidades dessa planta única. Tal fato ocasionou o motivo das pesquisas iniciadas por Joly e sua orientanda Nanuza Menezes nos idos de 1964. As comunidades de canelas-de-ema-gigante (Vellozia gigantea) são endêmicas da porção oriental da Serra do Cipó e ocorrem apenas acima dos 1200 metros de altitude. Muitas delas estão localizadas no âmbito da APA Morro da Pedreira, portanto, em uma UC

até a ocorrência de sítios reprodutivos, de “degraus” das cadeias tróficas, de endemismos, de exemplos de predatismo etc. Aí ocorrem aves imponentes como o urubu-rei (Sarcoramphus papa) e outras ameaçadas de extinção como o uru (Odontophorus capueira), o gavião-pega-macaco (Spizaetus tyrannus), a jandaia-de-testa-vermelha (Aratinga auripapillus), o macuquinho (Eleoscytalopus indigoticus) e a águia-cinzenta (Urubitinga coronata). Existem, também, pequenos lagartos endêmicos: briba (Heterodactylus lundii) e lagartinho-docipó (Placosoma cipoense). Há espécies endêmicas tanto dos campos rupestres e de altitude (beijaflor-de-gravata-verde, Augastes scutatus; papamoscas-de-costas-cinzentas, Polysticus superciliaris; rabo-mole-da-serra, Embernagra longicauda; e o macuquinho-do-brejo, Scytalopus iraiensis), quanto da Mata Atlântica (choquinha-do-dorso-vermelho, Drymophila ochropyga; dançador, Chiroxiphia caudata; tangarazinho, Ilicura militaris; e a borralhara, Mackenziaena severa).

de uso sustentável e vizinhas ao PARNACIPÓ. Elas

com mais de 5 metros de altura que compõem a maior

No que diz respeito aos grandes mamíferos, os que lá existem vêm sendo caçados com frequência, como é o caso do lobo-guará (Chrysocyon brachiurus), do gato-do-mato (Leopardus tigrinus), do cateto (Pecari tajacu) e da paca (Cuniculus paca). Tal pressão de caça apenas realça a importância em se proteger, integralmente, aquela área. Iniciativas de proteção particular já acontecem no município, com destaque para a RPPN Aves Gerais, pequena em tamanho, mas rica em diversidade, e ponto de apoio para pesquisas sistemáticas de levantamentos faunísticos e florístico desenvolvidas na região e realizadas por biólogos de reconhecida competência (CARRARA; FARIA, 2012). Todas as espécies até aqui enumeradas, a propósito, foram identificadas a partir de trabalho realizado por pesquisadores que por lá estiveram para, até mesmo, promover a criação de Parque Estadual no Município de Morro do Pilar — Proposta Preliminar de Definição dos Limites — “Parque Estadual das

comunidade contínua que ali se localiza.

Vellosias Gigantes” (COLLET, 2012).

Naquele parque, seriam observáveis diversas

Quanto à porção municipal de Mata Atlântica, iniciativas para sua conservação têm merecido, também, o olhar atento de pesquisadores. A

abrigam uma orquídea exclusiva, a Grobya cipoensis. As orquídeas maiores dessa espécie possuem mais de 600 anos de idade. A delimitação dessa área para ser protegida integralmente acarretaria na proteção de uma série de outros exemplares das biotas vegetal e animal. Enquanto “espécie símbolo” (ou, caso se prefira, “espécie bandeira”), a canela-de-ema-gigante agregaria, a reboque, a proteção de espécies como o indaiá (Attalea apoda) que, por sua vez, interage com insetos, roedores e aves como, por exemplo, o papagaio-de-peito-roxo (Amazona vinacea) e a maracanã-verdadeira (Primolius maracana); o palmito-verdadeiro (Euterpe edulis), cujas frutas são consumidas pelo jacuaçu (Penelope obscura) e pelo pavó (Pyroderus scutatus); e a palmeira-de-pedra (Syagrus glaucescens), com exemplares centenários

interações ecológicas que acontecem entre as espécies, desde a questão da dispersão de sementes 214

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Trecho de Floresta Estacional Semidecidual preenchendo uma falha do relevo da Serra do Espinhaço. Acima das escarpas da falha, a vegetação é de Campos Rupestres de Altitude

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devastação desse bioma, como um todo, é um fato histórico bem conhecido no âmbito da trajetória ambiental de nosso país. A obra-prima de Warren Dean, A Ferro e Fogo, refaz toda tragédia com riqueza de dados e de detalhes. Os fragmentos de mata que se reconhecem em Morro do Pilar nada mais são do que a resultante local daquele processo que foi avassalador desde a chegada dos povoadores europeus. As áreas cobertas por Pteridium aquilinum, variedade de samambaias, atestam os desmatamentos recentes. Os testemunhos dos indaiás (Attalea apoda) e das candeias (Eremanthus erythropappus) também dão notícia desse processo visto que crescem rapidamente em relação às companheiras arbóreas que foram sacrificadas. Para frear o processo citado, que não tem motivo para ser inexorável, é preciso buscar soluções no sentido de salvaguardar a biota local, tendo em vista sua importância como produto de uma rica transição de biomas. Além das duas UCs federais, que protegem a maior parte de seus campos rupestres e de altitude, Morro do Pilar possui, também, uma grande APA municipal, a do Rio Picão, que procura proteger parte de seus testemunhos de Mata Atlântica. Contudo, esse conjunto de áreas protegidas ainda é insuficiente para garantir a sobrevivência de sua biodiversidade. No sentido de ampliar a área a ser protegida e de se estabelecer corredores ecológicos que constituam a conectividade entre vários de seus fragmentos de biota remanescentes, é que se cogita a criação e implementação de novas áreas. Todas elas estão localizadas no bioma da Mata Atlântica, sendo algumas vizinhas à APA do Rio Picão e outras localizadas ao norte do município, próximas aos limites com Conceição do Mato Dentro. Assim sendo, propõe-se a criação de uma UC de proteção integral na área conhecida como “Nascentes do Hogó” onde, de acordo com os registros da Prefeitura Municipal de Morro do Pilar (2013), ocorrem cavidades e formações florestais em diversos estágios de regeneração e campos rupestres associados ao quartzito e a canga ferruginosa. Devido ao alto grau de

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especialização, tanto da Mata Atlântica como dos Campos Rupestres, e do isolamento imposto pelo relevo, pode-se dizer que esta área abriga uma significante amostra de vegetação nativa em ótimas condições. Ocorrem também Capões de Matas, que ocupam as partes mais baixas da área e apresentam características de transição com os Campos Rupestres.

Ao norte da APA do Rio Picão, uma área conhecida por Mata-Cavalos poderia ser incorporada à APA já existente. Ela possui importantes fragmentos florestais e garantiria a integridade de reservas legais e áreas de proteção permanentes das propriedades rurais existentes na região, bastante ondulada, e pertencentes à bacia do ribeirão Mata-Cavalos. Ao sul da APA do Rio Picão, em direção aos limites com Itambé do Mato Dentro, outra área, a do Rio Preto, também, seria incorporada à APA existente. Conforme as “Estratégias para Conservação da Biodiversidade no Município de Morro do Pilar - MG. Corredor de Biodiversidade e Manejo Biorregional”, cuja fonte de dados é oriunda da Prefeitura Municipal de Morro do Pilar (2013): Trata-se de uma área cujo interesse inicial se dá na conservação e no desenvolvimento da produção do setor primário, em que o equilíbrio está na consolidação de novos padrões tecnológicos de produção agropecuária que racionalizem a utilização dos recursos ambientais e garantam a proteção e conservação de importantes fragmentos florestais da área.

Propõe-se, próximo à sede municipal, a proteção paisagística do “Entorno Urbano” que propiciaria, segundo aquela mesma fonte, [...] o equilíbrio entre a zona de ocupação urbana e seu entorno, partindo-se do princípio que a paisagem deve ser percebida e entendida como um patrimônio cultural do município, ligada diretamente à qualidade de vida de seus cidadãos.

Na paisagem dessa área, predomina as pastagens que funcionam como matriz principal de inserção dos fragmentos florestais remanescentes, tratandose de trechos florestais pertencentes à Floresta Estacional Semidecidual em estágio inicial de

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regeneração. Então, propõe-se que seja tombada como patrimônio paisagístico. Não obstante se tratar de uma área pequena com predominância de pastagens, guarda relações com a história da cidade. Na porção noroeste do município, na região da Serra da Serpentina, propõe-se a criação de uma APA capaz de conciliar, por um lado, as zonas de proteção de cavidades naturais subterrâneas e de fragmentos de Mata Atlântica, e, por outro, as zonas que disciplinem os usos antrópicos consolidados e de interesse do município. Trata-se de uma área que agrupa características orográficas singulares com formações rochosas de especial beleza cênica e resguarda, em sua vertente, significativos fragmentos de Mata Atlântica que abrigam espécies importantes da fauna e flora regional. Tal área engloba as nascentes do Córrego Bebedouro, Ribeirão dos Porcos, Córrego Mata-Porco, Córrego Turquia e Córrego das Pedras. Entre a Serra da Serpentina e a Bacia do Ribeirão Mata-Cavalos, já está homologada a proteção da “Gruta do Sumidouro e entorno” que garantirá a manutenção da proteção e conservação da Gruta do Sumidouro e de mais outras duas cavidades representativas e localizadas no seu entorno. Ainda que corresponda a uma área pequena, trata-se de uma iniciativa que ajuda a conservar uma diminuta, mas, expressiva parcela da biota municipal.

A título de conclusão Todas as propostas surgem em um momento importante na medida em que Morro do Pilar procura conciliar perspectivas de desenvolvimento municipal futuro com a manutenção de parcela significativa de seus ecossistemas e, portanto, de sua biodiversidade. Chamando para si a responsabilidade que sua privilegiada localização biogeográfica lhe proporciona, o município tenta livrar-se das armadilhas ambientais provocadas pelo rolo compressor de uma economia cada vez mais globalizada e que compromete o pouco que resta de nossa biodiversidade.

O município associa-se ao esforço planetário de procurar manter intactos percentuais mínimos de cada um de seus biomas ou ecossistemas mais significativos. Metas estabelecidas em Aichi, no ano de 2010, apontam para a necessidade de se proteger, pelo menos, 17 % das áreas de cada um dos países signatários da Convenção da Diversidade Biológica. A extensão territorial de Morro do Pilar não comporta a existência de grandes biomas, entretanto, sua posição geográfica, como foi visto, faz com que existam ecossistemas significativos de dois dos quatro biomas mineiros. Nossos Campos Rupestres e de Altitude encontram-se bem preservados embora se pretenda ampliar o leque de proteção. Nossa combalida Mata Atlântica demanda por mais atenção e, por conseguinte, proteção. Considerando sua inserção na Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço, pode-se dizer que Morro do Pilar está fazendo a parte que lhe cabe e avança ao propor mecanismos de proteção que lidam com conceitos modernos como, por exemplo, o de manejo biorregional e a gestão integrada de sua biodiversidade. A ideia é o estabelecimento e a consolidação, na escala local, de corredores ecológicos de modo a garantir a qualidade biológica da proteção que se busca. É a contribuição do município para o esforço maior de proteção que se espera para toda a RBSE. Morro do Pilar, a Serra do Cipó, a Cadeia do Espinhaço e Minas Gerais, cada um de acordo com sua dimensão territorial, marcam a transição de dois dos principais biomas do planeta — Cerrado e Mata Atlântica. Infelizmente, são os únicos biomas brasileiros considerados como hotspots planetários, ou seja, são extremamente ricos em biodiversidade e, ao mesmo tempo, encontram-se comprometidos em termos de devastação. Cabe a cada um de nós, em cada uma daquelas dimensões territoriais, envidar esforços no sentido de reverter o quadro preocupante que a nós se apresenta.

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capítulo 7

O minério de ferro na história subterrânea do mundo e na alquimia*

♦ Luís Cláudio Ferreira de Oliveira1 ♦

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elineia-se, neste capítulo, uma “história oculta” a partir de uma realidade, aparentemente, sem grandes conteúdos e vultos como é o caso de Morro do Pilar cujas montanhas estão todas enredadas de sentido ontológico, de sacralidade. Compreendo a história de Morro em paralelo com várias outras histórias, mitos e lendas de várias partes do mundo. Ao buscar a compreensão da relação do homem com o mundo que o cerca, dotando de “vida”, sentido e uma interconexão com elementos que são despercebidos do olhar comum — fragmentado e destituído de valor e significado —, proponho trazer uma contribuição, também, no sentido de revalorizar e ressignificar a história não contada que produziu e fez surgir o que, hoje, chamamos Morro do Pilar. A concepção do mundo atual requer uma visualização permanente e reflexiva a respeito das formas simbólicas que interagem e nos conectam com a nossa visão de mundo e que, consequentemente, nos moldam e nos fazem “responder” à corrente da vida em nosso dia a dia. É preciso uma maior e melhor compreensão das formas simbólicas que organizam a vida socioespacial da comunidade de Morro para que sua gente possa transmitir e absorver o dinamismo dos seus valores culturais e dos legados de memória e tradição dos antepassados que “construíram o propósito chamado Morro do Pilar”. Morro do Pilar deve ser abarcado sob um conteúdo singular, rico e estratégico que possa trazer à tona uma nova percepção da relevância das formas tangíveis e intangíveis na reorganização dos elementos que compõem o mundo ao redor das pessoas de Morro e que possa, ainda, fazer a interação da sua gente com um novo olhar e um novo lugar no mundo.

1 Um dos idealizadores e um dos autores da proposta técnica de reconhecimento da serra do Espinhaço como uma Reserva da Biosfera pela UNESCO; ativista internacional em temáticas da sustentabilidade, criação de redes de cooperação e cultura para a paz; presidente do Instituto Espinhaço. * Texto ressignificado a partir dos livros: Psychology and Alchemy, de C. G. Jung; Forgerons et Alchimistes, de Mircea Eliade; A Arte de los Metales, de Alonso Barba; Biblioteca Chemica, de J. W. Baumer; Sylva Sylvarum, de Francis Bacon; Le Chamanisme, de Mircea Eliade; La Terra et les Rêveries de la Volonté, de Gaston Bachelard.

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Ilustração: Van Bentum

A explosão no laboratório do alquimista

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O axis mundi e a compreensão de um novo paradigma

É sempre difícil para todos nós, entendermos racionalmente o conteúdo de um símbolo, sobretudo, no caso das montanhas que “expressam uma sacralidade” como é o caso da Serra do Espinhaço onde Morro do Pilar está inserido. A compreensão desse espaço natural torna-se ainda mais complexo por não se tratar apenas de um símbolo, mas também, de locais fortemente carregados de conteúdos pouco conhecidos. A Serra do Espinhaço norteou grande parte do processo de ocupação do território de Minas Gerais, desde tempos antigos, criando uma relação diferenciada entre o homem e a montanha. Aliás, a imagem material da montanha, à maneira de Bachelard, está associada, fundamentalmente, aos princípios de altura e de centro. É elevada, vertical, próxima ao que há de firmeza e pureza e, por isso, simboliza o transcendente, o encontro entre a terra e o céu. Tem sido avistada como a morada dos deuses e é a referência arquetípica para a ascensão humana. Vista de cima, surge como uma ponta, o centro do mundo; vista de baixo, aparece como uma linha vertical, o eixo do mundo, a escada e o “caminho a escalar”. A montanha é o Omphalos, o umbigo do mundo. A montanha transmite-nos ideias de grandeza, de estabilidade, imutabilidade, mistério. A sua elevação

Ilustração do Sol e Lua na alquimia em lâmina do Rosarium Philosophorum

riquezas, algumas ocultas, podem ser vistas para além do olhar econômico e paisagístico? É aqui que começa a proposta de uma história diferente, a história subterrânea de Morro do Pilar que tem em si cargas simbólicas que, intrinsecamente, estão ligadas ao imaginário da sua gente que sempre viveu em uma relação de proximidade e cumplicidade com as jazidas de ouro, as minas de ferro, as matas, as águas, e a memórias de suas montanhas que, desde 1701, atraíram toda sorte de aventureiros, desbravadores e homens que anteciparam o futuro como, por exemplo, o cientista mineiro Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt Aguiar e Sá, o Intendente Câmara.

em direção ao céu permite entrar em relação com a divindade, um retorno às origens. Assim apreendida, a montanha é o Axis Mundi (expressão latina que pode significar “pilar do mundo”): o Monte Meru, na Índia; o Kuen-Luen, na China; o Fuji-Yama, no Japão; o Olimpo, na Grécia; o Alborj, na Pérsia; o Moriah maçônico; a Montanha Ka’ba, em Meca; o Gólgota do cristianismo; o Montsalvat do Graal; a Montanha Qaf do Islã; a Montanha Branca celta; o Potala tibetano. Em Morro do Pilar, a Serra do Cachimbo. Sempre há uma montanha que circunda e “eleva” a história dos homens. E o que guardam as montanhas em seu interior, em seu “ventre”? Como suas

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O minério de ferro na “História Subterrânea” do Mundo e na Alquimia Quando estudamos e exploramos as origens e os mistérios da alquimia, descobrimos que o ferro, e não o ouro, era o metal que possuía maior valor para os alquimistas. Era, também, o ferro que simbolizava a meta do trabalho para os homens e que guardava os maiores segredos da ciência desde tempos antigos. Nos porões da nossa história antiga, desvendamos que foi a descoberta do ferro que tirou os seres humanos da consciência da Idade da Pedra,

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Leão devorando o Sol - Figura do Rosarium Philosophorum, livro do ano de 1550

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O ferro foi descoberto primeiro nos restos de estrelas que caíam dos céus, os meteoros e meteoritos. Por isso, os povos primitivos acreditavam que o ferro possuía qualidades mágicas ainda mais preciosas do que as do ouro.

possibilitando uma nova era da humanidade, a era do homo faber a que se relaciona com a Idade do Ferro, período em que ocorreu a metalurgia do ferro. Na Caldeia e Assíria, o ferro é usado há, pelo menos, 4000 a. C. e a sua descoberta precipitou a produção, entre outras coisas, de ferramentas e armas. Muitos anos se passariam antes que os seres humanos descobrissem os depósitos de ferro ocultos sob a superfície da terra e inventassem formas de transformá-lo em implementos e objetos necessários para criar um novo mundo. Antes disso, os homens tratavam o ferro como a pedra, mas o viam como uma substância preciosa, entregue a eles pelos deuses. O ferro foi descoberto primeiro nos restos de estrelas que caíam dos céus, os meteoros e meteoritos. Por isso, os povos primitivos acreditavam que o ferro possuía qualidades mágicas ainda mais preciosas do que as do ouro. À luz dessa evidência, é interessante que os alquimistas tenham recorrido à imagem da pedra para simbolizar a realidade absoluta que constitui o fundamento de suas práticas de manipulação do metal. A grande descoberta de depósitos de ferro na crosta terrestre levou, inevitavelmente, nossa civilização ao processo da mineração, transitando do minério meteorítico ao minério telúrico (minerado), o que provocou um salto gigante na evolução da nossa consciência. Isto porque, sem o minério de ferro não teria existido a Revolução Industrial e não existiria a consciência da complexidade, própria 224

dos seres humanos modernos. O minério de ferro extraído das minas profundas foi trabalhado na forja e transformado nos materiais usados para construir o mundo moderno, “nosso mundo feito de ferro”. Mas a atividade de mineração não é tarefa fácil. Exige, especialmente no momento atual da nossa história, engenharia, arquitetura e um completo conhecimento dos materiais. Esses desafios favoreceram uma interação entre mente e matéria e possibilitou o lançamento das bases da psicologia alquímica muito bem estudada pelo psiquiatra Carl G. Jung. É estranho que algumas pessoas se preocupem com a possibilidade de a Terra ser atingida por um meteoro. Faria mais sentido perguntar como seria a vida sem o impacto de um grande meteoro. Provavelmente, a evolução das espécies teria caminhado de outra forma sem a interferência da queda de grandes meteoros na história planetária. Além do ferro, enviado pelas constantes chuvas de meteoros que atingem nosso planeta durante toda sua existência, recebemos, também, o fogo em formas de relâmpagos. Sem o fogo, não se acenderiam os altos-fornos que derretem os metais e toda a história posterior à Idade da Pedra teria sido radicalmente diferente haja vista que sem esses ingredientes não teríamos descoberto a nossa capacidade de fazer coisas. A consciência tornou-se ativa e, em colaboração com a natureza, aprendemos a transformar árvores em casas, ferro em pontes e pedras em catedrais e escolas. Em outras palavras, nós nos tornamos capazes de inventar o mundo

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Dragão furioso e venenoso, Basile Valentin, figura da literatura alquímica e hermética, do compêndio Musaeum Hermeticum Reformatum et Amplificatum, Frankfurt, 1678

dos nossos sonhos ou o mundo que sonhamos antes mesmo que ele seja construído. Criar é uma atividade com característica feminina que deixa o inconsciente nos invadir. As mãos moldam sua mensagem em forma de pintura e poemas. Inventar, porém, é uma atividade mais masculina. Os termos “masculino” e “feminino” correspondem, assim, a dois aspectos da consciência: a arte da criação e a ciência da invenção. A história humana está repleta de mistérios e entre eles está a alquimia. Muitos cientistas, que vislumbravam ou anteciparam o futuro, eram alquimistas. Um deles, o grande matemático e físico Isaac Newton foi um inventor e praticava alquimia. Gregory Bateson, biólogo e antropólogo inglês, observou que Newton inventou a gravidade. Diz-se, então, que Newton teve a vida dedicada a integrar a magia do Velho Mundo à Ciência de uma nova Era. Desde suas origens, a alquimia percorreu um longo caminho, mas o significado arquetípico do período posterior à Era Industrial não é diferente da transição

evolutiva que levou os homens primitivos da passividade da Idade da Pedra à atividade inventiva com o Ferro. O mesmo fogo “roubado de Zeus por Prometeu e dado à humanidade” ainda habita em nós; é a centelha da inspiração, a semente da invenção que nos permite terminar o trabalho divino legado pelos deuses que “forjaram os homens” há um longo tempo.

A embriologia subterrânea do minério de ferro

As substâncias minerais sempre participaram do aspecto sagrado da Mãe Terra. E esse aspecto de sacralidade nos levou à inevitável ideia de que os minerais “crescem” no ventre da Terra como se fossem “embriões”. A ciência da metalurgia, praticada há milênios pelos homens, adquire, a partir dessa visão, um caráter “obstétrico”. Ao longo da história ligada ao minério de ferro, o mineiro e o metalúrgico intervêm no processo da “embriologia” subterrânea. Eles precipitam o ritmo de crescimento dos minerais e

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colaboram, de forma misteriosa e decisiva, com a obra da Natureza, ajudando-a a “parir mais rápido”. Dito de outro modo, o homem, consoante sua técnica, vai, de forma misteriosa, substituindo a obra do Tempo. Assim, ao colaborar com a Natureza no sentido de extrair de suas profundezas os minerais, o homem é capaz de produzir em um tempo cada vez mais acelerado, modificando as modalidades da matéria. Podemos até pensar que já tenhamos descoberto uma das fontes da ideologia alquímica, o que não é verdade, ou que estabelecemos uma perfeita continuidade entre o universo mental do mineiro ou minerador, do metalúrgico, do ferreiro e do alquimista. De fato, os ritos de iniciação e os mistérios dos ferreiros, ao longo da história humana, formam, muito provavelmente, uma parte integrante das várias tradições místicas, filosóficas e religiosas herdadas pelas mais diversas correntes de pensamento. Mas o que há em comum entre o mineiro, o ferreiro e o alquimista? Bem, em síntese, todos eles reivindicam uma experiência mágico-religiosa particular em suas relações com a “substância”; esta experiência é seu monopólio e seu segredo se transmite mediante os ritos de iniciação dos ofícios. Além disso, todos eles trabalham com uma matéria viva e sagrada e seus trabalhos encaminham-se para a transformação da Matéria, seu aperfeiçoamento, sua transmutação.

O minério de ferro e sua origem perdida no tempo

No decorrer da história mesopotâmica (atual região sul do Iraque e do Kuwait e que foi “habitada” entre 5500 e 4000 a. C.), os sumérios foram a primeira civilização a ocupar os territórios entre os rios Tigre e Eufrates. No quarto milênio antes de Cristo, as primeiras populações sumerianas ter-se-iam deslocado do planalto do Irã até se fixarem na região da Caldéia, área que compreende a Baixa e a Média Mesopotâmia. Para os sumérios, a palavra “An.Bar”, vocábulo mais antigo conhecido para designar o que chamamos

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ferro, está constituída pelos signos pictográficos “céu” e “fogo”. Geralmente, se traduz por “metal celeste” ou “metal estrela”. O arqueólogo britânico Campbell Thompson a traduziu por “relâmpago celeste” devido ao meteorito. O ferro meteórico era conhecido em Creta (primeiros séculos do 3º milênio a.C. e meados do 2º milênio a.C.) durante a civilização Minóica (que é considerada a mais antiga civilização de que há registo na Europa). Em Creta, também, foram achados objetos de ferro na tumba de Cnossos (cidade que foi centro cerimonial e político-cultural da Civilização Minóica). A origem “celeste” do ferro pode, talvez, ficar demonstrada pelo vocábulo grego “sideros” que se relacionou com Sidus-Eris (“estrela”). O início da metalurgia, em escala industrial, pode ser fixado por volta dos anos 1200-1000 a.C., na Armênia, país localizado na região montanhosa na Eurásia, entre o mar Negro e o mar Cáspio, no sul do Cáucaso. Partindo dali, o segredo expandiu-se pelo oriente por meio do Mediterrâneo e pela Europa Central embora o ferro de origem meteórica ou de jazidas superficiais fosse conhecido já no 3º milênio a.C. na Mesopotâmia (Tell Asmar); no Iraque; Chagar Bazar e Mari, na Síria; na Ásia Menor (Alaca Hüyük, na Turquia) e, provavelmente, no Egito. Desde muito tempo, o trabalho com o ferro seguiu fielmente os modelos e estilos da Idade do Bronze que prolongou a morfologia estilística da Idade da Pedra. O ferro aparece, então, em forma de estatuetas, ornamentos e amuletos. Durante um longo período, conservou um caráter sagrado que sobrevive entre os povos chamados “primitivos”. Na história humana, existem muitos simbolismos e complexos mágico-religiosos que foram difundidos durante a Idade dos Metais, especialmente, depois do triunfo industrial do ferro. É importante destacar que antes de se impor na história militar e política da humanidade, a Idade do Ferro tinha dado lugar a criações de caráter espiritual. Como costuma acontecer, o símbolo, a imagem e o rito antecipam e quase se pode dizer que, às vezes, fazem possíveis as

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Johann Daniel Mylius

Opus Médico – Chymmycum, 1618

aplicações utilitárias de um descobrimento. A Idade do Ferro, antes de mudar a face do mundo, engendrou um elevado número de ritos, mitos e símbolos que não deixaram de ter ressonância na história espiritual da humanidade. Assim, somente depois do êxito industrial do ferro podese falar da “etapa metalúrgica” da humanidade. O descobrimento e os posteriores progressos da fusão do ferro revalorizaram todas as técnicas metalúrgicas tradicionais. Foi a metalurgia do ferro terrestre (não o meteórico) que tornou este importante metal apto para o uso em nosso cotidiano. Hoje, podemos dizer que somos a “civilização do ferro”, repetindo outro ciclo histórico, em outra volta do tempo. Para não perder a correlação histórica entre o passado e o futuro, entre o mundo e a pequena Morro do Pilar, é bom lembrarmos que Morro é o local que sediou a primeira fundição de ferro em alto-forno do Brasil. Aqui, proliferaram uma série de pequenos fornos de fundição a partir do ano de 1812. Desde sua origem

até a possibilidade de seu futuro, Morro do Pilar está ligada ao ferro. Isto posto, temos de fazer o elo entre o ferro e o ferreiro. Este é, acima de tudo, um trabalhador do ferro e sua condição de “buscador” o levava a um contínuo deslocamento pelos territórios e pela história em busca do metal. O ferreiro sempre foi, ao longo da nossa história conhecida, o principal agente de difusão de mitologias, ritos e mistérios metalúrgicos. Este conjunto de feitos nos leva a um prodigioso universo espiritual que podemos explorar, com maior ou menor profundidade ou ainda que subliminarmente, de forma a provocar uma reflexão aprofundada sobre aspectos não conhecidos da história, até mesmo a simbólica, de Morro do Pilar e sua ligação com um universo desconhecido por sua gente. Já na história subterrânea, ou seja, na história pouco conhecida pela grande maioria das pessoas, existem várias referências à função ritual da forja, ao caráter ambivalente do ferreiro e às relações existentes

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entre a magia (como o domínio do fogo), o ferreiro e as sociedades secretas. Os trabalhos executados em uma mina de ferro e, também na metalurgia, apontam para os temas relacionados com a Mãe Terra, com o “sexualismo do mundo mineral” e das ferramentas, com a solidariedade entre a metalurgia, a ginecologia e a obstetrícia (ligadas ao processo de extração do ferro do “ventre da Terra”). Muito já foi estudado e dito, em várias partes do mundo, sempre em um círculo fechado de poucos buscadores, sobre a sacralidade do ferro. Não importa se ele tenha caído da abóbada celeste ou extraído das vísceras da terra; ele está carregado do que muitos chamam de “potência sagrada”. E, ao buscarmos conhecer a relação de muitos povos com o ferro, podemos perceber que uma atitude de reverência para o metal pode ser observada, inclusive, em populações de alto nível cultural. Os reis malaios (que viviam na Península Malaia e partes das ilhas de Sumatra e Bornéu, na Indonésia) conservavam, até pouco tempo, “uma bolinha sagrada de ferro” que formava parte dos bens reais e que era por eles venerada com terror supersticioso. Vemos semelhante valorização do ferro em outras civilizações como a indiana, a africana e outras culturas que conheciam, há muito tempo, o uso do ferro terrestre. Persiste nelas ainda a lembrança e a memória fabulosa do “metal celeste”, a crença em seus poderes ocultos. Quando se conversa com os beduínos do deserto do Sinai, no Egito, vê-se que eles estão, até hoje, convencidos de que aquele que 228

consegue fabricar uma espada de ferro meteórico faz-se invulnerável nas batalhas e pode estar seguro de abater todos os seus inimigos. O “metal celeste” é alheio à terra e, portanto, é transcendente; procede de cima e, talvez por isso, é que ele ainda é tido como maravilhoso, com o poder de fazer milagres, para um árabe de nossos dias. É muito interessante poder ver como estes povos se relacionam com o simbolismo presente no ferro ao longo da sua história. O ferro sempre esteve associado, desde tempos pretéritos, ao seu extraordinário poder mágicoreligioso inclusive entre os povos que têm uma história cultural bastante avançada e complexa. Plinio (nascido no ano 23 d.C.), originalmente, Gaius Plinius Secundus, foi o mais importante naturalista da antiguidade, além de escritor, historiador, gramático e oficial romano. Em sua obra Naturalis Historia, já indicava que o ferro era eficaz contra vários tipos de doenças. Crenças similares encontram-se na Turquia, Pérsia, Índia e entre os Dayak (povo nativo de Bornéu, na Ásia). Muitos outros autores clássicos também já relataram o emprego do ferro contra os demônios em várias partes do mundo. No nordeste da Europa, os objetos de ferro defendem as colheitas tanto das inclemências do tempo quanto dos sortilégios e até do “mau-olhado”. Interessante é que, também, para os ferreiros, o ferro conservava seu caráter ambivalente de encarnar o espírito diabólico. O triunfo militar, às vezes, era conquistado com o triunfo “demoníaco” – este é um tema interessante

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De Sphaera, século XV

que posso explorar em outro momento. Para os Wachagga (povo original da Tanzânia, na África), o ferro contém em si mesmo uma força mágica que é a “inimizade da vida e da paz”.

Mitos, Cosmogonias e Ferro Para muitos povos, as ferramentas do ferreiro tinham um caráter sagrado. O martelo, o fole e a bigorna revelavam-se como “seres animados” e maravilhosos: supõe-se que podiam “trabalhar por sua própria conta” por meio de uma força mágicoreligiosa sem ajuda do ferreiro. Em Angola, na África, o martelo ainda é venerado por ser o que forja os instrumentos necessários para a agricultura. Os Ogowe (povo nativo do Gabão), que não conheciam o ferro e, portanto, não o trabalhavam, veneravam o fole dos ferreiros das tribos vizinhas. Os Mossengere (povo nativo do Congo) e outros povos africanos acreditam que a dignidade do mestre ferreiro concentra-se no fole. Quanto aos fornos utilizados pelos ferreiros para fabricação de utensílios e armas, sua construção está rodeada de mistérios e constitui um “ritual” propriamente dito.

Figura do Sol na alquimia. Biblioteca Estense Universitaria, Modena, Itália

O martelo, herdeiro da tocha dos tempos líticos, converteu-se na insígnia dos deuses fortes, os deuses da tempestade. Assim, fica mais fácil compreendermos o motivo pelo qual, às vezes, os deuses das tempestades e da fertilidade agrária são imaginados como deuses ferreiros. Os T’ou-jen, de Kuang-tsi (originários de Taiwan), sacrificavam cabras ao deus Dantsien Sân e ele se servia das cabeças das cabras como se fossem bigornas. Durante as tempestades, o deus Dantsien Sân batia seu ferro entre os chifres do animal sacrificado; os relâmpagos e o granizo faiscante caiam sobre a terra e derrubavam os demônios. O deus defendia assim o ferreiro, as colheitas e os homens. Os Dogon (povo que habita o Mali e Burkina Faso, na África Ocidental) vivem uma crença muito semelhante: é o ferreiro celeste o que desempenha o papel de herói civilizador, pois traz do céu os grãos cultiváveis e revela a agricultura aos humanos.

Capa do livro Opus Medico, do ano de 1628

Marduk (deus protetor da cidade de Babilônia e que, por volta do ano 2000 a.C., era considerado a divindade suprema da Babilônia e dos Quatro Cantos da Terra) cria, de acordo com as crenças antigas, o universo a partir do corpo do monstro

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Para muitos povos, as ferramentas do ferreiro tinham um caráter sagrado. O martelo, o fole e a bigorna revelavam-se como “seres animados” e maravilhosos.

marinho Tiamat, que ele derrubou. Na mitologia babilônica, a morte de Tiamat pelo deus Marduk, que divide seu corpo em dois, é considerada um grande exemplo de como ocorreu a mudança de poder do “matriarcado” ao “patriarcado”. Assim, Tiamat, a deusa Dragão do Caos e das Trevas, é combatida por Marduk, divindade da justiça e da luz. Para criar ao homem, Marduk imola a si mesmo, solidificando seu sangue e dele fez osso de modo que colocou “o homem de pé”, inserindo-o na terra como habitante. No sentido profundo desses mitos, a criação é um sacrifício. Só se pode animar o que se criou mediante a transmissão da própria vida (sangue, lágrimas, esperma, “alma” etc.). Também, na mitologia grega, há um mesmo paralelo que apresenta Apolo matando a serpente Píton e dividindo seu corpo em dois como uma ação necessária para se tornar dono do oráculo de Delfos. Motivos e temas análogos encontram-se em outras mitologias. Na nórdica, por exemplo, o gigante Ymir (gigante ancestral das criaturas do universo) foi a primeira criatura viva, criada diretamente de Ginungagap (o grande vazio) — pelo calor de Muspelheim (o reino do fogo onde habitam os gigantes do fogo) e pelo gelo de Niflheim (mundo do frio e da neve) — que se

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derreteu e as gotas originaram Ymir. Ao dormir, do seu suor nasceram todos os seres, os demônios e duendes chamados de Trolls. Os Muspelheim e os Nifheim criaram o reino de Midgard, a “terra dos homens”, também chamada de Mannheim ou “lar dos homens”. Na atualidade, estes nomes tornaramse mais conhecidos devido a filmes como Thor, divulgado em cinemas de todo o mundo. Enfim, todas as mitologias e cosmogonias do mundo são semelhantes entre si mesmo distantes no tempo e no espaço. O estudo das mitologias e cosmogonias, em seu processo de história cíclica, é algo bastante interessante para compreendermos um pouco mais do nosso papel no teatro que criamos para justificar nossa existência. Existem alguns mitos primitivos que nos relatam que o homem “saiu da pedra”, como vemos nas grandes civilizações da América Central (Inca, Maia) e nas tradições de certas tribos da América do Sul e também entre os gregos, os semitas, no Cáucaso e, em geral, na Ásia Menor até a Oceania. Vejamos a mitologia grega, por exemplo. Deucalião, filho do titã Prometeu e Climene, era casado com Pirra. Quando a fúria de Zeus foi lançada contra a desordem que existia na humanidade, Zeus

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Sadeler II, Kilian, Geiger

ao crescimento das pedras e minerais no “ventre” da terra, que chama mais nossa atenção. A rocha engendra as pedras preciosas: o nome sânscrito da esmeralda é azmagarbhaja, “nascida da rocha”, e os tratados mineralógicos hindus a descrevem na rocha como em sua “matriz”. O autor de Jawáhirnámeh (Livro das pedras preciosas) distingue o diamante do cristal por uma diferença de idade expressa em termos “embriológicos”: o diamante é pakka, quer dizer, “amadurecido”; o cristal é kaccha, ou seja, “não amadurecido”, “verde”, insuficientemente desenvolvido. Uma concepção similar conservou-se na Europa até o século XVII. Em Mercure Indien, lemos: O rubi, em particular, nasce, pouco a pouco, na mina: primeiro é branco e logo, ao maturar, adquire lentamente sua cor vermelha, de onde vem que se encontraram alguns totalmente brancos, outros roxos-brancos. Tal qual o menino se alimenta de sangue no ventre de sua mãe, assim o rubi se forma e alimenta (ROSNEL, 1872, p. 12).

A preparação alquimica do ouro

Nos numerosos mitos de deuses nascidos da petra genitrix, assimilada à “Grande Deusa”, a matrix munii, temos relatos de que a pedra é uma imagem arquetípica que expressa, ao mesmo tempo, a realidade absoluta, a vida e o sagrado. O Antigo Testamento conservava a tradição paleossemita do nascimento do homem das pedras, porém, ainda é mais curioso ver o folclore cristão recolhendo esta imagem em um sentido mais elevado, aplicando-a ao “Salvador”. Algumas lendas natalinas na Romênia

A ideia de que os minerais “crescem” no seio da Terra manteve-se durante longo tempo presente nas especulações mineralógicas dos autores ocidentais. Para muitos pesquisadores e alquimistas, as matérias metálicas estão nas montanhas e, até mesmo, nas árvores, com suas raízes, troncos, ramos e múltiplos filhos. O filósofo inglês Roger Bacon relata que alguns anciões contam que se encontra na ilha de Chipre uma espécie de ferro que, talhado em pedacinhos e enterrado em terra regada com frequência, vegeta até o extremo, cada pedaço torna-se muito maior. Neste relato, está evidente a persistência da concepção Michael Maier, Frankfurt, 1517

decidiu pôr um fim à sua criação e lançou o “dilúvio contra a terra e os homens”. Avisado por Prometeu, seu pai, Deucalião e Pirra construíram um barco de madeira que continha provisões para que estivessem resguardados do dilúvio. Deucalião “arrojava os ossos de sua mãe por cima do ombro para repovoar o mundo”. Os “ossos da Mãe Terra” eram pedras e representavam o Urgrund, a realidade indestrutível, a matriz de onde sairia uma nova humanidade. Há uma explícita semelhança entre várias mitologias ligadas ao dilúvio universal, em várias culturas através do mundo, em vários tempos.

falam do “Cristo que nasce da pedra”. Todavia, é o segundo grupo de crenças, o que se refere

Hermes Trimegisto, mediador entre o macrocosmo e microcosmo

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Ilustralçai: Kircher

mítico original que os precede e justifica em suas estruturas simbólicas. Existem, efetivamente, várias tradições míticas sobre a origem dos metais segundo as quais eles “saem” do corpo de um deus ou de um ser semidivino. Por exemplo: no mito do desmembramento de Indra (divindade das tempestades no hinduísmo), segundo Zatapatha Brâmane, é sabido que, embriagado por um excesso de soma (uma bebida ritualística na cultura hindu), de seu corpo as criaturas, plantas e metais originaram-se, de seu umbigo escapou o hálito vital que se fez chumbo e de seu sêmen fluiu sua forma, convertendo-se em ouro. Um mito similar manifesta-se entre os iranianos. Quando Gayomart (o homem primitivo criado a partir do suor de Ahura Mazda, princípio ou deus do bem

Figura da simbologia alquimica retratando a luz e sombra

arcaica do crescimento dos minerais, tese que resiste a séculos de experiência técnica e pensamento racional (basta pensarmos nas noções mineralógicas aceitas pela ciência grega, por exemplo). Não por acaso, muitos cientistas diziam que era necessário deixar repousar os minerais depois de um período de exploração ativa. Uma mina, matriz da terra, precisava de tempo para voltar a “criar novos minerais”. Plínio, já citado acima, dizia que as minas de galena (um mineral composto de sulfeto de chumbo), na Espanha “renasciam” após certo tempo. Indicações similares são encontradas no volume 2 de Geografia, de Estrabón ( geógrafo e historiador grego) e em Barba, autor espanhol do século XVII: “uma mina esgotada é capaz de refazer suas jazidas caso seja tampada convenientemente, deixando-a repousar por um período de dez a quinze anos”. Os metais “crescem” nas minas. Muito provavelmente a mesma ideia era compartilhada pelos metalúrgicos africanos, o que poderia a obstrução das antigas minas de Transvaal, na África do Sul. Em várias partes de nossa história, esses mitos, ritos e costumes estão construídos a partir de um tema

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conforme o zoroastrismo e a mitologia persa) foi envenenado por Ahriman (conhecido como a providência do mal, irmão gêmeo de Ahura-Mazda) a mando de Jeh, a prostituta, ele deixou seu sêmen fluir sobre a terra e gerou os antecessores da raça humana. Como o corpo de Gayomart era “feito de metal”, as sete espécies de metais surgiram de seu corpo. Quando morreu, as oito espécies de minerais de natureza metálica provieram de seus diversos membros, ou seja, o ouro, a prata, o bronze, o estanho, o ferro, o chumbo, o mercúrio e o diamante; e o ouro, em razão de sua perfeição, saiu de seu sêmen. É do sêmen de Gayomart, previamente purificado pela rotação do céu, de onde mais tarde sairia o primeiro casal humano. Um mito paralelo foi, provavelmente, compartilhado pelos gregos. Um provérbio grego difundido por Zenóbio, sofista nascido em 117 d.C., permitiu a reconstituição de uma lenda sobre a origem do ferro: dois irmãos fazem morrer um terceiro irmão; sepultam-no sob uma montanha; seu corpo transforma-se em ferro. É preciso entender que as tradições são tributárias, muitas vezes, dos mitos cosmogônicos e que, em determinadas tradições, a cosmogonia torna-se solidária de um simbolismo ligado ao desenvolvimento de um “embrião”. Assim, não raro, o mito de criação do mundo a partir de um ser

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Hieronymus Bosch

“O Jardim das Delícias Terrenas”: obra do ano de 1500 que descreve a história do mundo a partir da criação, apresentando o paraíso terrestre e o inferno nas asas laterais

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Ao acelerar o processo de crescimento dos metais, o metalúrgico precipitava o ritmo temporário: o tempo geológico era mudado por ele de forma vital.

primitivo, é concebida como o desenvolvimento de um feto. Em outros estudos ao longo dos tempos, vários alquimistas fizeram a conexão e a valorização dos minerais como embriões. Voltemos à questão das minas. Se as minas e as cavernas são assimiladas ao “órgão sexual da Mãe Terra”, tudo que jaz em seu “ventre” está ainda vivo, em estado de gestação. Dito de outro modo: os minerais extraídos das minas são, de certo modo, embriões: crescem lentamente, com um ritmo temporário distinto ao dos animais e dos vegetais, mas crescem, “maturam” nas trevas telúricas. Sua extração do seio da terra é, por conseguinte, uma operação praticada antes do término. Se lhes deixassem tempo para desenvolver-se ao ritmo geológico, os minerais far-se-iam perfeitos, seriam metais “amadurecidos”. Analisando por este prisma, podemos pensar claramente na responsabilidade dos mineiros e das empresas que extraem minérios das nossas montanhas e dos metalúrgicos do passado e do presente ao intervirem no obscuro processo do “crescimento mineral”. Para justificar as intervenções e para exercer atividades, os mineradores e ferreiros pretenderiam, consciente ou inconscientemente, substituir com os procedimentos metalúrgicos a obra da Natureza. Ao acelerar o processo de crescimento dos metais, o metalúrgico precipitava o ritmo temporário: o tempo geológico era mudado por ele de forma vital. O minerador e o ferreiro deixam-nos com um pressentimento sobre a obra de cada um deles. Talvez essa responsabilidade não esteja clara para muitos deles, sobretudo, na atualidade planetária.

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Interessante pensar que o ferreiro é, também, aquele que cria as armas dos heróis. Não se trata somente de sua fabricação material, mas, sim, da magia de que estão investidas; é a arte misteriosa do ferreiro que as transforma em armas mágicas. Daí as relações, testemunhadas nas epopeias, que existem entre heróis e ferreiros. Igualmente, nas canções épicas de quase todas as tribos mongóis, assim como entre os turcos, o termo “ferreiro” (darkhan) significa “ferreiro” e “cavalheiro franco” (quer dizer, livre). Em certas ocasiões, os ferreiros são levados até a dignidade real. Segundo histórias orientais, GengisKhan foi um simples ferreiro e a lenda tribal dos mongóis relaciona o ofício de ferreiro com a casa soberana. Conforme a tradição iraniana, o ferreiro Kavi (antecessor da dinastia Kavya) colocou seu avental de couro no extremo de uma zvaí, erigindo a flâmula da luta contra o rei dragão. Tal avental converteu-se na bandeira real do Irã. A proposta deste capítulo tem como objetivo promover, de algum modo, a compreensão de aspectos da “história profunda” ligada ao minério de ferro enraizado ou gestado no interior das montanhas do médio Espinhaço. São estes os elementos simbólicos que estruturam o imaginário de Morro do Pilar ou de qualquer outra região da Serra do Espinhaço. Ampliar os horizontes de nossas informações, sobretudo, com elementos tão pouco conhecidos do grande público, era um antigo sonho que se materializa no texto que se finda, mas que tentou iluminar fatos e contextos que permeiam o que muitos chamam de “história oculta”.

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Capa do livro de alquimia A arte dos Metais de 1817

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capítulo 10

Gestão integrada de território em Morro do Pilar: uma nova visão para o uso inteligente do território ♦ Luiz Oosterbeek 1 ♦

Como um cofre do tempo, irrealizado e absoluto, a cidade ignora a exactidão do presente, conhece apenas o alarme da memória. As casas novas têm todas a mesma idade de séculos. E quando se sai da cidade, a planície prolonga, até um limite irreal, esta voz de infinitude. (Virgílio Ferreira)

Hoje não é longe

A

caminho do monte Atlas, em Marrocos, um companheiro de viagem, Mohamed, explicava que há pessoas que trabalham em Marraquexe, mas vivem a dezenas de quilômetros de distância, porque hoje não é longe. Ele acrescentava que, devido aos meios de transporte que encurtaram as distâncias, pessoas que antes nunca se cruzariam podem, hoje, ver-se todos os dias. Na medida em que nos afastávamos de Marraquexe, cidades berberes de escassos recursos ocupavam as vertentes dos contrafortes da grande montanha, contrastando com a diversidade de cores e sabores da cidade. Menos recursos, falta de cuidados médicos locais, maior isolamento e pobreza, porém, assegurou-me Mohamed que há mais tempo para conviver, menos velocidade, mais felicidade. Uma felicidade regada com a água das neves do Alto Atlas que alimentam, ainda hoje, os rios e ribeiros que geram espantosos mantos verdes no meio do deserto rochoso No planalto do Ebo, no Kwanza Sul, em Angola, o delegado de cultura da região, Prazeres Seralo, subia rapidamente pelos cabeços rochosos sem solo, onde só escassas ervas podem ser vistas, enquanto eu tentava, com dificuldade, acompanhar o seu passo. Perguntei-lhe se, antigamente, antes das estradas, as deslocações eram mais lentas, e ele disse que sim. Muito mais lentas: menos de 10Km por dia, porque no lugar das estradas estava a selva com elefantes, leões, jibóias e muitos outros predadores que condicionavam os horários em que se podia caminhar. Era um tempo mais lento, com tudo mais longe, mas grande abundância de recursos para uma vida com esperança curta, mas plena. Uma vida gravitando em torno da água do rio Queve e das chuvas torrenciais que, ainda hoje, inundam regularmente o planalto (OOSTERBEEK; MARTINS; DOMINGOS, 2012).

Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1982), PhD (1994) pelo University College London.,É Secretário Geral do Conselho Internacional de Filosofia e Ciências Humanas (Paris, Unesco), membro correspondente do Instituto Arqueológico Alemão (Frankfurt, Alemannha), Vice-Presidente do HERITY International (Roma, Itália); membro do Conselho Científico do Centro Universitário Europeu para o Património Cultural (Ravello, Itália); Professor Coordenador do Instituto Politécnico de Tomar. Presidente do Instituto Terra e Memória ( Portugal). 1

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Em Morro do Pilar , encontramos locais onde o tempo foi suspenso

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A Lisboa em que cresci era uma cidade de luz forte iluminando casas pálidas onde se escondiam revoltas que a ditadura reprimia e que aos poucos fui percebendo. Foi um tempo de longos verões, com férias escolares de junho a outubro, em que alguns dos mais jovens ocupavam o tempo livre aprendendo a gostar das paisagens e do lazer (enquanto outros eram forçados a abandonar a escola e a trabalhar desde muito cedo). Andei muitos quilômetros por dia nessa Lisboa. Minha mãe diz que desde antes dos cinco anos, e quando tive dinheiro para uma bicicleta de segunda mão, comecei a sair da cidade, usando as estradas para chegar a Cascais ou a Sintra, a uns 30Km de distância. O longe ia ficando mais perto, mas tudo era tranquilo. E, quando estava a terminar os meus estudos secundários, lembro-me de pegar com um amigo um bondinho (chamado elétrico em Lisboa) que por mais de uma hora se arrastava pela cidade e, enquanto isso, nós jogávamos jogos de xadrez imaginário, sem distrações. Hoje, não há bicicletas em Lisboa, pois ficou perigoso com a quantidade de automóveis e o cheiro dos seus escapes; os bondinhos que restam são para turistas; o xadrez quase desapareceu e os pais não deixam seus filhos percorrer livremente as ruas por falta de segurança. Nessa Lisboa, cidade de rio e de mar, a água é um eterno presente atestado pelo imponente aqueduto das águas livres, monumento maior de uma capital de império que se modernizou no século XVIII, sobretudo, graças ao ouro do Brasil (uma referência ao Aqueduto das águas livres). A água é o foco primordial das sociedades humanas pela óbvia razão fisiológica, convertida em processo cultural, dos fazedores de água do Sahel africano aos meteorologistas da atualidade (SINGLETON, 2010). Essa é a mesma água que percorre as veias da Serra do Espinhaço e articula, com sua flexibilidade, a biodiversidade da região. Na verdade, o espaço e o tempo mudaram, a geogra­ fia humana mudou e continua mudando muito rapidamente. E a mudança não foi uma escolha dos berberes marroquinos, dos n’goias2 angolanos ou dos lisboetas portugueses, porque a mudança, já inevitável por processos não antrópicos, sofreu uma grande aceleração na era da globalização. A escolha humana 2

no passado foi sempre sobre a forma da mudança e o seu ritmo e, aí, os resultados foram diferenciados, mas, em todos os casos, deixaram espaço para o sorriso e para as lágrimas (CRUZ; MILIKEN et al., 1999). As lágrimas vieram, sobretudo, dos que pensavam ou que era possível evitar a mudança ou dos que pensavam que a mudança traria a felicidade. Contudo, a mudança não traz nada, ela simplesmente é, e são as sociedades humanas, por seus jeitos de reagir, que condicionam os resultados da mudança. Por isso, os sorrisos vieram, sobretudo, dos que aprenderam a acompanhar e moldar a mudança, aprendendo a admirar as mudanças humanas e a beleza que lhes estava associada. A adaptação bem sucedida é, sempre, uma adaptação à diferença de comportamento de outros seres humanos que ou vemos como estrangeiros, com medos mútuos que no final geram o estranhamento de nós mesmos (CAMUS, 2006) ou como outra forma de sermos nós mesmos com admiração e prazer. Na epígrafe que abre este texto, Virgílio Ferreira fala de Évora, cidade branca e seca das terras de além Tejo, em Portugal. Entretanto, poderia estar a falar de Ravello, em Itália, ou de Chartres, na França, ou ainda de Ouro Preto ou Mariana que estão mais perto de nós. São terras de muita memória, de muita idade, já um pouco fora do tempo, fora da vertigem das mudanças do presente, artificialmente condenadas a um infinito futuro feito de passado, muito belas e necessárias, muito acolhedoras, carinhosas até, porém, irreais. Essas cidades onde o tempo foi suspenso não se confundem com o tempo lento, mas determinado, dos campos, nem com o tempo muito veloz das grandes metrópoles cheias de cor e movimento, cheias de ansiedade e esperança transformadora: Madrid, São Petersburgo, Roma, Nagoya, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte… Nestas, fervilha o sentimento da mudança, da inovação, da ruptura permanente. Naquelas, há mais voracidade, maior alienação, forte isolamento individual. Na sua beleza museográfica, correm o risco de se transformarem em não-lugares (AUGÉ, 1994) instituídos para outros visitarem apesar de, também, nelas viverem gentes com vontade de futuro.

N’goia: povo que habita na província de Kwanza Sul, em Angola, integrante do tronco linguístico quimbundo.

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Legenda da fotodo | Legenda da foto egenda da fotoegenda Em Morro Pilar, encontramos a forma de da fotoegenda foto egenda foto sermos nósdamesmos com da admiração e prazer

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O tempo das escolhas Mas se tentar imprimir em suas paisagens qualquer outro espírito que não aquilo que sentiu, fazendo, então, paisagens de outros tempos, está tudo acabado para ele, ao menos na medida em que tal luar refletido toma o lugar da genuína luz do dia atual. (John Ruskin)

Morro do Pilar não é ainda uma dessas cidades de que vimos falando. Em Morro do Pilar, encontrase, afinal, o sentido original da cidade organizadora do campo, da cidade e cuja raiz cultural vive fora dela (gestão de espaços urbanos), nas roças, nas cachoeiras, nas fibras de indaiá. Mas é uma outra ilusão, porque a cidade de Morro do Pilar já é a casa da maioria da população do município, já vive transformação em cada metro de avanço do mineroduto ou em cada nova cafeteria ou loja que abre suas portas. Contudo, diferentemente das cidades brancas como Évora ou das cidades fervilhantes como Belo Horizonte, Morro do Pilar ainda não se decidiu, ou seja, os morrenses ainda podem escolher o caminho. Nesse sentido, lembra-me outras cidades, umas menores, como o Ebo, em Angola, outras maiores como São Luiz, do Maranhão. Cidades com muitos futuros ainda convivendo lado a lado. Como Mação, em Portugal, município de dimensão similar a Morro do Pilar, forte na sua identidade memorial, mas, também, na sua ânsia de renovação: Un village qui se transforme… Um dia, bem próximo, os morrenses vão acordar e enxergar pelas janelas de suas casas que escolheram um de dois caminhos na certeza de que já têm da inevitabilidade da mudança. Nessa hora, saberão que a escolha foi boa caso virem refletido o que é já hoje o seu espírito e, não, uma luz emprestada de outra realidade qualquer, como escreveu John Ruskin. O sentido, hoje, é o da mudança e o jeito de conseguir que a transformação conduza a paisagens coerentes com a identidade morrense, é participar e guiá-la de forma integrada.

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Com 477,548Km e 3.399 habitantes (dos quais 2.581 em meio urbano), Morro do Pilar enfrenta desafios em diversas frentes, desde logo no âmbito do planejamento que, em parte, foi feito pela Prefeitura Municipal no ano de 2013, antes de poder ser considerado o impacto do empreendimento da Manabi, e que mesmo agora estima um crescimento muito limitado da população, o que tem implicações diretas no grau de atenção e enquadramento supramunicipais. Os estudos existentes e de grande qualidade técnica como, por exemplo, os diversos produtos do plano regional estratégico em torno de grandes projetos minerários no norte de Minas (2013) ou o Inventário Turístico de Morro do Pilar (2013), prevêem um recrutamento de mão de obra, principalmente, local e regional (o que não é um dado seguro e vai depender da capacitação local) e, sobretudo, uma baixa atratividade para a residência estável (o que não será o caso se Morro do Pilar constituir-se como território de bemestar). De fato, o sucesso dos projetos de rearranjo territorial produzirá um crescimento demográfico (por via do setor de serviços e, em especial, do turismo) que irá impor uma carga sobre as infraestruturas que está para além das previsões dos estudos considerados. Deve ser previsto com detalhe e monitorado o impacto demográfico em questões como o tratamento de águas, os esgotos, a energia de emergência, a iluminação pública, a segurança, a gestão de resíduos sólidos, o acesso à internet, a oferta de ensino médio e superior (devendo atender-se a uma taxa de analfabetismo superior a 20% e, sobretudo, a um percentual de detentores de grau médio inferior a 15%), os passivos ambientais das minas, o emprego (hoje, estruturalmente, muito dependente da oferta pública e com apenas 16% de ocupação formal contra uma média estadual de 49%), as vias de comunicação, os transportes e a saúde. Em face desse quadro de base, o desenvolvimento de uma dinâmica de desenvolvimento sustentável não se pode limitar à consideração dos quadros ambiental, social e econômico (como foi compreendido após a Eco 92), mas requer sua articulação a partir dos pontos de vista humanos (como reconheceu a

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Morro do Pilar vive o momento da procura de um caminho para o crescimento sustentável

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Paradigma da Sustentabilidade: a gestão integrada para Morro do Pilar

Rio+20), pois importa “[...] compreender como as perspectivas culturais condicionam a compreensão da relação entre o quadro ambiental e o quadro social e econômico.” (OOSTERBEEK, 2011, p. 7). O meio ambiente, que incorpora diferentes dimensões analíticas (natural, cultural, artificial, do trabalho), é, essencialmente, uma construção cultural, uma forma de conceber o entorno condicionador do comportamento humano. Os quadros de referência ambiental, social e econômico são, também, unidades analíticas, pois a realidade é uma só (KANT, 1999) e é a perspectiva interpretativa humana (cultural) que, ao mesmo tempo, produz essa decomposição analítica e pode reencontrar a unidade radical da realidade. A gestão integrada do território é, precisamente, um conjunto de instrumentos de referência que permite operar tal reencontro que é, simultaneamente, transdisciplinar e holístico. Assim, as perspectivas culturais da sociedade morrense são ditadas não apenas pela sua segmentação socioeconômica, mas também, fundamentalmente, pelo seu histórico ou o que foi designado como “memória do lugar” (NORA, 1993, p. 7-28). Com um histórico de mineração, iniciada com a exploração aurífera por Gaspar Soares e,

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definitivamente, consolidada com o berço da siderurgia nacional, testemunhada pela primeira fábrica de ferro em alto-forno do Brasil — a Real Fábrica de Ferro, de 1813 —, Morro do Pilar tem, além de um ainda limitado setor de serviços, uma tradição extrativista (do ferro ao carvão) complementada por um setor agropecuário que, hoje, tem baixa produtividade e é orientado para a subsistência. O programa de mineração, com as duas cavas previstas para operar entre elas, por mais de uma década, abre a possibilidade de reorganização global dos ativos territoriais como, por exemplo, criação de marca territorial identitária, ampliação da oferta formativa, introdução de energias ecossustentáveis, criação de unidades transformadoras locais, agregação cultural de valor aos produtos (design, marketing, conexão economia/cultura), modernização da agricultura, comércio de produtos artesanais. Esse contexto histórico induz, potencialmente, uma menor coesão territorial, pois o extrativismo, contrariamente à produção, não é um “cuidador da terra”. Dessa forma, as identidades estruturam-se mais fortemente em torno das práticas de produção do que em relação ao espaço e, por isso, têm uma menor vinculação territorial que favorece a emigração. Vale mencionar que, em conversa com jovens morrenses

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Atividades artesanais, como trabalho em fibra de indaiá, reforçam o domínio territorial do povo de Morro do Pilar

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sobre suas expectativas de futuro, a ideia de emigrar revelou-se muito forte. Importa, contudo, sublinhar que existem, também, possíveis tendências de reforço territorial que são potenciadas pela persistência de práticas produtivas — sobretudo, no meio rural, mas, também, em ati­ vidades artesanais dele dependentes, como trabalho em fibra de indaiá — e de redes de distribuição de produtos (comércio) e conhecimentos (ensino). É entre esses dois conjuntos de tendências e sobre as suas raízes e memórias que o programa específico de gestão integrada do território de Morro do Pilar pode ser estruturado, valorizando-os e favorecendo uma crescente resiliência apoiada na complementaridade de perspectivas. As explicitações das duas tendências e de suas múltiplas declinações serão feitas não por meio de inquéritos de cariz sociológico (que são relevantes em planejamento estratégico, mas demasiado padronizadores para a dinâmica de gestão integrada do território) e, sim, por atividades induzidas de participação cívica que cruzem as dimensões de memória, identidade, conhecimento e empreendedorismo. Tais atividades constituem a base da matriz territorial que se detalhará no item seguinte do presente texto e permitem a explicitação, na escala individual, de múltiplas identidades convergentes, evitando simplificar e diminuir o contributo individual no processo que se torna tanto mais relevante quanto o indivíduo partilhar redes complexas de afinidades (de lugar, profissão, confissão, idade etc.) que constituem os Princípios de GIT. Deve-se destacar, também, o fato de Morro do Pilar ser um potencial destino turístico, em especial, o turismo ambiental, cultural, tecnológico e geoturismo, devido à proximidade com os locais já valorizados da Serra do Cipó (tendo parte de seu terrritório inserido no Parque Nacional da Serra do Cipó) e à qualidade de diversos ecolocais, hoje, essencialmente visitados pelos morrenses: Balneário do Lajeado, Rio Preto de Cima, Rio Preto de Baixo, Cachoeira das Pedras, Cachoeira do Tombo, Cachoeira do Pica-pau ou Cachoeira do Herculano. Esta rede de águas configura uma dimensão identitária muito forte com Morro do Pilar das águas e marcas do sagrado. 296

Em tal cenário, afirmam-se como principais focos de um turismo ecocultural as diferentes quedas d’água, as unidades de conservação (muito amplas e com plano de expansão), as cavernas (ainda não estudadas) e locais mais estritamente culturais como as minas de Hogó (arqueologia), a Igrejinha do Canga (séc. XVIII) ou o Memorial da Fundição de Ferro. Esta riqueza de Morro do Pilar, no contexto do Médio Espinhaço e da bacia hidrográfica do Rio Doce, é acompanhada pelo contato entre Mata Atlântica e Cerrado (que domina a maior parte do município). Os setores de hoteleria e restauração, ainda muito limitados e com uma expansão orientada, sobretudo, para o afluxo de mão de obra associada à mineração, têm um potencial de expansão muito expressivo. Torna-se especialmente importante considerar uma relação articulada com municípios vizinhos, principalmente com o setor sul do Médio Espinhaço, que potencialmente partilham de preocupações convergentes (acessibilidades, diversificação econômica) e com os quais se pode obter importantes ganhos de escala em uma lógica de coesão territorial e de crescimento. A escala maior poderá reforçar, em benefício de todos, a infraestruturação de qualidade de todo o território. A Morro do Pilar abre-se, hoje, um amplo leque de grandes questões: •

Quais produtos construir, de forma sustentável, com os recursos naturais existentes?

Quais gestos nos serão ainda úteis após as reconversões tecnológicas?

Qual produção e para que escala de oportunidades (bairro, cidade, município, região etc.)?

Como estruturar uma dinâmica diferenciada que valorize o território?

Qual o diferencial para Morro do Pilar?

Este é o sentido de um tempo de mudança. Todavia, a realidade dos pormenores da mudança, a sua especificidade cultural, ainda irá depender dos morrenses. E, nesse jogo, a única regra de ouro é participar, ao mesmo tempo, com a emoção da afetividade e com a razão da consciência.

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O programa de gestão integrada do território em Morro do Pilar valoriza os ambientes e favorece uma crescente resiliência de suas perspectivas

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Os fundamentos teóricos

da modernidade), essas reflexões nos levavam a priorizar o conhecimento e os seus conteúdos.

O mundo é o substrato e a cena em que se desenvolve o jogo da nossa aptidão. (Kant)

Durante toda a primeira década do século XXI, em Mação e em diversos cenários, organizaramse intervenções de gestão integrada do território (GIT) que se apoiam na compreensão de que conhecimento (do meio ambiente, da tecnologia e dos processos sociais) e logística (que, na verdade,

Desde o final da década de 1990, as grandes

é um conhecimento aplicado à equação espaço-

expectativas geradas pela Eco 92 e, já antes, pelo

tempo) são as bases de um processo que deve olhar

relatório da “Comissão Brundtland”, de 1987, foram

o futuro, enxergando os dilemas de escolha que se

dando lugar à constatação do não cumprimento das

oferecem, a cada momento, à sociedade, o que, por

principais metas traçadas para além dos grandes

sua vez, favorece a definição de visões convergentes

avanços no domínio da relação entre planejamento

de médio e longo prazo e, também, a governança.

e meio ambiente e no domínio da participação social (com destaque para a Agenda 21) — o futuro que

Quatro grupos de ações tornam-se necessários para

queremos. Nosso futuro comum.

programar uma dinâmica de GIT: formação (de toda a população), organização de uma matriz territorial

No final daquela década, programas europeus foram

resiliente (com foros de debate, espaços de memória

sendo orientados para a gestão multidisciplinar de

e outras componentes), comunicação diversificada

territórios e foi, nesse âmbito, que teve lugar um

e multidireccional e, finalmente, interlocução

importante projeto de monitoramento de grandes

institucional para a governança.

bacias fluviais do sul da Europa (OOSTERBEEK; SANTOS et al., 2001, p. 89-129) a que se seguiu a

Em 2010, o Instituto Terra e Memória3 foi criado

organização do 1º congresso de gestão do território

em decorrência dos processos de reflexão e atuação,

(VVAA, 2001) com a participação de especialistas de

tendo como missão buscar, como consta no site

Portugal, Itália, Romênia, Suécia, Letônia e Irlanda.

do referido instituto, “Respostas culturais para

Começou-se, então, a forjar um novo entendimento

problemas e dilemas sociais, culturais e ambientais,

dos processos de sustentabilidade que buscava um

através da valorização da memória e das ciências,

novo quadro teórico e metodológico de referência,

numa lógica sistêmica.”. Essa missão tem hoje

constatando que o planeta estava ficando pior apesar

projetos de aplicação em diversos territórios na

dos acordos decorrentes da Eco 92.

Europa, na África e na América do Sul (especialmente no Brasil).

No centro da discussão, estava a intuição de que à resposta articulada desde a década de 1980, apoiada

Gestão Integrada do Território (GIT) é o que faziam

sobre o cruzamento das ciências naturais com as

as sociedades que no passado foram bem-sucedidas.

ciências sociais (ou seja, no tripé quantificação-

Em um ciclo de mudança sistêmica global, todas as

tecnologia-educação), faltava a dimensão menos

atenções tendem a concentrar, alternadamente, em

parametrizável das humanidades. Quando o foco

apenas um dos seus vetores: ora o financeiro, ora o

dominante das estratégias públicas afirmava-

social, ora o ambiental, algumas vezes o econômico,

se em torno da pedagogia educativa (o paradoxo

raras vezes o cultural. E todas essas atenções vão

3 Membro institucional do Centro de Geociências da Universidade de Coimbra, com sede em Mação, Portugal. Em 2013, foi criado o Instituto Terra e Memória – Brasil, entidade brasileira independente, porém, associada ao ITM em Portugal.

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Novas estratégias de políticas públicas devem afirmar-se através de novas propostas para a educação em Morro do Pilar

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deslocando-se de um para outro conforme suas

ainda que por meio de grandes convulsões: a Europa

desilusões, constatando que não são mais eficazes e

afetada pela “Pequena Idade do Gelo” é um modelo

suficientes as soluções setoriais de problemas.

claro que tem paralelo, por exemplo, na emergência

A GIT supera estéreis debates sobre as opções entre crescimento e desenvolvimento e constrói um quadro

das Missões Jesuíticas da Província do Paraguai, no século XVII.

de discussão em que a didática dos dilemas é o elemento

Em uns contextos, como em outros, não foi a

nuclear para a elevação das competências críticas dos

natureza dos insumos disponíveis ou a sua melhor ou

indivíduos a fim de que estes possam decidir sobre

pior distribuição que foram fatores determinantes

nosso futuro coletivo. Nesse processo, mais do que

e, sim, a capacidade de aumentar o capital humano

ambiente, economia ou cultura, é a palavra território

e, a partir deste, identificar novos insumos entre

que se torna nuclear e, em um futuro que se apresenta

as mesmas matérias-primas, desenvolvendo a

incerto e inseguro, a concorrência entre territórios e a

tecnologia adequada para a sua exploração.

sua possível certificação serão certamente realidades (SHEUNEMANN, 2009, p. 10-14).

Os desafios do planeta, perante os quais o ITM

Não se trata, então, de promover uma receita ou

promover a valorização de insumos e da tecnologia

um modelo socioeconômico específico, mas, sim,

sem rupturas ambientais ou sociais a partir de

de construir um quadro de referência que evite a

uma diversidade de perspectivas culturais. Na

desarticulação e a dispersão de esforços, haja vista

metodologia desenvolvida, o objetivo é influenciar

que o início do terceiro milênio está sendo marcado

o futuro com base na mobilização de uma cidadania

por uma crise global que se exprime em todas as

culta e consciente.

esferas: econômica (reorganização dos mercados, dificuldades do sistema monetário internacional); social (quebra acentuada da natalidade no planeta,

busca dar seu contributo, passam pela capacidade de

A governança territorial (G), essencial ao futuro, é função do somatório cultural no tempo de uma dupla

desemprego estrutural em muitos territórios, crise da

relação: entre os insumos do meio ambiente (Env) e a

classe média no hemisfério norte); ambiental (crise

tecnologia (Tec) para resgatá-los e utilizá-los; e entre

energética, desertificação) e cultural (crescente

as redes logísticas (Log) e as dinâmicas sociais (Soc)

mobilidade por motivos econômicos e de segurança,

que a elas acedem. Essa dupla relação e respectivo

consequente questionamento das fronteiras não

processo de integração são descritos na equação

apenas socioeconômicas e políticas, mas também,

seguinte em que K representa a especificidade e

identitárias).

diversidade cultural de cada território (que são suas forças integradoras ou de dispersão conforme a

Não é a primeira vez que, apesar das aparências,

dinâmica com que forem desenvolvidas):

ocorre uma crise sistêmica que afeta a rede de intercâmbios e a estabilidade social de uma malha de povoamento urbano. Ainda que em escalas mais limitadas, mas apesar de tudo comparável em função da tecnologia de transportes e comunicações

É essa dupla relação que o Instituto Terra e Memória

então existentes, diversas civilizações no passado

vem contribuindo para aprofundar em projetos

pereceram rapidamente perante a combinação de

muito diversos, de pequenas e grandes escalas,

fatores ambientais e climáticos (o mundo Micênico,

em contextos culturais na Europa (Portugal, Itália,

a Roma imperial, a civilização Maia, o império Asteca

Grécia), na África (Angola, Namíbia, Senegal,

etc). Inversamente, em face de crises, igualmente

Etiópia, Tanzânia) e na América do Sul (Brasil,

sérias, não são raros os exemplos de desenvolvimento

Guatemala, Costa Rica). Projetos que podem partir

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Um dos desafios de Morro do Pilar é construir estratégias logísticas que unam necessidades e recursos para proporcionar melhor futuridade às novas gerações

de preocupações e interesses setoriais (por exemplo,

gera, pois, tensões e pode conduzir a sua exaustão e

um processo de desertificação ambiental, o impacto

à ruptura de equilíbrio dos sistemas territoriais em

de um grande empreendimento, um mapeamento

que se integram. Isso é verdade para cada um de nós

arqueológico ou outro setor qualquer), mas que

e para as nossas organizações, empresariais ou não.

evoluem para uma gestão integrada.

O território é, assim, um sistema constituído por

Na verdade, na raiz de todas as estratégias humanas

recursos, em grande medida, não renováveis, e

estão duas dimensões inseparáveis: conhecimento

carecido de uma gestão integrada que proteja esses

e logística. Ao longo de toda a vida, desde que

recursos ambientais e culturais na perspectiva

nascemos, buscamos recursos necessários para

do desenvolvimento compatível e sustentável e

satisfazer as necessidades que temos. Nem todos nós

articulando perspectivas distintas e dinâmicas,

temos as mesmas necessidades, nem todos temos o

muitas vezes, contraditórias. Entretanto, os grupos

mesmo conhecimento sobre os recursos realmente

humanos não atuam diretamente nos territórios,

disponíveis e, por vezes, nem todos enxergamos os

pois o que eles vêem é, culturalmente, construído:

mesmos recursos; mas todos nós buscamos construir

vemos o que sabemos ver, não enxergamos o que

estratégias logísticas que unam necessidades e

não conseguimos compreender. As paisagens são

recursos. Os recursos são realidades, materiais

definidas pelos diversos olhares sobre um território.

ou intangíveis, vivas ou inertes, necessárias para

Enquanto no território está o que lá está, o que

prosseguirmos as nossas ações para a satisfação das

designamos por recursos, na paisagem, está apenas

nossas necessidades. A competição pelos recursos

o que queremos ou conseguimos ver.

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Como escreveu Michael Singleton, “[...] os dados

dimensões do tripé está presente nas demais:

fazem-nos pensar, mas não nos dizem o que pensar

a sociedade estrutura-se a partir das relações

[...].” (2010, p. 54). E os indivíduos e as empresas

econômicas e os grupos sociais acedem de forma

ou outros grupos humanos podem partilhar apenas

diferenciada aos recursos ambientais; a economia

uma ou várias paisagens, isto é, podem ou não

serve às necessidades da sociedade e articula as

conceber a noção de diversidade. Enxergar muitas

relações dos grupos sociais entre si e os demais

paisagens permite atuar com mais eficiência, por

recursos ambientais; o ambiente inclui todas as

isso, as sociedades com maior diversidade cultural

variáveis, abarcando, naturalmente, as sociedades

integrada, com mais migrantes, mas sem guetos,

humanas. A consideração isolada dessas vertentes

são, tendencialmente, sociedades mais fortes, mais

tem gerado dificuldades de implementação de

resilientes e com menos medo.

estratégias de efetivo desenvolvimento sustentável e a construção de consensos estratégicos para o

Vivemos em territórios, mas são as nossas memórias

futuro.

que estruturam as fronteiras das nossas culturas que, por sua vez, condicionam as paisagens que

Um caminho essencial é o de reintegrar as três

percebemos e que, finalmente, são o que determina

dimensões da sustentabilidade, compreendendo

o que pensamos poder fazer nos territórios. O

que elas só fazem sentido como corpo unificado e

desenvolvimento ou a ausência dele inscrevem-se

regulado pela diversidade de entendimentos culturais

nesse processo.

que existem sobre o próprio desenvolvimento e as

O conceito de desenvolvimento sustentável foi

seja, importa entender que a diversidade cultural

construído em decorrência do conceito de TBL

de “paisagens” (C+ASE), de percepções dos

(tripple bottom line) que identificou, essencialmente,

territórios, tem de ser acomodada nas estratégias

três pilares em permanente equilíbrio: economia

de desenvolvimento, não para anulá-las (ambição

(mecanismos de geração de energia para espécie

ilusória), mas, sim, para potencializar, com tal

humana), sociedade (formas de organização da

diversidade e contradição, maior dinamismo e

espécie) e ambiente (contexto global). Este “tripé”

desenvolvimento.

não deve, no entanto, ser entendido como um conjunto de realidades justapostas (BATISTA, 2011, p. 89-93) ou como a combinação de duas dimensões humanas (sociedade e economia) e uma dimensão não humana (ambiente). O conceito permite, de fato, diversas leituras e é, muitas vezes, reduzido a uma relação entre a componente “boa” do ecossistema (o ambiente e a sociedade) e a componente “má” (a economia). Uma ilustração desse entendimento é o conceito de “poluidor pagador”, ou seja, o conceito de que, sendo grande parte da economia geradora de um “mal”, deve ela ser punida e pagar uma

prioridades econômicas, sociais e ambientais. Ou

As estratégias de aplicação do desenvolvimento sustentável, que desarticularam o seu tripé de base, fundando-se na noção de “conservação ambiental” isolada, não têm sido capazes de reverter as mais perigosas tendências para a degradação do ecossistema de que o aquecimento global é uma expressão e de que a crise econômica mundial faz-se eco. Uma reintegração dessas dimensões — a partir da compreensão de que as três são culturalmente geradas e de que, por isso, não são susceptíveis de consentirem “visões únicas” —

“compensação”.

é o caminho pragmático e eficiente. Um caminho

Uma visão sistêmica, no entanto, deve entender,

aprendida, da ação humana é a determinante,

como se referiu antes, que a economia é a própria

afirma como prioridades a educação crítica e

essência da sobrevivência da espécie. Mais do

a construção de novos modelos de governança

que isso, importa perceber que cada uma das

territorial.

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que, por entender que a dimensão cultural, bem

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Um novo modelo de governança territorial pode permitir que as comunidades rurais identifiquem outras e melhores oportunidades

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Primado do método Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. (Sophia de Mello Breyner Andresen)

Quando Descartes escreveu o seu Discurso, a ciência moderna já se anunciava, entretanto, ainda não fora plenamente estruturada e consolidada, o que só ocorreria nos séculos XVIII e XIX. Mas, o Método permitiu definir a linha de demarcação dessa nova forma de conhecimento (OOSTERBEEK; SANTANDER; QUAGLIUOLO, 2010), abrindo cami­­nho à afirmação das ciências, ou seja, do conhecimento positivo e referendável. Na transição da ciência moderna para “algo mais”, importa não cometer dois erros comuns: não ignorar o saber disciplinar, que tem limitações, porém, é o primeiro responsável pela melhoria das condições de vida no planeta; não pensar que já é possível construir um novo corpo teórico explicativo. Tal como no século XVII, não sabemos para onde vamos, contudo, podemos decidir como vamos e qual o método que pode articular nossos ensejos. No método cartesiano, que permitiu grandes avanços no conhecimento científico, é a dúvida que estrutura todo o raciocínio. Em um conhecimento que objetiva estabelecer as condições de verdade, seu permanente questionamento ou o que veio a ser conhecido como o método da falsificação das hipóteses (POPPER, 1993), a incerteza é uma etapa a superar em um processo que tende para uma conclusão, para um final. Não é esta nossa realidade atual. Há um quadro de conhecimento mais complexo que continua a se beneficiar do rigor cartesiano, mas que já apóia a inovação em um quadro de referência mais complexo. Na era da incerteza, já não é apenas uma etapa do processo, mas também, uma característica fundamental, pois a natureza do processo mudou.

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Conquistado o conhecimento disciplinar que foi estabilizado em torno das ciências, hoje, é a unidade do conhecimento em um processo de vivência (processo, incerteza), e não de finalidade (termo, verdade absoluta), que se torna cada vez mais urgente. Não é o “bom governo” que se pode buscar, pois as contradições existentes no planeta são muitas e ainda crescentes e, sim, a governança, ou seja, a construção de plataformas de equilíbrio permanentemente negociada, iluminada pelo conhecimento das pessoas. O lugar da dúvida cartesiana é, agora, ocupado pela socialização do conhecimento, potenciadora da explicitação de perspectivas distintas, todavia, movida pelos saberes e não pelo medo. Essa socialização tem de começar na escola com a combinação do ensino das matérias de forma integrada, prosseguir na universidade, com a transdisciplinariedade, e culminar no conjunto da sociedade com o que chamamos de governança. A questão é, então, como operacionalizar essa socialização do conhecimento. Todos os instrumentos são fundamentais, desde a exposição retórica ao treino da memória, mas é no treino experimental da gestualidade que se estrutura a autonomia de um pensamento crítico, entretanto, convergente. O conhecimento cultural (K) é, nestes termos, o produto no tempo (t) que é resultante da relação entre a gestualidade (m) e a tecnologia (y):

K = t (my) Rigorosamente, trata-se de um regresso para as nossas origens, pois nosso conhecimento estruturado e nossa linguagem, duplamente articulada, emergiram das relações sociais estabelecidas pelo gesto e suas produções. Sabemos que a crescente virtualização dos processos, outrora mecânicos e, hoje, provenientes de diferentes resultados conseguidos com um mesmo gesto (o ato possibilitado pela tecla de computador), está conduzindo à perda de competências cognitivas nas pessoas. É essa nova forma de alienação que importa combater em defesa da dignidade humana e da sua saudável relação com seu entorno.

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A caça, tão comum no passado de Morro do Pilar, é hoje pouco praticada pelos moradores locais.

Na organização da sociedade para a governança, o mais importante é fazer, compreendendo que no caos das percepções discordantes existe um potencial acordo, muito amplo, que radica na equação descrita acima. O fazer é o caminho que nos fez humanos, que estimula todos os nossos músculos e, entre eles, o cérebro de cada um de nós. Os acordos só se fazem a partir das diferenças, sabendo que tais diferenças são distinções de perspectiva que podem convergir culturalmente. O jeito como entendemos a sociedade, a organização econômica, ou o que entendemos por ambiente ou por direitos e deveres, é sempre um jeito cultural. Em cada processo ativo, qualquer que ele seja, converge essas múltiplas perspectivas, esses diferentes interesses. Trata-se de convergências feitas de tensão, muitas vezes de dor, mas, também, de otimismo e de vontade de futuro. Por isso, as ações coletivas no território são, potencialmente, integradoras. Dessa forma, a integração territorial faz-se a partir de qualquer um dos setores de atuação (saúde, ambiente, atividades produtivas, mobilidade, edu­ cação, urbanismo, capital institucional etc.), pois é uma integração cultural e, não, funcional. Essa

integração apóia-se em dez palavras-chave: a) Capital Humano (reforço de qualificações e competências) b) Rigor (coerência entre planos, expectativas e resultados) c) Transparência (acesso público aos procedimentos) d) Compromisso (engajamento de todas as partes no processo) e) Confiança (entendimento de empatia entre as partes) f) Iniciativa (não acomodação) g) Parceria (sinergia) h) Monitoramento (indicadores quantitativos de sucesso/insucesso) i) Qualidade (indicadores qualitativos de sucesso/ insucesso) j) Interlocução (diálogo interinstitucional) Em face de cada ação ou projeto, o método consiste em verificar se todas as dimensões da equação de GIT estão sendo atendidas especialmente as de sociedade, economia, ambiente e organização cultural. Para esse efeito, existem alguns procedimentos de referência. O ponto de partida da GIT não é a pergunta “qual é o

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problema que vai ser resolvido com a GIT” e, sim, “o que vamos perder se não tiver GIT”. Também, não tem sentido perguntar “o que eu vou resolver se tiver amigos” e, sim, “o que eu perderei se os não tiver”. A questão relevante não é tecnocrática nem funcional: é uma questão holística que sustenta o equilíbrio de nossa relação com os outros e o mundo. A GIT incorpora, para além de todas as variáveis tradicionais do planejamento, instrumentos orientados para monitorar variáveis não parametrizáveis e adopta, retirando de sua análise a perspectiva tradicional de “resolver problemas” do planejamento (que tem uma fraca capacidade de antecipação em um mundo em rápida mudança), a construção de sequências racionais de dilemas com que os territórios e seus agentes (em particular as empresas), se debatem e precisam superar. Ora, a GIT não é uma receita. Há passos e procedimentos comuns, metodológicos, que se organizam em sete vertentes não necessariamente sequenciais. As quatro mais importantes são: • Diagnóstico Territorial (caracterizar em detalhe o território, seus atores e suas dinâmicas de inte­ resses e tradições que possam orientar a elaboração de um Masterplan de GIT); estruturação da Matriz Territorial (o “esqueleto” da GIT que consiste em estruturar a malha orgânica do território com espaços de memória, foros de debate e dinâmicas de interlocução para a governança); seleção dos Eixos Integradores (identificar potenciais eixos estratégicos do território, definidos por meio da prospectiva, e construir projetos concertados para eles sempre com atenção às questões de governança (não excluir grupo algum de partes interessadas) e de escala (aumentar sempre a escala na perspectiva da globalização). • Formação de Capital Humano (em torno da formação em GIT para lideranças formais e informais da empresa e da comunidade). • Comunicação (sustentar tudo com um sólido plano de comunicação integrador de GIT). • Governança Territorial (monitorar e gerar dinâ­ micas de crescente governança territorial) e Monitoramento Territorial (medir o desempenho do território e servir como norteador para futuras ações no território por meio da estruturação de um observatório permanente). 306

De fato, não se trata de um plano sequencial e, em termos de aplicação, o ponto de partida é a matriz territorial. Porém, no decurso do processo de gestão, a racionalização é fundamental visto que a plena concretização de uma dinâmica de GIT pressupõe que os sete elementos da sequência lógica estejam presentes. Importante é entender, no entanto, que Gestão Integrada do Território é um processo apoiado em uma metodologia, não é um horizonte. Por isso, ela precede e envolve todos os elementos mencionados; ela exprime-se por meio deles, porém, é um todo que os precede e os supera. Um grande equívoco do planejamento tradicional foi o de pensar que a realidade poderia manter-se sem gestão enquanto se elaboravam estudos, diagnósticos e propostas de atuação. Essa ilusão, sobretudo em um tempo de grande aceleração de processos, conduziu aos maiores desastres de governança territorial quando se tentaram aplicar excelentes projetos aplicáveis a realidades diagnosticadas anteriormente. O desacerto entre a dinâmica atual de Morro do Pilar e os instrumentos CEDEPLAR (cuja qualidade abstrata é excelente) é um exemplo claro dos efeitos de tal ilusão. A gestão territorial é sempre uma necessidade e o esforço para uma abordagem integradora é sempre urgente. Por essa razão, raras vezes existe, na nossa sociedade, a possibilidade de estabelecer primeiro um diagnóstico e depois um plano de ação. Por isso, a GIT começa por fazer, seguindo um quadro de referência, construindo o processo concreto com a comunidade (não como diagnóstico e, sim, como projeto de atuação que, também, alimenta o diagnóstico). É dessa forma que, no caso concreto de Morro do Pilar, a GIT começou com uma determinação estratégica da Prefeitura, seguida de ações concretas para começar a estruturar a matriz territorial (espaços de memória, articulação com as escolas), antes mesmo de se possuir um diagnóstico detalhado (que tem sido desenvolvido pela equipe do Plano Diretor Municipal). Esse “esqueleto” morrense terá sempre a capacidade de incorporar as outras dimensões de GIT, da formação ao diagnóstico, passando pelas dinâmicas de integração e sua comunicação e, por sua vez, culminando na governança e no monitoramento.

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A preservação da memória e da história é uma concepção estratégica para o presente e o futuro de Morro do Pilar

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A visão

social, política jurídica, principalmente latinoamericanas.

Em coerência com os objetivos já definidos pela Prefeitura de Morro do Pilar, a GIT promove a construção de uma dinâmica participada e consorciada de integração permanente de todos os principais setores de intervenção, independente de suas temá­ ticas (alojamento, mineração, administração, turis­ mo, patrimônio, comunicação etc.) ou das entidades que os promovam (poder público, empresas, asso­ ciações, ativos individuais etc.). Como visão, decorrente da concepção estratégica do município para a preservação da história e da memória, a conservação da biodiversidade local, a implantação de ações de educação e promoção social, desenvolvimento econômico, e assumindo a cultura na sua diversidade como o foco central do entendimento desses objetivos, projeta-se: 1. Estruturar, em Morro do Pilar, uma dinâmica territorial exemplar de escala média, apoiada em um corpo técnico qualificado (abrangendo um gabinete de estudos e projetos que apoie a dinâmica do território) que sirva de modelo para o Médio Espinhaço e que seja referência no Estado, alinhada com os princípios da Rede de Cidades Sustentáveis e com a “Carta das Águas de Morro do Pilar” que se propõe a [...] integrar e criar sinergia entre a biodiversidade local, a cultura e a memória do povo morrense e os novos cenários do desenvolvimento socioeconômico que se aproximam e promover uma cosmovisão contra-hegemônica, que não se opõe ao sistema atual, mas que propõe um novo modelo para o sistema, um modelo que está sendo gestado e idealizado por mentes que valorizam uma cultura de paz, num processo inclusivo e harmônico, pensado em sintonia com os mais inovadores conceitos e balizado nas mais singulares experiências recentes da cultura

2. Criar, em Morro do Pilar, um Centro consorciado de Saberes e Conhecimentos, configurado como Museu do Território, Artes e Inovação que afirmará uma nova centralidade cultural e empreendedora, integrada em uma rede internacional. 3. Preparar Morro do Pilar para ser um exemplo a promover em eventos internacionais de sensibilização, em especial, no quadro das propostas de Ano Internacional para o Entendimento Global (mas não dependendo delas) e valorizando a Serra do Espinhaço, Reserva da Biosfera, em particular atendendo à Estratégia de Sevilha que define a sua tripla função de conservação, desenvolvimento e apoio logístico à pesquisa, à educação, à formação e à observação, bem como do programa Man and the Biosfere que foca o conhecimento como eixo da relação entre a humanidade e o ambiente. 4. Assegurar que até finais de 2014 a sociedade morrense e as diferentes partes interessadas tenham informações claras sobre o projeto referencial de GIT e sua conexão com o futuro da comunidade, incluindo a informação sobre algumas ações participadas por segmentos da população, em linha com o documento O Futuro que Queremos, aprovado na Cúpula Rio+20. 5. Criar condições, por meio de planos de formação e de estruturação de uma matriz territorial resiliente, para consolidar até 2016-2017 uma dinâmica permanente e autônoma de GIT a partir da qual o essencial da governança deverá estar assegurado e, simultaneamente, apoiar um conjunto estratégico de ações que consolide Morro do Pilar como uma referência em sustentabilidade sob a lógica da promoção do entendimento global, tal como aprovado pela comissão executiva da UNESCO, de 14 de Agosto de 20134, e atendendo aos Objetivos do Milênio. Almeja-se aumentar o conhecimento dos cidadãos

“Thinking globally and acting locally presupposes global understanding. To reach global sustainability and to advance good governance and transparency we need to bridge the gap in awareness between local actions and global effects. Herein lies the ultimate significance of a program for the promotion of global understanding.” (UNESCO. 192 EX/39, 2013).

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Preparar o território de Morro do Pilar para ser um exemplo dentro da rede de cidades da Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço: este é o desafio a ser trabalhado

para que haja o combate à alienação e promoção

conhecimento e uma nova relação entre a ciência

da formação crescente de toda a população.

e a sociedade.”. A GIT, em Morro do Pilar, será,

Nesse processo, Morro do Pilar acompanha as

também, um instrumento de equidade social, contra

preocupações da cimeira Rio+20: “Assegurar um

a marginalidade e a exclusão, o que mais uma vez

futuro sustentável frente às modificações inter-

converge para as conclusões da cimeira de 2012:

conectadas (sic) induzidas pelos seres humanos

“Reconhecemos que as pessoas estão no centro da

sobre o sistema da Terra, requer com urgência novo

sustentabilidade”.

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Uma esperança racional para o séc. XXI [...] o que a nós se impôs foi sobretudo a fascinação de ver, de tornar presente para nós as fronteiras do mundo que habitamos, foi o sonho desse dom da revelação, da descoberta maravilhosa de uma verdade de origens, a verdade que era nossa, com a qual tínhamos uma entrevista marcada e a qual não desejamos faltar. (Virgílio Ferreira)

Vivemos tempos de incerteza no planeta que carregam os traços de uma depressão mundial (Stiglitz), apesar do crescimento com avanços e recuos no hemisfério sul. Ao contrário das depressões de 1873-96 e de 1929-47 (HOBSBAWN, 1988), desta vez, há uma “moldura” global preocupante: quebra abrupta da natalidade em todos os continentes (exceto África) com graves consequências no plano econômico e social; crescimento dos territórios do globo onde o Estado entrou em colapso e grupos de bandidos armados fazem a sua lei; explosão dos “nacionalismos de ricos” que ameaçam dispersar os Estados de maiores dimensões; mudanças climáticas que ameaçam todo o planeta; falência crescente das estruturas intergovernamentais (com a ONU a seguir os passos da antiga Sociedade das Nações). Não é preciso repetir os erros da década de 1870 (que foram ultrapassados com a visão de Bismarck e a criação do estado social) ou da de 1930 (que levaria à 2ª guerra mundial e da qual se sairia com a integração de políticas de crescimento econômico e equidade social, como o New Deal ou o plano Marshall). Daí a importância de generalizar o debate nas regiões e em todo o planeta sobre a natureza do mundo em que hoje vivemos, sobre a natureza da globalização e sobre a dimensão global dos problemas que as pessoas sentem no seu cotidiano local (alimentação, habitação, lazer, educação, saúde etc.) (Global Understanding, 2011). Um debate que tem de dispor de casos de sucesso que sejam foco das atenções. Morro do Pilar pode, pois, ser um desses focos. A GIT não é isenta de grandes dificuldades: o confronto entre um modelo racional e eficiente e as dinâmicas e ideais das pessoas e suas lideranças; o confronto entre as tradições e as novas técnicas; 310

o confronto entre os saberes e a incerteza etc. Entretanto, geram diversas oportunidades novas como, por exemplo, a Interlocução como instrumento de envolvimento, a conexão de cada eixo econômico com outras dinâmicas ou o cruzamento de projetos integradores (agricultura/escolas/EMs/etc). Uma das funções da GIT é, então, quando na sociedade se fala em tom crescente de “ganha-ganha”, perguntar: “Quem perde no ganha-ganha”? Como construir um fluxo com várias etapas flexível? Como ensinar a “perder” (lógica do xadrez)? A inovação tecnológica é um instrumento central de GIT. O planeta não suporta mais pressão sobre o meio ambiente, mas é imperioso assegurar uma melhor qualidade de vida das pessoas, o que por si só gera maior consumo de energia. A maneira de integrar de forma harmoniosa as duas dimensões (de conservação do meio ambiente e de equidade social) é a geração de tecnologia que implique menor consumo de recursos naturais e menor emissão de resíduos. São exemplos inovadores os sistemas de processamento de resíduos sólidos e de depuração de água que já existem no mercado a custos muito inferiores aos dos sistemas tradicionais e com excelente integração ambiental. A inovação tecnológica é, também, a principal base para a renovação das identidades culturais, todas elas forjadas em saberes, em gestos e em “saber fazer” (MITHEN, 2002). A Morro do Pilar, abrem-se, hoje, dois caminhos: ou o caminho do crescimento econômico focado na mineração, com escassa diversificação de atividades, fragilidade social, fraca atratividade e expansão urbana descontrolada; ou o da afirmação de uma cidade e de um território de bem-viver, com crescimento econômico diversificado, forte marca identitária sublinhada pela pluralidade cultural, atratividade social e empresarial e expansão urbana planejada. Aos morrenses caberá a escolha que deverá ser consciente e amadurecida. No trilhar desses caminhos, a confiança entre os morrenses e os seus novos habitantes, imigrantes de muitas paragens, e com outros países é o cimento da GIT. O outro (pessoa, grupo, momento ou lugar) é sempre irredutível a nossa dimensão e é essa dificuldade que, por algum tempo, nos seduz e tantas vezes nos

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Os saberes tradicionais, os modos de fazer e as memórias do meio rural devem ser ferramentas para moldar o futuro de Morro do Pilar

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quebra. É na sedução que nos impele a dominar o outro que nos construímos como ego; e é na quebra, na desistência, no esquecimento que nos perdemos também. É assim com as pessoas e é assim com os grupos de pessoas, com os coletivos que sempre se inventaram a meio caminho entre a necessidade de complemento e a exclusão do diferente. Agora quero prender-me na discussão de que a relação do Mundo com o Brasil nunca foi só uma, mas, indiscutivelmente, é marcada pelas palavras contraditórias de Pero Vaz de Caminha que foi um etnólogo antes do tempo. Anunciou ele (CASTRO, 2009, p. 12): Parece-me gente de tal inocência que, se os homens entendessem e eles a nós, que seriam logo cristãos, porque eles não têm nem entendem em nenhuma crença, segundo parece. E mais adiante: Enquanto ali, este dia, andaram, sempre ao som dum tamborim nosso dançaram e bailharam com os nossos, em maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus.

Assim se abriu o caminho do espanto e da dualidade: um olhar que vê no outro a si mesmo (seriam logo cristãos), mas são muito mais nossos amigos que nós seus embora passível de “correções”. A a sedução foi perdida sem se ganhar a identificação nas correções. Quando comecei a aprender o Brasil, fui percebendo como o olhar dominante nestas terras era profundamente distinto do Europeu. Onde por lá se afirma uma racionalidade cartesiana, fundada na história e na geologia e geomorfologia (que é a história da terra), por aqui se consolidou uma racionalidade quase espinosiana (DAMÁSIO, 2000), ancorada na antropologia e na ecologia (que é o olhar antropológico sobre a vida). Essa racionalidade encontra-se, também, em Morro do Pilar. É difícil resistir à noção de diversidade da vida e ao império dos sentidos quando estamos rodeados de outros que constituem culturas paralelas e, por isso, sempre separadas das nossas. Dimensão profundamente distinta de um Portugal europeu no qual a diversidade se exprimia, já no século XVI, como declinação de uma mesma matriz cristã (que apenas consentia a dissidência). Devido a isso, a história era, e continua sendo, o fundamento mais sólido para entrever coerências no mundo. 312

É essa a raiz de um debate que cedo se instalou entre os portugueses e europeus sobre a natureza dos humanos do novo mundo, sobre a existência ou não de alma nos seus corpos ou sobre os direitos ou responsabilidades de e para com eles. E não podiam os indígenas europeus entender os indígenas do Brasil, como já antes os de África, sem ser no mesmo quadro dicotômico que dividia a própria cristandade ou toda ela do mundo muçulmano. Diferente não seria para os indígenas do Brasil que se reconheciam a muitas vozes e sem uma matriz tão unificada como a européia e que, por isso mesmo, não podiam deixar de olhar os recém-chegados a essa mesma luz. Desses tempos, restam memórias fossilizadas em objetos e transformadas em tradições que são sempre reflexos enganadores de um passado imaginário. Objetos e tradições que são patrimônio legitimador de identidades que se construíram na ausência de e sobre novas ações, novos gestos. O que, verdadeiramente, interessa é sempre a vida. Todavia, o patrimônio material é passível de múltiplas apropriações (a fábrica de ferro em altoforno de Morro do Pilar, tal como o Convento de Cristo em Tomar, Portugal, são o passado de todos nós, pertencem culturalmente a todos nós). Já o patrimônio intangível, vivo, exprime identidades e separação sem a qual seríamos objetos inanimados. Portanto, é lícito lembrarmos de Agostinho da Silva que escreveu que devemos reconhecer que, embora prosseguindo caminhos diferentes, os grupos humanos muitas vezes se afrontam apenas em torno de designações, aparências, que escondem um acordo real sobre o que é mais profundo (SILVA, 1999). O programa de Gestão Integrada do Território de Morro do Pilar deverá ser uma ode ao óbvio para que os grupos humanos que aqui conviverem em diversidade cultural cumpram as palavras de Vinícius de Moraes, em Soneto do Amigo (1946): Enfim, depois de tanto erro passado Tantas retaliações, tanto perigo Eis que ressurge noutro o velho amigo Nunca perdido, sempre reencontrado. É bom sentá-lo novamente ao lado Com olhos que contêm o olhar antigo Sempre comigo um pouco atribulado E como sempre singular comigo.

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Em Morro do Pilar, a história da terra e da relação do homem com a terra são aprendizados que não devem ser esquecidos

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capítulo 11

Água, educação e culturas: Redes hídricas e simbólicas na teia da vida ♦ Vera Margarida Lessa Catalão1 ♦

S

ímbolo de pureza e fertilidade, de purificação e regeneração, de punição e de benção, da ira e do amor dos deuses, a água nutre o imaginário de todos os povos como elemento de mediação entre o mundo material e universo simbólico. Toda criação é primordialmente líquida; toda a vida anuncia-se, toda vida principia pela forma sem forma da água. As narrativas da origem da vida apontam-na como matéria elementar, útero fecundo da diversidade da vida. Seu estado líquido possibilitou a vida, mas muito pouco sabemos sobre a excepcionalidade deste momento cósmico. Tampouco temos modelos explicativos para seu comportamento inusitado enquanto substância química.

Em Bachelard, a água invoca uma imaginação material voltada para as profundezas do ser: A imaginação material da água é um tipo particular de imaginação. Ao conhecê-la o leitor compreenderá que a água é um tipo de destino, não somente o destino quimérico das imagens fugidias, o destino de um sonho que não se completa, mas um destino essencial que se metamorfoseia sem cessar na substância do ser. (BACHELARD, 1999, p. 6)

A água, em diversas culturas orientais e ocidentais, é instrumento da purificação ritual. Nas narrativas bíblicas, ninguém se aproximava de um templo ou adentrava em um ritual sem antes fazer abluções purificadoras. Para os cristãos, se as águas não representam o princípio criador, elas permitem o renascimento do homem novo. O batismo pela água é um rito judaico incorporado pelo Cristianismo. Por meio do batismo, realizado pela imersão nas águas de um rio ou de uma fonte, restabeleciam-se os laços entre Deus e seres humanos. O gesto anual de limpar suas faltas entregando-as às águas correntes era outro rito de purificação hebraico. Na Índia e no sudeste Asiático, os fiéis banhavam as estátuas sagradas na água pela crença nas suas propriedades de purificação e regeneração. Para o sábio chinês Want-tse, a natureza da água leva à pureza e Lao-tse define a água como “emblema da suprema virtude”. No Corão, livro sagrado do Islamismo, a água também simboliza pureza e fecundidade, pois que o próprio homem foi criado da água. A ‘çalat’ é uma prece ritual muçulmana que não pode ser proferida antes que o adepto coloque-se em estado de pureza ritual pelas abluções de purificação pela água (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1994). 1 Mestre em Educação pela Universidade de Brasília (1993), Doutora em Ciências da Educação pela Universidade de Paris VIII (2002)- França e Pós-doutoramento no Programa de PósGraduação da FEUSP (2011) com pesquisa sobre aprendizagem social e formação humana para uso sustentável da Água. Professora associada do Programa de Pós-graduação da Universidade de Brasília, coordenadora do projeto de ação contínua “Água como Matriz Ecopedagógica” e membro do Centro de Estudo Transdisciplinar da Água – CET- Água.

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A luminosidade feminina da Cachoeira do Pica Pau

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Na Índia, na confluência dos rios sagrados Ganges, Yamuna e Saraswati, celebra-se, a cada doze anos, a festa da Kumbh Mela. Banhar-se nas águas destes rios purifica e pode libertar o peregrino do ciclo de renascimento e morte, dependendo do seu merecimento. Na tradição hebraica, o universo surge das águas, “no início eram as águas e o espírito de Deus pairava sobre elas”. A primeira imagem de Deus é do vento do espírito (Ruah) soprando sobre as águas. É a palavra de Deus que separa as águas de cima e as águas de baixo. Também, na tradição chinesa, as águas são divididas em águas superiores, que correspondem às possibilidades informais, indeterminadas; e águas inferiores que correspondem às possibilidades formais, determinadas. Na mitologia grega, a água é a matéria primordial da vida e o elemento fundador de todas as coisas para o filósofo Thales de Mileto. Em todas as religiões e tradições culturais, a água tem um sentido simbólico que supera o sentido utilitário. Na cosmovisão afrobrasileira, é nas águas doces e correntes que mora Oxum, entidade feminina ligada à fertilidade e à beleza. As águas pantanosas, lentas, misteriosas é lugar de Nanã, a anciã, orixá da água misturada com a terra, lama fecunda que engendra toda forma de vida. Obá é o nome de um rio da costa ocidental africana associado simbolicamente ao orixá feminino do mesmo nome e que habita nas proximidades da pororoca, no barulhento encontro das águas (BARROS, 2002). Yansã, senhora dos ventos e das tempestades, é, também, senhora das águas da chuva. Na psiquê humana, a água lembra o útero materno, aquático pouso do embrião, espaço noturno e sonoro do feto. Retomamos a postura fetal quando, amedrontados ou fragilizados, exprimimos o desejo de retornar à água original ou voltar ao mar como queria Jacques Cousteau: Desde o instante mágico em que meus olhos se abriram no mar, não posso mais ver, pensar e viver como antes. [...] A água tomou posse da minha pele, as formas dos seres marinhos tornaramse puras até o despudor, o despojamento dos gestos adquiriam um valor moral. A gravidade, eu compreendia de repente, era o pecado original,

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cometido no dia em que os primeiros seres saíram da água e a redenção somente retornará quando eles fizerem o caminho de volta. (COUSTEAU

apud CATALÃO, 2006, p. 85) Culturas antigas e as que vivem mais próximas da natureza sabem que destruir as possibilidades de renovação da água, interromper seu fluxo, é uma atitude autodestrutiva que semeia desertos. Sabemos que “[...] apenas culturas modernas guiadas pela ganância e convencidas da sua supremacia sobre a natureza não reverenciam a água” (BARLOW; CLARKE, 2003, p. 4).

Ouro azul – a crise da água Engendrada pela poluição, pela urbanização crescente e pelo acirramento das mudanças climáticas, a crise da água mostra seu impacto em dimensão planetária neste século. A razão instrumental busca soluções técnicas para purificação da água e alimenta a lógica de uma economia de mercado que tenta, sem sucesso, equacionar custo, lucro e bem comum. Hoje, “Busca-se corrigir resultados, sem tocar no modelo de desenvolvimento consumista e utilitário que se constitui no motor gerador da crise” (CATALÃO, 2014). O conjunto da sociedade compartilha o imaginário hegemônico de descartabilidade dos produtos e exploração sem limites das forças da vida humanas e não-humanas. A subjetividade que acreditamos singular é produzida de forma maquínica e modelada por agentes externos (GUATARRI, 1992) e mobilizam os desejos que supomos nossos. Todos os ecossistemas são mantidos pela água e pelo ciclo hidrológico e somos tão dependentes da água como foram os nossos antepassados. Inebriados pela fantasia de um consumo sem limites, crentes na abundância perene da água, não medimos as consequências dos nossos próprios atos, desconhecemos a ecologia da nossa ação. O resultado de tanta insanidade diante de um futuro nada promissor para a sobrevivência humana é o risco em escala global. A água transita entre fronteiras visíveis e invisíveis: para além das águas de superfícies,

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A força e energia da Cachoeira do Tombo

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circulam acima das nossas cabeças verdadeiros rios

são mantidas pela vegetação —, a água da chuva não

voadores e sob os nossos pés resguardam-se as águas

se infiltra, escorre pelo solo impermeável e incha os

subterrâneas em lençóis freáticos e aquíferos.

rios e oceanos.

No decorrer do século XX, a população mundial triplicou enquanto o consumo de água foi multiplicado por sete. A cada vinte anos o consumo global de água cresce mais que o dobro do crescimento populacional (BARLOW; CLARKE, 2003). Teoricamente, a quantidade da água planetária continuou a mesma, mas as mudanças climáticas têm afetado drasticamente a disponibilidade de água doce para as comunidades de vida. As tecnologias com alto potencial destrutivo para os ciclos naturais, o modelo de desenvolvimento sustentado pela acumulação do capital, a extrema desigualdade e o apelo constante ao consumo desenfreado estão na base da agonia letal que consome os sistemas aquáticos.

Como resultado a preciosa água doce é transformada em água salgada. As florestas e prados são o domicílio da água e deveriam receber chuva e neve, mas quando a água da chuva atinge áreas pavimentadas desvia e flui para o oceano. (BARLOW; CLARKE, 2003, p. 12)

Segundo Margi Moss (2014), estudos realizados por pesquisadores do INPE em parceria com Gerard Moss coordenando o trabalho de campo, a Amazônia é um imenso sistema de refrigeração, funcionando como uma bomba d’água de proporções gigantescas. Estima-se que uma única árvore frondosa de médio porte (copa de 10 metros de diâmetro) ou de grande porte (copa de 20 metros de diâmetro) pode evapotranspirar em um dia entre 300 e 1.100 litros

A urbanização crescente rompeu o equilíbrio

de água respectivamente e que a floresta amazônica

entre campo e cidade que, anteriormente, era

cede diariamente para a atmosfera em torno de 20

capaz de garantir a recarga dos lençóis freáticos

bilhões de toneladas de vapor de água.

e a manutenção do ciclo hidrológico. A água da chuva que cai no continente não encontra mais um solo permeável para que se infiltre. A redução da cobertura vegetal diminui a evapotranspiração e o aumento gradativo das áreas asfaltadas impedem a infiltração, ocasionando inundações que atingem, anualmente, mais de 200 mil pessoas. Nos últimos dez anos, as catástrofes naturais desabrigaram cerca de 200 mil pessoas e provocaram prejuízos anuais

Massas de ar — às vezes com alguns quilômetros de largura — carregadas de umidade e propelidas pelos ventos, como se fossem rios empurrados pela correnteza, transportam essa umidade em direção ao oeste e ao sul. Esses rios aéreos, poeticamente descritos como “rios voadores”, são rios de vapor de água que passam despercebidos acima da nossa cabeça. (MOSS, 2014, p. 191)

de US$ 184 bilhões em média de acordo com estudo

Conforme dados da Organização das Nações Unidas

publicado pela companhia de seguros Muniche Re

(ONU), cerca de 1 bilhão e 680 milhões de seres

em 2012.

humanos não possuem abastecimento de água

Michal

Kravcik,

engenheiro

hidráulico

da

organização não-governamental Pessoas e Águas da Eslováquia, explica como a ocupação territorial desordenada altera o ciclo hidrológico. Este ciclo de renovação das águas apresenta-se equilibrado se o volume de água, que escoa dos rios para os oceanos, igualar-se ao volume de água evaporada dos oceanos que volta aos continentes por meio das chuvas. Quando a chuva atinge o asfalto em vez dos campos e florestas — onde a capilaridade e a permeabilidade

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potável e até 2025 esta situação afetará quase metade da humanidade. A Agência Nacional de Águas (ANA) prevê que mais da metade (55%) dos municípios brasileiros poderão enfrentar problemas de falta de água até 2015. Já a Cúpula Intergovernamental sobre Mudança Climática aponta que até 2050 a reposição dos lençóis freáticos diminuirá no Brasil em mais de 70%. Em outros países, as perspectivas são ainda mais drásticas e, por isso, cada vez mais, a água torna-se não somente um bem estratégico para o desenvolvimento e a sobrevivência humana, mas

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Cachoeira do Funil: força e riqueza das águas para a sobrevivência humana

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também, uma questão determinante na geopolítica

impunemente. A cheia do rio Madeira mostra o

mundial.

revide da natureza ao desvio do seu curso e aos limites

As grandes represas do mundo, que somam mais de 40 mil, inundaram 1% da superfície terrestre e deslocaram mais de 60 milhões de pessoas. No Brasil, cuja matriz hidráulica acentua essa tendência, o desenraizamento das pessoas dos seus territórios, o empobrecimento e o aviltamento das suas culturas

da dominação de uma cultura predatória sobre o ciclo hidrológico. Em 2014, a cheia do Madeira atingiu 19,38 metros segundo aferição da Agência Nacional de Águas (ANA). O recorde histórico havia sido registrado em 1997 quando subiu 17,52 metros acima do nível normal.

e modos de vida têm sido repertoriados em diversos

A crise da água revela o lado avesso do desenvolvimento

estudos acadêmicos e, sobretudo, são motivos de luta

capitalista e deverá impor limites irrefutáveis ao

e resistência pelos movimentos dos atingidos pelas

crescimento e tornará mais aguda as contradições e

barragens.

os conflitos de água entre as nações e mesmo entre

A construção da Usina de Belo Monte é mais uma ameaça aos direitos humanos das populações ribeirinhas e ao direito à vida de milhares de espécies da fauna e da flora local. A opção pela construção de grandes hidrelétricas, que são empreendimentos dispendiosos que demandam do Estado investimentos bilionários, deixa à míngua projetos e pesquisas tecnológicas para diversificação das matrizes energéticas do país, tais como a eólica, a solar fotovoltaica, o biogás e o uso da biomassa a partir de rejeitos da agricultura. Sabe-se que a centralização em uma única matriz energética é uma opção insustentável diante do cenário previsto sobre o impacto das mudanças climáticas no Brasil que afetará, diretamente, o ciclo hidrológico e a vazão dos rios e lençóis freáticos.

Estados de uma federação. Em 2014, diante do risco de abastecimento pelo sistema Cantareira, que atingiu os piores níveis de armazenamento desde a sua criação na década de 1970, a proposta do Estado de São Paulo para canalizar água de um afluente da bacia do Paraíba do Sul foi criticada pelo Estado do Rio de Janeiro e pelo Comitê de Bacia em razão do possível impacto no abastecimento deste Estado e de 184 municípios que dependem da água desta Bacia. No primeiro Forum Mundial da Água, em Marrakesh, o rei do Marrocos comparou a água ao petróleo do século XXI dado ao seu valor mercadológico. O valor econômico da água a transforma em objeto de disputa de grandes corporações e de acordos comerciais com os governos de diversos países para privatização do abastecimento e exploração das fontes de águas minerais. O caso da Nestlé, em São Lourenço, é um

Cabe ressaltar com ênfase que a relação água e

caso emblemático de exploração indevida das águas

energia foi o tema escolhido pela ONU para 2014

minerais para comercialização da água Pure Life,

no contexto das reflexões propostas para a Década

tendo tido autorização do Governo de Minas Gerais.

da Água (2006-2016), tornando-se momento oportuno para que o País retomasse a discussão e a elaboração de políticas públicas sobre o tema. Se não o fizermos, nos defrontaremos muito em breve com mais um apagão e, a exemplo do que já vem acontecendo, serão acionadas ou construídas novas usinas termelétricas a despeito da emissão de gases de efeito estufa.

A sociedade civil tem buscado formas alternativas e ocupado brechas institucionais para se contrapor à incompetência e ao descaso das políticas governamentais para tratar de forma integrada a gestão das águas no Brasil. Sabe-se que as águas minerais, águas subterrâneas e águas atmosféricas não têm sido abordadas como um sistema integrado e virtuoso de preservação e renovação das águas

As bioregiões sustentadas pelo ritmo das bacias

territoriais. A experiência criativa da sociedade civil

hidrogáficas modelam e orientam a vida em uma

da Serra do Espinhaço acena para um novo paradigma

localidade. O desvio dos cursos d´água não se faz

na gestão das águas em contextos de microbacias.

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Rio Santo Antônio: presença e memória regional

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Um novo paradigma para as águas concretiza-se na crista do Espinhaço

objetivando a construção de uma rede de cooperação

No contexto de mobilização em favor das águas, um ambicioso projeto surgiu, no ano de 2003, na região do médio Espinhaço, na cidade de Conceição do Mato Dentro, em Minas Gerais. O projeto, idealizado pelo então secretário municipal de meio ambiente, Luiz Cláudio de Oliveira, propôs a criação do projeto para o reconhecimento da serra do Espinhaço como uma Reserva da Biosfera. Para viabilizar o sonho, ele contou com o apoio e o engajamento direto da ativista Danielle Mitterrand. A participação dela foi fundamental para que o projeto fosse aprovado e reconhecido, em junho de 2005, pela UNESCO, com uma área de 13 milhões de hectares. Desde então, Danielle Mitterrand, presidente da Fundação France-Libertès, tornou-se a maior aliada do processo de mudança de paradigma iniciado em Conceição do Mato Dentro, formando uma parceria com um grupo de ambientalistas e que resultou em várias ações de âmbito nacional.

universidades e empreendimentos locais, no sentido

Danielle e os líderes do projeto da Reserva da Biosfera

cultura e do meio ambiente.

junto à UNESCO conquistaram novos adeptos como as ativistas Maude Barlow, presidente nacional do Conselho de Canadenses e co-fundadora do projeto Planeta Azul; Wenonah Hauter, diretora-executiva da Food & Water Watch; o ex-presidente de Portugal, Mário Soares; o ativista Jean Luc-Touly; Riccardo Petrella, um dos fundadores do Comitê Internacional pelo Contrato Mundial da Água, entre outros. Deste trabalho, nasceu a proposição, em 2005, do Contrato

para fomentar a pesquisa e apoio às novas políticas da água, oriundas dos comitês de bacia, dos fóruns, de viabilizar intercâmbios com especialistas de diversos países. Também em novembro de 2006, Danielle Mitterrand, André Abreu, Luiz Cláudio de Oliveira, Carlos Eduardo Nery e outros produziram com a equipe do fotógrafo Yann Arthus-Bertrand, o filme Águas do Espinhaço, um documentário singular que aborda o dilema da conservação e da sustentabilidade na região do médio Espinhaço. Outra iniciativa que surgiu da parceria com Danielle Mitterrand foi o prgrama Mensageiros da Água. Lançado no Jardim Botânico do Rio de Janeiro no ano de 2007, no Dia Mundial da Água, contou com a presença dos pajés Ailton Krenak (de Minas Gerais), Benki Ashaninka e Leopardo Bane (do Acre), além da atriz Letícia Spiler, do arquiteto e músico Paulo Jobim, do ambientalista Luiz Cláudio de Oliveira, do ativista André Abreu e várias personalidades do mundo da

O programa Mensageiros da Água foi inspirado no Porteurs D´Eau que vem realizando um trabalho de conscientização sobre o melhor aproveitamento dos recursos hídricos na França, no Canadá e no Brasil. Hoje, o programa também é articulado com o Instituto Arapoty, a PUC Minas, a Fundação Gol de Letra e a Itaipu Binacional, agregando vários artistas, esportistas e personalidades brasileiras.

Mundial da Água – Brasil que teve como secretário-

Na atualidade, o município de Morro do Pilar está

executivo, o ambientalista Luiz Cláudio de Oliveira,

seguindo o mesmo caminho e está colocando em

atual presidente do Instituto Espinhaço. A proposição

prática vários sonhos idealizados por Danielle

foi assinada por vários ambientalistas durante o

Mitterrand. No ano de 2013, a comunidade local,

Congresso Mineiro de Biodiversidade em 2005.

capitaneada pela Prefeitura Municipal e com a

Em 2006, Danielle e seus amigos ativistas fizeram o Encontro Internacional pelo Direito de Acesso à Água, realizado na cidade de Marselha, sul da França.

parceria da ONG Instituto Espinhaço, lançaram o documento Carta das Águas de Morro do Pilar e o projeto Morro: Pilar das Águas.

O encontro estava articulado com uma campanha

A Carta das Águas é um documento ousado e inovador

em todo o mundo, visando defender o direito à Água

que propõe, a partir de um novo paradigma, mudar

como bem público, um direito humano inalienável,

radicalmente a relação da comunidade com a água

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Ativistas unidos para a preservação das águas: Leopardo Bane (do Acre), Letícia Spiler, André Abreu, Ailton Krenak (de Minas Gerais), Benki Ashaninka e Danielle Mitterrand e Luiz Cláudio de Oliveira, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, durante o lançamento do projeto Mensageiros da Água

no seu território. Já o projeto Morro: Pilar das Águas, em parceria com a Agência Nacional de Águas, propõe a organização de várias ações de suporte a pequenos proprietários rurais e pagamento por serviços ambientais em Morro, criando um projeto piloto que tende a se replicar ao longo de toda a Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço.

Uma Reforma no Pensamento Segundo Beck (1997), a “sociedade de riscos”, produtora da crise da modernidade, deveria tornar-se cada vez mais reflexiva, emergindo como tema para si própria. Entretanto, não avançamos na reflexão, pois se dissipa no tempo acelerado e sem pausas que marca o ritmo da cultura de consumo e torna-se cada vez mais superficial como uma “metáfora perfeita do leito raso dos rios assoreados” (CATALÃO; JACOBI, 2012). A função reflexiva demanda proximidade e distanciamento, um sabor concreto e um saber de mediação. Para Morin (2012), somente uma reforma de pensa­

mento — na dimensão da noosfera onde habitam ideias, imaginação, representação de mundo — é possível operar a mudança. É possível que somente no plano das representações, dos processos imaginários e de simbolização possamos criar um novo sentido para as águas que correm fora e dentro de nós. Para o poeta TT Catalão (2003) “[…] a memória primordial da vida está impressa na água. Nela, o fio condutor matriz da vida: lembrança permanente de um cordão umbilical rompido e sob permanente desejo de retorno.” As águas são os olhos da terra e “[…] em nossos olhos é a água que sonha […].” (BACHELARD, 1992). Muitas vezes, perscrutamos um olhar para compreender a alma do outro, não podemos imaginar o quanto precisamos olhar para a água para desvelar a qualidade do nosso projeto civilizatório? Sabemos que, turvo o reflexo, confusa a consciência que contempla. A poluição das águas é o reflexo da turvação da consciência contem­ porânea (CATALÃO, 2002). A mesma força de degene­ ração atua fora e dentro de nós, especialmente, quando se trata da água que, física e simbolicamente, ocupa 2/3 do planeta Terra e, também, do corpo dos seres humanos.

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Assim como a água encaminha todos os seres vivos para manifestação das suas próprias formas, a ecopedagogia que ela inspira permite que compreendamos a educação como um processo que exprime a dinâmica da vida interior em contato com a vida exterior.

Água e educação: por uma ecopedagogia da água

A plasticidade deste elemento é a materialidade simbólica que originou o projeto de docência, extensão e pesquisa Água como Matriz Ecopedagógica (AME) que, junto com a professora Maria do Socorro Ibañez, se desenvolve, na Universidade de Brasília, em um contínuo fazer/aprender a muitas mãos desde março de 2003. Assim como a água encaminha todos os seres vivos para manifestação das suas próprias formas, a ecopedagogia que ela inspira permite que compreendamos a educação como um processo que exprime a dinâmica da vida interior em contato com a vida exterior. Também, nos proporciona a percepção de que a educação é um ofício que mimetiza o modo de ser da água e que atua como mediadora de significados e sentidos nas comunidades de aprendizagem. Quando a água reflete o céu é o universo inteiro que se duplica, numa metáfora extraordinária da consciência humana. A natureza passa a ser o outro da cultura e, neste jogo dialógico do objetivo e do reflexivo, emerge a consciência consciente de si — base de todo processo de hominização. (CATALÃO, 2008, p. 26) Para Yara Magalhães (2006), a atividade artística, quando proposta corretamente, conduz à interioridade humana, sensibiliza, expande potencialidades, estimula a liberdade, a expressividade e a autonomia. Permite, ainda, uma infiltração da informação em camadas mais profundas do psiquismo humano, su-

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perando os recursos didáticos meramente racionais. As linguagens poéticas presentes nas artes permitem que penetremos em um universo no qual o símbolo nos fala sem cessar de outro olhar possível sobre o mundo, de outra relação com um significado inacessível que se atualiza, mas não se desvela jamais na obra de arte. Resguarda-se o mistério que, em parte, se ilumina na polissemia de sentidos que emprestamos ao mundo. O Simbólico nunca é senão a espuma do movimento permanente das vagas de um imaginário oceânico que nas suas águas profundas se confunde com o real. Separar o significante do significado para explicar a sua estrutura é acreditar que o redemoinho no rio é uma entidade separada dele e, mais ainda, separada da água que fundamentalmente o constitui. É uma ilusão de ótica que operou durante muito tempo o pensamento formal, objetivista e antiexistencial em ciências humanas. (BARBIER, 1997, p. 102) Para Barbier, o espírito humano vivencia flashes da existência reveladores dos símbolos presentes no seu universo existencial. Para Mircea Eliade (1977), o sagrado é uma expressão primordial da psique. No universo mental do homo religiosus, o numinoso é a fonte originária de um conhecimento que se exprime por intermédio dos mitos, arquétipos, símbolos e ritos e que permitem aos seres humanos uma relação de pertencimento por meio da leitura do sagrado na vida cotidiana. O projeto AME assume uma abordagem transversal

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Balneário do Lageado: destino certo para o descanso e lazer

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para articular as múltiplas referências teóricas e tecnológicas e as representações da água nas diferentes culturas. Eis a questão: reunir significante e significado, articular forma e conteúdo como margens opostas e complementares de um mesmo rio. A água é por excelência o elemento da transversalidade como elemento de mediação entre céu e terra, como também pela sua ação comunicativa nas interações celulares e nos processos circulatórios dos seres vivos e do próprio planeta Terra. Ao adotar uma ecopedagogia da água buscamos fazer emergir um conhecimento integrado por meio de movimentos transversais que resultam em redes de saberes comunicantes. (CATALÃO; IBANEZ, 2014, p. 69)

A observação da Natureza na ecopedagogia do AME é mais uma estratégia de aproximação com os ciclos da vida e enraizamento na base biológica que nos co-determina. Observar de forma participante — sincronizando pensamento, sentimento e sentido de mundo — é fundamental para motivar uma relação mais profunda com o meio natural, imbricando à intersubjetividade nesses processos, seja reconhecendo os seres da natureza como uma alteridade, seja pelo diálogo com outros humanos. Por esta via, a lógica do vivente sustenta a metalógica da cultura que pode articular harmonicamente o modo de ser natureza e o modo de ser cultura (CATALÃO, 2009). O símbolo é a linguagem da mediação que faz a ponte entre este duplo pertencimento do humano. Aprender implica a produção integrada de novos saberes e de novos fazeres e a educação ambiental deve propor um olhar que enxerga o meio ambiente inteiro. Uma pedagogia da Água é um convite para uma aproximação multirreferencial desse elemento: água como bem ecológico, água como bem econômico, água como bem comum, água como matéria carregada de simbolismo. Uma pedagogia da água enfatiza, sobretudo, a imensa capacidade deste elemento para acolher substâncias diferentes para estimular travessias, para fazer emergir a memória adormecida e latente dos estados primordiais que nos originaram. Para Sérgio Augusto Ribeiro, uma visão transdisciplinar da água propicia um diálogo de

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saberes que nos permite superar o padrão utilitarista do consumo de água. O paradigma transdisciplinar, que resgata o que foi perdido na relação utilitarista com a água, desponta como facilitador do desabrochar de cidadãos mais conectados com os ciclos naturais do Planeta, capazes de integrar de forma mais equilibrada a dimensão humana do saber, do realizar e da efetividade com a dimensão, feminina e líquida, do sentir, do observar e da afetividade. (RIBEIRO, 2014, p. 58)

A ecopedagogia da água deve evitar a hegemonia da ciência sobre outras formas de representação acerca deste elemento. Afinal, tudo que sabemos não passa de interpretações humanas, individuais ou coletivas sobre o real que, assim como a água, resiste às nossas tentativas de retenção e dominação. Pensar a água é, também, ouvi-la, senti-la em todos os seus estados (inclusive no estado de bem-aventurança de uma dádiva da vida), experimentá-la em diversas dimensões do sentido: tato, contato, som, luz, fluxos, ruídos, corpo, na dança, em dramatizações e nas artes plásticas e práticas. Para uma educação reflexiva, é preciso que ensinemos a pensar de forma crítica e criativa. Cientes da incerteza e da incompletude dos nossos saberes, percebemos que somente uma pedagogia do diálogo permanente nos liberta do controle e da educação bancária (Paulo Freire) que acumula saberes insípidos e descontextualizados (CATALÃO; IBAÑEZ, 2014). A nossa Terra circundada de águas é um lugar extraordinário capaz de converter os espaços desertos em espaços de vida e convivialidade ainda que o homem contemporâneo esteja perdendo, cada vez mais, a capacidade de perceber-se como ser pertencente à Terra, optando por uma lógica e uma ética instrumental que coisificam todos os seres e mercantilizam as relações humanas. A este respeito Heidegger (apud UNGER, 1991, p. 31) diz: O modo que calcula e objetiva o real configura o desenraizamento próprio do homem moderno, sugerindo a formação de seres que saibam habitar, morar no sentido pleno, ou seja, respeitar a terra com seus seres, acolher e

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O céu refletido nas águas do Rio Preto

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preservar, deixando o outro ser o legítimo outro com reconhecimento do sagrado e assumindo a morte como parte da vida.

A aposta do projeto Água como matriz ecopedagógica é que a educação, como prática de liberdade e de cuidado, seja capaz de reverter esta relação de objetivação da vida que transforma em mercadoria tudo que toca, uma versão moderna de Midas que corrói, sorrateiramente, o nosso porvir. Voltar às coisas mesmas, compreendê-las na sua alteridade, descobrir o que nos une, perceber-se parte de um todo e sentir uma alegria genuína por saber que dentro de nós corre a mesma seiva matriz, nutriz e motriz da vida que irriga o corpo planetário. Deixar dialogar em nós a água matriz e a água aprendiz. Lembrar o tempo das águas claras do ventre materno onde, imersos e mansos, fomos fluxo e reflexo, nítida consciência do ser inteiro. (CATALÃO, 2011, p. 201)

Guardar a água que acolhe e a geometria dos seus meandros como nicho da nossa esperança.

O fluxo dos rios e as trilhas humanas Nosso corpo organiza-se como um rio, nossas artérias como grandes afluentes, nossas veias e capilares como os pequenos cursos d´água que irrigam uma bacia hidrográfica. Assim como a circulação sanguínea regenera continuamente o corpo humano, o circuito das águas nutre o imenso corpo da Terra (CATALÃO, 2002). O fluxo do rio é a metáfora inspiradora do trajeto existencial do humano: nascemos fontes, crescemos com tantas outras águas formando o nosso curso e, finalmente, retornamos ao oceano original que nos redime, purifica e liberta. A transitoriedade e a impermanência marcam o destino humano, assim como definem o destino da água. Largo oceano, berçário da vida, horizonte nunca alcançado, encontro sonhado da terra e do céu. G. Pineau e Jobert (1989, p. 15) comparam o curso de um rio ao da existência humana e tomam essa imagem como metáfora para as histórias de vida:

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Rio acima está a fonte, a nascente. O passado e o presente agitando-se continuamente nos múltiplos afluentes, influências, chuvas recebidas, terras atravessadas, barragens e estações. A embocadura é a distância que separa do fim do rio, o futuro com seus projetos e rejeitos, suas aberturas, suas perdas, transformações e ressurgências. As margens são os limites, os diques naturais que contêm as correntes, mas permitem suas formas, sua força, seu colorido e sua paisagem. Fazer sua história de vida é o mesmo que criar seu rio.

O curso do rio representa o tempo inexorável que limita o início e o fim de todos os seres vivos. Na duração da existência, as águas, que um dia migraram para as rochas subterrâneas, quando ressurgem nas fontes, adquirem o poder simbólico de restaurar a vida e religar o homem às forças cósmicas que geram e sustentam a vida na Terra. As bacias hidrográficas, com seus afluentes e área de drenagem, enredam um sistema circulatório pleno de capilaridades, veias, artérias de forma similar ao sistema circulatório humano. No trabalho de formação realizado com os professores tendo a água como tema, esta imagem foi para nós uma metáfora perfeita da transdisciplinaridade. Se a terra nos enraíza, a água e o ar conduzem os movimentos da vida. No nosso planeta, a água é o símbolo fundamental dos sistemas circulatórios que replicam os movimentos essenciais em forma de vórtices que ordenam a espiral da vida. Os sistemas circulares nos remetem aos movimentos do ciclo hidrológico que, a princípio, nos parecem repetitivos, mas, para um olhar reflexivo, apresentam-se como um dinamismo autopoiético que renova a estrutura, recriando-a sem cessar. Por meio desse movimento rítmico, a vida se regula e se renova. A plasticidade desse elemento é tão inusitada e rara que o faz ser o único, em nosso planeta, a assumir os estados sólido, líquido e gasoso. Theodor Schwenk (1982) concebe a ação dos vórtices da água como um sistema em movimento que reproduz em pequena escala as grandes leis cósmicas. A orientação espacial dos vórtices visa o céu e as estrelas e seus movimentos internos imitam

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Cachoeira das Pedras na Lapinha: reduto de paz e tranquilidade

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Reconhecer o físico como base primeira, abrigo e terra de onde tudo parte, ajuda-nos a compreender a instrumentalidade do corpo, seus poderes de apreensão, expressão, comunicação de movimentos, sentimentos, valores, acontecimentos e formações interiores e subjetivas.

o sistema solar. A água é senhora das metáforas; a sua transparência nos devolve o espelho do real de forma fluida e virtual. Esse espelho traz em si um segundo mundo que nos escapa e no qual enxergamos nossa imagem sem poder tocá-la, separados por uma falsa proximidade e intransponível distância.

suscitando análises dos problemas do cotidiano, principalmente, aqueles que o Planeta enfrenta em relação à disponibilidade e esgotamento dos recursos hídricos, podendo conduzir a um olhar crítico e atitude responsável diante das situações que se apresentam.

A partir da materialidade da bacia hidrográfica, propomos construir uma bacia semântica pedagógica inspirada nas chaves de um processo educativo ecopedagógico como o proposto por Gutierrez e Prado (1999). É possível estabelecer relações entre estas chaves e as metáforas da água na intenção de contemplar os múltiplos significados da Água como matriz ecopedagógica (CATALÃO; MORAES, 2008).

Podemos evocar a bacia hidrográfica de um rio, igualmente, como chave semântica de uma educação que articula diferenças, conjuga complexidades, separa águas que devem escorrer para outras direções e reúne as que convergem para um mesmo vale. A água que flui da minha fonte faz parte de um mesmo ciclo virtuoso de purificação e circulação das águas planetárias. Águas comunicantes podem nos fazer rememorar a percepção da nossa identidade planetária.

O movimento transversal e espiralado que estrutura as bacias hidrográficas inspira uma bacia pedagógica transdisciplinar que religa o corpo humano ao corpo da terra. A água apresenta-se como elemento articulador dos conhecimentos sistematizados, conhecimentos que emergem da prática, conhecimento popular, percepção estética e expressões simbólicas. A água aparece, também, como traço de união entre a ação local — o rio da minha aldeia — e a perspectiva global — os oceanos. O simbolismo das águas faz ainda conexões entre natureza e cultura; e a imaginação material desse elemento nos emprenha de metáforas de religação entre o nosso destino e o devir cósmico (CATALÃO, 2006). Trabalhar com as metáforas permite-nos ir além das dimensões de encantamento e beleza,

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O corpo é uma unidade perceptiva e inteligente capaz de enraizar os processos de aprendizagem. Reconhecer o físico como base primeira, abrigo e terra de onde tudo parte, ajuda-nos a compreender a instrumentalidade do corpo, seus poderes de apreensão, expressão, comunicação de movimentos, sentimentos, valores, acontecimentos e formações interiores e subjetivas. O curso do rio faz-se entre o diálogo do tempo circular com o tempo linear. Podemos perceber cada curva, cada remanso como uma exaltação à circularidade original da água e ver — nas correntes que impulsionam o fluxo — um diálogo com o vale e outras águas afluentes que trazem a marca das

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Água da Santa: simbologia e fé que ligam o Céu à Terra

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histórias que se sucedem no trajeto de um rio da nascente até a foz. Essas representações podem inspirar uma reflexão analógica entre o curso dos rios e nossas histórias de vida. Gutierrez e Prado (1999) propõem algumas chaves ecopedagógicas para vivenciar/aprender uma ecocidadania planetária. As chaves favorecem uma pedagogia da pergunta que trabalha valores democráticos e solidários capazes de garantir a sustentabilidade da vida.

reciprocidade, de promover processos e criar redes de aprendizagens. • Caminhar “re-criando o mundo” nos convida a perceber a água não apenas como elemento e veículo para geração e manutenção de vida, mas também, como fluxo, adaptabilidade e paisagem para contemplação, encantamento e reflexão que nos mobiliza para agirmos como coautores da vida e não como algozes. Quando compreendemos a vegetação como mãe e filha das águas, entendemos

• A chave de “caminhar com sentido” sugere uma

que o ato de desmatar a nascente implica que ela

reflexão sobre o significado e a direção que damos

ficará exposta e poderá secar, remetendo-nos à

ao percurso de nosso rio. Envolve ainda um

consciência de que toda e qualquer ação traz uma

sentir reflexivo cujos caminhos são construídos a

reação que deve, obrigatoriamente, ser avaliada no

partir do sentimento, da intuição, da emoção, da

processo, integrando-a aos resultados alcançados.

vivência e da experiência, pois a educação é um

A ecologia da ação nos orienta para um estado de

processo de elaboração do sentido.

vigília e de revisão dos processos vividos.

• Para “caminhar em atitude de aprendizagem”,

• A chave “caminhar avaliando o processo” abre

podemos abordá-la por meio da lição de uma

espaço meditativo para que possamos, de forma

bacia hidrográfica sempre pronta e receptiva

coletiva, avaliar nossa aprendizagem sobre o

para acolher novas águas que sejam escuras

sentido das coisas. Esta chave lembra-nos o tempo

ou claras, fortes ou fracas, barrentas ou

do remanso para refletir o nosso ser-estar e nos

transparentes. Em todas, o rio encontra uma

remete à ecologia da ação conceituada por Morin

possibilidade de descoberta de outros ritmos e de

(1999). A água resguarda os seres das arestas, da

renovação da paisagem do vale. É, também, uma

aridez e do peso da gravidade (CATALÃO, 2006)

metáfora apropriada para trabalhar o respeito às

e, assim, apresenta-se como metáfora do cuidado

diferenças, isto é, viver a alteridade. Caracteriza-

essencial de que fala Martin Heidegger e do modo

se por processos pedagógicos abertos, dinâmicos,

de ser cuidado proposto por Leonardo Boff.

convergentes, antagônicos e criativos nos quais os principais autores são os seus protagonistas — estudantes e professores. • A chave que propõe “caminhar em diálogo com o entorno” pressupõe que a mediação pedagógica seja centrada na experiência dos interlocutores por meio de conversas fluidas, transparentes, sensíveis. A água é, por excelência, a senhora da escuta, condição essencial para a biologia do amor de que fala Maturana (2002). Para Gutierrez e Prado, a interlocução envolve a capacidade de chegar ao outro, de abrir-se ao meio ambiente, de percorrer caminhos de compreensão e 334

É possível que, ao conjugar as possibilidades da água como matriz ecopedagógica às chaves da ecopedagogia, possamos preencher ausências pedagógicas na educação ambiental, a exemplo do vazio acolhedor da água que favorece os encontros. Para nós educadores ambientais, a riqueza das metáforas é um oceano de possibilidades capaz de ressignificar a água para as atuais e as novas gerações. Acreditamos que pelo modo de ser cuidado entrelaçado ao modo de ser trabalho (Boff, 1999) realizado cotidianamente possamos devolver ao planeta Terra a transparência, o fluxo e a limpidez da sua matriz perene de Vida.

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A Usina e as águas que fizeram a história

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Conclusão Recentes pesquisas sobre a memória da água, experiências de água estruturada e formas alternativas de purificação da água mostram a capacidade da água para transmitir e gravar informações e renovam a esperança em uma mudança paradigmática que se inspira na tradição, mas a supera por uma hidroconsciência que reata tradição e inovação de forma inventiva. A educação ambiental precisa, cada vez mais, de abordagens pedagógicas que aborde a sensibilidade da água de forma vinculada a contextos locais que favoreçam às comunidades, à consciência dos seus problemas e à mobilização para a gestão responsável dos seus territórios de vida, encontrando respostas criativas para enfrentar a crise. Somos parte de uma totalidade biológica e cultural com dimensões planetária e cósmica; o sentido de pertencimento é fundamental para a sustentabilidade dessa teia da vida. Precisamos de soluções criativas para temas sociais concretos e para a invenção de projetos de vida local e de ecoformação capazes de reatar os laços afetivos e estéticos com o rio do nosso sítio, da nossa cidade, com os rios da nossa infância, com as fontes de águas ressurgentes nas nossas serras e montanhas, com o corpo circulatório da Terra que se materializa, delineada pelo contorno sinuoso dos cursos d´água nas nossas bioregiões. Mudar os padrões de consumo implica a mudança de valores e de processos educativos que provoquem, simultaneamente, mudanças no plano da externalidade e da subjetividade humana, mobilizando a descoberta do enraizamento dos seres humanos em bases biológica e sociocultural. Para sair do impasse, é preciso saber obedecer e guiar as forças da vida (MORIN, 1993), mas isso demanda o tempo circular da contemplação e da reflexão. Sabemos que a inserção de homens e mulheres, idosos e jovens, com iguais prerrogativas, no enfrentamento do uso sustentável dos recursos naturais, especialmente da água, constitui uma missão coletiva e um crescente desafio na formação de formadores. Para que isto aconteça, é necessário que ressignifiquemos os sentimentos e que operemos uma verdadeira reforma do pensamento como propõe Edgar Morin. A organização em rede, o reconhecimento do outro, o sentimento de

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pertencimento e cuidado por tudo que vive surgem como novas estratégias para as mudanças políticas e socioambientais desejadas. Se dermos realmente uma chance, a Terra poderá recuperar-se. É preciso conjugar a relação de uso com a relação de sabedoria e cuidado (PINEAU; BARBIER, 1999). A intenção é religar a teia da vida com a teia da cultura dos homens em um pacto amoroso pela sobrevivência, pela felicidade que tanto sonhamos e sempre adiamos. “Diante de tanta ganância, queremos a água como bem comum. Diante de tanto descaso, queremos a água como bem querer.” (CATALÃO, 2011, p. 202) Juntos, em uma comunidade aprendente que atualmente se entrelaça em uma rede solidária pelas águas, já realizamos algumas ações transformadoras e solidárias para a água, tendo sempre como contexto uma bioregião. É possível que a Educação Ambiental seja somente um pretexto necessário para trabalhar a integridade dos processos educativos e a formação global do humano (CATALÃO, 2006) em qualquer bioma, no campo, na cidade, na escola e em outras comunidades de aprendizagem, acolhendo águas que chegam e acompanhando amorosamente as que tomam outras direções. As águas serão sempre ponto de encontro mesmo quando divisores de água as separam. O ciclo hidrológico nos redime do isolamento. Uma ecopedagogia da água só depende da nossa atenta e amorosa observação para o desenvolvimento de ações éticas, estéticas e tecnológicas pelo bem da Vida em estado de comunhão e graça como uma água-benta. Para nós educadores ambientais, o uso pedagógico das metáforas opera uma verdadeira travessia de sentidos capaz de ressignificar a água para as atuais e as novas gerações. Pela experiência coletiva com modo de ser cuidado entrelaçado ao modo de ser trabalho, a água nos coloca em estado de escuta, seja pela sua capacidade de apreender sentidos e informar processos, seja pelo diálogo com a diferença ou pelo simples acolhimento de todas as comunidades de vida. Na curva do rio, a história da humanidade e os mitos de origem encontram-se. Fica o convite para atualização desse encontro em ritos modernos que façam dialogar as tradições, a ciência e a experiência cotidiana de homens e mulheres na intenção de devolver ao planeta Terra o fluxo e a limpidez da água — matriz, nutriz e motriz de nossas vidas entrelaçadas.

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A materialidade fluida da Água: comunhão e graça na Cachoeira do Jambreiro

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Morro do Pilar: imaginário e natureza animada | CAPÍTULO 12

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capítulo 12

Morro do Pilar: Imaginário e natureza animada1 ♦ Manuel J. Gandra2 ♦

Do Império do Divino Espírito Santo

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esde já é importante destacar que a iconografia portuguesa esteve, invariavelmente, a serviço da causa do Império do Divino Espírito Santo por se tratar de um tema muito comum, sobretudo, em capelas e altares da invocação do Paracleto. O culto do Divino Espírito Santo sob a forma de Império, devoção mais autenticamente pneumatológica da cultura lusíada, é expressão própria e exclusiva nos Açores e no Brasil, conservando, ainda, a fidelidade às origens e não tendo qualquer similitude com as devoções homônimas que existem por todo o restante orbe católico. A propósito da popularidade do Império do Divino Espírito Santo, no Brasil, na década de 1820, convém recordar que José Bonifácio, conforme Câmara Cascudo, preferiu o título de Imperador ao de Rei, porque era “mais amado pelo povo”. Com efeito, a Festa e o Regime político iniciaram juntos um novo tempo, edificando as barracas do Império do Divino diante do Paço Imperial.

Em 12 de Outubro de 1822, D. Pedro I foi aclamado Imperador do Brasil em um Teatro (do Divino), edificado diante do Paço Real, exatamente defronte daquele onde eram dispensadas as mesmas efusivas homenagens ao Imperador do Divino, no Campo de Santana (Rio de Janeiro). Aliás, consta que terá sido justamente essa a circunstância que determinou a adoção do título de Imperador pelo príncipe. De acordo com uma tese do abade cisterciense Joaquim de Fiore, o Auto do Império encena, de forma simbólica, o advento da Terceira Idade do Mundo que fora propalado pelos meios joaquimitas. A história da humanidade percorreria três Tempos, desde a Criação até o Fim do Mundo, vividos cada um deles sob a influência de uma das três pessoas da Trindade (lema da tripeça).

1 Artigo adaptado pelo Editor para esta edição. 2 Licenciado em Filosofia (Faculdade de Letras – Universidade Clássica de Lisboa). Tem-se consagrado à investigação da História e da Geografia Míticas de Portugal (nomeadamente no que concerne às Ordens do Templo e de Cristo, ao Culto do Império do Divino Espírito Santo, ao Sebastianismo e ao Hermetismo), da iconologia da Arte portuguesa e da Circunstância Mafrense. Entre 1990 e 31 de Agosto de 1999, foi Coordenador dos Serviços de Cultura da Câmara Municipal de Mafra. Atualmente, é Professor Associado na Escola Superior de Design do IADE-U. Coordenador Científico da Biblioteca António Quadros (IADE-U). Investigador do CLEPUL (Faculdade de Letras de Lisboa), Colaborador da UNIDCOM (IADE-U) e das Revistas Nova-Águia e IDentidades. Membro do Conselho Consultivo do MIL e da Identidades Oceânicas (IDEO, Brasil) e Diretor do Centro Ernesto Soares de Iconografia e Simbólica que fundou em 19 de Abril de 1997, com sede em Mafra.

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A importância do Mastro do Divino é exatamente o que dele emana: figura o eixo do Mundo, comunicação privilegiada entre o Céu e a Terra, propiciadora do contato com o mundo espiritual

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Arquivo Manuel J. Gandra

(porquanto a ideia é posterior à canonização da rainha, em 1625!), a sua creditação enquanto introdutora da devoção do Império em Portugal! De tão concitado por supostas autoridades na matéria (avalizadas em fontes, cuja letra atraiçoaram), passou a condicionar hodiernamente, a forma como umas quantas comunidades, maioritariamente da diáspora portuguesa nos Estados Unidos da América do Norte, bem como algumas insulares açorianas,

O lema da tripeça, doutrina de Joaquim de Fiore em seu Comentário ao Apocalipse

contaminadas por aquelas, ritualizam os festejos do Divino.

Assim, se a lei mosaica fora específica da Idade do Pai e a lei evangélica da do Filho, a futura lei do Evangelho Eterno sê-lo-ia da do Espírito Santo (GANDRA, 1999). O Tempo do Divino Paracleto, o do Quinto Império Lusíada, era da confraternização universal de cujo advento os portugueses se fizeram arautos, disseminando pelas novas latitudes tais expectativas milenaristas, porém, nem sempre da forma mais ortodoxa e conforme os dogmas romanos. Efetivamente, persistem inúmeras interrogações sobre as circunstâncias da instituição dos Impérios

A ritualização do festejo do Divino: prelúdio da Nova Ordem Mundial A principal cerimônia da Função, Folia, ou Império consistia, salvo ligeiras variantes regionais, na coroação com três coroas, uma imperial e duas reais, do Menino Imperador assessorado por dois Reis — por vezes figurados por um homem maduro e por outro idoso —, na razão, respectivamente, das Idades do Espírito Santo, do Filho e do Pai.

do Divino que é, quase consensualmente, atribuída

O Menino, símbolo da humanidade espiritualmente

(por uma tradição erudita sem qualquer confirmação

renovada e religada às verdades fundamentais da pobreza evangélica do amor fraterno, empunhava o cetro que, tocando a fronte, significava a bênção do Divino. Entre outros elementos igualmente significativos da folia, mencionamos o Mastro do Divino que, em muitas localidades, é erguido no início do Império para assinalar a sua abertura e hasteado imediatamente após o seu encerramento.

documental) à Rainha Santa Isabel (1269?-1336), justamente em Alenquer; mas, também, segundo Jaime Cortesão, pode ter sido o convento de São Francisco o palco da primeira realização, em 1323, de um Império do Divino. Diz-se que antes de 1234 já existia, em Benavente, a Confraria do Espírito Santo sem que se saiba, entretanto, exatamente desde quando foi organizada. Não será excessivo recordar que também Mário Martins põe “sérias dúvidas” à invenção “da solenidade do Império”, pela Rainha Santa e por Dom Dinis, opinião igualmente partilhada pelo investigador gaulês Daniel-Francis Laurentiaux. Em suma, de duas coisas distintas muitos exegetas têm feito uma insustentável: sendo indiscutível que D. Isabel protegeu e dotou generosamente a Irmandade do Espírito Santo de Alenquer, carece já de qualquer fundamento documental coevo plausível 342

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A importância do Mastro do Divino é exatamente o que dele emana: figura o eixo do Mundo, comunicação privilegiada entre o Céu e a Terra, propiciadora do contato com o mundo espiritual e correlato dos Impérios-Tabernáculo açorianos, inacessíveis como a Jerusalém Celeste, exceto durante a festa. Sintomaticamente, o Mastro do Divino é denominado Pau de Jerusalém, ou Torre de Jerusalém, no Maranhão. Após ter recebido as homenagens do povo e das autoridades civis e eclesiásticas, ocorria a libertação de um ou de vários presos, concluindo os festejos

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Em Morro do Pilar, o Culto do Divino Espírito Santo é momento de expressão, fé e devoção

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com um bodo servido a todos, independentemente da condição social e credo, e constituído por um repasto, regra geral, confeccionado com a carne de bois previamente corridos, pão, vinho e arroz-doce conforme consta em Sabores, Cheiros e Comeres do Divino, obra de minha autoria a ser publicada. Em um dado momento, ainda nebuloso, o vocábulo Império ter-se-á tornado sinônimo de Teatro do Divino, expressão que havia de ser adotada para designar o palco onde, anualmente, encenar-se-ia o Auto do Império, prelúdio da Nova Ordem Mundial, cujo advento na Terra se antevê como prefiguração de uma hierofania de âmbito cósmico. É consensual que os Teatros ou Impérios-capela ou Impérios-tabernáculo em alvenaria, abobadados, da Terceira e de São Miguel, representam o culminar de uma evolução a partir dos primitivos alpendres, cadafalsos e Teatros efémeros, em madeira (estrados ou palanques móveis), expressamente edificados para a festa do Pentecostes. O que mais notabiliza essa construção é a sua configuração cúbica, com três vãos na fachada principal (e, por vezes, nas laterais) que, evidente­ mente, remete para a Jerusalém Celeste descrita no Apocalipse, atribuído ao evangelista João, um dos textos mais glosados pelos joaquimitas.

No Teatro do Divino, tomava assento, no domingo de Pentecostes, o Imperador com a respectiva corte logo após a cerimônia da coroação. Armavase um altar, decorado com colchas de tear, no qual era depositada a coroa Imperial, destinando-se, igualmente, à recepção das inúmeras oferendas dos devotos. Até o anoitecer, o povo permanecia no terreiro adjacente, festejando o Divino, mediante a recriação de elaborados enredos sacroprofanos por intermédio dos quais se divertia, divulgando, concomitantemente, a mensagem do Evangelho Eterno, nem sempre tolerada quer pelo trono, quer pelo altar, conforme denotam as sucessivas proibições de que foi alvo a devoção que explica boa parte da História de Portugal. É inconteste que “Todo o movimento do Império está no Teatro e na copeira”, isto é, respectivamente, no palanque destinado à coroação e entronização do Imperador e na despensa-refeitório em que o Divino, por seu intermédio, providencia a abundância alimentar à comunidade.

O Império do Divino Espírito Santo em Morro do Pilar O Divino é festejado sob a forma de Império em todo o Estado de Minas Gerais, com destaque para

Para preludiar esta futura, autêntica e tão apregoada Nova Ordem Mundial, os devotos do Império do Divino erguem réplicas da Nova Jerusalém, inacessíveis como a Cidade Santa, exceto durante a festa de Pentecostes, quando surgem as escadas ou degraus em madeira que a elas permitem aceder.

Diamantina, Bocaiúva, Matosinhos, Sabará etc. Lamentavelmente, o Império do Divino de Morro do Pilar acha-se completamente desvirtuado e reduzido a uma triste e anódina procissão (o semblante resignado dos intervenientes o denota). Com efeito, são por demais evidentes os intuitos

A casola ou quadro, também denominado quadrado de varas e quadro santo, é outra das figuras da Jerusalém Celeste assimilada pelo Auto do Império. Trata-se de um recinto formado por quatro varas transportadas de maneira a constituírem uma espécie de armação paralela ao chão, e a cerca de meio metro deste, no interior da qual segue o Imperador e, em determinadas localidades, as personagens que integram o cortejo designado Abertura da mesa, isto é, a corte Imperial.

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catequéticos e a sobranceira exaltação do dogma católico explícitos no evento, adversando os pressupostos de inclusão, partilha e fraternidade que, nos seus primórdios, se presume que a festa preludiaria, à semelhança das que ocorrem em Minas Gerais, em outras regiões do Brasil e do restante orbe sob influência lusa. Tal presunção mais se fortalece em virtude da circunstância de as famílias Câmara e Herédia, às

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Os festejos em louvor do Espírito Santo, em Morro do Pilar, envolve toda a comunidade

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quais pertenciam os fundadores do arraial, hoje

Matriz de Morro do Pilar, ocasião para a queima de

Morro do Pilar, serem oriundas da Ilha da Madeira.

fogos. Na madrugada seguinte, o festeiro oferece o

Neste arquipélago, os festejos do Império do Divino,

tutu da madrugada aos participantes na alvorada.

levados da metrópole pelos primeiros colonos

Durante o dia, é celebrada missa seguida de procissão

no século XV, eram promovidos com estadão em

com o rei e a rainha, ocorrendo a transferência do

praticamente todo e qualquer lugar, se é permitido

reinado para o festeiro do ano seguinte.

glosar a célebre máxima açoriana, diz-se: “a cada canto seu Espírito Santo”.

No glossário a seguir, estão elencadas as mais relevantes particularidades da festa, bem assim

Não logremos determinar com precisão quando

como algumas minudências e contributos com vista

aconteceu a depreciação do Império e a respectiva

ao respectivo e desejável resgate em Morro do Pilar.

metamorfose em “reinado” (no Morro não há Imperador, apenas Rei), mas a tal subversão não deverá, decerto, ter sido alheia à preponderância e prestígio social de alguma família mais próxima da igreja e de algum dos seus ministros a ela ligada. No ano de 1921, asseverava Monsenhor Mattos que “[...] com muito arrojo se celebravam as festas do Divino, de S. Sebastião e do Rosário.” (1921, p. 52), do que se infere que, aparentemente, já não era assim na ocasião em que ele escrevia, quiçá, por sua própria influência ou iniciativa, ou do seu antecessor no cargo, o padre Anastácio que se ocupava de outras atividades em lugar dos festeiros. Certamente, a um deles, ou aos dois, poderá ser

• Alvorada: Acontece depois da meia-noite. Momento em que é servido o tutu da madrugada. • Andor do Divino: Em Morro do Pilar, o Divino Espírito Santo desfila no cortejo, que mais se assemelha a uma procissão, sobre dois andores. • Bandeira do Divino: É de cor branca e sem a dignidade dos estandartes do Divino de outras festas. Tem bordada uma pomba e a frase “Festa do Divino Espírito Santo”. • Bodo: Termo que designa a distribuição de donativos e a partilha de alimentos. Em Morro do Pilar, é denominado tutu da madrugada.

creditada a “domesticação” das festas que escapavam

• Casa da festa: Correspondente ao Império, i.

ao controle da autoridade paroquial do Morro (S.

e., teatro do Imperador. Em Morro do Pilar, o

Benedito, Divino e Nossa Senhora do Rosário) em

Imperador chega coroado à igreja. Após a missa

uma única, a Festa de Verão, mais consentânea com os

solene, segue para a Casa da festa no interior do

desígnios “evangelizadores” em curso naquela época

Quadro de Varas.

no Brasil.

• Cetro: Bastão dourado com uma esfera da mesma

Apesar da dificuldade de situá-la em data mais precisa, a denominada Festa de Verão decorre durante a sexta-feira, o sábado e o domingo mais próximos do dia 15 de agosto, nela sendo festejados S. Benedito (quinta-feira à noite e sexta-feira em período matutino), o Divino Espírito Santo (durante a tarde e a noite de sexta-feira; sábado) e Nossa Senhora do Rosário (sábado e domingo). Todos os anos um novo festeiro torna-se responsável pela recolha de recursos destinados à realização da festa do Divino. Os festejos têm início com a elevação do Mastro do Divino Espírito Santo no adro da Igreja 346

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cor no topo. • Coroa: Insígnia em metal destinada a ser colocada na cabeça do Imperador. Existem duas coroas abertas (reais e não imperiais, como seria de desejar), em Morro do Pilar, uma destinada ao Imperador, outra à Imperatriz. • Coroação: Imposição da coroa ao Imperador. Representa o auge do ritual do Divino, obedecendo a ritual meticuloso e fixo. Quando sancionada pela igreja, é indissociável da missa, chamada da coroação, e realizada segundo as normas

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diocesanas. Em Morro do Pilar, o Imperador chega coroado à igreja.

festa integralmente suportados pelo festeiro. • Frutos do Divino: Sabedoria, Alegria, Paz,

• Corte Imperial: Conjunto dos componentes do

Temperança, Paciência, Benignidade, Piedade, Caridade, Bondade e Fidelidade.

Império. • Cortejo: Deslocação processional do Império

• Imperador: Principal festeiro masculino do

antes e após o termo da missa até a igreja e desta

Império do Divino, menino, adolescente, ou

até a casa da Festa, respectivamente. Em Morro

adulto jovem, cuja família assume os encargos e

do Pilar, tem mais de procissão católica que de

despesas maiores da festa, geralmente, a título

cortejo Imperial.

de pagamento de promessa. O seu mandato dura

• Divininho: Pombinha em metal, ou pequena medalha de colocar na lapela, presa com alfinete. Distribuído no final da festa.

um ano, desde o dia em que é sorteado, eleito, ou indigitado, até a passagem das insígnias imperiais ao sucessor, competindo-lhe, nesse ínterim, coordenar (ou à família) tudo quanto

• Dons do Divino: Santidade, Fortaleza, Temor de Deus, Ciência, Conselho, Inteligência e Piedade. Desfilam sob a forma de faixas verticais.

se reporte às festividades. No Auto do Império, o Imperador encarna o Messias cuja vinda e missão soteriológica acham-se consignadas nos três momentos mais importantes da liturgia

• Escapulário: Escapulários com a figura do Divino

primordial das festividades: coroação, bodo

são colocados no interior ou no exterior das portas

gratuito e libertação salutífera (da enfermidade ou

de muitas casas, supostamente, para protegê-las.

da prisão). Em Morro do Pilar, a festa do Império

No verso, muitos escapulários têm aplicada uma

não tem Imperador que foi substituído por um rei

Oração em louvor do Divino.

(coroa aberta).

• Festa de Verão: Os festejos em louvor do Espírito

• Imperatriz: Principal protagonista feminina do

Santo, em Morro do Pilar, acham-se integrados na

Império do Divino, figura do Paracleto. Em Morro

denominada Festa de Verão que decorre durante a

do Pilar, a festa do Império não tem Imperatriz,

sexta-feira, o sábado e o domingo mais próximos

pois foi substituída por uma rainha (coroa aberta).

do dia 15 de agosto. Nessas festividades, são cultuados S. Benedito, o Divino Espírito Santo e Nossa Senhora do Rosário.

• Império: O Império do Divino é o edifício ou aposento onde é exposta à visita e à veneração, em um altar armado com flores e luzes, uma coroa

• Festeiro: Responsável pela organização dos

imperial, emblema do Divino, que preside a todos os atos litúrgicos e de devoção que ocorrem

festejos em louvor do Divino Espírito Santo. • Fogo de artifício: Após o levantamento do mastro do Divino, no adro da Igreja Matriz, é queimado fogo, preso (cascata e diverso) e aéreo. • Folia do Divino: Grupo andarilho de devotos do

enquanto duram os festejos. Em Morro do Pilar, não existe, não tendo sido possível apurar desde quando. • Marujada: Participa nos festejos.

Divino que, debaixo da sua bandeira e fazendo-se

• Mastro do Divino: Um dos elementos simbólicos

acompanhar por instrumentos musicais, cantam

de maior relevância na festa do Divino. Tronco

versos de louvor ao Espírito Santo com função

de árvore, liso e direito, de seis a oito metros de

precatória, angariando donativos para a festa e

comprimento, pintado (branco e vermelho),

publicitando-a. Em Morro do Pilar, não existe

erguido no adro da Igreja Matriz de Morro do

(decerto, terá sido extinta), sendo os custos da

Pilar (Praça 21 de Abril), assinalando o local da

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realização da festa. Levantar o mastro marca o início efetivo da festa. É colocada, no topo, uma bandeira do Espírito Santo. • Pendão do Divino: No cortejo, figuram vários e que desfilam logo após os Frutos do Divino. • Quadro de Varas: O quadro ou quadrado de varas, recinto formado por 4 varas transportadas de maneira a constituir uma espécie de armação paralela ao chão, distante dele cerca de meio metro, é suportado exteriormente em cada um dos ângulos por oito ajudantes (quatro casais). No interior do quadro, seguem as personagens que integram o reinado. O quadro de varas figura a Jerusalém Celeste. Em Morro do Pilar, a festa do Rosário, também, tem quadro santo. • Procissão: Nome mais adequado para o coretejo Imperial em Morro do Pilar. • Tutu da Madrugada: Designação do bodo do Divino em Morro do Pilar. Tutu é palavra de provável origem quimbundo (ou ioruba) que designa a iguaria de feijão cozido, misturado com farinha de mandioca ou de milho. Mas, também, signifiga riqueza, muito dinheiro, o que equivale, em rigor, com o luxo do banquete servido a todos os morrenses. Em Morro do Pilar, é servido linguiça, arroz, almondegas e macarrão, doce de leite, pudim da véspera e mamão. Na atualidade, são admitidos vinho, espumante e batido de coco. • Virtudes Teologais: Fé, Esperança e Caridade. Desfilam no cortejo, ou procissão, sendo, respectivamente, figuradas por uma cruz, uma âncora e um coração transportados por três meninas.

Da mundividência essencial O acesso à mundividência essencial, também dita holística, implica, antes de tudo o mais, questionar o omnipotente primado da visão materialista do mundo, bem assim como a adoção de uma metodologia igualmente suscetível de captar o seu

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conteúdo expressivo ou fisiognômico. Uma vez assumido o sentimento de que o macrocosmos projeta-se, ininterruptamente, no microcosmos e, inversamente (porque se os restantes corpos celestes influem sobre a Terra, a recíproca também é verdadeira!), pela virtude de um princípio geral, ordenador do Universo, tornar-se-ão, então, evidentes as vantagens que advirão de se consignar o devido realce às estruturas perenes (mundo imaginal), cujo valor sacral, todas as morfologias, naturais ou artificiais, tendem a encarnar, tornando-as parte integrante do imaginário das comunidades e povos. Com efeito, da interação e da combinatória de tais forças criativas, brota uma geometria configuradora de uma topo-ontologia, presidindo à formação e devir (biorritmo) das criaturas, orgânicas e inorgânicas, das estruturas moleculares às nebulosas, subordinando-as, sem exceção, a uma estética das proporções. Aliás, não garante o povo, glosando o Livro da Sabedoria (XI, 21), que Deus tudo fez com conta, peso e medida? O engenho humano, por seu turno, busca reproduzir os módulos cosmogônicos patenteados pelo mundo natural. Isto porque, as forças da natureza, que conferem uma individualidade aos diferentes tipos de paisagem, modelam, também, o carácter dos seus habitantes que, na atualidade, estão frequentemente desenraízados por via de arbitrários modelos de desenvolvimento, mais ideológicos e economicistas que buscados nas idiossincracias regionais. Tratamos, então, de fazer valer certo saber tradicional que ainda é possível identificar nas gentes do povo a cuidar do imaginário tradicional sustentável de Morro do Pilar. Referimo-nos, a título de exemplo, a D. Maria da Conceição Tomaz (Morro do Pilar) e a D. Teresa Maria Ferreira (Carioca), porventura, as derradeiras guardiãs de uma sabedoria que deve ser por todos resguardada. Morro do Pilar foi fundada por portugueses e edificada com o contributo inegável quer de povos nativos, quer de afrodescendentes. Ora, o

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O Tempo do Divino Paracleto, o do Quinto Império Lusíada, era da confraternização universal de cujo advento os portugueses se fizeram arautos, disseminando pelas novas latitudes tais expectativas milenaristas

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sincretismo, que aí se instalou, só à luz da herança mental e cultural de todos os intervenientes (sem exceção de qualquer um deles) é suscetível de ser desvelado, facultando não apenas a decifração de uns quantos enigmas, mas também, a descodificação da semântica de algumas tradições de origem e contornos obscuros. Em Morro do Pilar, é possível sinalizar as moda­ lidades, quer teóricas quer práticas, de um saber tradicional concernente a Portugal, consoante a três das mais relevantes formulações da noologia ortomolecular, a saber: geomância natural ou espontânea; geomância divinatória; geomância propiciatória e apotropaica.

Geomância natural ou espontânea

Fuga para o Egipto, o cavalo de D. Fuas Roupinho etc. Em Morro do Pilar, por exemplo, destaca-se a Fonte, ou Água, da Santinha abaixo identificada. O transtorno do delicado equilíbrio das correntes eletromagnéticas que percorrem o planeta, a par da acelerada degradação da biosfera, arrastará consigo alterações climáticas de amplitude ainda insuspeitada. Em um grau menor, diversos outros fatores se conjugam e dificultam a percepção da terra e das suas energias, designadamente: 1. as frequências de onda geradas pelas linhas de alta tensão transportando energia elétrica (um dos símbolos do progresso tecnológico), criadoras de uma rede eletromagnética não sintonizada com a rede natural, interferindo com ela e provocando a sua degeneração e consequente nocividade;

génio particular (mouros e gigantes, além de outras

2. a arquitetura contemporânea (construção em túnel conjugada com certos materiais nela utilizada), é um dos principais agentes de tensão, ansiedade e enfermidades degenerativas como, por exemplo, o cancro e a artrite nos seus utentes.

divindades arcaicas e antigas, cristianizadas ou não)

Face à especificidade da sua geomorfologia,

Poços, fontes, árvores, pedras e bétilos, colinas e montanhas

Quase sempre indiscutíveis habitáculos de um

responsável pelo carácter inconfundível de cada lugar. Podem constituir verdadeiros condensadores energéticos

de

acordo

com

as

respectivas

características físicas. Colina ou montanha em cujo topo exista ou tenha existido capela ou ermida, quase, certamente, foram outrora reconhecidas como afloramentos com

sobrecarregada de minério de ferro (excelente condensador e condutor geomagnético, como é sabido), será prova de bom senso das autoridades de Morro do Pilar o exercício de uma vigilância estrita sobre todos os projetos desta índole com vista à prevenção e sustentabilidade da saúde física e sanidade mental dos morrenses.

aptidões curativas e regenerativas. Podomorfos, i. e., pegadas humanas e de animais (também ferraduras) são a marca epifânica de uma

Genius loci (Espírito do lugar)

presença, mas ausente. É crença arcaica muito

O cristianismo transformaria o genius loci no

difundida que certas pegadas observadas em penedos

padroeiro ou orago do lugar, venerado com

acham-se relacionadas ora com hierofânias, ora

festividades anuais durante as quais se propicia a

com determinados heróis e personagens históricos:

substância vital da localidade de cuja assistência há

Hércules, Adão (Brasil), Jesus, São Gonçalo de

de depender a sobrevivência, a saúde, a fertilidade,

Amarante, São Tomé (na Índia e no Brasil), Santa

a prosperidade e a segurança física e emotiva dela

Comba, Santa Eufêmia, a Virgem Maria, o diabo, mouras

e dos respectivos habitantes. Capelas do Anjo, ou

e mouros etc.; ou com certos animais consagrados: o

dedicadas a São Gens (genius), São Miguel, entre

boi bento, a burrinha que Nossa Senhora utilizou na

inúmeras outras invocações, constituem inequívocos

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Fonte da água da Santa

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sinais da cristianização do espírito do lugar. Por vezes, o genius loci encarna em alguma figura da

se mudando, vou mudar também. Quando ele voltar, eu volto.

terra ou suposto representante da localidade. Bem

O casal sentiu naquele momento um cheiro

assim, é lícito dizer que é comum a prática da adoção

estranho e viu que aquele não era um moleque

de uma divindade tutelar no que concerne às igrejas

comum, mas, sim, o próprio capeta. Saíram

que têm seu particular Anjo destinado por Deus para

correndo em disparada e daquele dia em diante

sua proteção. Em Morro do Pilar, o Genius Loci, ou

evitaram sair sozinhos à noite. Os dois juraram

Espírito do Lugar, encarnou em Nossa Senhora do

que até chifre ele tinha.

Pilar.

Algumas

pessoas

mais

idosas,

em

seus

Aqui cabe fazer o registro de duas histórias

depoimentos, disseram-­me que já viram aquele

morrenses sobre lares e espíritos do lugar. A

padre brigar e xingar muito e até dar bengaladas,

primeira denomina-se Tentação, de Ana Soares de

mandando que parasse de atentá-lo, não somente

Mattos Martins, inserida em Pelas Trilhas do São João

ele, mas também a outras pessoas.

(2003), e a outra, da mesma autora, intitulada Mato do Açude.

2. Mato do Açude: Também esse lugar era cheio de mistérios e recebeu esse nome por ficar bem junto ao açude que fornecia água à nossa casa.

1. Tentação: Contaram-me que em certa ocasião a casa em que morava o padre Mattos estava precisando de reforma, principalmente o telhado e, como se aproximava a estação das chuvas, o pedreiro e o carpinteiro foram chamados para fazer o serviço. Aqueles profissionais disseram ao padre que era impossível que ele continuasse naquela casa enquanto estivessem trabalhando. Ele, sem outra alternativa, mudou-se para a casa da tia Nhaeta, sua irmã. Naquela noite, vinha um casal subindo a rua da praia e acharam estranho um molequinho, que também estava subindo, muito apressado com uma esteira na cabeça. O casal ficou curioso, já que nunca havia visto antes aquele moleque tão esquisito, e ambos conheciam todos na região. Apressaram o passo até alcançá-lo e perguntaramlhe:

Esse mato era mais temido que o mato grande, pois papai dizia que ali morava uma grande cobra que corria atrás das pessoas em pé e que, inclusive, chegou a correr atrás dele e dos meus outros tios. Diz a história que assim que ela ouvia o barulho do machado, saía de sua toca para procurar sua presa. Dizem também que seu veneno era fatal, era muito ágil, atacava todos sem nenhuma piedade e estava sempre atenta. Lá perto do mato, havia uma roça com nome de Derrubado onde tinha vários pés de manga espada. Eram muito saborosas e na época da fruta papai ia apanhá-las. Enquanto ele não voltava, ficávamos apreensivos com medo da cobra Tinga. Quando chegava, tinha de contar detalhadamente tudo sobre a temida cobra.

— Você mora por aqui? — Sim, senhor. Eu moro debaixo do sobrado do padrinho vigário. — Você trabalha lá? — Não, quer dizer, não deixa de ser um grande trabalho. Moro lá para atentá-lo, e como ele está-

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Galerias subterrâneas São incontáveis os casos alegados de Bocas ou Ventas do Inferno. Diz-se que foram escavadas em linha reta, pondo invariavelmente em comunicação conventos, igrejas e fortalezas por vezes muito distantes entre si. Não raro andam associadas a lendas protagonizadas

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Nosso Senhora do Pilar, segunda metade do século XVII

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por mouros encantados, serpentes, dragões e outros animais infernais, circunstância que remete para um conceito afim daquele que subjaz ao feng-shui que advoga que a Terra é percorrida por uma rede quase infinda de veias do dragão nas quais fluem energias fastas ou nefastas, consoante a forma como são

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canalizadas.

de seis horas, prejudicam ou impedem a vitalização da área circundante (o fenômeno é conhecido pelo povo que afirma dar o comissário do inferno nessas anfractuosidades as suas ordens e instruções às bruxas). Além desta, as principais fontes de íons positivos e negativos são a radiação solar, a água corrente (subterrânea ou não) e os minerais radioativos (molybdenium, cobre, urânio etc.). Um mínimo de íons na biosfera é indispensável ao harmônico desenvolvimento dos seres vivos. O ideal seria, segundo os estudos do Dr. Albert Krueger da Universidade da Califórnia (Berkeley), os íons existirem na razão de 5 neguiões para 5 posiões, uma vez que o excesso de posiões provoca uma produção excessiva de serotonina, poderosa e versátil neurohormônio que regula a transmissão dos impulsos nervosos. A sobrecarga de posiões pode ainda estar na origem de problemas respiratórios, estresses, acidentes e, até mesmo, suicídio. Inversamente, a concentração de neguiões é um fator de cura.

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Bandas (sete) de energia e telurismo - Crescem e diminuem, sinoidalmente, de acordo com o ciclo lunar. O grau zero ocorre no 6º dia após a Lua Nova e a Lua Cheia, circunstância consignada pelo calendário celta no qual os meses, principiavam no 6º dia após a Lua Nova, sendo constituídos por dois períodos de 14 dias cada. Já o ano novo começava no 6º dia depois da Lua Nova a seguir ao Equinócio da Primavera

De um modo geral, todas as comunidades tradicionais sustentam que a mineração extensiva provoca perturbações nos equilíbrios naturais do planeta. Hoje, a ciência corrobora-lhes as asserções. O estudo dos campos de força eletromagnética na atmosfera e das águas subterrâneas revelou a existência de uma configuração significativa relacionando os sítios sagrados da terra com a topografia da saúde. Mercê do alheamento humano relativamente aos ciclos vitais da natureza e, nomeadamente, à ganância que conduz à exaustão dos recursos naturais ou sua transformação indiscriminada, esse equilíbrio bioelétrico encontra-se seriamente abalado. As grutas e cavernas são fatores de ionização

Megálitos, grutas, águas subterrâneas e controle do tempo atmosférico - Certas mamoas e menires parecem funcionar como acumuladores, não de cargas eletroestáticas, mas de od, orgone (Wilhelm Reich), ou prana, de dois tipos: ch’i (radiação orgone) e sha (radiação orgone nociva), tal como propõe o feng shui

atmosférica prejudicada pela exploração desenfreada de pedreiras que, destruindo os canais de circulação

Em relação ao dito acima, as lapas, grutas e minas

subterrânea do ar que neles entra e sai em ciclos

partilham função idêntica. Nas minas do Ogó, de

consecutivos e alternados com a duração aproximada

Morro do Pilar, a sobrecarga de posiões é opressiva.

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Bilocação noturna A noite é um lapso temporal imbuído de magia, cenário privilegiado de intervenções sobrenaturais e misteriosas. Deuses, espíritos e demônios, fazendo valer o seu efetivo poder, atuam a coberto dela para chamar à razão a presunção humana, bilocando: a. caboucos, alicerces e materiais de construção b. ferramentas dos construtores c. imagens de santos Em Morro do Pilar, conta-se que a imagem de Nossa Senhora do Pilar, transferida para a nova Matriz, templo mais condigno ou sítio considerado mais Nas minas do Ogó em Morro do Pilar

Foto: Arquivo Manuel J. Gandra

apropriado para a sua edificação, voltou, teimosa e misteriosamente, consoante a narrativa popular, para a capela do Canga.

Geomância divinatória Rabdomância ou vedoria Ao rabdomante ou vedor (do latim, videre), é creditada a faculdade de ver onde corre ou se deposita a água subterrânea, mediante um sexto sentido, em alguns casos secundado pela observação de sinais exteriores de humidade, exalações húmidas, voo de insetos, ocorrência de flora e fauna características etc. Aguinha Santa do Padre Matos, na localidade de Meloso Foto: Arquivo Manuel J. Gandra

Em Morro do Pilar, ninguém mencionou a utilização do método em apreço na atualidade, mas não custa a crer na sua adoção, outrora, para detectar veios de minério ou até pelo cônego Mattos, na descoberta da Fonte do Meloso, popularmente conhecida como a Aguinha Santa do Padre Matos

Animais apontados como guias na eleição do local de ereção de templos e cidades

Anda atribuído a formigas o descobrimento do ouro na região de Morro do Pilar. Consta que os grãos de ouro, que as formigas deslocavam ao construírem os seus formigueiros, revelou a ocorrência do precioso metal aos escravos do fundador do arraial (Cf. POHL, 1976).

A nascente fica situada no topo de uma colina e acha-se associada a evidentes falhas geológicas, bem como a espécies botânicas (uma denominada Quaresminha, entre outras), cuja densidade sinaliza o local

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Revelação em sonho de relíquias de santos O arquétipo do martyrium cristão é a igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, porém, todos os locais onde consta terem sido enterrados personagens santificados ou descobertos corpos incorruptos (santinhos de carne) participam de tal aura (S. Torcato, Guimarães). Em Morro do Pilar, a lenda, ou episódio verídico, do frade missionário sepultado vivo faz dele um mártir e da capela do Canga um martyrium.

nortear indicam a posição relativamente a Leste e a Norte, as duas direções efetivamente determinantes, porquanto não existem termos correlatos para o Sul e o Oeste. (Cf. LIMA DE FREITAS, 1991, p. 249-265).

A sagração das igrejas e a tumulação Pode seguir um de dois rituais. Se a igreja restaurada ou reconstruída não possuía relíquias antes da restauração, não será necessário aspergi-la com água benta, porque o cerimonial da dedicação de uma nova igreja, onde não há deposição de uma relíquia,

Geomância propiciatória e apotropaica

é unicamente constituído pela celebração solene da

Afeiçoamento de afloramentos rochosos, penedos e colinas, conferindo-lhes aparência zoo ou antropomórfica

na igreja restaurada, então, importa conduzi-las de

Com tais simulacros, por vezes sugeridos pela própria natureza, acrescentando-se ao engenho um toque artístico, pretendia-se vincular os gênios (natura naturans), ancorando-os a uma paisagem que, dessa forma, passaria a encarnar-lhe as virtudes e propriedades. Em Morro do Pilar, dois Geomorfos cabem na tipologia em apreço: a Pedra do Cachimbo (semelhante a um pilão), situada próximo à Serra do Paiol; e a Janela de Pedra que consiste em uma pedra recortada, afim da moldura de uma janela.

Orientação ritual de templos, sepulcros e cidades

A correta orientação garante a plena integração no cosmos. Santo Antônio fará jus à simbólica das direções cardeais, dizendo: “[...] O Oriente do nascimento,/ O Ocidente da morte,/ O Sul da prosperidade,/ O Norte da adversidade [...].”. As Constituições Apostólicas de 472 estabeleceram que as igrejas seriam construídas de acordo com um plano regular e com a cabeceira orientada, circunstância relevante do ponto de vista litúrgico. Preceito constante até ao Concílio Vaticano II, a partir do qual a orientação passa a vertical, contemplando apenas o altar. Na língua portuguesa, as palavras orientar e 356

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missa. Porém, se, anterior­mente, havia relíquias novo antes da celebração da missa. Relativamente à tumulação e de acordo com a crença segundo a qual o Juízo Final ocorreria de Oriente para Ocidente, foi prática corrente, uma vez erguido do túmulo, colocar o cadáver de modo a fitar o Sol de Justiça. No Norte do Brasil, as antigas igrejas eram orientadas na direção de Lisboa, tal como as mesquitas muçulmanas o são na de Meca (OLIVEIRA, 1919). A fundação de cidades obedecia, igualmente, em regra, a um ritual minucioso que intentava atrair para elas as qualidades indispensáveis ao salutar usufruto do espaço que se ordenava.

Ritual de fundação de uma cidade O áugure calculava a meridiana, i. e., tomava as coordenadas, colocando-se no centro virtual do território eleito. Desde aí voltava-se para Leste e, com recurso a um litus (pequeno bastão ou cana), traçava no ar um arco de Levante a Poente. Traçava, depois, outro arco do Norte ao Meio-Dia (Sul). Em suma, instituía o decumanus e o cardo maximus, respectivamente. O lugar da interseção ideal onde o áugure se colocara, constituía aquilo que passava a designar-se por mundus. Neste, cavava-se uma fossa circular onde cada um dos futuros habitantes deitava as primícias das colheitas e um punhado de

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As serra do Cachimbo e do Paiol são referência e símbolo da município de Morro do Pilar

terra trazida do local de onde era oriundo. Depois de tudo misturado, um recinto circular era delimitado em redor do mundus, constituindo o espaço virtual da cidade: o fundador, vestido de branco e de cabeça coberta, atrelava um arado a uma junta constituída por um boi e uma vaca brancos e sulcava profundamente a linha assinalada, levantando o arado nos sítios destinados às portas. Seguiam-no alguns indivíduos cuja missão era lançar dentro do recinto a terra levantada pelo arado. Uma enorme pedra, a lapis manalis, era colocada para fechar a fossa do mundus, erigindo-se sobre ela uma coluna de forma cônica ou piramidal. Uma vez consagrados o mundo inferior e o mundo superior, procedia-se à constituição ritual da topografia da cidade. Tendo fixado os limites da cidade e uma vez sorteadas as primeiras propriedades entre os seus futuros habitantes, o chefe da nova comunidade, seguido de todos os seus auxiliares, voltava para junto do mundus de onde gritava em voz alta, três vezes com os assistentes, o nome divino da cidade. Por fim, imolava o boi e a vaca sobre o altar da divindade, iniciando-se nove dias de festejos enquanto os objetos utilizados no ritual eram

depositados no mundus e considerados sagrados. Além do seu nome público, a cidade ficava ainda detentora de um nome sagrado e secreto, o Nomen Sacrum, a palavra seminal, ou Logos Spermaticus, correspondente às suas propriedades originais e pessoais, as quais, mais tarde, a heráldica passou a consignar. Esse nome era inscrito em um quadrado mágico. Quanto à organização do espaço urbano, persiste, no Brasil, aparentemente suscitada por Sérgio Buarque de Holanda, a ideia de que os portugueses não tinham competência para edificar cidades, o que os casos de Tomar (séc. XII), da Baixa Pombalina de Lisboa (séc. XVIII) e de Vila Real de Santo Antônio, três exemplos entre inúmeros outros passíveis de serem evocados (incluindo muitos brasileiros), desmentem, tornando evidente que tal assunção só pode resultar ou de ignorância ou de má-fé. Com efeito, o rigor métrico subjacente aos planos dos núcleos urbanos, seja recorrendo à leitura da legislação respectiva ou à observação dos documentos desenha­dos na época de fundação, seja analisando os

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vestígios remanescentes no espaço urbano edificado, permite confirmar a constância de alguns aspectos comuns a todas as fundações, a saber: 1. Existência de uma retícula rigorosa em termos de geometria euclidiana que é, por vezes, deformada na execução em consequência de fatores externos (geomorfológicos etc.); 2. Existência de praças centrais organizadoras dos núcleos urbanos; 3. Utilização de uma modulação-base que regra sistematicamente os núcleos urbanos. É, efetivamente, possível detectar uma tipologia, tendo por base a métrica das praças centrais dos núcleos urbanos. O estabelecimento de uma tal métrica fez-se a partir da medida de 500 palmos de comprimento (107.8 metros), dimensão equivalente a múltiplos simples do palmo (0.2156 m).

Morro do Pilar Quando Gaspar Soares recebeu, em torno de 1703 ou 1704, como descobridor das lavras auríferas de Morro do Pilar, a doação de 30 braças (145,2 m²) de terra para aí minerar, procedeu como todos os exploradores portugueses de novos territórios invariavelmente procediam, conservando a designação primitiva do local descoberto e associando-a a termo ou conceito semanticamente equivalente e em vigor na língua pátria. Ao instalar-se no lugar, cujo nome nativo era Canga, Gaspar Soares logo havia de dedicá-lo a Nossa Senhora do Pilar, edificando-lhe uma capela com paredes de pau e cobertura de capim para abrigar a imagem da padroeira da lavra. Com efeito, o pospositivo de origem tupi (Canga) exprimia diferentes acepções suscetíveis de explicar a opção toponímica de Gaspar Soares, tais como espinha (de peixe), osso, suporte forte, sustentáculo etc., todos eles expressando as qualidades mineralógicas do solo, justamente as mesmas presentes nas pedras ainda hoje denominadas cangueiras (de canga) pelo

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povo e tão abundantes na região. O mesmo preceito analógico havia de ser adotado pela mão de obra escrava, afrodescendente de etnia ioruba, ao nomear de Ogó — em acepção distinta, designa o cetro ou bastão de madeira, atributo de Exu no candomblé, e figura do poder fertilizador desse orixá (Cf. LODY, 2003) — as minas que exploravam, termo sinônimo na sua língua de riqueza e dinheiro. Enfim, o complexo cosmogônico de Morro do Pilar, ou dito de outro modo, as suas “pedras angulares”, gritaram bem alto o nome do espírito do lugar, mas ninguém teve ouvidos para escutar o que diziam, nem prestou a atenção exigida pelos sinais que se perfilaram para serem captados e reconhecidos, geração após geração! O primeiro povoado erguido por Gaspar Soares na sua concessão foi efêmero em virtude do avanço da mineração. Monsenhor Mattos (1921, p. 79) descreve-lo-ia do seguinte modo: O primeiro arraial, ou arraial velho, colocado no alto, em um plano inclinado, quase planalto no alto do Morro, […], era muito pequeno. Ainda se veem os alicerces de pedra da primeira e pequena Capela, indícios de poucas e pequenas ou curtas ruas, e estas estreitas; uma principal que corria do norte a sul, passando em frente à capela; outra que era a entrada e talvez uma viela, que levava a casa de Gaspar Soares, cujo lugar houve quem me mostrasse e estava acima da povoação. Parece que não mais de algumas 40 casas e choupanas […].

Esse primitivo arraial havia de ser transferido, antes de 1715 (ano do falecimento do concessionário), para uma plataforma de cota inferior correspondente à localização atual do casco histórico da cidade. O mesmo autor o descreve: […] Gaspar Soares conseguiu mudar o lugar da povoação para o lugar que hoje ocupa todo o arraial então chamado arraial novo. Logo no começo o arraial se fixou na encosta, onde depois Sancho Bernardo de Heredia tinha seu palácio, ou dele gozou, e bem tempo depois o Câmara fundou a grande fábrica de ferro. […]. Este arraial também era pequeno; uma capela coberta de palha, e depois outra maior, que foi sendo aumentada aos poucos. Eram poucas casas

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Em Morro do Pilar, as montanhas ganham um significado mais profundo e Nosso Senhora domistérios Pilar, segunda guardam muitos metade do século XVII.

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quer estivessem perto da Fábrica, ou junto à capela. Destas casas, as mais importantes, das quais algumas eu conheci, não passavam de 20; as menores eram em maior número. Havia em baixo, na rua do Fogo, um sobrado grande, com varanda larga, fechada com venezianos, à maneira das casas antigas da cidade de Lima, no Peru. Nesta mesma rua ainda hoje existe uma grande casa, que dizem ter sido construída pelo Capitão João Francisco de Paiva, e depois pertenceu ao primeiro vigário [...]. (idem, p. 79-81)

[Norte] à subida”. 3. Os três Recintos: a mundividência suposta nesta tripartição assenta, segundo Georges Dumezil, em três energias ou ordens, a saber: a soberania, regida pelo céu e representada pelo templo (oratores ou clero = Praça ou adro da Igreja Matriz); a fecundidade que radica no mundo subterrâneo e se materializa no celeiro (laboratores ou povo = ?); a força que age no mundo terrestre e tem sede no

No mais, seguir-se-iam os enunciados cosmogônicos

paço (bellatores ou nobreza = Praça ou largo onde se

vigentes, cujo alcance, emergindo de um âmbito

situa a Prefeitura.

semântico específico, convém elucidar, aplicandoos ao objeto em análise:

Em um relatório sobre a situação dos municípios apresentado ao Governo da Província de Minas

1. Os quatro Horizontes: a sua figura canônica é a cruz.

Gerais, em 1899, constata-se que o arraial tinha 173

Esta representa, entre outras coisas, os pontos

casas, 6 ruas e 3 praças. E um derradeiro enigma

Cardeais ou quatro domicílios do Sol no decurso

subsiste, suscitado por uma fotografia aérea de

dos seus ciclos cotidiano e anual (quatro Estações

Morro do Pilar.

e, por extensão, os doze signos zodiacais). Exprime, simbolicamente, a dialética Dia-Noite ou Luz-Trevas, por intermédio da dinâmica circular que insere o fator Tempo (Cardo maximus, braço vertical ou dos Solstícios = direções Norte e Sul) no fator Espaço (Decumanus maximus, braço horizontal ou dos equinócios = direções Leste e Oeste).

O mais intrigante, nessa imagem contemporânea ao lado, é a configuração da cidade, nitidamente, evocativa da espinha de um peixe. A cabeça deste volve-se para o ribeiro Picão, fonte de onde mana a água que transporta o oxigênio que anima o peixe, que é o mesmo que dizer: a cidade que, antes de o ser, já o era (um peixe).

Os quatro bairros de Morro do Pilar (Bairro do Centro, Bairro Nossa Senhora de Lourdes, Bairro

Reutilização de locais consagrados por

Paredão e Santa Luzia e Bairro Praia) definem os

comunidades de épocas transactas

quatro quadrantes resultantes da cruz traçada na paisagem. 2. As duas Vias: conduzem às portas solsticiais, sendo representadas por Janus, porteiro celeste, o deus bifronte ou Senhor das duas Vias (Y pitagórico), detentor (como S. Pedro) das chaves dourada e prateada dos Grandes e Pequenos Mistérios, da Porta dos Deuses (Janua Coeli = Capricórnio = Saturno) e da Porta dos Homens (Janua Inferni = Caranguejo = Lua).

Tudo leva a crer que quando o bandeirante Gaspar Soares instalou-se em Morro do Pilar, o sítio, se não havia sido habitado antes, fora detalhadamente reconhecido (como testemunha o impressionante santuário rupestre denominado Estação Fênix) e tendo a sua geomorfologia característica sido batizada pelos nativos, como se comprova pela adoção para a designação da capela do arraial, sua edificação primeva e central, do pospositivo tupi — Canga (espinha, suporte forte, sustentáculo)

O Cardo maximus (Rua Direita de Morro do

—, determinante da escolha do orago do pequeno

Pilar) resume-as: segundo Porfírio “O Câncer

templo: Nossa Senhora do Pilar (i. e., pilar equivale

[Sul] é favorável à descida e o Capricórnio

a sustentáculo).

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A cidade de Morro do Pilar com seu curioso perfil de espinha de peixe.

Alinhamento intencional de edifícios e estruturas artificiais

Não repugna considerar que o arraial de Gaspar Soares foi cartografado e inserido na rede de arraiais da região, estabelecendo-se entre eles conexões baseadas em alinhamentos (por vezes estradas ou caminhos), como os portugueses tinham o hábito de fazer e pode-se constatar em outras partes do Império.

Peregrinações e procissões pelas extremas de um território

A tais deambulações em torno de uma localidade (procissão da Cera, em Alenquer), freguesia (Santo Isidoro, Mafra) ou templo (S. Mamede de Janas, Sintra) dá-se popularmente o nome de cerco. Com elas intenta-se proteger magicamente os locais abrangidos mediante a demarcação de um território sagrado. Em um registo concorrente, os clunicenses e cartuxos designaram por galilé, o nartex, na parte ocidental das igrejas, já que o percurso desde aí até

o interior do santuário, rodeando-o no sentido dos ponteiros do relógio, equivalia simbolicamente à peregrinação desde a Galileia à Terra Santa. Em Morro do Pilar, as procissões percorrem a rua principal (direita) da localidade. Por fim, nessa trajetória em torno do imaginário e da natureza animada que não se finda aqui, deixamos a sugestão de leitura de lendas e contos fantáticos de Morro do Pilar, coletadas por Ana Soares de Mattos Martins, nas quais se incluem demônios e abentesmas, visões, assombrações e aparições, pragas e maldições, milagres e eventos insólitos. Ei-las: O capetinha, Missa antecipada, Mato grande, Chico Rocha, O cargueiro de taquara, Outra visão, O piteiro, A visão, A praga das roças, O raio de sol, O moinho e a casa paroquial, Unha de gato, Tio Titino, Fenômenos estranhos. Quiçá, pela leitura da tradição possa ser possível preservar, divulgando, as raízes identitárias das gentes de Morro do Pilar. Urge, contudo, registrar as notíciais orindas da linguagem oral daqueles que ainda permanecem resguardando, vivas, suas origens.

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capítulo 13

A hora dos quintais ♦ Eduardo Avelar 1 ♦

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ma vez li um livrinho muito fino que deixou marcas eternas em minha caminhada e se transformou em uma arma para combater os meus moinhos, como os de Don Quixote e seu fiel Sancho Pança. Esse livrinho, escrito em uma linguagem metafórica, despertou-me para a realidade de nossas centenas de “Manarairemas” existentes entre os vales e montanhas de Minas Gerais. A cidade e seus dramas descritos por José J. Veiga, em obra intitulada A Hora dos Ruminantes, tornam-se, em minha interpretação, uma bucólica Morro do Pilar, com sua vida caminhando em ritmo lento, onde os relógios não demonstram pressa alguma até que uma novidade muda a rotina das pessoas. Lá em Manarairema, como em Morro, o que está acontecendo é a chegada de um tanto de gente estranha. Talvez, seja o progresso que, ao mesmo tempo em que atrai a curiosidade, traz enorme angústia e, aí, entre metáforas, a história se desenvolve. Para não me esquivar das viagens bélicas e heroicas das personagens de Cervantes e nem da fábula moderna como eu li em uma crítica ao livro de Jose J. Veiga, descreverei outro enredo desse roteiro que se inicia, preparando uma deliciosa receita baseada na relação entre o povo pacato de Morro do Pilar, seus sabores maravilhosos e os “novos moradores” de uma de nossas mais belas e acolhedoras “Manarairemas” de Minas Gerais. Morro do Pilar tem uma excelente gastronomia que faz uso dos melhores temperos. A boa culinária morrense é a marca natural de uma região que abriga memórias dos saberes do sabor. Nisto somos originais e em nossa tradição culinária está a nossa modernidade.

1 Graduado em Arquitetura pela UFMG, foi membro do Clube Gourmet de Minas Gerias, graduou-se em Cuisine et Pâtisserie no Curso Escoffier, do Hotel Ritz, em Paris. É uma das principais referências da culinária mineira contemporânea. Fundador da OSCIP “Conspiração Gastronômica” que tem por objetivos valorizar as raízes da cultura gastronômica mineira.

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A boa culinária morrense é a marca natural de uma região que abriga memórias dos saberes do sabor

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Todo alimento é sagrado e se torna ainda mais divino quando a alquimia do fogo e dos fogões morrenses prepara delícias inigualáveis.

Todo alimento é sagrado e se torna ainda mais divino quando a alquimia do fogo e dos fogões morrenses prepara delícias inigualáveis. São majestosas as cozinheiras de Morro do Pilar que do pilão à mesa reinventam saborosamente o que a natureza nos dá para alimentar nosso espírito que não precisa conviver (e comer) o que a mídia massificada, impessoal e insensível propaga. A cidade de Morro não precisa de novos restaurantes, com estilos modernos, pois a comida é mais rápida do que o prazer em degustá-la. Precisa apenas dar a ver e a degustar ao povo (os que aqui vivem e os turistas) os temperos da terra. Nisto se configura a melhor das apreciações da história de Morro. A culinária é uma das vias de se manter o olhar para o passado, revigorando as tradições da cozinha dos nossos antepassados em uma contemporaneidade envolta pelo apelo imediato de Mac Dolnalds e similares, de refeições e café da manhã pasteurizados. Morro precisa, sim, de um conforto aconchegante e um atendimento pessoal e afetuoso que, para nós mineiros, não carece de estudo especial algum. Enfim, Morro também não precisa de muitas modernices, muito menos de novos costumes ou se render como ocorreu em Manarairema. A Hora dos Quintais! Assim é o tempo de Morro do Pilar que tem, agora, a precisão de se adaptar às expectativas de seus visitantes. Gentileza não falta às cozinheiras que não apenas tratam de bem receber as pessoas, mas também, cultuam o hábito da gentileza

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com os alimentos, tratando-os de forma adequada com o ambiente em que são cultivos. Uma das primeiras formas de amor é saber bem amar o ofício. Ora, a boa comida é resultado do cozinhar com amor o que as montanhas preservaram: raízes, frutas, hortaliças, aromáticas das calendas da história que muita gente, às vezes, insiste em esquecer (do sabor). Antes mesmo dos altos-fornos aqui construídos, eram mesmo os fogões à lenha a maior riqueza, pois deles fluíam sabores em cores mágicas que atraíam a imaginação do homem. Não obstante todas as formosuras de Morro do Pilar, são os quintais as graças benditas que se transformam em outras tantas belezas, delícias de guloseimas, que prendem olhares e abrem bocas. Tesouros cuidadosamente zelados pelas mãos de mestras de nossa cozinha mineira, a propósito, morrense. É uma festa dos deuses experimentar os sabores das quitandas, do biscoito de polvilho frito no óleo de indaiá, da broinha de fubá com queijo, dos doces em compota (figo, mamão, laranja e limão), do franguinho com ora pro nobis ou com quiabo ou taioba, todos colhidos na hora nos quintais e aromatizados nas cozinhas. Enquanto esperamos as iguarias, compartilhamos de uma prosa boa em ambientes que cuidam em preservar a história de Minas Gerais e de sua gente que já não usa gavetas sob as mesas. Temos de nos orgulhar da imensa e variada culinária

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A culinária de Morro do Pilar é uma das vias de se manter o olhar para o passado, revigorando as tradições da cozinha mineira. Na foto, o coco e o óleo de indaiá

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Todos estes sabores são percebidos pelo olhar das panelas fumegantes, pelos aromas dos fogões, pelas invenções dos quintais de todas as famílias.

que bem serve uma boa mesa, construindo o pilar do que é mesmo a Marca do Sagrado de Morro do Pilar, mais especificamente, dos quintais. Melhor dizer isto com uma frase simples, mas que diz tudo, recitada por Edgard Melo, um dos maiores mestres das mineirices culinárias: “A cozinha mineira é aquela que você encontra ao abrir a porta da cozinha para o quintal.” Ora, demos vivas aos quintais! Prestemos culto às cozinheiras e cultuemos cores, aromas, sabores da terra de Morro do Pilar. Região que é o pilar da simplicidade do turismo gastronômico no planeta, além, evidentemente, de ser uma obra-prima da divindade manifestada na natureza e na cultura da serra do Espinhaço: presépio vivo onde a gentileza e a hospitalidade se vestem de pessoas. Há muitos sabores que nos matam a fome, porém, nada melhor do que experimentar o melhor feijão tropeiro do mundo, feito com tempero especialíssimo. Será Morro do Pilar a capital mundial do feijão tropeiro? Não há dúvidas que é. E, também, não há dúvidas de que até mesmo a “boia” feita com feijão, ovo, banha e farinha é a melhor da redondeza. E por falar em feijão, eis o tutu de feijão com linguiça: um prato cheio de temperos e sabores dos séculos dezessete e dezoito que bem acompanhado de folhas refogadas, ou simplesmente regado pela gentileza das artistas dos fogões, continua sendo uma referência nessas montanhas de Morro. Toda gente que aqui passa é pega pela boca. Todos

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passamos a glutões, pois a comida de Morro do Pilar possui sabores históricos e revigorantes. Em cada tacho que esteve ao calor do fogão à lenha, em cada prato enfeitado de coisas da terra, em cada xícara de café com pão de queijo ou broa de fubá, em cada cachacinha com torresmo, em cada queijo com goiabada, doce de figo verde ou mamão com doce de leite, em cada licorzinho, em cada galinha caipira com quiabo, em cada costelinha com broto de samambaia as lembranças de nossa gastronomia são reforçadas. Haja paladar para a Marca do Sagrado! Todos estes sabores são percebidos pelo olhar das panelas fumegantes, pelos aromas dos fogões, pelas invenções dos quintais de todas as famílias. Em um emaranhado de sensações, vai sendo temperada a cultura gastronômica de Morro do Pilar pelo esmero de mãos alquímicas das cozinheiras-mestras Dona Loca, Dona Ângela Aparecida e Dona Izaltina. Seus quintais são acervos dos maiores tesouros culinários. O ora pro nobis, uma das marcas registradas das cozinhas de Minas, apresenta-se sempre em refogadinhos acompanhando costelinha, carne moída ou frango ensopado ou compondo receitas inebriantes, cada uma como uma interpretação especial de suas mestras. O milho não falta às mesas que sempre têm um fubá suado ora servido com queijo, quando se podia, ora com rapadura que a criançada levava enrolado nos paninhos para os campos em plantio a fim de alimentar e dar energia aos trabalhadores da enxada e do arado. O angu

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Os quintais de Morro do Pilar guardam acervos dos maiores tesouros culinários de Minas Gerais A hora dos quintais | CAPÍTULO 13

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Mas uma versão diferente marcou a criatividade na necessidade das cozinheiras da cidade. O cuscuz de mandioca, perpetuado pela família de Dona Maria de Jesus, segundo nos conta a cozinheira, foi criado nas comunidades quilombolas onde não havia o milho, sendo substituído pela mandioca ralada com rapadura, dando um resultado indescritivelmente saboroso.

dispensa maiores comentários na culinária do Morro. Ocupava o lugar do arroz, haja vista que em tempos antigos de nossa história não era utilizado pelas bandas do interior em Minas. Um sabor marcante das mesas locais, além da tradicional galinha ensopada, é o famoso mamão verde refogadinho com pele de porco, iguaria preparada nos melhores quintais. O fubá continua a contar a história da cidade com os saborosos e revigorantes engrossados, como o de costelinha com a gondó, hortaliça não convencional que carrega vários outros nomes pelo interior do Estado, como maria nica, maria arnica, capiçoba. Tem ainda o cuscuz e a canjiquinha preparados com o milho quebrado. Mas uma versão diferente marcou a criatividade na necessidade das cozinheiras da cidade. O cuscuz de mandioca, perpetuado pela família de Dona Maria de Jesus, segundo nos conta a cozinheira, foi criado nas comunidades quilombolas onde não havia o milho, sendo substituído pela mandioca ralada com rapadura, dando um resultado indescritivelmente saboroso. O óleo extraído do coquinho indaiá é produto endêmico, exclusivo, e que conta a história do manejo sustentável e do respeito à natureza ainda cultuados por Dona Helena em sua casa de sonhos. Ela colhe e produz a iguaria em extinção, utilizando equipamentos e engenhocas extremamente rudi­ mentares em um verdadeiro museu a céu aberto, 370

escondido entre as montanhas, na zona rural da cidade. Uma viagem insólita pelo tempo e espaço. Além do óleo de coco indaiá que é usado para fritar biscoitos de polvilho, os brotos de samambaia e as bananas-verdes são preparados para serem misturados em guisadinhos ou bolinhos, com carnes ou não, banha, sal e alho, se transformando nas obras impressionistas criadas também pelas mesmas artistas dos quintais de Morro do Pilar. Receitas como o refogado de casca de banana e os bolinhos fritos de banana-verde, produzida no quintal da Tida, são exemplos saborosos e criativos de sustentabilidade, pois a região é, hoje, uma das maiores produtoras de banana do Estado. As sobremesas realmente pedem passagem no rol dos sabores inusitados da culinária de Morro do Pilar que até se torna lugar específico dos manjares dos deuses. Entretanto, é bom que sejamos meninos maluquinhos por doce de abóbora e de batata doce, rosquinhas de todo tipo lambuzadas de requeijão, doces caramelados e arroz doce. Há muito mais delícias cujos sabores vão além dessas linhas de nosso imaginário aguçado pelas sensações e lembranças de cheiros e cores da culinária morrense. E falando em imaginário, façamos dos quintais o símbolo maior de nossas referências culturais de modo que os quitutes de nossas mestras-cozinheiras sejam a porta de entrada do turismo gastronômico de Morro do Pilar, quiçá, da mineiridade brasileira.

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O fubá suado, a banana-verde frita e o broto de samambaia são algumas das iguarias que povoam o rico imaginário gastronômico de Morro do Pilar A hora dos quintais | CAPÍTULO 13

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capítulo 14

Morro do Pilar: novas subjetividades para uma vida sustentável

♦ Loryel Rocha1 ♦

O desafio de construir novas subjetividades para criar uma vida sustentável em Morro do Pilar Em janeiro de 2013, a Prefeitura de Morro do Pilar, sob a administração de Vilma Diniz, assinou, na cidade de Curitiba, a Carta Compromisso da Rede Cidades Sustentáveis, alçando, deste modo, Morro do Pilar à categoria das cidades que buscam implantar novas e melhores políticas públicas. Assim, esta cidade passa a comprometer-se com o desenvolvimento sustentável que, de imediato, deve dialogar com a ecologia profunda e a sustentabilidade. Morro do Pilar, que agora tem a insígnia de cidade sustentável, impõe vários desafios à comunidade, bem como à administração pública e privada, mormente, pelo fato de a cidade ter seu eixo de desenvolvimento ligado à mineração e à pecuária extensiva desde o período colonial. Por conseguinte, tal filiação implica, sobretudo, uma nova visão de mundo e de si mesma, porque é a partir desta visão e desta relação que a proposta poderá firmar-se e autoconstruir-se. Um desafio titânico, tendo em vista que nos últimos duzentos anos, aprofundou-se a ruptura entre natureza e cultura. O lema de que o homem é o senhor do mundo foi fixado e, ao mesmo tempo, desconstruiu-se a ideia de ser humano, estabelecendo, por meio da tecnociência, o conceito genérico de “corpo humano e de subjetividade”. Ora, isto resultou em uma identificação e redução do ser-do-homem com seu corpo e somente ao seu corpo. Articulada desde a Renascença, a trajetória da relação ciência-corpo põe em cheque, também, o conceito de “corpo humano”, visto que, hoje, como afirma Adauto Novaes (2003, p. 14), “[...] não se pode mais afirmar: “Eu sou meu corpo”. Lembramos do que escreve o filósofo Jean-Marie Brohm, no ensaio Filosofias do corpo: qual corpo?, “[...] se meu corpo é inteiramente outro, a partir das intervenções da ciência e dos implantes e transplantes, a relação de ser no corpo é transformada em relação de propriedade: tenho um corpo, não sou mais um corpo.” (idem,ibid).

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Filósofo, professor do Programa PACEM da UFRJ, Presidente do Instituto Mukharajj Brasilan .

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Ser uma cidade sustentável implica construir um diálogo entre Ciência e Tradição

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Desde a Grécia Antiga, o pensamento filosófico — desvencilhado dos mitos arcaicos — fundou uma razão utilitarista que coloca o ser humano em relação de superioridade aos demais animais e ao mundo e deslocado da própria Natureza, mas em franco domínio sobre ela.

Diante do que se apresenta, o que é o ser humano e como pensá-lo ou experimentá-lo? As cidades não são entes abstratos em si mesmos, são construídas e mantidas vivas por seres humanos. E já que, na atualidade, inexiste conceito acadêmico de ser humano de que modo pensar o Humano e as cidades? O conceito subjacente à proposta de desenvolvimento sustentável que dialogue com a ecologia e a ética opõe-se ao mito do homem artificial valorizado e estimulado pelo biopoder, a biotecnologia e a biopolítica. Ele necessita de ser embasado pela antropologia não dualista, pela ética e pela tradição oral, as únicas vias possíveis que percorrem o universo do ser humano, lendo-o por meio de uma ótica trinitária: a somática, a psíquica e a espiritual, desvelando o horizonte multicolorido da inteireza humana. Demonstra a natureza constitutiva da matéria que somos, mergulha na estrutura tríplice da alma e devolve-nos a essência íntima e exclusiva que cada ser humano possui. Ser uma cidade sustentável implica convite à

sagrado há muito perdido da sociedade Ocidental. Destarte, a leitura subliminar (quiçá, para alguns, herética) da Carta Compromisso Cidades Sustentáveis, assinada pela prefeitura de Morro do Pilar, visa, conclamando, à necessidade de revisitar a tradição da natureza animada, verdadeiro pano de fundo da ecologia profunda, base concreta sem a qual o ser humano permanecerá esvaziado de sua humanidade e valores. Com este horizonte em vista, e longe de qualquer ensaio nostálgico, o presente ensaio teórico propende fazer uma revisitação sobre algumas concepções inerentes à tradição da natureza animada que constitui um patrimônio universal entre diversas culturas desde o paleolítico, enfatizando algumas linhas de pensamento moderno que criticam a visão mecanicista, que está presente na ciência de dominação da natureza pelo homem, e, a um só tempo, propõe novas atitudes e caminhos a serem construídos.

desafio que, para além de conceitual, é uma promessa

Desde a Grécia Antiga, o pensamento filosófico — desvencilhado dos mitos arcaicos — fundou uma razão utilitarista que coloca o ser humano em relação de superioridade aos demais animais e ao mundo e deslocado da própria Natureza, mas em franco domínio sobre ela. Como consequência, constatase que a racionalidade moderna, ao privilegiar a matemática, a técnica e a ciência, coloca o homem e os animais como o centro supremo para o existir

de rememoração (RYKWET, 2002) de um espaço

humano e natural, aprofundando cada vez mais a

construção de um diálogo entre Ciência e Tradição que indique atitudes éticas concretas e cuidados que todo homem deve ter em relação ao seu Ser em todas as suas dimensões essencial, cósmica, sociocultural, psíquica e inconsciente. Diz-se, então, que o conceito, sutilmente, relembra que o ser humano é um enigma que a tecnociência procura negar. Um

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É preciso haver diálogo entre as ciências da natureza e a filosofia da natureza que, dentro de suas áreas, procuram compreender o mundo em sua especificidade ontológica

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ruptura histórica. Neste sentido, os estudos sobre a

visível e palpável, domínio da filosofia da natureza e,

natureza animada constituem-se em caminho para

modernamente, da ecologia (ROCHA, 2010). A perda

não só repensar esta racionalidade e transcendê-

da interdependência simbólica do aspecto orgânico

la, mas também, propiciar uma abertura ao diálogo

e vivo da natureza — marcada pela matematização do

entre as diferenças, auxiliando a construir uma nova

mundo e equipada pela mente racional — cria uma

relação ética de caráter universalista entre Natureza,

ideia de futuro sufocante na qual o progresso infinito

Ser Humano e o Mundo.

está demarcado pela subjetividade e tecnologia e põe, em segundo plano, a espiritualidade, a ética e a sabedoria das comunidades locais.

A amplitude do diálogo O pequeno município de Morro do Pilar transformouse em um dos maiores empreendimentos de mineração do Brasil como está já informado e tornado público em: http://noticiasmineracao. mining.com/2014/06/17/minerio-de-morro-dopilar-sera-um-dos-mais-ricos-do-mundo/. Manabi vai transformar o itabirito com 33% de ferro em um produto premium com 68,5% de teor. Investimento total no projeto será de R$ 10,5 bilhões. O minério encontrado nas reservas de Morro do Pilar, município do Médio Espinhaço que se transformou no centro das atenções de 2012, tem apenas 33% de teor de ferro. Mesmo assim, após um avançado processo de beneficiamento, o material será transformado em uma das melhores matérias-primas do mundo para as siderúrgicas, com teor de 68,5%.

O contraste entre “quantidades” (município pouco populoso e grande empreendimento minerador) e o impacto disto na vida da comunidade são evidentes e desafiadores. As formas de lidar com a questão — dentro dos critérios de sustentabilidade, ecologia profunda e ética — são múltiplas. Esta é a razão pela qual este momento pode constituir uma inspiração para o futuro no qual se busque resgatar a perda do sentido de ser um ser humano, aqui, entendido como um reencontro. A evocação da memória atávica contida na tradição da natureza animada pode constituir uma frente que auxilie a comunidade a ancorar suas raízes ancestrais dentro de um cenário moderno e ágil. Para tanto, urge ultrapassar a dicotomia entre o rural e o urbano cujas raízes surgem articuladas desde que a natureza animada foi reduzida à natureza 378

A sociedade Ocidental ainda se caracteriza pela polarização entre o rural e o urbano, porém, os cenários de futuro parecem acenar para rumos diferentes, buscando a saída a este polemus secular. Um gesto claro deste aceno encontra-se nas significativas teorias científicas modernas que retomam a antiga ideia grega e dos nativos do Brasil de circularidade da natureza que, embora eclipsada pelo paradigma cartesiano-newtoniano, tem uma articulação mundial que está trazendo mudança sem precedentes nas áreas social, política, tecnológica e administrativa. Além de apontar a necessidade de defendermos um diálogo entre as ciências da natureza e a filosofia da natureza que, dentro de suas áreas, procuram compreender o mundo em sua especificidade ontológica, o físico Brian Swimme, de modo pertinente, indica algumas preocupações e rumos possíveis da ciência contemporânea: Nossa civilização ocidental moderna começou com uma espécie de esquizofrenia cultural. Nossa pesquisa científica efetivamente desvinculou-se, no início do período moderno, de nossas tradições humanistas-espirituais. Por boas razões, sem dúvida, mas hoje a neurose se espalhou por diversos continentes. Emaranhados na mais terrificante patologia da história da humanidade, talvez, possamos nos atrever a perguntar se foi realmente boa essa idéia, essa fragmentação do universo [...]. No entanto, algo extraordinário está ocorrendo na nossa época; algo que tem o poder de por fim a esse impasse. Refiro-me à transformação radical da nossa visão básica do mundo. [...] O universo, considerado como um todo, assemelha-se muito mais a um ser em desenvolvimento. O universo tem um princípio e encontra-se no meio do

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seu desenvolvimento: uma imensa epigênese cósmica. [...]. De que modo a compreensão mais profunda nos dá poderes? Possibilitandonos a reinventar o homem no contexto da nova história cósmica. Não será preciso mais nada. Um novo ponto de vista sociológico, uma nova teoria psicológica é insuficiente para lidar com a magnitude de nossas preocupações. Temos de compreender o que existe de humano no interior das dinâmicas intrínsecas da Terra. Alienados do cosmos, encarcerados dentro de nossas estreitas estruturas de referência, não sabemos, enquanto espécie, o que precisamos fazer. Somente descobriremos nosso papel mais amplo reinventando o homem como uma dimensão do universo emergente. (SWIMME, 1991, p. 9-12)

Na mesma linha e, ampliando o diálogo, está o pensamento do eminente Felippo Selvaggi que defende a necessidade de uma filosofia da natureza que dialogue com os dados das ciências da natureza e da metafísica: [...] quem admite a existência e a necessidade de uma filosofia do ser em geral (e todos devem admiti-la, porque a sua negação implica já uma filosofia do ser em geral, como sucede no positivismo e no materialismo, que reduzem o ser em geral ao ser material experimentalmente cognoscível) deve admitir também a sua legitimidade e a necessidade de uma análise e reflexão filosófica sobre o ser do mundo na sua especificidade, sobre o seu valor em si e em relação ao homem, para inserir a realidade mundana na totalidade sistemática e hierárquica do ser em geral. Portanto, toda filosofia deve incluir também uma filosofia do mundo, e não só da sua cognoscibilidade, mas também da sua natureza. Neste sentido [...] todos os grandes sistemas filosóficos sempre incluíram também uma filosofia da natureza. (SELVAGGI, 1988, p. 152)

Apoiando a mesma direção, defende semelhante diálogo Jacques Maritain quando afirma que: “As ciências experimentais precisam se completar pela filosofia da natureza; por outro lado, o inverso é igualmente verdadeiro: a filosofia da natureza precisa se completar pelas ciências experimentais.” (s/d, p. 90) Citamos, também, Gonçalves que admite que “Alguns dos principais conceitos pensados pela filosofia da natureza encontram-se também nas

teorias científicas, como “matéria”, “força”, “movimento”, “vida” e “organismo.” (2006, p. 8). Sendo assim, concorda com Maritain no que diz respeito à necessidade do diálogo devido à semelhança conceitual utilizada pelas esferas de saber, e pondera que um saber não se reduz ao outro, ao contrário, tal independência amplia a necessidade de um amplo debate para auxiliar a construir um mundo melhor para tudo e para todos.

De igual modo, muitos outros pensadores, políticos, religiosos e leigos estão empenhados em encontrar novos meios de obter cooperação intercomunitária na qual a diversidade humana e natural seja reconhecida e o direito de todos seja respeitado. Um dos aspectos mais promissores da era moderna é o surgimento de um movimento internacional pela paz e pelo diálogo. Isto posto, sabemos que tanto as ciências quanto a filosofia podem e devem dar seu contributo. Se o século XX foi palco de tragédias mundiais (as duas grandes guerras), foi, também, origem da busca de diálogo e de cooperação internacional e o berço de organizações transnacionais que realizam grande trabalho como os desenvolvidos pela Organização das Nações Unidas, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, pela Organização Mundial de Saúde, pela Corte Internacional de Haia, pelo Banco Mundial; as ações surgidas em decorrência do Tratado de Bruntland, da Declaração dos Direitos Humanos, da Carta da Terra; o conforto levado pelos Médicos Sem Fronteiras, pelos Doutores de Alegria. Logo, cabe ao século XXI aprofundar o rumo já iniciado cujo principal esforço recai sobre cada ser humano verdadeiramente ocupado com uma maior humanização da humanidade, pois, “[...] o espírito fica muito mais aberto e assume dimensões verdadeiramente internacionais [...].” (DALAILAMA, 2006, p. 161) quando se pensa globalmente e se age localmente. Pensar e agir são dísticos essenciais ao pensamento ecológico e sustentável. O diálogo e o ato de compartilhar emergem como tronco único, convidando à construção de uma nova práxis mundial. Isto porque, família, pátria, humanidade representam seres espirituais. Assim

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isto é dito por Teixeira de Pascoaes: Se contemplarmos a Vida ou a Natureza, em todas as suas manifestações, observamos que ela se corporiza ou exterioriza sob formas diferentes, em graus de diferente qualidade, distanciados talvez pela acção do Tempo sobre o Acaso, talvez sobre uma força vagamente dirigida para um vago Fim inatingível... A verdade é que nós vemos uma pedra, mais adiante, uma árvore e depois um homem... Percebe-se, em todas estas formas da Natureza, uma ordem ascendente (querida ou casual) que vai da pedra ao homem. A pedra parece tender para a árvore, e a árvore para o homem./ O mineral preparou o advento do vegetal e o vegetal preparou o do homem, por um processo indirecto, isto é, por meio de seres animais inferiores./ A pedra, a árvore, o homem, são três modos de ser da Natureza (reino mineral, vegetal, animal) “anunciando um esforço”, obedecendo a circunstâncias casuais ou subordinando-as à sua vontade, do simples e imperfeito para o mais complexo e perfeito./ Mas esse “esforço” findará no homem? Não. Para além dele, a Natureza já adquiriu uma forma de ser superior a ele — “a forma espiritual”. (PASCOAIS, 1991, p. 23)

Os seres espirituais, cada vez mais complexos, estão indissoluvelmente ligados ao planeta. Deste modo, é incontesti, de acordo com a Carta da Terra, que [...] devemos decidir viver com um sentido de responsabilidade universal, identificando-nos com a comunidade terrestre como um todo, bem como com nossas comunidades locais. Somos, ao mesmo tempo, cidadãos de nações diferentes e de um mundo no qual as dimensões local e global estão ligadas. Cada um compartilha responsabilidade pelo presente e pelo futuro bem-estar da família humana e de todo o mundo dos seres vivos. O espírito de solidariedade humana e de parentesco com toda a vida é fortalecido quando vivemos com reverência o mistério da existência, com gratidão pelo dom da vida e com humildade em relação ao lugar que o ser humano ocupa na natureza. Necessitamos com urgência de uma visão compartilhada de valores básicos para proporcionar um fundamento ético à comunidade mundial emergente. [...]

E, dentro da imediata urgência, legitima-se a busca pela supressão ao máximo do estranhamento dos

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saberes que norteiam os conceitos de rural contra o urbano, trilhando a convicção de que, para querermos a nós mesmos como atenienses, desnecessitamos de nos movimentar como espartanos. Nunca é demais relembrar as prudentes palavras de F. Scott Fitzgerald, em O Grande Gatsby, “O teste de uma inteligência de primeira linha é a habilidade de ter duas idéias opostas em mente ao mesmo tempo”. E a espécie de inteligência que os morrenses tem de cultivar, no século XXI, certamente, será aquela apontada pelo sábio provérbio chinês: “O dedo aponta para a Lua; o tolo olha para o dedo; o sábio, para a Lua”.

Amplitude da Herança Os registros paleolíticos gravados nas cavernas de Lascoux, Altamira e na Serra da Capivara atestam que, além da presença humana inteligente, a preocupação da relação do homem com a natureza sempre foi objeto de reflexões ao longo da história da humanidade. O célebre axioma teleológico Universo/ Macrocosmo e Homem/Microcosmo foi objeto de pensamento de muitos pensadores e sábios. Os homens especulam há muito sobre a vida em outros mundos. Anaxágoras, Demócrito, Aristóteles, Epicuro, Filolaus e Plutarco, acalentaram a idéia de que a Lua e os planetas eram habitados, e o mesmo fizeram Lucrécio, Lambert, Locke e Kant. Um discípulo de Demétrio, Metrodoro de Quios refletiu que “seria muito estranho se uma única espiga de milho crescesse numa grande planície ou se houvesse apenas um mundo infinito”. Idéias semelhantes foram expressas pelo filósofo chinês do século XIII, Teng Um, que escreveu que “numa árvore há muitos frutos, e num reino, muitas pessoas. Seria ilógico supor que além do céu e da terra que podemos ver não existam outros céus e outras terras. (FERRYS, 1993, p. 14)

A resposta ao enigma proposto pela Esfinge a Édipo carrega consigo também as questões atinentes ao ser humano em sua relação consigo próprio, com os outros e com o mundo. Ora, destas reflexões, surgiram inúmeras culturas e correntes de pensamento

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Em Morro do Pilar, devemos viver com um sentido de responsabilidade universal, identificando-nos com a comunidade terrestre como um todo

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que resultaram em aportes teórico-filosóficos basilares e alguns deles com efetiva influência no pensamento ocidental. Vale destacar, neste sentido, pensadores fundamentais na configuração das concepções modernas sobre a natureza: a criação por Platão da Teoria das Idéias, doutrina que concebe um mundo dividido em claro/escuro, Perfeito, onde a positividade tem lugar de destaque; o pensamento de Aristóteles que justifica a escravidão “por natureza”; ou as idéias defendidas por René Descartes que soube bem distinguir os homens dos animais, considerando estes últimos como simples máquinas. Acerca desta herança, Luc Ferry (2009) argumenta que as três posições filosóficas opostas invocadas, normalmente, para valorizar o humano em detrimento do animal não são mais pertinentes dentro de um contexto moderno. Então, vale ressaltar a urgente necessidade de um amplo debate em torno das questões relativas a esta temática, focalizando, como defendem muitos autores, ao máximo, a historicidade nela envolvida a partir de um amplo referencial. A discussão sobre a questão ambiental deve considerar os seus fundamentos ideológicos e os argumentos desenvolvidos a partir deles bem como as relações e interpretações que se estabeleceram, historicamente, entre o ser humano e a natureza. Contudo, apesar de ser um tema há muito refletido, parece que a discussão tem merecido um destaque especial na atualidade, tendo em vista, entre outros fatores, o contexto de degradação ambiental que vivenciamos e a crise de valores. O que está em jogo, já há algum tempo, não é o destino de uma parte do mundo, mas da espécie humana e do mundo vivo como um todo. Do ponto de vista da filosofia, não se trata apenas da produção de conhecimento informativo sobre o mundo, mas de compreensão do mundo e da decisão sobre a ação; a questão do conhecimento não é hoje somente um problema teórico, mas é problema prático e isso demanda reflexão filosófica. (CHEDIAK, 2004, p. 79-82)

Abordando o sentido das relações humanas com o mundo e com o outro, Leff (apud FLORIANI; PELIZZOLI, 2004, p. 89) evidencia que a crise que

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abre o novo milênio é um convite à reflexão filosófica, à produção teórica e ao julgamento crítico, sobretudo, no tocante aos fundamentos da modernidade. A crise, por extensão, implica a mudança do paradigma cultural vigente, assentado no poder de dominação, bem como a introdução da convivência cooperativa, da concidadania, da sinergia, da compaixão, da inclusão de tudo, orientando um processo de reconstrução social. A concepção de novas estratégias conceituais e praxeológicas acentua a pertinência de uma atitude reflexiva que não se restrinja a questões genéricas sobre a natureza em si, mas que remeta a uma nova cosmologia que pode ser conceituada sob a visão de Leonardo Boff: “Por cosmologia entendemos a imagem do mundo que uma sociedade faz para si, fruto da ars combinatória dos mais variados saberes, tradições e intuições. Essa imagem serve de orientação geral e confere a harmonia necessária à sociedade, sem a qual as ações se atomizam e perdem o seu sentido dentro de um sentido maior.” (2009, p. 81) Por meio da cosmologia, as relações e os saberes se estabelecem e com eles se institui sociedade.

A fundação de uma nova centralidade nas práticas e no pensamento dos homens propicia a ressignificação dos seres viventes e da natureza, transformando, até mesmo, o conceito de sustentabilidade para o planeta que deve partir, desde já, do questionamento do nosso ser no mundo, revisitando as concepções e as ações que norteiam o nosso viver como seres historicamente situados que carregam em si mesmos influências do pensamento filosófico da Antiga Grécia até os dias atuais. Para a nossa análise, temos de entender que a filosofia natural é A filosofia da natureza [que] abarca uma temática muito ampla, já que se estende desde o átomo até o universo, incluindo os viventes e o homem, enquanto ser natural. Pergunta-se, aliás, pelo significado da natureza e pelo seu fundamento radical. Dessa forma, constitui a ponte lógica entre o conhecimento ordinário, as ciências e a metafísica. (ARTIGAS, 2005, p. 27)

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Morro do Pilar resguarda uma infinidade de cenários e mistérios, prontos para serem descobertos e vivenciados

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Deste modo, a filosofia natural sempre precedeu e modelou a filosofia moral sobre a qual Dalai-Lama reflete que

crise ecológica, bem como para desencadear ações e estratégias de sua resolutividade, abrangendo aí, a educação e a ética ambiental.

São Francisco de Assis, o Patrono da Ecologia, revelou e demonstrou a beleza e a grandiosidade de uma interação respeitosa com todas as formas de vida. De igual modo, a visão da ética budista revela o que significa exercer uma subjetividade solidária e integrada com os seres e suas fragilidades, sem restringir o acolhimento e as diferenças e celebrando incessantemente a vida universal. A profundidade da ética budista é revelada quando se percebe que a busca é colocarse antes de bem e mal, antes das dualidades da percepção, dos conflitos, das emoções, das dicotomias, sejam religiosas, sejam mundanas. Ou seja, a realização moral é posterior à resolução de conflitos “interiores” (mentais, que não se desligam de modo algum do exterior), é posterior ao aflorar da natureza interior. No que se refere à ética, contudo, o mais importante é que, onde há o amor pelo próximo, a afeição, a bondade e a compaixão estão vivos, verificamos que a conduta ética é espontânea. (DALAI-LAMA apud PELIZZOLI, 2003, p. 84-85)

De modo sucinto, “ética” refere-se a um comportamento humano Ideal; “ética ambiental” refere-se ao comportamento humano em relação à natureza; “educar”, segundo Sri Sathya Sai Baba, é formar o bom caráter do homem. Dentro dessas questões, a tarefa de construir uma ética ambiental universal no plano da educação que transcenda as fronteiras do tempo e do espaço é o grande desafio deste milênio. A posição expressa pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente ligada à UNESCO e direcionada à Educação representa um aspecto frutífero nessas relações: CONNEXION- Bulletin de l’education relative a l’environnement. (UNESCO-PNUE, 1991)

Se há uma ligação tão íntima entre a nossa visão da natureza, essencialmente formada pela ciência, e a relação ética que mantemos com ela, isso acontece pelo fato de que conhecer a natureza é, antes de tudo, se situar relativamente a ela, o que, em linhas gerais, pode dar-se de três formas: (1) a que coloca o ser humano como um microcosmo no macrocosmo, em posição de observação (visão grega); (2) a que o coloca no exterior da natureza, em posição de experimentação e controle (visão moderna); (3) a que o reinscreve na natureza, sem posição privilegiada, mas insistindo em nossa pertença à natureza, reinscrição que temos de, por meio da reflexão ética e filosófica, buscar incessantemente. Neste sentido, procuramos fazer uma retomada sobre algumas concepções que foram dadas à natureza, entre diferentes culturas e ao longo dos grandes períodos da história, enfatizando alguns pensamentos que empreenderam uma crítica acirrada sobre o projeto moderno de dominação da natureza. Entendemos que esta reflexão é pertinente e indispensável para podermos analisar as bases em que se assenta a atual 384

A ética ambiental é, portanto, base nuclear para a construção de um amanhã melhor e mais feliz para tudo e todos. Sigamos, assim, confiantes no que pondera Dalai-Lama: Acredito que cada um dos nossos atos tem uma dimensão universal. Por causa disso, a disciplina da ética, a conduta íntegra e um discernimento cuidadoso são elementos decisivos para uma vida feliz e significativa. [...] Estou convencido de que é imprescindível cultivarmos o que chamo de sentimento de responsabilidade universal. [...] Uma das grandes vantagens de desenvolver essa noção de responsabilidade universal é nos tornarmos sensíveis a todos os seres — e não só aos que estão mais perto de nós. Passamos a ver melhor a necessidade de cuidar antes de tudo daqueles membros da família humana que sofrem mais. Reconhecemos a necessidade de procurar não causar divergências entre nossos semelhantes. E nos tornamos mais conscientes da importância imensa de promover um estado de satisfação. Quando negligenciamos o bemestar dos outros e ignoramos a dimensão universal dos nossos atos, fazemos uma distinção entre nossos interesses e os interesses dos outros. [...] Se damos demasiada ênfase a diferenças superficiais e por causa delas fazemos rígidas discriminações, não há como evitar um acréscimo de sofrimento e desgaste para nós e para os outros — o que não faz sentido. [...] Avaliando essas realidades, vemos que a ética e a necessidade pedem a mesma reação. (DALAILAMA, op. cit., p.122-124)

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A visão da Natureza em diversas culturas

O mundo mítico é diverso, dual, circular A identificação do mundo mítico com a figura do círculo é um capítulo enigmático na história, porque o conceito matemático expresso na figura há muito desperta admiração em eminentes figuras de gênio. Um clássico exemplo é Arquimedes de Siracusa, um dos mais influentes pensadores de todos os tempos cujas teorias influenciaram Galileu, Leibniz, Leonardo da Vinci, Huygens, Fermat, Descartes, Newton e outros. Os autores da ciência moderna aprenderam a partir de Arquimedes sobre a matemática do infinito e a aplicação de modelos matemáticos ao mundo físico. Na matemática de Arquimedes, o círculo ocupa papel de destaque (NETZ; NOEL, 2009). É de se notar que um conhecimento básico sobre os fundamentos do desenho do círculo evidencia a construção e o funcionamento de objetos autônomos: “Um círculo é estabelecido por um centro fixo e um raio. Após ter sido desenhado, apenas a circunferência é visível. Descrito como um formato linear, o círculo é uma linha contínua que encerra espaço. Essa linha contínua também pode adquirir espessura. Ela separa o espaço que circunda do espaço circundante a ela. O círculo é uma figura plana que define a máxima área para um perímetro; não tem angulosidade nem direção. Um fragmento isolado de círculo, parte de sua circunferência, forma um arco. Um arco isolado é visualizado como um formato linear de espessura definida, cujas extremidades podem ter formato. (WONG, 2001).

A idéia de um centro fixo é largamente estuda por Mircea Eliade e mesmo na atualidade pode ser vista tanto na política quanto na economia, bem como em outras áreas que orbitam ao redor de um “centro único” de onde emanam as ordens e as diretrizes. De acordo com a visão quase universal dos povos, o círculo é a figura que representa a realidade como uma rica tapeçaria de níveis entrelaçados, uma situação descrita como transcendente e inclusiva (WILBER, 2001). Igualmente, Arthur O. Lovejoy (2005) descreve a concepção do universo como

a “Grande Cadeia do Ser”, uma figura circular composta de infinitos elos dispostos em ordem hierárquica. No mito das Fiandeiras o caráter divino do ternário aparece na criação em que o círculo é uma referência clara à tríplice unidade do tempo e do espaço, desencadeador de uma mutação que constrói a possibilidade de inserir um mundo dentro do outro, saindo do profano em direção ao sagrado (BRUNEL, 1997). O universo divino tem tensões e unidade, a ordem repousa sobre o equilíbrio das potências opostas (VERNANT, 1999): o alto e o baixo, o frio e o quente. Os deuses, os homens e os animais fazem parte de um mesmo universo, porém, de um universo hierarquizado, pleno de uma graduação em que não se passa de um degrau a outro. Os limites da circularidade cósmica sustentam as relações entre o alto e o baixo, entre os deuses e os homens. Sobre séries combinadas de oposições — alto/baixo, cru/ cozido, mortal/imortal — organiza-se a sociedade humana. A condição de existência dos homens situase em relação à natureza e ao sobrenatural. O conceito moderno de natureza como um espaço separado dos seres é estranho ao mundo mítico. O sentido da palavra physis [...] indica aquilo que por si brota, se abre, emerge, o desabrochar que surge de si próprio e se manifesta neste desdobramento, pondo-se no manifesto. Trata-se, pois, de um conceito que nada tem de estático, que se caracteriza por uma dinamicidade profunda, genética [...]. Neste sentido, a physis encontra em si mesma a sua gênese: ela é arké, princípio de tudo aquilo que vem a ser. (BORNHEIM, 1993, p. 12)

Este sentido evoluiu bastante dos antigos até a modernidade. Heisemberg (1981), por exemplo, também, adota a visão dinâmica da physis como uma forma de energia dentro do seu monismo — que pensa a matéria como algo dinâmico em um constante vir-a-ser —, tendo interpretações que oscilam do absoluto ao relativo (HADOT, 2006). O esférico mundo do conceitual que explique a íntima interconectividade que existe entre a natureza e os seres, abrindo o mundo ao diálogo e à fraternidade

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universal. Entendamos por interconectividade [...] a realidade [que] é uma rica tapeçaria de níveis entrelaçados, abrangendo desde a matéria até o corpo, até a mente, até a alma, até o espírito. Cada um dos níveis mais elevados “envolve” ou “abarca” dimensões menores como se fosse uma série de ninhos, ninhos dentro de ninhos, dentro de ninhos do Ser. (WILBER, 2001, p.13)

A concepção de natureza, ao longo do tempo, foi influenciada por muitos pensadores e culturas, mantendo-se revestida de grande complexidade e exigindo um olhar ampliado para que se pudessem extrair, com maior fidedignidade, os significados presentes. A busca pelo entendimento do que somos, do que significa e constitui a nossa existência não é privilégio de algumas culturas e civilizações. Ao contrário, mesmo entre povos primitivos, havia a necessidade de se estabelecer um conhecimento que pudesse servir como guia. Para a maioria das culturas, a busca do entendimento sobre a natureza, sua importância e relação com os seres humanos confundem-se com sua própria história e forma de organização social. Em alguns casos, percebemos que o estabelecimento de um conhecimento sobre a natureza recebe destaque na medida em que se situa uma relação fundamental entre esta e o ser humano: a de interdependência. Entretanto, outras se alimentam de outra visão sobre a natureza, considerando o divino ou o próprio ser humano superior aos demais seres.

animais) e os seres humanos, sendo todos parentes e, simultaneamente, filhos, pais e irmãos. Os Incas vinculam a sua existência dentro de um contexto cosmogônico de tal modo que reproduziram arquitetonicamente a Via Láctea no Vale Sagrado dos Incas, chamada por eles de Mayu, o Rio Celestial, um importante eixo de orientação espiritual (SALAZAR; SALAZAR, 1996). Dizemos que os índios teceram e desenvolveram sua cultura e civilização intimamente associados à natureza. Para esses povos naturais, o conceito de meio ambiente carrega, em si, despertencimentos e rupturas, uma vez que meio é metade de algo. Para o índio, conforme definição do Cacique Kaká Werá Jecupé, não existe meio ambiente, existe a natureza, haja vista que o índio vive na terra e não sobre a terra. A natureza não é uma fronteira, não é algo que apenas circunda um povo, é a vida do povo indígena. Portanto, têm eles uma relação ontológica de pertença com a natureza. Quanto a isto, Pierre Clastrés (1990) testemunha o orgulho heróico dos índios, pois eles são impermeáveis e intransigentes a tudo aquilo que possa ameaçar o espaço religioso de sua fé nos deuses e na natureza. A relação entre eles é que os mantém como eu coletivo, o que os reúne em uma comunidade que não sobreviveria um só instante à perda de tal relação que constitui uma crença e um modo de existir. Há inúmeras características e formas de

Assim, entre os povos indígenas, desde o seu surgimento até os dias atuais, prevalece a cosmovisão: uma concepção de responsabilidade para, com e pelo mundo natural, baseada em uma relação de parentesco ou afiliação entre dois mundos: o humano e o não-humano. Como exemplos, podemos citar a percepção da tribo Maori (SPROUL, 1992), da Nova Zelândia, que admite que todos os seres humanos e não humanos partilham a mesma linhagem, têm a mesma origem.

relações do índio com a natureza, o que provocou o

Mencionamos, também, que entre os povos indígenas dos Andes, há o sentimento semelhante de universalidade e laço genealógico entre elementos da natureza (estrelas, sol, lua, plantas,

por acaso que, hoje, boa parte da biodiversidade do

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florescimento de inúmeras etnias, muitas variedades de línguas, muitos costumes (JECUPÉ, 1998). A raiz da diferença que distingue os índios do homem civilizado encontra-se na medida em que um povo é inerente ou pertence à terra e, também, está ligado a ela ontológica e moralmente. A natureza é o seu lar, portanto, o seu papel como guardiões da terra é não só natural, assim como essencial para a completude e continuação do mundo natural. Não é planeta existe em territórios dos povos indígenas para os quais a natureza é vida e não produto. A ideia de natureza como fonte de recursos naturais é filha

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A natureza não é uma fronteira, não é algo que apenas circunda um povo. Em Morro do Pilar, ela é a vida do povo

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da modernidade e, neste sentido, bem distinta das

“[...] é evidente o seu caráter teocêntrico, o qual

formas consagradas pelas tradições indígenas.

afasta qualquer perspectiva do homem como

Sob outro prisma, outras culturas milenares notabilizaram-se

pela

concepção

dominante

de interdependência entre a natureza e os seres humanos. Então, podemos citar a tradição chinesa

centro do universo e da natureza como algo criado em seu exclusivo benefício. Na crença em tela, o respeito à natureza advém do respeito a uma criação que pertence a Deus.” (CORREA, 2008).

que, desde sua origem até os dias atuais, mantém a

De acordo com a afirmação, as críticas que debitam

noção de que a vida humana está, inextricavelmente,

ao judaísmo um antropocentrismo radical no qual a

unida aos ritmos, processos e fenômenos do mundo

natureza é vista meramente como um recurso para a

natural. O pensamento chinês não opõe sujeito ao

satisfação dos interesses, carências e necessidades

objeto, ao contrário, estabelece ligações íntimas entre

humanas escasseiam de fundamento. Tais críticas ao

eles; cultiva um sentimento de unidade do mundo;

pensamento judaico foram estendidas ao modo de

constrói modelos qualitativos; estabelece relações

pensar ocidental contemporâneo, notadamente ao

entre números, espaço e tempo; o próprio Tao evoca

cristianismo, tributário em parte do platonismo e do

a ideia de ritmo, ordem e totalidade (GRANET, 1997).

judaísmo, por ter cunhado em seu dogma a separação

Na mesma direção, encontra-se o testemunho do

entre o criador (Deus) e a criatura (os demais seres),

monge beneditino padre Bede Griffiths para quem

legitimando o papel de superioridade dos seres

os valores e as tradições hindus estão ligados à

humanos em relação aos demais seres vivos.

palpitação sagrada do universo de que os homens fazem parte (GRIFTTHS apud WEBER, 1998). Assim como os egípcios, os gregos arcaicos e os chineses, para os hindus tudo é sagrado, a natureza é sagrada, está plena do divino, explorá-la constitui sacrilégio. Nomanul Haq afirma que o Alcorão incita o homem a procurar paz e harmonia com a natureza, não admite separação entre o ambiente natural e o divino, atribuindo responsabilidade aos seres humanos em relação aos demais seres: [...] os seres humanos foram criados por Deus como seus vice-gerentes (khalîfa) no mundo físico [...]. Essa vice-gerência fazia dos homens guardiões de todo o mundo natural. A humanidade era assim transcendentalmente responsável por não violar a “justa medida” (qadr) e o equilíbrio (mîzân) que Deus tinha criado no mais vasto todo cósmico, aparecendo também por esta perspectiva a função tutelar do homem na relação com o ambiente. (HAQ, 2005, p.122)

Sobre o judaísmo, afirma Heitor Delgado Correa, em “A singularidade do ambiente e os fundamentos jurídicos e extrajurídicos para a construção de uma justiça ambiental”, que

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Corroborando a visão de Correa e contrariando as críticas ao teocentrismo, Ferry afirma existir no judaísmo certo respeito aos animais e à natureza: Não é um acaso o fato de Kant afinar-se com uma das intuições mais profundas do judaísmo: o homem é por certo um ser antinatureza, um serpara-a-lei (é o que proíbe, de resto, à tradição criticista bem como à do judaísmo reconhecer-se no “ecologismo”). Ele pode, portanto, em certa medida, dispor das plantas e dos animais — mas não à vontade (nach Belieben), não matando-os como distração, seja dentro das regras da arte ou para testemunhar sua humanidade. Segundo o Pentateuco, o abate será praticado não apenas sem crueldade como também com moderação. Há nisso muita sabedoria e profundidade, pois essa posição não é acompanhada de nenhum dos princípios “naturalistas” e vitalistas que justificam normalmente os argumentos zoófilos. Nenhuma confusão possível, aqui, entre o animal e o homem no bojo de um grande todo cósmico. Tampouco nenhuma redução da dignidade de uns ou de outros pela simples lógica calculista dos prazeres e das penas. Somente a atenção dirigida à especificidade equívoca do animal que a maquinaria cartesiana, inteiramente devotada à dominação da Terra, rejeita sem restrição por ser ‘coisa’. (FERRY, op.cit., p. 115)

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A citação de Kant por Ferry elucida com clareza o poderoso desacordo entre o mecanicismo e o vitalismo cujos ecos se encontram ainda presentes na modernidade. De uma forma geral, repensar a origem moderna do pensamento sobre a natureza obriga uma revisitação de conceitos e valores matrizes da cultura ocidental que, indiscutivelmente, influenciou, educou e formou o ocidente cristão. O desenvolvimento da atual sociedade e a crise ambiental que vivencia precisa de encontrar novas e diferentes formas de relação do ser humano com a natureza e, para tanto, uma profunda reflexão sobre o modo de ser ocidental deverá ser seriamente considerado. Para integrar a união entre ecologia e espiritualidade, faz-se necessário algumas elucidações. Ernest Haeckel, biólogo alemão, em 1866, empregou a palavra ecologia pela primeira vez em seu livro A Morfologia Geral dos Organismos e definiu seu significado como o estudo do interrelacionamento de todos os sistemas seres vivos e não vivos entre si e com o meio ambiente, entendido como uma casa. Desde então, os significados da palavra se expandiram e, hoje, temos quatro formas de realização da ecologia: ecologia ambiental, ecologia social, ecologia mental e ecologia integral. Em relação à espiritualidade, vale o seguinte pensamento de Leonardo Boff em a Ética da vida: Quando falamos em espiritualidade, pensamos numa experiência de base onienglobante com a qual se capta a totalidade das coisas exatamente como uma totalidade orgânica, carregada de significação e valor. Espírito, em seu sentido originário, donde vem a palavra espiritualidade, é a qualidade de todo ser que respira. Portanto, é todo ser que vive, como o ser humano, o animal e a planta. Mas não só. A Terra toda e o universo são vivenciados como portadores de espírito, porque deles vem a vida e são eles que fornecem todos os elementos para a vida e mantém o movimento criador e auto-organizador. (BOFF, 2009, p. 83)

Portanto, o diálogo entre ecologia e espiritualidade é urgente e necessário: É urgente fazer do cuidado espiritual com a natureza uma cultura, um estilo de vida

alternativo. Esse estilo de vida, [...], não consiste apenas em uma simples mudança de costumes ou um modo de viver mais ligado à natureza. Isso é importante, mas se trata de algo que vai além. Diz respeito ao nosso modo de habitar o planeta, de trabalhar, de comprar, consumir, viaja. (BETO; BARROS, 2009, p. 203)

A viabilidade do diálogo, entrelaçada com uma nova atitude, também, exige, por sua vez, a supressão de certos estigmas presentes tanto na cultura europeizante quanto na globalização: a revisão do significado de povos primitivos, indígenas ou civilizações orientais, identificados com o culto ao alternativo, primitivo, natural, antidemocrático; o redimensionamento do conceito de vida — de vida inteligente — é ordem do dia, pois, no cerne do conceito orbitam questões maiores como cosmos, homem, natureza. A inclusão, a interdisciplinaridade, a não violência, o respeito às diferenças, a fraternidade planetária são os pilares de uma nova era multicultural. Romper as fronteiras e valorizar o diverso sem abrir mão do desenvolvimento e da espiritualidade será o grande desafio do século XXI. Logo, é imprescindível que entendamos as ponderações de Leonardo Boff: A atitude adequada para a vida é o cuidado, o respeito, a veneração e a ternura. São as atitudes que derivam da experiência do Sagrado e da descoberta do Mistério do universo e do próprio coração. Por isso, é fundamental a centralidade do páthos, a recuperação do eros e a re-invenção da lógica do coração. São essas atitudes que nos abrem à sensibilização da importância da vida. Elas implicam a mudança do paradigma cultural vigente assentado sobre o poder-dominação, e a introdução de um paradigma de convivência cooperativa, de sinergia, de enternecimento por tudo que existe e vive. Em razão dessa viragem urge redefinir os fins inspirados na vida e adequar os meios para esses fins. Só assim a vida ameaçada terá chance de salvaguarda e promoção.” (BOFF, op.cit., p.75-76)

Cabe aqui, como imperativo do momento, um aconselhamento: é preciso que a sociedade de Morro do Pilar deixe de dividir os espaços e os tempos. Eis a grande obra que se apresenta a todos os Morrenses sem distinção.

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“Se alguém achar estas coisas incríveis, que guarde suas opiniões para si, e não contradiga aqueles que, por causa destes acontecimentos, são incitados ao estudo da virtude.” Josefo

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Agradecimentos

- À comunidade de Morro do Pilar, nativos e “agregados”, para quem este livro foi sonhado e construído;

- À Paróquia de Morro do Pilar e sua equipe, por permitir as pesquisas e reprodução de todos os documentos encontrados;

- Aos membros do Instituto Espinhaço, por acreditarem e darem forma ao sonho;

- À senhora Cristina Pinto, pela pesquisa fotográfica;

- Aos espíritos dos homens e mulheres que construíram, no passado, a história do presente e do futuro de Morro do Pilar;

- Aos professores das redes municipal e estadual de Morro do Pilar, por compartilharem uma nova pespectiva cultural para a comunidade;

- À equipe da empresa Manabi, por acreditar e viabilizar o projeto;

- À família do senhor Antônio Mendes, pelo arquivo fotográfico;

- À senhora Vilma Diniz, por acreditar no sonho e caminhar dentro do propósito;

- À família da Senhora Sandra Silva Chaves de Oliveira; - Ao senhor Jaider Antônio Campos, pelas fotografias;

- Ao senhor Bernardo Duarte, por compartilhar o sonho e a amizade;

- À família do senhor Clério Lima;

- Aos senhores vereadores municipais, por compar­ tilharem o sonho do livro;

- À família do senhor Edson Vieira “Pituco” pelas fotografias;

- Àos senhores José Santiago Naud e José Carlos Carvalho, por cooperarem com o sonho;

- Ào senhor Geraldo Duarte Ferreira pelas idas à campo;

- Aos pesquisadores e autores, pela dedicação, trabalho e paciência;

- À senhora Corina Cândido de Oliveira

- Ao fotógrafo, Jorge Santos, pela paciência em “capturar a magia da luz e do momento”, sempre;

- Ao senhor Júlio César Viana;

- À equipe técnica que “deu forma” ao sonho do livro;

- Aos membros da família Viana Pereira, por resguardarem a presença “negra” em Morro do Pilar;

- Ao senhor Raimundo Nonato e Dona Antônia, pela FORÇA e apoio, sempre;

- À família da senhora Maria Alice Chaves Martins;

- À família da senhora Edite Sales Vieira;

- À senhora Ana Calábria, pelo apoio e paciência;

- A todas as pessoas que permitiram a realização de fotografias e que, direta ou indiretamente, contribuíram para a beleza do livro;

- Ao senhor Coryntho José de Oliveira, pelo exemplo e presença, sempre;

- Aos funcionários e colaboradores municipais que apoiaram, indiretamente, o projeto do livro

- Às senhoras Zélia Ferreira e Juliana Ferreira que, mesmo não compreendendo na totalidade, acreditaram;

- Aos participantes da marujada de Morro do Pilar, aos festeiros e a banda musical da cidade, que enfeitam a história da cidade;

- Ao senhor Coryntho de Oliveira Filho e Márcio Rodrigo Ferreira, por compartilharem alguns momentos de “encarnação” do livro; - À Darlene Lima Soares, por acreditar e apoiar a ideia;

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- Por fim, a todos os amigos e colaboradores diretos e indiretos que possibilitaram que o livro História Viva de Morro do Pilar pudesse ter sido sonhado e elaborado.

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Sobre o Instituto Espinhaço

O INSTITUTO ESPINHAÇO é uma ONG que tem por finalidade o apoio e a promoção do desenvolvimento sustentável, considerando os aspectos ambientais, culturais e socioeconômicos.

Missão - Promover e conciliar o desenvolvimento sustentável, a conservação da natureza e a valorização e proteção dos patrimônios naturais e culturais da Serra do Espinhaço; - Resgatar e difundir os saberes ancestrais, respeitar e valorizar a sacralidade da terra, estimular a interconexão dos saberes entre as pessoas, buscar a minimização das diferenças, difundir novos valores humanos e introduzir uma nova ética planetária que contemple o aprimoramento e a evolução simultânea de todos os seres vivos e do planeta; - Criar uma rede integrada a serviço de um propósito planetário e pacificador, que seja autêntica, transparente, ética e ecocêntrica, e que tenha como premissa o respeito e o cuidado para com todas as formas de vida; - Fundamentar a construção de uma rede socioambiental-cultural sustentável e pacífica, que conecte o saber de cada indivíduo e a cultura de cada povo, estabelecendo uma relação de equilíbrio e equidade entre os diferentes conteúdos humanos, valorizando, estimulando e difundindo as inúmeras expressões de saberes socioculturais; - Promover corretas relações humanas, gerando expansão da consciência e uma visão global da vida.

Histórico O INSTITUTO ESPINHAÇO foi criado, em 2009, com o propósito de trabalhar de forma ativa e permanente, com foco numa abordagem tríplice de atuação - biodiversidade, cultura e desenvolvimento socioambiental - vistos e praticados a partir de um olhar sistêmico e promotor de uma cultura de paz e equidade social. O trabalho em rede, a conexão com pessoas e lugares, o propósito de integração de ações, a sinergia de pensamentos e esforços e a experiência dos membros que compõem a equipe do Instituto Espinhaço, constituem o diferencial emblemático da entidade. O Instituto une os saberes tradicionais, guardados nos mais inexplorados rincões da Serra do Espinhaço ao conhecimento científico de vanguarda praticado em instituições de ensino no país e em centros avançados na Europa, Ásia e em outros continentes.

Objetivos (síntese) O INSTITUTO ESPINHAÇO objetiva a promoção do desenvolvimento sustentável nas comunidades e nos territórios inseridos no contexto da Serra do Espinhaço. Para tanto, pode desenvolver estudos, ações, proposição, gerência e parceria em projetos relacionados à conservação da biodiversidade e dos recursos naturais, bem como propor ações e atividades que visem ao desenvolvimento sustentável e ao uso adequado dos recursos minerais, com uma visão inovadora e responsável. O Instituto também propõe trabalhar com a preservação, a conservação, o desenvolvimento e a valorização dos bens materiais e imateriais do patrimônio cultural e histórico das comunidades inseridas ao longo da Serra do Espinhaço.

Alguns de nossos membros Marcos Terena, líder indígena e articulador dos Direitos Indígenas junto à ONU; Mário Soares, ex-presidente de Portugal; Raphael de Almeida Magalhães (in memorian), advogado, ex-governador do Estado da Guanabara e exMinistro de Estado; José Carlos de Mattos, executivo da empresa CEMIG; José

Mascarenhas Filho, engenheiro e ex-diretor Geral do DNER; Hans Kampik, ex-cônsul da Alemanha em Minas Gerais; Maurício Andrés Ribeiro, arquiteto e Secretário-Geral Substituto na Agência Nacional de Águas, em Brasília; Luiz Márcio Haddad, arquiteto urbanista, ex-presidente da Fundação Biodiversitas; Maria Dalce Ricas, Superintendente Executiva da AMDA Associação Mineira de Defesa do Meio Ambiente; Loryel Rocha, filósofo, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Nanuza Luiza de Menezes, doutora em Ciências Biológicas pela USP e membro titular da Academia Brasileira de Ciências; Júlio César Borges do Amaral, frei Franciscano, sócio do Colégio Brasileiro de Genealogia; Levi Carneiro, publicitário; Demóstenes Romano, jornalista, criador do “Movimento Cidadania pelas Águas”; Hiram Firmino, jornalista, editor da revista Ecológico; Silvestre Gorgulho, jornalista, editor do jornal Folha do Meio Ambiente, em Brasília; José Fernando Aparecido de Oliveira, advogado e ex-deputado federal; Franklin Frederick, ativista internacional sobre questões relacionadas à água, residente em Berna, Suíça; João Chiabi Duarte, executivo da empresa Arcelor Mittal; Raimundo Nonato, agricultor, benzedor e curandeiro; Maurício Cravo, ambientalista, presidente do Instituto Cerrado; Henri Collet, ex-diretor do Parque Nacional da Serra do Cipó e Diretor de Áreas Protegidas do IEF; Luiz Cláudio de Oliveira, ambientalista, um dos idealizadores do projeto de reconhecimento da Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço junto à UNESCO; Fabiano Lopes de Paula, arqueólogo, ex-superintendente do IPHAN em Minas Gerais; Ashley S. Calábria, professora da Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos; Vanusa Jacomino, PhD em análise de riscos ambientais pelo Instituto de Ciências Ambientais da Alemanha (Helmholtz Centre for Environmental Research – UFZ, Leipzig); Francisco Xavier Rios, PHD em geologia e geoquímica; Doutora Mariana de Oliveira Lacerda, da UFMG; Sinivaldo Tavares, Doutor em Teologia Sistemática pela Pontificia Università Antonianum (Itália); Santiago Naud, poeta e ensaísta, fundador da Universidade de Brasília - UNB; Bernardo Mello, PHD em física nuclear, pesquisador no CERN (The European Organization for Nuclear Research - Genebra/Suíça); Kátia Resende, psicóloga, professora da ESCE - Ecole Supérieure du Commerce Extérieur - e também da Sorbone - Paris; Bernardo Gontijo, doutor em geografia e biologia, professor na UFMG; Laércio Couto, professor, presidente do Centro Brasileiro para a Conservação da Natureza - CBCN; José Eugênio Figueira, biólogo, Doutor em Ecologia e professor na Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; Alexandre Salino, biólogo, Doutor em Biologia Vegetal, professor associado da Universidade Federal de Minas Gerais e Curador do Herbário (UFMG); Saulo de Oliveira Pinto Coelho, advogado, PHD em Direito, UFG; Jordi Catasus, engenheiro civil em Barcelona, Espanha; Gildo Calábria, engenheiro da AT&T - Information Technology Operations - USA; Flávia Galarzafa, Doutora em química, atua em Madri, Espanha; Antônio João de Mattos, advogado; André Muradas, advogado; Ana Flávia Calábria, psicóloga e ativista social; Milton Guerra Lapertosa, ambientalista e empresário; Renato Carvalho, músico; Ivana Bretas, arquiteta; Xisto Guerra da Silva Neto, empresário e ativista social; Mário Lúcio dos Reis Saldanha, agricultor, presidente do Sindicado dos Produtores Rurais de Conceição do Mato Dentro; Adair Sartori, pedagoga; Vander Costa, professor de inglês; Pâmela Ribeiro, fotógrafa; dentre outros.

Mais informaçãoes E-mail: institutoespinhaco@institutoespinhaco.com.br Site: www.institutoespinhaco.com.br Endereço: Rua José Sena, 483 A – Centro Conceição do Mato Dentro – Minas Gerais – Brasil Contato: 31 8461.8236

Agradecimentos

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