Universidade de Brasília Instituto de Ciência Política
As Relações Raciais na Câmara dos Deputados: Análise de Discursos Parlamentares nas Décadas de 60, 70 e 80
Brasília 2005
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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA INSTITUTO DE CIÊNCIA POLÍTICA GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA
AS RELAÇÕES RACIAIS NA CÂMARA DOS DEPUTADOS: ANÁLISE DE DISCURSOS PARLAMENTARES NAS DÉCADAS DE 60,70 E 80
Monografia apresentada ao Departamento de Ciência Política da Universidade de Brasília como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Ciência Política.
MARCONI FERNANDES DE SOUSA Brasília / agosto / 2005
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MARCONI FERNANDES DE SOUSA
AS RELAÇÕES RACIAIS NA CÂMARA DOS DEPUTADOS: ANÁLISE DE DISCURSOS PARLAMENTARES NAS DÉCADAS DE 60,70 E 80
Prof.ª Dr.ª FLÁVIA BIROLI ORIENTADORA
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Agradecimentos
À minha orientadora Flávia Biroli pela confiança na autonomia do aluno, a Carlos Escousteguy pelo apoio e conselhos na realização da pesquisa, aos servidores do Departamento de Taquigrafia da Câmara dos Deputados pela prestatividade, a Rafael de Sá Cavalcanti pela pronta ajuda na revisão do texto, a Gustavo Amora pelas discussões e, por último, aos meus familiares.
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Resumo
O presente trabalho traçou um panorama sintético da discussão parlamentar na Câmara dos Deputados acerca das relações raciais no Brasil nas décadas de 60, 70 e 80. Com a leitura de pequenas amostras de discursos nas três décadas, o trabalho focalizou essencialmente os padrões argumentativos que os deputados compartilhavam e o embate de percepções que eram gerados na Casa, principalmente com a presença de deputados negros. O trabalho constatou que na Câmara dos Deputados dos anos 60 e 70 predominavam percepções harmônicas sobre as relações raciais no Brasil, ou seja, percepções que não admitiam a existência de racismo no País, com discursos de fraternidade e tolerância entre as raças. Constatou-se também a presença de percepções que reduziam o problema do racismo a meros acidentes causados por exceções que afirmavam que havia apenas a discriminação social, econômica ou de classe no País. Nos anos 80, o tema da questão racial ganha amplitude inclusive com a contestação das percepções harmônicas empenhada principalmente por deputados negros como Abdias do Nascimento. O trabalho também permite a compreensão de um processo que consolidou a duras penas uma agenda negra na Câmara dos Deputados e que continua em expansão.
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Sumário
Introdução...................................................................................................................................1 1. A questão racial e a elite intelectual e acadêmica............... ...................................................3 2. Uma leitura do Movimento Negro........................ .................................................................9 3. Metodologia da coleta de discursos......................................................................................17 4. Discurso sobre a questão racial nos anos 60.........................................................................20 5. Discurso sobre a questão racial nos anos 70.........................................................................47 6. Discurso sobre a questão racial nos anos 80.........................................................................98 7. Conclusão............................................................................................................................161 8. Referências Bibliográficas..................................................................................................165
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Introdução
Este trabalho teve como objetivo fornecer um retrato panorâmico da discussão sobre a questão racial na Câmara dos Deputados nas décadas de 60, 70 e 80. O trabalho foi desenvolvido com a coleta e a análise de vários discursos parlamentares sobre a temática nas três décadas, com intuito de demarcar os padrões argumentativos dos deputados e o embate das percepções destes padrões com o passar dos anos. O tema da questão racial é escasso na Ciência Política da Universidade de Brasília, e apenas recentemente assistimos a um crescente interesse para se discutir e se trabalhar com a temática. Desta forma, este trabalho tem o intuito de ampliar conhecimentos acerca da discussão histórica da temática na Câmara dos Deputados, contribuindo para uma percepção mais integral e contínua das transformações ocorreram e que resultaram na atual discussão das ações afirmativas. Os capítulos primeiro e segundo contêm considerações sintéticas acerca das relações raciais no Brasil com dois enfoques principais: a percepção intelectual e acadêmica das relações raciais e uma interpretação do Movimento Negro na história do País. O terceiro capítulo é sobre a metodologia da coleta dos discursos e o quarto, o quinto e o sexto são capítulos que contêm as análises dos discursos coletados. O quarto capítulo é sobre o discurso parlamentar nos anos 60, década em que predomina entre os deputados a percepção de que não existe racismo no Brasil. O quinto capítulo analisa os anos 70, década em que se inicia um tímido enfrentamento das percepções harmônicas das relações raciais no Brasil. E, por último, o sexto capítulo versa sobre os anos 80, década marcada pelo início de um intenso ativismo negro e de um trabalho árduo de consolidação de uma agenda negra na Casa. As análises dos discursos evidenciaram vários padrões argumentativos sobre questão racial, dentre eles, a comparação do Brasil com o Estados Unidos da América e África do Sul. Como o trabalho focaliza essencialmente as percepções de Brasil que os deputados ostentaram, sugere-se como acessório à leitura deste trabalho, a leitura de obras sobre as relações raciais nos dois países citados. Por final, o trabalho também averiguou em quem se concentrou os discursos de desconstrução da visão harmônica das relações raciais, na suposição de que estes discursos estariam majoritariamente representados por deputados negros. O que de fato se verificou nas análises. O esforço para a sensibilização da Câmara para a questão racial, assim como a
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consolidação e expansão de uma agenda negra, foi nitidamente fruto do esforço de deputados negros.
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1 – A questão racial e a elite intelectual e acadêmica
Desde a Abolição da escravidão no Brasil, diversas narrativas e teorias acerca das relações raciais no país foram propostas pelas elites intelectuais e políticas. Cabe, aqui, fazer um histórico sintético destas produções intelectuais e seus efeitos nas classes políticas tanto na formulação de políticas que tangiam a questão racial quanto na expressão do ideal de nação das elites do país. Cabe lembrar que até muito tempo depois da Abolição seria até desnecessária uma diferenciação rígida entre intelectuais e classe política, afinal num país altamente excludente, desde então as fronteiras entre o privilégio econômico, a produção intelectual (incluindo, nesse campo, a formação dos “bacharéis” em universidades européias) e a ocupação de cargos políticos e/ou no funcionalismo público nunca foram claras. Até hoje esta simbiose não foi rompida de todo. A preocupação com uma temática racial é iniciada principalmente pelos abolicionistas que já se preocupavam com uma inserção liberal do país no mundo. O Brasil ocupava uma posição que degradava muito a imagem do país nas relações exteriores, uma grande Nação que ainda persistia com a escravidão sendo que a América toda já tinha sofrido uma avalanche de abolições. Além disso, se tratava de uma posição que cada vez mais se chocava com os exemplos de sucessos liberais como o Estados Unidos e alguns países da Europa. Enquanto os abolicionistas e as posteriores elites intelectuais republicanas estavam preocupadas com a aplicação das receitas liberais no país, a leitura que fizeram de sua população negra não foi nada mais, nada menos que a aplicação das teorias racistas em voga na Europa e Estados Unidos. Toda a desqualificação da escravidão por tais elites não se dirigia às condições inaceitáveis da escravatura e sim ao ensejo de mudança interna econômica. Joaquim Nabuco serve de exemplo notável desse contexto, pois, considerado o grande defensor da abolição, militando intensamente na causa, atribuiu à escravidão a causa da existência da mancha negra do país aludindo à necessidade que o país tinha de sangue provindo da Europa, o sangue “caucásico e vivaz” (SKIDMORE, 1976, p. 34). Tal autor, como tanto outros, irá representar as doutrinas racistas de sua época nas suas obras, tais formulações influenciaram expressivamente a política nacional até meados de 40, quando tais teorias já estavam se sistematicamente desconstruídas e desacreditadas. Skidmore, em Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro (1976) sintetiza as doutrinas científicas racistas em três escolas principais. Todas elas produzidas a partir da metade do século XIX. São elas: a histórica, a etnológica biológica ou
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poligenista e a darwinista. A primeira teve como mais conhecido e influente porta-voz o Conde de Gobineau, a segunda, Louiz Agassiz, e a terceira, Spencer. Além destes autores, muitos outros eram lidos pela intelectualidade brasileira. Na grande maioria das obras que tocam o assunto racial no Brasil de 1870 a 1920 (chegando em alguns autores até 40), observamos uma grande influência deste pensamento. A escola histórica contava com a legitimação da superioridade de umas raças sobre as outras por meio de acontecimentos históricos e na crença do desenvolvimento diferenciado e crescente dos povos europeus, que se modernizavam e se industrializavam. Já a poligenista, creditava às raças características inatas que determinavam sua superioridade ou inferioridade e assim capacidade de dominação ou não. A última escola, a darwnista, contava com os pressupostos de que as características, os genes mais fortes e predominantes entre as raças, prevaleciam. Os autores brasileiros se perdiam entre essas teorias, no entanto, a que mais predominou e acabou virando dogma nacional, foi a darwinista, pois representava para a elite um sonho de ver o país se embranquecer, afinal o gene branco prevaleceria. A poligenista acabou caindo em desuso, pois devido à pregação das características inatas, não oferecia soluções muito otimistas para as elites. Tal teoria previa a degenerescência e até a esterilização das raças mestiças, o que se apresentava como um pesadelo para as elites brancas perante um país predominantemente negro. Assim como Joaquim Nabuco, diversos pensadores apostaram nestas crenças e a solução que apresentavam para o “problema do negro” no Brasil (tanto os imbuídos do darwinismo, do poligenismo ou da escola histórica) era o embranquecimento via imigração européia. O país nas duas primeiras décadas do século XX teve a maior onda imigratória européia subsidiada de sua história, fazendo parte de um projeto mais amplo de “construção do nacional” que condiz com o pensamento político e social no período, permitindo referências a autores como Oliveira Vianna, entre outros. Para muitos, essa onda imigratória até hoje subverteu o quadro racial no Brasil, ou seja, aumentou a presença do branco em mais da metade da população. A população negra deste novo país livre, por outro lado, foi largada ao total desamparo e exclusão. Visionários na elite contra este contexto eram raríssimos. Segundo Skidmore (1976, p.130), Manuel Bonfim foi um dos poucos que além de não aceitar todas as teorias racistas vigentes, em plena onda imigratória atentava para a necessidade de incorporação da população ex-escrava ao mercado de trabalho. Em meio a este turbilhão de teorias racistas, no entanto, a concepção que a maioria dos intelectuais tinham das relações entre as raças no País já era a das mais fraternas e
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conciliadoras possíveis, uma contradição que permanece até hoje como paradigma da questão racial no Brasil. Já em 1871, o deputado Perdigão Malheiro defendia a “harmonia racial” brasileira, e já contrapunha as experiências norte-americanas e brasileiras como opostas (SKIDMORE, 1976, p. 39). No final dos anos 20, o motor da imigração já estava parando e as teorias racistas caíam aos poucos em desuso. Teóricos como Alberto Torres e Manuel Bonfim ganhavam respaldo na elite por seus posicionamentos anti-racistas e a escola histórico-cultural norteamericana encabeçada por Franz Boas vislumbrava novas interpretações das diferenças culturais desconstruindo os dogmas racistas. Neste contexto, a visão harmônica das relações raciais triunfa no país. A teoria racista científica encontra reconhecimento apenas em alguns poucos teóricos influentes como Oliveira Vianna e Azevedo Amaral. No entanto, a maioria da intelectualidade brasileira se torna, supostamente, anti-racista pela refutação das teorias racistas, fazendo uma forte apologia mais ao suposto quadro harmônico das relações raciais, a solução brasileira, que teve como maior representante Gilberto Freyre em Casa-Grande e Senzala (1973). Neste momento em que se tecia o pensamento autoritário dos anos 20 e 30, o projeto suscitado por vários intelectuais, de construção da identidade nacional com base em suas raízes culturais e históricas, passava pela idéia de “fusão” das raças. A visão freyreana, que posteriormente é considerada a maior representação do mito da democracia racial, ostenta uma interpretação benevolente dos senhores de escravos da produção canavieira, uma visão entusiasta e nem um pouco conflituosa da escravidão e da conseqüente mistura de raças. Além disso, sugere a formação de um tipo único, o brasileiro, fruto da miscigenação. A sua obra compõe-se das noções de que o português não tinha preconceito de raça, algo já recorrente na elite desde o século XIX. Além disso, refutava as teorias racistas ao fazer apologias à mestiçagem. No entanto, o motor da ação civilizatória do cruzamento das raças no Brasil, segundo ao autor, coube ao português (libidinoso e sem preconceitos), que teria sido capaz de manter uma sociedade híbrida e usufruir as contribuições africanas e indígenas. O português é tido como tipo elástico, contrário ao nórdico (o qual impera nas teorias racistas), e, por isso, capaz de produzir uma ação civilizatória tão ampla integrando outras raças. Esta interpretação se apresenta como nova, por finalmente consolidar um ideal das elites, a construção da identidade brasileira, a construção do brasileiro, sobre bases homogêneas e não conflituosas que dariam legitimidade à centralização política autoritária em curso na década de 30. No entanto, mantinha claros pressupostos do ideal de embranquecimento por atribuir ao português um papel mítico e superior, mascarando todo o
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processo de espoliação encabeçado por tal povo. Além disso, o autor, crítico voraz dos racistas científicos da época, como Oliveira Vianna, não justificava porque a solução da mestiçagem seria tão maravilhosa. Defendia, no entanto, a noção de que havia uma mistura racial que gerava um tipo humano diferenciado, uma visão que se alinhava perfeitamente com a visão darwinista que alardeava combater. A imagem do país como paraíso das relações raciais é então instaurada e preconizada pelas suas autoridades internamente e no exterior, o que perduraria até os dias de hoje. Foi uma estratégia do Estado brasileiro reiterar tal imagem, opondo-se a acontecimentos como o nazismo e às tensões raciais sul-africanas e norte-americanas, pilares conceituais do racismo no mundo da época e de hoje. Esta imagem rendeu ao país a iniciativa da Unicef no pósguerra de estudar relações raciais no Brasil na busca de soluções efetivas contra o racismo no mundo. Os anos 50 renderam estudos diferenciados da imagem harmoniosa como o de Florestan Fernandes em Cor e estrutura social em mudança (1953). O paraíso racial começa passa a ser questionado pela academia brasileira. Os pesquisadores envolvidos com o projeto denunciavam a falta de conteúdo estatístico para aferição da democracia racial, e mesmo assim desenvolveram estudos amostrais que desmistificavam a imagem predominante. As pesquisas da Unicef fomentavam um questionamento não só à harmonia racial, mas também à noção de que o preconceito social suplantava o preconceito racial como frisava Donald Pierson em Raça e organização social (1945). O autor ostentava a noção de que o Brasil não era um país racista como os Estados Unidos, sugerindo que havia a predominância dos preconceitos sociais. Trata-se de outro dogma de interpretação das relações raciais muito presente até hoje, as desigualdades advêm dos preconceitos de classe e não de práticas racistas. Além dos estudos da Unicef, de forma tímida a produção intelectual brasileira abriu espaços limitados para intelectuais negros como Clóvis Moura (Rebeliões de Senzala, 1959), portador de opiniões longe do conluio com a democracia racial e um autor referencial para uma interpretação diferenciada do excesso de harmonia racial.
O Brasil ficou desprovido de informações estatísticas sobre o negro por um largo período de tempo. O Censo de 60, mesmo incluindo o quesito cor, não foi publicado em sua completude e o censo de 70 retirou a informação. Em 76 a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios (PNAD) incluiu o quesito, mas de forma limitada. À custa de inúmeros protestos o Censo de 80 reincorpora o quesito e definitivamente as PNAD’s integraram o quesito a partir de 87. Desde então, finalmente foi possível a obtenção de informações estatísticas mais
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amplas de indicadores sociais por raça, inclusive construção de séries temporais. Em 2001, por exemplo, o texto Desigualdade Racial no Brasil: Evolução das Condições de Vida na Década de 90 (2001) de Ricardo Henriques forneceu séries estatísticas de indicadores educacionais, do mercado de trabalho, de renda, moradia, entre outros, desagregados por raça, o que gerou uma avalanche de reconhecimento, por parte das autoridades, da existência um país profundamente marcado por desigualdades raciais. Reconhecimento de um quadro que há muito tempo estava denunciado pelo movimento negro, por intelectuais negros e por poucos intelectuais brancos. Finalizado o esboço acima, faço então referência a alguns estudos recentes das relações raciais que dividem o pensamento racial brasileiro em quatro etapas, com seus respectivos paradigmas predominantes. Carlos Escousteguy em sua tese As Iniciativas Parlamentares no Congresso Nacional: Ações Afirmativas em Prol da População Negra (2003) expõe uma divisão que segundo o autor é também inferida por autores como Édison Carneiro e Carlos Hasenbalg. As etapas seriam: Teoria do embranquecimento, da abolição aos anos 20; Mito da democracia racial, dos anos 30 aos 50; Reducionismo de classe, dos anos 50 aos anos 70; e por último, Centralidade da raça, a partir dos anos 70. O paradigma da teoria do embranquecimento foi construído pelas teorias racistas já vistas acima e empunhadas pelos intelectuais brasileiros gerando efeitos diretos no tratamento dado às populações negras pós-abolição e na predileção e integração dos povos europeus imigrados. A democracia racial é a concepção das relações harmoniosas, da benevolência dos senhores e a da criação portuguesa. O reducionismo de classe resulta na interpretação de um Brasil sem racismo em que as desigualdades advêm da exclusão das classes pobres. Por último, a centralidade da raça admite a especificidade do racismo brasileiro e o efeito das práticas racistas na sociedade como um todo e principalmente na distribuição de oportunidades. Uma análise mais cuidadosa destes recortes de tempo e seus pensamentos, ao meu ver, não resultam apenas numa sucessão de paradigmas. Principalmente quando se trata do paradigma da Centralidade da raça. A admissão desta centralidade é algo que academicamente só passa a ser reconhecido a partir dos anos 50, contando com raras exceções anteriormente. No entanto, consolidar uma etapa do pensamento racial como a da Centralidade da raça nos anos 70 é simplesmente ignorar uma narrativa que não esteve na academia nem na narrativa da elite, mas que está nas fundações do movimento negro no País e que pode ser facilmente reconhecida e reconstruída.
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A supressão destes marcos paradigmáticos no pensamento racial acadêmico e da elite resultaria em um entendimento mais amplo da complexidade das relações raciais no Brasil. De maneira mais clara: as fundações de uma visão harmoniosa e do reducionismo de classe conviviam plenamente com as teorias racistas até mesmo antes da abolição, como pode se concluir da obra Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro (1976) de Skidmore, em que são expostos diversos trechos de obras e pronunciamentos de políticos deste cunho antes e depois da abolição. Outro exemplo seria o ideal de embranquecimento que mesmo desprovido de um arsenal científico racista, é perceptível na apologia freyreana à ação “civilizatória” portuguesa. A sucessão de etapas proposta, portanto, se refere a uma meta-história, a história do pensamento acadêmico brasileiro, que por sinal é predominantemente branco. Uma interpretação mais ampla do pensamento racial brasileiro buscaria continuidades entre estes supostos paradigmas, reconhecendo as suas fundações desde antes da Abolição da escravatura, e incorporaria outras narrativas que não apenas a acadêmica. Seria um contrasenso não conceber os negros do Quilombo de Palmares (ou de todos quilombos) ou da Frente Negra Brasileira enquanto porta-vozes de um paradigma que admitisse a presença do racismo no Brasil.
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2 – Uma leitura do Movimento Negro
Atualmente, falar do Movimento Negro remete sempre aos últimos enquadramentos que as relações raciais têm sofrido em suas interpretações na política institucional, na mídia, na academia e na sociedade como um todo, devido ao enorme impacto que as ações afirmativas têm causado. De fato o Movimento Negro tem alcançado um reconhecimento das elites políticas (majoritariamente brancas) jamais atingido antes. No entanto, o retrato atual não reflete necessariamente uma postura nova do Movimento Negro e muito menos uma organização mais eficiente ou expressiva do que o de décadas e séculos anteriores. Há uma tendência na literatura acadêmica de situar enquanto evento recente (a partir dos anos 70) o advento de um novo enquadramento da questão racial no Brasil. Enquadramento esse que admite a especificidade do racismo no Brasil e seus efeitos perversos. No entanto, não se trata de um evento recente, mas sim de reconhecimento recente por parte de segmentos brancos e da elite de algumas das reivindicações dos segmentos negros. Da mesma maneira isto se procede com o Movimento Negro. Há uma tendência a enquadrá-lo enquanto ator político novo, recente, devido de fato à sua recente e forte inserção na disputas político-institucionais. Dessa forma, a tomada de outras formas de interpretação da história dos negros pode revelar, portanto um ator histórico, com seus marcos, narrativas e ações que circularam e se fortaleceram talvez apenas entre os segmentos negros, por isso a perplexidade com o “novo ator”. Os marcos históricos, as fundações históricas do Movimento Negro estão sistematicamente excluídas, esquecidas ou desfocadas da memória e história oficiais. A maioria de suas lutas foi contra aparatos institucionais oficiais, como a própria escravidão. E se foram manifestações até mesmo com caráter mais assimilador, acabaram excluídas e ofuscadas também. Segundo Clóvis Moura (1983, p. 25), as rebeliões de senzala, os quilombos, a República de Palmares (1630 – 1695), a Cabanagem (1835 – 1838), a Balaiada (1835), a Revolução Praieira (1848), entre outros, eram movimentos negros revolucionários tentando destruir o escravismo colonial, perpetuador das condições inaceitáveis às quais estavam submetidos os negros. Lélia Gonzáles (1982, p. 21), em outra direção, faz referência à inexistência de um bloco monolítico do conceito negro aludindo como exercício teórico à idéia de “movimentos negros”. Ou seja, desde o advento do tráfico negreiro, com a vinda de diferentes povos negros com diferentes valores culturais, instaurauram-se diversas respostas ao regime escravista
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como as Irmandades de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, os Quilombos, a Revolta dos Malês, entre outros que são expressões do Movimento Negro. Além disso, argumenta que após a abolição grande parte do contingente negro se integrou em entidades de ajuda ou até mesmo de recreação como escolas de samba, maracatus, afoxés, clubes negros recreativos, entre outros. Organizações com alto poder de afirmação e de incentivo à militância. Dessa forma, não reconhecer a atuação do Movimento Negro e o que compõe ancestralidade, segundo Clóvis Moura (1977), significa tornar a-histórico o negro brasileiro, o que se apresenta como uma tentativa de apagar a memória de lutas que se desencadearam e não se cessaram. Por isso a necessidade de se recorrer às narrativas, aos discursos, aos significados históricos, à trajetória das organizações dos negros, pois tais eventos não estão desvinculados da situação em que se encontram os negros hoje, e de fato revelam sentimentos e percepções acerca das relações raciais que estiveram praticamente alijadas da esfera do poder institucional. Hoje sentimos uma crescente produção acadêmica e intelectual que dá uma maior visibilidade às organizações de negros no País. Poderia ser questionada tal proposição, alegando que os estudos afro-brasileiros desenvolvidos já há décadas na Antropologia e Sociologia já o faziam. No entanto, estes casos são em sua maioria estudos que não necessariamente colocam a resistência negra, a ação política como eixo principal de análise da organização negra, do grupo ou manifestação “cultural” negra. Até hoje há uma tendência em se estudar as manifestações culturais dos negros, suas organizações, entre outras, sublimando interpretações que fizessem referência a uma luta evidente nas quais os negros estão envolvidos. Esta produção acadêmica, portanto, está voltada para a busca e reconstrução de uma história que há muito não é contada e que com certeza foi impulsionada pelas acirradas discussões acerca das ações afirmativas no país. Trata-se de estudos que discutem o papel de intelectuais negros e os motivos de sua não aceitação na academia; estudos que remontam à história de algumas organizações de negros como a União dos Homens de Cor (UHC) dos anos 40 e 50 e como a Companhia Negra de Revistas; estudos que dão visibilidade à resistência dos remanescentes de quilombos; estudos que finalmente incorporam o caráter de resistência e consciência negra existente nas manifestações “culturais” negras, tanto as tradicionais como as mais recentes (leia-se hip-hop, funk carioca, pagode, etc). Sem esquecer que tal vontade é precedida e altamente influenciada por vários intelectuais negros em obras de outras décadas como Clóvis Moura, Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento, Guerreiro
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Ramos, Édison Carneiro, entre outros. Todos estes, além de intelectuais, participantes ativos de iniciativas do Movimento Negro como a Frente Negra Brasileira dos anos 30, o MNU (Movimento Negro Unificado) em 1978, como a organização e participação em Congressos nacionais e Conferências internacionais sobre racismo, inúmeras iniciativas extremamente significativas para as conquistas negras no Brasil e no Mundo. De fato, é possível estabelecer fronteiras nítidas entre a interpretação das relações raciais pela percepção da literatura acadêmica predominantemente branca, que é a mais veiculada na sociedade, e a interpretação pela literatura negra, a narrativa dos intelectuais negros, a mais excluída, acrescida dessa nova produção acadêmica que vem surgindo. Intelectuais como Abdias do Nascimento, em suas diversas obras, além de contribuir com suas lúcidas interpretações da história brasileira e da situação do negro no Brasil recorre a todo um conjunto de narrativas negras como expressões de manifestações culturais, de cultos afro-brasileiros, da cultura africana no Brasil e das manifestações político-sociais negras para construir uma interpretação da questão racial totalmente diferenciada das que se mantêm hegemônicas. A produção destes intelectuais, portanto, mesmo sofrendo todo o isolacionismo imposto por uma sociedade racista que não se reconhece como tal, se apresenta não apenas como simples estudos acadêmicos, mas como expressões vivas de militâncias políticas antiracistas em suas narrativas diferenciadas e vorazes na compreensão cada vez mais profunda do racismo e seus efeitos. Algo muito útil seria produzir um relatório extenso e amplo de iniciativas do Movimento Negro ou dos “Movimentos Negros” no Brasil para assim dar conta de uma compreensão mais ampla da resistência negra no País e seus impactos. Aglutinaríamos a produção destes intelectuais, citaríamos as inúmeras conferências organizadas por negros no Brasil, os inúmeros jornais da imprensa negra desde a Proclamação da República, as inúmeras manifestações religiosas como o Candomblé e Umbanda, as Irmandades que sempre resistiram aos autoritarismos racistas de duas ditaduras com seus resquícios, as rebeliões de escravos, a Frente Negra Brasileira, o Movimento Negro Unificado, o Teatro Experimental do Negro, as ONG’s anti-racistas, etc. No entanto, o que cabe como síntese para o trabalho e como proposta para uma compreensão de Movimento Negro é uma interpretação histórica não apenas factual, mas também ligada a uma prática simbólica pouco visível e mensurável. Um exemplo perfeito da interpretação proposta é o artigo Negro no espelho (2000) de Jocélio Teles dos Santos, no qual expõe seus estudos dos salões de beleza afro em São Paulo. Segundo o autor, estes salões são fortes estimuladores de uma consciência das espoliações do
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racismo e desempenham um papel importantíssimo no fortalecimento da auto-estima de sua clientela que em sua maioria é obviamente negra, pois são lugares em que diariamente se negocia e se questiona os valores estéticos impostos pelos brancos e conseqüentemente todo o alicerce racista do imaginário da população brasileira. E é dessa maneira que podemos vislumbrar que além dos grandes eventos, ações e lutas do segmento negro do Brasil, há todo um conjunto de práticas que sempre fortaleceram e solidificaram a resistência negra no país, seja nos salões afros, nas escolas de samba, nos cultos aos ancestrais negros, o Candomblé, seja nas reuniões de parlamentares negros. Todos espaços e iniciativas em que o referencial do negro assume um valor predominante e central. No campo institucional, ou seja, na política oficial brasileira, o Movimento Negro teve por muito tempo portas fechadas para suas propostas e participação. As Câmaras Representativas sempre foram totalmente compostas por brancos com raras exceções e este quadro só vai mudar sensivelmente a partir dos anos 70. O artigo Representação Racial e Política no Brasil (2000), de Ollie A Johnson III, que analisa a representação racial do Congresso Nacional do período de 1983 a 1999, retrata que neste período houve uma grande participação de negros em comparação às décadas passadas que contavam esporadicamente com algumas exceções. De qualquer forma, o número de parlamentares negros que atuaram no Congresso neste período, nestes 17 anos, é de 29 no total. Um número irrisório perante a massiva predominância branca. Talvez este quadro seja pior ainda, levando em conta que Ollie A Johnson III não se refere no texto à metodologia que ele utiliza para atribuir a cor aos parlamentares com a exceção de duas legislaturas, as quais contou com listas feitas por Paulo Paim e por Benedita da Silva. Tal fato nos leva a considerar que talvez, alguns destes 29 parlamentares, num sistema de identificação auto-classificatório, se classificariam brancos (Ver Tabela 1).
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Tabela 1: Membros negros do Congresso por estado, partido e legislatura. Senador Estado Partido 50ª Legislatura (1995-1999) Benedita da Silva Rio de Janeiro PT Marina Silva Acre PT Abdias do Nascimento Rio de Janeiro PDT 49ª Legislatura (1991-1995) Abdias do Nascimento Rio de Janeiro PDT 47ª - 49ª Legislatura (1983-1995) Nelson Carneiro Rio de Janeiro PMDB Deputado Estado Partido 50ª Legislatura (1995-1999) Eraldo Trindade Amapá PPB Chico Vigilante Distrito Federal PT Salatiel Carvalho Pernambuco PPB Agnaldo Timóteo Rio de Janeiro PPB Carlos Santana Rio de Janeiro PT Paulo Paim Rio Grande do Sul PT Luiz Alberto Bahia PT Paulo Rocha Pará PT Wagner Nascimento Minas Gerais PPB Haroldo Lima Bahia PC do B Benedito Domingos Distrito Federal PPB Telma de Souza São Paulo PT Inácio Arruda Ceará PC do B Domingos Dutra Maranhão PT Chicão Brígido da Costa Acre PMDB 49ª Legislatura (1991-1995) Eraldo Trindade Amapá PFL Lourival Freitas Amapá PT Chico Vigilante Distrito Federal PT Benedito Domingos Distrito Federal PP Aloízio Santos Espírito Santos PMDB Wagner do Nascimento Minas Gerais PTB Salatiel Carvalho Pernambuco PP Benedita da Silva Rio de Janeiro PT Carlos Santana Rio de Janeito PT Rubem Bento Roraima PFL Paulo Paim Rio Grande do Sul PT Antônio de Jesus Goiás PMDB Ricardo Moraes Amazonas PT Edmundo Galdino Tocantins PSDB Paulo Rocha Pará PT Haroldo Lima Bahia PC do B 48ª Legislatura (1987-1991) Eraldo Trindade Amapá PFL Milton Barbosa Bahia PMDB Miraldo Gomes Bahia PMDB Antônio de Jesus Goiás PMDB Benedita da Silva Rio de Janeiro PT Carlos Alberto Caó Rio de Janeiro PDT Edmilson Valentim Rio de Janeiro PC do B Paulo Paim Rio Grande do Sul PT Edmundo Galdino Tocantins PSDB Haroldo Lima Bahia PC do B 47ª Legislatura (1983-1987) Agnaldo Timóteo Rio de Janeiro PDT Abdias do Nascimento Rio de Janeiro PDT Carlos Alberto Caó Rio de Janeiro PDT Haroldo Lima Bahia PMDB Fonte: Ollie A. Johnson III, Representação Racial e Política no Brasil, 2000.
Status
Suplente Suplente Status
Suplente Suplente Suplente
Suplente Suplente
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Outra pesquisa deveria ser feita para se completar o quadro acima com os parlamentares negros da 51ª e 52ª Legislatura. Por outro lado, os assessores dos gabinetes do então Senador Paulo Paim (PT-RS) e do deputado Luiz Alberto (PT-BA) estimam que cerca de 5% dos parlamentares do Congresso são negros e que se distribuiriam em cerca de trinta deputados e cinco senadores. Esta estimativa aponta uma tendência de aumento da representação negra no Congresso. Além de os anos 80 marcar o início de uma “relativa” maior representação negra, também marcou o início de uma progressiva produção de proposições ligadas à questão racial. O estudo desenvolvido por Carlos Escousteguy (2003) sobre as iniciativas parlamentares em relação à questão racial oferece um bom panorama desta produção na Câmara dos Deputados (ver Tabela 2).
Tabela 2 – Proposições apresentadas por década. Período
Número de proposições
Porcentagem
1950/1959 3 2,56 1960/1969 4 3,42 1970/1979 5 4,27 1980/1989 32 27,35 1990/2002 73 62,40 Total 117 100,00 Fonte: Carlos Eugênio Varella Escousteguy, As Iniciativas Parlamentares no Congresso Nacional: Ações Afirmativas em Prol da População Negra, p. 81, 2003. Observação: Em “Outros” estão incluídos todos os deputados que apresentaram menos de quatro proposições.
Importante lembrar que a maioria massiva destas proposições estudadas por Carlos Escousteguy (2003) eram projetos de lei. Dessa forma, pela Tabela 2 é nítido como os anos 80 marcam a “intensificação” da ação parlamentar em prol das populações negras. No entanto, o total de proposições sobre a temática aparece, ainda, em uma quantidade irrisória o que demonstra a persistente desmobilização da Câmara em lidar com o assunto. O mais curioso vem quando identificamos em quem se situa a maior iniciativa parlamentar. Os parlamentares que mais atuaram no Congresso na busca de conquistas para as populações negras foram todos negros. Entre 1950 e 2002, do total de proposições, 40% são de autoria de apenas cinco deputados, todos negros (ESCOUSTEGUY, 2003, p. 86). A Tabela 3 expõe a distribuição dos projetos de lei entre os deputados a partir dos anos 80, década que amplia as iniciativas na questão racial. Aproximadamente 42% dos projetos apresentados são de autoria de quatro deputados negros.
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Tabela 3 – Deputados que apresentaram proposições no período: 1980 – 2002. Deputado
Número de proposições
Porcentagem
Paulo Paim (PT-RS) 18 17,14 Luiz Alberto (PT-BA) 13 12,38 Benedita da Silva (PT-RJ) 7 6,67 Abdias do Nascimento (PDT-RJ) 6 5,71 Outros 61 58,10 Total 105 100,00 Fonte: Carlos Eugênio Varella Escousteguy, As Iniciativas Parlamentares no Congresso Nacional: Ações Afirmativas em Prol da População Negra, p. 81, 2003. Observação: Em “Outros” estão incluídos todos os deputados que apresentaram menos de quatro proposições.
É importante ressaltar que Paulo Paim (PT-RS) e Luiz Alberto (PT-BA) são participantes centrais do NUPAN (Núcleo de Parlamentares Negros do PT), criado em 2001, e da Frente Parlamentar em Defesa da Igualdade Racial, criada em 14 de agosto de 2003 e que hoje conta com a participação de 108 deputados brancos e negros. Iniciativas como estas foram frutos da intensa mobilização dos deputados negros e que talvez apontam a recente sensibilização dos deputados brancos para a questão. Nos poderes Executivo e Judiciário, os primeiros indicativos de mudança na representação das lideranças vieram no Governo Lula. No executivo, foram nomeados quatro ministra(o)s negra(o)s: Marina Silva, Benedita da Silva, Matilde Ribeiro e Gilberto Gil. Sendo que Matilde Ribeiro e Benedita da Silva assumiram duas secretarias, mas obtiveram status de ministras. Além dos ministros negros, no Governo Lula houve a criação da SEPPIR (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), uma Secretaria com atribuições focalizadas para a superação das desigualdades raciais, cuja ministra é Matilde Ribeiro, citada anteriormente. No Judiciário tivemos o primeiro ministro negro nomeado para o Supremo Tribunal Federal, Joaquim Benedito Barbosa. No quadro administrativo institucional dos três poderes, apesar de não termos ainda os dados finais das pesquisas que estão sendo feitas, a expectativa não é diferente das pesquisas PNAD e CENSO onde são demonstrados que no mercado de trabalho as melhores oportunidades de emprego estão nas mãos dos brancos. Por falar em estatísticas, cabe uma ultima consideração para este capítulo. Mesmo em pleno turbilhão de discussões sobre ação afirmativa, em que cada vez mais se reconhece a especificidade do racismo no Brasil, há uma tendência nos foros de discussão privilegiados, na mídia impressa ou televisiva, e também na esfera do Estado, de eliminar todo o conteúdo simbólico que está por trás do racismo reduzindo-o a um fenômeno mensurável, estatístico. De fato as últimas pesquisas estatísticas acabaram por não reservar mais espaço para a contestação da existência do racismo e seus efeitos. No entanto, passaram a ser os únicos
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elementos comprobatórios e confiáveis como prova das denúncias que vinham sendo proferidas há décadas por intelectuais e entidades negras. Todo um esforço militante negro que narrava um outro Brasil pela experiência passada na própria pele era descartado enquanto explicação para uma segregação estrutural. A propósito disso, a última edição da publicação de Abdias do Nascimento, O quilombismo (2002), conta com um prefácio de Elisa Larkim Nascimento, o qual em um trecho sintetiza de maneira simples e direta este novo cenário de discussões acerca das relações raciais. No prefácio, a autora atenta para a necessidade de não esvaziamento das discussões em prol dos relatórios estatísticos, uma ferramenta metodológica que desempenha um valor prestigiadíssimo nas Ciências como um todo: “Este volume vem em hora oportuna contrabalançar o peso de certa tendência a tratar o racismo como um conjunto de desigualdades raciais mensuráveis por estatísticas. As pesquisas realizadas nessa linha têm fundamental importância no sentido de dar suporte técnico à reivindicação de políticas públicas endereçadas a eliminação de tais desigualdades. Ao mesmo tempo, entretanto, tal enfoque corre o risco de contribuir para esvaziar o racismo de sua função ideológica de dominação, sua natureza e efeitos psicológicos, e seu impacto concreto e marcante como dimensão do imaginário social”.
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3 - Metodologia da coleta de discursos
A coleta dos discursos contou com dois recursos, o portal da Câmara e o acervo do Departamento de Taquigrafia da Câmara. A Câmara dos Deputados disponibiliza um catálogo de discursos em seu portal, este catálogo está sendo preenchido aos poucos. No momento da coleta, o catálogo contava com as indexações dos discursos de 1979 até os dias atuais. Pelos sistemas de busca do portal há como fazer buscas em discursos por nome do deputado, data, assunto, texto integral e demais opções. A metodologia adotada consistiu em realizar uma busca pelo assunto dos discursos (ou seja, na indexação do discurso) e dessa forma criei um amplo conjunto de termos que abrangesse ao máximo a temática da questão racial. O conjunto de palavras-chaves e termos utilizados foi:
Expressões sobre o regime escravista: - Escravidão, escravos, escravagismo, escravagista, escravocrata, escravocratas, escravo, escrava, escravas, Zumbi, Palmares, Abolição.
Termos para designar a raça, cor e racismo: - Racismo, racismos, raça, raças, racial, raciais, discriminação racial, discriminação de raça, discriminações raciais, discriminações de raça, preconceito racial, preconceitos raciais, desigualdade racial, desigualdades raciais, anti-racismo, democracia racial, cor, preconceito de cor, preconceitos de cor, discriminação de cor, discriminações de cor.
Referências à identidade negra: - Negro, negra, negros, negras, preto, preta, pretos, pretas, afro descendentes, afro descendente, afro-descendentes, afro-descendente, afro brasileiro, afro brasileira, afro brasileiros, afro brasileiras, afro-brasileiro, afro-brasileira, afro-brasileiras, afro-brasileiros.
Expressões de uso pejorativo: - Negróide, criolo, criolos, criola, criolas, negreiro, mestiços, mestiças, mestiço, mestiça, mestiçagem, mulato, mulata, mulatos, mulatas.
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Termos ligados à ação afirmativa: - Ação afirmativa, ações afirmativas, discriminação positiva, sistemas de cota, sistema de cota, sistema de cotas, política de cotas, políticas de cotas, sistemas de cotas, estatuto da igualdade racial.
Termo específico: - Apartheid, aparthaid.
Como inicialmente o trabalho abarcaria tanto a década de 90 como os anos 2000 a 2004, esta pesquisa focalizou cerca de 3300 discursos no total, no entanto, cerca de 1300 deles tinham temática que pouco se correlacionava com o enfoque da questão racial, ou realmente não tratavam dela. Houve um processo de seleção no qual foram excluídos discursos que concerniam a temas como “Rio Negro, mercado negro, Agulhas Negras, cor partidária, lista negra, Salão negro, câmbio negro, Serra Negra, raça de suínos, raça bovina, abolição do uso de agrotóxicos, abolição da pena de morte, sub-raça formada por desnutrição, município de Palmares, Monte Negro, município de Pedras Negras, buraco negro, pasta cor de rosa, escravas do sexo, exposição de canários de cor, Município de Hulha Negra, Lage dos Negros, magia negra, trabalho escravo”, entre vários outros. O montante de discursos coletado de 1979 a 2004 seguiu, portanto, o método de coleta referido acima. Já os anteriores a 1979, como não estavam catalogados no sistema de busca, foram coletados no Departamento de Taquigrafia da Câmara. Este Departamento organizava os discursos em grupos temáticos, conhecidos por Grandes Assuntos, para facilitar pesquisas como esta. Por sorte, havia um grupo temático da questão racial. O método de agrupamento deles não era tão amplo quanto ao método utilizado na busca pelo portal. Neste caso, o processo de agrupamento contou apenas com termos como racismo, negro, escravidão branca e discriminação religiosa. Coloca-se aqui uma ressalva metodológica na composição do objeto de análise. De fato, o montante de discursos até 1979 está em número muito inferior ao das décadas seguintes (ver Gráfico 1), portanto, só poderemos captar melhor se houve uma mudança brusca na distribuição de discursos sobre a questão racial no final da década de 70 quando de fato pudermos realizar um mesmo método de coleta para as décadas de sessenta e setenta.
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Gráfico 1 – Distribuição dos discursos coletados pelas décadas. 772
800 700
623
Nº de discursos
600 500
398 400 300 200 100
52
73
0 Anos 60
Anos 70
Anos 80
Anos 90
2000-2004
Décadas
A escolha da década como unidade tempo para a análise do conjunto dos discursos foi apropriada para o objetivo deste trabalho por ele ter o objetivo de observar padrões e mudanças nos discursos, mais do que propriamente a dinâmica e os ciclos da Casa. Futuramente, em trabalhos mais detalhados, a divisão do tempo por legislaturas talvez seja mais apropriada para a análise dos discursos.
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4 - Discurso sobre a questão racial nos anos 60
O agrupamento de discursos sobre a questão racial do Departamento de Taquigrafia da Câmara dos Deputados contou com 52 discursos na década de sessenta. Como analisado no Gráfico 1, um número muito inferior ao das décadas de 80, 90 e dos primeiros 5 anos da década de 2000. Por serem poucos, todos os discursos foram analisados. No entanto, em relação ao universo dos discursos sobre a questão racial, os discursos coletados são apenas uma amostra, o que demonstra que existem possibilidades variadas da ampliação da pesquisa. O esforço principal da análise, não só na década de 60 como nas demais, consistirá em captar os principais temas e paradigmas da questão racial da época e seus desmembramentos. O que se propõe como desmembramento é a análise de temas correlacionados com a questão racial explicitados nos discursos. Os 52 discursos foram pronunciados por 37 oradores distribuídos em três legislaturas que cortam a década. O deputado que mais se pronunciou foi Fernando Sant’anna (PTB-BA na 41ª Legislatura e PSD-BA na 42ª Legislatura), com cinco discursos. Depois deste deputado, o máximo de discursos pronunciado por um mesmo orador não atingiu mais que três nesta amostra. Dentre os 37 deputados, apenas dois em seus pronunciamentos se identificaram negros: Cesário Coimbra (MDB-MA, 42ª Legislatura) e Mário Gurgel (MDBES, 43ª Legislatura). Durante a leitura dos discursos, organizei um método de interpretação que consistiu na proposição de filtros para o agrupamento e classificação inicial dos discursos. A referência ao Apartheid da União Sul Africana (e posteriormente África do Sul) e à segregação racial nos Estados Unidos predominou. Eram assuntos pilares na década de 60. Trinta e três discursos (64%) se referiam à segregação racial em ambos países. Explanações que variavam de protestos enérgicos a congratulações pelas vitórias democráticas nos E.U.A. A própria distribuição dos discursos demonstrou esse aspecto, pois em 1960 (ano do massacre em Sharpeville, na África do Sul) e o ano de 1963 (ano da Marcha pelos Direitos Civis, do início processo de votação no Congresso norte-americano da Lei de Direitos Civis, e ano de massacres e atentados que ganharam espaço amplo na mídia) são anos que atingem o maior número de discursos nesta amostra (Ver Gráfico 2).
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Gráfico 2 – Distribuição dos discursos na década de 60. 20 18
Nº de discursos
16 14 12 10 8 6 4 2 0 1960
1961
1962
1963
1964
1965
1966
1967
1968
1969
Ano
Além da África do Sul e Estados Unidos, dois discursos se referiram à situação racial no Congo e aos efeitos da sua dependência. Vale lembrar também que, em agosto de 1966, foi realizado em Brasília o Primeiro Simpósio Internacional sobre Discriminação Racial das Nações Unidas, que por coincidência incide em um ano em que o número de discursos é alto comparado aos demais. A ausência de discursos em 1969 decorre do maior recesso do Congresso Nacional durante o período militar, iniciado em dezembro de 1968 e só terminado no final de outubro de 1969. Além destes filtros mais históricos sobre o cenário internacional, outros captaram as posições dos parlamentares em relação à questão racial no Brasil, dividindo os discursos entre aqueles que afirmaram serem inexistentes preconceito e discriminação racial no Brasil e aqueles que, diferentemente, afirmaram sua existência. Vinte e três discursos (44%) afirmavam que no Brasil não havia preconceito de cor, raça, discriminação racial e, até mesmo, “questão racial”. Um grande grupo de discursos com similaridades e nuances tênues. Já os discursos que afirmavam o contrário estão em menor número, são oito (15%). As nuances deste grupo são amplas, pois apenas dois, de um mesmo orador, expressaram veemente convicção de um cenário de segregação racial no país e outros são menos enfáticos na presença do racismo. Além destes filtros destaquei os discursos que faziam denúncias de discriminação racial. Contabilizaram-se onze discursos (21%). No entanto, as exposições não refletiam necessariamente um posicionamento claro em relação à existência ou não de um racismo
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estrutural no Brasil. Seis destes discursos reportavam a concepções de que o preconceito racial no país era prática isolada, de poucos, e que estava sujeita a resolução penal (Lei Afonso Arinos, Lei nº 1390/51). Nos demais discursos de caráter denunciatório, três expressaram uma opinião branda sobre o racismo brasileiro e dois foram mais enérgicos, apontando a necessidade de políticas compensatórias. Houve, também, alguns poucos discursos que se reportaram ao argumento de que no Brasil predominaria o preconceito social, e não, o racial. Termos como discriminação racional, discriminação econômica, discriminação de classe ou questão sociológica foram cunhados na expressão desta concepção. Neste grupo foram contabilizados três discursos (6%). Este resumo, assim como a classificação feita por meio de filtros indicados (ver Tabela 4), elucida alguns aspectos importantes da questão racial na Câmara dos Deputados, no entanto, não esgota a enorme teia de significados gerados nos discursos. A análise a seguir tenta explorar de maneira mais qualitativa as exposições dos deputados, não só para cobrir lacunas do esquema mostrado, mas talvez para elucidar uma compreensão focada nos detalhes e, ao mesmo tempo, bem mais ampla do pensamento racial na Câmara dos Deputados.
Tabela 4 – Classificação dos discursos por filtros temáticos na década de 60 Filtro Não há racismo Há racismo África do Sul Estados Unidos Isolacionismo Preconceito social Denúncias Outros
Nº de ocorrências
Porcentagem
23 8 15 18 7 3 11 6
44% 15% 29% 35% 13% 6% 21% 12%
As relações harmônicas
O massacre de Sharpeville, cidade próxima a Johannesburg na África do Sul, ocorrido em abril de 1960, foi um acontecimento que gerou comoção internacional. Não foi diferente no Brasil: o próprio Presidente da República Juscelino Kubitschek também se manifestou contrário às práticas racistas que se deflagravam para o mundo e, de fato, já havia pedido, antes do massacre, a não-participação de Clubes brasileiros em eventos esportivos na União Sul Africana. Os oradores na Câmara dos Deputados manifestaram posições altamente contrárias ao cenário sul-africano. Quinze discursos (29%) protestavam e em poucos casos pediam
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rompimento das relações diplomáticas. A África do Sul serviu de grande parâmetro para inflexões que os deputados faziam acerca da questão racial no Brasil. Os Estados Unidos, outro grande parâmetro, passavam por uma década de grandes transformações nas relações raciais. O Movimento Negro daquele país protestava em massa gerando um amplo apoio internacional. Em 1964 foi aprovada naquele país a Lei de Direitos Civis e em 1965, a Lei de Direitos Políticos. Além disso, foi a década em que os atentados e massacres à população negra ganharam espaço midiático jamais visto anteriormente. Dezoito discursos (35%) se reportaram ao cenário norte-americano. A África do Sul e os Estados Unidos foram os moderadores dos discursos dos deputados. Além disso, temos alguns discursos que ampliaram um pouco mais o leque de referências internacionais. São poucos tópicos, como a independência de Angola e Congo, preconceito religioso no Vietnam do Sul, entre outros que só apareceram em citações. A maioria dos discursos sobre as questões internacionais gerou inúmeras comparações com a realidade no Brasil e grande parte dos oradores demonstrava perplexidade com os acontecimentos na África do Sul. Para os deputados era um dever cívico, a manifestação de protesto contra os absurdos cometidos a uma raça que integrava o Brasil. Em março de 1960, uma semana após o massacre de Sharpeville, o deputado Mário Tamborindeguy (PSD-RJ, 41ª Legislatura) discursava: “Temos a felicidade de constituir, em nosso país, talvez a mais adiantada democracia do mundo, liberta de quaisquer preconceitos raciais ou religiosos, em relação a nossos irmãos negros, que nos ajudaram a construir esta grande Pátria.”1
Em seguida refere-se à África do Sul:
“Dói-nos a alma saber que ainda existe no mundo atual um país, como a União Sul Africana, onde matam nossos semelhantes por questão de cor.”2
O deputado registrou o seu protesto contra a Lei do Passe3, altamente segregacionista, e contra o massacre ocorrido na manifestação contra a respectiva Lei. Em seguida, se posicionou a favor do rompimento das relações diplomáticas. A narrativa de Mário Tamborindeguy (PSD-RJ, 41ª Legislatura), a qual retrata o Brasil sem preconceitos raciais, é praticamente uma constante no discurso parlamentar desta década. 1
Diário da Câmara dos Deputados. 29 de março de 1960, p. 1906. Diário da Câmara dos Deputados. 29 de março de 1960, p. 1906. 3 Lei na África do Sul que obrigava aos negros o uso de salvo-condutos para poderem circular em regiões de acesso restrito aos brancos. 2
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Abelardo Jurema4, em abril de 1960, leu o despacho que o então Presidente da República fez pedindo a não-participação de um clube de futebol brasileiro em jogos amistosos na África do Sul. O Presidente afirmava:
“Orgulhamo-nos de ser uma democracia racial, em que todos os homens convivem em harmonia, perseguindo solidariamente um mesmo objetivo de grandeza nacional.”5
Mais à frente: “Não só reconhecemos a contribuição do sangue negro na formação do povo brasileiro como deles nos orgulhamos.”6
Embalado pelo despacho do Presidente, Abelardo Jurema complementou:
“Não temos discriminação racial, temos como base o esforço do negro na nossa civilização e é isso que ressalta no seu despacho, o Chefe do Governo. Jamais nos esqueceremos das bases fundamentais que nos deram os negros na construção do Brasil de hoje.”7
A população negra é interpretada como integrante ativo de um projeto nacional e que se esforçou amplamente para o sucesso do projeto em um ambiente sem discriminações. Há narrativas que focam especificamente o caráter do acolhimento do negro em terras brasileiras, afirmando ser grande virtude do brasileiro esta hospitalidade. Nesta linha, Campos Vergal (PSP- SP, 41ª Legislatura), no mesmo dia, expôs seu protesto contra o racismo sul-africano afirmando:
“Nós, brasileiros, que recebemos de braços abertos e que aconchegamos ao nosso peito cordial a raça negra; nós, que abrimos as portas da nossa casa e, mais do que isso, as portas do nosso coração, levantamos-nos, como se fôssemos uma só pessoa, contra essa brutalidade, contra essa violência, contra esse crime que repousa, não sabe se no derramamento do sangue ou no latrocínio da terra do sul-africano.”8
Há a recorrência a um “papel exemplar” e de liderança que o Brasil estaria mostrando devido às suas características raciais. Franco Montoro (PDC-SP, 41ª Legislatura), também no 4
Consta no trecho do discurso do deputado o nome Abelardo Jurema, no entanto, nas listas de deputados que participaram da Sessão só constavam os nomes Alberto Jurema (PSD-PB) e Aderbal Jurema (PSD-PE). Trata-se provavelmente de um erro de digitação ou impressão que impossibilita a identificação do deputado. 5 Diário da Câmara dos Deputados. 13 de abril de 1960, p. 2605. 6 Diário da Câmara dos Deputados. 13 de abril de 1960, p. 2605. 7 Diário da Câmara dos Deputados. 13 de abril de 1960, p. 2606. 8 Diário da Câmara dos Deputados. 13 de abril de 1960, p. 2607.
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mesmo dia, referindo-se a posição do Presidente da República em relação à África do Sul e referindo-se também à nomeação de um Cardeal negro pelo Papa João XXIII afirmou: “O Brasil pela sua atitude diplomática vem reafirmar esta mesma tese, este Brasil que é para o mundo o exemplo do respeito entre os homens de todas as raças. O Brasil cuja história tem sido o exemplo mais vivo e talvez mais belo da história da humanidade em que raças, de todas as origens, se unem e fraternalmente se associam no entendimento e no trabalho em favor da Pátria que os recebeu, pelo ato das suas autoridades, o Brasil está dando uma demonstração de que quer continuar esta trajetória de respeito à dignidade da pessoa humana.”9
E finalizando:
“Preparemos, assim, o advento e o ingresso do Brasil numa posição de liderança do mundo, não como caudatário de doutrinas superadas, mas em nome de uma doutrina revolucionária se for sinceramente vivida – a da amizade dos homens, a da fraternidade dos seres.”10
O Brasil, nestas narrativas, além de ser um país sem discriminação racial, é um país fraterno e que devia ocupar uma posição de exemplo e liderança para o mundo. Soma-se também o acolhimento e a hospitalidade que o negro em terras brasileiras supostamente recebera. Alguns discursos ganham um aspecto mais que mítico e totalmente infundado nesta perspectiva. Colombo de Souza (PSP-CE, 41ª Legislatura), também em abril de 1960, afirmou ter o brasileiro um meio de vida coletiva que protestava contra a África do Sul, não por dever cívico, mas por realmente não compreender de forma alguma o racismo daquela região. Segundo o orador, historicamente o Brasil não conheceu a discriminação racial:
“Realmente, quando condenamos a discriminação racial e a perseguição aos negros na África do Sul, não o fazemos aderindo, mas pelo contrário, como um impulso, como manifestação de vida coletiva, tradicional brasileira. No Brasil, jamais medrou quaisquer pruridos de superioridade racial; muito ao contrário, dominou, desde o começo do Brasil, a miscigenação, a mistura das raças, a igualdade e fraternidade das raças.”11
O tema da miscigenação é parâmetro para explicação da harmonia racial. A mistura de raças funciona como argumento inconteste, um argumento fulminante, esclarecedor, não restando mais dúvidas para um possível questionamento da harmonia. Além disso, ela também garante a posição vanguardista do Brasil no mundo, a posição exemplar e de 9
Diário da Câmara dos Deputados. 13 de abril de 1960, p. 2608. Diário da Câmara dos Deputados. 13 de abril de 1960, p. 2608. 11 Diário da Câmara dos Deputados. 14 de abril de 1960, p. 2692. 10
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liderança em prol dos “princípios de humanidade”. Colombo de Souza (PSP-CE, 41ª Legislatura) também discursou neste sentido: “Sr. Presidente, nós, brasileiros, que não somos brancos, nem somos pretos, mas que somos na realidade, café com leite; nós que somos mestiços; nós que com orgulho, temos a contribuição do sangue negro, do índio e do português; nós que estamos construindo no interior do continente sul-americano uma nova potência mundial; nós que estamos, na realidade, levantando e edificando um grande país e uma grande nação; nós, nesta oportunidade, em nome dos princípios de humanidade, em nome dos princípios evangélicos, em nome da comunhão dos sentimentos universais, em nome dos sentimentos universais, erguemos nosso protesto contra a discriminação levada a efeito na África do Sul...”12
O deputado Josué de Castro (PTB-PE, 41ª Legislatura), novamente em abril de 1960, compartilhou não especificamente da visão de que o brasileiro seria um tipo único fruto da miscigenação entre as raças, mas que esta seria um elemento central na criação de uma cultura expressiva e rica e que garantiria um posição de vanguarda no cenário mundial:
“Hoje, o Brasil, que antes de tudo se orgulha de ser brasileiro, de ser autêntico, confessa que na sua formação histórica e cultural entraram influências e sangues branco, índio e negro, e que a contribuição do negro foi das mais expressivas... o Brasil é um país formado pela mestiçagem de sangues e pelo sincretismo de culturas e que a contribuição negra à nossa formação histórica foi das mais expressivas no campo da inteligência, da poesia, da música, da formação culinária, da cozinha, da agricultura, etc.”13
França Campos (PSD-MG, 41ª Legislatura), em defesa da miscigenação, relatou a sua participação em Congresso das Nações Unidas na qual afirmou:
“... tive oportunidade de chamar a atenção daquele órgão [da ONU, sobre as práticas racistas na África do Sul] para o fato de nós, no Brasil, vivermos felizes justamente por sermos uma raça produto do índio, do branco, do europeu e, principalmente, do preto africano.”14
Em seguida relatou: “... tive oportunidade de esclarecer àquele órgão da ONU que nossas leis penais proibiam essa distinção entre o preto e o branco.”15
12
Diário da Câmara dos Deputados. 14 de abril de 1960, p. 2693. Diário da Câmara dos Deputados. 14 de abril de 1960, p. 2650. 14 Diário da Câmara dos Deputados. 14 de abril de 1960, p. 2650. 15 Diário da Câmara dos Deputados. 14 de abril de 1960, p. 2650. 13
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A imagem que o orador quis passar para a ONU foi a de que até a distinção entre preto e branco seria enquadrada como crime no Brasil. Na verdade, uma interpretação errada da Lei Afonso Arinos, que não proibia o reconhecimento da diferença, mas proibia sim à discriminação em hotéis, bares, estabelecimentos comerciais, etc calcada em distinções raciais. Um aspecto interessante sobre a miscigenação é a exposição de Carmelo D’Agostinho (PSD-SP, 41ª Legislatura) em abril de 1960. Em aparte ao discurso analisado anteriormente de Campos Vergal (PSP-SP, 41º Legislatura), Carmelo D’Agostinho retoma explicações científicas para legitimar a “dádiva” da miscigenação. Em cima da temática da África do Sul o aparteante argumentou:
“O branco criou um domínio colonizador e nem sequer admite o que a ciência indica; cruzando e recruzando é que se aperfeiçoam as raças. Foi assim que se aperfeiçoou a raça européia.”16
O aparteante, em plenos anos 60, reatualiza a visão darwinista que a elite branca no início do século tentou empenhar para dizer que a população brasileira na miscigenação encontraria a sua evolução. Uma fórmula que contrariava a teoria de degenerescência do mestiço, mas que, ao mesmo tempo, não desconstruia o mito da inferioridade dos negros, pois focava a mistura de raças como uma evolução pautada essencialmente na contribuição do elemento branco, portador da herança européia, supostamente a mais evoluída. Um argumento presente também na narrativa da harmonia racial do Brasil foi o do caráter brando da colonização portuguesa. O português é retratado como os brasileiros foram retratados nos discursos expostos. A oposição entre colonização portuguesa e holandesa foi explorada em virtude dos acontecimentos na África do Sul. Colombo de Souza (PSP-CE, 41ª Legislatura) sugeriu que o que acontecia naquele país era fruto de uma colonização ariana, justamente, a qual o Brasil seria submetido se fosse colonizado pela Holanda: “E aqui quero lembrar que isto que se está passando na África do Sul constitui uma resposta aos saudosistas que lamentam não ter sido o Brasil colonizado pelos holandeses. Aí está a demonstração do que foi e do que está sendo a colonização ariana, holandesa pura, na África do Sul. Preferimos que a colonização continuasse sendo feita pelos portugueses, porque aí estão os seus frutos. Temos uma raça de mestiços, mas temos paz e tranqüilidade no país, assegurada pela convivência de todos os tipos étnicos e pelo florescimento de um novo tipo humano, o que constitui, sem dúvida alguma, uma resposta a todos esses que pensam que só com cabelos louros e
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Diário da Câmara dos Deputados. 13 de abril de 1960, p. 2607.
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olhos azuis se pode construir a grandeza material ou mesmo moral de qualquer nação.”17
O português teria promovido uma colonização que permitiu a convivência de todos os tipos étnicos gerando a miscigenação, o novo tipo humano. Reside uma contradição no discurso do orador ao se referir que “temos uma raça de mestiços, mas temos paz e tranqüilidade” o que sugere alinhamento com visão de que os “cabelos louros e olhos azuis” são superiores. José Menck (ARENA-SP, 42º Legislatura), em setembro 1966, expunha suas visões sobre o português ao demonstrar sua indignação contra uma organização que participava do Primeiro Simpósio Internacional sobre Discriminação Racial das Nações Unidas. A União Democrática Portuguesa denunciara a prática de segregação racial em Portugal, denúncia que gerou total antipatia do deputado citado: “Uma organização, que se faz conhecer pelo nome União Democrática Portuguesa e se declara representante do povo de Portugal denunciou a existência de segregação racial naquela pátria co-irmã.”18
O deputado afirmou também que tal organização cometera uma falta de respeito à hospitalidade brasileira ao se reportar a assuntos íntimos, da política interna de Portugal. No entanto, a Convenção à qual se referia tinha como propósito à discussão de estratégias mundiais, criações de redes de apoio internacional para o combate ao racismo. O deputado reagia contra um dever que estava sendo colocado na Convenção como natural na supressão do racismo mundial: a exposição das práticas racistas para sua superação. Afinal, era o que acontecia com a África do Sul. Os países estavam protestando contra uma política interna, mas que se tratava de um crime de lesa-humanidade e, dessa forma, não deveria ser diferente o tratamento dado à segregação racial em Portugal. Mas ao contrário, expôs José Menck (ARENA-SP, Partido, 42ª Legislatura) sua indignação:
“Esta entidade espúria que não tem existência legal, essa entidade que, segundo ela própria se constitui de portugueses, usa a nossa hospitalidade, o nosso acolhimento para trazer em nosso território coisas íntimas ligadas política interna de Portugal.”19
E segue:
17
Diário da Câmara dos Deputados. 14 de abril de 1960, p. 2693. Diário da Câmara dos Deputados. 22 de setembro de 1966, p. 6096. 19 Diário da Câmara dos Deputados. 22 de setembro de 1966, p. 6096. 18
29
“Pelo o que conheço, Sr. Presidente, pelo o que li, pelo o que aprendi e pelo que sabemos sobre o estado português, tanto na metrópole como nas várias províncias, inclusive ultramarinas não existe a segregação racial.”20
Continua:
“O Brasil é uma prova de que não existe no espírito luso a segregação racial. O milagre português aqui se fez sentir, trazendo nas naus portuguesas a Cruz de Cristo para estas terras e se fez nelas esta grandiosidade de que é o encontro das nações, que é o encontro das raças... se um povo há que desconhece qualquer espécie de preconceitos mormente de ordem racial, este povo é o português.”21
No discurso do deputado o encontro das raças é tido como uma relação harmoniosa. Reforçou ainda mais a harmonia expondo o poema do poeta angolano Vitor Bessa, o qual sintetiza perfeitamente essa concepção benevolente do português: “Mulata de muitas graças É teu olhar tão profundo Saudade de duas raças Que se abraçaram no mundo”.22
Novamente o acolhimento, o abraço e a fraternidade. Agora, acrescidos da mulata. Entre os discursos que abordam o papel do português, temos uns oradores que fazem referência direta à obra Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre. Livro que condensa várias interpretações do Brasil recorrentes nos deputados. Além da valorização da suposta maleabilidade, permeabilidade e adaptabilidade, Freyre também fornece uma leitura sexual do português, que ausente de preconceitos de raça se misturaria com índias e africanas. Dayl de Almeida (ARENA-RJ, 43ª Legislatura), em abril de 1967, num discurso em prol da aprovação do Projeto Lei (PDL 305/67), correspondente à resolução das Nações Unidas gerada na Convenção Internacional pela Eliminação de todas as formas de Discriminação, ocorrida em dezembro de 1965, argumentava:
“O Brasil tem tradições etnológicas que nos permitem aprovar o presente Decreto Legislativo em consonância com os rumos da nossa evolução social.”23
Segue explicando as tradições etnológicas: 20
Diário da Câmara dos Deputados. 22 de setembro de 1966, p. 6096. Diário da Câmara dos Deputados. 22 de setembro de 1966, p. 6096. 22 Diário da Câmara dos Deputados. 22 de setembro de 1966, p. 6096. 23 Diário da Câmara dos Deputados. 12 de abril de 1967, p. 1232. 21
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“O caldeirão de todas as raças, no melting-pot brasileiro, no dizer de Roquette Pinto, nos transformou na maior democracia racial dos últimos cinco séculos. Gilberto Freire, no grande repositório fático que é ‘Casa Grande e Senzala’, atribui o impulso da miscigenação nacional ao gosto ‘femeeiro’ do português, gosto estimulado até o excesso erótico pelo latifúndio monoculturalista e escravocrata.”24
Salvador Losasco (PTB-SP, 41ª Legislatura), em fevereiro de 1960 também expôs sua visão freyreana. Ao protestar contra manifestações antiisraelitas no Brasil argumentara que no país “não havia clima para discriminação racial, legal ou latente na consciência do povo” e que os israelitas “mourejam”. Alude à influência moura, usada por Gilberto Freyre. Os portugueses, segundo o escritor, diferentemente dos povos nórdicos tinham um passado de miscigenação com os mouros. Munhoz da Rocha (PR-PR), em abril de 1960, também protestando contra a segregação racial na África do Sul, afirmava:
“São, Sr. Presidente, as incorporações desses complexos culturais (se refere à influência negra na sociedade brasileira), trazidos pelos negros, que Gilberto Freyre, tão magistralmente estudou, que nos dão, brasileiros de todos os quadrantes, brasileiros de todos os passados, de todas as tradições, esta unidade com que o Brasil se apresenta, bradando para o mundo, bradando para todas civilizações o seu protesto contra as discriminações raciais.”25
Como exposto anteriormente, a experiência norte-americana também foi outro grande pilar das discussões. Nem todos os discursos teciam comparações com o Brasil. Alguns se restringiram a condenações das práticas racistas, dos atentados, das chacinas, etc. E também, discursos de apoio ao movimento negro norte-americano na luta pelos direito civis, de apoio ao Congresso Americano durante a votação das Leis de Direitos Civis e Eleitorais, sem fazer alusão ao Brasil. Os que recorreram às comparações, fizeram de maneira semelhante com a comparação da África do Sul. As narrativas sobre o Brasil recorreram aos mesmos lugares comuns. Anísio Rocha (PSD-GO, 42ª Legislatura), em outubro de 1963, em resposta a uma revista norte-americana que criticava a política brasileira, atacou os Estados Unidos pela política segregacionista e, assim, teceu apologias a harmonia racial do Brasil:
“Ora Sr. Presidente, isso é que é uma autêntica democracia onde há lugar para pretos e brancos, para verdes e vermelhos, para progressistas ou reformistas e reacionários ou 24 25
Diário da Câmara dos Deputados. 12 de abril de 1967, p. 1232. Diário da Câmara dos Deputados. 13 de abril de 1960, p. 2608.
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conservadores. Pois, todos nós brigamos, mas sem preconceitos de superioridade, sem preconceitos de raça ou de cor, pois aqui, não há movimentos discriminatórios e se os há não encontram guarida no coração do povo, pois são imediatamente repelidos.”26
Fernando Sant’anna (PSD-BA, 42ª Legislatura), em agosto de 1963, falava da realidade brasileira em contraposição ao racismo norte-americano e de demais lugares no mundo:
“... desejo focalizar quão importante é para o nosso País ou para qualquer outro, a inexistência desses rancorosos preconceitos. Durante toda a história de nossa Pátria, jamais tivermos um só momento em que a separação do homem pela cor, pela religião, ou pela crença filosófica constituísse impedimento para qualquer solução política que tivéssemos em vista.”27
Em seguida, o orador se referiu ao valor da não-existência de racismo:
“Imaginemos que se em lugar dessa democracia racial, se em lugar, dessa universalização de crenças que temos no Brasil, fôssemos um povo dividido entre seitas religiosas, entre pretos, brancos ou índios, que seria então deste País? E se não tivéssemos também essa magnífica unidade lingüística que apresentamos.”28
E novamente retomou a idéia de que o Brasil consolidou uma unidade racial calcada na harmonia, na mestiçagem, apesar de não ter usado este termo:
“Vê Sr. Presidente, como este País foi realmente, beneficiado com essas unidades: a unidade lingüística, a unidade racial que, embora sendo forjada com dezenas de raças constitui, realmente uma unidade e também, a unidade religiosa. Porque muito embora o povo brasileiro seja na sua maioria católico, aqueles que professam outras religiões não se sentem incompatibilizados com nenhum dos seus semelhantes.”29
Aqui a noção de unidade racial é acompanhada pela unidade religiosa e lingüística. O deputado trata estas unidades como frutos de movimentos espontâneos, trocas espontâneas. Dessa maneira, o mito da democracia racial, de narrativa em narrativa, ganha um aspecto novo. São tantos aspectos positivos atribuídos à harmonia racial brasileira que se perde de vista qualquer relação de causa e conseqüência entre os fatores da sua ocorrência. Há narrativas que enxergam no comportamento do português, no seu gosto por mulheres, a causa que de repente transformou todos seus descendentes em pessoas fraternas, que, para se
26
Diário da Câmara dos Deputados. 3 de outubro de 1963, p. 7357. Diário da Câmara dos Deputados. 6 de agosto de 1963, p. 5145. 28 Diário da Câmara dos Deputados. 6 de agosto de 1963, p. 5145. 29 Diário da Câmara dos Deputados. 6 de agosto de 1963, p. 5145. 27
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entenderem, passaram a utilizar a língua portuguesa e não hostilizar as religiões alheias. São significados extraídos da história do Brasil que beiram ao absurdo por não se tratarem em nenhum momento de uma outra versão ou contrapeso. A noção de sincretismo, vinculada à de harmonia, parece ser central à compreensão desta percepção não conflituosa das relações inter-raciais, culturais e sociais no Brasil.
A discriminação social
Três discursos amenizaram o excesso de harmonia e fraternidade na história brasileira. Foram discursos que, mesmo recorrendo à ausência de preconceito racial no país, afirmaram que o preconceito social era o problema que deveria ser sanado. Fernando Sant’anna (PSDBA, 42ª Legislatura), em agosto de 1963, ao se referir à Marcha pelos Direitos Civis nos Estados Unidos, tecia comparações das lutas democráticas de ambos países. Segundo o orador, os Estados Unidos estavam ainda por completar o seu percurso para a democracia com a concessão dos direitos civis e políticos à população negra daquele país. Dessa forma, aludiu a uma possível marcha brasileira: “... o povo brasileiro há de fazer sua marcha pela justiça social, marcha para que esses milhões e milhões de homens, que ainda estão marginalizados na vida brasileira, possam, realmente integrar-se com dignidade, com justiça, não só na vida econômica, mas na vida social de nossa pátria.”
Continua:
“Se lá existe o preconceito racial, aqui existe o preconceito econômico: lá, lutam para derrotar o preconceito racial e nós aqui lutamos para derrotar o preconceito econômico... Aqui no Brasil já há em verdade, o que se poderia chamar de democracia racial que deve ser apurada, que deve ser complementada.”30
José Sarney compartilhou da mesma visão, afirmando, em setembro de 1963, que o Brasil era uma democracia racial, o que inclusive teria possibilitado um crescimento econômico maior comparado ao Japão em 1959-60. Ou seja, mais uma atribuição da harmonia racial. Mas mesmo compartilhando da visão harmônica argumentava ser a luta dos negros norte-americanos uma luta por melhores condições de vida, o que também havia de se fazer no Brasil com as parcelas da população desprivilegiadas31. 30 31
Diário da Câmara dos Deputados. 31 de agosto de 1963, p. 24. Diário da Câmara dos Deputados. 3 de setembro de 1963, p. 6101-6103.
33
Dayl de Almeida (ARENA-RJ, 43ª Legislatura), em abril de 1967, recorreu a uma argumentação calcada em Oliveira Vianna de que os preconceitos de cor, em função da fusão de raças, teriam dado lugar aos preconceitos de classe. Os negros que se encontravam marginalizados, portanto, seriam frutos do processo histórico escravista. Por outro lado, foi um discurso que assumiu a existência de racismo no Brasil, mas de forma “tênue”:
“É tênue, por isso mesmo [se refere à transposição do preconceito de cor pelo preconceito de classe], a pressão discriminadora e racista, em particular, relativamente aos homens de pele escura que habitam a nossa terra.”32
A transposição do preconceito racial pelo social, no entanto, não vai de encontro com a visão harmônica das relações raciais. Ela se desenvolve enquanto um suporte para evitar o confronto à harmonia, pois questionada a situação social da população negra, atribui-se ao processo histórico da escravidão o motivo da sua não-inclusão, deixando intacto o paraíso racial.
Isolacionismo racial
Discursos parecidos com o de Dayl de Almeida (ARENA-RJ, 43ª Legislatura) que reconheciam a existência de racismo se apresentaram mais, mas com outra interpretação sobre o problema no Brasil. As discriminações raciais ocorridas no país seriam práticas isoladas e não uma prática nacional. Em muitos discursos recorre-se à idéia de que a Lei Afonso Arinos seria instrumento eficaz na supressão destas “anomalias”, que feriam a cultura brasileira que não comportava estas manifestações. O preconceito e a segregação iriam contra uma suposta tradição brasileira, de harmonia e aceitação, miscigenação e sincretismo. Um exemplo muito interessante é a discussão levantada por José Talarico (PTB-DF, 41ª Legislatura), em que ele protestava contra o corte do comediante Grande Otelo e da atriz Vera Regina de uma recepção ao presidente norte-americano, Eisenhower, em fevereiro de 1960. O orador se fez porta-voz de vários jornais que aludiam ao corte do artista, um ato de discriminação racial. No entanto, o deputado preferia manter sua crítica no Cerimonial do Itamaraty, ao qual coube os encargos de organizar a recepção. José Talarico (PTB-DF, 41ª Legislatura) dialogando com as matérias dos jornais que acabara de ler sustentava:
32
Diário da Câmara dos Deputados. 12 de abril de 1967, p. 1232.
34
“Não vamos discutir a questão do preconceito racial, porque, na realidade, o que devemos debater é a forma de organização do espetáculo.”33
Apesar dos debatentes estarem fugindo de uma discussão racial, ficava claro que na tensão do tema havia um reconhecimento generalizado de uma prática racista. Esse aspecto fica claro em alguns apartes como o de Anísio Rocha (PSD-GO, 41ª Legislatura): “Apresento minha solidariedade a V.EX. e o meu protesto contra os arianos do Itamarati.”34
O termo ariano pode parecer ridículo numa manifestação referente a um corte de um ator, no entanto, revela todo um conceito formado sobre o que seria o tipo racista no imaginário da época: o branco europeu (se possível alemão), que carregasse nas costas o peso de uma criação que o ensinou a discriminar. Adauto Cardoso (UDN-DF, 41ª Legislatura), em aparte a José Talarico (PTB-DF, 41ª Legislatura), chegou a sugerir que o deputado Nestor Duarte (PL-BA, 41ª Legislatura) não tinha sido convidado “por causa de preconceitos de raça”, mas mesmo assim, José Talarico desconhecia o motivo do preconceito contra Nestor Duarte, deixando a tensão continuar. E por final, afirmava:
“Esperamos um esclarecimento, porque não podemos admitir que tenha havido restrição racial ou antipatia pessoal em relação ao caso de Grande Otelo!”35
E assim, Miguel Bahury (PSD-MA, 41ª Legislatura) complementou em aparte:
“Não se pode permitir que, num país como o nosso, com tantos exemplos de civismo e de amor ao próximo, um elemento do governo, ou fora dele, tome medida que se possa considerar de discriminação racial. Acredito que haja mal entendido sobre o assunto. Estou certo de que amanhã V. Exa. com a sua coragem e a sua honestidade, há de voltar à tribuna para congratular-se com Itamarati por ter reparado uma injustiça que reputo abominável.”36
José Talarico (PTB-DF, 41ª Legislatura) não obteve respostas do Itamaraty e ainda subiu à Tribuna mais duas vezes para tratar do mesmo tema, gerando enunciados semelhantes. Mesmo assim, surgia a prática racista enquanto uma prática “incompatível com a civilização
33
Diário da Câmara dos Deputados. 23 de fevereiro de 1960, p. 1317. Diário da Câmara dos Deputados. 23 de fevereiro de 1960, p. 1317. 35 Diário da Câmara dos Deputados. 23 de fevereiro de 1960, p. 1318. 36 Diário da Câmara dos Deputados. 23 de fevereiro de 1960, p. 1318. 34
35
brasileira”, como nas palavras de Fernando Sant’anna (PTB-BA, 41ª Legislatura) aparteando José Talarico em seu segundo discurso: “Nobre Deputado José Talarico, realmente a exclusão de dois artistas... [E, por coincidência, ambos de cor; interrompia José Talarico]... do espetáculo do Sr. Carlos Machado constitui uma brutal discriminação racial a que o nosso País não pode assistir sem protesto. Envergonha a civilização brasileira, isso que se está fazendo com os artistas Grande Otelo e Vera Regina. Nascemos e nos criamos em perfeita comunhão racial e não é justo, absolutamente, que durante a visita do Presidente dos Estados Unidos nos submetamos a uma discriminação racial odiosa incompatível com a civilização brasileira.”37
Nesta mesma linha de raciocínio, Carmelo D’Agostinho (PSD-SP, 41ª Legislatura) e Aniz Badra (PDC-SP, 41ª Legislatura) também se reportaram a casos de racismo. Carmelo D’Agostinho, em maio de 1961, denunciou um ato de preconceito racial na cidade de Nova Granada (SP), em que uma professora negra fora expulsa de um baile em um clube local por ser negra, sendo advertida claramente que o clube só permitia a presença de brancos nas mesas. A postura inicial do orador foi a de encarar a denúncia como uma demonstração da existência do preconceito racial “em nosso liberalíssimo país”. No entanto, ao narrar o episódio, o autor sugeriu estranheza por entender que o Clube da cidade desconhecia as leis que não permitiam a prática do preconceito de cor “até mesmo em hotéis”, como se em hotéis haveria a priori motivos justificáveis para não permitir a hospedagem de alguém. Ao final, deixou seu protesto contra o “insólito, o inconcebível, o inacreditável ato desse clube”.38 O orador, ao mesmo tempo em que demonstrava haver preconceito racial no país, colocava tais práticas preconceituosas no campo do inacreditável, como se tratasse de exceções à regra e desconhecimento das leis. E também, como se o cumprimento de uma lei suprimisse uma mentalidade racista. Aniz Badra (PDC-SP, 41ª Legislatura) discursou em abril de 1962 reportando-se a um ato de discriminação racial ocorrido em boate no Rio contra dois estudantes africanos, que alegavam já ter sofrido mais discriminações em outros estabelecimentos. A postura do orador foi a de que tais acontecimentos iriam contra o “espírito da índole do brasileiro”, refletindo, portanto, uma “preocupação”, pois o Brasil “felizmente abriu os braços e os conserva abertos para todas as nações do mundo, sem discriminações de raça ou credos religiosos”. Em seguida, pediu requerimento para que fosse cumprida a Lei Afonso Arinos no estado da Guanabara, argumentando que tais problemas sendo verificados e resolvidos, o Brasil 37 38
Diário da Câmara dos Deputados. 24 de fevereiro de 1960, p. 1361. Diário da Câmara dos Deputados. 4 de maio de 1961, p. 2941-2942.
36
retornaria ao “espírito que sempre dominou a gente brasileira – de acolher a tudo e a todos sem semelhantes distinções”.39 Outro discurso com percepções semelhantes é o de Eurico de Oliveira (PTB-GA, 46ª Legislatura) em março de 1966, no qual denunciava e protestava contra um episódio de discriminação racial no interior de Minas, na cidade Cláudio. Um coral (Coral Júlia Pardini) renomado foi proibido de se apresentar no Automóvel Clube da localidade por ter como integrantes alguns “elementos de cor”. O orador clamou um protesto afirmando não se justificar em pleno desenvolvimento “cultural e social do brasileiro” se registrar “resquícios inomináveis de preconceitos raciais entre um povo que, com orgulho, alardeia preconizar e promover a mais sadia e liberal democracia do mundo”. Continuando na mesma idéia de exceção à regra, o orador argumentava que o Coral já tivera apresentações em diversos espaços públicos e que se tratava de um coral de renome. Assim protestava “veemente contra aqueles que ainda insistem em deslustrar a cultura do Brasil em qualquer das suas formas, sobretudo, na que choca a alma humana pelos freqüentes insultos a dignidade e à condição em nossa terra”.40 Um aspecto interessante na exposição de Eurico de Oliveira (PTB-GA, 46ª Legislatura) é o tratamento que deu à sua denúncia, enquanto “um alerta para pessoa legítima dos homens de cor recorrer a Lei Afonso Arinos”. O próprio deputado se eximiu da responsabilidade de recorrer a Lei por não ser pessoa legítima de cor, sendo que o seu cargo era necessariamente a de um representante, que segundo suas crenças democráticas estaria investido de legitimidade para atuar em nome do povo brasileiro. Os discursos acima poderiam gerar reflexões aprofundadas das práticas racistas no país que estavam generalizadas e expostas nas denúncias que os próprios oradores faziam. No entanto, a narrativa da harmonia racial não perdia foco e vislumbrava os atos racistas enquanto resquícios, e ainda mais, legava à Lei Afonso Arinos o poder de solucionar e extirpar estes “resquícios”. Derville Alegretti (MTR-SP, 42º Legislatura), numa percepção harmoniosa, expôs também a mesma visão isolacionista comparando o Brasil com os Estados Unidos em julho de 1965. Em seu discurso, ressaltou a importância da aprovação no Congresso Norte-americano da Lei que concedia direitos políticos à população negra. E assim, afirmou em seguida que o racismo norte-americano era “uma enorme chapa vergonhosa e imperdoável”, e que se tratava de hipocrisia dentro de um país que tentava se impor enquanto “a experiência democrática”. 39 40
Diário da Câmara dos Deputados. 29 de abril de 1962, p. 1911. Diário da Câmara dos Deputados. 29 de abril de 1962, p. 1911.
37
Em oposição à experiência americana afirmava: “não temos, felizmente, no Brasil, questão racial”. A Lei Afonso Arinos seria “suficiente para punir alguns recalcitrantes”.41 A crítica a hipocrisia norte-americana de Derville Alegretti (MTR-SP, 42ª Legislatura) continha conteúdo aplicável à situação brasileira. No entanto, o deputado não se permitiu questionar a existência ou não do racismo no País. Com pressupostos similares ao da cultura norte-americana que se cegava perante aos discursos democráticos, o deputado só empenhava a harmonia racial na sua percepção, ignorando a possibilidade de uma hipocrisia brasileira também.
Questionando a harmonia
Os últimos discursos a serem analisados são os que não ostentaram uma posição de harmonia racial, reconhecendo várias especificidades do racismo no Brasil. Melo Mourão (PTB-AL, 42ª Legislatura), em junho de 1963, afirmou, tendo em vista as chacinas de negros nos Estados Unidos, que no Brasil começava a se tornar dramático o problema dos negros. Em seguida, registrou ato de discriminação racial de dois amigos negros ao tentarem alugar um apartamento (um deles era Abdias do Nascimento), sendo estes advertidos de que o estabelecimento não aceitava inquilinos negros42. Interpelando Melo Mourão (PTB-AL, 42ª Legislatura), Fernando Sant’anna (PSD-BA, 42ª Legislatura) fez um aparte dizendo que tal ato era crime perante a lei brasileira, uma postura típica do deputado, de atribuir aos crimes raciais aspecto de ocorrências isoladas. No entanto, Melo Mourão (PTB-AL, 42ª Legislatura) foi um pouco mais elucidativo, mesmo com postura branda, por tratar como dramático o que vinha ocorrendo no Brasil. Obviamente, a situação do negro no Brasil sempre foi dramática, e não começava a se tornar dramática nos anos 60. Porém, em aspectos comparativos e dentro do contexto da Câmara, era uma posição diferencial. Para Melo Mourão (PTB-AL, 42ª Legislatura), também era claro que a Lei Afonso Arinos era fruto da insistência de seu amigo em expor o drama em que vivia o negro brasileiro, e assim, chegou a afirmar que o nome da lei deveria ser Abdias do Nascimento. Cesário Coimbra (MDB-MA, 42ª Legislatura), deputado que em seus discursos se identificou como negro, expôs opiniões não debatidas e que não passavam pela harmonia racial. Em maio de 1966, fez discurso de aplausos à iniciativa de órgãos da imprensa e outros que organizaram o concurso de beleza “Miss Escurinha”. O orador expressou o desgosto com 41 42
Diário da Câmara dos Deputados. 13 de julho de 1965, p. 5656-5657. Diário da Câmara das Deputados. 20 de junho de 1963, p. 7-8.
38
o nome do concurso (“seria melhor 'Beleza negra' ou semelhante”), assim como frisou as dificuldades que a comunidade negra tinha para se organizar e soerguer seu padrão de vida. Afirmava: “só com o auxílio dos brancos caridosos e humanitários nós [negros] temos recebido alguns benefícios, após a escravidão”.43 Assim, fez apologia a Afonso Arinos agradecendo-o em nome dos negros brasileiros pelo instrumento jurídico conseguido. Um ponto curioso levantado pelo orador é o de que no Império houve negros ilustres e inspiradores para o povo negro, já na República o quadro teria mudado. O que faz pensar: querendo ou não, o que adianta ter negros ilustres se a escravidão era legal? Ao final de seu discurso, as conclusões que extraiu para a pouca iniciativa negra são as explicações que obteve de uma “pesquisa político-científica”. Pesquisa a qual o próprio orador fizera em seu Estado sobre até onde ia a solidariedade do negro em relação a seus pares. Segundo o orador, o seu resultado não foi satisfatório, dizendo que os negros não estavam dispostos a auxiliar os irmãos de cor, o que para o deputado reforçaria a idéia de que o negro se envergonhava da sua cor. Este primeiro discurso de Cesário Coimbra (MDB-MA, 42ª Legislatura) levanta a temática da questão racial de forma diferenciada, mas acaba por sedimentar pressupostos da harmonia racial. O discurso reconheceu que o negro estava numa situação desprivilegiada, mas, no entanto, a situação inferior seria decorrente da falta de auto-estima e solidariedade para com os pares. Atribuiu, também, apenas aos brancos a responsabilidade pelos atos significativos para a população negra, ainda argumentando que o Império, em pleno escravismo, gerou negros ilustres e inspiradores. Cesário Coimbra (MDB-MA, 42ª Legislatura) racializou a discussão da situação do negro, não recorreu à narrativa do brasileiro síntese, fruto da miscigenação, mas, por outro lado, gerou uma interpretação benevolente do branco e estigmatizada em excesso do negro. Não há sequer referência a qualquer noção de resistência, pois o negro em sua visão estaria desprovido de qualquer rebeldia contra a situação em que se encontrava. Já em agosto do mesmo ano, Cesário Coimbra (MDB-MA, 42ª Legislatura) discursou um pouco dissonante do excesso de harmonia contido nos demais, inclusive do seu discurso anterior. O autor expôs a experiência da pesquisadora norte-americana Irene Giggs quando esteve na Argentina, Uruguai e Brasil. Viajando para estudar a questão racial nos três países, estava imbuída da concepção de que o Brasil era uma democracia racial. No entanto, o único lugar em que a pesquisadora teve problemas para se hospedar foi no Rio de Janeiro, em 1946.
43
Diário da Câmara dos Deputados. 21 de maio de 1966, p. 2984.
39
Assim, o orador expôs a visão sobre o Brasil da pesquisadora, publicada no jornal da época. A pesquisadora aludia ao racismo do Brasil a seguinte metáfora, a qual o orador corroborou abertamente: “Uma brasa debaixo da cinza. Na superfície, na periferia, nos transportes, nos teatros, não existia discriminação racial; nas altas camadas sociais, porém, aqui é pior do que nos Estados Unidos”.44 Esse discurso não teve nenhum aparteante para defender a harmonia racial. Em outro discurso, também em agosto de 1966, Cesário Coimbra (MDB-MA, 42ª Legislatura) expunha sua indignação com a não-participação de nenhum negro na delegação brasileira que participava do Simpósio Internacional sobre Discriminação Racial das Nações Unidas que ocorria em Brasília. Inconformado com o fato da maioria das delegações conterem membros negros e a brasileira nenhum, desafiava, então, a harmonia racial brasileira: “O que me causou espécie, e aqui fica o meu protesto, é que na delegação do Brasil – a terra onde se diz que todos são iguais - não existia sequer um negro para defender os seus direitos. Muitas autoridades não gostam do negro, e o negro brasileiro não quer ser negro.”45
O deputado negro foi o único que se manifestou sobre o importante Simpósio que ocorria. Os demais discursos, simplesmente registraram o evento. O discurso de José Menck (ARENA-SP, 42ª Legislatura) se estendeu, mas por motivos que não tratavam do Simpósio, mas sim da condenação da atitude da União Democrática Portuguesa que denunciara a segregação racial em Portugal. Todos os outros deputados que discursavam em nome da liderança brasileira na resolução de problemas raciais sequer mencionaram a importância do evento e da necessidade da participação dos negros na delegação.
Brasil racista
O único deputado que teve uma posição totalmente contrária à harmonia racial foi Mário Gurgel (MDB-ES, 43ª Legislatura), também negro - a identidade que o incitou a explorar em seus discursos, os esclarecimentos das dificuldades que teve para chegar ao parlamento. Expôs suas opiniões sobre a discriminação racial no Brasil em três discursos. Um em agosto de 1967 e os outros dois em novembro de 1968. O último gerou vários apartes, tornando o discurso, um verdadeiro debate. O último discurso é de extrema importância para 44 45
Diário da Câmara dos Deputados. 3 de agosto de 1966, p. 4561. Diário da Câmara dos Deputados. 24 de agosto de 1966, p. 5326
40
uma compreensão global da dinâmica dos discursos sobre a questão racial dentro da Câmara. Na exposição do orador ocorrem diversos apartes em que se colocam: percepções harmônicas, percepções que focavam a dádiva da miscigenação, comparações internacionais, percepções isolacionistas e percepções que reduziam a questão racial a uma questão de classe. A primeira exposição de Mário Gurgel (MDB-ES, 43ª Legislatura) residiu em apologias às atuações de Lincoln e Kennedy nas respectivas lutas abolicionistas e antiracistas em prol dos direitos civis dos negros. O discurso focou majoritariamente o cenário norte-americano e, em uma pequena comparação com o Brasil, afirmou que no Brasil não havia racismo tão ostensivo quanto lá, mas que era um país também com seus inúmeros problemas que envergonhavam a civilização e a cultura. Em nenhum momento, recorre à idéia de caldeirão de raças, à idéia de que não existe racismo no Brasil, muito menos coloca o Brasil numa posição superior à norte-americana, numa posição de liderança na resolução dos problemas raciais.46 Já seu segundo discurso forneceu uma percepção das relações raciais no Brasil que rompe com todas as outras percepções, tanto as brandas, quanto com as da harmonia racial. O seu discurso enquadrou a história do Brasil dentro de uma cronologia com causalidade nos acontecimentos. Ao invés de recorrer a um tempo-espaço mítico, o da criação portuguesa e seu legado fraternal, o orador apresenta a Abolição como um marco não-efetivo na dissolução do racismo contra os negros. A abolição é apresentada como um marco de uma promessa não cumprida:
“De 1888 a esta data, apesar das conquistas sociais que se registraram nesta Nação, apesar de o Brasil ter visto a transformação da Monarquia em República, apesar de termos oferecido o contingente de nosso esforço em duas guerras mundiais, das quais participaram negros e brancos, apesar de ter nascido para esta Nação, grandes, largos e imensos horizontes de progresso, verificamos, com tristeza, com amargura, que os homens que descendem da raça negra e procuram se assimilar dentro da população brasileira são preteridos. O panorama que se nos apresenta é de profunda marginalização do povo negro, dentro deste País.”47
Protestou enfaticamente na hipocrisia existente no discurso de harmonia racial:
“Sufocam-se as aspirações dos negros, mulatos e mestiços, sob a alegação hipócrita, fantasiosa de que não existe preconceito no Brasil.”48
46
Diário da Câmara dos Deputados. 11 de agosto de 1967, p. 7-8. Diário da Câmara dos Deputados. 5 de novembro de 1968, p. 1059. 48 Diário da Câmara dos Deputados. 5 de novembro de 1968, p. 1059. 47
41
O ineditismo do autor nesta amostra ocorre também na distinção clara de contingentes populacionais, afirmando que o negro, mulato e mestiço eram populações que sofriam com o racismo. Posição que se opõe a um “caldeamento das raças”, a um “novo brasileiro”, a um “tipo único racial”, brasileiro que não porta cor, mas sim, a identidade nacional. O negro em seu discurso é representante majoritário nas porcentagens de prostitutas, presidiários e das camadas menos privilegiadas do país. E dessa forma, denunciou a ausência de negros nos órgãos políticos e nos meios de acesso a qualidade de vida. Denunciou também o racismo, calcado em várias referências de jornais, em atos discriminatórios no emprego, em estabelecimentos privados e estatais, e em clubes. Gerou enfim, uma argumentação centrada na exclusão a que os negros estavam submetidos, das oportunidades de melhoria de vida:
“Não encontram eles [negros e negras] oportunidades de participar da diplomacia brasileira, não encontram oportunidades de acesso aos ginásios e às universidades, não encontram meios válidos a fim de disputarem decente, legal e juridicamente as oportunidades imensas que se abrem neste País para seus filhos.”49
Em seguida:
“Sentimos que nos jardins de infância, nas escolas primárias, nos ginásios, nos cursos científicos, nas universidades, nos escalões superiores das Forças Armadas, na diplomacia brasileira, nas escolas, enfim onde se exige o acesso de pessoas que possuem arte e cultura, o negro e está quase a zero, porque não lhe dão oportunidade de participar, igualmente, do progresso e do avanço da civilização neste país.”50
Essas afirmações foram acompanhadas de referências estatísticas da sub-representação dos negros nas posições sociais citadas. Denunciou a hipocrisia que não permitia atentar para a discriminação existente. E mais, ostentou uma comparação com o Estados Unidos que não reforçava nem um pouco a visão idílica do Brasil. Ao referir-se ao tratamento dispensado a atrizes norte-americanas em hotéis no Rio de Janeiro e em São Paulo, argumentava:
“Essas moças vieram de um País onde o ódio racial tem estabelecido as batalhas mais gritantes. No entanto, se assombraram diante do tratamento aqui recebido”.51
Por final, reforçou a sua oposição à visão predominante da “democracia racial”:
49
Diário da Câmara dos Deputados. 5 de novembro de 1968, p. 1059. Diário da Câmara dos Deputados. 5 de novembro de 1968, p. 1059. 51 Diário da Câmara dos Deputados. 5 de novembro de 1968, p. 1059. 50
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“Este é o relato que queria fazer, Sr Presidente, para que ficasse registrado, nos Anais do Congresso, sobre episódio em que se procura arrancar a máscara da democracia brasileira, a fim de que se dêem aos negros brasileiros as mesmas oportunidades dos brancos, de acesso igual, nos quadros do progresso brasileiro!”52
Mário Gurgel (MDB-ES, 43ª Legislatura) realizou seu terceiro discurso encerrando a amostra com um debate fascinante. Desenvolvendo argumentação semelhante com a do discurso anterior, o deputado chamou a atenção para a necessidade de busca de soluções “válidas” e “sólidas” para o problema pelo qual o negro passava. Afirmava que todas as portas eram sistematicamente fechadas até mesmo para uma possível elucidação do problema:
“Toda vez que se aborda este problema na imprensa, no teatro ou mesmo no Parlamento, vozes acomodadas e tímidas levantam de início uma cortina de impedimentos, bradando quase histericamente que não existe preconceito racial, nem social, nem econômico em nossa terra.”53
O orador afirmou que a Nação brasileira se recusava a tomar medidas calcadas na análise do seu panorama social, o que poderia gerar problemas raciais ainda piores no futuro. E assim, fez leitura de trechos da Constituição e da Lei Afonso Arinos, opondo-as a uma relação enorme atos de preconceitos raciais no emprego, trabalho, escola, clubes, inclusive em órgãos do governo. O deputado Feu Rosa (ARENA-ES, 43ª Legislatura), o primeiro aparteante de Mário Gurgel (MDB-ES, 43ª Legislatura), mesmo antes de este terminar sua exposição, não admitia a existência de preconceito racial e dessa forma argumentava:
“Acredito que haja quistos preconceituosos de meia dúzia de psicopatas, de indivíduos de índole esquisita, maníacos. Entre eles, uns que acham que não devem trabalhar com pessoas de outra religião e, então na firma, só querem católicos ou protestantes; outros, que são japoneses, acham que na firma só devem trabalhar com japoneses. Alguns desses indivíduos cheios de manias, cheios de não-me-toques, cheios de preconceitos – chego a dizer que são psicopatas – descambam para esse lado que V.Ex alude, de querer proibir o ingresso de pessoas negras em estabelecimentos de diversões, em hotéis e em certos colégios.”54
Feu Rosa (ARENA-ES, 43ª Legislatura) argumentou em prol da visão isolacionista do racismo (uma constante nesta década), enquanto atitude de poucos, algo reduzido e ligado a
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Diário da Câmara dos Deputados. 5 de novembro de 1968, p. 1059. Diário da Câmara dos Deputados. 7 de novembro de 1968, p. 7875. 54 Diário da Câmara dos Deputados. 7 de novembro de 1968, p. 7876. 53
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exceções, “psicopatas” e derivados. Para o aparteante, a “verdadeira fisionomia do Brasil” era a da harmonia. Ao continuar seu aparte, Feu Rosa concluiu:
“Mas o que se observa, graças a Deus, no nosso país é que a imensa maioria dos seus habitantes vive fraternalmente, sob o ambiente da mesma camaradagem, confraternizando, sem discriminação de espécie alguma.”55
Em contraposição ao panorama de Feu Rosa (ARENA-ES, 43ª Legislatura), Mário Gurgel (MDB-ES, 43ª Legislatura) recorreu ao livro Negro Revoltado, na rota do Preconceito de Abdias do Nascimento, apresentando dados estatísticos que deflagrariam um panorama de segregação racial. Dessa forma, rebatia a visão isolacionista do aparteante:
“Não se trata, Senhor Deputado, de determinados indivíduos ou energúmenos. O panorama geral deste país é o da segregação racial. Veja V.Exa: a única atividade em que o negro aparece com destaque é o futebol com 52%, os pardos com 32% e os brancos com 15 %. Nos assaltos e furtos, os negros entram com 80%. Perdem para os brancos em estelionatos e apropriações indébitas, em que estes entram com 90%. Quanto à educação, no Instituto de Educação, Colégio Militar, Colégio Pedro II e Colégio Naval, registram-se apenas 8% de negros; nas universidades, 6% de negros, 10% de pardos e 84% de brancos; nos ginásios, 8% de negros, 26% de pardos e 61% de brancos; no curso primário: 16% de negros, 52% de pardos e 57% de brancos.”56
Benedito Ferreira (ARENA-GO, 43ª Legislatura), outro aparteante, argumentou em seguida que as próprias estatísticas colocariam por terra o argumento da segregação racial do deputado. O aparteante sugeria: “a comparação entre os quantitativos dos pardos e dos chamados negros verifica como se mesclam as raças no Brasil”. O aparteante reportava ao discurso da miscigenação enquanto fenômeno que destruía o racismo. E em seguida Benedito Ferreira expôs sua visão do legado português, o promotor da bendita miscigenação e o exemplo da tolerância:
“V.Exa comete uma injustiça contra a Nação brasileira. V.Exa sabe que a herança que os portugueses aqui nos deixaram não nos consente esse preconceito que V.Exa nos quer dar.”57
O aparteante Benedito Ferreira (ARENA-GO, 43ª Legislatura) além de também defender a posição de Feu Rosa (ARENA-ES, 43ª Legislatura) sobre os quistos racistas, posteriormente, levantou a bandeira do preconceito econômico. Argumentou que a origem dos 55
Diário da Câmara dos Deputados. 7 de novembro de 1968, p. 7876. Diário da Câmara dos Deputados. 7 de novembro de 1968, p. 7876. 57 Diário da Câmara dos Deputados. 7 de novembro de 1968, p. 7876. 56
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negros era rural, e por isso, afetada pelas iniqüidades. Ou seja, estariam “desgraçadamente” despreparados para competir no ambiente urbano, onde os maiores privilégios estavam nas mãos dos ricos. A oratória de Mario Gurgel (MDB-ES, 43ª Legislatura), no entanto, foi de pleno desacordo com todas as teses levantadas pelos aparteantes. Com ironia, argumentava que a origem do branco era rural também, inclusive a dos mais ricos. Discordava do preconceito econômico afirmando que não existia negro rico no país. Mário Gurgel chegou a ser taxado como injusto com a realidade brasileira, mas mesmo assim, argumentava com serenidade e que não estava sendo injusto nem justo, simplesmente não estava silenciando sobre um problema. O discurso da miscigenação e dos “quistos racistas”, posteriormente, foi retomado por outro aparteante, Doin Vieira (MDB-SC, 43ª Legislatura). Este concordou com Mário Gurgel (MDB-ES, 43ª Legislatura) sobre as dificuldades que os negros tinham para galgar melhores condições de vida. No entanto, sustentou que o homem brasileiro teria na sua índole uma “aceitação para todas as raças, credos e cultos”. Além da defesa do brasileiro fraterno, expôs uma concepção da miscigenação com aspectos da Teoria do Embranquecimento do início do século: “Há em geral na índole e na formação do brasileiro uma aceitação para toadas as raças, para todos os credos e cultos e uma natural tolerância no sentido de que a própria miscigenação se processe, permitindo a formação de um novo homem, o homem brasileiro, racial, espiritual e psicologicamente adaptado às características da nossa Terra.”58
Mário Gurgel (MDB-ES, 43ª Legislatura) também expôs inúmeras solicitações que fez aos Ministérios pedindo a composição racial de seus funcionários. E, assim, denunciou que de todos Ministérios, recebera respostas de que no Brasil devido à ausência absoluta de preconceito racial e em virtude da Lei Afonso Arinos (que seria contrária à distinção de cor ou raça), estes órgãos não tinham as informações requeridas pelo deputado. Demonstrava, portanto, que a mesma Lei que serviria para punir os atos de discriminação estava agora servindo de instrumento para impedir a própria verificação da suposta harmonia racial. Dessa forma defendeu sua posição na Câmara e justificou sua atitude em relação ao problema racial:
“É meu dever não negar ao Brasil o esforço que tem feito para vencer este preconceito, mas eu, que tenho ido ver nos fundos dos prostíbulos miseráveis de minha terra, nos fundo das cadeias, nos tugúrios mais repelentes deste país de injustiças os filhos dos meus amigos, os filhos dos amigos dos meus amigos, na sua 58
Diário da Câmara dos Deputados. 7 de novembro de 1968, p. 7877.
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grande maioria homens de cor, relegados pela ignorância, pelo atraso e pela falta de oportunidade, às condições mais deprimentes na escala social deste país, não seria efetivamente um homem digno desta tribuna, para o qual o povo me encaminhou se não viesse espancar com minhas palavras sinceras e honestas, nas mãos das autoridades os dados necessários ao esclarecimento de um problema, buscando, pedindo a contribuição de um Governo no qual ainda não posso crer, pedindo às repartições, os dados, que nada representariam para mim se não fossem um instrumento de esclarecimento, de uma verdade que preciso trazer a Câmara, isenta de paixão, isenta de opinião pessoal e, sobretudo, isenta das grandes, das profundas mágoas que a minha caminhada pode registrar através destes quase 50 anos de vida.”59
Mário Gurgel (MDB-ES, 43ª Legislatura) também utilizou a própria representação racial da Câmara como exemplo para a segregação racial. Ainda argumentando contra a insistência de Feu Rosa (ARENA-ES, 43ª Legislatura) em dizer que o Brasil vivia a harmonia racial e convivia com quistos racistas, argumentou:
“Numa Câmara que possui 409 deputados, há somente dois ou três homens de cor. Se na guerra lutamos, oferecemos nossos filhos; se nós os retiramos das escolas, das roças, das oficinas e mandamos morrer por esta Pátria, em todos os tempos, desde a Guerra do Paraguai, por que motivo, por exemplo, percentagem de pessoas de cor nas escolas é insignificante, se na Guerra é de igual para igual.”60
Mário Gurgel (MDB-ES, 43ª Legislatura) debateu, portanto, com todas as correntes do pensamento racial na Câmara daquela década. Atuou na década com ineditismo, pois é o primeiro deputado a se opor sistematicamente à visão harmônica das relações raciais, à visão do preconceito social suplantando o racial e à que concebia o racismo enquanto ato de poucos e “loucos”. Além disso, levantou o problema da sub-representação dos negros nos altos escalões da sociedade (inclusive na Câmara) aludindo à necessidade de medidas governamentais para a solução das desigualdades raciais. Não chega a tratar diretamente de termos com ação afirmativa e cotas, mas seu argumento clama por um Estado que promova políticas corretivas. O ineditismo de Mário Gurgel (MDB-ES, 43ª Legislatura) foi de certa forma, solitário. Apesar de Cesário Coimbra (MDB-MA, 42ª Legislatura) também ter levantado questionamentos sérios à perspectiva da convivência harmônica, como a denúncia da ausência de negros na delegação brasileira participante do Simpósio Internacional sobre Discriminação Racial da ONU e a corroboração de declarações como a de Irene Giggs, não se posicionou claramente enquanto à existência ou não de uma segregação racial no país, algo que marcou o
59 60
Diário da Câmara dos Deputados. 7 de novembro de 1968, p. 7878. Diário da Câmara dos Deputados. 7 de novembro de 1968, p. 7878.
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discurso de Mário Gurgel (MDB-ES, 43ª Legislatura). No entanto, trata-se da atuação dos únicos deputados que se identificaram negros nos discursos.
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5 - Discurso sobre a questão racial nos anos 70
A década de 70 contou com o total de 73 discursos. Um pouco mais em relação aos anos 60. Até o ano de 1979, todos os discursos foram extraídos do agrupamento realizado pelo Departamento de Taquigrafia da Câmara dos Deputados. A partir de 79, no entanto, os pronunciamentos também foram coletados com o método de busca pelo site da Câmara dos Deputados. Espera-se que seja possível, futuramente, ampliar a coleta tanto dos anos 60 e 70 por este método. A distribuição dos discursos entre os oradores desta década foi extremamente concentrada. O total de discursos foi pronunciado por apenas 37 deputados (distribuídos em três legislaturas), o mesmo número de oradores que se pronunciaram na amostra da década de 60, que continha menor quantidade de discursos. Os deputados que mais se pronunciaram foram Carlos Santos (MDB-RJ, 45ª e 46ª Legislaturas), com 15 discursos, e Adalberto Camargo (MDB-SP, 44ª, 45ª e 46ª Legislaturas), com nove discursos. Estes dois são os únicos deputados da amostra que se identificaram como negros. A soma dos discursos dos dois oradores representa 33% da amostra. Além disso, mais de 50% dos discursos da amostra teve autoria de apenas cinco deputados (ver Tabela 5). Além dos pronunciamentos desses oradores, o máximo de discursos pronunciados por um mesmo orador não passou de dois.
Tabela 5 – Distribuição dos discursos entre os deputados na década de 70 Nome e partido do deputado Carlos Santos (MDB-RS) Adalberto Camargo (MDB-SP) Antônio Bresolin (MDB-RS)
Edgar Martins (MDB-SP) José Frejat (MDB-RJ) Célio Marques Fernandes (ARENA-RS) Florim Coutinho (MDB-SP) Aloísio Santos (MDB-ES) Octacílio Queiroz (MDB-PB) Outros
Nº de discursos
Porcentagem
15 9 6 4 3 2 2 2 2 28
21% 12% 8% 5% 4% 3% 3% 3% 3% 38%
Os assuntos que mais geraram mobilização parlamentar nos discursos foram a empreitada diplomática que o Brasil promoveu em 72 e 73, que consistia na firmação de Acordos de Cooperação Técnica (os quais passavam por votação na Câmara) com diversos países africanos, como por exemplo, Togo, Congo, Costa do Marfim e Nigéria, entre outros; e a discussão do Projeto de Lei nº. 3425/66 do Senador Bezerra Neto que tramitava na casa em
48
1974. O Projeto de Lei propunha alteração nas disposições da Lei Afonso Arinos. Portanto, 73 e 74 foram anos que interromperam o jejum de discursos sobre a questão racial na década (ver Gráfico 3). A partir de 75, o número de discursos cresce consideravelmente, mas, no entanto, não reflete a ocorrência de algum acontecimento ou discussão específica. Apesar de mais de 70% dos discursos se concentrarem a partir de 76, as temáticas que os pronunciamentos abrangeram variaram de comemorações do Dia Internacional pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação e comemorações da Abolição a denúncias de práticas racistas e divulgação de eventos organizados por entidades afro-brasileiras. O ano de 1979 provavelmente atingiu o maior número de pronunciamentos devido ao fato de que reúne discursos coletados tanto do Departamento de Taquigrafia da Câmara dos Deputados quanto do método de coleta pelo banco de dados disponível no site da Câmara dos Deputados.
Gráfico 3 – Distribuição dos discursos na década de 70. 20 18
Nº de discursos
16 14 12 10 8 6 4 2 0 1970
1971
1972
1973
1974
1975
1976
1977
1978
1979
Ano
Os mesmos filtros temáticos aplicados aos discursos na década de 60 foram utilizados nos anos 70 (ver Tabela 6); no entanto, com menos poder de síntese, pois a temática racial se torna mais variada e ampla. Enquanto nos anos 60, 62% dos discursos se referiam ao cenário norte-americano e sul-africano, a década de 70 apresenta apenas 20% de discursos com estas referências, contabilizando 15 discursos. Na década de 70, também prevaleceu nos pronunciamentos um crescente reconhecimento da existência do preconceito racial no país. Vinte e nove discursos (40%) afirmaram a existência de racismo no País, sendo que alguns discursos deste grupo alegaram que se tratava da existência de práticas residuais, resquícios racistas. Oito discursos
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ostentaram esta percepção. Já pronunciamentos que afirmaram o contrário - a inexistência de racismo - tiveram 20 ocorrências (27%), sendo que oito destes discursos ostentaram a visão isolacionista. Somando separadamente os discursos que defendiam a existência apenas dos resquícios racistas no País, chegamos ao total de 16 discursos (22%). Discursos que defenderam a existência do preconceito econômico em detrimento do racial ocorreram quatro vezes (5%) e pronunciamentos com conteúdo denunciatório ocorreram 15 vezes (21%). Agora, no que tange os assuntos específicos da época, vários discursos se referiram aos Acordos de Cooperação Técnica entre o Brasil e vários países africanos ocorridos em 72 e 73, o que resultou também em ponderações dos oradores acerca das relações raciais e do papel do negro no País. Onze discursos (15%) se referiram a esta temática. Vários discursos discutiram a eficácia da Lei Afonso Arinos e, inclusive, as propriedades do Projeto de Lei nº. 3425/66 de autoria do Senador Bezerra Neto que propunha alterações na lei citada. Este grupo conta com dez discursos (14%). Por último, datas comemorativas como o Dia Internacional para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação (21 de março) - com oito referências (11%) - e Abolição da Escravatura (13 de maio) - com quatro referências (5%) -, também receberam vários discursos, distribuídos em vários anos, se desdobrando em pronunciamentos acerca da realidade racial da atualidade da época.
Tabela 6 – Classificação dos discursos por filtros temáticos na década de 70 Filtros Não há racismo Há racismo África do Sul Estados Unidos Isolacionismo Preconceito econômico Denúncias Acordos Brasil e África Lei Afonso Arinos
Nº de ocorrências
%
20 29 11 4 16 4 15 11 6
27% 40% 15% 5% 22% 5% 21% 15% 8%
Harmonia Racial
O discurso da harmonia racial dos anos 70, em seu conjunto, muda levemente de conteúdo em relação ao dos anos 60. Protestos e denúncias contra atos racistas prevaleceram em relação ao discurso da harmonia incontestada, proferida de forma entusiasta e sem referência a nenhum conflito racial, uma narrativa típica dos anos 60.
50
Vários discursos na década de 70 frisam a existência de discriminações; no entanto, predomina uma visão otimista e confiante na superação dos conflitos raciais. Estes discursos, normalmente depois de considerações severas sobre atos racistas, recaíam nas percepções clássicas como o racismo enquanto resquício, o preconceito econômico suplantando o racial ou que a índole brasileira era incompatível com a prática do racismo. Alguns, menos otimistas, chegaram a apontar a possibilidade de um recrudescimento nas relações raciais no País, como se a sociedade brasileira fosse portadora inata de valores fraternais, tolerantes e anti-racistas. O deputado Júlio Viveiros (MDB-PA, 44ª Legislatura) inaugura a amostra da década em um discurso de revisão de vários pontos de vistas recorrentes na Câmara dos Deputados acerca do racismo no Brasil. A concepção do orador foi a de que, em comparação com as leis racistas da África do Sul e com o cenário norte-americano, no Brasil não havia racismo oficializado nem ostensivo, mas que estava disseminado no “plano particular”:
“Mesmo que não haja racismo no plano global da sociedade, ele pode ser encontrado freqüentemente no plano particular.”61
E em seguida:
“Pode se constatar sua existência no Brasil na medida em que os negros tentam romper barreiras sociais, como entrar em clubes fechados, escolas particulares, e até portaria de edifícios.”62
O orador também dialogou com a corrente que reduzia o racismo ao preconceito social (ou preconceito econômico, preconceito de classe e outros termos utilizados para designar a mesma idéia), dizendo que alguns achavam que os negros estavam em posições sociais historicamente prejudicadas, e outros reconheciam que a raça agravava as possibilidades de ascensão. Ostentando posição de moderador de uma discussão, o deputado chamou atenção para a visita que o Senador norte-americano Robert Kennedy fez ao Brasil, em que, durante passagem em uma universidade particular no Rio de Janeiro, foi perguntado pelos estudantes em tom provocador como ele explicava a presença de um racismo tão perverso nos Estados Unidos. O Senador antes de responder, perguntava por que não encontrava nenhum negro naquela universidade. Tal relato fez o deputado concluir:
61 62
Diário da Câmara dos Deputados. 8 de junho de 1971, p. 1649. Diário da Câmara dos Deputados. 8 de junho de 1971, p. 1649.
51
“A verdade é que todos nós temos um pouco de preconceito racial; seja na amizade, na conversa, nas leis, ou mesmo no amor.”63
Discursos de reconhecimento de conflitos raciais no Brasil, como o de Júlio Viveiros, predominaram na década. E como exposto antes, com nuances nas definições de racismo e nas percepções da forma como se deflagrava o problema no País. Por outro lado, discursos que atestavam a inexistência do problema, os discursos completamente harmônicos, não desapareceram. Em virtude dos acordos diplomáticos que o Brasil estava fazendo com países africanos, alguns deputados se pronunciaram elogiando a atitude do Governo e desdobrando seus elogios em percepções acerca das relações raciais no País. Antônio Bresolin (MDB-RS, 44ª Legislatura), em maio de 1973, com entusiasmo perante os acordos, afirmava o aspecto harmônico das relações raciais no Brasil: “Mas, Sr. Presidente, o que há de mais importante neste Acordo64 é justamente a linha de comportamento do Brasil - aquilo que tive oportunidade de destacar reiteradas vezes desta tribuna - um País por excelência democrático em seu sentido amplo e profundo. Aqui não existe discriminação de raças; aqui todos vivem na mais perfeita harmonia.”65
Mais à frente, fazendo comparação com a visita que realizou à Alemanha em 1967, na qual presenciou preconceitos religiosos entre católicos e protestantes, afirmou que no Brasil também não havia preconceito religioso:
“No entanto, aqui, de um recanto ao outro da nossa Pátria, convivem, na mais perfeita comunhão de pensamento, católicos, protestantes, espíritas, enfim, religiões as mais diferentes do mundo, e todos vivem em comunidade, respeitando os princípios de cada um.”66
A harmonia racial no discurso do deputado vem acompanhada da apologia à influência do negro brasileiro. Exalta a influência negra na literatura, poesia, música e carnaval. No entanto, a figura que o orador escolheu para representar a força da influência negra é a de Castro Alves. Contraditoriamente, a única referência que o autor destaca é a de um poeta branco.
63
Diário da Câmara dos Deputados. 8 de junho de 1971, p. 1649. Ele não especifica a qual país se refere. 65 Diário da Câmara dos Deputados. 16 de maio de 1973, p. 1453. 66 Diário da Câmara dos Deputados. 16 de maio de 1973, p. 1453. 64
52
Em outros discursos realizados no mesmo ano, o orador retoma os elogios aos acordos que estavam sendo feitos, frisando os mesmos pontos: harmonia racial e a influência negra na poesia, literatura, música e carnaval, adicionando futebol e folclore. De fato, o orador folcloriza o negro, pois todos seus discursos (com exceção de um que não tange o assunto) ressaltam apenas estas influências, tratando-o como artefato cultural, não recorrendo a nenhuma outra narrativa que pudesse conter as revoltas de senzalas, relatos da resistência negra, reconhecimento do negro enquanto ator e reivindicador de transformações. Além de citar Castro Alves, Antônio Bresolin (MDB-RS, 44ª Legislatura) também fez referências a Gilberto Freyre e sua obra Casa Grande e Senzala, enquanto produção que analisaria de perto o Brasil colonial e a escravatura, o que inspirava vários oradores na narrativa harmônica. O deputado não foi capaz, no entanto, de fazer referência a nenhum negro ilustre, apenas levantava a imagem folclorizada, afirmando a presença da influência negra67. Por outro lado, Antônio Bresolin (MDB-RS, 44ª Legislatura), em sua visão harmônica, faz uma ruptura com um pensamento muito comum nos anos 60. Rompe, mas não como elemento central de suas exposições, com a idéia de que a harmonia racial começara já na chegada dos portugueses ausentes de preconceitos de raça. Em maio de 1973, entre os vários discursos proferidos sobre os acordos diplomáticos, o deputado enquadrou a Abolição como um marco, pois a partir de então fora permitida a influência negra na cultura do país. Antes, esta teria ficado restrita à agricultura. Argumentava: “Durante longos anos o negro, no Brasil, serviu de braço, enquanto o português era a cabeça.”68 Nesta narrativa, portanto, o paraíso racial desloca sua fundação na história, passando de um marco essencialmente mítico (a chegada dos portugueses no Brasil) para um marco efetivamente político. No entanto, não faz referência à forma como ocorreu a mudança deste cenário - a como o negro passou do papel de escravo à convivência harmônica com os brancos a partir da libertação. Os Acordos de Cooperação Técnica que tanto elogiava Antônio Bresolin (MDB-RS, 44ª Legislatura) também significavam para o orador um ato de justiça em relação à África e aos absurdos cometidos contra o seu povo e, assim, os acordos expressariam, também, o respeito do qual o negro brasileiro era digno. Em outubro de 1973, argumentava:
67 68
Diário da Câmara dos Deputados. 18 de maio de 1973, p. 1549. Diário da Câmara dos Deputados. 18 de maio de 1973, p. 1549.
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“Acho que nós, brasileiros, que não temos cor tisnada de negro, mas que cultivamos os mesmos sentimentos deles, devemos fazer justiça a essa raça que tanto foi massacrada em outros tempos. Entretanto, hoje reconhecemos sua presença em nossa pátria como a de um elemento de excepcional importância.”69
Helbert do Santos (ARENA-RS, 44ª Legislatura), em outubro de 1974, elogiando evento ocorrido no Rio Grande do Sul de comemoração da presença de pioneiros e descendentes da raça negra naquele Estado, e, ao mesmo tempo, elogiando os acordos diplomáticos realizado entre Brasil e países africanos, frisou também em sua narrativa que a Abolição não só fora o marco para a libertação plena dos negros, como também possibilitara o esquecimento do sofrimento dos antepassados escravizados:
“Da condição sub-humana das senzalas, dos ‘galpões de fundo’, das antigas fazendas, do trabalho primário das lavouras, do mandalete e da atividade doméstica, da vergonha do pelourinho e da hediondez do azorrague, este grupo emergiu para a participação livre e plena, generosa na sua capacidade de esquecer o sofrimento de seus antepassados e magnificamente humana e nacional no despertar do seu amor ao Brasil.”70
Helbert dos Santos (ARENA-RS, 44ª Legislatura), de forma semelhante a Antônio Bresolin (MDB-RS, 44ª Legislatura), definia a libertação dos escravos também como marco inicial da influência negra “no folclore, nas artes, na ciência, no Parlamento, no funcionalismo público, na indústria, no magistério, na cultura, no trabalho comum, nas profissões liberais, nas Forças Armadas e, mais do que isso, em todos os acontecimentos históricos da nossa Pátria”.71 No que tange à presença dos negros nos espaços citados, é uma afirmação extremamente infundada, pois os incluía em espaços dos quais de fato estavam excluídos. Lázaro de Carvalho, em maio de 1979, em discurso que já não se tratava dos acordos diplomáticos, mas sim sobre a Abolição, também retratou a data enquanto marco efetivo de mudança para os negros “vocacionados para a democracia racial”:
“Queremos também relembrar a assinatura da ‘Lei Áurea’, pela princesa Isabel, cognominada ‘A Redentora’, que, alforriando os últimos cativos nesta grande Pátria, demonstrava a sua vocação maternal, consagrando-se no gesto, que implicava uma verdadeira abdicação ao trono, como a benemérita de uma raça e verdadeira rainha dessa nobre gente, vocacionada para a democracia racial.”72
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Diário da Câmara dos Deputados. 24 de outubro de 1973, p. 7768. Diário da Câmara dos Deputados. 4 de outubro de 1974, p. 7896. 71 Diário da Câmara dos Deputados. 4 de outubro de 1974, p. 7896. 72 Diário da Câmara dos Deputados. 16 de maio de 1979, p. 3915. 70
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O marco da Abolição também recebeu outras interpretações que serão analisadas posteriormente. Interpretações menos harmônicas e que contestavam o valor de seu significado para os negros do Brasil. O deputado Vasco Neto (ARENA-BA, 44ª Legislatura), em maio de 1973, elogiava também a influência negra no Brasil e apoiava, também, os Acordos de Cooperação Técnica. Referiu-se à influência do negro nas artes e no folclore, como era comum, mas também fez homenagem ao Candomblé e à Menininha do Gantois, sendo o primeiro deputado da amostra a fazer referências a alguma religião afro-brasileira. Um aspecto destoante na percepção deste orador em relação aos demais discursos sobre a harmonia racial é a inversão de papéis entre o português e o negro na realização da democracia racial. O papel de elástico, fraterno e ausente de preconceitos, características sempre atribuídas ao português, o motor da miscigenação, é passado ao negro e ao seu berço, a África: “Com o seu suor e seu sangue, a África muito contribuiu para o progresso do Brasil, legando-nos uma democracia racial que começou precisamente nos atos de amor.”73
Discursou também em defesa da aproximação do Brasil com países africanos e especialmente a Nigéria o deputado JG de Araújo Jorge (MDB-GU, 44ª Legislatura), em maio de 1973. Ressaltando a importância da presença negra no País, afirmou que o contingente negro formava metade da população (11% pretos, 37% mestiços), dados retirados do Censo de 1960. Assim, citou vários negros ilustres e intelectuais brancos que, segundo ele, contribuíram para o conhecimento da influência negra, entre eles Gilberto Freyre. Criticando Gobineau e Ribeirolles, escritores que depreciaram o componente negro, afirmou que o Brasil era uma democracia racial e o fez citando Gilberto Freyre:
“Como disse Gilberto Freyre, em sua ‘Sociologia’, somos uma democracia racial. Graças a Deus, aqui não distinguimos os homens pela cor da pele, mas pelo seu caráter, pelo que representam como elementos humanos em nossa formação, pela sua constituição válida à civilização brasileira.”74
Além dos discursos sobre os acordos diplomáticos, vários pronunciamentos realizados em virtude do Dia Internacional pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação ostentaram uma visão harmoniosa do país e com várias considerações acerca desta “original característica” brasileira. Adalberto Camargo (MDB-SP, 45ª Legislatura), em março de 1976, 73 74
Diário da Câmara dos Deputados. 26 de maio de 1973, p. 1863. Diário da Câmara dos Deputados. 26 de maio de 1973, p. 1863.
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expôs discurso do então Presidente do Supremo Tribunal Federal, Djaci Falcão, realizado em conferência no Itamaraty ocorrida no mesmo mês. O discurso sustentou a existência da harmonia racial brasileira, primeiramente, frisando a originalidade brasileira e a convivência entre as raças: “Na linha de uma diretriz natural e espontânea, vinculada a nossa formação étnica, com raízes, principalmente, portuguesas, autóctones e africanas, que geraram a civilização brasileira, temos sido exemplo dos sentimentos de respeito e de amizade aos nossos irmãos, sem distinção de raça. Assim permanecemos neste mundo de hoje, em que diminuem as distâncias e aumenta a interdependência entre os povos. Ao lado da consideração mútua e da igualdade jurídica no trato com os outros Estados, cultivamos o respeito aos princípios fundamentais da convivência entre os seres humanos, na primazia da ordem da criação.”75
Em seguida elogiou a miscigenação:
“Mercê de Deus, podemos afirmar que em nosso país não convivemos com o difícil problema racial. A nossa formação étnica e cultural, caracterizada por um admirável processo de miscigenação, formado pelo índio, pelo negro e, sobretudo, pelo branco português com o seu espírito desbravador, antropológica e culturalmente mestiço, gerou o sal da integração, a refletir beneficamente na vida social e na vida política da Nação.”76
Este discurso focou, como principal promotor da tolerância, o português, pela suposta capacidade de se misturar com outros povos. O discurso também registrou como algo excepcional a unidade lingüística e ausência de minorias nacionais:
“É com natural orgulho e espírito de justiça que registramos, inclusive, a inexistência de minorias nacionais e lingüísticas, no imenso e invejável solo brasileiro.”77
Como nos anos 60, a unidade lingüística surge como um valoroso fato que seria característica de uma sociedade sem conflitos, omitindo qualquer possibilidade de significar o contrário, ou seja, a prática escravista perversa que desde o tráfico sistematicamente agia no intuito de desmantelar as culturas originais dos povos africanos, o que se perpetua até hoje, por exemplo, no preconceito contra as religiões afro-brasileiras. O discurso do Ministro em questão também alegava que a Lei Afonso Arinos agia como mecanismo preventivo devido ao quadro harmônico que o próprio esboçara. Por último, Djaci Falcão expôs opinião, recorrente também nos anos 60, de que o Brasil aderira 75
Diário da Câmara dos Deputados. 24 de março de 1976, p. 1277. Diário da Câmara dos Deputados. 24 de março de 1976, p. 1277. 77 Diário da Câmara dos Deputados. 24 de março de 1976, p. 1278. 76
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naturalmente, devido a sua formação anti-racista, à Convenção Internacional sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial:
“Inspirado nas raízes da sua formação e nas convicções cristãs que aqui se edificaram é que o Brasil, pairando acima de qualquer forma de distinção e restrição racial, aderiu naturalmente à Convenção Internacional sobre Eliminação das Formas de Discriminação Racial, projetando no plano internacional a sua benéfica experiência interna.”78
As “convicções cristãs”, “espírito cristão” e outros termos similares aparecem reiteradas vezes nos discursos da harmonia racial, tratando-se de outro aspecto extremamente contraditório nestas narrativas, assim como a apologia da unidade lingüística. Omite-se com naturalidade que o “espírito cristão”, as “convicções cristãs” legitimaram a escravização de povos considerados inferiores, e, de fato, não reconheciam nem respeitavam as crenças e religiões indígenas e africanas. Antônio Bresolin (MDB-RS, 44ª Legislatura), como visto anteriormente, afirmava a ausência de preconceitos religiosos no país e, no entanto, naturalmente, também omitia o desrespeito e repressão ao qual os cultos afro-brasileiros estavam e foram submetidos. Em março de 1977, nas comemorações da mesma data, Carlos Santos (MDB-RS, 45ª Legislatura), em discurso de protesto contra a segregação racial na África do Sul, também reiterava a posição brasileira de adesão natural aos princípios pregados pela ONU no combate ao racismo:
“Por tais razões é que, de alma escancarada, que é bem o meu termo, quero, sem restrições, trazer e registrar meus aplausos à mensagem ungidas de afirmação antiracista, que é por excelência a resultante da consciência liberal do nosso povo, reflexo benfazejo de uma nacionalidade sem mácula, que nasceu soberbamente do ‘beijo de três raças’ – entre elas o negro – mensagem que o eminente Chefe da nação dirigiu ao Secretário-Geral da ONU, Kurt Waldheim, ao ensejo da expressiva celebração mundial, significando pública condenação aos menestréis barulhosos dos Direitos Humanos, que oferecem como fundo sonoro de suas liras o brado revoltante dos negros mergulhados no mais torpe sistema de segregação racial.”79
Aloísio Santos (MDB-ES, 45ª Legislatura), também em março de 1977, em virtude das comemorações, leu e endossou carta do Presidente Geisel a ONU, a qual afirmava:
78 79
Diário da Câmara dos Deputados. 24 de março de 1976, p. 1278. Diário da Câmara dos Deputados. 23 de março de 1977, p. 1220-1221.
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“Oferecemos contra esse quadro [de discriminação racial], que infelizmente perdura, o exemplo de uma sociedade formada pela espontânea e harmoniosa integração de muitas raças, integração que é a própria essência da nacionalidade brasileira.”80
A carta também afirmava que o negro teve uma recepção fraterna em terras brasileiras, outra narrativa muito recorrente também nos anos 60:
“Os nossos irmãos sofredores, tão duramente perseguidos em longínquas plagas do além-mar, receberam a solidariedade dos povos do mundo. A solidariedade daqueles que convivem fraternalmente com o homem de cor; que vêem seus filhos crescerem juntos, suas famílias se unirem no casamento e seus interesses defendidos por uma só justiça; que compartilham juntos das alegrias e tristezas da vida, das liberdades garantidas pelos direitos humanos e dos direitos de participarem da vida pública. A solidariedade da própria justiça divina que inspirou a comemoração daquela data.”81
Ary Kffuri (ARENA-PR, 45ª Legislatura), em abril de 1977, também em apoio à carta do Presidente enviada à ONU, fez apologia à miscigenação, a “dádiva” que não permitiu a existência do racismo no Brasil e que fomentava o florescimento de um “povo vitorioso”. A percepção do orador atribui à miscigenação um resultado exitoso, o que nos remete ao otimismo e entusiasmo dos teóricos do embranquecimento que enxergavam na mistura de raças a solução para a “mancha negra” do País. No entanto, o êxito da miscigenação sofre um deslocamento ou uma ampliação de significado, pois na concepção deste orador e de demais oradores, a mistura de raças teria intrinsecamente conteúdo anti-racista:
“Nação com apenas 477 anos de existência, a sua gênese já indicava uma democracia racial nascente, pois o tranqüilo processo de caldeamento das etnias assegurava o êxito de miscigenação de um povo vitorioso diante de todas as experiências da História.”82
O Brasil não era uma democracia racial, mas incontestavelmente se tratava de um País que sistematicamente alegava no contexto diplomático ser um paraíso racial. Além da carta do Presidente Geisel enviada à ONU, tivemos o exemplo também do deputado Pedro Colin (ARENA-RJ, 45ª Legislatura), que, em agosto de 1977, em discurso de prestação de contas da sua participação na XXXI Assembléia Geral da ONU, discursava sobre a posição do Brasil em relação aos conflitos raciais no mundo:
“O Brasil vem apoiando as duas correntes básicas da África Moderna: a liquidação do colonialismo e o combate aos regimes racistas da África austral. Entre as duas 80
Diário da Câmara dos Deputados. 23 de março de 1977, p. 1299. Diário da Câmara dos Deputados. 23 de março de 1977, p. 1299. 82 Diário da Câmara dos Deputados. 16 de abril de 1977, p. 1755. 81
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correntes flutua o problema da Namíbia. Não temos dúvida em falar claro, nesse particular.”83
Mais à frente, o deputado desenvolveu outro significado para a relação diplomática entre o Brasil e países africanos. Antes, o que era um reconhecimento da contribuição africana e, segundo Antônio Bresolin (MDB-RS, 44ª Legislatura), até uma retratação à escravidão, passa a ter outro significado nas palavras de Pedro Colin (ARENA-RJ, 45ª Legislatura):
“O que significa, hoje em dia, a África para o Brasil? A resposta mais imediatista é que se trata de um grande mercado, a ser conquistado.”84
O deputado fez relatório de todos os votos do Brasil na questão racial. Inúmeras resoluções de punição a crimes raciais cometidos pela África do Sul e pelos colonialismos: “Votando essas Resoluções, o Brasil rejeita a política do apartheid, tal como praticada pelo Governo da África do Sul, juntando sua voz ao repúdio universal que a mesma vem merecendo no concerto das nações.”85
Continua:
“Durante a XXXI Assembléia-Geral, o Brasil reiterou sua posição, firmemente contrária a qualquer espécie de discriminação racial, condenando, expressivamente, o regime do aparteísmo, atitude que tradicionalmente vem seguindo.”86
Ostentou posição de que a índole brasileira rejeitava o racismo: “A posição do Brasil, na matéria, finda-se na rejeição consagrada pela índole e lei brasileiras, de todas as formas de discriminação racial.”87
E por último, consagrou a posição diplomática brasileira:
“O Brasil, dessa forma, apóia todas as medidas apropriadas e tomadas, tanto no foro das Nações Unidas como noutros plenários internacionais, com vistas à eliminação da política do apartheid, identificando o racismo com o colonialismo e com o desrespeito aos direitos humanos.”88
83
Diário da Câmara dos Deputados. 20 de agosto de 1977, p. 6898. Diário da Câmara dos Deputados. 20 de agosto de 1977, p. 6898. 85 Diário da Câmara dos Deputados. 20 de agosto de 1977, p. 6900. 86 Diário da Câmara dos Deputados. 20 de agosto de 1977, p. 6900. 87 Diário da Câmara dos Deputados. 20 de agosto de 1977, p. 6900. 88 Diário da Câmara dos Deputados. 20 de agosto de 1977, p. 6900. 84
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Algumas narrativas da harmonia racial focaram o português e suas características diferenciais como fatores responsáveis na construção da suposta democracia racial. Em julho de 1978, Florim Coutinho (MDB-SP, 45ª Legislatura) realizou discurso em que protesta contra a interpretação racista que a imprensa em geral dava ao conflito do ex-Congo belga, o que, em seguida, o leva a fazer considerações sobre as colonizações portuguesas. Transtornado, afirmava que se desenvolvia uma imagem altamente depreciativa dos negros katangueses que realizaram massacres de populações brancas ex-colonas, e assim, argumentava que só surgiam, na imprensa, atos dos africanos revoltados, mas não se mostrava a prática até pior da colonização e da exploração empreendida pelos brancos:
“Muito haveria a dizer sobre esse assunto, que é, realmente, ‘assunto negro’, muito próprio para um livro negro. Mas não caberia em um breve pronunciamento, e por isso voltamos ao massacre dos brancos pelos rebeldes katangueses, onde se procura, ao máximo, provocar horror e revolta ante as atrocidades dos rebeldes de Katanga. Mas nunca se mostra, antes se esquece, omite-se e jamais se diz alguma coisa sobre os massacres, a escravização e as atrocidades cometidas pelos colonizadores durantes anos e anos, e até séculos. A exploração cruel dos negros sob jugo feroz e escravizados a troco de nada. Nem o direito de viverem dignamente, como gente, e em suas próprias terras, em suas pátrias. Isso nunca se mostra e sobre isso nunca se fala.”89
Referindo-se depois à repressão francesa que os katangueses estavam recebendo fez referências à diferente colonização portuguesa:
“Para terminar, queremos, aqui e agora, fazer uma referência ao velho e bravo Portugal. A terra de nossos ilustres antepassados, e da grande maioria de nossos irmãos brasileiros, a pátria que deu origem à nossa grande Pátria.”90
Prossegue:
“Portugal também teve colônias na África, e muitas. Mas o bravo povo português, inteligente, colonizador, nunca dispensou aos negros colonos o mesmo tratamento que outros conferiam. Os portugueses das colônias tratavam como gente os seus colonos, e com eles até se misturavam, produzindo gerações de mestiços que se orgulhavam de ter nas veias o sangue português.”91
Assim, finalizou fazendo apologias ao português no seu tratamento com outras raças:
89
Diário da Câmara dos Deputados. 1 de julho de 1978, p. 5929. Diário da Câmara dos Deputados. 1 de julho de 1978, p. 5929. 91 Diário da Câmara dos Deputados. 1 de julho de 1978, p. 5929. 90
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“Muito mais humanos e hábeis do que os outros, os portugueses não geravam nem alimentavam sentimentos de ódio e revanchismo. Podem ter até praticado atos cruéis, pois sempre existe gente para isso. Mas o fato é que, ao ser forçado a perder suas colônias, o que não aconteceu sem que lutasse para não perdê-las, reconheceu os novos Estados libertados e muitos portugueses neles vivem como se estivessem em sua própria pátria. Não são massacrados nem hostilizados. Quase como aconteceu com o nosso Brasil, onde os portugueses vivem como nossos irmãos, como brasileiros mesmo, pois têm todos os deveres e direitos – são cidadãos brasileiros, enfim.”92
Outra percepção fraterna do português foi esboçada por Aloísio Santos (MDB-ES, 45ª Legislatura) em maio de 1975, que, no entanto, questionava a harmonia racial como outros vários discursos que serão analisados posteriormente. A sua narrativa é de que o Brasil estava sofrendo um recrudescimento nas relações raciais, estava manchando uma contribuição histórica portuguesa de tolerância. Assim referiu-se às resistências do povo capixaba em relação a outros europeus que não os portugueses, elogiando a colonização lusa:
“Resistindo heroicamente, nos primórdios de sua História, a várias investidas de franceses, ingleses e holandeses, sucessivamente, em 1561, 1592, 1624 e 1640, o povo capixaba, desde o princípio, parece que adivinhava que era preferível, sob este aspecto, sofrer a colonização portuguesa em lugar de qualquer outra, pois que os portugueses, ainda mais do que se pode pensar, exibiram sempre, no correr da História, no Brasil, na África, na Índia e no Extremo Oriente, uma tolerância racial nunca mais decantada.”93
Ruy Santos94 (ARENA-BA, 45ª Legislatura), em novembro de 1977, também defendeu a existência da harmonia racial com um discurso regionalizado, mas discursou em nome da Bahia. O deputado parabenizou a homenagem que Carlos Santos (MDB-RS, 45ª Legislatura) fizera anteriormente à Bahia e, assim, afirmava que no referido Estado não existia racismo e que se tratava de um Estado que se orgulhava do sangue negro:
“Nós carregamos no sangue o gene positivo do negro, nós somos negros. Eu costumo mesmo dizer que há na minha alma muito da migração negra para o Brasil, e não só na minha alma, mesmo no meu corpo.”95
Em seguida:
92
Diário da Câmara dos Deputados. 1 de julho de 1978, p. 5929. Diário da Câmara dos Deputados. 22 de maio de 1975, p. 3111. 94 Ruy Santos era senador e motivo pelo qual comparecera na sessão da Câmara não fora explicitado no discurso. 95 Diário da Câmara dos Deputados. 15 de novembro de 1977, p. 3130. 93
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“Os baianos, Sr. Presidente – e sabem os que nos visitam – são a melhor demonstração da democracia racial no Brasil. É assistir a um carnaval na Bahia e ver como se misturam pretos e brancos atrás dos trens elétricos.”96
O orador proferiu seu discurso dialogando com o discurso de Carlos Santos (MDBRS, 45ª Legislatura), no qual fez reflexões sobre um ato de discriminação que ocorrera em Salvador. Alegava que a discriminação tinha motivação econômica. Dessa forma, referindo-se ao ato ocorrido, Ruy Santos (ARENA-BA, 45ª Legislatura) argumentava:
“Assim, Sr. Presidente, a Bahia não é responsável por fatos isolados. Somos uma democracia racial perfeita – repito. Temos por pretos, brancos e índios a admiração por essas três raças que fizeram, como disse Coelho Neto, ‘no beijo das três raças a criação do tipo brasileiro’.”97
E concluiu:
“Assim, Sr. Presidente, subscrevendo o protesto do nobre deputado Carlos Santos e agradecendo as suas referências à Bahia, quero dizer a S. Exa. que ele nos fez justiça, porque somos isentos de preconceitos, somos irmãos igualmente de todos que mourejam nesta terra. E a Bahia, foi ela que deu ao Brasil este produto admirável, que é a mulata.”98
Ruy Santos (ARENA-BA, 45ª Legislatura) retomou um tema presente nos anos 60 que é a adoração da mulata enquanto símbolo da miscigenação, da convivência entre as raças, “do beijo das três raças”. Esta percepção vai ser combatida por alguns deputados em discursos que serão analisados posteriormente.
Lei Afonso Arinos
A Lei Afonso Arinos (Lei nº. 1390/51) passou por uma década de provações na Câmara. Vários discursos de descontentamento com ela são levantados. Em 74, tramita pela casa a Lei nº. 3425/66, proveniente do Senado, que alteraria a Lei Afonso Arinos. As emendas atualizariam as penas pecuniárias e incluiriam proibição expressa de anúncios de emprego que exigissem condições relativas à cor, adicionando pena de prisão e perda de cargo do
96
Diário da Câmara dos Deputados. 15 de novembro de 1977, p. 3130. Diário da Câmara dos Deputados. 15 de novembro de 1977, p. 3130. 98 Diário da Câmara dos Deputados. 15 de novembro de 1977, p. 3130. 97
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responsável pelo ato, caso o criminoso fosse servidor público. O Projeto de Lei não foi aprovado99. Todos os deputados que se pronunciaram sobre as alterações foram contra a aprovação da Lei. Apenas um Deputado, Célio Marques Fernandes (ARENA-RS, 44ª Legislatura), em março de 1974, se posicionou a favor, mas posteriormente, em agosto do mesmo ano, discursou contra a aprovação do Projeto. O orador citado, primeiramente a favor, não tratava o racismo como algo presente de forma sistemática, mas argumentava que se fazia em boa hora a alteração da Lei em questão, pois os negros estariam ascendendo economicamente e vários casos de preconceito ocorriam na oferta de trabalho. Segundo o orador, a Afonso Arinos até então se adequara perfeitamente à realidade da época: “Sr. Presidente, o assunto é muito interessante. Embora não pareça, se não forem tomadas providências, no momento em que o negro adquirir situação econômica o problema surgirá em nossa Pátria.”100
Continua: “Temos vivência muito grande, não só em capitais, como no interior do Estado, e sabemos que o problema não existe no Brasil, porque o negro entre nós não adquiriu ainda situação econômica.”101
O deputado também argumentava que o processo que fez o negro estar em patamares sociais inferiores era prova de uma exclusão econômica, reiterando que no momento se fazia necessário que a Lei não permitisse preconceito na oferta de trabalho, pois os negros estariam ascendendo. Em outro discurso, em agosto de 1974, depois de o Projeto ter tramitado em várias comissões, passando por revisões, e voltando ao Plenário, Célio Marques Fernandes (ARENA-RS, 44ª Legislatura) se posicionou contrariamente às alterações afirmando que a redação original da Afonso Arinos já incluía a punição de crimes de racismo contra empregados (o que se aplicaria em anúncios de empregos). O deputado expôs, portanto, a idéia de que o negro não estaria em situação econômica que gerasse o problema racial na oferta de trabalho, contrariando sua exposição anterior, a qual afirmava que o negro já estava ascendendo:
99
A revogação da Lei Afonso Arinos ocorreu em 1990 com a promulgação da Lei Caó (Lei nº 7716/89). Diário da Câmara dos Deputados. 29 de março de 1974, p. 1156. 101 Diário da Câmara dos Deputados. 29 de março de 1974, p. 1156. 100
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“Ainda há pouco, discutíamos o caso com alguns colegas: todos sabem que, no Brasil, não existe essa situação, porque o homem de cor ainda não adquiriu status econômico. No dia em que ele tiver dinheiro, tiver bens, o problema estará criado, da mesma forma que em outros países do mundo.”102
Este argumento revela seu posicionamento altamente consciente de que a resolução de um conflito racial residia no seu silenciamento, pois conflito racial no Brasil só criaria relevo quando os negros estivessem “endinheirados”, ou seja, a situação do jeito que estava não deflagrava um cenário de discriminação racial. Uma postura literalmente racista. Em seguida, referiu-se aos atos de discriminação racial enquanto resquícios, fazendo votos de otimismo na superação deles:
“Sr. Presidente, tomara sejam resolvidos esses problemas, a fim de que tais atitudes não mais se repitam. Oxalá possamos sempre dizer que no Brasil não existe preconceito, discriminação.”103
No mesmo mês, Antônio Bresolin (MDB-RS, 44ª Legislatura), argumentando contra as alterações, apresentou uma narrativa ampliada da harmonia racial, pois adicionou inclusive a inexistência de lutas de classes.
“Isto porque, a despeito de ser uma Nação relativamente nova, o Brasil é altamente privilegiado quanto ao aspecto social. Aqui não se verificam lutas de classe, não há racismo, nem disputas religiosas, a exemplo do que ocorre em outros países de tradição mais antiga.”104
O autor argumentou também que conhecera, no sul do país, dois negros, um que falava italiano e outro que falava alemão, fatos que seriam provas da inexistência de racismo no Brasil. Novamente, estamos diante da ocorrência da noção de miscigenação enquanto dádiva e prova inconteste da inexistência do racismo. Trata-se de um argumento que busca em fatos banais provas de ausência de discriminação em inúmeras trajetórias de vidas. A referência ao negro que fala alemão ou italiano, de fato, não é suficiente para alegar a ausência de preconceitos pelo qual uma pessoa fora submetida. Da mesma maneira, a obviedade da miscigenação não é um fato que determinasse a ausência ou não de preconceitos raciais no País. Outro orador que se pronunciou contrário às alterações foi o deputado Nina Ribeiro (ARENA-GU, 44ª Legislatura), em agosto de 1974. Primeiramente, argumentava que o Brasil 102
Diário da Câmara dos Deputados. 22 de agosto de 1974, p. 6372. Diário da Câmara dos Deputados. 22 de agosto de 1974, p. 6372. 104 Diário da Câmara dos Deputados. 22 de agosto de 1974, p. 6373. 103
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não vivia o cenário de segregação racial como o existente na África do Sul e, em seguida, alegava a suficiência da Lei original:
“... esta medida, que agora é apresentada como complementação da chamada ‘Lei Afonso Arinos’, vem dar um elastério um pouco maior àquilo que o poeta e pensador Afonso Arinos de Melo Franco já havia, na sua bela iniciativa, corroborado de forma lapidar.”105
Afirmava em seguida, a existência, apenas, de resquícios racistas no País.
“Creio merecer todo o sentido de exaltação e de admiração de nós outros, na medida em que os bons brasileiros repudiam, cada vez mais, o quisto do sentimento de discriminação, que tende a separar pretos de brancos, mulatos de cafuzos, índios de asiáticos, de habitantes da Oceania ou de qualquer rincão – ‘a flor amorosa das três raças tristes’ de que nos fala o poeta.”106
O deputado retomou a idéia de que o racismo era um resquício no País, adicionando que se tratava de obra de “maus” brasileiros, que não representavam os valores do País, outra percepção muito recorrente nos anos 60. Nesta percepção, as práticas racistas, além de serem resquícios, eram praticadas por lunáticos, psicopatas, entre outros. Dessa forma, o deputado caracterizou o verdadeiro brasileiro, o bom brasileiro na sua percepção:
“A formação de nossa própria etnia, Sr. Presidente, é uma contrademonstração viril, válida, insubstituível do sentimento do bom brasileiro, no sentido de irmanar, de aproximar e de ver no preto ou no brasilíndio, um seu irmão. Por isto, não poderia ser outra a nossa consideração a esse respeito, na medida em que, corroborando a Lei Melo Franco107, possamos dar guarida aos bons sentimentos e repudiar energicamente esses empregos que, de uma maneira velada, hipócrita e disfarçada cerceiam às pessoas de cor a possibilidade de ganhar honradamente a vida.”108
O orador também relatou que presenciara ato discriminatório em restaurante e que teria se manifestado com reprovação do ato. Não se refere se recorrera à Lei Afonso Arinos que era clara na punição de crimes em restaurantes, hotéis, estabelecimentos comerciais como estes. Ou seja, a Lei que o orador sugeria ser lapidar:
“Isto existe, lamentavelmente, de maneira disfarçada, em grandes hotéis ou restaurantes, chamados de luxo. Assisti - e protestei na ocasião – a uma cena, num grande restaurante do Rio, em que o encarregação declarava a um casal de cor não 105
Diário da Câmara dos Deputados. 22 de agosto de 1974, p. 6372. Diário da Câmara dos Deputados. 22 de agosto de 1974, p. 6372. 107 Refere-se a Afonso Arinos de Melo Franco. 108 Diário da Câmara dos Deputados. 22 de agosto de 1974, p. 6372. 106
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haver mais lugar, quando várias mesas estavam vazias. Quer dizer, descaradamente não é dito o motivo principal da recusa, mas são afastados irmãos nossos, de outra coloração de pele, unicamente por esse motivo.”109
E finalizou:
“O fato existe, infelizmente, mas temos de reconhecer que a discriminação racial é comparativamente pequena, no Brasil, em relação a outras terras. Não obstante, deve ser extinta, reduzida a zero, eliminada, porque contraria o sentimento cristão, o sentimento brasileiro na sua conotação mais ampla e válida, qual seja o de estreitar, num impulso fraternal, todos os seres humanos dignos deste nome.”110
Já fora do âmbito das discussões da tramitação do Projeto de Lei 3425/66, vários discursos expuseram descontentamento com a Lei Afonso Arinos, ou então, com a interpretação que as autoridades faziam dela. Leônidas Sampaio (MDB-RJ, 45ª Legislatura), em maio de 1976, condenava ato racista no Banco Mercantil de São Paulo ao negar admissão de um concorrente negro a uma vaga. Mesmo com brilhante desempenho no concurso, o concorrente fora advertido expressamente de que não conseguiria o emprego, pois negros naquele Banco só eram admitidos nos serviços de faxina e de entrega de correspondências. Relatando e afirmando que o caso já estava sendo encaminhado à Justiça, o deputado exigiu que de fato se efetivasse a Lei Afonso Arinos:
“É necessário, Sr. Presidente, que a Lei Afonso Arinos realmente funcione, pondo fim de uma vez por todas a essa odiosa discriminação, que humilha e compromete o espírito cristão de nosso povo.”111
Em seguida, anexa ao seu pronunciamento o Editorial do Diário de Petrópolis que anuncia o crime e faz ponderações acerca da Lei em questão:
“Desde que foi criada, a Lei Afonso Arinos foi invocada três ou quatro vezes, mas os processos abertos acabaram esvaziados pela dificuldade em comprovar o crime com uma única exceção. Mas o caso do Mercantil de São Paulo se apresenta diferente, pois a orientação racista foi abertamente declinada pelo contador da casa e ouvida por outras pessoas, inclusive pelo Secretário de Serviços Públicos da PMP, Sr. Oswaldo da Costa Frias Filho.”112
109
Diário da Câmara dos Deputados. 22 de agosto de 1974, p. 6372. Diário da Câmara dos Deputados. 22 de agosto de 1974, p. 6372. 111 Diário da Câmara dos Deputados. 26 de maio de 1976, p. 4325. 112 Diário da Câmara dos Deputados. 26 de maio de 1976, p. 4325-4326. 110
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Em crítica à Lei Afonso Arinos, o deputado Carlos Santos (MDB-RS, 45ª Legislatura) também proferiu discurso em agosto de 1978. Primeiramente, discursou em prol do reconhecimento do “preconceito de cor” no País, e assim, desqualificou o uso mal feito da Lei:
“Sr. Presidente, Srs. Deputados, há muito pouco menos de um mês, em carta a Mendes Ribeiro, uma das figuras maiúsculas do jornalismo gaúcho, eu verberava o empenho ostentativo do Governo Federal, quando, frente ao indisfarçável problema do preconceito de cor no Brasil, tenta valorizar o que, em termos de expressão social, valia alguma possui, ou seja, a decantada Lei Afonso Arinos.”113
Continuando sua argumentação, esboçou um quadro em que a Lei gerava aplicação reversa, como no caso de um slogan, que continha a frase “Adote uma criança negra”. A publicidade sofreu, segundo o deputado, uma série de protestos que denunciavam ter cunho racista o conteúdo da frase. Para o deputado, a regra geral numa sociedade como a brasileira era a preferência pelos meninos brancos na adoção, o que não legava à propaganda um cunho racista. Concluiu ressaltando a necessidade de melhora e ampliação da Lei. De forma irônica criticava a ineficácia da Lei em questão:
“Disse da minha desoladora impressão, recolhida do erro grave e histórico do Governo ao julgar que, após um século quase da Lei Áurea, cem anos depois de esvaziadas as senzalas imundas, seja preocupação natural dos negros ou aspiração suprema da estirpe aforrada o simples transpor das portinholas de clubes interioranos de terceira categoria ou, quem sabe, sentar-se apenas a mesa tosca e suja dos cabarés do chão batido.”114
Edgar Martins (MDB-SP, 45ª Legislatura), em maio de 1978, proferiu discurso em que afirmava serem necessárias outras medidas além da Afonso Arinos para a superação da discriminação racial. É um discurso que condensa e mistura diversas interpretações das relações raciais no País. Ao mesmo tempo em que narrava uma estereotipia do negro enquanto povo bondoso e simples que se misturou com o português, reconheceu que o País vivia um cenário que discriminava o negro:
“Sr. Presidente, Srs. Deputados, é bom lembrar, quando se aproxima o 13 de maio, 90 anos da assinatura da Lei Áurea, fatos marcantes na vida da Comunidade AfroBrasileira, hoje miscigenada, formando uma amálgama indisfarçável, podendo até ser chamada de Afro-Luso-Brasilíndia, pois, com sua bondade e simplicidade, o negro se misturou com o português e com o índio no Brasil, formando este povo de índole boa, 113 114
Diário da Câmara dos Deputados. 3 de agosto de 1978, p. 6140. Diário da Câmara dos Deputados. 3 de agosto de 1978, p. 6141.
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jovial e agradável, qual seja o segmento do nacional que tem por base o negro, que soma em todo o território 48%.”115
Em seguida, o reconhecimento da existência de um cenário que discriminava o negro:
“É claro que já não podem ser considerados minoria (refere-se aos 48% de negros no país), mas ainda não podem participar totalmente da vida nacional, pois encontram sérias e grandes barreiras determinadas pelo preconceito de cor.”116
Continuando, o orador expôs suas preocupações com o racismo e a falta de punição:
“Caso nos silenciemos e se providências não forem tomadas, o que chamamos de exceção, atitude isolada, queixa injustificada etc. tende a se generalizar e regrediremos aos idos dos anos 20 e 30, quando a discriminação da cor era indisfarçável no País.”117
De forma contraditória, o orador deslocou o problema racial da sua prática efetiva para a demonstração dele. A não-demonstração do racismo determinaria um cenário sem conflito. Esta é uma percepção semelhante à de Célio Marques Fernandes (ARENA-RS, 44ª Legislatura), analisada anteriormente. Prosseguindo, Edgar Martins (MDB-SP, 45ª Legislatura) leu inúmeras denúncias de preconceito racial, várias das quais não foram punidas e, assim, concluiu seu pronunciamento afirmando ser a Lei Afonso Arinos incapaz de acabar com os atos discriminatórios. Chega a perguntar se no Brasil haveria preconceito ou racismo. A oposição provavelmente consistia na idéia de que o preconceito era um conceito que enquadrava a discriminação enquanto atos isolados, e racismo seria quando tais atos passavam a ser a regra:
“Cremos que a Lei Afonso Arinos é um passo, mas precisamos de mecanismos mais ágeis, adaptados à realidade brasileira. A exposição simples118 feita demonstra que há discriminação, e que pessoas estão sendo barradas no trabalho, nos clubes, nas escolas, nos hotéis etc., e não podemos esquecer que os negros têm sido para o Brasil glória nas artes, nos esportes, no cinema, no teatro, na TV, no rádio, na literatura, não se justificando qualquer atitude restritiva.”119
Em novembro de 1979, Carlos Santos (MDB-RJ, 46ª Legislatura) proferiu outro discurso de descontentamento com a Lei Afonso Arinos. O deputado questionava os motivos
115
Diário da Câmara dos Deputados. 13 de maio de 1978, p. 3509. Diário da Câmara dos Deputados. 13 de maio de 1978, p. 3509. 117 Diário da Câmara dos Deputados. 13 de maio de 1978, p. 3509. 118 Refere-se à lista de atos discriminatórios que leu anteriormente. 119 Diário da Câmara dos Deputados. 13 de maio de 1978, p. 3509. 116
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alegados pelo IBGE para a exclusão do item cor no Censo de 80. Um motivo seria econômico: a inclusão do item encareceria o custo da feitura do questionário, motivo que o próprio IBGE descartara por ser insustentável. O segundo motivo sustentava que a Lei Afonso Arinos proibia qualquer tipo de distinção racial. Dessa maneira, Carlos Santos (MDB-RS, 46ª Legislatura) afirmava que a Lei em questão, que continha conteúdo “inócuo e vazio”, pretendia punir os atos de separação, segregação e impedimento aos quais eram submetidos os negros, e não impedir relatórios estatísticos desagregados pela cor da população:
“Mas Santo Deus, a proclamada e triste inocuidade da Lei Afonso Arinos não chega ao extremo de ignorar a existência do negro, se precisamente por isso é que ela vige!”120
Em seguida:
“Apurar, registrar, proclamar quantos negros aí estão diluídos, na realidade do anonimato de 120 milhões de brasileiros, não é incluir-se naquele pressuposto legal de ‘qualquer tipo de discriminação racial’.”121
E assim, argumentou que a interpretação do IBGE é que estava sendo racista:
“Racismo bem pode ser o contrário, ou seja, riscar o negro do painel revelador da nossa realidade.”122
E ainda:
“Racismo não é dizer quantos negros tem a população brasileira, mas gritantemente o contrário: é silenciar quanto à sua participação na moldura nacional, é não dizer que eles também integram a alma da Pátria que afinal ajudaram a construir com lágrimas, suor, sofrimentos, angústia, animalidade; tudo, enfim, que definir possa a besta escravocrata.”123
Neste trecho, Carlos Santos (MDB-RS, 46ª Legislatura) questionou posições ostentadas não só pelo IBGE, mas ostentadas inclusive pelos deputados Célio Marques Fernandes (ARENA-RS, 44ª Legislatura) e Edgar Martins (MDB-SP, 45ª Legislatura). Ao
120
Diário da Câmara dos Deputados. 1 de novembro de 1979, p. 12426. Diário da Câmara dos Deputados. 1 de novembro de 1979, p. 12426. 122 Diário da Câmara dos Deputados. 1 de novembro de 1979, p. 12426. 123 Diário da Câmara dos Deputados. 1 de novembro de 1979, p. 12426. 121
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contrário destes, Carlos Santos (MDB-RJ, 46ª Legislatura) reforçou que a distinção racial não é o racismo em si, mas sim a crença na superioridade calcada na distinção.
Isolacionismo Racial
De forma a complementar a harmonia racial, os discursos isolacionistas ocorreram com grande freqüência na década. Os discursos interpretavam a existência do racismo enquanto ato de poucos, de loucos e ocorrente em apenas alguns lugares. A oposição explorada por Nina Ribeiro (ARENA-GU, 44ª Legislatura) anteriormente entre o “mau” brasileiro, a exceção que pratica o racismo, e o “bom” brasileiro, o isento de preconceitos, é várias vezes retomada, mas com inúmeras variantes. Um exemplo que expressa bem esta percepção é uma passagem do discurso de Carlos Santos (MDB-RS, 46ª Legislatura) em dezembro de 1979, em que afirmava:
“Racismo – diz Marcos Mangulies - é atitude tipicamente paranóide, como o fazem os desequilibrados neuropsíquicos. Pertence, pois, à esfera médica.”124
Edgar Martins (MDB-SP, 45ª Legislatura), em maio de 75, também percebia a prática do racismo enquanto resquícios e obra dos “maus”:
“A escravidão já não mais existe desde 1888. É lamentável, contudo, Srs. Deputados que ainda alguns maus brasileiros procurem por causa da pigmentação da pele, relegar a planos diferentes e inferiores aqueles que hoje têm herança de bravura, de trabalho, de humildade, de dedicação daqueles que vieram nos primeiros tempos para lutar pelo crescimento do nosso Brasil.”125
Em seguida, referindo-se a um ato de discriminação racial contra estudante negra em casa noturna, ocorrido em Juiz de Fora, Minas Gerais, afirmava: “Vivemos num País que abomina tais procedimentos.” O deputado Padre Nobre (MDB-MG, 45ª Legislatura), em abril de 1975, em discurso de protesto contra o mesmo ato racista referido por Edgar Martins (MDB-SP, 45ª Legislatura), afirmava que o criminoso estava desprovido de valores dos brasileiros, os quais supostamente desconheciam o racismo:
124 125
Diário da Câmara dos Deputados. 6 de dezembro de 1979, p. 14880. Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1975, p. 2591.
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“Sr. Presidente, um País e um povo que não conhecem discriminação, que não suportam classificação por raças, nem por cores, nem por religião, está a sentir e a sofrer, a assistir e a presenciar um espetáculo triste, deprimente, qual o que se fez realidade na cidade mineira de Juiz de Fora. Uma universitária, convidada por seus colegas para uma reunião em uma casa de diversões, teve a sua presença barrada por alguém que desconhece qualquer princípio humano, cristão e até o princípio sentimental do brasileiro.”126
Além de enquadrar o racista enquanto exceção que desconhecia “qualquer princípio humano”, para o orador a simples distinção de cor ou raça também já se tratava de um ato deplorável e racista, postura muito comum entre os deputados e ostentada pelo IBGE. Finalizando o discurso, Padre Nobre (MDB-MG, 45ª Legislatura) então desferiu seu protesto contra a discriminação racial:
“Fica registrado o nosso protesto. Não conheço o proprietário da tal casa noturna. Ouvi dizer que se trata de companheiro de nosso partido. Não importa. Não podemos permitir que brasileiros sejam, assim, humilhados só pelo pecado, que não cometeram, de ter pigmentação de cor que não agrade aos brancos deste país.”127
Antunes de Oliveira (MDB-AM, 45ª Legislatura), em setembro de 1977, pronunciava com percepção isolacionista também, protesto contra ato de uma transportadora de JoinvilleSC, que em anúncios de oferta de trabalho exigia como pré-requisito a característica de loiro. No discurso deste orador, a prática racista não foi atribuída aos psicopatas, mas aos imigrantes que não conseguiam coadunar com a cultura brasileira:
“Passo a outro assunto, concluindo, Sr. Presidente. Quero mais uma vez dizer que, como brasileiro, não aceito discriminações que aparecem de quando em quando. Algumas pessoas, que não revelam o sentimento de brasilidade, aparecem no Brasil – filhos ou netos de imigrante - que não compartilham com a vida brasileira, no seu sentido exato e começam a demonstrar discriminação racial. No Brasil, discriminação racial não tem nome, nem lugar. De quando em quando, surgem alguns, descendentes de alemães, de italianos, fazendo discriminação racial. Meu pai me ensinou que o Brasil é de todos. O meu avô, militar autêntico, que nunca foi militarista, dizia-me, através da Família, que discriminação racial no Brasil não tem dicionário. Não tem mesmo. Os meus antepassados tinham razão.”128
O deputado, finalizando seu discurso, referiu-se à “democracia étnica” brasileira:
“Agora mesmo, Sr. Presidente, no mês passado, falando na mais antiga Câmara Municipal das Américas, em Richmond, nos Estados Unidos, disse que uma das 126
Diário da Câmara dos Deputados. 11 de abril de 1975, p. 1326. Diário da Câmara dos Deputados. 11 de abril de 1975, p. 1327. 128 Diário da Câmara dos Deputados. 15 de setembro de 1977, p. 2435-2436. 127
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vantagens e das belezas da vida brasileira é não termos discriminação racial, é termos realizado uma democracia étnica.”129
Em março de 1976, Carlos Santos (MDB-RS, 45ª Legislatura), em comemoração ao Dia Internacional pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação, relatou o Brasil isento de discriminação racial, mas com a presença dos “quistos” racistas. É um discurso que não recorreu mais às oposições entre o “mau” - “psicopata”, exceção que praticava o racismo - e o “bom” - a predominância brasileira:
“É certo que, como Nação, o Brasil apresenta ao mundo um exemplo de multirracialismo, o que não impede, entretanto, os resquícios atávicos e isolados de pruridos racistóides, que aqui e ali agridem, de vez em quando, a nossa realidade social.”130
Também narrou a formação de um tipo único brasileiro:
“Mas este mundo, de igual forma, tem aqui o seu grande cadinho, onde homens de origens raciais as mais diversas fundam uma etnia de excelentes propriedades e que há de resultar no tipo característico do brasileiro amanhã.”131
Mais à frente, discursou especificamente sobre o dever do País em virtude da importante data e do seu papel no cenário internacional. O Brasil seria portador de uma respeitável vocação liberal e anti-racista que serviria de aprendizado para o Mundo. Por último, o autor citou Oliveira Vianna, concordando com o autor na afirmação de que o Brasil estaria criando uma “civilização, nova, original e mestiça”. Nesta passagem dá crédito, portanto, à percepção de Oliveira Vianna de que a miscigenação melhoraria o tipo racial brasileiro, posição calcada em teorias racistas ultrapassadas. Adalberto Camargo (MDB-SP, 45ª Legislatura), em agosto de 1976, também não mais atribui aos psicopatas a prática racista, mas ainda inclui os atos no campo da exceção. Discursou em protesto contra a postura de uma candidata à prefeitura de Santa Tereza – ES, a qual em entrevista afirmara que iria desenvolver o turismo da cidade, por se tratar de uma cidade de colonização européia com presença inexpressiva de pretos, pois estes não “agüentariam o frio” e eram pobres. O orador não tratou a fala da candidata enquanto uma prática racista, muito menos se referiu a uma possível punição legal, o que de fato seria praticamente impossível, pois a Lei Afonso Arinos só compreendia a punição a 129
Diário da Câmara dos Deputados. 15 de setembro de 1977, p. 2436. Diário da Câmara dos Deputados. 23 de março de 1976, p. 1220. 131 Diário da Câmara dos Deputados. 23 de março de 1976, p. 1220. 130
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estabelecimentos que recusassem por motivos raciais a entrada de pessoas, e sequer fazia referência à punição de insultos, danos morais, etc. De qualquer forma, o deputado apenas contestou a atitude da candidata afirmando que o Brasil era composto por mestiços, fato que ela desconheceria:
“Para conhecimento da ilustre cidadã - e de tantos quantos pensem como ela – este País é uma sociedade multirracial e multicor. Para confirmar a gama da etnia brasileira, o ex-Chanceler Gibson Barbosa afirmara certa feita em um discurso ‘nós somos um País de mestiços’. Portanto, todas as raças e nacionalidades para aqui vieram com um só espírito: construir uma sociedade aberta e democrática, que fosse mutuamente vantajosa para todos, sem ódios, sem rancores, sem preconceitos de quaisquer espécies.”132
Em outro discurso, em março de 1978, o mesmo deputado registrou posição semelhante à anterior. Em memória do Dia Internacional para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação, fez votos de otimismo para a superação do racismo (ou dos resquícios, como transparecia em seus discursos) no Brasil: “As leis que regulam nossos atos não criam, não toleram ou perpetuam tais discriminações.”133 Em seguida, argumentava que esta data deveria ser lembrada nacionalmente, inclusive nas escolas, pois estas, na sua percepção, sequer ensinavam qualquer coisa sobre a “cultura de várias raças” e sobre a perversidade do racismo. Dessa forma, registrou: “Que a data de hoje sirva, pelo menos, de advertência a todos aqueles que consciente ou inconscientemente, usam a prática da discriminação racial em nosso País como meio de superioridade.”134
O deputado em questão proferiu outro discurso com mesma percepção, em agosto de 1978, mas com maior otimismo, pois calcou no sucesso de Menezes Campos, a primeira negra a ingressar no Instituto Rio Branco, uma prova de superação do racismo naquela Instituição:
“Sr. Presidente, Srs. Deputados, fato auspicioso acaba de ocorrer para a comunidade afro-brasileira: uma de suas representantes, a jovem Mônica de Menezes Campos, classificou-se no concurso vestibular do Instituto Rio Branco, erradicando de vez os últimos resquícios discriminatórios de cor que porventura insistiam em sobreviver nos meios diplomáticos do país.”135
132
Diário da Câmara dos Deputados. 13 de agosto de 1976, p. 7267. Diário da Câmara dos Deputados. 22 de março de 1978, p. 949. 134 Diário da Câmara dos Deputados. 22 de março de 1978, p. 949. 135 Diário da Câmara dos Deputados. 3 de agosto de 1978, p. 6141. 133
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Assim, também com uma visão extremamente otimista, o deputado alegou que houve uma mudança na Comunidade Afro-Brasileira que, conscientizada, começava a ocupar posições sociais. A prova dessa mudança residia também no caso de Mônica de Menezes, um álibi, a exceção. Assim, expõe sua percepção da mudança que ocorrera, primeiramente, fazendo referência a discriminações anteriores no Itamaraty:
“Um jovem de cor – José Pompílio da Hora – há anos, após aprovação do Instituto Rio Branco, sentiu a discriminação e resolveu desistir do curso.”136
E concluiu:
“Hoje, todavia, as variáveis mudaram. A comunidade afro-brasileira, conscientizada política e socialmente – do seu valor, procura disputar, em igualdade de condições com representantes de outras etnias, o que pode conseguir de fato e de direito em sua mobilidade social vertical - e Mônica constitui uma comprovação dessa assertiva.”137
Adalberto Camargo (MDB-SP, 46ª Legislatura), em seu último discurso da amostra, em junho de 1979, reiterou sua percepção isolacionista do racismo no Brasil. Discursou em protesto contra ato de discriminação racial contra um empregado de firma terceirizada da PETROBRÁS. O empregado sofria preconceito por parte do chefe de ascendência portuguesa. Assim expôs sua percepção do problema:
“Sr. Presidente, Srs. Deputados, persistem em alguns pontos do País desagradáveis fatos de preconceitos raciais.”138
Em seguida:
“Tais fatos, Sr. Presidente, infelizmente continuam sendo detectados em alguns pontos de nosso Território.”139
Aqui, o resquício do preconceito acontece apenas em alguns lugares, o que sugere uma visão do conflito racial mais limitada e isolada ainda. Em agosto de 1979, Carlos Santos (MDB-RS, 46ª Legislatura) proferiu outro discurso isolacionista protestando contra ato de discriminação racial. Uma advogada negra foi
136
Diário da Câmara dos Deputados. 3 de agosto de 1978, p. 6141. Diário da Câmara dos Deputados. 3 de agosto de 1978, p. 6141. 138 Diário da Câmara dos Deputados. 21 de junho de 1979, p. 6226. 139 Diário da Câmara dos Deputados. 21 de junho de 1979, p. 6226. 137
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impedida de entrar no elevador social em um prédio de São Paulo e assim recorreu à Lei Afonso Arinos:
“Daí a inconformidade que em mim explode em arroubos de indignação cívica contra as manifestações racistóides que aqui e ali, de quando em vez, repontam entre nós, ao arrepio do mandamento expresso da Carta Magna, que proclama igualdade de todos perante a lei, apesar do guante punitivo do diploma feito para reprimir as abjeções doentias do racismo, ou seja, a Lei Afonso Arinos.” 140
O deputado também justificou sua insistência em tratar do assunto na Câmara devido ao fato do tema da questão racial quase não existir na casa:
“Tão-somente por isso, Sr. Presidente, é que sob o impulso da mais justificada e sadia solidariedade de sangue, não raro ocupo a tribuna do Congresso trazendo como assunto o problema do negro brasileiro, problema que o Governo insiste em manter como tabu, preferindo quase ignorá-lo, mas que, ao contrário, deveria ser permanente e aberta preocupação oficial, disposição escancarada de combatê-lo com eficácia, como imperativo até da própria unidade da Pátria.” 141
O deputado Ricardo Fiúza (ARENA-PE, 46ª Legislatura), no mesmo dia, congratulou discurso e texto publicados (texto que será analisado posteriormente) de Carlos Santos (MDB-RS, 46ª Legislatura) sobre o episódio. O orador, ao garantir que o Governo iria cobrar a apuração do ato de discriminação racial, expôs sua percepção sobre o ato contra o qual protestava:
“A Liderança da ARENA se incorpora ao pronunciamento de S. Exa., e tomará medidas para que o Governo corrija essas distorções, esses absurdos, que não partem - com certeza - da alma brasileira, e sim de distorções de pessoas que não merecem ser brasileiras.”142
Ricardo Fiúza (ARENA-PE, 46ª Legislatura) ainda recorreu à noção de que a pura alma brasileira não era responsável pelos atos dos antibrasileiros racistas. Como se viu, os discursos isolacionistas se calcavam em vários elementos, frisando o aspecto de exceção do ato. Buscando uma narrativa única desta percepção para o conjunto dos discursos da amostra, podemos extrair o seguinte resultado: o racismo seria uma prática residual, praticada por exceções, limitada geograficamente e em sua ocorrência no tempo.
140
Diário da Câmara dos Deputados. 17 de agosto de 1979, p. 1561. Diário da Câmara dos Deputados. 17 de agosto de 1979, p. 1562. 142 Diário da Câmara dos Deputados. 17 de agosto de 1979, p. 1562. 141
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Preconceito Econômico
Assim como nos anos 60, os discursos que afirmavam que o preconceito econômico suplantava o preconceito racial surgiram em número reduzido (ver Tabela 6). Francisco Amaral (MDB-SP, 44ª Legislatura) inaugurou essa percepção na amostra em outubro de 1973. O deputado não se referia especificamente ao preconceito racial que atingia os negros, discursava sobre o preconceito contra judeus, e assim afirmava:
“Somos à mercê de Deus, um povo que não pratica o racismo. Entre nós aquilo que diferencia não é a raça, nem a cor, nem a religião, nem a política; é mais do que tudo, a situação econômica.”143
Em novembro de 1977, Carlos Santos (MDB-RS, 45ª Legislatura) discursou em homenagem à Bahia com percepção semelhante à de Francisco Amaral (MDB-SP, 44ª Legislatura). Ao citar um episódio de discriminação racial ocorrido em um hotel de Salvador, afirmava que o discriminado, ao invés de recorrer à Lei Afonso Arinos, resolveu dizer que era filho do Pelé, e assim, teve o melhor dos tratamentos no hotel, o que levou o orador a concluir:
“É que de toda a ocorrência, indiscutivelmente e de forma objetiva, comprovado ficou que o racismo no Brasil, muito mais do que questão de matização epidérmica ou limpidez sanguínea, é um problema de bolso, é um imperativo econômico.”144
Finalizou argumentando que o negro de modo geral ainda trazia de forma estigmatizada na pele o sinal de “marginalização econômico-social”. Nesse raciocínio, o negro é indistintamente vítima de preconceito racial por ser estigmatizado como pobre, o que mudaria quando provasse o contrário. O deputado Siqueira Campos (MDB-GO, 45ª Legislatura), em maio de 1978, expôs sua percepção da questão racial no País, não em discurso, mas em aparte a um discurso de Carlos Santos (MDB-RS, 45ª Legislatura) que tangia à temática. O discurso de Carlos Santos chamava a atenção para a necessidade de reconhecimento das práticas racistas (as quais tratava como resquícios). O seu discurso gerou vários apartes. César Nascimento (MDB-SC, 45ª Legislatura) aparteou-o com congratulações e mostrando efetivo apoio à luta anti-racista. O termo que César Nascimento utilizou para caracterizar a sua percepção das relações raciais 143 144
Diário da Câmara dos Deputados. 17 de outubro de 1973, p. 7339. Diário da Câmara dos Deputados. 15 de novembro de 1977, p. 3128.
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no Brasil foi segregação racial, termo normalmente atribuído ao regime do Apartheid. Neste ponto, inseriu-se o aparte de Siqueira Campos (MDB-GO, 45ª Legislatura), o qual, de maneira sintética, alegou a ausência de segregação racial no País, sugerindo apenas a existência da discriminação social, “contra os pobres”:
“Na realidade, quando V.Exa. fere o assunto da segregação racial, também está consciente de que no Brasil não existe segregação racial; o que existe é uma discriminação contra os pretos porque são pobres, mas não quanto aos pobres por serem pretos.”145
Em agosto de 1978, Erasmo Martins Pedro (MDB-RJ, 45ª Legislatura) também proferia discurso de parabenização a Mônica de Menezes Campos, a primeira negra a passar no vestibular do Instituto Rio Branco. Para o deputado, o Brasil nunca fora racista, mas depois da Abolição ainda persistiriam alguns resquícios que eram praticados, sobretudo, nas admissões do Instituto. Assim, o deputado também creditou ao sucesso da vestibulanda a superação do racismo no Rio Branco:
“O Brasil nunca foi racista, depois de libertado da negra mancha da escravatura que envergonhou o mundo e comprometeu os chamados povos civilizados. Mas, na realidade, havia em certas camadas odiosa discriminação racial, e tanto isso é verdade que o eminente jurista Afonso Arinos, em hora de marcante inspiração, submeteu ao Congresso um projeto que se converteu em lei, punindo a discriminação racial.”146
Em seguida: “Não é segredo que o Itamaraty recusava negros. Creio que até à Justiça recorreram alguns preteridos, e a alegação maior para a recusa do ingresso de negros na diplomacia brasileira era a de que muitos países não aceitavam negros como diplomatas de outras nações. E embora reconheçamos que desde algum tempo essa restrição não mais existe, a verdade que faz do ingresso de Mônica no Instituto Rio Branco um fato transcendental, é que ela será a primeira negra da diplomacia brasileira. Libertamo-nos, assim, de um preconceito, e damos ao mundo um exemplo marcante de respeito à pessoa humana, quando nações ainda adotam a política segregacionista, como se o negro não fosse, como o branco, uma criatura de Deus.”147
Por último, endossou discurso do então Ministro das Relações Exteriores, o qual afirmava que as motivações para ausência de negros no Itamaraty não eram de ordem racial.
145
Diário da Câmara dos Deputados. 30 de maio de 1978, p. 4324. Diário da Câmara dos Deputados. 2 de agosto de 1978, p. 6050. 147 Diário da Câmara dos Deputados. 2 de agosto de 1978, p. 6051. 146
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“O Ministro Sérgio Bath, dedicado diretor do Instituto, manifestando-se sobre a falta de candidatos negros entre os aprovados nos exames anteriores, ressalvou que a ausência não se devia a uma discriminação do Itamaraty, mas era uma decorrência natural do número reduzido de pessoas de cor preta que cursam universidades em relação aos brancos.”148
À semelhança do argumento do preconceito econômico, são sugeridos motivos de ordem social para ausência de negros em posições de prestígio na sociedade. Utilizando-se de um álibi, uma exceção, afirma que teria sido superado o preconceito na Instituição e, assim, lega ao problema social da falta de escolaridade o motivo da ausência de negros no Itamaraty. O último discurso que se reporta à temática do preconceito econômico foi proferido por Carlos Santos (MDB-RS, 46ª Legislatura) em agosto de 1979. Discurso analisado anteriormente, e que também retratava o preconceito racial enquanto resquícios. O deputado protestava em relação à discriminação contra uma advogada negra ocorrida em um prédio de São Paulo. O seu pronunciamento foi acompanhado da leitura de uma matéria que o mesmo escreveu na Folha da Tarde de São Paulo, onde afirmava a existência do racismo no País:
“... em nosso País a segregação racial é proibida por lei e provavelmente os autores da ordem para que se vetasse o acesso de negros ao elevador social não conhecem a legislação a respeito. Seja como for, porém, os autores da interdição racista deveriam conhecê-la já que, de resto, fez bem a senhora em denunciar o ato atrabiliário; sua atitude deixa em aberto que o problema racial existe em nosso País e que não cabe senão enfrentá-lo, sem falsos alarmismos, é verdade, mas também com a firmeza desejável.”149
Em seguida, referiu-se à motivação social presente nas discriminações:
“Sabe-se que o racismo é muitas vezes um sintoma que não raro esconde um preconceito social. O fato é evidente no caso desta senhora: ela é advogada, conhece seus direitos e exigiu-os na Justiça. Se fosse outra a sua condição social, porém, o ensejo talvez fosse diferente. E este é um fato sintomático: pode-se supor que a democratização de oportunidades no plano social reduzirá o racismo na sua forma velada.”150
Nesta argumentação, o preconceito social prejudicaria a percepção clara de um ato racista, o que não aconteceria se as oportunidades sociais abrangessem toda a sociedade. O orador finaliza expondo seu ponto de vista acerca da prática racista velada: 148
Diário da Câmara dos Deputados. 2 de agosto de 1978, p. 6050. Diário da Câmara dos Deputados. 17 de agosto de 1979, p. 1562. 150 Diário da Câmara dos Deputados. 17 de agosto de 1979, p. 1562. 149
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“Pois uma coisa de qualquer modo é certa: o brasileiro, pela natureza de sua cultura e de sua história, tem vergonha do racismo. Pode-se dizer, a este propósito, que o brasileiro escamoteia seus preconceitos raciais para mantê-los, mas não há dúvida também de que ele os escamoteia por sabê-los incompatíveis com a cultura brasileira tão fundamente permeada pela cultura africana. Se é importante não mascarar o problema precisamente para combatê-lo em toda a sua extensão, devese convir que, por enquanto, a questão social também dilui o que poderia ser a nossa questão racial. A miséria nivela, como se sabe.”151
Neste discurso, o brasileiro ganha uma descrição contrária à da narrativa da harmonia racial em que é caracterizado por ausente de preconceito e fraterno entre todas as raças. Neste caso, o brasileiro escamoteia o preconceito por vergonha e por incompatibilidade, mas o faz para mantê-lo. O discurso também se diferenciou da noção de que a cultura brasileira é incompatível com a prática do racismo. Em muitos oradores, a sociedade brasileira já teria, em sua formação, sedimentados valores anti-racistas principalmente motivados pelos portugueses. Por outro lado, a narrativa de Carlos Santos (MDB-RS, 46ª Legislatura) frisou não necessariamente a presença de uma cultura nacional anti-racista e amplamente fraterna, mas sim uma cultura “permeada pela cultura africana”, o que constrangeria a ação discriminadora dos brancos que teriam vergonha do passado escravista.
Ampliando a questão racial
Além dos discursos tradicionalmente explorados na questão racial (harmonia racial, isolacionismo racial e reducionismo de classe), a década apresentou um leque amplo de interpretações que fugiram um pouco da rotina destes chavões. De fato, a Câmara dos anos 70 inicia uma tímida problematização da questão, pois são encontradas na amostra discursos com percepções menos entusiastas e mais focadas em análises críticas da realidade do País. Outro aspecto transparente na década é que as vozes dos movimentos negros começam a produzir eco na casa. Vários discursos serviram de portavozes de Congressos Afro-Brasileiros e, no caso da exclusão do item cor do Censo de 80, a IPCN (Instituto de Pesquisa das Culturas Negras) teve seu manifesto veiculado no Diário da Câmara. Mesmo com a tendência de reconhecimento do racismo no País, vários discursos que questionavam a harmonia racial acabavam por incorporar alguns elementos do discurso harmônico. Não raro, por exemplo, havia discursos que reconheciam as barreiras 151
Diário da Câmara dos Deputados. 17 de agosto de 1979, p. 1562.
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raciais aos quais estavam submetidos os negros em suas trajetórias de vida, mas ao mesmo tempo narrava-se um Brasil composto por três raças que fraternalmente se misturaram sem preconceitos de cor. No entanto, trata-se de discursos com percepções que não se enquadravam totalmente nas visões conceituais estritamente harmônicas. O deputado Carlos Santos (MDB-RS) foi um exemplo que expressou exatamente esse aspecto da década. Em 15 pronunciamentos, se posicionou com diversas percepções acerca da questão racial. Analisando o conjunto dos pronunciamentos do deputado, podemos, por exemplo, perceber que as narrativas do preconceito econômico e do isolacionismo ganharam corpo único em seus discursos. Sinteticamente, os atos de discriminação racial eram resquícios que eram facilmente identificados quando os atos eram praticados contra negros que estivessem em uma boa situação econômica, situação em que não havia como velar o preconceito. Portanto, ao mesmo tempo em que o deputado foi capaz de construir narrativas tão consoantes com a da harmonia racial (inclusive apologia à miscigenação), fez discursos enérgicos exigindo do Estado o reconhecimento das práticas racistas no País. Chega a citar Clóvis Moura duas vezes, ao dizer que a população negra vivia marginalizada. O deputado conseguiu condensar, em sua trajetória parlamentar na década, inúmeras percepções recorrentes acerca das relações raciais no Brasil, inclusive as simetricamente opostas. As análises a seguir, portanto, se referem a um conjunto de discursos que se diferenciaram minimamente ou amplamente dos lugares comuns dos discursos sobre a questão racial, enfatizando principalmente a crítica à narrativa harmônica.
Recrudescimento
Em maio de 1975, Aloísio Santos (MDB-ES, 45ª Legislatura) demonstrava preocupação com a discriminação racial no País. O seu discurso protestava contra crime racista ocorrido em plena comemoração dos 87 anos da abolição em Brasília. Uma senhora branca atirara na nora negra por estar grávida do filho e, também, pelo fato de o casal ter decidido se casar. A senhora matou o feto impossibilitando a nora, que conseguiu sobreviver, de ter filhos posteriormente. O orador argumentou que se tratava de um ato que merecia comparação com os atos racistas norte-americanos. Assim, afirmou que a discriminação racial no Brasil estava recrudescendo, sendo necessária uma revisão ampla da legislação.
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O deputado, como visto anteriormente, alegara que a colonização portuguesa foi preferível a qualquer outra colonização devido às características supostamente anti-racistas dos portugueses. No entanto, este legado estaria se desfazendo, e o racismo estaria recrudescendo:
“Podemos estar assistindo, sem o sabermos, ao nascimento de um desdobramento crítico social que terá, mais do que qualquer outro até aqui, profundas repercussões na vida nacional.”152
E concluiu:
“Esta Nação não resistirá ao recrudescimento, que pode estar começando agora, que nós teimamos, em nossos simplistas, convenientes ou convencionais raciocínios, em não querer antever, esta Nação não resistirá ao recrudescimento da discriminação racial.”153
Outro discurso que apresentou percepção semelhante foi a de Edgar Martins (MDBSP, 45ª Legislatura) em maio de 1978, discurso analisado anteriormente, e que também afirmava necessária a ampliação da legislação contra atos racistas.
Contestando a Abolição
Vários discursos na amostra interpretaram a Abolição da escravidão enquanto marco de transformação radical na vida da população negra, muitas vezes narrado também enquanto marco para o início da democracia racial. Alguns discursos vão contestar a imagem benevolente atribuída à data. Adalberto Camargo (MDB-SP) foi o deputado mais expressivo na contestação, o que o levou a propor um Projeto de Lei (PL nº. 138/75) que instituía o “Dia da Comunidade Afro-Brasileira”, um ato que, segundo o deputado, efetivamente homenagearia a contribuição dos afro-brasileiros. Em setembro de 1977, argumentava a necessidade de se conhecer de perto a história do povo afro-brasileiro, aludindo à necessidade de um reexame crítico da história e sociologia do afro-brasileiro. Exemplificou com Palmares, que além de ser uma sociedade de escravos fugidos, se atestava mais como uma sociedade alternativa fundada com heroísmo por pessoas “que deram a vida pela causa da liberdade”. Assim, o deputado questionou a Abolição
152 153
Diário da Câmara dos Deputados. 22 de maio de 1975, p. 3111. Diário da Câmara dos Deputados. 22 de maio de 1975, p. 3111.
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enquanto ato em prol da libertação dos afro-brasileiros, argumentando que ela não servia enquanto marco para história do afro-brasileiro:
“A Abolição, antes de ser uma dádiva, foi uma necessidade econômica. Ela teve inúmeras outras causas, mas provavelmente a última e a menos significativa foi o sentimento humanitário.”154
O orador em seguida argumentou que a Abolição não trouxera as contribuições necessárias para a real libertação dos negros. Assim, o deputado concluiu:
“A ausência de um programa de integração junto com a Lei Áurea manteve o afrobrasileiro inferiorizado.”155
Em seguida:
“Hoje, ainda temos o grosso da população afro-brasileira marginalizada. Apenas uns poucos conseguiram um lugar melhor, graças ao seu esforço pessoal, vencendo o próprio sentimento de inferioridade e a resistência consciente ou inconsciente de uma minoria da sociedade.”156
Na percepção do deputado, a dificuldade do negro em ascender é conseqüência da história de desamparo depois da Lei Áurea, do sentimento de inferioridade, da prática discriminatória de uma minoria e, por último, devido aos negros desconhecerem a história da resistência negra e, conseqüentemente, estarem desmobilizados. Utilizou-se de passagens de escritores americanos que afirmavam não haver negros em posições e cargos de prestígio no Brasil devido a essa desmobilização. Por último, o deputado discursou sobre as dificuldades de ascensão do negro brasileiro, com referência implícita à noção de “preconceito velado”:
“Não existe, é sabido, no sistema brasileiro, obstáculos que impeçam a evolução da grande coletividade afro-brasileira nos quadros sociais do Brasil, em termos de proibição. Essa evolução é permitida a todos, só que, para o afro-brasileiro, muitas das vezes, ela se torna inatingível. Esta constatação, porém, não leva a incentivar nessa coletividade, os ressentimentos justos que lhe ocorrem diante de obstáculos invisíveis, mas detectáveis à nossa sensibilidade, opostos pelo saudosismo obscuro de uns e pela deformação psicológica de outros.”157
154
Diário da Câmara dos Deputados. 1 de setembro de 1977, p. 7575. Diário da Câmara dos Deputados. 1 de setembro de 1977, p. 7576. 156 Diário da Câmara dos Deputados. 1 de setembro de 1977, p. 7576. 157 Diário da Câmara dos Deputados. 1 de setembro de 1977, p. 7577. 155
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Adalberto Camargo (MDB-SP, 45ª Legislatura) retomou suas críticas ao marco da Abolição em outros discursos, argumentando se tratar de um marco que não se realizara em sua completude. Outros deputados vão fazer críticas semelhantes, mas em discursos que abordavam também outros aspectos das relações raciais e que não tangiam apenas esta discussão, algo a ser percebido nos próximos discursos analisados.
Tabu racial
O discurso da harmonia racial foi interpretado por muitos deputados como um dispositivo de controle eficiente de um cenário de segregação racial. Alguns discursos protestavam veementemente contra o tabu colocado sobre a temática, tabu que geraria uma ampla desmobilização acerca de um problema que era evidente no País. Alegavam a necessidade de reconhecimento do racismo para a possibilidade de sua superação. César Nascimento (MDB-SC, 45ª Legislatura) foi o deputado mais expressivo na contestação da harmonia racial, da negação da existência do racismo e de outras visões que geravam suporte à noção de democracia racial. Em março de 1978, o deputado proferiu discurso argumentando inicialmente que a imagem da democracia racial fora forjada em comparação com outras sociedades e não em cima um fato reconhecido internamente: “A auto-imagem que o Brasil criou de seu sistema de relações raciais é o produto da comparação com outras sociedades multirraciais, já que nossa democracia racial, depois de acurada análise, pode ser considerada como meio cultural, dominante, cujas conseqüências têm sido a manutenção das diferenças inter-raciais completamente fora dos debates políticos, figurando como conflito apenas latente.”158
Em seguida, expôs sua compreensão da democracia racial: “Assim o mito da democracia racial tem sido usado, na prática, como sustentáculo do seu oposto.”159
Mais à frente:
“Essa imagem de harmonia étnica e racial da natureza humana do brasileiro associase, então, a um mecanismo de legitimação destinado a absorver tensões, antecipando e controlando certas áreas de conflito social.”160 158
Diário da Câmara dos Deputados. 29 de março de 1978, p. 1151. Diário da Câmara dos Deputados. 29 de março de 1978, p. 1151. 160 Diário da Câmara dos Deputados. 29 de março de 1978, p. 1151. 159
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O seu discurso também contestou a corrente que reduzia o racismo ao preconceito econômico (ou de classe, como exposto pelo orador), atribuindo característica semelhante ao discurso da harmonia racial enquanto mecanismo de controle de um conflito existente:
“Vê-se a intenção de reduzir a questão racial a um problema de classe ou estratificação social, no qual o preconceito contra o homem de cor é esvaziado de implicações raciais atribuído à posição sócio-econômica inferior que ocupa.”161
Assim como Adalberto Camargo (MDB-SP, 45ª Legislatura), o orador também registrou a necessidade de reconhecimento de uma história aprofundada dos negros brasileiros utilizando o mesmo exemplo dos quilombos, que não eram apenas comunidades de escravos foragidos, mas uma sociedade alternativa fundada por descendentes de africanos. Afirmou também que a população negra se encontrava desmobilizada e inerte, pois não conseguia se consolidar para derrotar o mito da democracia racial, pois este desarmava qualquer possibilidade de enquadrar e denunciar a realidade racista à qual estavam submetidos os negros: “A eficiência da ideologia racial existente se traduz no esvaziamento do conflito racial aberto e da articulação política da população de cor, permitindo que os componentes racistas permaneçam incontestados, sem necessidade de apelo a um alto grau de coerção.”162
César Nascimento (MDB-SC, 45ª Legislatura) também descartou a Abolição enquanto um marco divisório na qualidade de vida dos negros brasileiros. Sustentou que estruturas da escravatura, no campo do comportamento, permaneceram gerando a inaplicabilidade de inúmeros direitos aos negros brasileiros:
“A persistência, após a Abolição da escravatura, do preconceito e da discriminação racial ocorreu por não terem sido destruídas todas as estruturas do velho regime, trazendo, em decorrência, um fenômeno de demora cultural: atitudes, comportamentos e valores do regime social anterior foram transferidos e mantidos na esfera de relações raciais, em situações histórico-sociais em que eles entram em choque aberto com os fundamentos econômicos, jurídicos e morais da ordem social em vigor.”163
161
Diário da Câmara dos Deputados. 29 de março de 1978, p. 1151. Diário da Câmara dos Deputados. 29 de março de 1978, p. 1151. 163 Diário da Câmara dos Deputados. 29 de março de 1978, p. 1152. 162
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Em seguida, comparou as conquistas dos negros norte-americanos com a dos negros brasileiros, e assim, afirmou não haver comparação possível entre as duas conquistas, pois no Brasil, o negro não galgara nenhuma posição de prestígio na sociedade e inclusive na política: “Esta enumeração [de conquistas dos negros norte-americanos], talvez longa, de descendentes de africanos a conquistar altas posições nos Estados Unidos, país onde coexistem resquícios de discriminação racial, não encontra paralelismo no Brasil, eis que aqui nunca tivermos elementos de pele escura no Supremo Tribunal Federal, no Conselho Nacional da Magistratura, no Tribunal Federal de Recursos ou mesmo como Juiz Federal. Igualmente não tivemos homens de cor no Senado da República, na nossa Diplomacia, apesar de mantermos relações diplomáticas com quase cinqüenta países de ascendente África, onde poderiam prestar inestimáveis serviços ao País; não os temos também nos altos cargos do Executivo, nem entre a oficialidade de nossas Forças Armadas.”164
Concluindo, desenvolveu outra percepção semelhante à de Adalberto Camargo (MDBSP, 45ª Legislatura):
“Não temos - é verdade - leis proibindo o acesso de afro-brasileiros a funções importantes. Mas, sem proibir, elas também são omissas quanto à admissão.”
Na percepção do deputado não havia dispositivos legais e incentivos do Estado que apontavam a tentativa de superação do quadro. O orador também não poupou críticas à Lei Afonso Arinos, que a seu ver, não era um dispositivo à altura na punição do crime racial, tendo em vista a histórica exclusão dos negros. Além disso, alegou ser uma Lei de uso ineficaz: “O caso acha-se na justiça165, mas não cremos na efetiva condenação dos responsáveis, a não ser, talvez, o pagamento de multa semelhante à aplicada no caso de Juiz de Fora, o que constitui, para todos nós, brasileiros, um vergonhoso pagamento da dívida que temos com os representantes desta raça que ajudou a erigir a grandeza deste imenso país.”166
O deputado, ao finalizar todas estas considerações sobre a questão no Brasil, sugeriu como solução para o problema, a ascensão social dos negros, que, assim, galgariam posições elevadas e de poder com possibilidade de mudar o quadro:
164
Diário da Câmara dos Deputados. 29 de março de 1978, p. 1152. Referia-se a um caso de racismo ocorrido em Mogi das Cruzes, São Paulo. 166 Diário da Câmara dos Deputados. 29 de março de 1978, p. 1152. 165
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“O homem de cor brasileiro, adotando como símbolo a imagem exponencial de Zumbi, deve intentar ocupar posição de destaque nas atividades econômicas e culturais, abandonando, de vez, a posição contemplativa em que se encontra.”167
O deputado reconhece que o esforço do negro é redobrado para galgar posições sociais, e, no entanto, o único meio encontrado pelo orador para a superação do quadro de discriminação racial se resumia à determinação exponencial do negro inspirado em Zumbi para lutar contra os preconceitos e se afirmar na sociedade com um papel excepcional. Não cogita em nenhum momento a possibilidade de ações corretivas por parte do Estado. Adalberto Camargo (MDB-SP, 45ª Legislatura), em maio de 1978, também discursou com orientação semelhante à de César Nascimento (MDB-SC, 45ª Legislatura), inclusive no que tange aos meios de superação do racismo no País. Discursou de maneira contraditória, pois no início retratou o racismo brasileiro enquanto resquícios, mas mais a frente desenvolveu argumentação totalmente contrária à visão isolacionista e fez uma crítica à harmonia racial:
“... o homem de cor no Brasil ainda sofre resquícios discriminatórios e não conseguiu, praticamente, elevar-se verticalmente na escala social em igualdade de condições com representantes de outras etnias, em termos de renda, de prestígio social e de poder.”168
Continua:
“A distância econômica, social e política entre os descendentes de africanos e outras etnias ainda é grande, muito embora não seja reconhecida de modo aberto, honesto e explícito.”169
O deputado também fez comparações do racismo brasileiro em relação ao racismo oficializado: “O preconceito racial no Brasil não segrega, mas de forma velada discrimina.”170 E, referindo-se à não-participação do povo negro na vida sócio-econômica do país, concluiu:
“Constitui, portanto, manifestação convincente de um processo de discriminação muito eficiente, ainda que velado.” 171
167
Diário da Câmara dos Deputados. 29 de março de 1978, p. 1153. Diário da Câmara dos Deputados. 13 de maio de 1978, p. 3506. 169 Diário da Câmara dos Deputados. 13 de maio de 1978, p. 3507. 170 Diário da Câmara dos Deputados. 13 de maio de 1978, p. 3507. 171 Diário da Câmara dos Deputados. 13 de maio de 1978, p. 3507. 168
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Adalberto Camargo (MDB-SP, 45ª Legislatura) também sustentou que a democracia racial funcionou como dispositivo de controle do conflito racial:
“A ideologia racial que sustenta existência de uma democracia racial é muito efetiva no controle de certos tipos de conflito racial, mormente aqueles que podem se colocar a nível político. Assim, o conflito racial que tem caráter público refere-se a situações micro, ao nível de acidentes desagradáveis em relações interpessoais, sobretudo em casos típicos, em hotéis, escolas, boates e clubes, e que são muito explorados pela imprensa.”172
Em seguida:
“A forma como a própria imprensa denuncia estes tipos de incidentes reforça a idéia da harmonia racial. Está se enfatizando aquilo que é supostamente excepcional, que não é normal.”173
O deputado, por falha da memória ou por vício discursivo, não acrescentou que o próprio sustentou visões semelhantes a da imprensa em discursos anteriores, e até mesmo neste, quando afirmava contraditoriamente no início do discurso:
“Pela nossa formação, nada nos parece mais estranho e inadmissível do que fenômenos isolados de discriminação racial que ocorrem, de quando em vez, por esses brasis afora, fatos que a Assembléia Geral das Nações Unidas e a consciência de todos os povos livres tanto repudiam e procuram banir em seus últimos redutos.”174
Finalizando o discurso, Adalberto Camargo vislumbrou como meio de superação do racismo soluções semelhantes à de César Nascimento (MDB-SC, 45ª Legislatura):
“O rumo da emancipação econômica do homem de cor no Brasil só poderá se fazer através de associações que propiciem a conscientização do seu valor coletivo, que lutem tenazmente para a obtenção de igualdade de oportunidades com outras etnias, e que o próprio grupo comece sua escalada em direção a uma participação mais efetiva nas diversas profissões, na política, nas tarefas técnicas, no comércio, nas profissões liberais e na indústria, já que os altos postos na administração pública sempre lhe foram negados.”175
O orador também não sugeriu a necessidade de intervenções diretas do Estado para modificar o quadro de exclusão a que estavam submetidos os negros. Afirmou apenas a necessidade de mudança interna na população negra, uma mudança de autoconhecimento e 172
Diário da Câmara dos Deputados. 13 de maio de 1978, p. 3507. Diário da Câmara dos Deputados. 13 de maio de 1978, p. 3507. 174 Diário da Câmara dos Deputados. 13 de maio de 1978, p. 3507. 175 Diário da Câmara dos Deputados. 13 de maio de 1978, p. 3507. 173
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iniciativa. Afirmara, inclusive, que o espaço de emancipação que o negro devia procurar era nas profissões de iniciativa privada, pois os espaços públicos só lhe fechavam as portas. Marcello Cerqueira (MDB-RJ, 46ª Legislatura), em junho de 1979, discursou sobre a necessidade de democratização do País tangendo a temática racial com posicionamento de total reconhecimento do racismo no País. O deputado pregava a necessidade de uma democratização não apenas calcada em aspectos formais, ou seja, com Constituinte e Anistia, mas que havia necessidade de uma democratização que alterasse as estruturas autoritárias do Brasil que não surgiram apenas no regime ditatorial: “Sabemos que a mais ampla anistia e a Constituinte são condições necessárias para a implantação de um regime democrático. Mas a história dos ciclos de liberalismo e autoritarismo já nos ensinou que não são suficientes.”176
Assim, o orador afirmou que vários motivos históricos fizeram do país um ambiente autoritário, começando das classes dominantes com projetos liberais frágeis. Além disso, a herança escravocrata retardara os laços de convivência saudável na sociedade resultando num péssimo tratamento dispensado pelas elites em relação às camadas trabalhadoras. O deputado vai inserir a discussão sobre negro em um processo social mais abrangente, alegando que várias camadas sociais já teriam vivido dramas anteriores e até piores antes de conhecerem o autoritarismo da ditadura, e que era necessário que essa situação se modificasse juntamente com a extinção do regime: “Mas outros sinais claros de distância social não foram - e é preciso que se diga claramente - resultado do regime, nem decorrem apenas do sistema econômico. São, antes, formas retardadas de convivência social, herança amaldiçoada de uma ordem tradicional e escravocrata que estigmatiza ainda a sociedade brasileira. Percebem-se no simples trato cotidiano entre homens e mulheres de classes diferentes; no negro e no pobre tratados como delinqüentes; na empregada doméstica tida como ser infra-humano; no menor desvalido apontado como pivete; no genocídio e no etnocídio.”177
Neste trecho, o deputado discursa com especificidade apontando que tratamentos diferenciados são direcionados aos negros e aos pobres, não reduzindo a discriminação racial ao preconceito social. Finalizou seu discurso afirmando a obviedade da presença do racismo no País:
“Quem, em boa fé, desconhece que os dados censitários são absolutamente inequívocos quanto à discriminação racial contra o negro e contra o mulato? Tão claros são os dados, 176 177
Diário da Câmara dos Deputados. 21 de junho de 1979, p. 6263. Diário da Câmara dos Deputados. 21 de junho de 1979, p. 6264.
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tão bem fundados os estudos, que a situação mereceu o tratamento que só um regime autoritário pode dar. Assim, num país multirracial, suposta democracia racial, o censo de 70 não colheu informações sobre raça, e tudo indica que esta vergonhosa omissão se repetirá em 1980.”178
José Frejat (MDB-RJ, 46ª Legislatura), em setembro de 1979, discursou como portavoz do Congresso Afro-Brasileiro realizado em Uberaba no mesmo mês. Iniciou seu discurso marcando a existência do racismo no país e as posições secundárias que os negros ocupavam: “Sr. Presidente, Srs. Deputados, somos uma Nação de mestiços, onde a maioria da população, constituída de negros e morenos, vive marginalizada da riqueza que produz.”179
Em seguida: “A discriminação racial no Brasil só não existe na lei, mas é fato solar, inescondível. E os donos do poder são os responsáveis por essa situação que os favorece. Os baixos salários, os cargos menos importantes são para os negros. Com isso, lucram os empresários, as multinacionais.”180
Concluiu afirmando não haver nenhum negro em cargos políticos importantes: “Num país de negros, não temos um Presidente, Vice-Presidente, Ministro ou Embaixador negro.” O mesmo deputado no mês seguinte, em outubro de 1979, protestava contra a exclusão do item cor no Censo de 80, afirmando novamente a existência do racismo no Brasil: “Sr. Presidente, Srs. Congressistas, só não vê a discriminação racial no Brasil quem não quer”181. Em seguida se fez porta-voz de documento escrito pelo Instituto de Pesquisa das Culturas Negras encaminhado ao IBGE. O documento relatava que os relatórios estatísticos estavam ajudando a apurar uma realidade permeada de desigualdades raciais, como a PNAD de 76, que havia incluído o item: “Comprovam os dados apurados a enorme desproporção existente na posição entre as diversas categorias étnicas, na divisão do bolo econômico e social, cabendo aos negros e mestiços as sobras.”182
O documento também compartilhava da percepção de que Abolição não se realizara em sua completude: 178
Diário da Câmara dos Deputados. 21 de junho de 1979, p. 6264. Diário da Câmara dos Deputados. 13 de setembro de 1979, p. 9408. 180 Diário da Câmara dos Deputados. 13 de setembro de 1979, p. 9408. 181 Diário da Câmara dos Deputados. 18 de outubro de 1979, p. 2449. 182 Diário da Câmara dos Deputados. 18 de outubro de 1979, p. 2449. 179
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“Parece fácil concluir que não foi ainda abolida a escravidão. Os dados estatísticos dos censos anteriores foram tão expressivos quanto as diferenças sócio-econômicas entre as etnias, que os responsáveis pelo levantamento destes dados estão alarmados com o aprofundamento das diferenças constatadas a cada década que passa.”183
Em seguida o documento denunciou a ausência de representantes negros no Estado:
“Procura-se omitir nas estatísticas o fato vergonhoso de uma etnia formadora da nacionalidade, constituída de negros e mestiços, estar totalmente alijada do processo decisório sobre seu próprio destino. No Congresso Nacional, a proporcionalidade étnica é um exemplo gritante. Em todos os órgãos do poder econômico, político e cultural, a sociedade é representada apenas por não negros.”184
O documento também afirmava que a omissão do item não só remetia à vontade de mascarar uma realidade desigual, mas como omitir a existência da população negra formadora do Brasil:
“A retirada do item cor dos Censos de 1970 e 1980 demonstra o caráter manipulador desta política deliberada de escamoteamento de uma realidade de profundas desigualdades raciais.”185 Mais à frente:
“... chegará o dia em que finalmente o Brasil aceite e se orgulhe de ser uma nação com grande percentagem de negros em lugar de insistir em se disfarçar de branco.”186
Outros deputados em discursos menos amplos acerca da questão racial vão expor descontentamento com as afirmações da inexistência do racismo no Brasil e com o tratamento de tabu dado à questão. Carlos Santos (MDB-RS, 46ª Legislatura), em março de 1979, em virtude do Dia Internacional pela Eliminação de Todas as Formas de Racismo, fez discurso amplo sobre a importância da data e no final, falou especificamente sobre o Brasil, questionando o tratamento de tabu dado à questão:
“Mas no Brasil, tão só para nos fixarmos num dos incidentes em que as discriminações odiosas mais se apegam como cracas no casco enferrujado dos navios 183
Diário da Câmara dos Deputados. 18 de outubro de 1979, p. 2449. Diário da Câmara dos Deputados. 18 de outubro de 1979, p. 2450. 185 Diário da Câmara dos Deputados. 18 de outubro de 1979, p. 2450. 186 Diário da Câmara dos Deputados. 18 de outubro de 1979, p. 2450. 184
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– que é a coloração epidérmica – no Brasil, onde o tema racismo, não sabemos por que, tem conotações sem base com um verdadeiro tabu?”187
Continua:
“E aqui onde à sombra da negação de existência do preconceito racial – ou de cor – vegetam milhões e milhões de patrícios à margem das grandes conquistas da cultura, do progresso e da civilização, até mesmo porque existe um paralelismo – é claro que com honrosas e fulgentes exceções – entre a negrura da pele e as migalhices do bolso, entre as escatimas econômicas e o banho de luz da glória suprema do saber, que serve de embasamento às ascensões sociais?”188
E concluiu:
“Aceitamos que, propriamente, são aqui razoáveis as relações inter-raciais – que, empolgando o Mundo, explodem nos campos de futebol ou no asfalto por onde Momo desfila toda a loucura de seu reinado efêmero – mas não fujo àquela definição do nosso companheiro eminente e parlamentar saudoso, que foi Rui Ramos, de que eles [os negros] estão na, mas não são da vivência real das grandes conquistas da cultura e do progresso que marcam o nosso estágio social.”189
O mesmo deputado, em novembro de 1979, protestou novamente contra a exclusão do item cor no Censo de 80 e finalizou seu discurso denunciando omissão do Estado brasileiro na questão racial: “Já fiz, em ensejo outro, e o renovo aqui, de alma aberta, veemente apelo ao Presidente João Figueiredo para que se disponha a quebrar o tabu do racismo e a reconhecer a existência do problema entre nós, serpentando por entre o verdeio do nosso ufanismo de ‘maior democracia racial do mundo’.”190
Também em protesto contra a exclusão do item cor do Censo de 80 discursou José Maurício (MDB-RJ, 46ª Legislatura) em novembro de 1979. Argumentou a necessidade do item alegando que pesquisas estatísticas anteriores vinham demonstrando o cenário de segregação ao qual estava subjugado o negro. Da mesma maneira, reconhece a especificidade que atinge diversos segmentos da população brasileira, e seus entrelaçamentos, como o caso da mulher negra:
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Diário da Câmara dos Deputados. 22 de março de 1979, p. 944. Diário da Câmara dos Deputados. 22 de março de 1979, p. 944. 189 Diário da Câmara dos Deputados. 22 de março de 1979, p. 944. 190 Diário da Câmara dos Deputados. 1 de novembro de 1979, p. 12426. 188
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“Compete a todos que dispõem de uma tribuna denunciar este processo que massacra a cultura brasileira. Por isto, da mesma forma que a libertação dos trabalhadores será obra da própria classe, o resgate da cultura negra, da cultura indígena e a solução dos problemas que atingem a situação da mulher na sociedade, haverão de ser também obra dos setores que já começaram a se organizar enquanto força política e social. Pois, em relação ao negro, os problemas de discriminação e marginalização social, política e econômica, tais como o desemprego, a discriminação na admissão de empregos e perseguição racial no trabalho, exploração sexual econômica da mulher negra, colonização, descaracterização e esmagamento da cultura negra - pontos estes levantados pelo movimento negro unificado contra a discriminação racial - justificamse a organização e a defesa de sua legitimidade.”191
Por fim, concluiu seu discurso com alegação semelhante à de Carlos Santos (MDBRS) ao afirmar que a exclusão do item em si podia ser considerada um ato racista:
“Ignorar a problemática do negro no Brasil é, no mínimo, uma política de segregação racial tão execrável quanto à filosofia irracionalista do nazismo.”192
De fato, o deputado atribuiu ao ato do IBGE uma carga racista mais perversa, o que pode parecer exagero, mas, no entanto, foge a uma regularidade presente na quase totalidade dos discursos da amostra, mesmo nos que reconheciam a existência estrutural do problema. Normalmente se atribuíam características mais brandas ao racismo no Brasil em relação a outros exemplos no mundo afora. De maneira injustificada, era sugerido implicitamente que o País não apresentaria conflito racial digno de repulsa semelhante ao nazismo ou Apartheid.
Transversalidade
José Maurício (MDB-RJ, 46ª Legislatura) também tangeu um assunto pouco explorado na década, a transversalidade da questão racial. Anteriormente, em março de 1979, José Frejat (MDB-RJ, 46ª Legislatura) já discursara sobre assunto semelhante em virtude do Dia Internacional da Mulher, fazendo uma comparação da exclusão da mulher com a dos negros. Não tocou na questão da transversalidade, mas, no entanto, frisou a existência de discriminações específicas no País e que geravam conseqüências semelhantes:
“Podemos assegurar que raramente a mulher ocupa, no Brasil, um cargo nos altos escalões do serviço público. Será a mulher inacessível à corrupção, ou a ela mais refratária? Na verdade, a mulher e, igualmente, o negro são discriminados pelas classes dirigentes do País, pelos donos do poder, pelos donos do orvalho. Vão, as
191 192
Diário da Câmara dos Deputados. 22 de março de 1979, p. 12801. Diário da Câmara dos Deputados. 22 de março de 1979, p. 12801.
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mulheres e os negros, para os empregos de menor remuneração, ocupam cargos inferiores na administração pública e privada.”193
E conclui: “Por que, num país de mestiços, não há negros Ministros, Embaixadores, Governadores? Somos uma sociedade farisaica, que se recusa a enfrentar a problemática da discriminação contra a mulher e contra o negro. No Senado Federal, não há uma só mulher. Na Câmara Federal, entre 420 deputados, só quatro são mulheres.”194
Já Marcelo Cordeiro, em maio de 1979, discursou especialmente sobre o assunto da transversalidade:
“A condição de raça e cor constitui um grande reforço a esta exploração da mulher como ‘objeto sexual’. Afinal, desde a época do Brasil colônia que a negra tinha, entre outros deveres de escrava, o de iniciar os filhos dos senhores de engenho nas experiências sexuais. E, se hoje a negra não tem a obrigação formal da escrava de satisfazer o senhor, a situação social praticamente não lhe confere condições para recusar o escravagismo sexual que assume a forma da prostituição.”195
Em seguida se fez porta-voz de um manifesto de mulheres negras reunidas em 1975, no Rio de Janeiro (não se refere ao nome da reunião, congresso, ou assembléia realizada): “As mulheres negras brasileiras receberam uma herança cruel: ser o objeto de prazer dos colonizadores. O fruto deste covarde cruzamento de sangue é o que agora é aclamado e proclamado como o único produto nacional que merece ser exportado: a mulata brasileira. Mas, se a qualidade do produto é dita ser alta, o tratamento que ele recebe é extremamente degradante, sujo e desrespeitoso.”196
Marcelo Cordeiro incorpora então ao seu discurso uma crítica à visão freyreana da receptividade sexual, natural e masoquista das africanas. O seu discurso, acompanhado do manifesto, enquadra a miscigenação como um fruto da violência sexual, e a percepção que levanta da mulata, que seria o orgulho da suposta união fraterna [visão também compartilhada por Ruy Santos (ARENA-BA, 45ª Legislatura), que referenciou a mulata como “produto admirável” da miscigenação], ao contrário, é entendida como o símbolo do continuísmo da mais absurda exploração sexista e racista.
193
Diário da Câmara dos Deputados. 9 de março de 1979, p. 436. Diário da Câmara dos Deputados. 9 de março de 1979, p. 436. 195 Diário da Câmara dos Deputados. 19 de maio de 1979, p. 4188. 196 Diário da Câmara dos Deputados. 19 de maio de 1979, p. 4188. 194
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Portanto, o seu discurso marca um tratamento diferenciado para as discriminações que ocorriam no país, e não a anulação de uma por outra, o que ocorria com a visão do preconceito social, que reduzia o preconceito racial a uma questão de classe. Na concepção do deputado, o machismo, o racismo e a exclusão social se somavam, podendo gerar efeitos cada vez mais discriminatórios, como nos casos das mulheres negras citadas. O deputado finalizou seu discurso com a síntese desta percepção:
“É a partir da análise desta realidade, que mais do que nunca objetivamos para o Brasil um projeto não excludente que permita uma revisão histórica que resgate o sistema de dominação social, ideológica e econômica, incorporando à cena política todos os interesses raciais, sociais, sexuais e culturais contra os quais se organizou o Estado. Somente assim terminará a discriminação contra a maioria e só assim se recuperará a identidade nacional.”197
Estes discursos, apesar de não questionarem diretamente a percepção reducionista de classe do racismo, funcionavam como contra-argumentos dela. E de fato, eram mais ambiciosos ainda, pois reconheciam as especificidades da discriminação de gênero e demais recortes sociais subjugados.
Estratégias de superação do racismo
Várias reflexões e críticas ao mito da democracia racial e ao silenciamento do problema são apresentadas na década. Alguns discursos são de pleno reconhecimento das espoliações do racismo no País, da trajetória histórica de exclusão dos negros, das dificuldades de ascensão social e de punição de crimes racistas. No entanto, as soluções apresentadas pelo deputados para a superação do racismo e do quadro de exclusão foram essencialmente tímidas. Vários discursos atribuíram ao exercício de autodeterminação nos negros os únicos meios de superação do quadro de exclusão, percepção presente nos discursos de César Nascimento (MDB-SC, 45ª Legislatura) e Adalberto Camargo (MDB-SP, 45ª Legislatura), ambos analisados anteriormente. Uma percepção muito recorrente nos deputados era a alegação de que o negro brasileiro não se via refletido em ícones de sua raça, e que também estava desprovido de conhecimentos acerca da história dos afro-brasileiros. Este contexto dificultava a percepção clara das barreiras às quais estavam submetidos os negros e conseqüentemente dificultava a mobilização para as contestações. 197
Diário da Câmara dos Deputados. 19 de maio de 1979, p. 4188.
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Neste sentido, Carlos Santos (MDB-RS, 45ª Legislatura), em maio de 1978, denunciava a educação brasileira por não levantar nomes de negros que foram importantíssimos para o movimento abolicionista com Antônio Bento:
“Foi, sem dúvida, Antônio Bento um dos grandes artífices da memorável e vitoriosa campanha que culminou nas aleluias cívicas de 13 de maio de 88. A evocação do seu nome, pois, da bravura dos seus feitos, da nobreza dos ideais que alimentou, de transformar o escravo em gente livre, laureada com os florões da cidadania brasileira, bem poderá servir de embalo animador à presença afro-brasileira nas conquistas da moderna e imediata comunicação, incitando os que se espremem dentro da ‘aldeia global’ no empenho no mesmo ardor de se sentir, também, ‘sujeito ativo da História’.”198
Em seguida, sintetizava a concepção de que o negro precisava se ver refletido nos ícones que representam sua raça, que fizeram história e que não estavam reconhecidos, o que geraria naturalmente mobilizações na superação das barreiras raciais: “Podem surgir daí as reações desejadas contra as restrições coletivas e veladas, mas de efeitos clamorosamente nocivos, que atestam a profanação da suprema dignidade da pessoa humana quando se esconde à sombra de epiderme ebanizada. Será a versão nova da Abolição, não projetada na magnificência do Paço Imperial, mas que há de vir – todos esperamos – do novo mundo de Liberdade e justiça, Amor e Fraternidade entre os homens, que, tal qual num lance de mágica, repontará do coração da ‘aldeia global’.”199
Em outro discurso, em junho de 1979, o mesmo deputado discursava sobre a Primeira Semana Afro-Brasileira ocorrida em Porto Alegre, argumentando que o evento teria gerado vários pontos a serem seguidos pelos afro-brasileiros. Entre eles, a necessidade de entidades negras se congregarem:
“Das conclusões do importante encontro resultaram positivas recomendações conclamando todas as entidades cívicas, culturais, sociais ou artísticas do mundo negro, a caminharem unidas na busca do ideal comum de liberdade ampla e igualdade plena aos irmãos filhos da mesma Pátria.”200
Em seguida, ressaltou novamente a necessidade de autoconhecimento dos afrobrasileiros:
198
Diário da Câmara dos Deputados. 30 de maio de 1978, p. 4325. Diário da Câmara dos Deputados. 30 de maio de 1978, p. 4325. 200 Diário da Câmara dos Deputados. 14 de junho de 1979, p. 5901. 199
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“Uma ação permanente em favor do estudo e divulgação da história da saga negra, seus valores e seu papel decisivo no ciclo das civilizações há de ser o fator imprescindível no sufocamento do estúpido preconceito de cor no Brasil, fruto mais da ignorância e desinformação do que, propriamente, da razão, da lógica e da inteligência.”201
Prosseguindo: “O aceleramento do processo de integração do negro, por força dessa mobilização geral de recursos humanos conduzidos para a motivação das multidões afrobrasileiras, foi apontado como estímulo incoercível no empenho da conquista, pelas forças do espírito e florões da inteligência, do seu lugar no contexto nacional.”202
E concluiu: “É certo que, valendo-se do livro e da força do saber, os nossos irmãos ebanizados vencerão com rapidez marcante a distância que os separa de outros grupos da comunidade pátria, no campo da valorização racial e pessoal.”203
Outro discurso com orientações semelhantes foi o de Elquisson Soares (MDB-BA, 46ª Legislatura), em novembro de 1979. O deputado se fez porta-voz de outro evento organizado pelo movimento negro, o Congresso Afro-Brasileiro ocorrido em Ribeirão Preto (não se referiu à data de realização do Congresso). O documento extraído do Congresso fazia homenagem a Zumbi dos Palmares, afirmando que além de Zumbi, não houvera mais nenhum representante negro com posição semelhante e de tamanha inspiração para a população negra. Afirmou que o negro só galgou posição política importante no país por meio de alguns álibis que, por enorme mérito, conseguiram enfrentar as barreiras raciais. Segundo o deputado, as conquistas políticas dos negros, portanto, não foram conquistadas coletivamente. O documento também criticava a narrativa histórica do Brasil contida nos livros escolares:
“Os historiadores brasileiros, em sua esmagadora maioria constituída de brancos, sempre viram o elemento negro como extremamente paciente, gentil, cordial, como um ser bondoso que está sempre esperando – nunca se definiu e nunca foi dito que está a esperar – como um ser pronto a servir, no sentido de ser utilizado pelas classes dominantes, mas, infelizmente, nunca foi visto como um elemento cuja participação na força de trabalho foi e é decisiva para o engrandecimento da Nação brasileira. Somente o próprio negro pode acabar com essa imagem que antes de o engrandecer o
201
Diário da Câmara dos Deputados. 14 de junho de 1979, p. 5901. Diário da Câmara dos Deputados. 14 de junho de 1979, p. 5901. 203 Diário da Câmara dos Deputados. 14 de junho de 1979, p. 5901. 202
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diminui no contexto étnico brasileiro, transformando-se através da sua participação política nos destinos do Brasil.”204
Por último, Elquisson Soares também expôs a resolução de outro Congresso AfroBrasileiro, este realizado em Uberaba. A resolução não continha nenhum tópico relacionado diretamente com estratégias de mudanças específicas para a população negra. Os tópicos mais específicos tratavam da necessidade de participação efetiva na política nacional e do ingresso de negros nos partidos. Os demais tópicos se referiam a reformas como a integração do Estatuto do Trabalhador rural na CLT, promoção de políticas habitacionais, culturais e alimentícias baseadas no cooperativismo, entre outras, sem fazer recorte racial. Ao final, parece se tratar mais de uma resolução de um congresso pró-democratização. Por exemplo, a resolução finalizou com uma consideração acerca das eleições: “A supressão das eleições entendemos como forma de racismo e escravagismo.”205 Na maioria dessas percepções, o negro consciente do seu papel histórico, consciente das espoliações do racismo e congregado com os irmãos de cor estaria em condições suficientes para converter o quadro de exclusão racial do País. Trata-se de iniciativas que obviamente eram necessárias a qualquer movimento negro de qualquer lugar no mundo. Por outro lado, aos deputados, aos legisladores cabiam outras atribuições, outro papel, que não somente o de concordância com as ações vislumbradas para o movimento negro e sobrescritas pelo referido movimento. As únicas iniciativas parlamentares referidas nos discursos não passaram do projeto de Lei do Senador Bezerra Neto de 1966 que alteraria a Lei Afonso Arinos, e de outros dois projetos de Adalberto Camargo (MDB-SP), um sobre a instituição do “Dia da Comunidade Afro-Brasileira” (PL nº. 138/75) e outro que também alteraria a Lei Afonso Arinos (PL nº. 2289/79); este foi a Plenário nos anos 80. A Lei de Edson Khair (PL nº. 2206/79), que previa admissão compulsória de ao menos 10% de negros nos quadros de servidores das instituições do Estado e de instituições privadas, só foi comentada por Carlos Santos (MDB-RS), que por sinal a concebia desnecessária, mas reconhecia o motivo da preocupação do propositor. Ao mesmo tempo em que alguns deputados imploravam pelo reconhecimento do racismo no Brasil por parte das demais autoridades, de forma injustificada eles não apresentavam estratégias, planos, ou uma agenda minimamente estruturada. Circunstancialmente, o âmbito da ação parlamentar não se confundia com o âmbito de ação dos movimentos negros, que embaixo de repressões, principalmente da ditadura, tinham espaço limitadíssimo de intervenção no quadro 204 205
Diário da Câmara dos Deputados. 28 de novembro de 1979, p. 3195-3196. Diário da Câmara dos Deputados. 28 de novembro de 1979, p. 3196.
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político do País. Aos parlamentares que reconheciam o cenário de discriminação racial no País, cabia o uso efetivo de estratégias concernentes à legislação, à estrutura e ação do Estado, podendo contar com o apoio das entidades negras.
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6 - Discurso sobre a questão racial nos anos 80 O número de discursos coletados na década de 80 foi muito maior que os obtidos nas décadas de 60 e 70. Provavelmente, o salto abismal de 73 discursos na década de 70 para 398 discursos em 80 reside principalmente na diferença dos métodos de coleta utilizados. Porém, a aferição mais cuidadosa do motivo da mudança só será possível quando o banco de discursos da página da Câmara dos Deputados estiver completo para as décadas anteriores, como exposto na metodologia do trabalho. Vale lembrar que os 398 discursos contam também com os pronunciamentos que ocorreram na Assembléia Nacional Constituinte em 1987 e 1988. No âmbito do trabalho não seria possível a leitura dos 398 discursos coletados; portanto, o que se propõe para a interpretação dos discursos na década de 80 é uma análise extremamente sintética, que com base em uma amostra bastante reduzida, tenta captar os principais padrões argumentativos nos discursos sobre a questão racial na década. Dessa forma, foram selecionados 75 discursos dentre o total, com método baseado em três critérios: o comportamento da distribuição dos discursos no tempo, a distribuição dos discursos entre os deputados e, por último, a maior proximidade dos discursos com a temática em questão. Este último critério, o mais arbitrário, consistiu na leitura dos resumos e na eleição dos que mais tangiam a temática. Neste caso, eram preteridos os discursos que tinham resumos curtos nos quais não eram claros os temas abordados. É principalmente o caso dos discursos cujos resumos só registravam o transcurso de datas comemorativas. Dessa forma, ganharam preferência discursos com resumos que evidenciavam a exposição e desenvolvimento mais apurado de uma temática ou percepção das relações raciais. O primeiro critério, portanto, permitiu que a amostra fosse sensível à ocorrência dos discursos durante o tempo. A Tabela 7 abaixo expõe os números de discursos coletados em cada ano e o número correspondente na amostra.
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Tabela 7 – Distribuição dos discursos na década de 80 Total de discursos coletados
Ano 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 Total
Nº. de discursos na amostra
%
25 20 18 39 42 38 7 31 144 34 398
6,3% 5,0% 4,5% 9,8% 10,6% 9,5% 1,8% 7,8% 36,2% 8,5% 100,0%
5 4 3 7 8 7 1 6 27 7 75
Os Gráficos 4 e 5 visualizam melhor como a distribuição dos discursos da amostra se comportou de maneira semelhante à distribuição do total.
Gráfico 5 – Distribuição do total de discursos coletados na década de 80. 160
Nº de discursos
140 120 100 80 60 40 20 0 1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
Ano
Gráfico 6 – Distribuição da amostra de discursos na década de 80. 30
Nº de discursos
25 20 15 10 5 0 1980
1981
1982
1983
1984
1985 Ano
1986
1987
1988
1989
100
O segundo critério tentou reproduzir a distribuição dos discursos entre os deputados. Abaixo, a Tabela 8 expõe o número de discursos proferidos por cada deputado no total coletado e na amostra. Os oradores que discursaram menos de seis vezes foram agrupados.
Tabela 8 – Distribuição dos discursos entre os deputados na década de 80 Deputados Abdias do Nascimento (PDT-RJ) Benedita da Silva (PT-RJ) Paulo Paim (PT-RS) Adalberto Camargo (PDS-SP) Amaury Muller (PDT-RS) Carlos Alberto Caó (PDT-RJ) Carlos Santos (PMDB-RS) Fernando Santana (PCB-BA) Freitas Nobre (PMDB-SP) Agnaldo Timóteo (PDT-RJ) Cristina Tavares (PMDB-PE) Haroldo Lima (PC do B-BA) Deputados com 4 discursos Deputados com 3 discursos Deputados com 2 discursos Deputados com 1 discurso Total
Nº. de discursos coletados (total) 39 30 26 15 12 11 10 8 7 7 7 6 16 24 64 122 398
% 9,8% 7,5% 6,5% 3,8% 3,0% 2,8% 2,5% 2,0% 1,8% 1,8% 1,8% 1,5% 4,0% 6,0% 16,1% 30,7% 100,0%
A aplicação da porcentagem em 75 discursos
Nº. de discursos elegidos (amostra)
7,3 5,7 4,9 2,8 2,3 2,1 1,9 1,5 1,3 1,3 1,3 1,1 3,0 4,5 12,1 23,0 75,0
7 6 5 3 2 3 3 2 2 1 1 1 3 5 12 19 75
Neste critério, houve uma preferência no processo de eleição dos discursos por pronunciamentos de deputados que mais se manifestaram, diminuindo o número de discursos do grupo de deputados que discursaram apenas uma vez. No conjunto de 398 discursos, 176 deputados discursaram, já a amostra contém discursos de apenas 51 deputados, 29% do total de oradores. Por último, o terceiro critério de seleção foi a leitura dos resumos. Eram selecionados os discursos cujos conteúdos dos resumos tinham mais proximidade com a temática em questão. Pela arbitrariedade deste critério, vale frisar novamente que a análise da década não é de todo representativa da discussão, mas aponta a dinâmica e predominância de vários temas que circularam na casa. Entre os 51 deputados da amostra, 11 (20%) se identificaram negros, sendo que 8 deles estão entre os deputados que mais se pronunciaram na década. São eles, Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura), Benedita da Silva (PT-RJ, 48ª Legislatura), Paulo Paim (PT-RS, 48ª Legislatura), Adalberto Camargo (PDS-SP, 46ª Legislatura), Carlos Alberto Caó (PDT, 48ª Legislatura), Carlos Santos (PMDB-RS, 46ª Legislatura), Agnaldo Timóteo (PDT-RJ, 47ª Legislatura) e Haroldo Lima (PC do B-BA, 48ª Legislatura). Os outros
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deputados negros que não compuseram o grupo dos que mais se pronunciaram foram Edmilson Valentim (PC do B-RJ, 48ª Legislatura) com quatro discursos no total coletado e um na amostra, Alceu Collares (PDT-RS, 46ª Legislatura) com dois discursos no total e um na amostra e Edmundo Galdino (PSDB-TO, 48ª Legislatura) com um no total e na amostra. A soma dos discursos destes onze deputados negros na amostra é 32, cerca de 43% dos discursos da amostra. Já a soma dos discursos destes deputados no total dos discursos coletados é 151, ou seja, cerca de 38% do total de discursos coletados. Estes 11 deputados negros, por outro lado, representam 6% do total de deputados contabilizados na coleta e 22% do total de deputados na amostra. Os assuntos que predominaram na amostra foram a Abolição da Escravatura no Brasil e o Apartheid na África do Sul, tema que várias vezes desmembrava-se em reflexões e considerações sobre a questão racial no País. O tema da Abolição, apesar de estar bem distribuído por todos os anos, alcançou seu ápice de ocorrências em 1988 em virtude do Centenário do fato histórico. Os próprios gráficos de distribuição dos discursos (Gráficos 5 e 6) evidenciam a mobilização parlamentar em torno do ano. Já a ocorrência do tema do Apartheid se distribuiu amplamente pela década não se concentrando demasiadamente em nenhuma data específica. Vale ressaltar que a visita ao Brasil do Bispo Sul-Africano Desmond Tutu em maio de 1987 e as comemorações do Dia Internacional Pela Eliminação de Todas as Formas de Racismo (21 de março) foram eventos que de certa forma aglutinaram discursos que se referiam ao racismo na África do Sul; no entanto, nada comparado ao Centenário da Abolição, que contribuiu com a ocorrência em 1988, de 36,2 % dos discursos coletados em toda a década, sendo que o mês de maio deste ano foi o mês que contou com o maior número de discursos de toda a década. Na amostra, portanto, 27 discursos (36%) se referiram à temática da Abolição, distribuídos não só no ápice de 1988, mas em todos os anos. O tema do Apartheid foi referenciado em 20 discursos (27%), não só como tema principal, mas como assunto secundário também. As referências sobre a questão racial norte-americana ocorreram apenas em 5 discursos (7%), repetindo a mesma característica dos anos 70, ou seja, perdendo totalmente o foco que lhe tinha sido atribuída nos anos 60. Além da Abolição, as datas comemorativas que receberam várias menções foram o Dia Internacional Para Eliminação de Todas as Formas de Racismo e o 20 de Novembro, data da morte de Zumbi, transformada pelo Movimento Negro em Dia da Consciência Negra. Dez discursos (13%) ocorreram em virtude do Dia Internacional e quinze discursos (20%)
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ocorreram em virtude do Dia da Consciência Negra, ou trouxeram referências a Zumbi e ao seu significado para os negros do País. Discursos que versavam sobre a legislação sobre o racismo ocorreram nove vezes na amostra (10%). Neste conjunto se inserem críticas a Afonso Arinos, apresentação de projetos e inclusive discussões sobre a elaboração da Constituição de 1988. Denúncias de práticas racistas ocorreram em 15 discursos (20%). A visão isolacionista ocorreu em apenas dois discursos (3%) e nenhum orador sustentou o argumento de que o preconceito social suplantaria o racial. No entanto, alguns aparteantes ostentaram esta percepção em acaloradas discussões que serão expostas posteriormente. Por final, os discursos que afirmavam a existência do racismo no País ocorreram predominantemente. Cinqüenta e seis discursos (73%) da amostra ostentavam a existência do problema no País. Apenas um discurso (1,3%) afirmou o contrário. Já em apartes, alguns deputados também ostentaram a inexistência do racismo no Brasil. A Tabela 9 abaixo sintetiza a ocorrência dos temas entre os discursos na amostra.
Tabela 9 – Classificação dos discursos por filtros temáticos na década de 80. Filtros temáticos Não há racismo Há racismo África do Sul (Apartheid) Estados Unidos Isolacionismo Preconceito econômico Denúncias Legislação Abolição Zumbi (Consciência Negra) Dia Internacional
Nº. de ocorrências
%
1 56 20 5 2 0 15 9 27 15 10
1% 75% 27% 7% 3% 0% 20% 12% 36% 20% 13%
A análise quantitativa dos discursos sugere uma sensibilização crescente para a temática na Casa. No entanto, a iniciativa parlamentar é ainda extremamente tímida levandose em conta que, sobre o total dos discursos, apenas 176 deputados distribuídos em três legislaturas discursaram sobre o tema. De qualquer forma, é nítido que houve uma mobilização enérgica dos poucos deputados negros e alguns aliados brancos para trazer a questão racial para a agenda da Câmara. Os discursos do deputado Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) serão comentados em um tópico à parte - primeiramente, por se tratar do primeiro deputado a se eleger e trabalhar exclusivamente pela causa negra, e, segundo, por ostentar posições que geravam debates polêmicos e representativos do conflito de percepções existente na Casa.
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Desconstrução da Harmonia Racial
A amostra apresentou predominantemente discursos de desconstrução da visão harmônica das relações raciais, percepção que reinava na década de 60 e que era timidamente enfrentada nos anos 70. Predomina o reconhecimento do cenário de exclusão racial e, de fato, a temática foi ampliada e desmembrada em vários temas mais específicos da questão. Alguns poucos discursos reconheciam o cenário de segregação racial, mas ainda sim ostentavam algumas percepções nitidamente harmônicas. A data comemorativa da Abolição da Escravatura foi o assunto mais explorado na amostra da década. A narrativa que enquadrava a Abolição enquanto marco para integração do negro e às vezes até como marco do início da democracia racial, percepção muito recorrente nos anos 70, é duramente criticada e desmembrada em reflexões acerca da trajetória do negro na história do País, ostentando posições totalmente divergentes da percepção harmônica. Alceu Collares (PDT-RS, 46ª Legislatura), em março de 1980, criticava duramente o significado da Abolição afirmando que o marco não se traduzira numa libertação real dos negros. E assim, também criticava a visão harmônica das relações raciais:
“Sr Presidente, o Partido Trabalhista Brasileiro tem, como um dos postulados do seu Programa, a preocupação com as minorias raciais, entre as quais a negra, que, sabe-se, Sr. Presidente, ao longo da História do País, é oprimida e marginalizada, em conseqüência mesmo até da própria libertação, que foi uma libertação de fachada, uma libertação jurídica, exclusivamente. O negro saiu jogado às ruas, sem condição alguma de sobrevivência. Daí, até os dias de hoje, a discriminação racial no Brasil é uma verdade, que está tentando ser escondida, sonegada, silenciada por um pregação ideológica revolucionária, da chamada democracia racial no Brasil; isso não existe. Há centenas de irmãos pretos, preparados para uma ou outra profissão, que encontram barreiras de toda ordem, não só na atividade privada, como na atividade pública, em conseqüência de sua cor, da sua pele, da sua pigmentação.”206
Modesto da Silveira (PMDB-RJ, 46ª Legislatura), em maio de 1980, relatava também o desamparo que assolou a trajetória do negro depois da Abolição: “A abolição da escravatura, na realidade, em muito pouco transformou essa relação207, no sentido mais profundo, de conjuntura. No Nordeste, os latifúndios ocupavam toda a região, impossibilitando a formação de pequenas propriedades, mesmo em nível de subsistência. Na Região Sudeste, nas áreas em que a lavoura açucareira estava em decadência, os ex-escravos tiveram oportunidade de estabelecer-se e cultivar uma 206 207
Diário da Câmara dos Deputados. 29 de março de 1980, p. 1522. Refere-se à relação do branco senhor e negro escravo.
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pequena roça. Esses casos foram, no entanto, raros. A regra geral foi a não integração do negro à sociedade. Ele não tinha condições de concorrer com o imigrante branco, melhor protegido pelo Estado. Os negros foram atirados no mundo dos brancos sem nenhuma indenização, garantia ou assistência. A grande maioria deslocou-se para as cidades, onde a aguardava o pior emprego, ou o desemprego, e uma vida marginal. O que deveria ser um desajustamento transitório, dizem os historiadores, transformou-se em um desajustamento estrutural, reforçando, assim, o preconceito racial.”208
Em março de 1984, José Genoíno (PT-SP, 47ª Legislatura) discursou com percepção semelhante à de Modesto da Silveira (PMDB-RJ, 46ª Legislatura), adicionando a noção de que o processo de abolição foi instaurado aos moldes dos interesses da elite brasileira, ou seja, alforriando, mas institucionalizando a discriminação racial. Mesmo com a percepção clara da existência da discriminação racial, o deputado não vislumbrou a necessidade de implantação de políticas específicas para o segmento negro em prol da superação do quadro racista:
“A assinatura da Lei Áurea se deu num contexto em que as elites dominantes do Brasil da época não interessavam mais manter o trabalho escravo. A lavoura cafeeira já substituía o trabalho escravo pelo trabalho assalariado. Às oligarquias agrárias do Nordeste em decadência já não era mais lucrativo manter a escravidão. Para o imperialismo inglês, já não era mais interessante e, por isto, existia a Bill Aberdeen considerando crime o tráfico negreiro. Mas no bojo daquele movimento abolicionista as elites imperiais e monárquicas buscavam fazer a abolição sem mexer com os alicerces da própria escravidão e, no seio do movimento abolicionista - é necessário dizer aqui existiam os moderados da época, existiam os conciliadores da época, que temiam que a abolição significasse um processo de transformações radicais, havia também a luta dos escravos, havia as posições de André Rebouças, de Raul Pompéia, de Antônio Bento, de Luiz Gama, que buscavam relacionar a libertação dos escravos com as transformações da estrutura política do Velho Império. Mas existia também aquele reduto dos ultrareacionários e conservadores, que viam, por exemplo, na Lei dos Sexagenários e na Lei do Ventre Livre, algo parecido com a subversão que restava no Velho Império.”209
Continua:
“E assim tem sido a sociedade brasileira. A libertação dos escravos nos fornece ensinamentos da maior importância: quando as elites não conseguem mais manter o status quo, elas procuram fazer as transformações conservadoras para mantê-lo, procurando impedir, procurando golpear as tentativas mais avançadas. Assim ocorreu por ocasião da libertação dos escravos quando se relacionou esta libertação com as transformações mais agudas. Ora, a Lei Áurea apenas formalizou algo que as elites já queriam e, ao fazê-lo, chegou a ponto de indenizar os senhores de escravos, chegou ao ponto de institucionalizar o preconceito de cor e de raça, porque os trabalhadores que iam para os cafezais eram brancos, imigrantes europeus. Por isso, devemos dizer que no Brasil não existe uma democracia racial; existe a discriminação racial, o preconceito racial. E entendemos que o fim do preconceito e da discriminação racial se dará no bojo
208 209
Diário da Câmara dos Deputados. 9 de maio de 1980, p. 3437. Diário da Câmara dos Deputados. 10 de maio de 1984, p. 3238.
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das mudanças políticas, econômicas e sociais, na luta pela emancipação de todo o povo brasileiro.”210
Paulo Zarzur (PMDB-SP, 47ª Legislatura), em maio de 1984, sinteticamente afirmava ser a condição do negro, na atualidade, semelhante à da escravidão: “É certo que hoje não existem escravos, no sentido literal da palavra. Todavia, certas formas de opressão subsistem e algumas delas são bem mais cruéis do que a simples escravidão.” 211
E continua: “A comunidade negra, é forçoso reconhecer, ainda sofre flagrantes injustiças e é discriminada. Em alguns setores, essa discriminação é sistemática, como por exemplo, na carreira diplomática e na militar.” 212
Em junho de 1986, Francisco Dias (PMDB-SP, 47ª Legislatura) ao criticar a democracia racial lembrou a proximidade das comemorações do Centenário afirmando que a libertação não se realizara e que ainda estava por acontecer, mas sem o aspecto paternalista sempre atribuído ao ato, enquanto boa ação dos brancos:
“Daqui a dois anos comemorar-se-á o centenário da Abolição. Uma abolição que tirou o negro da senzala para a marginalidade social. Uma abolição que está por vir e os afros esperam que se concretize com a Nova República. Não como uma dádiva, mas como o resgate de uma dívida. Inalienável e impostergável.”213
Amaury Muller (PDT-RS, 48ª Legislatura) discursava em março de 1988, ano do Centenário da Abolição, com ênfase similar a de Paulo Zarzur (PMDB-SP, 47ª Legislatura), ou seja, para o deputado, o negro continuava na condição de escravo:
“Sr. Presidente, não é apenas o negro que é discriminado neste País e em outras regiões do mundo, mas é particularmente ele. Ao nos aproximarmos do dia 13 de maio, data que deveria assinalar o Centenário da Abolição da Escravatura, cada vez mais vamo-nos convencendo de que, no Brasil, desgraçadamente, o negro ainda não ocupa o lugar que historicamente lhe cabe de fato e de direito.”214
Continua: 210
Diário da Câmara dos Deputados. 10 de maio de 1984, p. 3238 Diário da Câmara dos Deputados. 16 de maio de 1984, p. 3598. 212 Diário da Câmara dos Deputados. 16 de maio de 1984, p. 3598. 213 Diário da Câmara dos Deputados. 27 de junho de 1986, p. 6827. 214 Diário da Câmara dos Deputados. 22 de março de 1988, p. 839. 211
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“De uma coisa estou certo, Sr. Presidente: quando um de nós, em cujas veias corre, certamente, sangue negro, fala em negro, branco, amarelo, está querendo pronunciar o plural da palavra homem. E temos de admitir e reconhecer que todo homem, independentemente da cor da sua pele, do seu cabelo e dos seus olhos, é um ser afirmativo e válido, e merece, portanto, o respeito que o negro até hoje não obteve em nossa sociedade segregacionista, discriminatória, que não lhe reconhece esse direito.” 215
Finalizando: “Eu perguntei, no início, quantos negros eram latifundiários neste País 216. Ninguém, vai responder, porque não há negro latifundiário. O negro continua sendo escravo e tratado à base da chibata, num País que se diz moderno, livre e democrata.” 217
Em maio de 1988, chegada a data comemorativa, vários deputados discursaram sobre o significado do marco. Juarez Antunes (PDT-RJ, 48ª Legislatura), também argumentava que a condição do negro não se modificara desde a proclamação Lei Áurea:
“Passaram-se 100 anos e a condição do negro no País pouco diferencia de 1888. Onde foi parar a Lei Áurea? No papel. A grande maioria dos trabalhadores negros fica relegada aos trabalhos mais desumanos, como escravos, mal remunerados e sem a menor oportunidade de progredir. Tudo isto num país como o nosso, cuja maioria populacional é composta de negros. A discriminação vergonhosa ainda existe.”218
Continua:
“O Centenário da Abolição deveria ser todos os dias, só assim a dívida histórica da sociedade brasileira se aproximaria para a eliminação deste débito. Foram cem anos, no qual o Brasil não resgatou a sua dívida histórica. A dívida do autoritarismo, da falta de habitação, da falta de educação, a dívida da escravidão aos trabalhadores, quer sejam eles pretos, brancos ou mulatos, não importa. A verdade é que o racismo e o autoritarismo sempre estiveram presentes na cultura brasileira.”219
215
Diário da Câmara dos Deputados. 22 de março de 1988, p. 839. O deputado também tratou do tema da Reforma Agrária em seu discurso. 217 Diário da Câmara dos Deputados. 22 de março de 1988, p. 839. 218 Diário da Câmara dos Deputados. 13 de maio de 1988, p. 1757. 219 Diário da Câmara dos Deputados. 13 de maio de 1988, p. 1757. 216
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Mauro Miranda (PMDB-GO, 48ª Legislatura), também em maio de 1988, expunha um relatório demográfico das populações quilombolas de Goiás, fazia referências às origens étnicas, às localizações, geografia dos remanescentes, entre outros, e narrava a história de alguns destes povos na luta pela liberdade. Em seguida desmistificava a Abolição:
“Encerrado o período escravagista, o negro passou da condição de escravo à situação de marginalizado, relegado e excluído dos projetos de construção da Nação brasileira. A partir do momento em que o governo colocou a comunidade negra à margem do progresso nacional, automaticamente a condenou a uma vida miserável nos morros, alagados, à margem dos rios, sem qualquer assistência e entregue à própria sorte, num ato de injustiça social incomensurável. Ao mesmo tempo prescindiu o Brasil do talento e da capacidade de realização de grande parcela de sua população. Urge a modificação de tal quadro, possibilitando-se a efetiva participação do afro-brasileiro em todas as tarefas de realização nacional, de vez que não há como viabilizar um país como o Brasil desconsiderando-se a existência de mais de 40 por cento de sua população.”220
Continuou afirmando que a Abolição era uma data ilegítima em sua importância devido ao quadro de exclusão dos negros:
“A sub-cidadania continua sendo a marca da grande maioria dos descendentes dos antigos escravos. E como se essa população tivesse sido abolida não da escravidão, mas do direito fundamental de ter direitos. E o País é imensamente negro em seus valores mais legítimos, mais autênticos. Destarte, as comemorações do 13 de Maio serão efetivamente válidas quando o País for realmente desenvolvido para todos, onde a democracia racial não seja apenas mera figura de retórica.”221
Paulo Paim (PT-RS, 48ª Legislatura), também em maio de 1988, em virtude da data comemorativa, discursou enquanto porta-voz do Movimento Negro Unificado e leu manifesto da entidade:
“Para nós, do Movimento Negro Unificado, 13 de Maio não é um dia de festa, é o dia Nacional de denúncia contra o Racismo. Denúncia da forma golpista como foi realizada a Abolição da Escravatura, sendo o negro desalojado do processo produtivo da Nação, sem trabalho para garantir o seu sustento, sem terra para morar e produzir, sem escolas para garantir sua educação, enfim, sem condições de realmente se integrar na nova sociedade que surge a partir de 1888.”222
Mais à frente: 220
Diário da Câmara dos Deputados. 13 de maio de 1988, p. 1751. Diário da Câmara dos Deputados. 13 de maio de 1988, p. 1752. 222 Diário da Câmara dos Deputados. 13 de maio de 1988, p. 1745. 221
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“A vida da maioria negra após a Lei Áurea passa de trabalhador escravizado para a de marginalizado social, entregue à sua própria ‘sorte’. Nada foi feito para retirar a população negra do atraso social, econômico, político e cultural, resultado de quatro séculos de escravidão. Nestes 100 anos da malfadada abolição pouca coisa mudou na essência.”223
Em outro discurso, realizado no mesmo dia, Paulo Paim (PT-RS, 48ª Legislatura) afirmara usar apenas o termo Lei Áurea para designar a data, pois a abolição não fora o efeito direto da norma em questão e que a única liberdade concedida ao negro desde então foi a de trabalhar, e em condições piores que a dos brancos:
“Para nós, negros, ser livre é ter nossa identidade étnica e cultural respeitada; ser livre é ter nossa religião respeitada; ser Livre é exercer o direito ao trabalho e a salários dignos; ser livre é poder freqüentar uma escola democrática; ser livre é ter acesso à terra.”224
Continua:
“Aqui faço um parêntese: Porque não contam nas escolas porque os negros não são donos de fazendas, porque os negros não são os donos das terras? Por que não contam que com a famosa abolição, que eu chamo somente de Lei Áurea, os brancos foram passando de pai para filho as terras e as propriedades, e aos negros só foi delegado o direito ao trabalho, e ainda um trabalho discriminado, e pago diferente do branco? Por que não contam isto na escola?”225
No mesmo mês, Paulo Paim (PT-RS, 48ª Legislatura) discursou novamente, argumentando que o 13 de maio era uma data de comemoração das classes dominantes e que a sua intenção era a de desmobilizar o Movimento Negro. Assim desenvolveu seu argumento:
“Se na escravidão o racismo serviu para legitimar a coisificação do negro, depois da malfadada Lei Áurea, o racismo serve para justificar as péssimas condições de vida do nosso povo. O racismo é um instrumento de opressão, de exploração econômica, controle e dominação social.”226
Continua:
“Portanto, não podemos compactuar com o caráter festivo e comemorador do tal Centenário da Abolição, preparado pela comissão oficial do Governo Sarney. Este 223
Diário da Câmara dos Deputados. 13 de maio de 1988, p. 1745. Diário do Congresso Nacional. 13 de maio de 1988, p. 540. 225 Diário do Congresso Nacional. 13 de maio de 1988, p. 540. 226 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. 24 de maio de 1988, p. 10682. 224
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projeto da Nova República busca desmobilizar o Movimento Negro autônomo e independente do Estado e cooptar as lideranças negras e populares. Além disso, tenta capitalizar em cima das datas históricas da resistência negra, diluindo o conteúdo da luta contra o racismo, a discriminação racial e a exploração.”227
Concluiu, ligando o tema às relações diplomáticas com a África do Sul:
“O 13 de Maio é uma data da história oficial das classes dominantes. Nós, do Movimento Negro autônomo, não compactuamos com o Estado, o Governo da Nova República e as elites burguesas, que sustentam este sistema capitalista e excludente e mantém relações com o regime mais racista, fascista e criminoso do mundo, o da África do Sul.”228
No conjunto destes discursos, a Abolição é colocada enquanto marco fictício de libertação dos negros, pois é interpretada mais como um marco de transformação da forma de exploração acometida contra estas populações. Dessa forma, a data é rejeitada enquanto um referencial para as populações negras. Primeiramente, devido ao quadro de exclusão que permaneceu; segundo, devido ao aspecto passivo atribuído ao negro; e, por último, por ter sido um marco que representou os interesses da elite da época, perpetuando-se enquanto uso ideológico e memória significativa apenas para as classes dominantes. A maioria dos discursos que questionava a Abolição era acompanhada de sérias críticas à democracia racial, formando, portanto, uma argumentação integrada. O discurso de Edmundo Galdino (PSDB-TO, 48ª Legislatura), em maio de 1989, é um exemplo bem representativo desta argumentação. Segundo o orador, o mito da democracia racial foi um dispositivo de controle complementar à Abolição, assim como o mito da inferioridade do negro. Estes aparelhos ideológicos, segundo o deputado, desarticularam os negros permitindo a permanência da exploração, mas não na sua forma mais transparente e óbvia:
“Enquanto foi possível sustentar o conflito de interesses gerado pela escravidão, ela [a escravidão] sobreviveu. Durante quase quatro séculos, o Brasil, último país das Américas a romper com os grilhões do trabalho escravo, viu-se atingido pela nódoa inapagável de legalmente garantir a uma minoria privilegiada o exercício da escravidão, a mais bestial forma de organização social de produção conhecida pela Humanidade.”229
Continua:
227
Diário da Assembléia Nacional Constituinte. 24 de maio de 1988, p. 10682. Diário da Assembléia Nacional Constituinte. 24 de maio de 1988, p. 10682. 229 Diário da Câmara dos Deputados. 17 de maio de 1989, p. 3513. 228
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“No afã de garantir seus privilégios, a classe dominante viu-se diante da necessidade de desenvolver uma ideologia justificatória da barbárie perpetrada. Para tanto, criaram dois mitos: o da inferioridade do negro e a democracia racial, que a princípio, podem parecer dicotômicos, mas que atingiram com precisão a finalidade de destroçar a consciência étnica do negro brasileiro.”230
Mais à frente:
“Diante dessas duas vertentes, de que o negro é um ser inferior e de que o branqueamento é uma meta a ser alcançada, as classes dominantes introjetaram em grande parte dos segmentos negros os mecanismos que visavam a desarticular qualquer tentativa de auto-conhecimento, consciência crítica ou revolucionária.”231
Concluiu:
“A história oficial do Brasil desvaloriza ou até mesmo esquece a luta do negro para romper as amarras da escravidão. Fatos como Palmares, revolta dos Alfaiates, insurreições, quilombos, são encarados como secundários. Personagens históricos como Rei Zumbi, Pacífico Licutã, Elisbão Dandará, Luiz Sanin, Luiza Main, não figuram na galeria dos heróis nacionais.”232
O deputado levantou um tópico ausente nas décadas anteriores, o de que o mito da democracia racial não desconstruía as teorias racistas do início do século. O mito da democracia racial, justamente por não evidenciar o conflito, perpetuava as desigualdades raciais, o supremacismo branco e a desarticulação dos negros. Por final, Edmundo Galdino expõe outro tema bastante recorrente na década. Além da recusa do Movimento Negro em incluir a Abolição enquanto uma data importante para a população negra, defende o reconhecimento dos marcos históricos significativos para os negros, que eram representados por outros atores que não os brancos ilustres aclamados pela história oficial. Destaque para Zumbi, o maior símbolo de inspiração do Movimento Negro, que foi reiteradas vezes citado e aclamado como o maior ícone de uma história que não é contada oficialmente. Este discurso está inserido também numa percepção, expressa desde a década de 70, de que o negro portando o conhecimento de sua trajetória histórica, necessariamente, lutaria auto-confiante pela superação do racismo.
230
Diário da Câmara dos Deputados. 17 de maio de 1989, p. 3513. Diário da Câmara dos Deputados. 17 de maio de 1989, p. 3513. 232 Diário da Câmara dos Deputados. 17 de maio de 1989, p. 3513. 231
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Zumbi e a Consciência Negra
A rejeição da data da Abolição era normalmente seguida de um esforço pela legitimação da história de luta dos negros. A data da morte de Zumbi dos Palmares (20 de novembro) foi transformada pelo Movimento Negro em um dia de aclamações e reflexões acerca da resistência negra, o Dia da Consciência Negra. Vários deputados referendaram Zumbi e a data. Carlos Santos (PMDB-RS, 46ª Legislatura), em agosto de 1980, inaugura os discursos da amostra que creditava a Zumbi, a seu antecessor Ganga-Zumba, e aos palmarinos o maior reconhecimento na luta pela liberdade: “Assim foi Palmares233, Zumbi, Ganga-Zumba e os borbotões de negros escravos que desconhecendo, embora, as fulgurações da liberdade, por amor a ela, pela sua conquista, gozo e manutenção, escreveram as mais belas páginas de bravura cívica, coragem moral, renúncia, heroísmo e grandeza humana.”234
E assim, suplantou o significado da Abolição pelo significado da resistência dos quilombolas:
“Tão só este episódio épico da resistência negra contra o cativeiro sem alma bastaria para sublimar a função quase divinatória do poema da Abolição, no seu sentido mais restrito, livre de circunstâncias acidentais que possam ter influído na sua realidade histórica.”235
Aldo Arantes (PMDB-GO, 47ª Legislatura), em novembro de 1984, relatava e exaltava a peregrinação, organizada pelo Movimento Negro, que ocorreria na Serra da Barriga em Alagoas, local onde resistiu o Quilombo de Palmares. Uma peregrinação em memória de Zumbi e dos palmarinos:
“O meu pronunciamento versa sobre o Dia Nacional da Consciência Negra. Mais uma vez, no dia 20 de novembro, a comunidade negra e todos aqueles que são solidários com essa causa estarão subindo à Serra da Barriga, para ali manifestarem a sua solidariedade e o seu reconhecimento à luta do grande combatente Zumbi. E os negros e a comunidade negra, e os democratas do País procuram afirmar, nessa data, a verdadeira data da libertação dos escravos, procuram construir uma nova história, transmitindo às novas gerações que a História do Brasil foi construída pelo seu povo.” 236
233 234
Refere-se ao espírito de luta pela liberdade.
Diário da Câmara dos Deputados. 29 de agosto de 1980, p. 9374. Diário da Câmara dos Deputados. 29 de agosto de 1980, p. 9374. 236 Diário do Congresso Nacional. 15 de novembro de 1984, p. 3043. 235
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O orador também discursou em prol de um reconhecimento das lutas populares enquanto manifestações que propunham modelos de sociedade que enriqueceriam a experiência democrática. Principalmente, o caso de Palmares, um modelo de sociedade igualitária e democrática que enfrentou as estruturas dominantes da época:
“Há nesta peregrinação um fato de significativa importância para todos nós. Palmares foi, por excelência, uma República democrática. Foi um projeto de nação trabalhada durante quase um século. Seus ensinamentos revelam as dificuldades de nossas elites em compreenderem e aceitarem a livre participação do povo na condução dos destinos do País. A lição de democracia ali encerrada tem de ser resgatada para provar a todos a possibilidade de uma democracia verdadeiramente substantiva.” 237
Por último:
“Sr. Presidente, Srs. Congressistas, esta Casa não pode passar ao largo deste movimento238. Ele se insere no amplo desejo de mudança a percorrer o País em todos os sentidos e latitudes, ao qual ninguém passará impune. Todo apoio à causa negra deve ser prestado, todas as facilidades concedidas para o resgate de nosso passado, materializado no gesto dos militantes dos movimentos negros em recomporem sua história, na verdade, a nossa História.”239
Também em novembro de 1984, Djalma Bom (PT-SP, 47ª Legislatura) discursou em virtude do Dia da Consciência Negra240, realizando uma argumentação que focava a existência de continuidade na luta dos negros desde Palmares. O deputado expôs que a resistência de Palmares foi um marco que revelava a ancestralidade do ativismo negro, algo inexistente na interpretação convencional da Abolição, um marco estático que supostamente teria extirpado as desigualdades raciais, e dessa forma, desacreditado a necessidade de uma luta negra por igualdade. A resistência de Palmares, por outro lado, é interpretado enquanto um marco dinâmico que retrata o negro de forma ativa e em uma luta contínua pela sua libertação. Paulo Paim (PT-RS, 48ª Legislatura), em maio de 1988, discursou especificamente sobre o ativismo negro durante a escravidão em oposição à visão passiva da Abolição:
“Muito além de meros instrumentos de produção utilizados pelos senhores de escravos, os negros sempre foram agentes ativos de sua própria história. Reações que a escola não conta, como o
237
Diário do Congresso Nacional. 15 de novembro de 1984, p. 3044. Refere-se ao resgate da história de Palmares. 239 Diário da Câmara dos Deputados. 15 de novembro de 1984, p. 3044. 240 Diário da Câmara dos Deputados. 21 de novembro de 1984, p. 14535. 238
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banzo241, o assassinato de senhores de escravos, o aborto praticado pela mãe escrava, as fugas individuais, a preservação da religiosidade africana, as revoltas urbanas, os quilombos registrados ao longo da história do escravismo no Brasil, demonstram nitidamente a imensa luta de classe imprimida pelos escravos. Comprovam, sem sofismas, que senzala sim, conspirou, sistemática e permanentemente, contra a exploração e contra a opressão dos escravocratas.”242
Juarez Antunes (PDT-RJ, 48ª Legislatura), também em maio de 1988, no mesmo discurso que versou sobre a Abolição, argumentou também que o 20 de novembro era a data mais significativa para os negros, pois era um marco que retratava o alcance da liberdade enquanto uma dura conquista, e não uma doação:
“Além disso, para os negros, muito mais importante do que esta data é o dia 20 de novembro, quando é comemorada a morte do líder da resistência negra no Brasil. Falo de Zumbi dos Palmares. Desta forma, não quero dizer que não foi relevante o 13 de maio de 1888; é claro que tem seu valor político, mas o maior referencial que expressa, sem desconhecer outros focos de resistência, a luta dos trabalhadores e justiça social é o dia 20 de novembro. Liberdade ninguém recebe, pelo contrário, deve ser conquistada.”243
Para o orador, o Quilombo de Palmares também podia ser traduzido em uma luta do trabalhador em geral. Uma percepção que atribuiu propósitos mais atuais à resistência negra, extrapolando o contexto do Quilombo, pois recorreu à luta de Zumbi enquanto uma batalha com causa universalista. Paulo Paim (PT-RS, 48ª Legislatura), em maio de 1988, discursava contra a Abolição, referendava o Quilombo de Palmares, e assim, também atribuía novo significado àquele quilombo afirmando o status de primeira experiência socialista existente:
“Como símbolo desta determinação de luta por liberdade, da rebeldia e da resistência negra, devemos destacar a República dos Palmares, primeira experiência que tem que ser dita quando se fala em Zumbi. Zumbi foi a primeira experiência socialista que este País já teve, mas não se fala. Socialismo de Zumbi, é por isso que a raça negra luta.”244
Continua:
“Ao falar de socialismo, diga-se também que, muito antes mesmo do lançamento do Manifesto do Partido Comunista, Palmares foi a primeira experiência. Devemos destacar Zumbi dos Palmares, revolucionário negro que lutou até a morte, defendendo a justiça e liberdade. E que se fez de sua existência um exemplo que hoje inspira seus 241
Uma espécie de greve de fome. Diário do Congresso Nacional. 13 de maio de 1988, p. 539. 243 Diário da Câmara dos Deputados. 13 de maio de 1988, p. 1757. 244 Diário do Congresso Nacional. 13 de maio de 1988, p. 539. 242
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descendentes a dar prosseguimento a seus ideais, como bem disse na avenida a unidos de Vila Isabel e como disse aqui na tribuna, aquela que chamo quase de musa do movimento, a companheira Benedita da Silva. Benedita da Silva disse e a Unidos de Vila Isabel também disse: ‘Valeu Zumbi! A luta continua!’.”245 Por final:
“Neste sentido, Sr. Presidente, recordando aquilo que todos dizemos do movimento negro, em relação ao nosso maior herói, que foi Zumbi: a responsabilidade do movimento negro, inspirado em Zumbi, é também no sentido de contribuir para que neste País, um dia, se implante o socialismo. Aí vamos falar em Zumbi. Temos de falar em Zumbi, temos de lembrar à sociedade os quilombos, que eram sociedades socialistas.”246
Os significados extraídos do Quilombo de Palmares e de Zumbi, portanto, serviram a um leque de vínculos com noções e propósitos da atualidade da época. Associavam-se ao quilombo: uma verdadeira experiência democrática, a luta por justiça social, a luta dos trabalhadores, a primeira experiência socialista, entre outros. Palmares foi um marco que ganhou significado amplo ao gosto de cada orador.
Dia Internacional pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, África do Sul e Crítica à Diplomacia Brasileira
Nas duas décadas anteriores, o discurso da harmonia racial no Brasil era normalmente acompanhado de uma apreciação da política exterior do País, que, supostamente, não seria conivente com o regime do Apartheid. A amostra desta década aponta outra interpretação da situação brasileira. Além de questionada a harmonia interna, o País é várias vezes denunciado enquanto patrocinador do regime racista sul-africano. A posição contrária ao Apartheid do Estado brasileiro, segundo vários oradores, não passara de retóricas diplomáticas, e assim, sustentavam que o Brasil nunca rompera efetivamente os laços comerciais com aquele País. Importante lembrar que a maior mobilização na empreitada em prol do rompimento das relações diplomáticas e comerciais foi nitidamente a dos deputados negros. O Dia Internacional Pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial era uma data chave para discursar sobre o Apartheid, especialmente por se tratar de uma data em memória de um massacre de negros ocorrido na África do Sul, o massacre de Sharpeville.
245 246
Diário do Congresso Nacional. 13 de maio de 1988, p. 539. Diário do Congresso Nacional. 13 de maio de 1988, p. 540.
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O deputado Eduardo Suplicy (PT-SP, 47ª Legislatura), em março de 1985, na data comemorativa em questão, lia o Manifesto do Movimento Negro distribuído em manifestação que ocorrera na Praça do Povo em Brasília, no mesmo dia:
“Aproveitamos a oportunidade para lançar nosso protesto contra a falsa ‘Democracia Racial’ brasileira, bem como repudiar o Apartheid, o Sionismo, ou qualquer outra forma de manifestação racista.” 247
Benedita da Silva (PT-RJ, 48ª Legislatura), em março de 1987, também em virtude do Dia Internacional Pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, denunciava o Brasil pela sua incoerência ao manter relações comerciais com a África do Sul:
“Ocorre, Sr. Presidente e Sras. e Srs. Deputados, que na qualidade de segunda nação negra, logo depois Nigéria, esperávamos que o Brasil, por questões de dignidade, através de seu governo, cortasse – e já deveria ter cortado – todos os liames que o unem àquele país, em protesto contra o genocídio que ali vem ocorrendo, dizimando a população negra. Entretanto, chega-nos às mãos o nº. 58 da Revista “Estante Terceiro Mundo”, onde se acha publicado o artigo ‘Brasil – África do Sul, as relações não declaradas’, do jornalista sul-africano David Sig.”248
Continua:
“Por este artigo, verifica-se que o Brasil escancarou as portas da economia brasileira à gigantesca companhia do país do apartheid, a Anglo American Corporation of South Africa Limited, a maior firma de mineração de ouro do mundo, com interesse nos seis continentes.”249
Denunciou a participação de capital sul-africano em várias empresas brasileiras:
“Essa companhia do país do apartheid já controla no Brasil todo o ouro industrializado através da Morro Velho de Minas Gerais, a Mineração Catalão, que detém a segunda maior mina de nióbio do País; a Fosfatos de Goiás S.A – Fosfago, que produz 500 mil toneladas/ano de fosfato; a Codemim, maior produtora de liga de ferro-níquel entre nós; a Mineração Sertaneja, primeira produtora nacional de Tungstênio; a titularidade de 716 pedidos de autorização de pesquisas, de 1379 alvarás e de 35 decretos de lavra; 85% de produção de níquel; a produção de explosivos e armamentos através da CEV, sediada em Lorena, São Paulo (vários tipos de granadas, espoletas para munição pesada, foguetes para bazuca, antiaéreos, metralhadoras ‘MI’, etc.), fato extremamente grave para a segurança do próprio País. A Anglo American, do país do apartheid, vem incursionando ainda em outros setores da economia brasileira, como na exploração da 247
Diário da Câmara dos Deputados. 22 de março de 1985, p. 1573. Diário da Câmara dos Deputados. 24 de março de 1987, p. 683. 249 Diário da Câmara dos Deputados. 24 de março de 1987, p. 683. 248
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castanha de caju, com a compra da Empresa Iracema, que processava o produto em Fortaleza-Ceará.”250
Concluiu:
“Daí nossa profunda estranheza e decepção, Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, quanto neste ‘Dia Internacional pela Eliminação de Discriminação Racial’, verificamos que enquanto a África do Sul mata impiedosamente e de forma selvagem nossos inocentes irmãos de cor em seu território, o Brasil - segunda maior nação negra do mundo – abre dadivosamente suas portas para acolher os capitais daquele país, parece que com intuito de ferir, cada vez mais profundamente, nossa dignidade.”251
Em virtude da passagem pelo Brasil do Bispo sul-africano Desmond Tutu, prêmio Nobel da paz, Haroldo Lima (PC do B-BA, 48ª Legislatura), discursou em maio de 1987 sobre protesto do Movimento Negro ocorrido em Salvador que contou com a presença do ilustre Bispo:
“Pensamos que alguns dos objetivos básicos deste ato de Salvador devem ser, além da solidariedade aos irmãos da África do Sul, o de alertar a comunidade negra brasileira para a necessidade de lutar aqui contra o apartheid, de lutar aqui para que a Constituinte dê um tratamento novo adequado à questão da discriminação racial no País e, finalmente, de levantar bem alto a exigência do rompimento de relações diplomáticas do Brasil com o regime tirânico da África do Sul.”252
Edmilson Valentim (PC do B-RJ, 48ª Legislatura), também em maio de 1987, protestou em prol do rompimento das relações diplomáticas e também denunciou o conluio brasileiro com o regime aparteísta ao permitir a presença da empresa sul-africana no País:
“Destarte, a Comunidade Negra Nacional que, com sangue, suor e muitas lágrimas, constituiu o braço forte de edificação desta Nação, transformando-a na segunda nação negra do universo depois da Nigéria, exige do Governo brasileiro um pouco mais de respeito a seus foros de dignidade, rompendo de vez, sem mais subterfúgios, todo e qualquer relacionamento com o governo medieval da África do Sul, que permanentemente agride, com suas atrocidades, a consciência livre do mundo.”253
Continua:
“Infelizmente, ao que estamos assistindo é de estarrecer. Para a intensidade de nossa tristeza, é o próprio Governo brasileiro que, numa espécie de prêmio, decide abrir 250
Diário da Câmara dos Deputados. 24 de março de 1987, p. 683. Diário da Câmara dos Deputados. 24 de março de 1987, p. 683. 252 Diário da Câmara dos Deputados. 19 de maio de 1987, p. 1740. 253 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. 23 de maio de 1987, p. 2160. 251
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todas as portas dos setores econômicos produtivos do Brasil a uma grande empresa do país do apartheid, a Anglo-American Corporation, que já explora praticamente todas as nossas riquezas minerais e incursiona pelo setor bancário, na indústria alimentícia e até na fabricação de armamentos e explosivos.”254
Por último, demonstrou o descaso do Estado Brasileiro com a questão, inclusive na presença de Desmond Tutu:
“O opróbrio da Comunidade Negra Nacional é imenso. O Governo a decepciona por inteiro, mormente agora, quando da visita do arcebispo Desmond Tutu, uma das mais lúcidas lideranças mundiais contra a opressão e o racismo em todo o mundo, a quem o Presidente da República disse que o Governo brasileiro não está cogitando da possibilidade de romper relações diplomáticas com a África do Sul, apesar dos insistentes apelos nesse sentido, formulados pelo insigne arcebispo.”255
Fernando Santana (PCB-BA, 48ª Legislatura), em fevereiro de 1988, ao referir-se a atos racistas recentes acontecidos na África do Sul, criticava a postura da Câmara por não aprovar projeto de lei (PL nº. 764/88) da Deputada Benedita da Silva (PT-RJ, 48ª Legislatura) que determinava o rompimento das relações com a África do Sul:
“Mas a luta democrática e humanitária contra o regime racista extrapola todas as fronteiras, e no Brasil, Sr. Presidente, manifesta-se das mais variadas formas. Há poucos dias esta Assembléia Constituinte aprovou emenda que toma o racismo um crime inafiançável e punido com reclusão, de autoria de nosso colega Caó. Infelizmente, não tivemos a mesma clarividência quando apreciamos a emenda da Deputada Benedita da Silva que, se aprovada, implicaria no rompimento de relações diplomáticas do Brasil com a África do Sul. Nos últimos dias, no carnaval carioca, baiano e em todo o País, o povo brasileiro expressou o seu horror ao racismo e a sua condenação ao odioso regime sul-africano.” 256
A autora do projeto referido, Benedita da Silva (PT-RJ, 48ª Legislatura) discursou sobre a reprovação do mesmo na Câmara, em março de 1988, no Dia Internacional Pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. A deputada tinha apresentado, portanto, um proposta com efeitos concretos em relação ao Apartheid, enquanto que nas décadas anteriores o protesto não gerava nenhuma iniciativa, apenas elogios a discursos diplomáticos ocorridos em conferências internacionais.
“Lamentando essa falta de tempo, desejo dizer que defendemos aqui o rompimento das relações internacionais do Brasil com a África do Sul, mas infelizmente não conseguimos o número necessário de votos para tanto. 254
Diário da Assembléia Nacional Constituinte. 23 de maio de 1987, p. 2160. Diário da Assembléia Nacional Constituinte. 23 de maio de 1987, p. 2160. 256 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. 19 de fevereiro de 1988, p. 7344. 255
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Impunha-se ao Brasil, como a segunda maior nação negra do mundo, tomar essa iniciativa como forma concreta de repúdio ao genocídio que vem sendo perpetrado naquele país. De forma alguma podemos ser solidários com esse genocídio. Queremos, aqui, estar solidários com a luta concreta pela libertação dos povos.” 257
No mesmo discurso a deputada também fez inúmeras considerações sobre o racismo no Brasil e a exemplo de vários outros discursos da amostra, a sua argumentação não diferenciou o Brasil da África do Sul; ao contrário, desmistificou a democracia racial ao reconhecer similaridades dos dois países. Ou seja, gerou uma inversão no discurso comparativo das duas décadas anteriores. Na amostra, esta posição entre os deputados que pronunciaram sobre o tema predomina, a posição de não mais superestimar a situação brasileira. A tendência é a de reconhecimento das similaridades do racismo local com o racismo mundial, especialmente o da África do Sul. Francisco Dias (PMDB-SP, 47ª Legislatura), em junho de 1986, aproximava a realidade brasileira com a do Apartheid, apontando que a diferença residia apenas na forma. O racismo brasileiro seria “sutil” e “velado”, mas seus efeitos eram os mesmos gerados pela política racista da África do Sul. Depois de discursar sobre a marginalização histórica do negro brasileiro, afirmou:
“O racismo que se pratica no Brasil (qualquer adjetivo é inútil em face da realidade dura e cruel), por ser sutil e velado, como se observa em expressões do tipo ‘negro conhece o seu lugar’, propositadamente inobservado por muitos, e outras do mesmo jaez, é tão aviltante da dignidade da pessoa humana quanto o estúpido e torpe regime do apartheid, instituído na África do Sul, que toda a humanidade condena.”258
Esta mudança no discurso comparativo também se aplicou aos Estados Unidos. Esta tendência reconhecia que aquele país estava mobilizado politicamente para a superação do racismo com resultados concretos de empoderamento dos negros, enquanto o Brasil há muito tempo não oferecia, sequer, o reconhecimento do problema.
Estados Unidos
O discurso sobre a experiência norte-americana teve presença inexpressiva na amostra e, ao contrário dos anos 60, os Estados Unidos viraram um parâmetro de comparação que desmistificava a imagem harmônica do Brasil devido aos avanços que a comunidade negra 257 258
Diário da Câmara dos Deputados. 22 de março de 1988, p. 863. Diário da Câmara dos Deputados. 27 de junho de 1986, p. 6827.
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daquele País angariava, galgando inclusive vários postos importantes no Estado. Nos cinco discursos da amostra que continham referências àquele país, as comparações feitas com o quadro brasileiro revelavam um Brasil inerte, sem iniciativa alguma para o empoderamento dos negros e para superação do racismo. Foram discursos de Carlos Santos (PMDB-RS, 46ª Legislatura), Paulo Paim (PT-RS, 48ª Legislatura), Milton Reis (PMDB-MG, 48ª Legislatura) e Doreto Campanari (PMDB-SP, 48ª Legislatura). Neles, o tratamento do tema, como disse, baseou-se na polarização entre a luta nos Estados Unidos e as dificuldades para sua construção no Brasil. As partes dos discursos analisadas até então exploraram principalmente os temas chaves da amostra. A Abolição, o Apartheid, o Dia Internacional Pela Eliminação de Todas as Formas de Racismo, o 20 de novembro, Zumbi e os Estados Unidos foram as temáticas propulsoras das reflexões. As análises a seguir focam especificamente as partes que contêm reflexões e críticas às temáticas desmembradas e às menos destacadas pelos deputados.
Isolacionismo racial
O discurso do deputado Milton Reis (PMDB-MG, 48ª Legislatura), analisado anteriormente, em maio de 1988, contrapunha o racismo brasileiro com o norte-americano, afirmando que o último seria coletivo. Sua percepção é similar neste aspecto à visão isolacionista muito recorrente nas décadas de 60 e 70. As práticas racistas seriam ocorrências limitadas geograficamente e em sua freqüência, além de que seriam praticadas por “desajustados socialmente” (loucos, anti-brasileiros, imigrantes, psicopatas, nazistas, etc.). Discursos com esta percepção ainda encontraram respaldo nesta amostra nos discursos de Carlos Santos (PMDB-RS, 46ª Legislatura) e Freitas Nobre (PMDB-SP, 46ª Legislatura). O primeiro, um deputado com postura marcadamente contraditória nos anos 70, pois, ao mesmo tempo em que lutava contra o mito da democracia racial e apontava a necessidade de medidas mais enérgicas contra o racismo, por outro lado, compartilhava de uma visão isolacionista das relações raciais e em alguns momentos, até mesmo harmônicas. Em agosto de 1980, o deputado protestava contra atos de racismo contra a jornalista Glória Maria e a sambista Lecy Brandão, fatos de expressão na mídia da época:
“Quer o meu Partido registrar nos Anais da Casa e, assim, proclamar pelos quadrantes mais longínquos da Pátria, a par de séria e justificada preocupação, a mais vigorosa
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repulsa às manifestações atávicas de doentio preconceito de cor, nestes últimos tempos com impressionante freqüência no País.”259
Concluiu:
“São manifestações, não há dúvida, isoladas, de nítida inspiração nazista, mas que repugnam a consciência da Nação e agravam sobremodo os brios da nacionalidade.” 260
O deputado Freitas Nobre (PMDB-SP, 46ª Legislatura), em maio de 1982, em um discurso harmônico sobre a Abolição, também compartilhava da visão isolacionista:
“O oceano nos colocava de costas um para o outro, porque nossa Pátria era a senzala de escravos. Agora é o lar de homens de mãos dadas contra os preconceitos raciais, embora ainda exista certa prevenção, que se torna indispensável extinguir.”261
O deputado discursou também com percepções que marcaram os discursos dos anos 60 e parte dos anos 70, ou seja, uma visão de fraternidade entre as raças e apologia ao “caldeamento das raças”, à miscigenação:
“Aqui procuramos viver a integração racial. De mãos dadas, chorando a alegria de um porvir que se conquista, marchamos em direção ao futuro, caldeando raças e compondo poemas. Aqui acolhemos todos, e os dramas que nos escravizam são comuns a toda a população.”262
Mais à frente:
“As canções tristes que embalaram a nossa infância têm suas raízes no continente africano, e na saudade amargurada daqueles que souberam renascer através dos filhos para a nova aurora de uma Pátria sem barreiras raciais.”263
O deputado sugeriu estar fazendo uma homenagem ao negro ao argumentar que o branco foi incapaz de “enfrentar o indígena” e de realizar o trabalho de construção da Pátria:
“Sua habilidade [do negro] nos ensinou a arrotear o solo e a suportar as durezas do clima, como não pudera fazê-lo o colonizador que não soubera enfrentar, também, o 259
Diário da Câmara dos Deputados. 29 de agosto de 1980, p. 9373. Diário da Câmara dos Deputados. 29 de agosto de 1980, p. 9373. 261 Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1982, p. 3269. 262 Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1982, p. 3269. 263 Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1982, p. 3269. 260
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selvagem belicoso e livre.”264
Finalizou rendendo a sua homenagem ao negro:
“Que melhor homenagem poderíamos prestar ao negro que nos propiciou a independência econômica, que se divisa para a Pátria do amanhã?”265
O discurso do deputado é nitidamente harmônico e extremamente sarcástico. O índio é depreciado abertamente sem qualquer ressalva harmônica, como a que sugere a integração deste povo. Foi direto e claro nas percepções escamoteadas pela visão harmônica, ou seja, narrou enquanto lástima o insucesso português na escravização dos indígenas, o que pode ser lido como sucesso concreto no genocídio ainda em curso. Ao negro, ainda coube o elogio hipócrita, mas totalmente transparente na sua falsidade. A sua homenagem residiu no trabalho do negro, obviamente, o trabalho responsável pela produção da riqueza material da Nação, mas da qual ele não usufrui historicamente. E pior ainda, uma homenagem a um trabalho escravo. O discurso harmônico não passou de exceção na amostra. Além de Freitas Nobre (PMDB-SP, 46ª Legislatura), apenas Arolde de Oliveira (PFL-RJ, 48ª Legislatura) e José Lourenço (PDS-BA, 47ª Legislatura) discursaram com posições semelhantes. O discurso de José Lourenço, em junho de 1983, referiu-se às posturas do deputado Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) e é o único da amostra que afirmou não haver sequer resquício de racismo no País. Já o de Arolde de Oliveira (PFL-RJ, 48ª Legislatura), em maio de 1988, tratava do tema da Abolição, outra homenagem rendida aos negros. Voltando à temática isolacionista, alguns discursos empenharam-se na afirmação do contrário desta percepção, destacando principalmente o caráter coletivo do racismo brasileiro. Adalberto Camargo (PDS-SP, 46ª Legislatura) discursou em março de 1982 sobre entrevista realizada com o esportista Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, o qual afirmara nunca ter sido vítima de racismo na sua vida. A entrevista rendeu os comentários do deputado, afirmando que experiência individual de Pelé não justificava a inexistência do problema no País, e que de fato o racismo se tratava de uma prática coletiva: “O problema é coletivo, não é individual, particularmente com relação a Pelé, por ser o atleta do século e ter prestado relevantes serviços na divulgação do Brasil no exterior. Se desprovido dessas condições excepcionais que alguém 264 265
Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1982, p. 3269. Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1982, p. 3269.
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recebe por dádiva divina, torno a repetir, a resistência ao acesso a diferentes setores de nosso mercado de trabalho também o perseguiria. O fenômeno hipócrita da igualdade apregoada, mas não exercitada por muitos, cujos sintomas de dificuldades, embora invisíveis para uns, são detectados por nós, membros da comunidade afro-brasileira, não pode correr o risco de ser tomado, para os menos entendidos, como uma declaração da inexistência do problema em nosso País, prestada em órgão de grande divulgação por alguém que, graças ao seu destino, apoderou-se de extraordinária força publicitária, a qual, em vez de ser utilizada negativamente, poderia contribuir, somando esforços, de maneira positiva e participativa, no sentido de abolirmos, o quanto antes e de uma vez por todas, esse estigma discriminatório e preconceituoso que tanto tem infelicitado o povo brasileiro e a classe política, obstaculizando o projeto político do Sr. Presidente da República, de fazer deste País uma democracia igualitária para todos.” 266
Outro exemplo do enquadramento do racismo brasileiro enquanto coletivo é o discurso de Paulo Paim (PT-RS, 48ª Legislatura) em junho de 1987. O deputado protestava contra o assassinato de um trabalhador negro (sem antecedentes criminais e com inocência comprovada) em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. O trabalhador presenciara um assalto a um supermercado, e dessa forma, fora levado ileso pela polícia como suspeito e deixado morto em um Hospital. Paulo Paim proferiu protesto e expôs reflexões sobre o racismo no Brasil. Apesar de não utilizar termos como o racismo coletivo, apontou as arbitrariedades racistas semelhantes às do apartheid enquanto acontecimento cotidianos:
“Assassinatos como este me fazem lembrar desde os nazistas, na Segunda Grande Guerra, ao regime do apartheid, desumano e racista, da África do Sul.”267
Continua falando da experiência de ser negro:
“Srs. Deputados, V. E x a s . não sabem, porque nunca sentiram na pele, o que é ser negro e pobre neste País. Negro e pobre está sujeito a ser assassinado como Júlio César, ser discriminado nos ônibus, nos clubes, nas ruas, nas lojas, nos bancos, no serviço, no colégio, enfim na vida. Sabem V. Exas. que é os filhos voltarem para casa e dizerem que lhes chamaram de negros sujos? E perguntar por que isso. Explica-se, explica-se, mas não se convence.”268
Continua:
“As perguntas continuam: Por que as bonecas não são pretas? Por que os heróis das histórias em quadrinhos ou dos filmes não são negros? Por que até Cristo e seus 266
Diário da Câmara dos Deputados. 10 de março de 1982, p. 612. Diário da Câmara dos Deputados. 9 de junho de 1987, p. 1886. 268 Diário da Câmara dos Deputados. 9 de junho de 1987, p. 1886. 267
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seguidores são brancos? Por que, enfim, o padre, o juiz, o general, o presidente, todos são brancos, se, por outro lado, dizem que os negros são maioria no Brasil?”269
Mais à frente:
“Senhores, chega-se ao ponto de que fatos como o assassinato de Júlio César, que por ser negro e operário foi considerado suspeito e executado, têm de ser colocados à luz da verdade.”270
Expõe sua percepção do racismo no Brasil:
“É que o Brasil é um país onde o racismo é muito forte, e os negros brasileiros, no seu conjunto, não acordaram ainda para isso. E só essa explicação que podemos dar frente ao assassinato desse inocente.”271 Continua:
“Júlio César tinha somente 30 anos, foi assassinado como um marginal. Qual foi o seu crime? Nenhum. Mas era negro, pobre e operário, casado e filho exemplar. Por isso morreu.”272
Concluiu enfatizando característica cotidiana do racismo no Brasil:
“Sr. Presidente, quero deixar registrado nos Anais da Câmara dos Deputados a revolta de toda a comunidade negra brasileira por este crime, um dos que acontecem no dia-adia deste País.”273
Grande parte dos discursos assumiu formas semelhantes à de Paulo Paim (PT-RS, 48ª Legislatura). Apesar de não se reportarem a quadros conceituais sobre o racismo no Brasil, apresentavam narrativas de práticas racistas trazendo à tona a gravidade do problema no País e indiretamente expressando o aspecto de discriminação coletiva e sistemática. Outro discurso com forma semelhante é o de Benedita da Silva (PT-RJ, 48ª Legislatura) em julho de 1988. A deputada protestava contra uma edição da revista “Turma da Mônica” devido ao seu conteúdo racista. Demonstrando a existência da doutrinação racista inclusive nos meios de comunicação infantis, a deputada retoma a discussão da Abolição afirmando que o negro neste marco obteve apenas a possibilidade da escolha entre a miséria 269
Diário da Câmara dos Deputados. 9 de junho de 1987, p. 1886. Diário da Câmara dos Deputados. 9 de junho de 1987, p. 1886. 271 Diário da Câmara dos Deputados. 9 de junho de 1987, p. 1886. 272 Diário da Câmara dos Deputados. 9 de junho de 1987, p. 1886. 273 Diário da Câmara dos Deputados. 9 de junho de 1987, p. 1886. 270
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ou opressão:
“Não é difícil imaginar que para a criança negra ver sua raça ser retratada sempre de forma pejorativa resulta para ela efeitos psicológicos negativos, contribuindo para reforçar a perda de sua identidade, enquanto negros, daí advindo o início do processo de ‘branqueamento’, onde o negro assume posturas e valores culturais que nada têm a ver com sua personalidade, só para ser aceito pela sociedade. Como na historinha, onde a menina de cabelos encarapinhados precisa usar uma peruca loura e de cachos dourados para, disfarçando sua cor, ser aceita pelas outras crianças, iniciando ai a perda de sua identidade.”274
Mais à frente:
“Enfim, Sr. Presidente, Sr s . e Sras. Constituintes, enquanto imaginamos estar avançando no processo de conscientização não apenas da população negra, mas de toda sociedade sobre a questão racial, pois consideramos estreita a posição que afirma que a questão racial diz respeito apenas aos negros; enquanto nos batemos, há longas datas, para esclarecer que a abolição, para os negros, existiu apenas juridicamente e esta liberdade significou, apenas, a liberdade de escolher entre a miséria e a opressão em que vive hoje grande parte dessa população, recebemos esse tipo de abordagem do tema, talvez como ‘incentivo’ para continuarmos. Consideramos um desrespeito e uma desconsideração da equipe da Editora e do autor Maurício de Souza para com o trabalho dos movimentos negros organizados em toda a Nação, a partir do momento em que permitem a publicação de tal matéria, demonstrando desconhecer que estamos trabalhando visando contribuir para tornar menor a discriminação em nosso País.”275
Doreto Campanari (PMDB-SP, 48ª Legislatura), em março de 1989, expunha, sem nenhum grande tema cerceando seu pronunciamento, suas percepções acerca do racismo brasileiro. Depois de argumentar que poucos negros, normalmente mestiços, ascenderam socialmente no País, afirmou:
“Nesse contexto, a classe trabalhadora, na base da pirâmide social, é constituída de negros e mestiços, em sua grande parte, principalmente nos centros populosos, quando os mais claros dominam o espaço agrícola.”276
Mais à frente:
“Até os seis anos sem escola, sem usufruir os meios de comunicação de massa, sem a interação lúdico-pedagógica que contribui para formação do caráter, o conjunto de dezenas de minorias se transforma na maioria, entre analfabeta e semi-analfabetizada, massa de manobra das classes dominantes, desprovida de auto-estima, ilhada em
274
Diário da Assembléia Nacional Constituinte. 1 de julho de 1988, p. 11835. Diário da Assembléia Nacional Constituinte. 1 de julho de 1988, p. 11835. 276 Diário da Câmara dos Deputados. 3 de março de 1989, p. 590. 275
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guetos.”277
Continua:
“A hipocrisia, segundo a qual somos a ‘maior democracia racial do mundo’, precisa ser revista, com urgência, para que possamos, com autoridade, criticar os Estados Unidos ou a África do Sul.”278
Por fim:
“Lembremo-nos de que a população carcerária, os albergados dos juizados de menores e a maioria absoluta das favelas são constituídos de pretos e mestiços, numa nítida separação social que nega a essência da democracia.”279
Estes são pronunciamentos que em nenhum momento tendem a harmonizar, amenizar ou diferenciar a situação racial do Brasil com uma suposta harmonia. Pelo contrário, descrevem quadros de segregação explícita como intervenções policiais, assassinatos, discriminação na mídia e sobre-representação dos negros nas prisões, favelas e demais circunstâncias sociais degradantes. São pronunciamentos que indiretamente apontam a existência de um racismo coletivo e sistemático, principalmente quando vislumbram a sociedade dividida claramente em dois segmentos com acessos e garantias sociais totalmente assimétricas.
Transversalidade
O argumento de que o preconceito social, econômico ou de classe suplantava o racial não foi apresentado por nenhum orador na amostra, apenas por aparteantes. Por outro lado, alguns discursos expressaram opiniões diametralmente opostas à visão reducionista de classe. Trata-se de discursos que atribuíam ao racismo uma aplicação transversal em diversos segmentos sociais. Estes discursos reconheciam que o racismo tinha seus efeitos específicos, funcionando como agravantes nas situações de segmentos sociais já discriminados por outras características. A situação da mulher negra, por exemplo, foi a mais evidenciada nestes discursos, pois ela estaria sujeita a várias discriminações sobrepostas: o machismo e o racismo, inevitavelmente, e sujeita à discriminação social, econômica, ou de classe, entre 277
Diário da Câmara dos Deputados. 3 de março de 1989, p. 590. Diário da Câmara dos Deputados. 3 de março de 1989, p. 590. 279 Diário da Câmara dos Deputados. 3 de março de 1989, p. 590. 278
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outros agravantes sociais menos sistemáticos, mas tão perversos quanto esses. Modesto da Silveira (PMDB-RJ, 46ª Legislatura), em maio de 1980, no mesmo discurso sobre a Abolição analisado anteriormente, apontava a transversalidade do racismo, ao referir-se a presença do problema entre os operários e ao referir-se à situação da mulher negra:
“Desta forma, Sr. Presidente, a abolição, na medida em que promoveu a integração social do escravo, reafirmou ainda mais a falsa idéia da inferioridade do negro. A verdade é que a discriminação contra o preto em nosso País prosseguiu no curso da História. O preconceito existe em todas as classes, inclusive nas mais pobres, onde pretos e brancos lutam a todo custo pela sobrevivência. Até entre o operariado é comum encontrar-se o branco racista e o preto submisso, fruto da ideologia de uma minoria que forma a classe dominante e, como tal, manipula todos os meios de comunicação. Sociedade elitista, que se envenena com vários níveis de discriminação, sobretudo a econômica, a racial, a sexual e outras.”280
E sobre a mulher argumentava:
“Somente possibilitando a elas [as partes excluídas da sociedade] o acesso livre e igual a empregos e cargos na administração pública e no setor privado, somente banindo de nossa cultura ‘branca’ o preconceito discriminador do negro e demais minorias sociológicas, inclusive a mulher e o índio - a mulher negra é ainda mais discriminada, vista como objeto sexual e raramente como pessoa humana - somente garantindo-lhes igualitariamente meios para sua educação em todos os níveis e o direito ao uso de todas as formas de lazer, somente pagando-lhes a justa remuneração pelo seu trabalho e cuidando da valorização individual dos seus partícipes, estaremos, de fato, promovendo a integração dessas coletividades no esforço enorme que tem de ser feito para que o Brasil possa, um dia, vir a ser respeitado como Nação independente por todos os povos que compõem a comunidade internacional.”281
Benedita da Silva (PT-RJ, 48ª Legislatura), em maio de 1988, discursou no dia das mães com uma crítica feroz ao marketing envolvido na data, por se tratar de estratégias publicitárias com predominância de valores racistas, em sua maioria. Dessa forma, tratava especificamente da situação de degradação ao qual estavam submetidas inúmeras mulheres negras e pobres. Criticando a imagem de mãe que a publicidade retratava, afirmava:
“Essa imagem de mãe bela, branca, de corpo muito bem tratado, cercada de eletrodomésticos de todos os tipos, numa cozinha ampla e brilhante, numa casa decorada segundo os ditames do bom gosto burguês, nós a conhecemos muito bem; sabemos como é falsa e alienante essa imagem da mulher, principalmente de uma mulher passiva, que não luta por seus direitos, pela sua emancipação e pelo reconhecimento de sua cidadania; que está muito satisfeita com o papel que 280 281
Diário da Câmara dos Deputados. 9 de maio de 1980, p. 3438. Diário da Câmara dos Deputados. 9 de maio de 1980, p. 3438.
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a sociedade machista e burguesa lhe destinou: o de ser o anteparo, ser apenas o ponto de apoio e equilíbrio de toda sua família, sem vida nem vontade própria, sem desejos, sem anseios e aspirações, apenas vivendo para o lar. Esta imagem da mulher tutelada pelo pai, pelo marido e mesmo pelos filhos ainda subsiste, apesar de a mulher moderna, pela sua própria atitude revolucionária, já contradizer estes estigmas.” 282
Em seguida:
“Queremos falar aqui da mãe popular, da mãe feia, porque é pobre, negra, maltratada pela dureza da vida, criadora de estratégias de sobrevivência para sua família, seus filhos e seu companheiro: queremos falar, sobretudo, da mulhermãe chefe de família.” 283
A oradora em seguida protestou contra a situação de milhares de mulheres chefes de família, a maioria de baixa renda, o que segundo a deputada era fenômeno da modernização e industrialização. Ressaltava também o fato de que muitas destas chefes de família perderam seus maridos por causa do crime, estando estes mortos ou presos, frisava também participação majoritária da mulher negra nesse segmento social: “Desnecessário dizer que as mulheres negras constituem maioria nessa categoria sociológica.”284 A deputada também protestou contra a situação das mães prostitutas pela vergonha e solidão em relação aos seus filhos, agravos decorrentes do status de sua profissão; protestou contra a situação das empregadas que residiam semanalmente, quinzenalmente ou mensalmente nas casas das patroas, sobrando poucas horas de contato com os filhos, e estes ficando legados à criação de terceiros; e por último, protestou contra o “massacre moral” ao qual estavam submetidas as mulheres solteiras por opção. E finalizou argumentando contra as iniciativas parlamentares em prol da redução dos 120 dias de licença-maternidade, medidas que acarretariam o agravamento principalmente da situação das mulheres pobres e negras. Paulo Paim (PT-RS, 48ª Legislatura), em maio de 1988, em discurso sobre a Abolição analisado anteriormente, também abordava a questão da transversalidade, argumentando reconhecer enquanto sindicalista que não era apenas oprimido socialmente, mas também, e especificamente, racialmente. Em seu discurso também atribui ao movimento negro o mérito de trazer à tona o debate da questão racial, enquanto uma problemática importante e com suas especificidades: 282
Diário da Câmara dos Deputados. 11 de maio de 1988, p. 1647. Diário da Câmara dos Deputados. 11 de maio de 1988, p. 1647. 284 Diário da Câmara dos Deputados. 11 de maio de 1988, p. 1648. 283
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“Cabe ao movimento negro, e somente ao movimento negro, o mérito de ter legitimado definitivamente o debate sobre a discriminação racial. Cabe ao movimento negro o mérito pela aprovação na Assembléia Nacional Constituinte, de que o racismo é crime inafiançável. Às organizações negras se deve o enfoque dado pela CNBB à campanha da fraternidade deste ano. Não é de graça que hoje o discurso do paraíso racial não se agüenta mais em pé. Não é de graça que hoje universidades, instituições de pesquisas, os movimentos sindicais e populares, os partidos políticos de trabalhadores começam a tratar a questão racial com o peso político que esta merece.”285
Por fim:
“Devo reconhecer, Srs. convidados, foi por obra, sim, do movimento negro que eu, que fui sempre sindicalista, um operário negro, assumi a consciência de que sou oprimido pela minha condição de classe, sim, mas também sou oprimido por ser negro, e este mérito é do movimento negro.”286
O mesmo deputado em outro discurso, em maio de 1988, também abordava a questão da mulher negra, adicionando uma crítica à miscigenação racial, relatando-a enquanto fruto do estupro da mulher negra pelo branco:
“Sabiam V. Exas. que na escravidão, os senhores brancos usavam as mulheres negras como objeto sexual para se divertirem e que depois de cem anos, a situação ainda é a mesma; que o homem negro também é machista; que a maioria das mulheres negras trabalha dentro e fora de casa, como empregada doméstica, em regime de semiescravidão, sem tempo para elas mesmas e sem os mínimos direitos trabalhistas; que a mulher negra é o sustentáculo da nossa organização comunitária e cultural, mas continua sendo triplamente discriminada, isto é, enquanto raça (negra), mulher (sexo) e pobre (classe)?”287
A miscigenação
Paulo Paim (PT-RS, 48ª Legislatura), no discurso analisado anteriormente, também em maio de 1988, abordou a questão da miscigenação racial afirmando a mesma percepção:
“Fala-se em miscigenação racial, mas não se fala que a miscigenação teve inicio, principalmente, no estupro da mulher negra pelo senhor de escravo. Isso ninguém fala.” 288
285
Diário do Congresso Nacional. 13 de maio de 1988, p. 540. Diário do Congresso Nacional. 13 de maio de 1988, p. 540. 287 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. 24 de maio de 1988, p. 10682. 288 Diário do Congresso Nacional. 13 de maio de 1988, p. 540. 286
129
O tema da miscigenação foi bastante explorado nos discursos. Alguns deputados ostentavam a percepção de que a miscigenação se tratava de um fenômeno naturalmente benéfico, corroborando com a teoria do embranquecimento, mas sem tanger o assunto. Estes deputados, mesmo reconhecendo o quadro de segregação racial, ostentavam tal percepção. Já outros reconheciam o discurso da miscigenação enquanto dispositivo ideológico criado para legitimar os mitos da democracia racial e da superioridade branca, pois funcionariam como uma continuidade da teoria do embranquecimento. Neste grupo, também há as percepções como a de Paulo Paim (PT-RS 48ª Legislatura), que via na miscigenação a representação da exploração histórica da mulher negra ao contrário de relações supostamente amistosas e naturais iniciadas entre os portugueses e as africanas. De forma um pouco semelhante à de Paulo Paim (PT-RS, 48ª Legislatura), Modesto da Silveira (PMDB-RJ, 46ª Legislatura), em maio de 1980, no mesmo discurso em que afirmava que a mulher negra era sistematicamente tratada como objeto sexual, argumentava:
“A segregação racial e, pois, um reflexo de toda uma ideologia. Fruto da miscigenação existente entre nos, difundiu-se a idéia errônea de que no Brasil vive-se uma democracia racial. Na realidade, acostumamos confundir a mera ‘tolerância racial’ com a verdadeira ‘democracia racial’. Não basta somente a existência de alguma harmonia nas relações sociais de pessoas pertencentes a grupos raciais diferentes para que se configure a propalada ‘democracia racial’. O substrato desta, pois, é a própria democracia, que inexiste ainda neste País.”289
Edmundo Galdino (PSDB-TO, 48ª Legislatura), em maio de 1989, no mesmo discurso analisado anteriormente sobre a Abolição, aprofundava suas reflexões sobre a democracia racial, que segundo o orador estava pautada no ideal de embranquecimento da elite brasileira:
“...mercadejavam [a elite brasileira] a idéia de que no Brasil se instalou a chamada democracia racial. Justificam-na baseando-se em fatos históricos, como a habitual convivência dos portugueses, em seu país de origem, com os invasores mouros, portadores de pele escura. Essa convivência teria facilitado o relacionamento, inclusive sexual, entre lusitanos e parceiros de cor. Graças a esse relacionamento interétnico, alcançaríamos um inevitável processo de morenização, que formaria a nova configuração racial do País.”290
O trecho acima está incluso na argumentação do orador exposto anteriormente de que os mitos da inferioridade do negro e da democracia racial foram aparatos ideológicos subseqüentes à Abolição para se manter o quadro de segregação racial.
289 290
Diário da Câmara dos Deputados. 9 de maio de 1980, p. 3437. Diário da Câmara dos Deputados. 17 de maio de 1989, p. 3513.
130
Por outro lado, Maurício Nasser (PMDB-PR, 48ª Legislatura), em maio de 1988, mesmo reconhecendo o quadro de desigualdades raciais ainda sugeria que o Brasil estaria formando um tipo único futuramente, o que não justificaria a existência de práticas racistas na atualidade:
“O brasileiro é, ainda, um homem racialmente em formação. O nosso país é um cadinho de raças, e o caldeamento se encontra em fase de processamento, a prosseguir séculos a dentro.”291
A idéia de povo em formação é permanente nas três décadas. Em 60 e 70 é praticamente inquestionada. Já nos anos 80, apesar de ser questionada ela coexiste em grande parte dos discursos com críticas vorazes contra a segregação racial brasileira. Maurício Nasser (PMDBPR, 48ª Legislatura) enfatizando mais ainda a idéia concluía:
“O negro, o branco, o vermelho e o amarelo estão se fundindo, até que, no decurso do tempo, surja, em definitivo; o homus brasiliensis. Se o negro é um dos ingredientes em tal processo, por que, então, a discriminação mútua entre ele e o branco?”292
O orador também sugeriu a existência de um racismo mútuo, contradizendo toda uma lógica histórica de dominação imposta pelos brancos. Posição que carrega o intuito de deslegitimizar a luta do negro, afinal, a posição histórica legada ao negro não foi senão a de requisitar a igualdade. Mauro Miranda (PMDB-GO, 48ª Legislatura), em maio de 1988, profere discurso em desacordo com o significado da Abolição, e sustenta posição contrária a existência de um racismo mútuo empenhada por Maurício Nasser (PMDB-PR, 48ª Legislatura):
“O negro não é contra ninguém. Reivindica igualdade de condições na educação, na distribuição da riqueza nacional, nos empregos, no aproveitamento de seu peso político, em outras palavras, uma definitiva igualdade racial no Brasil, onde nenhuma etnia seja passada para trás, como atualmente ocorre.”293
Mauro Miranda (PMDB-GO, 48ª Legislatura) também argumentou que o negro, além do fato de que estava lutando por igualdade, estava tentando resgatar, por direito, uma “dívida incomensurável” da qual seria credor. No entanto, o orador, mesmo extremamente sensibilizado da insignificância da Abolição e do quadro de segregação, ainda ostentava 291
Diário da Câmara dos Deputados. 12 de maio de 1988, p. 1696. Diário da Câmara dos Deputados. 12 de maio de 1988, p. 1696. 293 Diário da Câmara dos Deputados. 13 de maio de 1988, p. 1753. 292
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posições harmônicas sobre as relações raciais, inclusive sobre a miscigenação, que seria uma expressão da convivência harmônica entre as raças. Milton Reis (PMDB-MG, 48ª Legislatura), também em maio de 1988, proferia discurso em reconhecimento das poucas mudanças ocorridas para os negros depois da Abolição, e inclusive, reconhecia os avanços dos E.U.A. na superação do racismo, enquanto algo inexistente no Brasil. De forma contraditória, previa a criação do tipo único brasileiro, fruto da miscigenação, e composto das melhores qualidades de cada raça. Depois de afirmar que a ciência provava que não existia raça inferior, contraditoriamente, ostentava uma percepção que aceitava o conceito científico de raças humanas, já há muito superado, e conseqüentemente a existência de características inatas entre elas:
“A multiplicação dos livres casamentos entre pessoas de todas as raças já está criando no Brasil um tipo muito especial, que une o que há de melhor em todas as etnias que aqui se caldeiam.”294
O deputado retomou o discurso darwinista do início do século, discurso de uso extremamente racista pela elite brasileira que pregava o branqueamento como medida de progresso nacional, pois a miscigenação permitiria a conjunção de características inatas de todas as raças e especialmente da raça branca, que seria a superior. Por último, o deputado Nelson Seixas (PDT-SP, 48ª Legislatura), em Novembro de 1989, celebrando o Dia da Consciência Negra, exaltando Zumbi e afirmando a necessidade de uma reconstrução histórica do País que focasse os atos de ativismo negro em prol da liberdade, ainda creditava à miscigenação a façanha da supressão das desigualdades raciais.
“É notório que a miscigenação das raças negras, indígenas, européias e asiáticas tem formado a mais original e numerosa população mestiça do mundo, onde se acham todas as cores, todos os traços, sempre misturados, como o tom da pele indefinido, sem prevalência de qualquer que seja. Assim deve ser a nossa sociedade: que não haja a prevalência de uma raça sobre outra e que não haja, o que é mais grave, prevalência de uma classe sobre outra, de uma minoria sobre uma maioria, porque isto não é democracia, isto não é desenvolvimento e nunca nos levará a coisa alguma.”295
O tema da miscigenação, portanto, apresentou-se nestes discursos integrados a discursos de desconstrução da democracia racial, mas por outro lado, chegam a utilizar-se de percepções defendidas pelas elites brasileiras no início do século, elites que procuravam meios de alijar os negros da população brasileira pós-abolição. Exaltam a miscigenação sem 294 295
Diário da Câmara dos Deputados. 13 de maio de 1988, p. 1746. Diário da Câmara dos Deputados. 21 de novembro de 1989, p. 13445.
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vislumbrar nenhum contrapeso, pois uma apologia à miscigenação pode significar justamente uma apologia ao estupro da mulher negra e uma apologia à teoria do embranquecimento.
A revogação da Afonso Arinos
Assim como nos anos 70, a Lei Afonso Arinos, promulgada em julho de 1951, foi rejeitada amplamente em diversos aspectos nos discursos da amostra. Alguns ainda atribuíam à Lei um valor histórico que cumprira seu dever em outras circunstâncias, precisando, portanto, ser atualizada ou trocada por medidas mais enérgicas. Outros discursos já atribuíam à Lei total ineficácia, por não tratar com rigidez necessária os crimes racistas. Na amostra da década, o conjunto de discursos sobre a Lei Afonso Arinos também contou com discursos que evidenciaram o trâmite de três Projetos de Lei que visavam alterar ou revogar a Lei em questão. O único aprovado foi o Projeto de Lei nº. 668/88, de autoria de Carlos Alberto Caó (PDT-RJ, 48ª Legislatura). O Projeto de Lei enquadrava o racismo enquanto crime inafiançável e sujeito à reclusão carcerária. A Constituinte de 1988 incorporou o conteúdo da Lei que foi promulgada em 1989 (Lei nº. 7716/89). Adalberto Camargo (PDS-SP, 46ª Legislatura), em março de 1980, denunciava ato de racismo e criticava a Lei Afonso Arinos, pedindo que o crime fosse enquadrado na Lei de Segurança Nacional:
“Chamo a atenção de nossas autoridades, sobretudo do Sr. Ministro da Justiça, formulando-lhe apelo no sentido de mandar apurar os fatos da denúncia ora feita e enquadrar devidamente o infrator na Lei de Segurança Nacional, mesmo porque a lei que aí existe, que proíbe o preconceito, não está dotada de eficácia para punir aqueles que insistem em desconhecer a importância e o direito dos descendentes de africanos.”296
Carlos Santos (PMDB-RS, 46ª Legislatura), em agosto de 1980, no mesmo discurso em que protestava contra os atos de racismo ocorridos contra a jornalista Glória Maria e contra a cantora Lecy Brandão (ambos os casos foram atos de restrição da entrada a estabelecimentos), criticava a Lei Afonso Arinos:
“E a autoridade policial, mais uma vez, como em tantas outras, não encontrou como enquadrar o zelador racista confesso na Lei Afonso Arinos, que, mais uma vez, demonstrou sua total inocuidade, quando o grupo seleto de negros que 296
Diário da Câmara dos Deputados. 22 de março de 1980, p. 1079.
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teve a idéia do referido diploma sugerira ao seu autor, na Câmara, que qualquer manifestação racistóide ou de doentio preconceito de cor merecesse de pronto enquadramento como crime de lesa-Pátria.” 297
O questionamento da Lei Afonso Arinos enquanto uma Lei ineficaz encontrou na década a justificativa de que o racismo não era apenas uma contravenção penal, pois ela feria a coletividade. Neste âmbito, insere-se o discurso de Carlos Santos (PMDB-RS, 46ª Legislatura) ao afirmar que o racismo era uma prática que quebrava “os laços da unidade nacional”. Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura), posteriormente, também desenvolve argumento similar; no entanto, ampliando prática do racismo enquanto crime de lesa-humanidade também, não restringindo apenas ao âmbito da Pátria. Sobretudo, além destas considerações argumentava-se majoritariamente apenas que a prática racista deveria ser crime inafiançável e sujeito à reclusão. Como visto anteriormente, a amostra detectou que três deputados apresentaram Projetos de Lei visando à alteração ou substituição da Afonso Arinos por mecanismos legais que contemplassem estas percepções. Os três, respectivamente Adalberto Camargo (PDT-SP, 46ª Legislatura), Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) e Carlos Alberto Caó (PDT-RJ, 48ª Legislatura), eram deputados negros. Adalberto Camargo, em maio de 1981, discursou na defesa do seu Projeto de Lei, PL 2289-A/79. Apesar de incluir a reclusão carcerária enquanto pena só para alguns casos, o projeto ainda permanecia com as penas pecuniárias. O seu projeto foi rejeitado no Senado em dezembro de 1982. Em maio de 1981, depois do tramite pela Comissão de Constituição e Justiça o deputado defendia seu projeto que logo passaria por aprovação na Casa: “A existência desses instrumentos legais298, todavia, parece ainda insubsistente para sustar práticas discriminatórias e preconceituosas que freqüentemente ocorrem em diferentes pontos do território nacional, notadamente contra os brasileiros descendentes de africanos, de forma constrangedora e desrespeitosa para incorporar-se à história de nossa raça negra, criando tensões, alimentando sentimentos de revolta, abrindo feridas entre negros e brancos, apresentando imagem negativa de nossa justiça e, o que é mais grave, empurrando o homem de cor para situação de inferioridade.”299
Concluiu:
297
Diário da Câmara dos Deputados. 29 de agosto de 1980, p. 9375. Refere-se à Lei Afonso Arinos, ao § 1º do art. 153 da Constituição e à Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Racismo. 299 Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1981, p. 3552. 298
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“Pela importância da matéria, encareço o empenho da Presidência no sentido de, com a possível urgência, submeter o assunto à deliberação do plenário, a fim de evitar-se a repetição dos lamentáveis fatos apontados, estimuladores de desigualdades raciais, mormente contra afro-brasileiros com quem temos grande dívida de justiça social.”300
Em julho de 1983, Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) propôs o Projeto de Lei nº. 1661/83, um Projeto que revogava a Lei Afonso Arinos e enquadrava o crime de racismo enquanto crime de lesa-humanidade e também incluía além das penas pecuniárias, a reclusão. Na justificativa do presente Projeto, o deputado também criticou a ineficácia da Afonso Arinos:
“A comunidade afro-brasileira vem clamando, há anos, pela revogação da chamada Lei Afonso Arinos, ou seja, a Lei n°. 1.390/51, e a sua substituição por um dispositivo legal que realmente puna, como determina o art. 153, § 1º, da Constituição brasileira, o preconceito e a discriminação de cor e de raça. O presente Projeto de Lei, definindo essa discriminação como crime contra a humanidade, como 'anteriormente foram definidos o anti-judaísmo nazista e o apartheid da África do Sul, não é apenas de um deputado, mas de toda a comunidade negra brasileira, cujos membros e porta-vozes estão unanimemente de acordo quanto à ineficácia da chamada Lei Afonso Arinos. A primeira razão é de uma simplicidade elementar: a existência da referida lei de nenhuma forma, desde qualquer perspectiva foi eficaz para diminuir a prática do racismo em nosso País. Diariamente, deparamos com fatos de discriminação e preconceito racial que nunca chegam à Justiça ou cujos processos são arquivados sob um ou outro pretexto ou subterfúgio jurídico.”301
O Projeto de Abdias do Nascimento também ofereceu uma leitura da prática racista muito mais abrangente que a da Afonso Arinos, não se reduzindo apenas a obstruções de negros a empregos e locais:
“Art. 1º Constitui crime, de lesa humanidade, punido nos termos desta Lei, discriminar pessoas, individual ou coletivamente, em razão de cor, raça ou etnia. § 1º Compreende-se por ‘discriminar em razão de cor, raça ou etnia’ a prática de quaisquer atos ou omissões que, de maneira explicita, dissimulada ou empírica, dispensem tratamento diferenciado, ofendendo-as ou causando-lhes prejuízos materiais ou morais, a pessoas pertencentes a grupos humanos historicamente sujeitos à identificação segundo critérios raciais, étnicos ou de cor epidérmica.”302
O Projeto de Lei do deputado visou, ainda, evitar mecanismos que dificultassem o reconhecimento e julgamento das práticas racistas:
300
Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1981, p. 3552. Diário da Câmara dos Deputados. 1 de julho de 1983, p. 6381. 302 Diário da Câmara dos Deputados. 1 de julho de 1983, p. 6381. 301
135
“§ 3° É desnecessária a comprovação de declarações explícitas, intenções, opiniões ou atitudes subjetivas do responsável ou responsáveis pela discriminação alegada para estabelecer, diante da Justiça, o ato ou omissão discriminatório; será bastante a comprovação dos elementos da definição do crime contida no § 1° deste artigo.”303
O Projeto de Lei em questão foi arquivado em 1989, sendo que até 1986 foi adiada sua votação por falta de quorum por mais de 20 vezes. Enfim, em maio de 1988, Carlos Alberto Caó (PDT-RJ, 48ª Legislatura) propôs o Projeto de Lei nº. 668/88 transformado em Lei em 1989, projeto menos ambicioso que o de Abdias, mas que, por outro lado, caracterizou o racismo como crime inafiançável e sujeito à reclusão, especificando mais precisamente situações de racismo, e incluindo a incitação racista. Amaury Muller, em agosto de 1988, enquanto relator da mesa, emitiu parecer sobre o Projeto de Caó, argumentando que a Afonso Arinos não fornecia energia o suficiente para a punição dos crimes racistas. A Lei Afonso Arinos, portanto, encontra o seu fim com uma trajetória extremamente duradoura. A discussão sobre a Lei de fato ofereceu outro retrato interessante sobre embate de percepções sobre a questão racial na casa. Na década de 60, ela era mais um pilar do discurso harmônico, ou seja, apenas a sua existência demonstraria que as práticas racistas estariam sendo punidas e superadas. Os anos 70, por outro lado, abriram palco para uma crescente contestação da Lei, empenhada principalmente por Carlos Santos e Adalberto Camargo. Por fim, a sua revogação culminou no final da década de 80, depois de um intenso ativismo dos deputados negros. O retrato da discussão sobre a Afonso Arinos e de fato, a sua persistência na legislação brasileira, vislumbra outro aspecto levantado no início do capítulo: a casa se sensibilizou sobre a questão racial ou evidenciou seu conservadorismo? Pois a revogação da Lei Afonso Arinos foi nitidamente fruto de uma mobilização parlamentar negra.
303
Diário da Câmara dos Deputados. 1 de julho de 1983, p. 6381.
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As religiões afro-brasileiras
Na amostra da década tivemos dois discursos que se referiram especificamente ao preconceito contra as religiões afro-brasileiras e mais alguns trechos menos centrais em outros discursos. A percepção da situação das religiões afro-brasileiras na década em questão sofreu um deslocamento diametralmente oposto às percepções apresentadas em 60 e 70. O Brasil representado pelos deputados nos anos 60 era portador de uma imagem de tolerância religiosa, argumento complementar à percepção harmônica, da ausência de racismo no País. Nos anos 70, e em alguns discursos da amostra de 80, o tema das religiões afrobrasileiras era referenciado em discursos de apologia da influência cultural negra, que majoritariamente folclorizavam o negro e omitiam o caráter de resistência presente nas tradições negras. Outro aspecto contraditório presente nas visões harmônicas sobre a suposta tolerância religiosa brasileira seria a de que um dos propulsores da harmonia racial seria justamente o legado da cultura cristã e fraterna dos portugueses. Os discursos da amostra de 80, por outro lado, ofereceu percepções das tradições negras e da situação em que se encontravam, totalmente dissonantes dos discursos folclorizantes e harmônicos. Paulo Paim (PT-RS, 48ª Legislatura), em maio de 1988, em um discurso sintético e direto, apresentava a sua percepção das tradições negras:
“Sabiam V. Exas. que é na cultura negra - candomblé, umbanda, afoxés, minas, maculelê, congadas, folias, blocos carnavalescos, reggae, funk, soul, blues, jazz, danças que o negro afirma sua identidade, seu respeito à preservação e valorização da nossa cultura e que devemos combater a descaracterização, a comercialização e a folclorização da cultura negra?”304
Uldurico Pinto (PMDB-BA, 48ª Legislatura), em agosto de 1989, denunciou o conteúdo racista envolvido em uma manifestação de religiosos em Salvador, Bahia. Um grupo de religiosos saíra à rua para protestar contra assassinatos de crianças supostamente envolvidas com as religiões afro-brasileiras. Dessa forma, o deputado protestou contra o preconceito histórico com as tradições negras:
“Essa criminosa tentativa de tripudiar sobre o negro baiano remonta aos tempos imemoriais das guerrilhas religiosas, já que no início deste século era comum ver inscrições nos muros da cidade, acusando o candomblé de religião do diabo, o que é absolutamente falso, principalmente pelo fato de que o candomblé tem, no Brasil, dezenas de milhões de seguidores e é uma prática religiosa que se identifica com as 304
Diário da Assembléia Nacional Constituinte. 24 de maio de 1988, p. 10682.
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lutas populares, porque está associada à luta do negro.”305
Mais à frente: “Essa luta306, Sr. Presidente, é absolutamente necessária, porque continuamos a ver que a proibição de discriminação racial não serviu para coibir, de fato, a crescente discriminação que se pratica contra o negro, e que, às vezes, se materializa de forma velada, como ocorreu na última segunda-feira em Salvador, em manifestação de fundo religioso.”307
A percepção de Uldorico Pinto (PMDB-BA, 48ª Legislatura), portanto, elucida que a prática do preconceito contra as religiões afro-brasileiras, além de ser mais uma entre as várias manifestações existentes de cunho racista, seria também um mecanismo ideológico de desmantelar estas tradições que desde a escravidão resistiam e fortaleciam os negros na luta pela sua libertação e direitos. De forma sintética, estas percepções apresentadas compõem-se de dois argumentos principais que desconstroem a percepção harmônica da tolerância religiosa e a imagem folclorizada do negro: primeiro, as tradições negras representam e consolidam a resistência negra não se tratando de simples práticas folclóricas, e segundo, o racismo se manifesta no preconceito contras as tradições negras, no intuito de desmantelar os laços de comunhão e resistência dos negros.
As ações afirmativas
A Tabela 2 do capítulo 3 demonstrou que, na década de 80, trinta e dois projetos de lei relacionados à questão racial foram propostos, inclusive os que propunham ações afirmativas. No entanto, esta amostra de discursos não evidenciou a discussão dos Projetos de Lei sobre estas ações, com exceção de uma referência ao PL nº. 1332/83 de Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) em um dos seus discursos. De fato, na década, foram propostos alguns Projetos de Lei sobre ações compensatórias como os projetos de lei nº. 2981/83 e nº. 6443/85 de Moacir Franco (PTB-SP, 47ª Legislatura), os projetos de lei nº. 1332/83 e PL nº. 3196/84 de Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) e o PL nº. 3232/84 de Agnaldo Timóteo (PDS-RJ, 47ª Legislatura). Estes Projetos se referiam à reserva de vagas na educação, mercado de trabalho e na mídia. No entanto, a amostra evidenciou apenas dois discursos que trataram especificamente das ações afirmativas, um de Lysaneas Maciel (PDT305
Diário da Câmara dos Deputados. 18 de agosto de 1989, p. 7994.
306
Refere-se à atuação do Movimento Negro contra o ato em questão.
307
Diário da Câmara dos Deputados. 18 de agosto de 1989, p. 7994.
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RJ, 48ª Legislatura) que levantou a temática de cotas de representação dentro dos partidos, uma medida que o PDT incorporara ao seu estatuto, e outro de Abdias do Nascimento (PDTRJ, 47ª Legislatura) referente ao PL nº. 1332/83, discurso que será analisado posteriormente. Em abril de 1989, Lysaneas Maciel (PDT-RJ, 48ª Legislatura) discursou em defesa das medidas que o seu partido tomava e sugeria que os demais fizessem o mesmo. Primeiramente o deputado argumentava que havia no país uma idéia errada entre os políticos de que a massa estaria despreparada para o exercício da democracia:
“...quero trazer aqui uma experiência e um fato que podem, realmente, mudar os destinos da nação e não apenas de determinado partido, neste caso o Partido Democrático Trabalhista. Criou-se neste País a idéia - aceita, inclusive, dos partidos chamados progressistas ou que representam as classes trabalhadoras - de que o povo brasileiro não está preparado para o exercício pleno da democracia. E nós, de certa forma, muitas vezes interiorizamos a idéia de que existe esse despreparo. E o impasse político continua.”308
Mais à frente:
“Entretanto, quando o PDT, através de seu Líder e Presidente, Leonel Brizola, propõe, a nível de sua lei maior, o estatuto do partido, que todos os órgãos de direção partidária, sua lista de candidatos a todos os postos eletivos de suas representações nos executivos municipal, estadual e federal fossem compostas, repito, a nível de deliberação estatutária, com 50% de trabalhadores, de negros, de mulheres e de jovens. Há aqui, Sras. e Srs. Deputados, uma demonstração evidente de que o desenvolvimento das articulações populares determinou que esses setores passem a influir definitivamente na vida do País. E chamo a atenção dos Srs. Deputados, porque esse pensamento [de que as massas estão despreparadas], que permeia os partidos políticos e que, de certa forma, também encontrava guarida dentro do nosso partido, agora vai ser definitivamente afastado. E já nas composições do atual diretório, nas atuais composições dos governos municipais, inclusive nos Tribunais de Contas dos municípios, começamos a implementar essa nova alteração estatutária.”309
O discurso do deputado gerou inúmeros apartes de contestação da proposta do PDT. No entanto, a questão racial foi minimizada e a discussão ficou centrada em termos mais genéricos dissolvidos como “massas populares”. A discussão contou com um aparte que oferece um retrato integrado do embate de percepções acerca das relações raciais e de medidas necessárias para a sua superação de forma dinâmica. O aparte foi de Virgílio Guimarães (PT-MG, 48ª Legislatura), que discordou da proposta do partido do orador, ostentando percepções do reducionismo de classe, ou seja, que discriminação essencialmente
308 309
Diário da Câmara dos Deputados. 5 de abril de 1989, p. 1788. Diário da Câmara dos Deputados. 5 de abril de 1989, p. 1788.
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presente no Brasil seria fruto do capitalismo, o que tornaria desnecessário a reserva de vagas para as minorias sociológicas: “O nobre Deputado defendeu na tribuna a tese advogada pelo virtual candidato à Presidência da República pelo PDT, qual seja, de que a sua proposta de gabinete deveria reservar 50% dos lugares aos negros, mulheres e representantes das minorias. Não ficou clara, para mim, a fundamentação dessa proposta. Por um lado, é gratificante ver que as lutas dessas chamadas minorias - algumas inclusive não são minorias, como no caso das mulheres e dos negros - ganha adesão em vários partidos. Essa solução, para mim, parece um pouco estranha. O conjunto do Governo deveria dar respostas aos problemas dos negros, das mulheres e das minorias, e não, mais uma vez, reduzi-los a um gueto, como ocorreu, por exemplo, na maioria das administrações, com a Secretaria do Meio Ambiente.”310
Em seguida o orador sugeriu um caráter discriminatório na proposta do PDT pelo fato de se tratar apenas da inclusão dos negros, dos pobres e das mulheres, e não incluir outros segmentos discriminados:
“Aliás, não sei por que há discriminação sobre outras minorias, que deveriam também ter assento, nesses colegiados, a aceitar-se a lógica da proposta. Por que os homossexuais também não poderiam ter assento garantido nesse gabinete, assim como os índios e outras minorias que devem ter seus direitos respeitados? Então, quero crer que há certa discriminação contra outros setores da sociedade brasileira.”311
Concluiu argumentando que o PDT carecia de fundamentação na proposta, e assim, empenhava o discurso reducionista de classe:
“Essa é uma tese que carece de fundamentação. Acho que o conjunto de um governo, inclusive o Presidente da República e todo o seu gabinete, é que deve ter como programa assumir a defesa dos direitos, dos interesses desse setor social, cuja discriminação decorre mesmo da sociedade capitalista. Ela, discriminatória, procura dividir os explorados exatamente para manter a sua dominação.”312
Além do discurso de Virgílio Guimarães (PT-MG, 48ª Legislatura), vários outros apartes ostentaram posições semelhantes, mas se referindo à participação das massas populares. Denisar Arneiro (PMDB-RJ, 48ª Legislatura), por exemplo, sugeriu que a única classe popular organizada que havia no País advinha dos sindicatos e que representava menos de 20% da massa de operários, o que para o deputado demonstrava uma impossibilidade de integração dos trabalhadores na política ainda naquele século. O deputado simplesmente 310
Diário da Câmara dos Deputados. 5 de abril de 1989, p. 1788. Diário da Câmara dos Deputados. 5 de abril de 1989, p. 1788. 312 Diário da Câmara dos Deputados. 5 de abril de 1989, p. 1788. 311
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ignorou as organizações dos negros e das mulheres em seu argumento, por não se traduzirem em organismos que tinham amplo reconhecimento do Estado como os sindicatos, tornando também irrelevante o fato de representarem dois segmentos majoritários (e sub-representados na Câmara), sendo que o próprio Movimento Negro já dava demonstração contrária desse suposto cenário de despreparo e desorganização com o seu número reduzido de representantes na Casa. Outro argumento levantado em apartes foi a de que as medidas seriam ineficazes porque o quadro de exclusão só mudaria com medidas estruturais adotadas pelo Estado. Esta foi posição ostentada por Fernando Santana (PCB-BA, 48ª Legislatura), posição que atualmente está espalhada em todos os foros de discussão sobre as ações afirmativas.
Abdias do Nascimento
Este tópico do capítulo é uma exposição e análise dos sete discursos do deputado Abdias do Nascimento coletados para amostra. A importância deste tópico reside nos motivos apresentados no início do capítulo: o ineditismo, por ser o primeiro parlamentar negro com agenda exclusivamente ligada à questão racial, e, em segundo lugar, por ostentar posições que geravam debates polêmicos e representativos do conflito de percepções existente na Casa. Nos sete discursos, Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) perpassou por todos os temas analisados nos discursos neste trabalho. Da crítica ao significado da Abolição à defesa de uma postura pan-africanista para o Brasil, que era negligenciada pelas elites brasileiras que só se identificavam com os ancestrais europeus. O deputado pode ser considerado um marco na casa também por reiterar a sua presença na Câmara como o exemplo vivo da segregação racial e, especialmente, das inúmeras dificuldades que os negros atravessavam para conseguir representar seus interesses. O deputado se intitulava o primeiro representante negro do País, por trazer nas costas o legado das tradições e conhecimento negro, legado da resistência e da luta ao qual estava mergulhado desde o seu nascimento, o que fez da sua passagem pela casa mais uma das etapas do seu ativismo anti-racista.
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As tradições afro-brasileiras
O primeiro aspecto que chama a atenção de seus discursos é a invocação de orixás para sua proteção e força na luta que travava na Casa. Em maio de 1983, em um discurso voraz contra a Abolição, o deputado iniciava com as invocações:
“Sr. Presidente, Srs. Deputados, invoco o nome de Olorum, criador de todas as coisas: dos seres humanos e do universo. Invoco as forças telúricas da nossa pátria ancestral - a Mãe África. Invoco Exu, senhor de todos os caminhos da existência humana, senhor das encruzilhadas onde a contradição dialética vem ocorrendo desde os tempos imemoriais presididos pelos mitos. Ainda daqueles tempos mítico-históricos, evoco e suplico a proteção da mãe ancestral de todos nós, Nossa Senhora Oxum, doadora do amor, da compaixão e da esperança.” 313
A exposição da religiosidade do deputado vai ser traço presente em quase todos seus discursos, nos inícios ou nos finais, ou ambos. O Plenário se trata de um espaço em que a exposição de crenças cristãs é corriqueira, muito presente inclusive nos inúmeros discursos analisados no trabalho. Destaco principalmente os discursos harmônicos que sugeriam que um dos pilares da suposta harmonia racial era o espírito cristão brasileiro. O Plenário, portanto, sempre foi espaço em que a manifestação cristã era naturalmente aceita e, de fato, predominante. Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) não só representou os negros como deixou um retrato óbvio nos mínimos detalhes de que o negro brasileiro na sua diversidade estava alijado da Casa. Nos outros oradores analisados, as referências aos Orixás, e às demais tradições afro-brasileiras não passaram de análises e homenagens aos seus significados. As percepções harmônicas normalmente atribuíam significados folclorizantes para as tradições negras, e as não-míticas ressaltavam o aspecto de resistência nas manifestações negras. Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura), portanto, não só apresenta sua luta como elucida nitidamente que é parte do que o seu discurso mais percorre: a condição do negro no País. Em outubro de 1983, o deputado rendeu homenagens a Dona Juliana Silva Baraúna, Mãe Teté, em virtude da comemoração dos seus 50 anos de sacerdócio no Candomblé, a cuja festa o deputado compareceria. O deputado também referendou a Casa Branca, terreiro com
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Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1983, p. 3296.
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350 anos, um dos mais antigos terreiros do Brasil, fazendo uma síntese histórica das sucessões de mães de santo da casa. Além de render homenagens ao Candomblé, o deputado elucida que o sacerdócio na religião em questão é tão digno de respeito quanto qualquer outro grande posto de outras religiões. E também, traz para dentro da casa nomes que inspiravam profundo respeito na história do negro, as grandes mães de santo, mas que estavam alijados das homenagens oficiais. Iniciou seu discurso expondo uma percepção que integra resistência e espiritualidade na religião afro-brasileira:
“A Religião, para os negros, não era e não é apenas uma crença na vida transcendente, em Olorum, o Deus Supremo; não era e não é unicamente o exercício litúrgico do culto aos Orixás. Desde os primórdios de sua prática em nosso País pelos africanos escravizados, a religião do Candomblé se instituía como um templo dos Orixás e da resistência física e cultural de uma raça violentamente agredida.”314
Mais à frente, usando como exemplo a trajetória histórica do terreiro em questão, denúncia uma prática de intolerância religiosa racista ocorrida na atualidade da época em Salvador, Bahia, mais uma violência racista ao qual estavam submetidos historicamente os terreiros e as tradições negras:
“A história desse terreiro ou templo configura o processo da experiência negra em nosso País. Com mais de 350 anos de existência, ele se destaca como um dos bens culturais da Bahia e do Brasil, constituindo um símbolo de criatividade, espírito organizativo e de resistência à colonização cultural.”
Continua:
“Sr. Presidente, Srs. Deputados, celebrando essa valente e sábia negra da Bahia, quero também testemunhar o meu repúdio e a minha revolta contra a forma com que freqüentemente é tratada a população negra naquele Estado. Ainda recentemente, no último dia 7 de Setembro, os negros do bairro de Liberdade, da comunidade de Liberdade, estavam procedendo, como fazem há vários anos, à lavagem do Quilombo do Orunmilá. A lavagem significa um passeio procissional pelo bairro. De repente, os negros foram violentamente agredidos pela polícia militar daquele Estado, e sem nenhuma razão, sem nenhum fundamento foram presos os meus irmãos de raça Apolônio de Jesus, Lino de Almeida e Freitas. Estes eram os coordenadores da lavagem do Quilombo Orunmilá. A polícia, como sempre faz nessas ocasiões, acusou os negros de perturbarem a ordem e promover distúrbios na via pública. Entretanto, sabemos que a Bahia é o Estado das grandes festas religiosas católicas e essas festas, via de regra, não recebem esse tratamento violento e intempestivo por parte das autoridades. Isso ocorre com todas as manifestações culturais da raça negra. Por isso, 314
Diário da Câmara dos Deputados. 22 de outubro de 1983, p. 11339.
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quero deixar registrado aqui o meu protesto e o meu repúdio, porquanto aos negros que começaram a construção deste País, pela Bahia, plantando a cana, depois o algodão, depois o café, depois trabalhando na mineração, esses descendentes dos africanos têm o direito ao respeito à sua condição de cidadãos brasileiros e não a esta definição que a sociedade dominante freqüentemente lhes tem impingido - a definição de marginais.”
Finalizando, tange o tema da transversalidade e fala da especificidade da mulher negra, vítima histórica do estupro, do machismo, do racismo e da pobreza. A violência, afirma, seria sofrida de modo contínuo desde os tempos da escravidão: “a mulher branca jamais foi sistematicamente, legalmente estuprada pelo branco”315, enquanto à mulher negra, diz, “é negada a possibilidade de resgatar a sua dignidade e desempenhar o papel de mulher igualitariamente com suas irmãs de outras raças”. 316
Ações compensatórias
A crítica feroz à sub-representação dos negros em diversas instâncias e órgãos do Estado também é uma constante nos discursos do deputado, o que resultou nas iniciativas de ação compensatória em dois Projetos de Lei de sua autoria, ambos arquivados. O PL nº. 1332/83 propunha reserva de vagas nas administrações diretas do Estado, na educação, no mercado de trabalho, no exército, na diplomacia e nos benefícios sociais concedidos pelo Estado, além de propor outras medidas como a inserção da História da África e Religião Afrobrasileira nos conteúdos de história e religião. Já o PL nº. 3196/84, propôs apenas ações compensatórias no concurso do Instituto Rio Branco. Em junho de 1983, fazia a defesa do PL nº. 1332:
“Comprovamos na justificação do nosso projeto que para o negro brasileiro, a discriminação e o racismo são os fatos cotidianos da sua existência social. O direito igualitário assegurado pela Constituição para ele nunca existiu.”317
Continua com a justificação da inserção de conteúdos escolares que tratassem da trajetória de resistência do negro, criticando a narrativa que folclorizava e o tratava como elemento naturalmente subserviente presente na educação da atualidade:
“Entretanto, não é apenas nestes setores de trabalho, educação e tratamento policial, que falta ao negro essa igualdade inscrita em nossa Constituição. Durante séculos, ele 315
Diário da Câmara dos Deputados. 22 de outubro de 1983, p. 11400. Diário da Câmara dos Deputados. 22 de outubro de 1983, p. 11400. 317 Diário da Câmara dos Deputados. 9 de junho de 1983, p. 4756. 316
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tem sido alijado da História nacional como protagonista que foi e é, da construção deste País, em suas estruturas materiais, econômicas, sociais e culturais. A contribuição básica do africano e seu descendente fica relegada, quando muito, ao plano do trabalho escravo, mencionando de forma superficial e apressada, minimizadora da verdadeira dimensão do que ele significou para a formação do Brasil. Os monumentos que existem exaltam a abnegação, a humildade e a subserviência do povo negro escravizado ou livre, como exemplificam algumas estátuas dedicadas à mãe preta ou ao preto velho. Essas imagens, as únicas cultivadas, confirmam a posição reservada pela sociedade racista ao africano e seus descendentes: a do subalterno, do inculto, do ignorante, do humilhado.”318
O Projeto de Lei em questão tinha conteúdo abrangente, com características de Estatuto pela visão integrada de medidas necessárias para a superação do quadro de desigualdades raciais.
A Abolição
O marco da Abolição foi duramente criticado pelo deputado, e também marcos subseqüentes como a Proclamação da República, que para o autor foram marcos nada significativos para a real libertação dos negros. Em maio de 1983, o deputado criticava a Abolição:
“Sr. Presidente, Srs. Deputados, eu não venho aqui celebrar o 13 de maio. Não. Venho denunciar o 13 de maio, desmentir o 13 de maio. Desta tribuna do povo brasileiro, venho demonstrar o engodo do 13 de maio. Não fui eleito para silenciar a catástrofe coletiva do povo afro-brasileiro, encoberta por essa mistificação sofisticada que se tornou até produto de exportação, a famigerada teoria da ‘democracia racial’. Uma catástrofe coletiva que configura um problema de enormes dimensões no Brasil. Uma catástrofe cujo nome é racismo.” 319
Continua expondo reflexões de sua trajetória de vida e sobre o significado da Abolição:
“Quando eu tinha apenas sete anos de idade, já conhecia muito bem o que me diferenciava na escola primária: eu era chamado de ‘tição’, e de muitos outros apelidos reservados aos meninos negros. Certa vez, uma senhora branca, vizinha da casa dos meus pais, espancava brutalmente um negrinho órfão que freqüentava o bairro. Enquanto surrava o menino, a agressora berrava todo um repertório de insultos desses que nossa sociedade dirige aos descendentes africanos em nosso País. Minha mãe socorreu aquele garoto, e jamais esqueci seu indignado protesto contra o preconceito daquela mulher.” 320 318
Diário da Câmara dos Deputados. 9 de junho de 1983, p. 4756. Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1983, p. 3296. 320 Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1983, p. 3296. 319
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Continua:
“Hoje, meu netinho tem sete anos. Outro dia, o colega branquinho dele, após uma briga de criança, gritou: ‘Negro! Culpada disso é a Princesa Isabel!’.” 321
Depois de citar dados do Censo de 80, em que a população negra estava sobrerepresentada nos segmentos mais prejudicados, desenvolve o argumento de que a realidade não mudara desde a Abolição adicionando críticas a outros marcos oficiais: “Por estes e outros motivos322, venho aqui desmentir o 13 de maio. Esta data nada tem a ver com a nossa libertação. Para nós, descendentes dos africanos que para aqui vieram acorrentados e sob os golpes da chibata, esta é apenas mais uma data de um calendário histórico oficial que não nos pertence. Vejamos o 7 de setembro, por exemplo: uma independência que em nada modificou a vida dos nossos avós africanos. Eles continuaram definidos como coisas, peças mercadejadas nos balcões hediondos do escravismo.” 323
Continua:
“A ironia do 13 de maio é que nele quem se libertou foi o senhor: libertou-se de toda e qualquer responsabilidade diante das vidas humanas que ele havia vilipendiado em função de seus latifúndios. A 13 de maio, declarou-se papel que o negro era livre e cidadão. Livre, sim, para continuar sendo explorado pelos mesmos senhores; ou então, para se aventurar na busca de empregos numa sociedade e numa economia que o rejeitam como empregado e como cidadão. Livre para morrer, atirado à rua do desespero, sem qualquer sustento ou assistência. Esse ritmo de perversa destruição vinha de longe. Antes, já haviam ‘libertado’ aqueles que mais lhes convinha: os velhos, para que o senhor não precisasse cuidar de uma ‘peça’ de baixa ou nenhuma produtividade. Com a Lei do Ventre Livre, outra mistificação histórica, o filho de escravo nascia livre, mas permanecia escravo até os 21 anos.” 324
Continua, expondo que o negro na Proclamação da República continuou sistematicamente excluído:
“Denuncio o 13 de maio, que falsamente nos declarou cidadãos. Não. O negro não se tornou cidadão, por causa do esbulho contido em outra data histórica que não nos pertence: o 15 de novembro de 1889. A República veio para cassar-nos a participação democrática, concedendo o voto apenas aos alfabetizados. Ora: o 321
Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1983, p. 3296.
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Refere-se ao retrato de exclusão racial oferecido pelo Censo de 80.
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Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1983, p. 3297. Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1983, p. 3297.
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negro escravizado iria aprender a ler e escrever no pelourinho ou nos cafezais? No tronco ou nos canaviais? Os mesmos hipócritas do 15 de novembro já haviam destruído nosso idioma de origem, cassando-nos até a língua, para que nem pudéssemos nos expressar. Fomos duplamente agredidos: esmagaram nossa língua, e ainda nos puniram por não sabermos ler e escrever o idioma estrangeiro que nos impingiram.”325
Mais à frente, o deputado continuou com a crítica à Proclamação da República. Argumentava que se depois da Abolição o negro estava desamparado, com a República o negro fora enquadrado enquanto criminoso com o Código Penal promulgado. O artigo 399 estabelecera como infração a vadiagem: o crime de “não exercer profissão, ofício ou qualquer mister em que se ganhe a vida, não possuindo meios de subsistências e domicílio certo”. 326 Dessa forma o deputado ampliava o significado do decreto: “Era esta, exatamente, a situação na qual acabavam de atirar todos os escravos recém-libertados que não ficassem com seus antigos senhores. Ou seja: na prática, definiram como crime o fato de ser negro livre. Ainda mais: definiram como crime a capoeira, a própria expressão cultural africana. Reprimiram com toda a violência do estado policial as religiões afro-brasileiras, cujos terreiros se viram duramente invadidos, os fiéis e sacerdotes presos, pelo crime de praticarem sua fé religiosa.” 327
Vários deputados apartearam Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) neste dia, transparecendo um amplo leque de visões sobre a questão racial na dinâmica discursiva. Raimundo Asfora (PMDB-PB, 47ª Legislatura), por exemplo, sugeriu que a visão de Abdias do Nascimento recaía numa postura racista, sugerindo que pelas viagens de Abdias pelo exterior, este estaria influenciado pelo suposto ódio racial dos negros americanos. Dessa forma, Raimundo Asfora (PMDB-PB, 47ª Legislatura) também fez apologias à miscigenação como um processo de aculturamento que teria diluído as tensões raciais como as presentes em outros países. Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) em resposta ao aparteante argumentava que os pontos que levantava eram justamente os fatores que permitiam a segregação racial no País: “V. Exa. cita, por exemplo, não somente a miscigenação como a aculturação. É exatamente aí que V. Exa., sem perceber, evoca também uma posição racista. O que é aculturação? Aculturação, no Brasil, é exatamente a europeização da cultura africana, é a imposição cultural que pesa sobre os descendentes africanos,
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Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1983, p. 3297. Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1983, p. 3297. 327 Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1983, p. 3297. 326
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ainda, como uma forma de dominação e branqueificação mental e espiritual.” 328
Raimundo Asfora (PMDB-PB, 47ª Legislatura) em resposta recorreu ao reducionismo de classe argumentando que no Brasil não havia diferenças raciais, apenas a raça brasileira que sofria com a dominação da elite capitalista:
“Nobre colega, não foi só o negro, mas o povo brasileiro, que ainda hoje é o grande marginalizado deste capitalismo do qual somos dependentes e sob o qual estamos vivendo. V. Exa. pinta a tragédia das massas trabalhadoras brasileiras urbanas e camponesas, mas não pode fazer com o pincel tão maravilhoso da sua inteligência uma moldura africana. V. Exa. defende tese que sofre o ônus da população trabalhadora do Brasil.”
Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) argumentou em seguida que o negro tinha a escolha de optar pela sua ascendência (africana), o que supostamente gerava incômodo por parte de Raimundo Asfora (PMDB-PB, 47ª Legislatura) que, com posturas nacionalistas, tentava apagar o conflito racial. Além disso, especificava que por mais multirracial o Brasil fosse, apenas um contingente populacional sofrera 400 anos de escravidão e ainda sofria com as práticas racistas - o negro. Neste ponto, Abdias do Nascimento desenvolve um argumento muito apurado contra as percepções que tentavam diluir as definições raciais brasileiras no tipo único brasileiro, e que, conseqüentemente, reduzia o problema do racismo à exploração do capitalismo. Para Abdias do Nascimento, era o contrário, só o negro fora escravizado e, assim, não era de se estranhar que continuava sendo o mais explorado e desprivilegiado no País, principalmente tendo em vista que o Estado não desenvolveu nenhuma iniciativa que incluísse o ex-escravo, pelo contrário, o manteve alijado dos meios de integração. Outro ponto importante levantado por Abdias do Nascimento foi sobre a sua experiência no exterior. Segundo o orador, por ter conhecido o racismo sul-africano e norteamericano é que chegou à conclusão de que o racismo no Brasil era mais “assassino”: “V. Exa. evocou que eu viajei. Sim, viajei muito e pude constatar. Antes de viajar, já tinha as mesmas posições de luta pelo meu povo. Mas viajando, então, eu vi como o racismo no Brasil é muito mais draconianamente assassino. Enquanto em outros países realmente se mata negro, porque é negro, no Brasil se mata a todos, por atacado, num genocídio sistemático. E sob esse genocídio sistemático tem sido a existência do meu povo neste País.” 329
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Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1983, p. 3297. Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1983, p. 3297.
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Abdias do Nascimento desenvolveu uma série de argumentações que vão incidir na recusa não apenas dos apartes de Raimundo Asfora (PMDB-PB, 47ª Legislatura), mas como também na recusa de toda uma percepção harmônica presente nas décadas analisadas. Primeiramente, Abdias argumentou que a retórica da miscigenação era um mecanismo ideológico de supressão da negritude e defesa do branqueamento que resultava na contínua dominação branca. Segundo, a sua experiência de viagens o elucidou ainda mais sobre as conseqüências do discurso harmônico da miscigenação, um genocídio coletivo sustentado pela retórica da ausência de racismo, e conseqüentemente, justificando sem razões aparentemente racistas, a contínua dominação branca. Por último, criticou também a retórica da omissão da causalidade histórica. Em vários discursos da percepção harmônica a escravidão era referenciada como um processo estéril, ou às vezes, inexistente, sendo o Brasil anti-racista desde os primórdios. Ao contrário, Abdias do Nascimento frisou categoricamente que a discriminação no Brasil era especialmente racista, por ser fruto de uma exploração histórica acometida essencialmente contra os africanos e que não foi estéril, cabendo aos negros vivenciar o resultado do processo. Após Raimundo Asfora (PMDB-PB, 47ª Legislatura), outro aparteante com percepções harmônicas foi Gerson Peres (PDS-PA, 48ª Legislatura). O aparteante iniciava afirmando que Abdias do Nascimento tinha se tornado deputado com os votos de muita gente branca e, dessa forma, afirmava que o Brasil era um País feliz que podia ter um deputado negro defendendo suas percepções na Câmara. Com pouca receptividade de Abdias do Nascimento que o interpelou várias vezes adicionando comentários críticos, Gerson Peres (PDS-PA, 48ª Legislatura) continuou argumentando de forma harmônica que tinha sangue de negro, índio e português, e assim, ostentou a visão reducionista de classe. Em resposta a Gerson Peres (PDS-PA, 48ª Legislatura), Abdias do Nascimento discursou sobre a sua presença na Câmara como prova de um cenário racista, desdobrando em crítica à sub-representação dos negros:
“No entanto, aqui estou apenas eu, enfrentando esta intolerância, porque este é o tipo de intolerância do racismo brasileiro, de mostrar uma face de benevolência, e cordialidade para esconder o punhal que está sempre cravado nas costas do negro, na garganta do negro, no coração do negro.” 330
Gerson Peres (PDS-PA, 48ª Legislatura), assim como Raimundo Asfora (PMDB-PB, 47ª Legislatura), apresentaram tanto a visão harmônica pautada na idéia de ausência de 330
Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1983, p. 3298.
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distinções claras de raça no País, quanto o argumento de que opressão existente no País era fruto da ordem capitalista que acometeria a todos. Gerson Peres (PDS-PA, 48ª Legislatura) também discursou calcado em álibis para sugerir a existência da tolerância racial, percepções muito presentes nos anos 60 e 70. No entanto, Abdias do Nascimento elucidou que sua presença na casa, a extrema sub-representação dos negros, eram o efeito direto de uma exclusão racial. A sua percepção funciona como uma denúncia de um mecanismo racista, que sempre se calca em valores liberais e individualistas invertendo a situação de segregação em provas infundadas de tolerância racial.
Teoria do embranquecimento e seus efeitos
Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura), depois da discussão, continuou a crítica da Abolição e demais marcos insignificantes para os negros. Explicitava que o processo de Abolição não fora imbuído de valores igualitários e que a estigmatização do negro enquanto inferior ainda predominava nas percepções da elite que promoveu incentivos e políticas de embranquecimento:
“Sr. Presidente, Srs. Deputados, vamos encarar a realidade. Vamos acabar com os eufemismos. O descendente de africanos não encontrava emprego porque era negro. Numa época em que as teses darwinistas alimentavam a mais crua teorização da supremacia européia, o Brasil se empenhava freneticamente em se tornar um país branco. Trouxeram o imigrante europeu, segundo o Decreto-lei n § 7.967, de 1945, para ‘preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência européia’. Por idênticas razões, um decreto de 28 de junho de 1890 concedia livre entrada no Brasil a todos os indivíduos aptos para o trabalho, ‘Excetuados os indígenas da Ásia ou da África’.” 331
Continua:
“O imigrante europeu veio para um fim muito bem explicitado nas palavras de Joaquim Nabuco: ‘Esse admirável movimento imigratório não concorre apenas para aumentar rapidamente, em nosso País, o coeficiente da massa ariana pura; mas, também, cruzando-se e recruzando-se com a população mestiça, contribui para elevar, com igual rapidez, o teor ariano do nosso sangue’.”332
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Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1983, p. 3298. Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1983, p. 3298.
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Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura), portanto, protestou contra o racismo do “herói” da Abolição, que ao mesmo tempo em que lutava pela libertação dos negros, inferiorizava-os, compartilhava das teorias racistas em voga na Europa, e tentava vislumbrar uma saída para a extinção dos negros no País, recaindo na crença na teoria darwinista. O orador também elucidava que posturas semelhantes à de representantes brasileiros no início do século se repetiam em diversas instâncias do Estado na atualidade. O deputado comentou um representante brasileiro proferira em 1911, uma palestra no Congresso Universal de Raças em Londres, na qual afirmara que os negros no Brasil já estariam em um processo de desaparecimento devido às condições precárias que os assolavam. Depois de citar as palavras do representante em 1911, argumentava:
“Quero que fique bem claro: essas palavras não são minhas. Expressam a declaração aberta e irreversível da política brasileira de genocídio do negro. Ela foi proferida há 72 anos. Mas essa preocupação permanente com o desaparecimento do negro persiste até hoje. Em pleno 1982, no Município mais avançado do nosso País em matéria de economia e educação, foi apresentada a um órgão assessor do Governo daquele Estado a proposta de se promover a esterilização dos negros brasileiros, para evitar que, no futuro, venham a dominar a política democrática por força de sua maioria numérica. Trata-se da proposta do Sr. Benedito Pio, feita ao Grupo de Assessoria e Planejamento (GAP) do Governo paulista anterior à administração do Sr. Franco Montoro.” 333
Em seguida, critica os argumentos de que preconceito econômico suplanta o racial:
“Sr. Presidente, Srs. Deputados, como poderei me calar diante de tão inominável afronta? Como poderei me calar diante do esbulho daqueles, direitistas, conservadores e esquerdistas, que têm o despudor de afirmar que não existe o racismo no Brasil? Ou de que ele - o racismo - não é o fator da espoliação do meu povo? Como poderei sopitar minha indignação e falar baixo e calmo e polido, diante dessa brutalidade que vitimiza meu povo? Além do mais, ainda querem hipocritamente justificar esse ostensivo etnocídio com ‘razões econômicas’! Basta de mentiras. Basta de racionalizações. Tenhamos pelo menos a honestidade de chamar o racismo pelo seu verdadeiro nome. Racismo, principal responsável pela situação de miséria desse povo negro do Brasil.” 334
Concluiu argumentando que o ideal de embranquecimento ainda permanecia na população Brasileira, e assim, demonstrou que a mesma prática do início do século de marginalizar o negro e empregar o imigrante continuava, pois o SINE (Sistema Nacional de Emprego) elencava o racismo enquanto um dos principais fatores de desemprego.
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Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1983, p. 3299. Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1983, p. 3299.
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Zumbi e Resistência Negra No mesmo discurso, o deputado analisou o que teria sido a Ditadura Militar para os negros e também exaltou a figura de Zumbi e seu significado para os negros, expondo que desde os quilombos a resistência negra era incessante:
“É claro que nós, negros, denunciamos e repudiamos o autoritarismo implantado pelos militares em 1964 e que há 19 anos infelicita o nosso povo. Mas igualmente denunciamos, com toda nossa energia, uma outra ditadura, que vem sendo ignorada até mesmo pelos campeões das supostas forças progressistas: a ditadura eurocentrista de 500 anos, que desde a fundação do Brasil vem usurpando os direitos dos povos negros e indígenas.” 335
E concluiu: “Merece toda a ênfase o fato de que a manipulação das elites no poder jamais conseguiu impedir que o negro lutasse. Desde o instante em que o primeiro africano escravizado pisou a terra brasileira, chegou com ele a inextinguível chama da liberdade. Cada escravo criou um quilombo, palpitando sob os fogos de Xangô no seu coração. Exemplifico citando o formidável Palmares, a heróica república quilombola que resistiu militarmente, por mais de um século, às armas de Portugal, da Holanda e do colonizador brasileiro. Resistência essa multiplicada pelas centenas de outros quilombos espalhados por todo o tempo e território brasileiro. Após o engodo do 13 de maio, a luta não cessou. Várias organizações independentes, criadas por negros, assim como os diversos periódicos afrobrasileiros, vêm exprimir a indignação da comunidade negra contra a injustiça, a desigualdade e o autoritarismo que ela vem suportando há quase meio milênio: a Frente Negra Brasileira, da década dos 30; o Teatro Experimental do Negro, a Convenção Nacional do Negro, o Comitê Democrático Afro-Brasileiro, da década dos 40; o Congresso do Negro Brasileiro, da década dos 50; o Memorial Zumbi e as centenas de entidades existentes e atuantes nos dias atuais. Realço a presença, neste momento, nas galerias desta Casa, dos militantes do Centro de Estudos Afro-Brasileiros, deste Distrito Federal.” 336
O deputado expôs um argumento que estabelecia continuidade na resistência negra, da qual ele era nitidamente parte.
A diplomacia brasileira
Abdias do Nascimento também desenvolveu discursos de denúncia contra a postura diplomática brasileira em relação ao Apartheid e à colonização portuguesa na África. O seu discurso denunciava o jogo político que o Brasil fazia para ostentar o apoio ao Apartheid e à 335 336
Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1983, p. 3299. Diário da Câmara dos Deputados. 14 de maio de 1983, p. 3299.
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Portugal no auge da colonização de Angola e demais países sob sua colonização. Em maio de 1983, o deputado argumentava que a diplomacia sustentava desacordo com o Apartheid nas Conferências Internacionais, mas internamente permitia campanhas publicitárias de turismo na África do Sul. Estendendo a crítica à postura, o deputado também explora o relacionamento com Portugal:
“Não é esse o único caso [sobre campanhas de turismo sul-africano no Brasil] em que o Brasil toma uma posição radicalmente a favor do colonialismo no contexto africano. Sabemos que, sob a possibilidade de troca de certas vantagens econômicas prometidas nas colônias africanas de Portugal, o Brasil recusou, durante todo o processo da luta de libertação de Angola e Moçambique, apoiar as resoluções da ONU contra o jugo colonial e contra as modernas técnicas de guerra, macabras e odiosas, utilizadas pelo Portugal salazarista contra pessoas inocentes, vítimas de uma campanha racista de extermínio.” 337
E assim, retratou as posições diplomáticas brasileiras sobre a colonização lusa na África. Em 1972, o Brasil votara “não” na 27ª Sessão da Assembléia Geral da ONU à iniciativa que condenava a: “continuação dos bombardeios indiscriminados de civis pelas forças militares portuguesas, assim como a completa destruição de vidas e propriedades do impiedoso uso do napalm e substâncias químicas, em Angola, Guiné Bissau e Cabo Verde, e Moçambique, como também as violações contínuas da integridade territorial e da soberania de Estados africanos independentes” 338. Em dezembro de 1973, o Brasil também fora contra a resolução da ONU que condenava “‘o massacre brutal dos habitantes de aldeias, a maciça destruição de povoados’, além do uso impiedoso do napalm”. 339
Neste discurso também surgiram diversos apartes. Aldo Arantes (PMDB-GO, 47ª Legislatura), mesmo concordando com o discurso de Abdias do Nascimento (PDTRJ, 47ª Legislatura), elogiou-o e, fugindo da discussão sobre a diplomacia brasileira, sugeriu que o racismo brasileiro seria mais brando que o sul-africano:
“Nobre Deputado Abdias Nascimento, meu amigo e dirigente do movimento negro neste País, quero manifestar, inicialmente, a minha total solidariedade ao repúdio que V. Exa. traz a esta Casa quanto à política racista da África do Sul. Mas quero, sobretudo, neste aparte, manifestar a minha solidariedade à luta que V. Exa. trava nesta Casa, à luta que os negros travam neste País. Concordo inteiramente com V. Exa. Acho que, no Brasil, existe discriminação racial. Claro que essa discriminação racial tem particularidades, é uma discriminação mais branda, de uma forma menos violenta, não tão acintosa. Mas é falsear a verdade não reconhecer que existe a discriminação racial.” 340 337
Diário da Câmara dos Deputados. 28 de maio de 1983, p. 4205. Diário da Câmara dos Deputados. 28 de maio de 1983, p. 4205. 339 Diário da Câmara dos Deputados. 28 de maio de 1983, p. 4205. 340 Diário da Câmara dos Deputados. 28 de maio de 1983, p. 4205. 338
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Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) desenvolveu uma argumentação que era contrária não só à percepção de Aldo Arantes (PMDB-GO, 47ª Legislatura), mas contrária a todo um padrão argumentativo que sempre tendeu à suavização do racismo no Brasil:
“Muito obrigado, Deputado Aldo Arantes. O fato de aparentemente a nossa discriminação ser mais branda não quer dizer que ela não contenha, na sua essência, a mesma violência, a mesma capacidade de frustrar . a raça negra, o mesmo apetite de massacrar e de erradicar a raça negra deste País. Esta é uma característica do racismo no Brasil. Eu concordo que o racismo aqui é diferente. Ele é diferente na sua visibilidade, mas é muito mais frustrativo e castrativo.” 341
Em seguida, Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) comparou a realidade dos negros no Brasil e nos Estados Unidos, demonstrando que as conquistas dos negros norte-americanos não se equiparavam com as dos brasileiros. Por final, afirmava que a comparação fornecia uma prova clara de que o racismo brasileiro também era institucional:
“O racismo aqui não é uma questão utópica de discriminação racial. É uma questão de racismo institucionalizado. É preciso que nos conscientizemos desse grave defeito, dessa enfermidade, dessa sociedade erigida sobre a escravidão e sobre a mentira da igualdade racial.” 342
Outro aparte instigante foi o de Carlos Sant’ana (PMDB-BA, 47ª Legislatura), gerando outra discussão acalorada. O aparteante iniciou seu discurso afirmando não haver racismo no Brasil, e antes de esboçar os argumentos, Abdias do Nascimento já o interpelava. Durante a discussão, Carlos Sant’ana (PMDB-BA, 47ª Legislatura) também compartilhou da visão isolacionista: “V. Exa. labora em tremendos equívocos 343. Eu os entendo, mas V. Exa. os labora. Na verdade, existem guetos de preconceito racial e raros guetos de racismo.” 344
341
Diário da Câmara dos Deputados. 28 de maio de 1983, p. 4205. Obs: O autor não concorda necessariamente com a comparação de grau de intensidade de dois cenários que são claramente racistas. Não há como dizer quais dos cenários é pior, afinal trata-se de dois cenários degradantes para os negros. No entanto, a argumentação de Abdias do Nascimento se encontra dentro de uma arena política em que predomina o discurso harmônico sobre o Brasil. Neste âmbito, a argumentação do deputado é extremamente importante para o vislumbre de que as relações raciais no Brasil não contém características diametralmente opostas às do Apartheid. 342 Diário da Câmara dos Deputados. 28 de maio de 1983, p. 4205. 343
Refere-se à percepção de Abdias do Nascimento sobre o racismo brasileiro.
344
Diário da Câmara dos Deputados. 28 de maio de 1983, p. 4206.
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A partir de então, Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) não permitiu que Carlos Sant’ana (PMDB-BA, 47ª Legislatura) continuasse o aparte, afirmando que este só estava repetindo chavões que ele já estava cansado de ouvir. O aparteante chegou a afirmar que Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) se conduzia como um negro norte-americano (embasado na suposição de que o conflito racial norte-americano seria a verdadeira experiência racista, principalmente pela imagem de um racismo historicamente mútuo, e não unilateral). Dessa forma, Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) respondia a afirmação do aparteante: “V. Exa. aqui está como um racista da África do Sul, querendo esgotar o meu tempo e impedir que eu faça a minha denúncia [contra a diplomacia brasileira], denúncia que, pela primeira vez, é feita nesta Casa.” 345
A discussão continuou com interrupções até Carlos Sant’ana (PMDB-BA, 47ª Legislatura) desistir do aparte. Assim, Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) justificou a sua impaciência para escutar o aparteante utilizando-se de um argumento raras vezes utilizado nos discursos estudados. O orador afirmava que a paciência que nunca existira fora a dos brancos em ouvir e entender a argumentação do negro, que estava na situação segregada e oferecia visões que não queriam ser ouvidas:
“V. Exa. tem de entender o direito de o negro falar a sua verdade. Nós é que sentimos o preconceito. Nós é que temos autoridade para denunciá-lo, e não V. Exa. 346, que também é um dos usufrutuários da miséria do negro da Bahia.” 347
Neste momento, Carlos Sant’ana (PMDB-BA, 47ª Legislatura) interpelava: “V. Exa. está fazendo disso carreira política.” Trata-se de um trecho extremamente sintomático da percepção racista brasileira: até a discussão sobre a questão racial é tratada de forma ilegítima, ainda mais um ativismo político centrado na questão racial. A omissão é uma regra injustificada entre deputados como Carlos Sant’ana (PMDB-BA, 47ª Legislatura), e uma regra que funcionava, por final, para deslegitimizar a preocupação com a questão racial. Ao final dos apartes, Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) continuou seu severo protesto contra a diplomacia brasileira, que era convalescente com o colonialismo português na África. Denunciou o apoio brasileiro à colonização portuguesa em Angola, evidenciado pela prisão de um líder político angolano que se refugiava no Brasil, Lima 345
Diário da Câmara dos Deputados. 28 de maio de 1983, p. 4206. Refere-se a Carlos Sant’ana. 347 Diário da Câmara dos Deputados. 28 de maio de 1983, p. 4206. 346
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Azevedo (não se referiu a data do acontecimento). E também denunciou as imagens distorcidas que a diplomacia brasileira fazia do Brasil. Em Congressos Europeus reiterava a participação mínima de negros na população brasileira e enquanto resquício, as suas contribuições culturais; e em Congressos na África, ressaltava a imagem folclorizada do negro, salientando que mais de 40% da população era de descendência africana, e que no País havia uma forte herança cultural africana. Para o deputado, a diplomacia brasileira, portanto, assumia posturas políticas análogas às posturas do Estado internamente na questão racial. A posição ambígua de reprovar o Apartheid na ONU é lida como uma retórica que esconde o conluio comercial e o conluio com a depreciação e exploração dos negros. Mais à frente o deputado argumentava que o Brasil afirmara reconhecer a contribuição da presença africana no País, mas não a transformara num reconhecimento tão sólido como a do português:
“Sr. Presidente, Srs. Deputados, os portugueses desfrutam de uma série de privilégios junto ao processo imigratório no Brasil.” 348
Continua:
“Não se justifica que essas vantagens não sejam estendidas aos africanos familiares daqueles que constituíram o Brasil. Vou apresentar um projeto de lei advogando idênticas prerrogativas em relação à Nigéria e à Angola, em reconhecimento de sua contribuição, talvez maior e mais decisiva do que aquela de Portugal, à composição demográfica, à cultura e à edificação desta Nação brasileira.” 349
Em outro discurso, em março de 1985, Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) criticou novamente a postura diplomática. Incorrendo nas mesmas críticas anteriores, ou seja, equiparando a postura diplomática racista com a postura política interna do Estado brasileiro, sofreu inúmeros apartes gerando outra polêmica discussão. Os embates de percepções foram os mesmos que os anteriores: Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) não diferenciava a experiência brasileira da sul-africana e da americana. Ao contrário, sempre demonstrou que os mecanismos de controle racista no Brasil geravam um genocídio inquestionado, calcado em discursos liberais e supostamente anti-racistas. Entre outras percepções, levantou-se a idéia de que racismo brasileiro seria brando, o que, baseado nos mesmos argumentos, Abdias questionava. 348 349
Diário da Câmara dos Deputados. 28 de maio de 1983, p. 4207. Diário da Câmara dos Deputados. 28 de maio de 1983, p. 4207.
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O primeiro aparteante foi novamente Gerson Peres (PDS-PA, 48ª Legislatura). O deputado retomava sua percepção de que não havia racismo no Brasil:
“Quanto ao ponto de que no nosso País existe discriminação racial, V. Exa. violenta umas das maiores tradições aqui existentes, pois o que aqui existe, Deputado, são preconceitos sociais, provenientes, talvez, do sistema capitalista vigente.”350
O deputado utilizou a mesma percepção reducionista para argumentar que também não havia preconceito contra mulheres no Brasil:
“Não há discriminação às mulheres; o que há são preconceitos sociais, provenientes do sistema capitalista existente, onde milhares têm pouco e poucos têm muito, gerando realmente este conflito na sociedade, o que atinge muitas vezes, as camadas mais pobres, onde há milhares de brancos, como milhares de pretos.” 351
O aparteante também compartilhou de uma percepção muito presente nos anos 60, a de que a existência de dispositivos legais anti-racistas seria o suficiente para a comprovação de um quadro harmônico nas relações raciais:
“E a nossa Constituição, Deputado Abdias Nascimento, não permite a discriminação; proíbe-a desde o Império, desde a República, até a última Constituição, a de 46, gerada pela vontade soberana do povo brasileiro, através da Constituinte.” 352
Em seguida, Gerson Peres (PDS-PA, 48ª Legislatura) elogiou a luta de Abdias do Nascimento contra o racismo na África do Sul e Estados Unidos, argumentando que não havia sentido a mesma luta no Brasil:
“Eu o admiro, realmente, por condenar o apartheid, a discriminação racial nos Estados Unidos, onde existe uma democracia que falta ser completada com a eliminação dessa discriminação. Mas, no nosso País, Deputado, o preto e o branco são uma dualidade como uma unidade de substância, que é a nossa fraternidade, o nosso amor, a nossa maior bandeira para o mundo. É um País livre, feliz, tão feliz quanto nós, que nesta tarde ouvimos um Deputado negro que honra este Parlamento.” 353
350
Diário da Câmara dos Deputados. 22 de março de 1985, p. 1581. Diário da Câmara dos Deputados. 22 de março de 1985, p. 1581. 352 Diário da Câmara dos Deputados. 22 de março de 1985, p. 1581. 353 Diário da Câmara dos Deputados. 22 de março de 1985, p. 1581. 351
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Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) argumentou em seguida contra todos os pontos levantados pelo aparteante. Primeiramente, desenvolveu o argumento contra a percepção que reduz o racismo a uma questão de classe, afirmando que o capitalismo nasceu do racismo e do escravagismo não só no Brasil, como no mundo inteiro. Em seguida, afirmava que Gerson Peres (PDS-PA, 48ª Legislatura) estava fornecendo a maior prova da existência do racismo no País ao dizer que o Brasil tinha a felicidade de ouvir um parlamentar negro:
“...desejaria dizer-lhe que, ao afirmar que não há racismo no Brasil por existir um Deputado negro no Congresso Nacional, V. Exa. está exatamente provando que ele existe. A maioria do povo brasileiro é de origem africana, e só um Deputado negro vem aqui falar a respeito do seu povo. Este é o exemplo mais clamoroso de racismo. Acabo de receber um convite de 30 Deputados que formam o bloco negro no Congresso americano, no sentido de lá comparecer em setembro. Há trinta Deputados negros nos Estados Unidos, num país onde o negro representa 15% da população. No nosso País, somos mais de 70%, e há somente um Deputado negro neste Parlamento. V. Exa., no seu aparte, apresenta a minha pessoa como testemunho da ausência de racismo no nosso País. Com isso, V. Exa. está confirmando a tese de que no Brasil o racismo é mais evidente do que nos Estados Unidos e na África do Sul, onde, hoje, muitos negros morreram na celebração do Dia Internacional contra o Racismo.” 354
Por último, Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) expunha sua percepção de que o racismo no Brasil não tinha elementos suficientes para se diferenciar do racismo sul-africano ou norte-americano. Mesmo assim, Gerson Peres (PDS-PA, 48ª Legislatura) mantinha sua percepção harmônica, recorrendo novamente à idéia de que a presença de Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) na Câmara era o suficiente para comprovar a inexistência do racismo no País: “V. Exa. injuria a Pátria quando diz que existe racismo no Brasil. Tanto não existe que . V. Exa. está nessa tribuna representando o povo negro no Brasil. Se os negros não quiseram votar em outros negros candidatos a culpa não é da Constituição brasileira, é dos próprios negros que não quiseram escolher outros e distinguiram só V. Exa.!”355
Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura), a partir de então, encerrou o debate argumentando que Gerson Peres é que estava injuriando 70 milhões de negros do País. E assim, continuou seu discurso sobre o racismo brasileiro e expôs ao final uma agenda negra que deveria ser levada para Assembléia Nacional Constituinte de 1987. Na década, a única 354 355
Diário da Câmara dos Deputados. 22 de março de 1985, p. 1581. Diário da Câmara dos Deputados. 22 de março de 1985, p. 1582.
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alteração em toda a legislação vigente sobre a questão racial resumiu-se à Lei Caó, que revogou a Afonso Arinos. No entanto, Abdias já estruturara toda uma agenda sobre a questão que seria seguida nas décadas seguintes com suas nuances e expansões:
“Hoje, o movimento negro brasileiro alcançou uma projeção nacional e internacional que nos permite uma participação efetiva no processo de elaboração da nova Carta Magna. Não aceitamos mais ser representados por outros, por mais generosos que sejam as suas intenções.” 356
Este ponto levantado no discurso de Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) é inédito na amostra das três décadas. O deputado foca a representação negra enquanto meio necessário para a superação do racismo, pois à custa da boa vontade de tantos outros brancos, o negro até então não conseguira sequer alterar a Afonso Arinos. Em seguida, o deputado listava as iniciativas que deviam ser contempladas na Constituição:
“Entre outras medidas exigidas pela comunidade negra dessa Assembléia Nacional Constituinte que irá definir os rumos da Nova República estão as seguintes: 1 - Voto ao analfabeto negro: o negro teve sua cidadania cassada com o direito do voto apenas ao alfabetizado. Segundo o Censo nacional de 1980, um negro brasileiro tem duas vezes mais probabilidade de ser analfabeto do que um branco. O voto ao analfabeto é fundamental para uma verdadeira participação democrática afro-brasileira, e para a fundação da democracia em nosso País. 2 - Definição constitucional do racismo como crime de lesa-humanidade: a discriminação racial não pode ser classificada apenas como contravenção ou colocada em termos de "preconceito" individual e subjetivo. Cada vez que um negro é discriminado, atinge-se a todo o povo de descendência africana, se seja, um crime coletivo contra a dignidade e a condição humana de uma população inteira. 3 - Garantia constitucional de isonomia racial em todos os aspectos da vida brasileira: emprego, habitação, educação, saúde, cultura, apresentação nos meios de comunicação. Não basta a proibição da discriminação racial: é preciso que a Constituição estabeleça o. direito de todos os cidadãos à igualdade de condições de vida. Para atingir tal igualdade, medidas legislativas de ação compensatória dirigidas aos segmentos historicamente discriminados da população (como são os negros, índios e mulheres) deverão ser previstas e autorizadas na Carta Magna da República. 4 - Indenização à coletividade negra por mais de quatro séculos de destituição racista: fomos trazidos à força da África, usurpadas as nossas terras, nossa liberdade, nossa cultura, nossa língua, nossos meios de subsistência. Hoje, existem espalhadas pelo Brasil inteiro comunidades negras isoladas, ameaçadas 356
Diário da Câmara dos Deputados. 22 de março de 1985, p. 15884.
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de expulsão de suas terras, apesar de ocupá-las, em muitos casos, desde o século passado. Adicionalmente, está comprovado que a grande maioria da população rural destituída de suas terras é a população de descendência africana, que se concentra nas regiões mais pobres do meio rural, como resquício da época escravagista (Carlos Hasenbalg, Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil Rio 1979). A Constituição precisa incluir uma garantia de propriedade dessas terras para as comunidades e os camponeses negros. 5 - Proibição constitucional à definição da vadiagem como contravenção penal e à instituição da prisão cautelar. Desde a fundação da República, o negro foi taxado de ‘vadio’ por ser vítima do desemprego e conseqüente falta de moradia, resultantes de uma política de embranquecimento, que dita a preterição do exescravo no mercado de trabalho, em favor do imigrante europeu. Assim se desencadeou o processo de violência policial que ainda em nossos dias persegue o negro brasileiro, num quadro parecidíssimo com aquele da África do Sul. O agravo mais recente desse processo é a proposta da prisão cautelar. Caso ela seja implantada, não temos dúvida de que a primeira vítima será o negro, alvo prioritário e indefeso do arbítrio policial. Essa medida incorporaria uma ameaça grave à comunidade negra, cujas famílias têm constantemente seus lares invadidos pela polícia. O veto definitivo a essas intenções deve ser inserido na Constituição.” 357
A atuação de Abdias do Nascimento foi, de fato, um marco na casa. Pela amostra de discursos da década e pela análise dos discursos das décadas anteriores, há nitidamente uma porta aberta gerada por sua atuação. Abdias do Nascimento foi o deputado que mais se pronunciou na década sobre a questão. Pelos sete discursos analisados de um total de 39, o retrato é de uma militância incansável e sujeita a todo tipo de afronta dos demais deputados. Por final, se em sua atuação o deputado não conseguiu aprovar seus Projetos de Lei, no entanto, ele teve uma imensa contribuição para a consolidação de uma agenda negra na Casa. Além disso, consideramos que tenha contribuído para a ampliação dos limites do campo dos discursos sobre a questão racial na Câmara dos Deputados, modificando-o e afirmando outras “possibilidades de dizer”. Há uma relação intensa, como sabemos, entre a visibilidade de temas e problemas, o sentido atribuído a eles e sua legitimidade e inserção em uma agenda pública.
Conclusão
A amostra da década de 80, como afirmado anteriormente, apresentou uma iniciativa parlamentar negra jamais vista antes na história do Brasil, apresentando também o início da consolidação de uma agenda negra, que até os dias atuais sofre a duras penas para ser viabilizada na Casa; no entanto, recebe um reconhecimento mais amplo de sua necessidade. 357
Diário da Câmara dos Deputados. 22 de março de 1985, p. 1584.
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Os discursos analisados fornecem também a continuidade de percepções harmônicas presentes nas décadas de 60 e 70. Os apartes contribuíram imensamente para o vislumbre dessa realidade, afinal poucos parlamentares se pronunciaram na década: no total, 176 deputados distribuídos em 3 legislaturas. Se na década de 80 os deputados não mais discursavam para ostentar elogios à situação racial brasileira, como nos anos 60, a omissão de suas percepções por outro lado não significava que estavam compartilhando de posições como a de Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura).
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7 - Conclusão
A análise em conjunto dos discursos das três décadas, somados com as informações coletadas nos trabalhos de Ollie A. Johnson (2000) e Carlos Escousteguy (2003), evidencia uma ruptura com a percepção harmônica das relações raciais nos anos 80, especialmente na 47ª Legislatura, da qual participou Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura), e também uma ruptura no que se refere à inexistência, anteriormente, de uma agenda negra na Casa. A partir de então, é evidente a intensificação da iniciativa parlamentar negra na casa. É evidente no aumento de discursos proferidos na década de 90 e do ano 2000 a 2004 (Ver Gráfico 1). Também o é no aumento de proposições acerca da questão (Ver Tabela 2) e no aumento da representação negra na Casa, o que hoje já se traduz na existência de uma Frente Parlamentar em Defesa da Igualdade Racial, coordenada por deputados negros, mas que congrega inúmeros deputados brancos sensibilizados pela causa. É clara uma relação direta entre a presença de deputados negros e a luta institucional pela superação do racismo. Um primeiro sintoma desta relação é a concentração de proposições sobre a questão racial na autoria de deputados negros (Ver Tabela 3), demonstrada por Carlos Escosteguy (2003). O segundo sintoma é a ruptura empunhada pelos deputados negros com as narrativas harmônicas. Na amostra dos anos 60, apenas dois deputados se identificaram negros, e apenas estes dois forneceram percepções contrárias à da harmonia racial. Mário Gurgel (MDB-ES, 43ª Legislatura) discursou com padrões argumentativos semelhantes ao de Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura), tendo inclusive citado uma obra do deputado. Os discursos de Mário Gurgel, assim como os de Abdias do Nascimento, geraram intensos debates, o que criava um verdadeiro ringue de percepções que lembra as discussões recentes sobre as ações afirmativas para negros. O outro deputado negro da amostra da década de 60 é Cesário Coimbra (MDB-MA, 42ª Legislatura). Este, apesar de em alguns discursos ter ostentado percepções harmônicas das relações raciais, em outros discursos apresentava sérias críticas à percepção harmônica. Nos anos 70, os deputados negros Carlos Santos (MDB-RJ, 45ª e 46ª Legislaturas) e Adalberto Camargo (MDB-SP, 44ª, 45ª e 46ª Legislaturas) foram os que mais se pronunciaram, mas também ostentaram percepções que se contradiziam até mesmo nos mesmos discursos. Mas, ao mesmo tempo, ofereceram leituras do Brasil que estavam longe do conluio com a percepção harmônica. Além dos dois, merece destaque na amostra da
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década de 70, o discurso de César Nascimento (MDB-SC, 45ª Legislatura), deputado que se identificou branco, mas que também apresentou duras críticas à percepção harmônica, gerando intenso debate. Nos anos 80 por fim, dá-se o início de uma mudança no universo de percepções da amostra. Discursos de reconhecimento do racismo são predominantes. A expressão das visões harmônicas ficou quase que exclusivamente restrita aos apartes aos discursos de Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura). Por sinal, apenas os discursos de Abdias do Nascimento geraram debates como os expostos anteriormente. Na amostra dos anos 80, nenhum discurso na amostra de Paulo Paim (PT-RS, 48ª Legislatura) e Benedita da Silva (PTRJ, 48ª Legislatura) receberam apartes, o que nos leva a concluir que a passagem de Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura) pela Casa gerou posturas de cautela e omissão em deputados que ainda ostentavam percepções harmônicas. Isto pode ser vislumbrado pela dificuldade de se revogar a Afonso Arinos, o que aconteceu também a duras penas com a promulgação da Lei Caó. Nos anos 80, as percepções harmônicas não estavam representadas na amostra. No entanto, elas provavelmente estavam omissas, pois inúmeros projetos de lei sobre a questão eram sistematicamente rejeitados como o PL nº 1661/83 de Abdias do Nascimento, arquivado depois de ter votação no Plenário adiada por mais de 20 vezes. Uma análise quantitativa dos discursos dos anos 90 vai também reiterar esta relação entre a presença de deputados negros e iniciativas em prol da população negra. Dos 623 discursos coletados na década de 90, 145 (23%) foram proferidos por Paulo Paim (PT-RS, 48ª, 49ª, 50ª e 51ª Legislatura). Em seguida, vieram Benedita da Silva (PT-RJ, 48ª e 49ª Legislatura) com 30 (5%) discursos e Luiz Alberto (PT-BA, 50ª, 51ª e 52ª Legislatura) com 29 discursos (5%). A soma dos discursos destes deputados representa 33% dos discursos coletados na década. Estes deputados, até 2002 (Ver Tabela 3), foram os que mais propuseram projetos de lei sobre a questão racial, além de manter contínuo e progressivo esforço de consolidar e expandir a agenda negra na Câmara. De fato, a amostra dos anos 80 não captou discussões acerca de ações compensatórias na esfera dos partidos com a exceção do discurso de Lysâneas Maciel (PDT-RJ, 48ª Legislatura). Em trabalhos futuros, no entanto, será possível captar melhor a discussão desta temática na Casa. Até 2002, dois projetos de lei que propunham cotas nos partidos foram empunhados por Paulo Paim (ESCOUSTEGUY, 2003).
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Por último, este trabalho demonstra como foi necessária a representação negra e que, de fato, é necessária a representação de toda a diversidade presente no País, especialmente dos segmentos marginalizados na Câmara. Até entre os deputados negros que denunciavam o caráter racista da visão harmônica havia leituras diferenciadas do racismo que, calcadas em experiências pessoais, enriqueciam o tema na Casa. Um exemplo representativo é o caso de Benedita da Silva (PT-RJ, 48ª e 49ª Legislatura), que congregou em vários discursos o tema do racismo com a situação da mulher e, assim, vislumbrava problemas que deviam ser discutidos e agendados na Casa, como o caso das mães de famílias de baixa renda, majoritariamente negras, as mães prostitutas, etc., temas que inevitavelmente estiveram excluídos do foco de deputados negros, mesmo que sensíveis à questão. Focando agora a discussão levantada no capítulo segundo sobre as quatro etapas do pensamento racial proposto por alguns acadêmicos, a análise em conjunto dos discursos das três décadas é outro indicador de que o pensamento racial é essencialmente definido por quem fala e não pelas narrativas intelectuais e acadêmicas que vislumbram uma sucessão de paradigmas na questão. Abdias do Nascimento (PDT-RJ, 47ª Legislatura), por exemplo, só ocupou a cadeira da Câmara nos anos 80, no entanto a sua militância é anterior à Frente Negra Brasileira dos anos 30, tempo que corresponderia ao paradigma da democracia racial. O deputado, desde então, desde os marcos definidos por ele mesmo em seus discursos, já sofria com o racismo e lutava pela sua superação. Portanto, sempre portou uma compreensão das relações raciais que admitia a centralidade da raça, afinal, sempre portou a cor e a ancestralidade que era discriminada. Outro foco de discussão é acerca do paradigma da teoria do embranquecimento, que predominaria no início do século. Nos discursos das três décadas era muito recorrente a percepção de que o brasileiro era uma raça em formação, sem distinções, um tipo único, etc, percepções que se alinhavam com a visão darwinista empunhada por intelectuais do início do século, que com otimismo acreditavam que o gene branco prevaleceria por ser o mais forte e assim ocorreria o embranquecimento da população. Aliás, há uma nítida continuidade nos discursos da teoria do embranquecimento, não só nos harmônicos como naqueles que denunciavam o racismo brasileiro, mas em seguida teciam apologias ao suposto tipo único brasileiro. Um último comentário sobre etapas do pensamento racial brasileiro refere-se ao reducionismo de classe, que apareceria inicialmente nos discursos dos anos 50 e desapareceria nos anos 70. Pela análise das três décadas, o pensamento que reduz o racismo a uma questão de classe não passa de um argumento em defesa da harmonia racial, do mito da democracia
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racial. Pelas análises, não há como nem vislumbrar uma predominância deste pensamento, nem pensá-lo como um paradigma. Por fim, este trabalho acabou por captar um processo que está em contínuo andamento: a intensificação do ativismo negro em prol da igualdade racial. A Câmara dos Deputados oferece até os anos 80 um nítido retrato de que a participação do negro no poder tem evidenciado e difundido percepções de Brasil enquanto um País que vive uma segregação racial, o que conseqüentemente gera demandas e fortalece o Movimento Negro na luta pelas suas conquistas. Este é mais um trabalho que visou servir a este objetivo, mostrando que há discursos, percepções e demandas do Movimento Negro que estão alijadas da vida institucional do País e que elas devem ser evidenciadas, pois o País vive um momento de deslocamento nas percepções reinantes da sua identidade, um momento de desconstrução da visão de um Brasil tolerante e isento de racismo.
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8 - Referências bibliográficas
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