Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-graduação em História
LI"HA DE PESQUISA: POLÍTICA E SOCIEDADE
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Representações Sociais e Práticas Políticas do Movimento "egro Paulistano: as trajetórias de Correia Leite e Veiga dos Santos (1928-1937)
Maria Cláudia Cardoso Ferreira
Rio de Janeiro Agosto de 2005
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-graduação em História
Representações Sociais e Práticas Políticas do Movimento "egro Paulistano: as trajetórias de Correia Leite e Veiga dos Santos (1928-1937)
Maria Cláudia Cardoso Ferreira
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ como requisito à obtenção do grau de Mestre em História. ORIENTADOR: Prof. Dr. Sílvio de Almeida Carvalho Filho
Rio de Janeiro 2005
Ferreira, Maria Cláudia Cardoso Representações Sociais e Práticas Políticas do Movimento Negro Paulistano: as trajetórias de Correia Leite e Veiga dos Santos (1928-1937) Maria Cláudia Cardoso Ferreira – Rio de Janeiro: UERJ/IFCH, 2005. [...] Orientador: Prof. Dr. Silvio de Almeida Carvalho Filho Tese (mestrado) – UERJ/ Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/ Programa de Pós-Graduação em História, 2005. Referências Bibliográficas: f. [...] Negros. 2. Movimentos Sociais. 3. Biografias Políticas. 4. Intelectuais - militantes
AGRADECIME"TOS
Esta dissertação é fruto de minha trajetória iniciada ainda na época em que me preparava para o ingresso no curso de História. Com efeito, foi como aluna e posteriormente militante do Pré-Vestibular para Negros e Carentes – PVNC que tive os meus primeiros contatos com a história do movimento negro. Por isso agradeço, primeiramente, aos amigos do PVNC pelo aprendizado e experiência adquirida até aqui. Neste processo não terminado de buscas pelo conhecimento, inúmeras pessoas estiveram presentes contribuindo seja com ações e/ou palavras de apoio. Sou grata em primeiro lugar aos meus pais, parentes e amigos. Especialmente minha mãe Judith, por ter me mostrado a importância dos estudos e, minha madrinha Helena. Ao meu irmão Alexandre e minhas irmãs Andréia, Elisângela, Elisabete e Érica, além das emprestadas Jô e Janete, pela colaboração, incentivo e apoio cotidiano. E, com carinho especial, ao meu marido/companheiro Márcio André dos Santos por ter partilhado cotidianamente, minhas angústias, conquistas e limitações sempre com palavras assertivas como bem sabe fazer. Algumas pessoas além de amigas foram presenças imprescindíveis no processo de feitura do trabalho. Assim sou grata à Luanda, ao Prof. Dr. Alain Kaly, Clícea e Simone (Pós-graduação UERJ). Também aos amigos da JOC-SP, ao Prof. Dr. José Jorge de Carvalho e a Joanice e Mariana por me acolherem nos momentos em que precisei pesquisar em São Paulo. À Profa. Dra. Marilene Rosa Nogueira da Silva pela relação de amizade e parceria intelectual iniciada na época da graduação e, as Profas. Dras. Fátima Machado Chaves e Mônica Grin por suas contribuições no
exame de qualificação. Assim como ao Prof. Dr. Petrônio Domingues pelo desprendimento e solidariedade de pesquisador ao disponibilizar suas fontes, quando a falta destas, certamente comprometeria a qualidade de meu trabalho. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES pela concessão de bolsa de pesquisa entre março de 2004 e março de 2005. Meu orientador Prof. Dr. Sílvio Almeida Carvalho Filho, contribuiu substancialmente para meu amadurecimento intelectual ao longo desses dois últimos anos, com sua erudição, profissionalismo e dedicação. Numa época em que o tempo parece cada vez mais escasso, sou grata a ti pelo desprendimento em me ensinar o caminho das pedras. Pelos inúmeros encontros de orientação, alguns exaustivos, mas imprescindíveis se buscamos resultados satisfatórios. Enfim, muito obrigado pela paciência e pelo altruísmo! Prometo seguir o exemplo do mestre amigo.
RESUMO O presente trabalho é fruto do estudo das trajetórias políticas de dois ativistas do movimento negro, existente na cidade de São Paulo, nas décadas de 1920 e 1930. José Correia Leite e Arlindo Veiga dos Santos fundaram organizações político-sociais com expressividade local e até mesmo nacional, sendo o jornal Clarim d' Alvorada (1924-1932) e a Frente Negra Brasileira (1931-1937), as entidades nas quais os dois mais se destacaram, respectivamente. Nessas e noutras organizações desempenharam os papéis de intelectuais-militantes, pois desenvolveram um tipo específico de ativismo, capaz de no decorrer daqueles anos combinar a formação intelectual adquirida, com a prática militante, tomando para si mesmos a missão de atuar em prol do grupo racial negro. Enquanto intelectuais-militantes formaram e divulgaram representações sociais e organizaram ações políticas visando diminuir o preconceito e a discriminação racial naquela sociedade. Usavam a imprensa negra paulistana como veículo de comunicação e as redes de sociabilidade construídas para arregimentar seguidores e pôr em prática seus projetos. Não obstante, as ações de Veiga e Leite tiveram formas de estruturação e atuação contrárias. No contexto político dos anos 1930, os dois se distanciaram optando por ideologias políticas conflitantes, o que gerou rompimentos, revelando uma diversidade de projetos no âmbito do ativismo negro paulistano. (Movimento Negro – Trajetórias políticas – Intelectuais – Ativismo político)
ABSTRACT
This work presents the political trajectories of two activists of the black moviment that existed in São Paulo, in the 1920’s. José Correia Leite and Arlindo Veiga dos Santos funded socio-political organizations that reached national levels. The two founders are most well-known for creating the jornal Clarim d’ Alvorada and Frente Negra Brasileira, respectively. In these organizations and others, the two men filled militant intellecttual roles, developing a particular type of activism that combined their intellectual learnings with a militantism in the struggle for black racial identity. As intellectual militants they created and disseminated social representatione and organized political actions with the aim of reducing racial prejudice and discrimination in society. They used the black press in São Paulo as a vehicle of communications and their social networks was made looking for to get follawers and put their projects into action. Nonetheless, Veiga and Leite’s projects were different in structure and operation. In the political contest of the 1930’s, the two opted for conflicting political ideologies which created ruptures, and which reveal the diversity of projects in the black moviment in São Paulo.
( Black Moviment – Political trajectories – Intellectuals – Political activism)
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SUMÁRIO
SUMÁRIO ....................................................................................................... 9 BREVE APRESE"TAÇÃO ........................................................................ 10 1. CAPÍTULO – UMA OPÇÃO: TRAJETÓRIAS POLÍTICAS DE I"TELECTUAIS "EGROS PAULISTA"OS.........................................................................................................13 1.1 Para entender seus contextos, seus escritos, suas memórias... ......................13 1.2 Os testemunhos: depoimentos, jornais e inventários policiais ......................43 2. CAPÍTULO - LIDERA"DO ORGA"IZAÇÕES POLÍTICAS "O MEIO "EGRO PAULISTA"O ........................................................................................................................51 2.1 Uma combinação de variáveis: aspectos sócio-econômicos e políticoculturais propiciam a emergência dos ativistas negros........................................51 2.2 O alvorecer do ativismo negro: breve história das entidades negras em que atuaram Correia Leite e Veiga dos Santos...........................................................59 2.3 Atuando em outros movimentos..................................................................102 3. CAPÍTULO - O "PROBLEMA "EGRO" E OS QUESTIO"AME"TOS DO "EGRO: A RAÇA E A PROBLEMÁTICA DA FORMAÇÃO "ACIO"AL .....................................................117 3.1 O quantitativo populacional negro como um problema nacional................117 3.2 Uma saída para o Brasil do futuro: o branqueamento pela mestiçagem .....123 3.2 Década de 1930: a afirmação da democracia racial ....................................149 4. CAPÍTULO OS PERCURSOS DOS “I"TELECTUAIS DA RAÇA”: PRÁTICAS POLÍTICAS E REPRESE"TAÇÕES SOCIAIS E"TRE OS A"OS DE 1928 E 1937 ......................161 4.1 Veiga dos Santos e Correia Leite: duas personalidades singulares .............161 4.2 - Uma utopia: re-elaborar positivamente a imagem do negro brasileiro .....169 4.3- Década de 1930: adesão e dissensão entre José Correia Leite e Arlindo Veiga dos Santos ...............................................................................................199 5. CO"SIDERAÇÕES FI"AIS ......................................................................................213
REFERÊ"CIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................... 218
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BREVE APRESENTAÇÃO
Arlindo José da Veiga Cabral dos Santos e José Benedito Correia Leite atuaram em organizações do movimento negro sediadas na cidade de São Paulo, na primeira metade do século XX. Essa dissertação analisa suas trajetórias políticas, tomando como marco inicial 1928 - ano em que o jornal O Clarim d'Alvorada dirigido por Correia Leite, assumiu o combate ao racismo como uma ação política e marco final 1937 - data da deflagração do Estado Novo, porque proibiu o funcionamento de todas as organizações político-sociais, inclusive da Frente Negra Brasileira, entidade na qual Veiga dos Santos exerceu o cargo de presidente. Enfocamos o conjunto de suas idéias e práticas políticas inseridas na agenda do movimento social negro na cidade de São Paulo e optamos por examinar a posição de liderança intelectualizada, algumas vezes em arenas opostas, que esses dois indivíduos assumiram. Investigamos essas trajetórias no âmbito das relações raciais, ou seja, intentamos mostrar como os militantes percebiam os papéis sociais atribuídos e representados pelos grupos raciais branco-negro, no âmbito da sociedade brasileira no geral e paulistana em particular. José Correia Leite e Arlindo Veiga dos Santos, por suas trajetórias, assumem neste trabalho, a condição de porta-vozes de um conjunto formado em sua maioria por homens, que se destacou no interior da chamada elite negra paulistana como o grupo dos intelectualizados. Estes desenvolveram um tipo específico de ativismo, capaz de no decorrer daqueles anos combinar a formação intelectual adquirida muitas das vezes durante a própria atuação, à prática militante, assumindo um papel singular: o de
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intelectuais-militantes1 capazes de tomarem para si a missão de atuar em prol do grupo racial com o qual se identificavam. Enquanto
intelectuais-militantes
foram
organizadores,
formadores
e
divulgadores de idéias que visavam diminuir o preconceito e a discriminação racial naquela sociedade. Podem ser considerados os precursores do movimento social negro brasileiro, na medida que partilhamos do entendimento de que as organizações que lideraram tiveram como um dos principais objetivos combater o racismo e a discriminação racial contra o negro. Não obstante as ações de Veiga e Leite terem tido, às vezes, formas de estruturação e atuação contrárias, são discutidas neste trabalho, a partir das representações sociais e práticas políticas resultantes do modelo de relações raciais vigente naquela sociedade, ou seja, nos detemos, preferencialmente, sobre o que os dois intelectuais-militantes compreendiam e formulavam acerca da chamada “questão racial”. No primeiro capítulo discorremos sobre o tema e o contexto, apresentamos as escolhas teórico-metodológicas consideradas mais adequadas à análise das representações formuladas pelos dois intelectuais-militantes, além das fontes utilizadas para a realização do trabalho. No segundo, optamos por apresentar as trajetórias de Leite e Veiga no meio político paulistano, entre as décadas de 1920 e 1930. Para isso fizemos um breve histórico das entidades nas quais os dois foram fundadores, líderes ou simplesmente, componentes do quadro organizativo. No terceiro capítulo nossa intenção foi apresentar um conjunto de idéias sobre a “questão racial” veiculadas na
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Adotamos aqui como noção chave de nossa análise, a construção intelectual-militante por designar aqueles ativistas, surgidos entre as décadas de 1920 e 1930, fundadores das primeiras organizações do movimento negro brasileiro que articularam a cultura à política. Esses líderes participaram como divulgadores e mediadores culturais no espaço da cidade com a finalidade política de conscientização e transformação social. Para tal, atuaram como jornalistas, oradores, literatos e articulistas. Na construção desse termo, foram-nos úteis as contribuições de GRAMSCI (s.d) e mais recentemente, as de SIRINELLI (1996), sobre os intelectuais na França. Para uma outra discussão crítica dessa acepção, ver CUNHA (2000).
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sociedade paulistana no final dos anos 1920 e durante todo os anos 1930. Fizemos isso através da análise da produção intelectual de alguns estudiosos tidos como referência na época. Enfocamos a maneira que tais pensamentos foram assimilados pelos intelectuais-militantes na chamada imprensa negra, dando ênfase especial às representações veiculadas por Veiga e Leite. No quarto e último capítulo discutimos as formas de atuação política empreendidas pelos dois ativistas, que em alguns momentos estiveram em sintonia e em outros divergiram. Essa abordagem nos fez perceber uma diversidade de projetos e frentes de atuação do Movimento Negro paulistano, causadores de alguns conflitos mapeados em nesta dissertação.
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1.CAPÍTULO – U MA
O P Ç Ã O : T R A J E T Ó R I A S P O LÍ T I C A S D E
I " T E L E C T U A I S " E G R O S P A U L I S T A "O S
"... ós éramos tidos como loucos, como gente que estava criando caso." (José Correia Leite)
1.1 Para entender seus contextos, seus escritos, suas memórias... O nascimento de José Benedito Correia Leite deu-se em 23 de agosto de 1900, a Rua 24 de Maio, na cidade de São Paulo e foi fruto do envolvimento de sua mãe, "uma negra, doméstica e muito lutadora", com um dos "quatrocentões de família bem tradicional".2 A mãe trabalhava como empregada doméstica, deixando ele e uma irmã, sob os cuidados de vizinhos. Nessa época morava numa casa de pau-a-pique, numa localidade conhecida como Saracura Grande, no bairro do Bexiga, originário do quilombo da Saracura surgido a partir da segunda metade do século XIX. A Saracura Grande era remanescente do quilombo e ficava onde é hoje a rua Marques Leão.3 As comunidades estrangeiras, no geral, se agruparam em bairros específicos. Os bairros da Mooca, Lapa, Barra Funda, Bexiga e Brás foram ocupados preponderantemente pelos italianos, que dividiram com espanhóis, a Mooca e o Brás. Na Liberdade, concentraram-se os imigrantes japoneses. Já os negros chegaram em tempos diferentes na cidade. Alguns lá já estavam desde antes da abolição. Outros migraram nos anos subseqüentes a data de assinatura da lei abolicionista em busca de melhores condições de vida. Entretanto, não podemos dizer que os negros se concentraram em bairros específicos, ainda que possamos identificar algumas localidades com presença substantiva dessa população. Foram os bairros do Jabaquara,
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Correia Leite contou que a mãe "nunca quis saber de nada" com seu pai, criando ele e a irmã sozinha. Cf. depoimento cedido à Míriam Ferrara em 14/11/1980 (mimeo), p.1 3 LEITE,1992:23
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Barra Funda e Lavapés, além de regiões do Bexiga, locais onde a comunidade negra se concentrou e pôde, na medida do possível, construir singularidades e elaborar um repertório comum.4 Ainda na infância, Correia Leite trabalhou para os italianos como entregador de marmitas, menino de recados e ajudante, como forma de complementar a renda familiar. Por conta de sua precária estrutura familiar, viveu na infância e na adolescência um abandono intermitente que prejudicou a sua assiduidade à escola. A situação agravou-se após doença psiquiátrica da mãe e seu posterior falecimento, quando o menino tinha por volta de nove ou dez anos. No decorrer da infância e adolescência tentou estudar de diversas maneiras: trabalhando em troca da instrução, freqüentando uma escola maçônica para desvalidos, uma para jornaleiros fomentada pelos monges beneditinos, mas não logrou sucesso. Após ficar órfão foi trabalhar definitivamente com os italianos como ajudante de carpinteiro, lenheiro e cuidador de crianças na maioria das vezes, em troca de casa e comida. O militante relatou que "vivia em harmonia com os italianinhos, filhos do seu patrão, em cuja casa morava, e com outros meninos brancos da vizinhança". Em seus relatos informou que se sentava à mesa, já que era tratado como se fosse da família. Paradoxalmente foi nessa mesma comunidade que viveu as primeiras situações de preconceito e diferenciação racial. Ocorreram diversas ocasiões, na qual sua condição de negro funcionou como um marcador de inferioridade e exclusão. Lembrou que durante as partidas de futebol era xingado de negro e minelite, o último em referência ao imperador Menelike II5, o que na época, muito o amargurava. E que, quando 4
ROLNIK,1989:30 Menelike II foi o insólito dirigente africano não derrotado na luta contra o colonialismo europeu, desse modo a Etiópia tornou-se o único Estado africano vencedor, em fins do século XIX, de uma potência “branca”, a Itália, em suas ambições imperialistas na África (1896). Essa foi “a maior vitória de um africano contra um exército europeu desde a época de Aníbal”. Por isso, esse imperador tornou-se um dos símbolos da lutas dos negros na África e na América contra a hegemonia branca. Cf.
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começou a pensar em namoro, as moças escolhidas para ele nunca eram as "da família, mas sim, mulatinhas". Que numa ocasião, os rapazes, seus amigos, se preparavam para freqüentar a "sociedade de baile" e o máximo que conseguiram foi que ele freqüentasse os ensaios de homem. Condição que aceitou num "momento de deslocamento"6 denotando um "comportamento de aceitação consciente ou inconsciente dos padrões culturais existentes.7 Mas, décadas mais tarde, essas mesmas informações dadas pelo depoente, sofreram outro tipo de análise. O velho e experiente ativista negro, com profundas impressões sobre as relações raciais no Brasil, em suas novas lembranças chegaria a outras conclusões. Diria que quanto "à discriminação eles, [os italianos] seguiam a regra dos brasileiros brancos": distância. O italiano adotou muito bem o modelo brasileiro de tratar os negros. E, caso gostasse de algum negro, não faziam restrições.8 O cotidiano e as histórias de vida lembradas nos fazem perceber que as relações raciais branco-negro em São Paulo foram marcadas por significativos casos de apadrinhamento de indivíduos negros por famílias brancas. Estes eram tratados como "da família", até que ousassem transpor as barreiras impostas pelo grupo dominante, como nos mostrou as reminiscências de Correia Leite. Correia Leite se alfabetizou apenas na juventude com a ajuda de Jayme de Aguiar, amigo de infância, criado numa família da aristocracia paulista9, reencontrado, por acaso num baile negro, após o término dos ensaios só para homens, do clube
AKPAN,1991:281-286). 6 FERNANDES,1978:270-274 vol.I O autor não cita o nome do militante nestes relatos. Usa apenas a abreviação J. porém, cruzamos as informações contidas em Fernandes com a biografia póstuma de José Correia Leite e chegamos a conclusão que a história de vida de J. é mesmo, a do próprio. 7 FERNANDES,1978:320 volI 8 LEITE,1992:52-53 9 Jayme de Aguiar era amigo de infância de José Correia Leite e devido a uma aproximação de sua família com os Paula Souza, que estavam no poder desde antes da abolição, pôde concluir os estudos secundários, se tornando técnico de contabilidade e posteriormente funcionário público. Reencontrou Correia Leite já na juventude num baile de negros. Reataram a amizade da infância a ponto de Jayme completar o processo de alfabetização de Correia Leite e depois convidá-lo para organizarem um jornal. A parceria dos dois iniciou-se em 1924, com a fundação do jornal O Clarim d' Alvorada. Jayme de Aguiar deixou a direção do jornal no final da década de 1930 para se casar, mas continuou colaborando
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italiano Duque de Lá Bruce, que passara a participar. Posteriormente, incentivado por Aguiar que o "ensinara a gostar de livros", iniciou uma espécie de curso técnico noturno de contabilidade. Porém não conseguiu concluir. Na década de 1940, o pai o ajudaria a conseguir um emprego estável na prefeitura de São Paulo. A primeira vez que Leite procurou-o, tinha 22 anos. Depois de alguns desencontros, conversaram. Segundo o próprio, o pai com medo da "índole dos negros" de "tirar coisas" disse que não teve culpa pelo acontecido, pois sua mãe havia sido soberba e sumido com ele.10 Ao apresentarmos esse resumo de sua vida, até o começo de sua iniciação na política queremos ressaltá-lo como um típico representante do meio empobrecido. Até os vinte e poucos anos, esta não diferia da maioria dos jovens negros de sua época, marcada pela falta de escolarização, ocupações precárias e moradia subumana. Será a descoberta de uma outra sociabilidade, nas festas organizadas pelas "sociedades negras" e o desempenho intelectual potencializado a partir da atuação no jornal O Clarim d'Alvorada, fundado juntamente com Jayme de Aguiar em 1924, que irá inserilo no mundo das letras e da militância, tornando-o um dos principais ativistas orgânicos do movimento negro que existiu nas primeiras décadas do século XX. Em 1928, Correia Leite assumiu o posto de editor responsável pelo O Clarim d' Alvorada. Em sua gestão, o periódico passou a pautar a questão racial de maneira mais combativa e reivindicativa, tornando-se a vanguarda do ativismo negro que apareceria na década seguinte. Ainda no final da década de 1920, liderou duas campanhas encampadas pelo Clarim d' Alvorada: a da realização do primeiro Congresso da Mocidade Negra Brasileira e a da criação de um monumento à Mãe-Negra. Foi em torno da mobilização para a realização do Congresso que Santos e Leite, conhecidos
na imprensa negra com textos, poesias além de freqüentar as comemorações organizadas pela militância. 10 FERNANDES,1978:275 vol.I
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desde a época do Centro Cívico Palmares11, se aproximaram e se tornaram notórios no meio negro letrado. Arlindo José da Veiga Cabral dos Santos nasceu em 12 de fevereiro de 1902, na cidade de Itu. Fez o curso primário no Grupo Escolar "Cesário Mota" e o ginasial nos colégios São Luís - instituição jesuíta onde o pai era cozinheiro e no colégio Nossa Senhora do Carmo, entre 1914 e 1919. Era comum esse tipo de favorecimento. Como vimos no exemplo de Jayme de Aguiar, muitos negros ascenderam por conta desse mecanismo de ajuda individual. No entanto, essa prática fazia com que tais pessoas devessem gratidão aos seus protetores para o resto de suas vidas, ou seja, permaneciam os padrões de relações tradicionalistas calcados ainda, em valores pré-abolição. Certamente esse tipo de relação contribuiu para minar um processo de conscientização política mais eficaz, capaz de lutar pela supressão radical da subordinação do negro enquanto grupo racial. Percebemos, no decorrer da pesquisa que essa relação era recorrente, sendo mais intensa ou não conforme o tipo de relação que se estabelecia entre a aristocracia branca e o grupo negro. Arlindo foi o único, numa família de muitos irmãos a cursar uma faculdade, diplomando-se em 1925, em Filosofia e Letras pela Faculdade de São Bento, fundada em 1908, por D. Miguel Kruse e filiada à Universidade de Louvain (Bélgica), em 1911. A São Bento, posteriormente tornou-se Faculdade de Filosofia e Letras de São Paulo e, em 1959, integrou-se a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente a Faculdade de São Bento retornou suas atividades acadêmicas, mas somente com o curso de Filosofia que nunca deixou de funcionar no prédio.12 Foi católico praticante durante toda a vida. Participou da Congregação Mariana da 11
O Centro Cívico Palmares foi uma organização negra atuante entre os anos 1926 e 1929 da qual trataremos no capítulo específico sobre os espaços políticos em que os dois atuaram. 12 Informações tidas na secretaria da instituição e através de um panfleto publicitário, em agosto de
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Imaculada Conceição de Santa Efigênia, tornando-se presidente dessa irmandade, em 1940.13 Também atuou como intelectual católico colaborando e dirigindo periódicos dessa doutrina como o Mensageiro da Paz e o Século. Associado ao Centro D. Vital de São Paulo colaborou para a revista A Ordem, responsável por divulgar as idéias da Igreja. Além disso, foi declarado defensor do retorno da monarquia e em prol dessa causa, fundou e presidiu, na maior parte do tempo de sua existência, primeiramente o Centro Monarquista de Cultura Social e Política Pátria-Nova (1928-1932) e em 1932, como desdobramento deste Centro, a Ação Imperial Patrianovista Brasileira - AIPB (1932-1978) de orientação católica e monarquista. Como intelectual escreveu e publicou poemas, romances e principalmente, suas convicções político-ideológicas. Seus livros entre as décadas de 1920 e 1930 foram Amar ...e amar depois menção honrosa na Academia Brasileira de Letras de São Paulo, de 1923; As filhas da cabana (1921-1923), O carnaval (1925), O bálsamo das dores (1926), Contra a corrente (1931), Satanás (1932); além de algumas obras que traduziu do francês: Da floresta de Paris, de 1933, Do governo dos príncipes e do governo dos judeus, de 1937.14 Quase todos publicados com investimentos próprios. Trabalhou na secretaria do Colégio São Bento e, a partir dos anos 1930, lecionou inglês, latim e português em escolas particulares, tornando-se décadas mais tarde professor universitário.15 Arlindo Veiga dos Santos fundou junto com José Correia Leite e mais alguns jovens negros fundaram a Frente Negra Brasileira (1931-1937), principal organização
2004. 13 DOMINGUES,s/d:5 14 MELO,1954:555-556 15 Cf.OLIVEIRA,1998:39. Arlindo trabalhou preponderantemente em instituições católicas. Foi catedrático da Faculdade de Filosofia de Lorena, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, da Faculdade de Ciências Econômicas do Sagrado Coração de Jesus e da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica de Campinas. Em 1956, foi eleito para o Instituto Histórico e Geográfico Paulista. Além disso, participou do Instituto de Direito Social da Academia Brasileira de Ciências
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do movimento negro, existente, entre a década de 1910 e 1950, se levarmos em conta o número de filiados e amplitude territorial alcançada. Com a Frente Negra Brasileira seguiram-se anos bastante ativos na vida política de Veiga dos Santos e Correia Leite. Ambos se tornaram referência no meio político negro, devido às posições políticas que assumiram e textos que fizeram circular. Entretanto, logo dois grupos antagônicos se formariam. Um representado por Veiga dos Santos propício das atitudes personalistas e de caráter conservador, e outro liderado por Correia Leite, simpatizante das posturas coletivas e democráticas. Dessa ruptura surgiu o Clube Negro de Cultura Social fundado pelo grupo de Correia Leite em 1932, depois que o jornal O Clarim da Alvorada foi empastelado pelo pessoal de Arlindo Veiga dos Santos e com a finalidade de disputar poder com as lideranças frentenegrinas. No Clube Negro de Cultura Social, Leite retomou suas atividades jornalísticas publicando dois periódicos: a revista Cultura e o jornal O Clarim, porém os dois não alcançariam a importância que tivera o Clarim d' Alvorada anos antes. A Frente Negra Brasileira também teve seu periódico, o jornal A Voz da Raça, veículo responsável por disseminar as idéias das lideranças frentenegrinas, principalmente as de Arlindo Veiga dos Santos. Entretanto, em 1937, com a instauração da ditadura de Vargas, os percursos políticos tanto de Veiga dos Santos quanto de Correia Leite sofreram uma mudança brusca, pois todas as organizações político-sociais foram impedidas de funcionar, inclusive as entidades negras supracitadas, pois lograram articular práticas culturais às políticas. Objetivo que ficou mais evidente com a candidatura de Arlindo Veiga dos Santos a uma vaga na Assembléia Constituinte, ainda em 1933 e posteriormente, a transformação da Frente Negra Brasileira em um partido político no ano de 1936.
Sociais e Políticas, da Sociedade Geográfica Brasileira e Association de poétes de Langue Française.
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Movimentos negros com características assumidamente políticas, só ressurgiriam na cidade de São Paulo, a partir de 1945 com o fim da ditadura do Estado ovo. Mas, estes apresentariam novas feições, estratégias de ação e objetivos, ainda na busca, assim como aqueles de outrora, por integração no âmbito da sociedade brasileira.16 Problema que a ditadura do Estado ovo não resolveu, mas procurou minimizar, pelo menos no plano discursivo, difundindo a idéia de que a nação caminhava para uma brasilidade mestiça, em que as diferenciações e segregações não constituiriam mais ameaças.17 Neste contexto, se deu a apropriação pelo Estado do mito da democracia racial, no sentido de harmonizar uma formação nacional que desse conta de homogeneizar a diversidade racial, fundadora da sociedade brasileira, sem que fosse preciso falar das desigualdades raciais históricas mantidas por essa mesma formação.18 Ao analisarmos a história do movimento negro dessas primeiras décadas percebemos que Veiga dos Santos e Correia Leite foram dois personagens que se destacaram e isso contribuiu para que suas trajetórias tornassem parte da memória do movimento negro contemporâneo. Participaram como idealizadores, organizadores ou articulistas da maioria das novas entidades que surgiram nos anos 20 e 30. Em alguns momentos, estiveram politicamente em lados opostos, pois concebiam a militância de maneira diferente. Podemos citar como exemplo, o episódio em que José Correia Leite rompeu com a Frente Negra Brasileira, ainda que este tivesse participado de sua fundação, por discordar veementemente do estatuto da organização que segundo ele, espelhava idéias do fascismo italiano adaptadas por Veiga dos Santos.19 O antagonismo iniciado com este episódio se ampliou durante a década de 30 ocorrendo 16
Sobre o assunto ver ANDREWS, 1998;HANCHARD,2001;NASCIMENTO,2003:281-380. COSTA, 2001 A construção sociológica da raça no Brasil (mimeo) apud GRIN, 2002:208 18 SOUZA, 2000:151; GUIMARÃES, 2002:121 17
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outros incidentes, interferindo diretamente na dinâmica do movimento negro da época. Acreditamos que suas trajetórias pessoais díspares contribuíram para a existência das dissonâncias percebidas nas idéias e a práticas políticas analisadas. Outras identidades oriundas de outras formações, como o caso da filiação monarquista de Arlindo, influenciaram diretamente na dinâmica do movimento negro, comprovando ausência de homogeneidade de concepção política. Nesse sentido, a identidade racial construída aproximou-os, no entanto, outras interações existiram tendo contribuído para aumentar os embates políticos travados. Estudar as trajetórias de dois homens negros, entendidos aqui como indivíduos que articularam atributos intelectuais com a ação militante, atuantes num período importante da história nacional (os anos 1930), devido às transformações políticas, econômicas, sociais e culturais ocorridas, torna-se fundamental, pois insere o protagonismo negro no contexto da história republicana brasileira, numa perspectiva que procura analisar, desde de dentro, suas concepções e demandas político-sociais. Já existem trabalhos20 sobre intelectuais brasileiros ligados aos movimentos sociais, mas as abordagens seguem caminhos distintos da que optamos. Acreditamos que pesquisas sobre grupos étnicos ou raciais que vivenciam ou vivenciaram alguma situação de subordinação em relação a um outro hegemônico revelam-se importantes, caso preocupem-se em examinar os papéis que desempenham os indivíduos mais intelectualizados, que na prática cotidiana assumiram a liderança na transformação da realidade de marginalização experienciada pelo grupo ao qual estavam inseridos. Além do mais, estudos focados nos protagonistas dos movimentos sociais negros no Brasil carecem de serem feitos, uma vez que a maioria destes trabalhos prioriza analisar as entidades surgidas. Nesse sentido, nossa abordagem traz uma contribuição de outra 19
LEITE, 1992:94
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natureza, ao preocupar-se com as trajetórias políticas de dois representantes do movimento negro que atuaram nas primeiras décadas do século passado, num mesmo cenário político-social, mas que por motivos contextuais e também de opção individual construíram representações sociais e tiveram práticas políticas as vezes muito díspares, evidenciando assim aspectos de uma pluralidade ideológica no movimento negro que existiu neste período, pouco explorada pelas pesquisas acadêmicas até hoje. Vale salientar que algumas dificuldades afastam os pesquisadores interessados em estudar, a partir da Abolição, o racismo brasileiro e nossas relações raciais. Podemos citar, a falta de linhas de pesquisas nas pós-graduações em História em estudos que articulem o pertencimento "racial" à política, o posicionamento renitente da maioria dos historiadores, que ainda optam por investigar as relações raciais remetendo-se ao nosso passado escravista21 e o tímido enfoque que a sociedade ainda dá a temática, fundada na crença de que vivemos numa "democracia racial". Ainda assim, alguns estudos22 sobre o tema, mesmo que a maioria não seja de historiadores, tornaram-se clássicos e são leitura obrigatória para os que optam pela temática. Convém tecer aqui algumas considerações sobre as pesquisas mais relevantes, situadas no espaço de São Paulo, as quais tivemos acesso. Um olhar voltado para a organização do movimento negro em São Paulo, privilegiando as condições sociais e econômicas propícias ao seu surgimento deram a tônica das análises. A maioria investigou as organizações negras existentes no último século com a finalidade de organizar, conscientizar e mobilizar a população negra ou parte dela, no combate ao preconceito e a discriminação racial. Veiga dos Santos e Correia Leite foram muito citados nestes trabalhos, visto que a maioria das pesquisas
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Cf.ANDREUCCI & OLIVEIRA, 2002; REIS FILHO,2000;MAUES,1997 GRIN, 2002:215 22 Cf. FERNANDES,1978; BASTIDE&FERNANDES,1971; PINTO,1993 21
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analisa as organizações as quais eles dirigiram, sendo a Frente Negra Brasileira23 considerada a entidade mais complexa do período. Os estudos publicados pela UNESCO24, encomendados pela Organização das Nações Unidas, na década de 5025, mudaram os rumos das pesquisas relativas às relações raciais no Brasil. Já que até então, a maioria deles, ou abordavam o negro pela via da cultura "exótica" e folclorizada, ou como "degenerados" físicos, mentais vistos pelo "saber" médico ou no mais, como potenciais criminosos na visão do Direito.26 Contrariando a produção interna, o Estado brasileiro transmitia ao mundo uma visão de paraíso racial, pois aqui não havia segregação como nos Estados Unidos da América e África do Sul. Brasileiros brancos e negros conviviam numa suposta harmonia, caminhando para uma evoluída democracia racial, um exemplo às outras nações do mundo, traumatizadas com a tragédia do holocausto judeu. Dentre eles, interessa-nos os trabalhos feitos por Florestam Fernandes27 junto com Roger Bastide, pois justamente, tratou das relações raciais entre brancos e negros28 na cidade de São Paulo, na primeira metade do século XX. O trabalho de campo, iniciado em 1941, dividiu-se em três partes: a organização de debates com lideranças negras da época, mas que também havia atuado nas décadas anteriores, a aplicação questionários com brancos e negros a fim de perceberem formas de discriminação e preconceito racial e pesquisas de campo em bairros populares de 23
No próximo capítulo faremos um breve histórico das organizações negras em que atuaram Correia Leite e Veiga dos Santos. 24 UNESCO- United Nations Educational Scientific and Cultural Organization. 25 As três pesquisas tinham como perspectiva as nossas relações raciais. Talles de Azevedo estudou a ascensão social dos negros na cidade de Salvador; Costa Pinto as organizações negras do Rio de Janeiro a partir dos documentos produzidos pelo Primeiro Congresso Brasileiro do Negro realizado pelo Teatro Experimental do Negro e Florestan Fernandes dedicou-se a compreender o cotidiano da população negra na cidade de São Paulo. 26 Cf. SCHWARCZ, 1993 27 BASTIDE & FERNANDES, 1971 Brancos e egros em São Paulo, 3ª ed. São Paulo: Nacional. 28 Fernandes não trabalhou com categorias étnicas ou raciais, mas sim de cor. Portanto, classificou como negros, os visivelmente pretos, e mulatos, os visivelmente "miscigenados". Sua perspectiva percebia que os dois grupos de cor sofriam as mesmas opressões, ocupando os mesmos estratos sociais, podendo ser
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maioria negra. Especificamente sobre o movimento negro dos anos 1920 e 1930, os pesquisadores chegaram a conclusão, com a qual concordamos, que se tratou de mobilização destinada a incluir o negro na sociedade competitiva, industrializada e urbana no qual São Paulo se transformara. A diminuição da perseguição declarada a população negra pela polícia, o surgimento do movimento modernista que incluiu a estética negra em sua arte, o aparecimento de uma propaganda de cunho socialista ou comunista destinada ao negro proletário e uma certa insatisfação frente ao governo de Getúlio Vargas que não conseguiu resolver o problema do desemprego entre a população negra, impulsionaram a organização política e social dos negros.29 Portanto, as lideranças surgiram no decorrer desse contexto de mudança cultural e políticosocial, mas esteve muitas das vezes, despreparada ideologicamente para a empreitada. Em conseqüência disso, acabou erigindo-se um movimento de reação às condições de vida enfrentadas, e não de construção de reflexão e estratégia de ação organizada, liderado por sujeitos cônscios do papel que poderiam assumir naquele momento. Afirmativa da qual não partilhamos totalmente, pois Fernandes e Bastide deram pouca importância as ambições individuais e o tipo de inserção que alguns sujeitos tiveram no interior do movimento negro e também fora dele, como fatores que pudessem explicar o desenrolar dos acontecimentos. No final da década de 60, o autor publicou um outro trabalho30 no qual sofisticou as reflexões presentes no estudo anterior. Sua tese principal afirmava que num período em que o capitalismo sedimentava suas estruturas na sociedade brasileira, primeira metade do século XX, os negros experimentavam péssimas condições de
percebidos então, como um único segmento social, quase como uma "classe". 29 BASTIDE&FERNANDES,1971:196. 30 FERNANDES, 1978. A integração do negro na sociedade de classes vol. 1 e 2. 3ª ed. São Paulo:
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vida. Isto em larga medida, devido ao próprio despreparo dos mesmos e do preconceito racial de grande parte da elite branca empregadora, que ainda pautava suas relações sociais em bases tradicionalistas fundadas em valores oriundos do passado escravista.31 Para Fernandes, o movimento social negro funcionou, para parcela mínima da população negra paulista como uma forma eficaz de reação à pobreza, a baixa escolarização e ao desemprego, logo com a finalidade de completar ainda, o processo de libertação moral iniciado pela Abolição da escravatura.32 Portanto, em linhas gerais, o autor continuava a ver o ativismo negro existente naqueles anos, apenas como um movimento reativo a um estado de coisas que teimava por permanecer. Não obstante, Fernandes evidenciou o papel das lideranças no processo de organização do ativismo. Percebeu que o ideal de democracia racial do movimento negro, não tinha correspondência na ideologia branca dominante baseada ainda, nos padrões tradicionais oriundos da sociedade escravista. Para ele, o movimento surgiu com a finalidade de preparar o negro para a entrada na nova ordem econômica vigente, instrumentalizando-o com escolarização e formação profissional, mas também, em alguns casos, resultou da ação de um conjunto de homens negros letrados que construíram uma "ideologia negra" capaz de vislumbrar alguns interesses comuns, pois "achavam que o 'negro' devia despertar, sair do retraimento e impor-se como novos alvos de 'integralização' à ordem econômica, social e política".33 Sua análise afirmava que as lideranças negras constituíram, aos poucos, uma ideologia que em alguns momentos, até rivalizava com a ideologia dominante, mas que não alcançou "pureza teórica e agressividade prática" capaz de intentar suplantar a ordem social vigente, ou seja, não havia sofisticação ideológica e política capaz de fazer surgir um movimento
Ática. 31 FERNANDES, 1978:19-20 vol.1 32 FERNANDES, 1978:8 vol.2
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negro com intenções de tomada do poder. Ao contrário, era uma ideologia racial construída para minimizar os efeitos da subordinação do negro, pressupondo "a defesa convicta da aceitação e da integração completa à nova ordem social". Seu foco era desmascarar os padrões de relações raciais que nem a Abolição, nem a República foram capazes de extirpar da sociedade brasileira, mantendo "uma dualidade indesejável: um situação praticamente de castas sob o manto da "sociedade aberta" e da "democracia racial".34 De fato, não há evidências de que Veiga dos Santos ou Correia Leite intentavam implantarem um Estado negro no Brasil. Mas, ao contrário do que cria Fernandes, podemos supor que Veiga dos Santos pretendia suplantar a ordem político-econômica vigente, instituindo a monarquia e uma nova política econômica denominada de orgânico-sindicalista, e para isso o intelectual-militante contava com a participação do segmento negro através de arregimentação realizada na Frente Negra Brasileira.35 Ações lideradas pelos militantes como a campanha da Mãe-Preta, visitas aos túmulos dos heróis abolicionistas, a prática de se comemorar o 13 de Maio e a data das outras leis emancipadoras e, é claro, a produção intelectual desses ativistas encontrada na imprensa negra utilizada neste estudo, foram examinados por Fernandes. Outrossim, vistos como iniciativas de um movimento negro que mesmo com poucos quadros intelectuais, trabalhou para instrumentalizar a coletividade negra, quando necessário, numa afirmação ideológica contra o "branco", construindo representações e avaliações próprias e, impondo paradigmas que os brancos violavam ou pervertiam, remetendo-se sempre a aspectos positivos do passado do negro no país e às práticas discriminatórias da sociedade do presente que se dizia democrática, mas não incluía
33
FERNANDES,1978:93 vol.2 FERNANDES, 1978:93. 35 Cf. MALATIAN, 1990 & MALATIAN,2000 34
26
plenamente o segmento negro.36 Investigações mais recentes37 sobre o tema do movimento social negro, que procuraram articular em suas análises o social à política ou, a política à cultura, afirmaram que Fernandes estava preso a uma abordagem marxista clássica, considerada bastante produtiva, mas que ao impor categorias como "classes sociais" e "revolução" aos movimentos analisados, acabou por não situá-los em seus contextos históricos de surgimento. Nesse sentido, as conclusões apresentadas por Fernandes não estariam de todo erradas, embora ele devesse ter dado maior importância à formação cultural diferenciada que existiu entre os próprios militantes e as projeções individuais feitas em relação às organizações negras das quais participaram como fatores que provavelmente influíram no sucesso ou não daquelas ações. Logo, concordamos que as organizações atuantes no período necessitavam ser analisadas por novas abordagens teóricas, capazes de revelar outras características não observadas por Florestam Fernandes e Roger Bastide devido algumas limitações próprias do tempo em que foram produzidas. Assim, o historiador George Andrews, em investigação que também tratou da relação entre negros e brancos no estado de São Paulo, de 1888 a 1988, analisou numa perspectiva mais geral, as condições políticas, econômicas e sociais em que viveram esses dois grupos, naquele estado, durante o século XX. Primeiramente, relatou a luta do negro para se libertar da condição de cativo. Num outro momento, como ele disputou os postos de emprego na cidade, num período em que o estrangeiro branco era considerado o trabalhador em potencial. E por fim, o historiador esmiuçou a história da mobilização política negra durante quase todo o século XX, apontando a tentativa do movimento negro em se instituir como porta-voz da coletividade negra, 36
FERNANDES, 1978:101-102
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ainda que o mito da democracia racial tenha se estabelecido como um significativo empecilho. Andrews procurou demonstrar de que maneira políticas públicas e privadas, gerenciadas pelo Estado, contribuíram para a subordinação do grupo negro e quais foram as estratégias políticas de reação do grupo marginalizado frente à realidade em que viviam. Como crítico de Florestan Fernandes, mostrou que a situação de subcidadania enfrentada pela população negra esteve relacionada mais a uma ação política do estado paulista que empurrava o negro para a marginalização, através da pouca oferta de trabalho, a uma política de habitação inexistente e a quase nenhum incentivo à educação e saúde, do que ao passado próximo da escravidão, causador segundo Fernandes, da inabilidade para o trabalho livre.38 Andrews incorporou em sua análise, a relação que existe entre a política e outras esferas do social. Para ele, as vidas das pessoas comuns, as que são objetos de uma "história vista de baixo" tem sido profundamente afetadas pela política e pelas decisões tomadas pelos governos".39 No entanto, a abordagem política durante muito tempo esteve fora das análises de história social, reduzindo a complexidade da realidade estudada, pois desconsiderava o papel que os indivíduos imbuídos de poder político assumem, influenciando no destino das pessoas. Esta exclusão também nos privou "da oportunidade de ver como as ações das pessoas comuns podem ter conseqüências diretas e poderosas para os sistemas políticos em que elas vivem"40, sendo fator preponderante na luta pelos direitos. Essa é a principal crítica de Andrews a Fernandes e o viés que perseguimos em nosso trabalho. Portanto, inspirada em
37
ANDREWS, 1998; HANCHARD, 2001 Cf. ANDREWS, 1998, Parte I "Trabalhadores" cap.3 "Imigração, 1890-1930". Neste o autor faz uma revisão da historiografia sobre a escravidão no Brasil e posterior transição para o trabalho livre. 39 ANDREWS, 1998:44 40 ANDREWS, 1998:45 38
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Andrews, analisamos as representações e práticas políticas de intelectuais-militantes negros que atuaram em momentos singulares da história política nacional e no movimento negro brasileiro. Andrews quando analisou o protesto político negro trabalhou com a idéia de “picos”, pois entendeu que a história do movimento negro no Brasil teve momentos de maior atuação e outros de refluxo. Segundo ele, os protestos negros converteram-se em mais revolucionários ou não, conforme o grau de exclusão e opressão que a população enfrentou. Relacionando a reação negra numa dialética Estado-sociedade, ou melhor, tentando esclarecer "o relacionamento interativo e recíproco que existiu entre esses movimentos populares e as instituições do Estado"41, identificou a década de 1880, no contexto do abolicionismo, como um período de ampla atuação do ativismo negro, através das fugas e sublevações que culminaram na abolição do regime de escravidão compulsória em 1888. Creditou aos negros escravos ou ex-escravos, a principal participação nestes eventos. Só identificou novamente, processo de reação parecido, com a fundação do Movimento Negro Unificado em 1978, através das manifestações que o grupo realizou, ainda no período da Ditadura Militar e com a atuação de Abdias do Nascimento, que futuramente se tornaria senador, junto a outros militantes de igual importância, durante a década de 80 que teve como ápice os diversos atos políticos reivindicativos em torno da comemoração dos cem anos da Abolição. Andrews, mesmo consciente do contexto sócio-político da década de 1930, marcado por disputas políticas e ideológicas e por um governo autoritário, concluiu que o movimento negro surgido naqueles anos não se comparou às lutas do final dos séculos XIX e XX. Numa crítica comparativa de longa duração, observou nas organizações daquele momento pouca eficiência na medida que não conseguiram impactar a esfera política nacional.
41
ANDREWS,1998:46
29
Enfim, balizado pelas premissas da história social: longa duração, análise das estruturas e do comportamento coletivo, ainda que tenha dado significativa importância às ações políticas dos indivíduos, considerou que as organizações da primeira metade do século XX e, mais especificamente, a Frente Negra Brasileira não soube congregar características transformadoras suficientes para levar a mobilização das massas, presentes em outros movimentos protagonizados pelos negros na História do país. Andrews inovou ao inserir a questão política e incluir o Estado como agente do processo de exclusão racial, ainda que as premissas da história social tenham predominado no seu trabalho. Portanto, estudos mais detalhados sobre as motivações, expectativas e estratégias de ação dos militantes que lideraram tais movimentos ainda carecem por acontecer. Uma perspectiva analítica mais próxima do que nos propomos fazer é a de Maria Angélica Maues42 que se dedicou a examinar e interpretar o pensamento das "elites negras" representadas pelos líderes políticos e intelectuais que militaram nos movimentos negros que existiram entre as décadas de 20/30 até as décadas de 70/80 do século passado. Sua definição para elite negra, da qual partilhamos, é de que tratava-se de um "grupo de letrados, que conquistaram a ascensão econômica ou não, mas que puderam formular concepções, a partir da reflexão das condições de vida dos negros e formaram opinião nos diversos momentos em que estiveram militando".43 Na mesma linha de Maués, alçamos os discursos produzidos pelas lideranças dos movimentos negros do passado ao lugar de um pensamento social formulado por legítimos intelectuais, representantes do segmento racial negro brasileiro. Em sua análise, tanto os indivíduos que atuaram na imprensa negra e Frente Negra Brasileira,
42
MAUES, 1997 Negro sobre negro: a questão racial no pensamento das elites negras brasileiras. Tese de doutorado em sociologia, IUPERJ, Rio de Janeiro. 43 MAUES, 1997:12
30
ainda na primeira metade do século XX, quanto aqueles que foram protagonistas a partir do final da década de 1970, mais especificamente, os que atuaram no Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, não foram vistos somente como militantes, mas sim como líderes políticos e intelectuais capazes de formular uma ideologia racial negra, ainda que essa não tenha tido efeito mais eficaz na estrutura social brasileira. Como Maués, nossa abordagem considerou as idéias das lideranças-militantes negras, atuantes no decorrer do último século no campo dos estudos sobre intelectuais. Entretanto, essa autora também investigou um longo período de tempo, resultando em algumas generalizações, das quais procuramos nos afastar quando escolhemos uma abordagem temporal e espacialmente circunscrita. Especificamente sobre a militância dos anos 30, Maués disse que se tratava de intelectuais que analisavam a questão racial e a sociedade brasileira, de forma prática e inteligente, pois articularam uma ideologia racial com “propostas de ação efetiva”, capazes de minimizar os efeitos da discriminação racial. Estes ativistas assumiram para si, uma espécie de missão, pois ao contrário do restante da população, conseguiam ver adiante percebendo que era preciso organizar-se para fazer algo mais eficaz.44
Nesse sentido, os militantes que atuavam nas diferentes organizações
"propunham um novo processo civilizatório para os afro-brasileiros"45 fundamentado em concepções próprias do momento, voltado à resolver dois problemas que impediam o sucesso do negro: "o défict negro", visto como um atraso frente ao grupo estrangeiro, por exemplo, e o "acúmulo de desvantagens" que deveria ser combatido através de projetos pragmáticos como alfabetização, moradia própria e emprego estável para que assim pudesse haver de fato, a efetiva integração na sociedade de classes46, já que na
44
MAUES, 1997:93 MAUES, 1997:134 46 MAUES, 1997:136-137. Maués articulou a tese "integracionista" e do "déficit negro" de Florestan 45
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percepção das lideranças negras, a falha da sociedade capitalista "era não incluir em pé de igualdade, o negro."47 As pesquisas apresentadas optaram por abordagens que privilegiaram a longa duração, cuja importância está em nos possibilitar compreender os efeitos das ações em processos que incluíram mais que uma geração. No entanto, tais estudos acabaram por não dar conta das interações que ocorreram no momento da efetivação dessas mesmas ações, ao não incluir em suas análises os comportamentos, as tomadas de decisão, os possíveis conflitos e as formações político-ideológicas de cada indivíduo envolvido nos acontecimentos, movimentos e grupos de ação investigados. Nessa análise mais geral, as ações e aspirações dos intelectuais-militantes desaguaram num conjunto: o movimento social negro, ou seja, suas falas foram diluídas no decorrer da crítica, dando corpo e significado às entidades que existiram. Balizado pelas contribuições discutidas acima, nosso estudo insere-se no campo teórico da História Política que numa abordagem renovada, inaugurada pela historiografia contemporânea, fundamentalmente a partir da década de 1970 passou a se preocupar com questões que envolviam os indivíduos e os grupos identitários em geral. A abordagem política nos é pertinente, pois a partir dela as tomadas de decisões, os eventos curtos, as movimentações e associações de pequenos grupos ou indivíduos ficam mais evidentes, possibilitando uma melhor observação das atuações cotidianas protagonizadas pelos agentes da transformação. Nesse campo o político figura como local de configuração do social e da sua representação.48 O agente social discute o seu tempo, agindo sobre o mesmo. Logo, as pressões da sociedade e suas transformações não são vistas como redutoras de ponto de vista. E mais, o vemos como o local em que
Fernandes (1978) com a do "acúmulo de desvantagens", pensada por Hasenbalg (1979) 47 MAUES,1997:240 48 Cf. ROSANVALLON,1995:16
32
os estudos sobre indivíduos, pequenos grupos e curtos eventos têm seu maior destaque e podem ser mais bem aproveitados. Nesse sentido, nossa pesquisa enquadra-se dentro dos ditames supracitados, uma vez que, trata-se de investigação histórica preocupada em acompanhar as idéias e atitudes políticas de dois ativistas considerados os precursores do movimento social negro no Brasil.
Estes intelectuais-militantes iniciaram suas vidas políticas
desenvolvendo atividades ligadas ao campo da cultura, através da organização de jornais negros, onde publicava seus textos, assim como através das entidades negras que fundaram ou freqüentaram. Indivíduos negros que, naquele contexto, pela condição de alfabetizados e citadinos, destacaram-se do restante da população negra e potencializaram esse diferenciador cultural ao atribuí-lo um estatuto de prática política, procurando dialogar com e em favor de seu grupo racial, mas também com o grupo hegemônico branco. Em outras palavras, o surgimento de uma intelectualidade negra na cidade de São Paulo, colocou em evidência alguns indivíduos, capacitando-os para dialogarem, pelo menos no plano discursivo, em igualdade com a elite branca, mas também com a base negra através de uma estratégia de comunicação proporcionada pelos jornais e eventos realizados. A ampliação do espaço urbano e a inserção numa economia de base capitalista vivenciada na região Sudeste, mais profundamente nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, a partir das primeiras décadas do século passado, possibilitaram a expansão de alguns direitos básicos como educação, moradia, além de uma maior oferta de trabalho. No caso específico de São Paulo, a discriminação racial e a concorrência com os trabalhadores estrangeiros, atrelada a uma política de marginalização implementada
33
pelo Estado,
49
dificultavam a ascensão sócio-econômica da população negra nas
mesmas proporções que a branca. Ainda assim, alguns indivíduos, em sua maior parte homens puderam estudar, muitos já adultos, passando a ter uma ocupação profissional mais estável. Esse grupo com o tempo diferenciou-se do restante da população negra, pois adquiriu novos estilos de vida e novos interesses, desenvolvidos nos clubes dançantes e associações culturais negras que passaram a existir. Foi substancialmente desse ambiente cultural inovador que surgiu o intelectual negro que investigamos. Sujeito informado, inserido no contexto da nova sociabilidade construída no convívio com seus pares, foi capaz de desenvolver um ativismo específico através da imprensa negra em que forjou a consciência de que fazia parte de um segmento racial preterido socialmente devido à discriminação e ao preconceito racial existentes na sociedade paulista, que não o aceitava como um igual. Enquanto intelectuais combinaram uma definição mais ampla, sociocultural daquele indivíduo criador e mediador cultural, na medida que fundaram jornais, associações e organizaram eventos relativos aos interesses dos negros paulistanos; com uma outra mais restrita, "baseada na noção de engajamento na vida da cidade como ator", ou seja, do sujeito político capaz de comunicar as demandas de seu grupo.50 Eram, nesse sentido, vistos pela coletividade como os especialistas, legítimos e capazes de intervirem no debate da questão racial, colocando-se em prol da causa que defendiam. Os indivíduos podem assumir diferentes papéis concernentes aos intelectuais, desde aquele que cria, que lança o novo, até aquele que assume uma atividade divulgadora da cultura em voga. Foi, portanto, corroborando dessa noção mais ampla 49
ANDREWS,1998:100
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do intelectual enquanto aquele que ""exerce uma função dirigente, organizativa e educativa não importando em que grau de atuação e aplicação efetiva""51, que fizemos nossa análise das trajetórias de Correia Leite e Veiga dos Santos, entendidos como indivíduos que combinaram a dimensão ativista e a intelectual a partir da inserção política que tiveram. Daí a denominação "intelectuais-militantes" na medida que se formaram, numa prática dialética e de "discussão cotidiana, privilegiada por seus lugares na estrutura social e histórica”,52 em relação à maior parte da população nacional, empobrecida e analfabeta. Veiga dos Santos e Correia Leite, como intelectuais-militantes, liam, dialogavam com outras experiências análogas, refletiam e propunham soluções. Correia Leite concebia a ação política de forma mais coletiva e inclinada ao consenso. Assim, o identificamos próximo de uma cultura política democrática. A análise de sua trajetória mostra-nos que a todo o momento percorria em sua práxis intelectualmilitante a via dupla do indivíduo ao grupo e do grupo ao indivíduo, ou seja, o aperfeiçoamento intelectual dava-se na prática política realizada no grupo e pelo grupo. Veiga dos Santos, ao contrário, teve formação católica tradicional do ensino básico ao superior, ambiente que parece ter ajudado na formação de um sujeito conservador e voltado às decisões personalistas que entendia a função do intelectual como de uma liderança esclarecida forjada através de uma substancial formação acadêmica. Sua trajetória intelectual evidencia uma total simpatia à cultura política autoritária de cunho ultranacionalista, próxima dos fascismos crescentes na época. Tratamos de histórias individuais que se cruzaram em meio as movimentações políticas acontecidas durante os anos 1920 e 1930. Na maioria das vezes, as biografias,
50
SIRINELLI,1996:242-243 GRAMSCI, In: Intellectual e l' Organizzacione de la Cultura 1948 apud MACCIOCCHI, 1980:202 52 MACCIOCHI,1980:200 51
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trajetórias, histórias de vida trabalham descrevendo uma vida como um caminho, uma estrada, um percurso orientado, um deslocamento unidirecional com seu início, meio e fim.53 Porém, uma carreira ou uma vida não pode ser compreendida apenas levando em conta o sujeito que a protagoniza, pois o campo, ou melhor, os contextos que simbolizam o espaço social, interferem-na completamente. Por essa abordagem, "o sentido e o valor social dos acontecimentos biográficos" devem ser entendidos como "colocações e deslocamentos do agente nesse espaço social"54, que "dadas sua origem social e as propriedades socialmente constituídas do ambiente, pôde ocupar ou, em certos casos, produzir posições já feitas ou por fazer". Assim, foi fundamental em nossa abordagem investigar as condições históricas que tornaram possível ou não, tomadas de posição, "encontros e desencontros", sucessos e fracassos protagonizados por estes indivíduos e a partir destas construir uma análise mais coerente.55 Veiga dos Santos e Correia Leite tiveram formações e conviveram em ambientes sociais um tanto quanto diferentes que contribuíram na formação de suas personalidades e concepções de mundo.56 O pertencimento identitário relacionado ao grupo negro foi um marcador importante, mas ainda que a causa do negro fosse uma explicação coerente para a militância política, não devemos esquecer que as identidades são plurais e negociadas. Portanto, "devemos considerar as diferenciações culturais, não como tradução de divisões estáticas e imóveis, mas como o efeito de processos dinâmicos"57 que tomam diferentes variações e proporções conforme a dinâmica social (gênero, raça, região), política e econômica em que se inserem. Assim, a identidade racial atrelada à exclusão experimentada, fez com que os dois militantes
53
BOURDIEU,1996a:183 BOURDIEU,1996b:292 Grifos do autor. 55 BOURDIEU,1996b:244 56 Cf. LEVI,1996:175 57 CHARTIER,2002:76 54
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tomassem consciência do lugar social que ocupavam enquanto grupo. Contudo, a inserção individual guardou suas particularidades, pois ao contrário de Correia Leite, sem profissão, um autodidata como ele mesmo afirmava, Arlindo teve a oportunidade única, dentre tantos, de estudar e se tornar professor, rompendo assim a barreira da baixa qualificação. Salvo essa especificidade, foi a partir de uma consciência de si58, ou seja, de indivíduos que partilhavam situações comuns de denegação que possibilitou a existência de uma prática política entre os dois militantes negros. É por considerarmos as inserções individuais de cada personagem que não cremos em trajetórias presumíveis em que fica evidente uma preocupação sistemática com a evolução fatual dos eventos. Tais abordagens, na maioria das vezes, ao tentar dar à narrativa uma lógica intrínseca, acabam por negligenciar os contextos, esquecendo que não existe uma história individual que não tenha uma superfície social, uma diversidade de campos, evidenciando que o personagem é um ser plural, capaz de possuir diferentes comportamentos ligados a cada pertencimento.59 Por conseguinte, é importante afirmar que nosso estudo analisou apenas um período das trajetórias de Veiga dos Santos e Correia Leite e ainda assim, sob uma perspectiva, a militância política negra que os dois personagens desenvolveram, ou seja, não intentávamos objetivo esgotar o assunto, mas proporcionar novos olhares para a temática e o período. A escolha pelo individual que fizemos aqui, não deve ser vista como contraditória ao social, apenas tornou possível uma abordagem mais específica, ou melhor, detalhada. Ao priorizamos as trajetórias e, a partir delas, a multiplicidade dos espaços e relações sociais em que estas se inscreveram, pudemos compreender os fatores externos e internos que tornaram possível a ascensão intelectual, tanto de um 58
Cf.GUIMARÃES,2002:10
37
quanto do outro, uma vez que representam dois grupos de intelectuais "ascendentes" surgidos no ambiente político do movimento negro da época. O primeiro composto pelos formados academicamente, respeitados no meio negro pelo título de "doutor". O segundo, pelos saídos recentemente ou não, dos estratos mais empobrecidos, marcados pelo abandono ou freqüência intermitente aos bancos escolares, mas que, contrariando as estatísticas, devido a uma competência intelectual autodidata, sofisticada no fazer diário proporcionado pelas atividades ligadas aos jornais negros, tornou-se referência no meio negro letrado. Assim, ao analisarmos estes personagens em seus contextos, mas sem deixar de considerar suas próprias racionalidades, tivemos a oportunidade de verificar se as "brechas", contidas nas normas, possibilitaram a estes dois intelectuais negros tomarem outros caminhos e atitudes quem sabe algumas vezes, muito diferentes do restante do grupo.60 Por isso, a pertinência do conceito de representações sociais, o mais apropriado na medida que pretendíamos compreender as concepções de mundo, práticas e escolhas políticas realizadas por estes dois intelectuais-militantes. Enquanto o conhecimento do senso comum as representações sociais expressam a realidade, explicam-na, justificam-na ou a questionam.61 Sua finalidade é interpretar a realidade, organizar as relações do sujeito com o mundo que o cerca e orienta-lo em suas condutas e comportamentos "permitindo-lhe interiorizar as experiências, as práticas sociais e os modelos de conduta(...)."62 Veiga dos Santos e Correia Leite foram alçados, em nosso estudo, à condição de representantes de uma coletividade de militantes atuantes no passado próximo em organizações que designamos hoje: movimento social negro. Estes dois personagens 59
BOURDIEU:1996a:191 LEVI,1996:180 61 MINAYO,2003:89 60
38
agregaram características em suas trajetórias que nos levaram escolhê-los: dedicaramse ao ativismo negro, escrevendo, publicando textos e liderando organizações destinadas ao contingente negro. Os textos por eles divulgados na imprensa negra ou que circulavam em livretos, panfletos, denunciavam, a partir dos constructos mentais de que dispunham, uma sociedade hierarquizada na qual o negro ocupava o mais baixo escalão, sendo visto como a mais vil das criaturas. Nesse sentido, lidamos com as atitudes e formulações de homens que viveram uma realidade que existiu e era concreta, não sendo apenas nomeação.63 Passível de interpretações, tal realidade era mediada por inúmeras representações sociais, advindas das histórias de vida povoadas por situações de discriminação racial, além das concepções de mundo originadas nos valores religiosos, ideológicos e nacionais constituintes da formação tanto do indivíduo, como do grupo. Mas, em que medida se dava a apropriação dessa realidade por tais pessoas? O que esses porta-vozes do grupo negro compreendiam e formulavam em seus periódicos? Em outros termos, qual o impacto e efetividade do discurso dessas pessoas? Procuramos responder a estas perguntas aplicando as noções de ancoragem e objetivação que são constituintes do processo formador de uma representação social. Entendemos por ancoragem o ato de "integrar, cognitivamente o objeto representado - idéias, acontecimentos, pessoas, relações etc. - a um sistema de pensamento social preexistente".64 Com esse mecanismo, os militantes negros procuraram tornar inteligíveis, a si mesmos e aqueles que os cercavam, as questões políticas e sociais que envolviam a realidade dos negros de então. Pelo processo de ancoragem que o desconhecido, logo, o que lhes eram estranho, tornava-se 62
XAVIER,2003:24 CARDOSO, 2000:10 64 JODELET, 1984 Represéntations Sociales: phénomènes, concept e théorie. In: MOSCOVICI, S. (ed.) 63
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compreensível, passível de ser interpretado, pois a linguagem da representação inseria o objeto através de outros sentidos, num contexto coerente65. Nesse sentido, a ancoragem efetivada pelos intelectuais-militantes intentava criar, a partir das representações prevalecentes na cultura política brasileira de então, apropriações conceituais e explicativas que permitissem esclarecer as razões da vulnerabilidade social na qual se encontravam as populações negras no Brasil. "Objetivar" está relacionado à capacidade das representações sociais em naturalizar uma abstração, ou seja, em dar “uma 'forma' - ou figura - específica ao conhecimento acerca do objeto, tornando concreto, quase tangível, o conceito abstrato, 'materializando a palavra'"66. Pois na tentativa de facilitar a compreensão dos conceitos, idéias, ou melhor, do conhecimento em geral, esses são reduzidos a uma imagem.67 Caso da simbologia da Mãe-Preta e dos ícones do abolicionistas utilizados pelos ativistas nos anos que investigamos. Muitas das informações sobre os intelectuais-militantes que investigamos estão contidas em publicações que tiveram a finalidade de contribuir na recuperação da memória do movimento negro no passado recente e, ao mesmo tempo, fortalecer a identidade dos militantes atuais, na medida que poucos sabiam do acontecido anteriormente. A história da movimentação política negra no Brasil apresentava uma lacuna entre o protagonismo ocorrido em torno da Abolição e o que existiu no retorno democrático pós ditadura militar. Hiato que espelha obviamente um refluxo dos movimentos sociais de cunho político nos períodos em que o Estado vestiu uma roupagem autoritária como no caso do Estado Novo e da Ditadura Militar. Portanto,
. Psychologie sociale. Paris, Presses Universitaires de France apud SÁ,1995:37 65 SÁ,1995:34 66 JODELET, 1984 Represéntations Sociales: phénomènes, concept e théorie. In: MOSCOVICI, S. (ed.) . Psychologie sociale. Paris, Presses Universitaires de France apud SÁ,1995:39; LEME,1995:48 67 MOSCOVICI, 1984a:38 The phenomenon of Social Representation In FARR, R. M. e MOSCOVICI, S. (eds.) "Social Representations" Cambridge, Cambridge University Press. Apud SÁ,1995:40
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foi acessando os mecanismos da memória social e individual que alguns jovens militantes, atuantes no decorrer dos anos 1980 e 1990, trouxeram ao presente toda uma gama de acontecimentos e tramas sociais ocorridos especialmente em São Paulo, depois de 1888 e antes dos anos 1940. A memória "é a presença do passado"68, ou melhor, a memória possibilita ao passado estar no presente e efetivamente, os recursos à memória social são atualmente muito úteis ao historiador, pois nos permitem cruzar informações, ver a interferência do público no privado, além de perceber de maneira mais eficaz o uso das apropriações e representações no decorrer de um caminho, quer seja individual ou coletivo. A construção de uma identidade do movimento negro, voltado ao político, foi iniciada entre os anos 1920 e 1930, e um dos mecanismos utilizados para amalgamar essa unidade no presente, foi a recuperação da memória desse momento, a partir dos depoimentos dos velhos militantes. Contudo, nesse processo houve um silenciamento em torno da trajetória de Arlindo Veiga dos Santos e uma valorização das ações protagonizadas por Correia Leite. A escolha dos depoentes denotou a prévia seleção do que se queria saber e as falas desses mesmos sofreram enquadramentos, conforme o enfoque dado às lembranças. Com a passagem do tempo, a memória tende a associar-se a novas definições identitárias, pois alguns comportamentos podem ser considerados antiquados, incoerentes com a nova época ou incorretos ideologicamente. Verificamos isso na relação que se estabeleceu entre a militância negra contemporânea e os personagens que atuaram nos anos 1930. A memória dos dois militantes aqui estudados foi apropriada assimetricamente, ocorrendo uma certa valorização da trajetória política de José Correia Leite identificado como um militante de "esquerda" e, um
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ROUSSO,1996:94
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obscurecimento da figura de Arlindo Veiga dos Santos cristalizado no imaginário do movimento como uma figura autoritária e conservadora, muito próximo das ideologias partilhadas pela "direita". O esforço político para dar coerência e unidade ao grupo atual, engendrou um enquadramento comprometido com o presente, não com o passado. Portanto, a memória neste caso, funcionou como um recurso eficaz no reforço dos sentimentos de pertencimento e fortalecimento da unidade do movimento negro da atualidade.69 Contudo, nem um nem outro personagem teve trajetórias incoerentes com a época vivida, se os olharmos pela perspectiva da cultura política. Entendida aqui como uma "espécie de código, um conjunto de referentes formalizados no interior de uma dada organização social"70, como exemplos as crenças, valores e práticas próprios dos partidos políticos, associações de classe, movimentos sociais, de líderes políticos ou religiosos de um grupo, dentre outros. A categoria nos possibilitou compreender as complexidades da realidade investigada, percebendo que, no mínimo, duas tradições políticas pareciam disputar espaço no meio político negro: uma autoritária outra democrática. Neste sentido, o olhar que dedicamos para esses dois ícones do ativismo permitiu-nos descobrir através de suas falas, argumentos e gestuais, suas raízes e filiações, restituindo-os a coerência dos seus comportamentos, estabelecendo uma lógica a partir da reunião de parâmetros solidários que se estabeleceram.71 Daí a validade da noção de cultura política, na medida que revelou-se eficaz ao criticarmos os comportamentos políticos dos grupos étnicos ou raciais pouco entendidos pelas abordagens que utilizaram categorias analíticas mais abrangentes. Enfim, líderes das principais organizações negras surgidas na cidade de São
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POLLAK,1989:9-10 SIRINELLI,1992:3-4 Histoire des droites apud BERSTEIN,1998:350 71 BERSTEIN, 1998:362 70
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Paulo, entre as décadas de 1920 e 1930, Veiga dos Santos e Correia Leite são compreendidos na maioria dos estudos sobre o tema como intelectuais do meio negro. Percorrendo caminhos às vezes distintos, resultantes de inserções socio-políticas diferenciadas, os dois puderam atuar em favor de seu grupo racial construindo representações sociais positivas, veiculadas na imprensa negra paulistana e empreendendo ações políticas que visavam minimizar a discriminação e preconceito raciais contra o negro. Fragmentos de suas iniciativas são encontrados em periódicos e outros documentos de época e na memória transformada em publicação de alguns personagens que estiveram diretamente envolvidos com a militância daqueles anos.
1.2 Os testemunhos: depoimentos, jornais e inventários policiais Os procedimentos metodológicos que utilizamos neste trabalho, tiveram a preocupação primeira, de entender os textos - as duas trajetórias - a partir de seus contextos - os espaços em que atuaram Arlindo Veiga dos Santos e José Correia Leite, com o entendimento de que o papel de intérprete cabe ao o pesquisador, pois é ele quem julga e posiciona-se frente ao documento, explora o universo pesquisado e deduz, a partir do mundo vivido pelos personagens e seu grupo social.72 A montagem da trama contou com documentos orais publicados ou transcritos por terceiros, jornais da imprensa negra e prontuários do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo. Dentre os documentos, estatuídos pela história oral, a maioria é de José Correia Leite e relatam o ativismo existente nas décadas de 1920 e 1930. Consta de uma entrevista datilografada de José Correia Leite, datada de 1980, concedida a Míriam Ferrara, antropóloga estudiosa da imprensa negra, assim como um texto, não
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publicado, escrito pelo pesquisador Renato Jardim Moreira em parceria com Correia Leite, ao que parece no final da década de 1940. Além disso, há dois livros publicados na década de 1990. O primeiro organizado pelo literato e militante Luís Cuti, intitulado E disse o velho militante... José Correia Leite, trata da trajetória de vida pública do ativista da infância até os anos 1960 aproximadamente. O segundo, também resultado da iniciativa dos militantes do movimento negro paulistano, denomina-se Frente egra Brasileira: depoimentos/entrevistas e textos e foi organizado pela Organização Não-Governamental Quilombhoje. Nele temos os depoimentos de cinco velhos militantes que estiveram em algum momento nos quadros da Frente Negra: José Correia Leite, Aristides Barbosa, Francisco Lucrécio, Placidino Damaceno Motta e Marcello Orlando Ribeiro. A maioria dos artigos do militante José Correia Leite está contido no jornal chamado O Clarim , depois denominado O Clarim d' Alvorada. Os exemplares ao qual tivemos acesso faziam parte da coleção dos próprios militantes. Foram microfilmados e se encontram disponíveis para consulta na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.73 Tivemos acesso aos números de 1924 a 1932, mas nos dedicamos exaustivamente sobre as publicações de 1928 a 1932. Já o A Voz da Raça foi analisado do ano de sua fundação, em 1933, até o da publicação de seu último número, em 1937. A publicação era semanal, depois passou a ser quinzenal e por fim mensal. Temos um conjunto de 70 periódicos. Nesse, identificamos os artigos escritos por Veiga dos Santos e elencamos o conjunto de suas idéias políticas, priorizando sempre a relação que o intelectual-militante fazia entre a questão racial e o contexto. Utilizamos também dois 72
MINAYO,1999:222 Os jornais encontram-se em dois rolos denominados "Jornais da Raça Negra". Devido a ocorrência de duas greves, uma entre outubro e dezembro de 2004 e outra iniciada em março de 2005, tivemos dificuldades de trabalharmos com o material da Biblioteca Nacional. Pelo contratempo, no final da pesquisa fomos auxiliados pelo pesquisador Petrônio Domingues que nos cedeu um material digitalizado que contém alguns números do Clarim d' Alvorada e do A Voz da Raça, oriundos do Centro 73
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exemplares do jornal Chibata, do ano de 1932, publicado por Leite e seu grupo, denunciando os irmãos Isaltino e Arlindo Veiga dos Santos por desvios morais considerados imperdoáveis pelos seus opositores político-ideológicos. Esse episódio será discutido oportunamente. Os documentos do Inventário DEOPS estão divididos em prontuários nominais e dossiês temáticos que abarcam o período de ação da Polícia Política entre os anos de 1924 e 1983 no estado de São Paulo. A Frente Negra Brasileira e transversalmente, Arlindo Veiga dos Santos passaram a ser investigados pelo Departamento de Ordem Política e Social (DEOPS), com o inventário de número 1538 depois que ocorreu o empastelamento do jornal O Clarim da Alvorada e Correia Leite abriu processo contra Arlindo Veiga dos Santos, na Delegacia da Ordem Política e Social. Outros militantes que atuaram no movimento negro também foram investigados e presos pelo DEOPS/SP, o Dr. Guaraná de Sant'anna, que foi advogado da Frente Negra Brasileira, teve o prontuário 2029 e Isaltino Veiga dos Santos, que era irmão de Arlindo e foi secretário-geral da Frente Negra Brasileira, o de número 2018. Decidimos analisar alguns documentos contidos no DEOPS/SP porque identificamos nos três passagens que nos informaram sobre as práticas políticas e representações tanto de Veiga quanto de Leite na relação com o poder público e com o meio político negro. Percebemos que um aspecto do nosso objeto: as representações sociais produzidas por dois intelectuais-militantes em suas trajetórias políticas recortadas no intervalo de 1928 a 1937, seriam mais bem compreendidas, caso criticássemos uma gama de documentos com origens e características diversas. Através do cruzamento de informações, da correlação das atitudes e tomadas de posição dos militantes analisamos o efeito das regras sociais a eles imputadas. O método também nos
de Documentação e Informação Científica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
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permitiu avaliar em que medida, as mediações de poder decorrentes de contatos, negociações e apropriações foram viáveis. O trabalho metodológico é, na verdade, um exercício de interpretação capaz de ligar o documento, seja ele provindo da oralidade ou não, aos conceitos analíticos advindos da teoria. Interpretar é "diferenciar que a compreensão do contexto do texto, objeto que está sendo analisado difere do contexto do próprio pesquisador"74, portanto, o método quando coerente, nos protege do risco do anacronismo. Desse modo, compreender o texto nele mesmo, como resultado de um processo social de conhecimento foi o objetivo que perseguimos. Cotejamos as falas contidas nos jornais negros e nos depoimentos com as práticas evidenciadas pela análise, colocando-as em seus contextos: o cenário político, social e cultural em que agiram os dois intelectuaismilitantes, no intuito de entendê-las a partir de seu interior, ou seja, no campo da especificidade histórica em que foram produzidas.75 Optamos por fazer uma leitura transversal do conjunto maior dos documentos: os artigos de jornais e as memórias transcritas, recortando-os em unidades de registro ou melhor, em conjuntos temáticos que estão relacionados com o material empírico e com as reflexões sobre as representações sociais. Por essa abordagem, o material empírico foi "o ponto de partida e o ponto de chegada da nossa interpretação", num movimento de ida e volta entre o "concreto e o abstrato".76 A crítica aos textos dos jornais fundamentou-se na perspectiva dialógica, propiciando-nos perceber as representações e práticas sociais relacionadas a esses dois intelectuais negros e as existentes na sociedade mais abrangente. A propósito, utilizamos os periódicos como suporte para reconstruir parte da trajetória desses
74
MINAYO,1999:222 MINAYO,1999:231 76 MINAYO,1999:236 75
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personagens, não para contar a história desta imprensa, tarefa que já foi realizada por outros estudiosos. Os jornais foram analisados enquanto discursos que significam, ou seja, faziam uma leitura da realidade, resultado do processo de criação de representações sociais dos sujeitos que os produziam. Em vários momentos, houve refrações, entre as reflexões que Arlindo Veiga dos Santos e José Correia Leite faziam do contexto e o entendimento que a sociedade mais abrangente tinha. Fossem negros ou brancos, militantes ou não, alguns rebateram ou corroboraram as representações formuladas pelos dois intelectuais-militantes como demonstraram alguns artigos e cartas-respostas, publicadas no A Voz da Raça e no Clarim d' Alvorada e mesmo na imprensa mais abrangente. Uma crítica exaustiva dos diferentes documentos, atrelada a uma argumentação teórica que consideramos pertinentes, foi o que empenhamos fazer para dar conta do empreendimento de pesquisa. Dentre o material citado, o que virou publicação sofreu dois crivos: a sensibilidade dos velhos militantes, detentores de um passado ávido por ser descoberto e o comprometimento político do intelectual negro contemporâneo responsável pela realização do empreendimento, preocupado em entrevistar e constituir arquivos orais e em difundir a memória do Movimento Negro, tal qual como era, sem um mínimo de interpretação ou tentativa de análise.77 O compromisso político dos militantes, ao fazerem as publicações, era colocar em evidência o papel social do testemunho capaz de "liberar o que estava reprimido e exprimir o inexprimível78", em outras palavras, "contar a história" que ainda não havia sido contada sob a ótica daquelas pessoas. Tanto Cuti quanto Barbosa, organizador da publicação do Quilombhoje, declararam interesse inicial de realizarem trabalhos acadêmicos com os depoimentos. Entretanto, esses tomaram um outro formato, ocorrendo a publicação dos dois livros de memórias, 77
LOZANO,1996:22
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na íntegra. Um entrevistador disse que "acabou constatando que os relatos falavam por si sós79", o outro que percebeu ser o momento de se fazer um livro "de" e não "sobre" José Correia Leite.80 Ainda que com isso a intenção fosse não influenciar os relatos, deixando que eles seguissem um caminho próprio, percebemos que a relação entrevistadorentrevistado balizou as narrativas. Os depoimentos publicados pelos militantes negros do presente acabaram por priorizar a vida política e pública que aqueles homens tiveram. A objetiva sobre a dimensão política aumentou em detrimento de outros aspectos como as relações familiares, profissionais, afetivas etc. Como já foi dito em outro momento, a maioria das fontes escritas são pequenos jornais negros publicados por iniciativas individuais ou coletivas. Os jornais funcionavam como veículos que informavam sobre a atuação das entidades mais significativas (clubes, associações etc.). São fontes riquíssimas podendo servir a diferentes estudos. Através deles, podemos identificar a difusão de idéias e concepções políticas daquelas pessoas; a preocupação educativa estampada no veículo; o dia a dia das organizações através da contabilidade, da divulgação de atividades e convocações para comemorações etc. Vale informar que os jornais e demais textos produzidos pelos militantes estampados nos panfletos, convites etc. são entendidos aqui enquanto "sistemas de comunicação" em que as engrenagens são os indivíduos que os escrevem, imprimem e divulgam
81
, ou seja, nosso interesse foi conhecer os sujeitos responsáveis por
escreverem, imprimirem e fazerem circular aquelas idéias. Portanto, não foi nossa tarefa traçar a história dos periódicos, nem esmiuçar as diferentes colunas e seções em 78
FRANÇOIS,1996:12 QUILOMBHOJE:1998:10 Introdução de Márcio Barbosa organizador. 80 LEITE,1992:13 Prefácio de Luís Cuti quem entrevistou e organizou as memórias de Correia Leite. 79
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que estavam divididos, interessou-nos somente, expor as idéias dos personagens relacionando-as com o momento vivido e com os projetos que intencionavam por em prática. A metodologia com o material contido no inventário DEOPS/SP foi diferente da empregada nos jornais, pois a maioria além de ter origem indireta, ou seja, trata-se da fala de outros sobre aquelas pessoas, são documentos policiais que nos obrigou ter metodologicamente uma percepção diferenciada. Se compararmos a documentação sobre o ativismo negro com outros dossiês temáticos (comunista, anarquista, integralista)82 organizados pelo DEOPS/SP constataremos que se investigou muito menos material o movimento negro. Não obstante, nela encontramos informações significativas relativas ao cotidiano dos envolvidos, suas relações com o poder constituído, além dos pareceres dos investigadores sobre as atividades realizadas pelas organizações políticas negras enviados ao Delegado da Ordem Política e Social local para que o mesmo tomasse as medidas cabíveis, caso oferecessem algum perigo à "ordem". Contudo, o que explica esse desinteresse do DEOPS/SP pelo movimento social negro que existiu entre as décadas de 1920 e 1930? No caso da Frente Negra Brasileira, o fato de suas lideranças terem apoiado o interventor paulista e o governo de Getúlio Vargas, modificou a atenção que a Polícia Política dirigiu à organização. Alguns militantes da Frente Negra, em especial o grupo liderado por Arlindo Veiga dos Santos, atuaram do lado da polícia política como informantes. Comparando a outros movimentos, supomos que suas reivindicações, enquanto grupo social, não oferecessem tanto perigo, devido às representações por eles adotadas em consonância 81
Cf. ABREU,1992:261. Sobre o assunto ver Coleção Inventário DEOPS. Ex.: ANDREUCCI, Álvaro & OLIVEIRA, Valéria "Cultura amordaçada: Intelectuais e músicos sob a vigilância do DEOPS- São Paulo: Arquivo do
82
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com o mito da democracia racial. A Polícia Política tendia a ver as associações negras, não como organizações políticas, mas sim como culturais como tantas outras que havia na cidade de São Paulo. Embora a ação da Polícia Política não tenha resultado em conseqüências drásticas à ação do conjunto do movimento negro paulistano, caso comparássemos com a documentação existente sobre os comunistas e anarquistas, a investigação policial revela a face da repressão institucionalizada pelo Estado brasileiro, em relação à expressão dos grupos sociais, num momento que este ainda não se encontrava em regime de exceção política. O Estado ovo só ocorreria em 1937, mas há muito o Estado atuava perseguindo e apartando do convívio social, indivíduos que tinham como crime difundir concepções tidas como indesejáveis. Intelectuais e artistas muitas das vezes eram considerados sujeitos que deveriam ser vigiados, pois eram potencialmente "perigosos" ao difundirem idéias que poderiam ser consideradas "subversivas". Ao trabalharmos com fontes de origens diversas e que necessitaram de tratamento distinto, nossa intenção foi proporcionar uma compreensão mais coerente possível do objeto, completando o quebra-cabeça referente ao cotidiano político daqueles intelectuais-militantes. A maioria das fontes já foi bastante utilizada, no entanto poucas analisaram os próprios personagens e suas idéias, tarefa que nos propomos realizar com os referenciais teórico-metodológicos que ora acabamos de discutir.
Estado: Imprensa Oficial, 2002.
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2.CAPÍTULO -
LIDERA"DO ORGA"IZAÇÕES POLÍTICAS "O
M E I O " E G R O P A UL I S T A " O
"E uma de nossas idéias era essa: se unir para ter uma retaguarda, pra (sic) não ser um que apanhasse sozinho". (José Correia Leite)
2.1 Uma combinação de variáveis: aspectos sócio-econômicos e político-culturais propiciam a emergência dos ativistas negros
José Benedito Correia Leite e Arlindo José da Veiga Cabral dos Santos iniciaram a vida política num período significativo da história nacional, numa cidade que anos após anos, figurava como a mais importante do país devido a sua inserção numa incipiente, mas crescente economia industrializada e conseqüente roupagem urbana assumida. A inserção numa estrutura moderna e capitalista ao mesmo tempo que trazia benesses, exacerbava as contradições do sistema econômico que através da exploração de muitos, gerava benefícios que seriam gozados por alguns poucos. No final da década de 1920, a crise econômica mundial chamada Grande Depressão que se estendeu pela década seguinte, influenciou negativamente a venda do café, mola mestra da economia nacional, impactando diretamente o cotidiano dos paulistanos, com o aumento do custo de vida e, conseqüentemente da exclusão social. Tendemos a acreditar que a população negra foi a mais atingida, pois já respondia pelos mais baixos indicadores sociais, potencializados na competição com o trabalhador estrangeiro e por uma política de alijamento no mercado de trabalho formal assumida pelos empregadores e pelo próprio governo em São Paulo. Durante as três primeiras décadas de século XX, a utilização dos braços nacionais se deu de forma 51
acessória e residual. Estes trabalhadores permaneceram em “boa medida, à margem das tarefas fabris, numa situação que desabou devido o preconceito de cor, particularmente sobre o negro e o mulato”.83 A culminância se deu em 1929, um ano de "recessão muito grande, e as conseqüências na situação do negro muito graves".84 Esta conjuntura social permaneceu na década seguinte, pois o desemprego era muito maior entre os negros, especialmente entre os homens negros85. Os benefícios sociais implantados pela política de Vargas pós 1930 estavam atrelados à sindicalização dos trabalhadores, ou seja, era necessário um contrato formal de trabalho. Neste sentido podemos afirmar que a euforia foi passageira, pois muitos trabalhadores nacionais, em especial os negros não estavam empregados de carteira assinada. No âmbito geral, a população negra das primeiras décadas do século passado habitava em sua maioria na zona rural do estado de São Paulo. Dados colhidos nos informam que em 1910, a população de pretos e mulatos da cidade foi estimada em 26.380, cerca de 11% da população geral. Em 1920, constituía cerca de 52.112 pessoas, o que se revertia em 9% do montante de habitantes.86 E em 1931, os que moravam na capital compunham apenas 11% do contingente populacional composto de 922.017 pessoas, ou seja, os negros paulistanos não chegavam a 100.000.87 Habitavam nas mesmas localidades em que moravam muitos estrangeiros pobres, no Centro ou nas imediações como Bexiga, Barra Funda, Liberdade, Bom Retiro e Brás. Na Barra Funda - anteriormente conhecido como Chácara do Carvalho devido a localização da residência do primeiro prefeito da cidade, Antônio Prado(189983
KOVARICK, 1997:117 Ver também FERNANDES,1978:142 vol.1 & vol. II pp.13-15 LEITE, 1992:91 85 Cf. BERNARDO, 1998:119; QUILOMBHOJE,1998:37 (depoimento do militante Francisco Lucrécio) 86 Cf. DOMINGUES, 2004a:263 Tabela construída por Domingues a partir de diversos censos citados em FERNANDES, Florestan, A integração do negro na sociedade de classes (3a. edição. São Paulo: Ática, 1978), pp. 18, 21,, 23, 24, 108; e BASTIDE, Roger & FERNANDES, Florestan, Brancos e egros em São Paulo (2a. ed. São Paulo: Nacional, 1959), pp.36, 43, 46. 84
52
1911)88 - habitavam
muitos italianos e portugueses que alugavam cortiços ou
sublocavam os porões de suas residências. Os cortiços não tinham banheiros e quando os tinham era uma privada para todos.
89
Já os porões considerados piores que os
cortiços, não tinham janelas, eram fétidos e mal ventilados. Os migrantes negros do interior do estado que acorreram para a capital nas primeiras décadas do século passado, especialmente entre 1900 e 1915, ocuparam estas moradias. Para o Bexiga também foram muitos negros, mas no final do século XIX. Já no Centro habitavam as famílias negras originárias da cidade, ou seja, se comparados às outras, uma ocupação mais tradicional e estável, geralmente ligadas às famílias da aristocracia paulistana. Essa maioria de afro-brasileiros era preterida socialmente, não conseguindo empregos estáveis, quase todos ocupados pela mão-de-obra estrangeira que imigrara anos antes ou por seus descendentes. Além disso, quase todos eram analfabetos, o que os excluía da participação política, reforçando ainda mais o quadro de marginalização social potencializado pela falta da educação formal.90 Com atividades insalubres e dispendiosas, a rotina laborativa de muitos negros não diferia muito da vivida antes da Abolição, como podemos constatar a partir do fragmento do jornal Progresso:
Honório Gonçalves Silva, por exemplo, com oitenta anos de idade ainda empurra sua carrocinha verde e apanha lixo o dia inteiro nas ruas da cidade. Lino Cândido, com 90 anos, ainda é um dos trabalhadores mais pontuais ao serviço. Mais matusalém deles todos chamase José Pedro da Silva, nascera no Rio de Janeiro, chegando a São Paulo com vinte e três anos de idade. Tomou parte na campanha do Paraguai. Dedicou toda a sua vida à lavoura. Foi escravo, da família do cadete 87
Cf. QUILOMBHOJE, 1998:11. Dados retirados do Anuário Estatístico do Brasil de 1931. SILVA,1990:48 89 Depoimento de José Correia Leite, em Zeila de Brito Fabri Demartini, " A escolarização da população negra na cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século", em Revista da Ande, 8(14), São Paulo, 1989, p.58 apud DOMINGUES,2004a:218 90 A lei eleitoral de 1881, que não foi modificada com o advento da República, além de continuar impedindo a participação das mulheres, passou para 200 mil réis o limite de renda dos eleitores, tornou o voto facultativo e proibiu a participação dos analfabetos, que na época somavam cerca de 80% da população. Cf. CARVALHO,2004:38-39 88
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Santos, em Rio Claro, tendo sido liberto com a lei de 13 de maio. Há dez anos que trabalha na limpeza pública. Não lhe foi possível arranjar outro emprego.91
Décadas se passaram e a memória dos velhos militantes reforça o que foi publicado no Progresso: "as mulheres eram empregadas domésticas, não tinham instrução. (...) E o homem ou trabalhava na rua como carregador, como carroceiro, ou sempre nos trabalhos servis".92 Certas atividades estavam intimamente vinculadas à nacionalidade93 e à origem étnica e racial do sujeito. Assim, dentre as atividades realizadas pelos nacionais havia uma distinção: certas ocupações eram tidas como "serviços de negros". Caso dos biscateiros diversos como lavadores de casas, quitandeiras e dos coletores de lixo, carregadores, varredores públicos, limpadores de trilhos ou qualquer outro serviço visto como perigoso ou desqualificado.94 Daí a preocupação recorrente na maioria dos escritos produzidos pelas lideranças intelectualizadas com a instrução e qualificação profissional dessa população. Entretanto, mesmo num quadro de significativa vulnerabilidade social vivido pela maioria dos negros, o sistema deixou brechas que possibilitou uma sensível ascensão de alguns. Estes foram a exceção, não a regra. Esse contingente de inseridos na ordem socio-econômica são entendidos em nossa análise como uma "elite negra". Não no sentido estrito do termo, que se remete a grupos possuidores de algum tipo de prestígio e hegemonia numa estrutura social, mas sim como um grupo que no interior da própria comunidade se destacou por ter conseguido manipular alguns bens culturais,95 em detrimento da maioria. Essa elite negra buscava uma "identidade de
91
Progresso, 31.1.1930 citado em DOMINGUES,2004a:225 QUILOMBHOJE,1998:95 93 PINTO, Maria Inez. 1984. Cotidiano e sobrevivência - A vida do trabalhador pobre na cidade de São Paulo. 1890/1894. Tese de doutorado apresentada à FFLCH/USP. Apud SANTOS,1998:137 94 SANTOS,1998:157 95 O fato de saber ler e escrever, freqüentar eventos na cidade, usar roupas finas, ter um emprego fixo etc. fazia com que este grupo tivesse maior prestígio. 92
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grupo fundada em valores e símbolos, diferente dos negros pobres dos porões".96 O depoimento de um militante sobre a questão situa melhor o que se entendia por elite: para ser visto como classe média ou elite negra “não precisava ser doutor. Bastava ser funcionário público ou ter aquele outro emprego de caráter fixo,”97 ainda que fosse de baixo prestígio social como varredores de ruas, mensageiros, porteiros, escriturários etc.98 E andar bem trajado. As moças vestidas de saia balão redondas e engomadas e os rapazes de terno, cartola e bengala na maioria das vezes usados, comprados em belchiors, "braço aberto" ou "bricabraque", estabelecimentos hoje conhecidos por brechós.99 Mas a indumentária chique não os livrava do estigma de marginais: "eu andava de bengala, com ar de importante. (...) Um dia eu vinha subindo a Rua Santo Antonio e vieram três policiais. Aí eu tive que explicar quem eu era, onde trabalhava... E eu nunca fui estável em emprego."100 Por isso era o setor público visto como o lugar mais propício para a ocupação, já que a eventualidade do desemprego inexistia. Os intelectuais-militantes incentivavam nas páginas de seus periódicos a colocação num emprego federal, estadual ou municipal como forma de fugir do desemprego e minimizar a marginalização sofrida pelo conjunto da população negra. Ocorre que os anos 1920 foram palco de movimentos de cunho político e cultural capaz de fazer com que os diferentes setores da sociedade repensassem o país e a nação. O Estado brasileiro controlado e a serviço efetivamente das elites paulistas, mineiras e cariocas passou a ser disputado por grupos oriundos desses estados, porém insatisfeitos com as práticas políticas das elites hegemônicas; por setores pertencentes a elite agrária dos estados à margem e por grupos pertencentes as classes médias como
96
SILVA,1990:108 "Os jornais dos netos dos escravos", Jornal da tarde (12/06/1975), p.17 apud ANDREWS,1998:201 98 ANDREWS,1998:200 99 LEITE,1992:45 100 LEITE,1992:82 97
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militares - tenentes em sua maioria -, intelectuais e profissionais liberais. Este último grupo profundamente decepcionado quanto "à possibilidade de a República realizar o ideal de uma sociedade nova".101 Serão esses grupos insatisfeitos que se organizarão durante os anos seguintes até culminar na crise da sucessão presidencial que eclodiu com o golpe de três de outubro de 1930, colocando Getúlio Vargas no poder. No âmbito cultural após a 1ª Guerra, a intelligentzia brasileira procurava efetivamente afastar-se da Europa, representada como uma "civilização decadente" e aproximar-se da América, "espaço da nova civilização e do futuro". Orientação essa que podemos encontrar, já no final do século XIX, com a chamada geração de 1870, da qual Sílvio Romero foi um dos ilustres representantes.102 Nesse sentido o Brasil era visto por muitos como o local propício para o surgimento do novo, contudo se voltássemos às "raízes brasileiras". 103 Nesse sentido o Modernismo que se instituiu efetivamente a partir de 1922, com a Semana de Arte Moderna, procurou primeiramente combater o passado de imitação brasileiro, elaborando uma estética coerente à vida moderna, citadina e urbana que São Paulo representava. O automóvel, o cinema, a eletricidade eram objetivações que procuravam representar o progresso da América. Consolidado esse projeto, o segundo ato do movimento foi inserir a busca da brasilidade como seu foco primordial. Os intelectuais modernistas tinham entendimentos diferentes de como se alcançar tal brasilidade. Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia e Plínio Salgado priorizaram estritamente os símbolos e mitos nacionais. Nessa perspectiva, como a vida no litoral estava mais propícia à influência estrangeira foi desqualificada. Seu
101
LAHUERTA,1997:93 Cf. VELLOSO,2003:353-359 103 OLIVEIRA,1997:189 102
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lugar seria ocupado pela vida interiorana, local autêntico, do contato do homem com a natureza. Mais tarde alguns desses intelectuais fundariam a Ação Integralista Brasileira (AIB). Tendo Oswald de Andrade como seu expoente, o Movimento Antropofagia entendia que as influências européias poderiam ser incorporadas à nacionalidade a partir do recurso da apropriação. Em outra vertente esteve um grupo de intelectuais interessados em investir na incorporação de aspectos da cultura nacional, até o momento, colocados à parte. Estudos sobre o folclore e a música são exemplos de ações lideradas pelo grupo "Pau Brasil" que reuniu Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral dentre outros.104 Tais acontecimentos não passaram desapercebidos pelos intelectuais da elite negra paulistana, atuantes na imprensa negra e em algumas associações de cunho cultural mais amplo. Estes intelectuais-militantes acreditaram que os novos ares que sopravam trariam mudanças e estas, quem sabe, poderiam promover a inclusão de seu segmento racial até aquele momento compreendido pelo Estado, elites políticas e mesmo pela sociedade comum, como condenado ao desaparecimento físico via embranquecimento. Graças à mestiçagem e a ocupação do território nacional pelo imigrante estrangeiro. Daí, uma maior politização a partir da segunda metade dos anos 1920. Houve um encontro proveitoso entre as idéias ventiladas, ações organizadas pelos intelectuais negros e os novos movimentos culturais surgidos na cidade. Alguns movimentos sociais emergentes nos anos 1930 reconheciam as lideranças negras como significativas e os encontros com trocas de experiências e idéias foram constantes. Temos a presença de intelectuais ligados ao modernismo escrevendo esporadicamente no Clarim d' Alvorada e a ocorrência, nas páginas do A Voz da Raça, jornal da Frente Negra Brasileira, da freqüente participação de intelectuais, em sua maioria de
104
OLIVEIRA,1997:190
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tendência conservadora, nas sessões doutrinárias domingueiras, visita aos núcleos do interior e festividades referentes às datas comemorativas da comunidade negra como o 13 de maio, 28 de setembro dentre outras. Enquanto grupo, ou melhor, na condição de movimento social seria um equívoco afirmar que a militância negra gestou um projeto político-ideológico com o objetivo de disputar poder no contexto de 1920 e 1930, como no caso dos movimentos integralista e comunista. Entretanto, podemos afirmar que alguns militantes tiveram participações significativas em alguns processos, ficando claro, os papéis que assumiram no desenrolar de alguns episódios e, transparente, as ambições pessoais de alguns personagens. Um maior ou menor comprometimento deu-se conforme o envolvimento político-social, a conjuntura e a formação ideológica. Arlindo Veiga dos Santos teve participação orgânica na Ação Imperial Patrianovista Brasileira, organização conservadora de extrema-direita da qual ele foi dirigente geral durante muitos anos, concomitantemente ao cargo de presidente geral da Frente Negra Brasileira. Ou seja, a partir da articulação desses dois vínculos o intelectual-militante traçou sua trajetória. Veremos mais à frente que havia muitas semelhanças entre as reivindicações da Frente Negra Brasileira e da Ação Imperial Patrianovista Brasileira, especialmente entre os anos de 1931 e 1934, período em que o Dr. Veiga dos Santos esteve dirigindo as duas entidades. Essa análise reforça o caráter plural que tem a identidade pessoal. Principalmente, aquela que se erige entre os ativistas de movimentos sociais, ou seja, os sujeitos coletivos. Para esses, a identidade se constrói cotidianamente. Esses assumem e fazem diferentes posições de sujeitos conforme as conjunturas, se favoráveis ou não. Nessa análise, a identidade "é o precipitado de uma série de pertencimentos, articulados e rearticuláveis contingentemente, com maior ou
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menor estabilidade". 105 Em suma,
"o ator que constrói sua identidade afirma-se diante das múltiplas relações sociais, capitalizando para si a sensibilidade do sistema de ação, tornando-se eminentemente sujeito de iniciativas do sistema político. A identidade não se encontra a partir de dentro do movimento, mas na "trama" que as relações sociais de poder engendram nas representações derivadas das ações dos próprios movimentos".106
2.2 O alvorecer do ativismo negro: breve história das entidades negras em que atuaram Correia Leite e Veiga dos Santos Compreendemos as organizações surgidas e lideradas por estes militantes, com a finalidade de combater o racismo e a discriminação racial contra o negro, como movimentos sociais negros107, pois consideramos que mesmo que tenham tido origens e maneiras de estruturação diferentes, todas tiveram motivação e um objetivo comum: lutar para minorar a situação de inferioridade racial imposta ao negro na sociedade paulistana pós-emancipação. José Correia Leite e Arlindo Veiga dos Santos lideraram organizações em prol das melhorias de condições de vida da população negra e projetaram-se politicamente no interior da elite negra paulistana. Se a construção e consolidação de uma identidade têm a ver com a maneira que o sujeito se percebe numa relação coletiva, ou seja, "não se restringe ao ator em si mesmo, mas à sua relação com as atividades cotidianas da vida social"108 pode-se afirmar que as identidades de Veiga dos Santos e Correia Leite foram se forjando naqueles anos, durante os embates e consensos que se estabeleceram nos diferentes espaços de
105
BURITY,1999:40 LIMA,1999:62 107 GONZALES&HASENBALG,1985;SANTOS & BARBOSA ,1994:89-92 108 LIMA,1999:60 106
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sociabilidade em que os dois, enquanto intelectuais-militantes atuaram. Num primeiro momento, ainda na década de 1920, estiveram ou agrupados em torno do Clarim d' Alvorada ou do Centro Cívico Palmares. Já se cogitava a organização de uma entidade que congregasse todas as iniciativas de agrupamentos negros existentes na cidade de São Paulo. Em 1926, Correia Leite escreveu um artigo intitulado "Por que queremos a Confederação", no qual, em linhas gerais argumentava que "a luta moderna era a do preto contra o próprio preto (...) da inteligência contra a ignorância." Portanto, acreditando numa apatia e falta de coesão político-social dos próprios negros, bastante diferente do momento político pré-abolicionista, Leite escreveria que "embora a lucta109 fosse insana, os dirigentes do Clarim, não se desanimam, aguardem novas iniciativas."110 Um ano antes, o mesmo escrevia animado, informando aos leitores da iniciativa de se fundar em São Paulo um partido da mocidade negra, denominado Congresso da mocidade dos homens de cor.111 Mas, foi com a fundação da Frente Negra Brasileira que todos esses ideais que vinham se gestando na década anterior puderam se concretizar. O grupo dos militantes se uniria em prol de uma organização que se propunha lutar, preferencialmente pelas reivindicações políticas de integração da coletividade negra. Daí a maciça participação nas reuniões que precederam a sua fundação. Veiga e Leite eram bastante jovens na década de 1920 e faziam parte do grupo dos intelectualizados. Alguns tinham formação efetiva, exemplo de Veiga dos Santos. Outros não, se tratavam de autodidatas, ou seja, indivíduos com parca formação escolar, mas que a partir das redes de sociabilidade construídas, alcançaram um nível de abstração e análise da realidade capaz de torna-los legítimos intelectuais, 109
Em todos os documentos respeitamos a grafia das palavras e as formas gramaticais utilizadas, preservando-se, desta maneira, o documento original. 110 Correia Leite, "Por que queremos a Confederação", Clarim d' Alvorada, 25/04/1926 ano III, p.2
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caso de Correia Leite. Analisando a história dos intelectuais franceses Sirinelli identificou o espaço das revistas, a mobilização em torno da feitura de um abaixoassinado bem como os "salões" como estruturas de sociabilidade construídas ou freqüentadas pelos mesmos.112 No caso dos intelectuais-militantes que investigamos, apontamos a organização dos jornais negros, os bate-papos nos bares e esquinas, as associações de vários tipos e a existência dos "bailes negros" como os espaços que ajudaram a forjar os intelectuais-militantes paulistanos. O aprendizado se dava a partir da colaboração de amigos: "o Jayme já vinha me orientando na compra de livros. Havia muitos sebos com preços baratos".113 Em conversas informais nos bares: "então, ele [Alfredo Pires] assobiava e cantava óperas, trechos de sinfonias... e acabava dando uma aula de música, falava dos grandes compositores, os grandes gênios. Eu gostava muito de conversar com ele".114 Ou ainda pelas falas de oradores e pessoas públicas, em especial políticos: "certa vez fui assistir uma palestra do Rui Barbosa, quando ele foi candidato à Presidência da República contra o Epitácio Pessoa. (...) O discurso dele foi contra seu adversário".115 A representação do intelectual estava diretamente associada à noção de esclarecimento que por sua vez ancorava a perspectiva da instrução como solução para os problemas enfrentados pelos negros no período. Intelectual, segundo Correia Leite, era aquele sujeito que "entendia que o negro deveria ir a campo para se conscientizar e combater com a mesma arma do branco: cultura e instrução".116 O intelectual também
111
Correia Leite, "A esmola", Clarim d' Alvorada, 1925, ano II, no.16 SIRINELLI,1996:248 113 LEITE,1992:33 114 LEITE,1992:50 Correia Leite citou alguns músicos com os quais tivera contato nos anos 1930. Falou de Bonfilho de Oliveira, hoje considerado um clássico, de um pistonista chamado Justo e de Alfredo Pires, sargento da Banda de Música da Força Pública que participou da sublevação tenentista de 1924, foi expulso, mas depois retornou em 1930, como tenente da Banda de Música, aposentando-se como Major. 115 LEITE,1992:51 116 LEITE,1992:19 112
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era um visionário e tinha uma missão, sendo respeitado e reconhecido em seu entorno:
eu sempre fui um sujeito respeitado, mas as vezes isso me prejudicava. (...) Se eu saísse para dançar: 'Ah, o Leite está dançando!...' Eu era um sujeito que para ser respeitado não podia dançar. Com o tempo eu me acostumei também com isso. E depois, as idéias ficaram encarnadas em min de uma tal maneira que eu não sabia falar de outra coisa que não fosse a situação do negro, o problema do negro. Aonde houvesse lugar, onde o negro 117 se reunisse, eu estava lá para discutir também.
O exemplo da Frente Negra corrobora dessa dimensão do engajamento. Muitos procuraram a Frente Negra por causa do curso de alfabetização para adultos, no entanto, após concluí-lo continuaram. Agora na condição de professores, voltados à instrução dos novos alunos. Esses novos quadros ajudavam no próprio curso de alfabetização ou então no curso de formação social que tinha um programa mais amplo, e versava sobre temas diversos, das boas maneiras à conjuntura política nacional.118 O curso de formação social fazia parte da programação das "domingueiras". Todos os domingos à tarde as lideranças frentenegrinas juntamente com o departamento cultural realizava-as. Era um encontro cultural, mas com fins políticos. Nas domingueiras se declamava poesias, se encenava peças teatrais e se apresentavam regionais. Num segundo momento, havia a sessão literária com palestras realizadas por lideranças frentenegrinas ou convidados de fora, brancos e negros. Essas palestras eram organizadas pelo departamento intelectual, dirigido por Veiga dos Santos. Percebam que a organização social funcionava como uma espécie de “intelectual coletivo orgânico”, com a preocupação maior das lideranças em elevar o nível cultural, no sentido mais amplo do termo, de suas massas. Ainda que para muitos, a entidade primeiramente funcionasse como opção de lazer: 117 118
LEITE,1992:59 PINTO,1993:passim
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"eu ia todos os dias à Frente Negra porque ali foi o ponto culminante da sociedade negra em São Paulo. (...) Era um lazer de final de semana, mas havia moças e rapazes que iam para serem alfabetizados. (...) Também havia a orientação que era dada aos domingos. Um orador falava sobre a Frente Negra, as funções, os objetivos, mas nunca levando alguém a apoiar este ou aquele político ou partido. Sempre visava-se a nossa própria recuperação, a nossa própria integração social e uma união entre nós 119 mesmos." "A Frente Negra tornou-se a minha segunda casa. (...) Eu ia lá todas as noites. Era mocinho ainda, aquele movimento todo me entusiasmava. (...) O que atraía a gente era aquele aspecto de grandeza, quer dizer, o conteúdo político só muito tempo depois a gente conseguiu compreender."120 "Embora não tivesse conhecimento político, achei interessante porque, em princípio, era oferecida a oportunidade de se ter uma associação com rapazes e moças e também havia o aprendizado de algumas coisas interessantes como música, alfaiataria, ler e escrever bem."121 "todo domingo tinha reunião geral, hora da doutrinação, de ensinamentos, palestras, ouvir também declamadoras... Tínhamos um regional e criamos uma banda só de negros"122
Durante toda a Primeira República, floresceram associações negras na cidade de São Paulo.123 Morando entre os italianos, Leite informou que "nunca havia imaginado encontrar entidades organizadas, com aquele convívio de famílias, de namoro."124 Tais informações dão-nos uma noção do associativismo existente no interior da comunidade negra paulistana. Prática essa que, guardadas suas singularidades, remontava ao período anterior a abolição da escravidão com a presença
119
QUILOMBHOJE,1998:91 depoimento de Marcello Orlando Ribeiro. QUILOMBHOJE,1998:18 depoimento de Aristides Barbosa. 121 QUILOMBHOJE,1998:82 depoimento de Marcello Orlando Ribeiro 122 Depoimento de Francisco Lucrécio apud SILVA,1990,135 123 DOMINGUES,2004a:329 contabilizou a existência de pelo menos 85 associações negras na cidade desde a abolição. As dançantes eram 25, beneficentes: 9, cívicas: 4, esportivas:14, recreativas, dramático e literárias:21 e carnavalescas 12. 124 LEITE,1992:47 120
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de organizações beneficentes, irmandades religiosas, etc.125 É certo, que tais associações tornaram-se mais ativas com o passar dos anos, na medida que se agudizava o processo de libertação. Podemos afirmar que a organização de uma associação
negra
esteve
intimamente
ligada
ao
momento
abolicionista
e
posteriormente a situação de segregação racial imposta ao negro na cidade de São Paulo, agravada na competição com o imigrante branco, em especial o italiano. Muitas entidades surgiram com a finalidade de proporcionar espaços de sociabilidade e lazer voltados ao segmento negro que se sentia discriminado naquelas lideradas por brancos. Havia inúmeros clubes e salões de bailes administrados pelas colônias estrangeiras. Os italianos eram os responsáveis pelo Gioconda, Itália Fausta e Giuseppe Verdi, os portugueses pelo Lusitânia, Portuguesa de Desportos e Clube Ginástico Português, mas os negros eram proibidos de freqüentá-los.126 Diante desse quadro de racismo recorrente e segregador, negador da existência plena de uma real democracia racial, a única saída foi a organização das próprias associações, clubes, irmandades e salões de bailes negros.127 Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que promovia o apartamento social, o racismo paulistano provocava a organização dos negros enquanto grupo distinto. Aos poucos surgia na cidade uma identidade racial preocupada em reagir ao padrão das relações raciais naquele estado e cidade. Desse processo, ou melhor, entre os que se agruparam no meio negro, surgiu um pequeno grupo de ativistas preocupado em combater a discriminação e o preconceito racial incidentes sobre a população negra. Dentre todas as associações da época, o Grupo Dramático e Recreativo Kosmos que surgiu em 15 de novembro de 1908, depois de uma dissidência na 125
DOMINGUES,2004a.330 e 341 aponta a existência de pelo menos 4 associações fundadas antes ou no ano de 1888. 126 DOMINGUES,2004a:324
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Sociedade 18 de Agosto, foi o mais organizado e um dos únicos a levar a frente o objetivo beneficente. Através de um rígido controle de conduta, os dirigentes procuravam proporcionar à família negra paulistana um ambiente "intelectual e literário"128, com eventos teatrais, saraus poéticos, publicação de um jornal próprio chamado Kosmos e realização de bailes. Seu dirigente histórico foi Joaquim Cambará que, no período de 1917-18, tornou-se conhecido no meio negro como aquele que primeiro tentou unificar as entidades em São Paulo. Seu sucessor chamava-se Frederico Batista de Sousa, escrevente-secretário na Faculdade de Direito de São Paulo e colaborador assíduo do jornal Clarim d' Alvorada e de tantos outros que existiram no período. A entidade funcionava no Itália Fausta - um dos melhores salões da cidade - situado na rua Florêncio Abreu, centro de São Paulo. Tinha um rígido estatuto, investimentos na Caixa Econômica Federal e carteira de identificação para os associados.129 Deixou de existir na década de 1930, mas não temos informações sobre os motivos de sua extinção. Constata-se que o ativismo surgido no final dos anos 1920 e que atuou durante toda a década de 1930, não apareceu de uma hora para a outra. Foram os encontros proporcionados em vários espaços de sociabilidade, formadores desses indivíduos que pôde gerar as ações que existiram. E o espaço da imprensa foi um locus privilegiado para que estes sujeitos se instruíssem, se projetassem e encontrassem leitores. Pesquisas130 comprovam a existência de uma imprensa realizada por negros e, preferencialmente, para negros desde os primeiros anos do século XX. Foi basicamente, em meio a essa imprensa específica do meio negro letrado que os intelectuais-militantes iniciaram suas vidas políticas, através da difusão de suas idéias. 127
DOMINGUES,2004a:315 LEITE,1992:33 129 DOMINGUES,2004a:331 128
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Foram nos jornais negros que as primeiras representações sociais desses militantes sobre a questão racial alcançaram a elite negra paulistana, fosse ela militante ou não. Desse modo, os jornais da imprensa negra paulistana ocuparam nesta pesquisa, locus privilegiado de análise, na medida que por eles pudemos acompanhar o curso das idéias e práticas políticas de Arlindo Veiga dos Santos e José Correia Leite. Muitos jornais surgiam ligados às associações negras. Tratava-se de uma imprensa adicional131 que cuidava do ambiente sócio-cultural negro que não saía estampado na imprensa geral. Os pequenos periódicos noticiavam os acontecimentos sociais realizados pelas organizações negras, serviam como espaço de expressão literária para poetas e prosadores e também funcionavam como um veículo educativo orientando os negros para uma nova sociabilidade dita "sadia". Em suma funcionavam como órgãos de "reivindicação, educação e solidariedade".132 Temos dados de jornais surgidos ainda na primeira década do século XX e alguns já insinuavam parcas linhas sobre a questão racial em São Paulo, porém sem reflexões profundas e com poucas propostas de ação efetiva. Os jornais mais conhecidos com essas características foram: O Propugnador (?-1907), da Sociedade Propugnadora 13 de Maio; O Menelik (1915-1916), em homenagem ao grande imperador etíope Menelike II; O Patrocínio (1913-?), A Pérola (1911-1916), da Sociedade Recreativa 15 de Novembro; O Binóculo (1915-?), O Xauter (1916-1916), criado para combater o Menelik e o Binóculo; A Rua (1916-1916), O Alfinete ( 19181921), O Bandeirante (1918-1919), do Grêmio Bandeirantes; A Liberdade (19191920), A Princesa do orte (?-1924) e ‘O Kosmos’ - órgão do Grêmio Dramático e
130
Cf. BASTIDE,1973;FERRARA,1986. BASTIDE, 1973:130 Assim como a imprensa feita pelos negros norte-americanos na época. 132 BASTIDE,1973:156 131
66
Recreativo Kosmos ( 1922-1925).133 A imprensa negra funcionava como elemento aglutinador e formador de uma identidade de grupo, pois pelos jornais tinha-se informação das atividades realizadas pelas entidades negras. Com o passar dos anos, mais precisamente a partir de 1923, ano em que surgiu o jornal Getulino134, na cidade de Campinas, a imprensa negra iniciou uma nova fase em que os responsáveis passaram a preocupar-se também, com as questões sociais e políticas que envolviam a realidade do negro. O Getulino era editado por um grupo formado por Benedito Florêncio, Lino Guedes135 e Gervásio de Moraes entre outros, portadores de uma visão mais politizada do chamado "problema negro".
Já faziam denúncias, mas sempre na perspectiva de que havia um
acomodamento do próprio segmento negro paulistano. Assim, notícias que relacionavam as atitudes do negro que poderiam ocasionar reações preconceituosas e discriminadoras, a falta de escolarização e freqüente desemprego passaram a compor a pauta desse periódico. Outros jornais fizeram parte desse novo momento, como Elite (1923-1924), do Grêmio Dramático, Recreativo e Literário Elite da Liberdade; Auriverde (1927-1928), O Patrocínio (1928-?), Progresso (1928-1932); Chibata (1932)136, A Voz da Raça (1933-1937) da Frente Negra Brasileira, Tribuna egra (1935), O Estímulo (1935). Alguns periódicos nos são mais significativos porque a ênfase dada foi para a imprensa combativa, de esclarecimento e militância política. O pioneiro foi o Clarim d'Alvorada. Depois do Clarim d'Alvorada, um outro jornal 133
DOMINGUES,2004a:349 Ver também BASTIDE,1973; FERRARA,1986 e PINTO,1993. Getulino era o pseudônimo de Luiz Gama, negro e importante líder abolicionista. Daí a homenagem. 135 Lino Guedes era poeta, literato e jornalista. Migrou de Campinas no final da década de 1920. É considerado o primeiro escritor negro do século XX a fazer da questão racial motivação para sua produção literária, num período em que a poesia social ainda não era aceita. Além do Getulino, editou na cidade de São Paulo, o jornal negro Progresso, surgido em 1928, com a finalidade de incentivar, entre os paulistanos, a construção de um busto em homenagem ao advogado e líder abolicionista Luiz Gonzaga da Gama. Não atuou apenas na imprensa negra. Trabalhou no Combate, no A Razão, no São Paulo Jornal, na Folha da oite e no Diário de São Paulo no qual exerceu o cargo de chefe de revisão. Ainda sobre Lino Guedes ver MELO,1954:266-267, OLIVEIRA,1998:170; BERND, 1986. 134
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importante foi o A Voz da Raça, no qual Arlindo Veiga dos Santos veiculou tanto suas idéias ligadas ao ativismo negro quanto aquelas que discorriam sobre o movimento monarquista Patrianovista ao qual era filiado. Dentre os jornais da imprensa negra, deter-nos-emos sobre a história do Clarim d' Alvorada por ter sido fundado por Correia Leite. O Clarim d’Alvorada não surgiu do seio de uma entidade negra. Foi um periódico independente que se tornou uma das mais atuantes organizações do movimento negro paulistano.
O Clarim d’Alvorada - 1924-1932137 Com o primeiro número publicado em 06 de janeiro de 1924, a partir de sociedade estabelecida entre Jayme de Aguiar138 e José Correia Leite, o jornal O Clarim (nome inicial do jornal),“era pequeninho, sem conotação política ou qualquer idéia de aproximação da comunidade negra. Era um jornal de notícias literárias, embora eu não fosse literato e mal tivesse acabado de ter as primeiras noções de gramática"139 Nos primeiros meses, com o intuito de creditarem mais importância ao periódico, usavam pseudônimos, atraindo assim tanto leitores quanto colaboradores. Aguiar criou para si os pseudônimos de Maria Rosa, Moysés Cintra, Jim de Araguary, Praxedes, Ana Maria e Jim do Vale. Leite e Menotti Del Picchia mais modestos,
136
O Chibata saiu em forma de pasquim e foi editado pelo pessoal do Clarim d' Alvorada, no ano de 1932, para combater os dirigentes da Frente Negra Brasileira. 137 Conforme divisão feita pelos próprios militantes, o jornal teve três fases. A primeira, que foi de 06 de janeiro 1924 a 06 de outubro de 1927, compreende um conjunto de 31 periódicos; a segunda, de 05 de fevereiro de 1928 até o ano de 1932 contém 26 exemplares. Em 1932, após desavenças com militantes da Frente Negra, O Clarim d' Alvorada foi extinto, só voltando a existir em 1940, data de início de sua terceira fase. Para nossa pesquisa, interessou-nos somente os números da segunda fase, a partir de setembro de 1928 quando Correia Leite assumiu a liderança do tablóide com o posto de “redator responsável”. 138 Cf. MOURA,2004:46 A iniciativa de publicar o Clarim d' Alvorada partiu de Aguiar após sugestão de um amigo, chamado José de Molina Quartin Filho, na época esse colega de trabalho de Aguiar na Seção de Datiloscopia do Gabinete de Investigação. Quartin também fazia a Faculdade de Direito de São Paulo e era cronista no Correio Paulistano. Aguiar que só confiava em Leite, convidou-o para a parceria. 139 LEITE,1992:29
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adotaram os pseudônimos de Tuca e Helius respectivamente.140 A publicação era mensal e voltada ao público em geral, mas interessou majoritariamente aos que freqüentavam entidades associativas como podemos confirmar através de nota de agradecimento publicada em 03 de fevereiro de 1924:
"Para demonstrar o nosso contentamento e gratidão pela feliz aceitação, aqui depositamos as sociedades abaixo mencionadas os nossos agradecimentos: XV de Novembro, XIII de Maio, Paulistano, Primaveras, Bandeirantes, Flor da Mocidade, União Brasil e Militar, Rio Branco e Princeza do Sul. 141
Alguns meses depois o jornal receberia seu nome definitivo: Clarim d'Alvorada. Ameaçados de plágio devido à existência de um outro periódico com o mesmo nome, os jovens redatores começaram a pensar num complemento para o nome principal. As sugestões foram Clarim d'Vitória e Clarim d'Alvorada. Venceu o segundo, pois o negro ainda não tinha alcançado "vitória nenhuma".142 O contato com os organizadores do jornal Getulino, as conversas travadas nas esquinas e bares até altas horas da noite, que quase sempre discorriam sobre a situação do negro no Brasil e as transformações sócio-culturais presentes na década de 1920 influenciaram sobremaneira as idéias e atitudes de Leite e Aguiar e por conseqüência, o jornal que editavam. Tanto que em poucos meses, mais precisamente a partir de 06 de abril de 1924, O Clarim d’Alvorada sofreu uma modificação em seu subtítulo, passando de "Orgam Literário, Scientífico e Humorístico" para "Orgam Literário, oticioso e Humorístico". Os jornalistas foram incorporando, aos poucos, a questão 140
Cf. FERRARA,1986:56 O poeta e romancista modernista Menotti Del Picchia colaborou com o jornal em seus primeiros números. Provavelmente os editores do Clarim d' Alvorada e Picchia se conheceram por intermédio do amigo de Aguiar Quartin Filho, pois na época, Picchia também era cronista no Correio Paulistano. 141 O Clarim, 03/02/1924 ano I, no. 2. 142 LEITE,1992:43
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racial, que era vista pela maioria dos que escreviam como um problema do próprio negro que não conseguira, até aquele momento, se adequar à sociedade urbana e burguesa em que São Paulo se transformara. Textos intitulados "O Preto e a Pátria", "O Verbo do Preto", "Vivemos sem lar" são exemplos. Um outro "Por que queremos a confederação", de 25 de abril de 1926 era contundente ao afirmar que "no Brasil não existe o preconceito de raça como dizem vários patrícios, cremos que a nação não tem culpa dos brasileiros pretos, não serem esforçados."
143
Podemos perceber com essas
frases, a representação do paraíso racial, futuramente nomeada como democracia racial, veiculada no jornal. A função dos ativistas era provocar entre os leitores uma movimentação em torno da ampla participação na sociedade como sujeitos com direitos garantidos desde a data da abolição. Ou seja, nesse primeiro momento, Correia Leite e seus companheiros não questionavam o status quo. A função dos jornalistas era outra: reagir contra a propalada apatia do negro causadora daquele estado de coisas. Nesse projeto de conscientização liderado por Leite e Aguiar, foi recorrente a publicação de artigos sobre o abolicionismo, biografias de alguns poetas negros como Castro Alves, Cruz e Souza e Luiz Gama, além de editoriais especiais nos dias considerados significativos para a história do negro como a Abolição, Lei do Vente Livre e aniversário de nascimento ou morte de algum abolicionista, tanto negro quanto branco. Porquanto, os ativistas, assim como outros em outras entidades manipulavam símbolos e mitos na luta por estruturar no interior da coletividade negra paulistana grupos de interesses. Isso explica o fato de que as atividades realizadas pelas inúmeras associações, clubes e centros culturais existentes na capital estivessem contidas nas páginas do Clarim d' Alvorada. Suspeitamos que essa era a principal razão do sucesso do periódico, pois como o Clarim d’Alvorada não estava vinculado a nenhuma
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Clarim d' Alvorada, 25/04/1926, ano III.
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associação negra, os jornalistas sentiam-se livres para publicar informações sobre as diversas sociedades, multiplicando o número de leitores. Tática essa, confirmada por Correia Leite anos mais tarde:
"O jornal O Clarim oferecia notícias pra que a gente pudesse ter aceitação no meio das entidades negras. Então eram anunciadas festas, bailes, casamentos... Através desse expediente, conseguíamos que a entidade distribuísse os jornais. Quando chegávamos no baile com os exemplares, o mestre sala mandava parar a música e anunciava. Algumas moças da entidade iam vendendo para os freqüentadores, a duzentos réis. Mas a gente tinha de ter muita habilidade, pois certas entidades não aceitavam esse intercâmbio."144
Em fevereiro de 1928, o jornal incorporou um novo subtítulo: "pelo interesse dos Homens Pretos - Noticioso, Literário e de Combate" e passou a discorrer mais sobre a “tão falada questão racial” que se tornou o “ponto principal do programa”145. Nessa época, Leite já dividia com Aguiar a direção do periódico, ou seja, suas responsabilidades deixaram de ser preponderantemente mecânicas e passaram também a ser intelectuais. O militante procurava estar a par de tudo que acontecia no meio negro local, participando dos debates que se davam nas rodas, nas ruas, nos bares. Os negros intelectualizados escolhiam pontos de encontro como a Rua Quintino Bocaiúva, a Praça da Sé e a Praça João Mendes, onde tinha um café chamado Café do Adelino. Muitos também se encontravam perto dos salões de baile, mesmo que o grau de consciência política adquirida condenasse a associação de suas imagens a esses locais, pois eram pontos de aglutinação de negros e negras, local propício para a troca de informações, experiências, e logo, de convencimento de mais um para o grupo.146 Precisamente, um ano depois, ou melhor, em três de fevereiro de 1929, quando
144
LEITE,1992:59 Correia Leite, “As verdadeiras verdades”, O Clarim d' Alvorada, ano I ,2º fase p.2 05/02/1928 146 LEITE,1992:61 145
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se comemorava o primeiro ano da segunda fase do jornal, Correia Leite assumiu o posto de redator responsável, depois que Aguiar ameaçara fechar o jornal uma vez que, brevemente se casaria e não via como conciliar as duas responsabilidades. Com Correia Leite o jornalismo conscientizador e engajado implementado pelos militantes do Clarim d' Alvorada transpôs os limites da cidade de São Paulo. O jornal era distribuído em cidades do interior do estado como Botucatu, São Carlos, Sorocaba, Santos e pelo menos duas capitais: Rio de Janeiro e Salvador. Foi a partir do Clarim d' Alvorada que se deu os primeiros contatos entre o ativismo político que há muito existia nos EUA e o que se iniciava no Brasil. A amizade com dois baianos que estavam morando em São Paulo possibilitou o início de uma parceria com o militante Mário Vasconcelos da Bahia que tinham ligações com o movimento negro americano. Mário Vasconcelos traduzia o The egro World, ligado ao movimento garveysta147 além de outras notícias, relativas ao ativismo negro norteamericano. Essas traduções passaram a sair nas páginas do Clarim d' Alvorada numa coluna que recebeu o mesmo nome do periódico de Garvey: "Mundo Negro", possibilitando assim uma ponte entre os ativistas do Brasil e os do norte da América. Em 1930 a chamada era: "O Mundo Negro - Notícias e Trabalhos transcriptos e traduzidos para o Clarim d'Alvorada dos mais importantes organs negros das Américas".148 Como exemplo apresentamos um pequeno texto intitulado "Máximas do Mundo Negro", em que um colaborador da Bahia tecia as seguintes considerações:
O negro não será respeitado, enquanto fizer trabalho baixo para o branco. Mundo Negro, resalta o 147
O garveysmo surgiu nos Estados Unidos, fundado pelo jamaicano Marcus Garvey e tinha em sua meta fundar um Estado independente em que pudessem viver todos os negros que estavam na diáspora. Garvey tinha muitas idéias e era muito carismático arregimentando vários seguidores para o seu movimento. O garveysmo pode ser considerado um dos precursores do pan-africanismo que mais tarde, na década de 1950 fundou o movimento da egritute. Cf. NASCIMENTO,1981:81-86 & DECRAENE,1962:13-21 148 Clarim d' Alvorada, ano VII, no.31, 07/12/1930, p.4
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negro norte-americano, porque elle è um espelho aos negros do Brasil. O sentimentalismo brasileiro, tem matado o negro a migua, a brutalidade norte-americana ensinou o negro a ser altivo. Enquanto o negro dorme, temendo a separação, o branco se educa e toma conta de tudo.
A mulher negra norte americana, tem sido um grande factor no desenvolvimento de sua raça. O negro do Brasil está em atrazo porque só pensa em ajudar o branco.149
Decerto os colaboradores baianos leitores do "The egro World" faziam uma releitura daquelas idéias, apropriando-se do que poderia ter relevância à realidade brasileira. Nas assertivas acima está embutida a idéia de que era necessário criar uma espécie de solidariedade racial entre os negros do Brasil como mecanismo que minimizasse as mazelas sociais enfrentadas. Outros títulos ainda encontrados no exemplar de 1930 foram: "Joanna D'arc da Índia", "A feira do deserto Sahara consegue sucesso" e "A África dá prova de cultura antiga", o que demonstra já a existência e uma preocupação em se veicular informações relacionadas ao continente africano. E, um pequeno trecho atribuído a Garvey, citado no jornal nos dá uma noção da importância daquele movimento para os intelectuais-militantes redatores do Clarim d' Alvorada:
"O negro, diz Marcus Garvey, durante a phase do captiveiro, aceitava os pensamentos e as opiniões da raça branca admittindo a idea de sua superidade: o Fundamentalismo Africano procura emancipar o negro dos pensamentos de outros que encorajam-no a agir sobre as suas opiniões e ideas".150
Os ativistas do Clarim d' Alvorada também conheceram um outro periódico 149
Clarim d' Alvorada, Mundo Negro, "Movimento Pan Negro", 1931, p:2 (exemplar contido no prontuário 1538, Frente Negra Brasileira). 150 Clarim d' Alvorada, Mundo Negro, ano VIII, no.33, p.4, 21/06/1931
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americano, o Chicago Defender151. Isso por intermédio de um padre chamado Olímpio de Castro, provedor da Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e São Benedito e colaborador do jornal paulistano, que conhecera o então diretor do Chicago Defender, Robert Abbot, numa viagem que este fizera ao Brasil. Comparando a situação do negro brasileiro e do afro-americano, Robert Abbot declarou ver no Brasil uma democracia racial de fato, uma vez que aqui não tínhamos uma segregação socioespacial imposta pelo Estado. Num elogio, disse não ter identificado problema racial no Brasil.152 Conclusão quase unânime entre a maioria dos que na época chegavam ao Brasil, vindos de uma realidade na qual a segregação racial era imposta enquanto uma política declarada de Estado. Após trocas de correspondências, o padre colocou os ativistas brasileiros em contato com os americanos. O Clarim d' Alvorada passou a ser enviando para os Estados Unidos e o Chicago Defender para cá. Segundo Leite,
"os números do Chicago Defender chegavam aqui muito atrasados. Nós tínhamos de arranjar os que sabiam inglês para poderem traduzir ou ler para a gente. O recebimento daqueles jornais foi para nós um motivo de muito orgulho, de satisfação, e que provava que o nosso jornal era uma coisa de utilidade, que o nosso trabalho não estava sendo inútil, como houve outros casos por aí."153
Logo, Correia Leite escreveria um artigo em que comparava a realidade americana com a brasileira. Em sua análise, o que tornava o negro americano um vencedor era seu orgulho racial, conseqüência do "preconceito de cor" praticado pelos seus "terríveis inimigos, que são os próprios patrícios brancos". Já no Brasil, não havia
151
O Chicago Defender foi um dos primeiros jornais da imprensa negra norte-americana e existe até hoje. Já teve cerca de 200 mil sócios e hoje passa por problemas relativos a sua manutenção, contando ainda com cerca de 18 mil associados.http://www.bahai.org.br/racial/historia/robert.htm. 152 ANDREWS,1998:214 153 LEITE,1992:79
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"preconceito nenhum a combater", pois a convivência era em "perfeita comunhão com os brasileiros brancos" e com o próprio estrangeiro. Contudo, pregava que os negros brasileiros deveriam aproveitar o que havia de positivo na experiência americana, lutando para adquirir um "pouco de admiração, já que a inteligência não é privilégio de ninguém", não apenas para o próprio bem, mas para o bem da "querida pátria".154 Vemos que o militante acreditava, ou melhor, tinha como utopia a democracia racial. A motivação do ativismo daqueles anos, ao contrário do que iremos encontrar no final do século XX, fundava-se no fato de que juridicamente existia uma democracia entre as raças. Não havendo na constituição nacional qualquer referência a separação racial. No entendimento dos militantes, o que atravancava a efetiva existência da igualdade entre brancos e negros era a pequena distância temporal entre a Abolição e o período em que viviam, causadora da apatia e marginalização do negro e do desinteresse e desrespeito do branco. Assim, cabia ao intelectual-militante contribuir para acelerar a consciência de cidadão do negro brasileiro, muitos ainda vivendo numa “liberdade esfarrapada”, palavras do próprio Leite. Foi conhecendo a realidade norte-americana e comparando-a com a brasileira, num exercício de alteridade que José Correia Leite pôde tipificar o racismo brasileiro e daí fortalecer seus argumentos contra o preconceito e a discriminação racial aqui. Ainda que suas conclusões não tivessem a perspectiva do rompimento com a ordem estabelecida, não foram bem aceitas no final dos anos 1920. Leite declarou ter sido acusado pelos colegas da imprensa negra de estar criando um "quisto racial", importando idéias que não eram propriamente brasileiras155, numa prova evidente, que de fato, o nosso racismo dissimulado e cordial levava a tais deduções. Por outro lado, os contatos entre os intelectuais do Movimento Negro norte154
Correia Leite "Na Terra do Preconceito", O Clarim d' Alvorada, ano I, no. 2 , 2º fase, 04/03/1928
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americano e brasileiro demonstram quão próximas estavam as lutas. Ainda que em realidades diferentes, os dois grupos partiam de um mesmo fato histórico: a travessia do Atlântico para exercer o trabalho escravo no Novo Mundo. Assim, a origem única e a situação de subalternos, guardadas as diferenciações, proporcionaram as trocas de experiências bem sucedidas e fracassadas que existiram. Contribuindo para a formação política de Correia Leite, o contato com o ativismo norte-americano fez com que ele percebesse que a luta contra o racismo não era apenas do negro brasileiro. Desse modo, ainda que a doutrina garveysta tenha ficado apenas nos meandros do ativismo feito pelos jornalistas do Clarim d' Alvorada, fez Leite perceber que a finalidade do ativismo implantado no jornal era combater o racismo, denunciando a sutileza do preconceito e as diferentes formas da discriminação racial existentes na sociedade brasileira.156 Os efeitos do racismo brasileiro incidiam diretamente sobre a população negra: "os que estavam 'em cima' eram os nossos 'protetores', os advogados, fazendeiros... esses tratavam a gente ainda como descendentes de escravos ou filhos de escravos. Eu via que eles tratavam a gente com a mesma empáfia, com aquele mesmo ranço escravocrata."157 Os ativistas se reuniam para reverter um estado de coisas: "começou-se a sentir a revolta que causavam os negros capangas de políticos, bajudalores, e a necessidade de formar um grupo consciente para lutar contra esses que tinham um sentimento de inferioridade".158 Os brancos se comportavam como no regime escravocrata, ou melhor, herdaram da escravidão o padrão de distanciamento e isolamento sociocultural que os mantinham privilegiados em detrimento dos negros.159 Nos anos 1980,
155
LEITE,1992:78 LEITE,1992:80-81 157 LEITE,1992:55 158 MOREIRA & LEITE,s/d:3 159 FERNANDES,1978:249 156
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ao olhar para o passado o velho ativista avaliava que "o negro esteve sempre no desamparo. E uma das nossas idéias era essa: se unir para ter uma retaguarda, pra (sic) não ser um que apanhasse sozinho. (...) Só havia participação maciça em que coisa que fosse pra (sic) divertir, dançar, senão..."160 É importante ressaltar que as falas distanciam-se em décadas. Portanto, a pessoa que escrevia no jornal e condenava os próprios negros pelas condições de vida enfrentada, não era mais a mesma. Nos depoimentos colhidos a posteriori, falou um antigo militante cônscio dos mecanismos causadores e mantenedores daquele estado de coisas. Os militantes dos Clarim d' Alvorada lideraram inúmeras iniciativas em prol da conscientização da população negra paulistana. Campanhas com a da Mãe-Preta e para a realização do Primeiro Congresso da Mocidade Negra foram idealizadas e colocadas em prática. Além disso casos de racismo praticado na capital e mesmo no interior foram apurados pelos ativistas do jornal, denotando uma preocupação e grau de comprometimento com a questão racial que rompia com as lides do trabalho intelectual responsável por divulgar idéias esclarecedoras através de uma imprensa comprometida. Assim, com essas iniciativas O Clarim d' Alvorada deixava de ser um órgão da imprensa negra paulistana para tornar-se uma entidade do movimento negro. Eram atitudes ambiciosas, em especial, para aqueles envolvidos cotidianamente com o jornal como Horácio Cunha, Frederico Batista de Souza, Henrique Antunes Cunha, Luiz Gonzaga Braga, o poeta Cyro Costa que era branco e foi o autor do poema Mãe-Preta e o Advogado criminalista Dr. Evaristo de Morais, dentre outros. Os personagens citados, vinham participando da confecção do periódico desde os seus primeiros anos. Na década de 1930, este grupo de colaboradores decidiu fazer do jornal uma entidade coletiva. A partir daquele momento O Clarim d' Alvorada se
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LEITE,1992:57
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tornaria uma cooperativa. Numa assembléia geral realizada em 1º de janeiro de 1931, contando com a participação de um número expressivo de cooperados se elegeu a nova diretoria que ficou assim constituída: presidente: Frederico Batista de Souza, secretário: Luiz Gonzaga Braga, editor: Henrique Antunes Cunha e redator-chefe: José Correia Leite.161 Com a Sociedade Cooperadora Clarim d' Alvorada os militantes conseguiram comprar o próprio material para a feitura do jornal, tais como a prensa e os tipos, gerando o barateamento do custo. A oficina ficava nos fundos da casa de Correia Leite, na capital. Na memória de Leite, o dia da inauguração da oficina foi uma festa: "descerramos o retrato do José do Patrocínio e o Dr. Guaraná de Santana compareceu e fez um discurso bonito, realçando a nossa iniciativa em relação aos grandes jornais."162 Contudo, a Sociedade Cooperadora durou pouco mais de um ano, pois o jornal deixou de circular em março de 1932. Isso aconteceu por dois motivos. Rusgas políticas no interior do próprio ativismo negro resultaram, a mando dos irmãos Veiga dos Santos, na invasão da casa de Correia Leite e na tentativa de empastelamento do periódico. Fora esse episódio, por volta de 1932, tinha-se um cenário nacional não muito propício às movimentações políticas de reivindicação, característica do Clarim d' Alvorada. O clima de insatisfação na cidade de São Paulo estava estampado. Os paulistas cada vez mais declaravam seu descontentamento com o governo de Getúlio Vargas. A prometida Assembléia Constituinte não ocorria, retardando a implantação de uma Constituição democrática e conseqüentemente, contribuindo para a continuação de um regime de exceção política que vinha desde outubro de 1930. Contexto que culminou na Revolução Constitucionalista meses depois. Diante dessa realidade, seria mais prudente investir em outras formas de atuação, menos propícias a 161
O Clarim d' Alvorada, 13/05/1932, p.2
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uma prisão política, por exemplo. Prova desse ambiente inóspito foi a declaração de Leite de que em 1932, havia uma certa implicância por parte das autoridades com a publicação de jornais.163 Mas a iniciativa de Aguiar e Correia Leite não foi única durante os anos 1920. Uma outra entidade negra surgiu em São Paulo com proposta políticas e culturais inovadoras se comparadas às existentes. Seu surgimento figura como um marco histórico na história do ativismo negro paulistano. O Centro Cívico Palmares - 1926-1930 Relatos de antigos militantes informam que o Centro Cívico Palmares surgiu em São Paulo, no ano de 1926, por iniciativa de um sargento da Força Pública chamado Antônio Carlos. A idéia inicial era organizar uma biblioteca, espaço de leitura e também ponto de encontro, diferente dos já existentes: os clubes dançantes. O projeto inicial acabou se expandindo, originando um centro cívico que tinha no nome a referência a luta do quilombo de Palmares. Representação da liberdade, ainda em tempos coloniais. Prova de que os negros de outrora lograram algum tipo de êxito na luta desigual contra a metrópole portuguesa, servindo de significado positivo para os negros do presente. No Palmares ocorriam palestras, cursos e atividades culturais ligadas ao teatro e a poesia. Todas tinham como objetivo concorrer para a instrução e fortalecimento conscientização dos participantes no sentido de fazê-los sabedores de seus papéis de cidadãos. Fizeram parte da entidade Isaltino Veiga dos Santos, Arlindo Veiga dos Santos, Gervásio de Morais, Manoel Antônio dos Santos, Roque dos Santos e alguns outros. Militantes que, anos mais tarde, juntos a outros fundariam a Frente Negra Brasileira. 162 163
LEITE,1992:97 LEITE,1992:111
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Acredita-se que
"várias associações com tais características surgiram, mas o que marcou ‘Palmares’ foi a união de pessoas com um senso crítico bastante aguçado para as questões políticas. (...) Um grande salão da rua Lavapés, no bairro do Cambuci, em São Paulo, serviu para as inúmeras discussões.”164
Como resultado desse processo de tomada de consciência temos, liderado pelos militantes do Centro Cívico Palmares, o primeiro movimento contra a discriminação racial na cidade de São Paulo direcionado a uma instituição pública. No ano de 1926, o chefe de polícia, Dr. Bastos Cruz baixou uma portaria impedindo os negros de ingressarem na corporação. Os militantes palmarinos contataram um deputado estadual de nome Orlando de Almeida Prado, este intercedeu politicamente no parlamento fazendo com que a portaria deixasse de existir. Foi a partir desse desfecho positivo que a entidade além de cultural, passou a ter também um teor político.165 A memória dos militantes sobre a organização nos informa que ela existiu até o ano de 1929, tendo seu declínio ocorrido, depois que alguns militantes começaram a ver o Palmares em benefício próprio. O novo presidente, um inglês chamado Joe Foyes Gittens, além de tentar dirigir a organização de forma ditatorial, foi acusado de lhe desviar recursos o que provocou a desagregação do grupo.166 No entanto, no jornal O Clarim d' Alvorada encontramos uma notícia informando que em 1930 o Palmares ainda existia. Vejamos:
"Comunicado - Estiveram nas obras deste Centro, os srs. Isaltino Veiga dos Santos e Dr. Veiga dos Santos que amortizaram os seus débitos em atrazos, com esta veterana aggremiação, e, o Dr. Veiga dos Santos, contribuirá com dez mil réis mensaes, para auxiliar na 164
CUTI,1991:19 MOREIRA&LEITE,s/d:7 166 DOMINGUES,2004a:333 165
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construção das obras que vão bem adiantadas."167
Na verdade as atividades cessaram em 1929, mas a obra da sede continuava, o que justifica a notícia publicada acima. No final da década de 1920, com o fim do Palmares, os ativistas ficaram um tanto quanto decepcionados e desarticulados, pois faltava-lhes um espaço de encontro e debate de idéias. Os únicos existentes, ainda que sem a dimensão concreta do Palmares, eram as páginas dos jornais negros. Através deles os intelectuais podiam publicavam artigos, poesias e promover um debate de idéias, ainda que poucos tivessem a perspectiva da denúncia e conscientização. A insatisfação com o fechamento do Palmares fez com que os ativistas continuassem se reunindo. E o resultado desses encontros foi a idéia de fundarem uma entidade que pudesse, de certa maneira, continuar o trabalho do Palmares. A Frente egra Brasileira - 1931-1937 Como já ressaltamos, a idéia de fundação da Frente Negra Brasileira vinha sendo gestada há algum tempo. No entanto, é importante evidenciar que um importante fator para o surgimento da entidade em 1931 foi a reconfiguração política nacional, decorrente do momento "revolucionário de 30". A ascensão de Getúlio Vargas ao posto de comandante da nação em 3 de outubro do mesmo ano, reordenou a esfera de poder na capital e nos diversos estados. Em São Paulo, políticos tradicionais ligados à oligarquia cafeeira sentiram-se prejudicados. Estrategicamente Vargas iniciou sua política de "Estado de compromissos" e formulou as bases para o nacionaldesenvolvimentismo168 convencendo a seu favor setores que anteriormente se sentiram subordinados ou contemplados insatisfatoriamente. Ocorreu que, em 1929, cindindo um acordo de anos, a oligarquia paulista 167
O Clarim d' Alvorada 25/01/1930 p.2
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resolveu indicar novamente o candidato ao pleito de 1930: o político local Júlio Prestes, então presidente de São Paulo. A oligarquia mineira insatisfeita, rompeu com os paulistas e apoiou a candidatura de Getúlio Vargas, ex-ministro de Washington Luís, pela Aliança Liberal, uma "coligação de forças políticas e partidárias próVargas". Estiveram agrupados em torno de Vargas, os governos de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba. Este último indicando João Pessoa como o vice da chapa. Também estiveram com Vargas oposicionistas de outros estados, inclusive de São Paulo, representado pelo Partido Democrático e facções civis e militares, especialmente os insurretos tenentes de 1922 e 1924.169 Com todo este cenário, os intelectuais-militantes viram na ascensão de Vargas uma oportunidade singular. A agitação em torno da campanha presidencial em 1929 foi uma grande motivação política. Grupos se reuniam no Largo da Sé para discutir. A disputa entre Getúlio Vargas e Júlio Prestes mobilizou a população nacional em geral e a negra em particular, fazendo com que a militância se voltasse para esse assunto.170 A possibilidade de o candidato Getúlio Vargas ganhar a eleição era ínfima, uma vez que o pleito era conhecido pela corrupção e violência, sendo o voto de cabresto um dos mais recorrentes métodos para arregimentar eleitores em favor dos candidatos da situação. Contudo, o ideário da Aliança Liberal de justiça social e liberdade política com propostas como: voto secreto e fim das fraudes eleitorais, anistia aos perseguidos políticos e garantia dos direitos sociais como 8 horas de trabalho, férias, salário mínimo, regulamentação do trabalho das mulheres171, incentivou a população a interessar-se pelas eleições. Mas, a situação venceu e Vargas, juntamente com sua base de apoio, reagiu aos resultados. Ideologicamente, muitos dos 168
OLIVEIRA, 2002, 26-29. FERREIRA & PINTO, 2003:403-404 170 LEITE,1992:88-91 169
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militantes negros paulistanos estavam afinados com as propostas da Aliança Liberal. Postura que denotava um profundo descontentamento com a Primeira República, muito em função das idéias difundidas e políticas implementadas pelas oligarquias que dirigiam a política local. De certa forma, esperava-se algum tipo de transformação radical capaz de colocar outras forças políticas em evidência. Na visão de Leite, os militantes que já vinham amadurecendo uma consciência política, sentiram-se mais incentivados com o episódio de 1930: "O Getúlio perdeu as eleições e veio a Revolução de 30. Aí foi a fase que a gente pode dizer que parou o movimento. Desse modo é possível distinguir o Movimento Negro antes de 30 e depois de 30. (...) Estava sempre à frente o Isaltino Veiga dos Santos, o que mais agitava os grupos. Foi um sujeito que lutou muito. Sem ele não teria existido a Frente Negra Brasileira. Em 30, não se tinha idéia de nome, mas se estava discutindo de como o negro poderia participar. (...) E aqueles grupos de discussão foram sendo engrossados, sobretudo o grupo do Isaltino Veiga dos Santos, Francisco Costa, Marcos dos Santos, Roque dos Santos e outros. Foram praticamente os primeiros a agitar. Eu e outros companheiros do Clarim d’ Alvorada participamos também. Estávamos dentro do bolo"172 " A palavra frente estava muito em voga quando Isaltino Veiga dos Santos em companhia de outros negros, entre os quais Francisco Costa, reuniram-se em um escritório e resolveram fazer um trabalho de agitação e arregimentação no meio negro".173
A Frente Negra Brasileira (FNB) é considerada a organização negra mais complexa que existiu na primeira metade do século XX, pois agregou em seus quadros militantes com diferentes origens sociais e formações políticas174, arregimentou centenas de sócios que em análises mais otimistas foram milhares175, prestou inúmeros
171
PANDOLFI,2003:16 LEITE,1992:91 173 MOREIRA&LEITE,s/d:16 174 MOREIRA&LEITE, s/d:17 175 PINTO, 1993; ANDREWS, 1998; HANCHARD, 2001 & MAUES,1991:99 corroboram dessa 172
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serviços aos seus filiados através dos departamentos e teve amplitude nacional, através de um mecanismo de filiação, pelo qual, entidades negras do interior de São Paulo e mesmo de outros estados, se tornavam frentenegrinas.176 As primeiras reuniões do grupo fundador da entidade aconteceram num salão alugado, próximo a Igreja da Sé. Lá, elaboraram o estatuto e escolheram o nome da organização: Frente Negra Brasileira. O estatuto foi questionado por Correia Leite esse episódio será analisado mais à frente - que alegava ingerência de Arlindo Veiga dos Santos, pois o professor havia escrito tudo sozinho. Entretanto, suas reivindicações não foram atendidas, provocando o primeiro rompimento. Devido a isso, o grupo do Clarim d' Alvorada deixara a nascente entidade. Após, neutralizada a influência de Leite, a organização foi oficialmente fundada, num evento aberto, no dia 16 de setembro de 1931, no salão das Classes Laboriosas, situado à rua do Carmo, nº 25. A mesa que redigiu os trabalhos estava constituída por
“Presidente: Dr. Arlindo Veiga dos Santos; Secretário: Isaltino Veiga dos Santos; Orador: Alberto Orlando e Membros do Conselho: Francisco Costa dos Santos, Davi Soares, Horácio Arruda, Vitor de Souza, João Francisco de Araújo, Alfredo Eugênio da Silva, Isaltino B. Veiga dos Santos, Alberto Orlando, Dr.
importância da Frente Negra Brasileira. A última citou em seu trabalho o número de seis mil frentenegrinos em São Paulo e dois mil em Santos. Se levarmos em conta as entidades do interior de São Paulo e dos outros estados em existiram filiais da Frente Negra Brasileira, esse contingente pode ter sido bem maior. Lucrécio informou que ultrapassaram da marca de 20 mil o número de sócios, QUILOMBHOJE,1998. Já MOURA, 2004:49 afirmou que a Frente Negra Brasileira teve cerca de setenta mil filiados. Números estes que consideramos superestimados, pois o autor se baseou no jornal da organização para fazer a afirmativa, ou seja, não confrontou os dados do periódico com outros documentos. 176 Cabia ao presidente geral nomear representantes nas cidades do interior e estados. Alguns saíram da capital paulista com a missão de fundar delegações nos arredores. Outros já eram lideranças locais e apenas se filiaram. Contabilizamos a partir do A Voz da Raça, a existência de delegações frentenegrinas em São Paulo: Capital, Jundiaí, Sorocaba, Coroado, Biriguy, Amparo, Campinas, Santos, São Carlos, Rincão, Brotas, Capivari, Itú, Tietê, Itapetininga, Mocóca, Ipaussú, Porto Feliz; em Minas Gerais: Passos, Santana, Manhumirim, Manhuassú, Carangola, Guaxupé, Carmo do Rio Claro, Cabo Verde, São João Del Rei, São Sebastião do Paraíso, São José do Rio Pardo, Muzambinho; no Espírito Santo: Veado, Alegre, Cachoeiro do Itapemirim e Vitória; Bahia: Salvador; Rio Grande do Sul: Pelotas e Rio de Janeiro: Capital.
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Arlindo Veiga dos Santos e Oscar de Barros Leite"177
Ainda que a documentação nos informe da atuação bastante produtiva de Isaltino Veiga dos Santos, no movimento social negro desde antes da existência do Centro Cívico Palmares. E, fale também, de um militante histórico mais idoso, chamado Francisco Costa Santos, o nome de Arlindo Veiga dos Santos foi o escolhido para presidir a FNB. Supomos que a atitude de escolher Arlindo, em detrimento do irmão ou qualquer outro militante, estava imbuída de uma tática: dar a presidência da entidade à uma liderança que tivesse prestígio e transmitisse a imagem do sucesso, tanto entre os negros quanto para a sociedade paulista em geral. Daí a escolha de Arlindo que, na época, já tinha curso superior e era reconhecido tanto entre os negros quanto entre os brancos por suas idéias monarquistas e projeção intelectual dentro da Igreja católica e militância no movimento patrianovista. A FNB, enquanto organização que se pretendia popular e política, procurou na sua prática cotidiana afastar-se da linguagem academicista utilizada na imprensa negra e aproximar-se da massa negra, com atividades práticas e soluções possíveis para a questão racial.178 Sob a liderança do presidente geral, os associados contribuíam com uma quantia fixa, recolhida por cobradores domiciliares comissionados chamados "cabos". A partir dessa mensalidade, os associados passavam a ter benefícios como banco de empregos, escola de alfabetização, de artes e de ofícios, assistência médicoodontológica, serviços de advocacia, lazer e esporte.179
177
RAMOS, 1971:194 OLIVEIRA,2002:46 179 PINTO, 1996:51 178
85
(Almoço da FNB. Ao fundo, à esquerda, de óculos e terno preto está Arlindo Veiga dos Santos). Um estudo de 1996180, mostrou a preocupação dos primeiros dirigentes da organização, em especial Arlindo Veiga dos Santos, em erigir uma identidade própria para a organização e assim atrair a adesão da população negra com a criação de um conjunto de símbolos diacríticos: bandeira, hino, uniforme e documento de identidade.181 Trata-se das mesmas práticas de outras organizações existentes na época, evidenciando assim, a aproximação entre a estrutura político-organizativa da Frente Negra Brasileira e de outros movimentos do qual Arlindo e outros frentenegrinos182 foram filiados ou simpatizantes, como o patrianovismo e integralismo, respectivamente. Além de Arlindo Veiga dos Santos, Isaltino Veiga dos Santos e Salatiel Campos, que era redator no Correio Paulistano atuaram nos quadros da Frente Negra Brasileira e da Ação Imperial Patrianovista Brasileira. Já em relação ao integralismo, o prontuário 70236 DEOPS/SP, referente a Frente Negra de Tietê ou 180
A análise que apresentamos aqui, se baseia no artigo intitulado Frente egra Brasileira, publicado na revista Cultura Vozes, no. 4, jul./ago. 1996. O trabalho original intitula-se "O movimento negro em São Paulo: luta e identidade" trata-se de sua tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo. 181 PINTO,1996:54
86
Sociedade Frente Negra de Tietê é bastante esclarecedor. Segundo consta no relatório do investigador Dr. João Agostinho, datado de 1o de setembro de 1937:
Em Tietê, Olympio Moreira da Silva, 1º sargento reformado do 41º Regimento de Artilharia Montada, com sede em Itu, pertencia a uma instância regional integralista. O mesmo tinha ido à cidade investigar o chefe integralista local que não cumpria suas funções "a contento". O investigador conclui afirmando que "o sargento de côr preta, muito inteligente, e por esta razão tem procurado se infiltrar no seio da raça negra local, por intermédio da Frente Negra, sociedade esta de cultura e recreativa dos homens pretos; e segundo disseme tem obtido muitas adesões".183
Ou seja, integralistas travaram diálogo ou tentaram arregimentar associados ligados às organizações negras.Até mesmo o lema da Frente Negra Brasileira evidencia a incorporação de alguns propósitos políticos do patrianovismo, ou melhor, a total influência do presidente. Arlindo Veiga dos Santos aproveitou os termos Deus, Pátria, e Família, utilizados tanto pelos integralistas como pelos patrinovistas, incorporou a palavra Raça e compôs o lema da Frente Negra Brasileira: DEUS, PÁTRIA, RAÇA e FAMÍLIA. Em 1932, os frentenegrinos fixaram-se numa sede mais ampla, alugada que ficava na Rua da Liberdade, número 193. Em 1933, fundaram um jornal próprio, o A Voz da Raça que tinha distribuição nacional e acabou ocupando o lugar do Clarim d' Alvorada que deixara de circular em 1932. O A Voz da Raça cumpria todas as funções destinadas à imprensa negra da qual tratamos anteriormente. Através dele, as idéias dos militantes que assumiram o corpo diretivo da organização eram ventiladas. Arlindo Veiga dos Santos freqüentou assiduamente as páginas do periódico com
182 183
Malatian,2001:55 DEOPS/SP Inventário 70236, Frente Negra do Tietê.
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artigos que versavam sobre situação política local, nacional e a questão racial. Em julho de 1932, eclodiu a Revolução Constitucionalista. A elite política paulista até então, aliada de Getúlio desde meados de 1931, apresentava descontentamento com a política do dirigente nacional para com o estado. A principal insatisfação era com a nomeação de interventores que não correspondiam a seus anseios políticos. Todos os interventores indicados até julho de 1932, não conseguiram governar por muito tempo. Pressões foram feitas e as falhas do governo central foram colocadas em evidência. Como mecanismo de desestabilização, os paulistas reivindicavam eleições, descentralização política e a realização da Assembléia Constituinte. Numa tentativa de acalmar os ânimos, Vargas, em março de 1932 marcou eleições para o ano seguinte, promulgou o código eleitoral e indicou o grupo que iria elaborar o anteprojeto da constituição. Contudo, suas medidas não surtiram efeito, pois meses depois eclodiu o movimento. A cúpula da Frente Negra Brasileira posicionou-se favorável a Getúlio. E essa atitude requer algumas explicações. Arlindo Veiga dos Santos era um partidário dos regimes autoritários, logo entendia que os problemas do país deveriam der resolvidos por um dirigente de pulsos fortes, que usasse mais a força que o consenso. Também, meses antes, mais precisamente em fevereiro de 1932, surgiu a Frente Única Paulista, resultado da união da oligarquia do Partido Republicano Paulista com a burguesia industrial do Partido Democrático com o intuito de enfrentar o governo central. Entretanto, pelo menos na capital, os negros não puderam se filiar, provocando uma insatisfação ainda maior entre os militantes mais inseridos e conseqüentemente uma maior aproximação com o dirigente federal. A Frente Negra não organizou milícia para lutar contra os paulistas, bem como não impediu que seus filiados compusessem os batalhões que se formaram no estado. 88
Desse modo se deu a segunda dissidência: Joaquim Guaraná de Santana, conhecido advogado da organização, que meses antes havia defendido Arlindo e Isaltino no episódio do empastelamento do Clarim d' Alvorada, fundou a Legião Negra. Um batalhão de legionários formado só de negros, conhecido como os Pérolas egras, que reuniu cerca de 3500 combatentes de várias regiões do estado.184 No final, os frentenegrinos saíram favorecidos. Já que as forças federais foram vitoriosas. Havia boatos de que Arlindo Veiga dos Santos seria nomeado Secretário de Justiça ou de Segurança Pública.185 O que não ocorreu. Não obstante, houve um estreitamento das relações políticas com ass autoridades constituídas. É significante o número de correspondências publicadas no A Voz da Raça, trocadas entre autoridades policiais, representantes de órgãos trabalhistas, educacionais e mesmo do executivo da capital, São Paulo e mesmo do estado.
Também encontramos nos arquivos do DEOPS
paulista, correspondências que comprovam a estreita relação existente entre as lideranças fretenegrinas e as autoridades locais. Em 1933, Arlindo se candidatou ao cargo de deputado constituinte. Fizeram campanha por todo o país, mas devido à escassez de recursos priorizaram São Paulo. Não obtiveram êxito, porém se tratou de um exercício de aprendizagem e um passo significativo para entrar no mundo político-partidário. No ano seguinte ocorreu uma reconfiguração na entidade e os irmãos Veiga dos Santos perderam força política. Escolheram novos dirigentes: Justiniano da Costa tornou-se presidente e Francisco Lucrécio primeiro secretário. Justiniano da Costa pertencia a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, foi o 1º 184
DOMINGUES,2003:233 O excelente artigo do historiador Petrônio Domingues, intitulado Os "Pérolas egras": a participação do negro na Revolução Constitucionalista de 1932, retira do ostracismo da historiografia da Revolução Constitucionalista a história da participação do segmento negro. O autor denuncia a ínfima importância dada, tanto pelos historiadores do conflito quanto para os memorialistas à atuação da Legião negra. Amplamente coberta pela imprensa paulista e lembrada ao longo dos anos na memória dos paulistas.
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tesoureiro da FNB e era funcionário público. Lucrécio migrou de Campinas para São Paulo em 1931, com o intuito de trabalhar e cursar a Escola Livre de Odontologia. Foi morar no Bexiga com os tios que participavam da Frente Negra Brasileira. Logo começou a freqüentar ativamente a organização tornando-se uma liderança expressiva.186 Como podemos perceber, novamente as lideranças são escolhidas entre aqueles que poderiam atribuir prestígio à organização: um funcionário público e um estudante universitário. Os dois por suas trajetórias pessoais funcionavam simbolicamente como exemplos do sucesso alcançado através do trabalho e educação, realidade que a entidade esforçava em representar. Contudo, Arlindo não perdera totalmente seu prestígio e força política, pois seus artigos tinham lugar cativo na primeira página do A Voz da Raça, era sempre convidado para as visitas institucionais às
delegações do interior e ainda continuava respondendo pelo Departamento
Intelectual. O mesmo não ocorreu com Isaltino Veiga dos Santos, desligado da secretaria geral da FNB, bem como do jornal A Voz da Raça por
imposição de quasi totalidade dos socios e de seus diretores, por ter se afastado das diretrizes da F.N.B., que então só tinha este ideal: Defender o Brasil, Instruir os Brasileiros Negros e desenvolver uma grande seção Nacionalista, combatendo ideologias extranhas a vida brasileira.187
As informações acima foram apuradas pelo serviço de investigação do DEOPS, provavelmente obtidas entre os próprios associados da FNB. Para Leite, o desligamento de Isaltino deu-se após seu retorno do Rio de Janeiro. Cidade para a qual o militante viajara, após ter supostamente, marcado uma audiência com o presidente
185 186
LEITE,1992:104 QUILOMBHOJE,1998:36 depoimento de Francisco Lucrécio.
187
Inventário DEOPS/SP, documento de 7 de março de 1938. Relatório do investigador no. 210 Prontuário 1538 da FNB.
90
Getúlio Vargas na qual tratariam de algumas reivindicações dos negros paulistanos. Entretanto, o feito não trouxera notícias efetivamente satisfatórias, portanto o citado "afastamento das diretrizes" ocorreu após este episódio. No entendimento de Leite, Isaltino era aventureiro e volúvel, pois estava na Frente Negra com a "idéia de conseguir qualquer coisa para ele". Ao contrário do irmão, que apesar de suas idéias monarquistas de direita era um "sujeito de moral e coerência".188 Com o afastamento da FNB, Isaltino meses depois conseguiu um emprego no jornal Platéia de orientação comunista e opositor de Vargas. Em decorrência disso, em novembro de 1935, foi preso pela Delegacia de Ordem Política, sob acusação de crime político por participar da Frente Popular Pela Liberdade, colaborar no jornal Platéia e ser mentor da Federação dos Homens de Cor.189 Isaltino teve a liberdade restituída em dezembro de 1936. Ocorre que a partir de 1935, o exercício da democracia se tornava cada vez mais difícil. Vargas iniciava uma campanha de retaliação aos grupos políticos que divergiam de sua gestão. Inúmeras foram as prisões políticas. O estadista que havia realizado a Assembléia Constituinte por pressão, passou a tomar atitudes cada vez mais arbitrárias, principalmente após a deflagração do que se considerou na época a “Intentona Comunista”. Contudo, a Frente Negra Brasileira não sofreu maiores ameaças. Posicionada favoravelmente ao governo implantado em 1930, só colheu benesses dessa opção política. Tanto que no aniversário de cinco anos da organização,
188
LEITE,1992:116 A Frente Popular pela Liberdade surgiu após a proibição da Aliança Nacional Libertadora. Era liderada por Caio Prado Jr. que junto a outros militantes, incluindo Isaltino, fizeram o Manifesto que foi apreendido pela polícia. Todos foram presos pelo DEOPS/SP. A Federação Nacional dos Negros do Brasil consta no prontuário 2018, na ficha de atividades político-sociais de Isaltino Veiga dos Santos, como uma organização comunista fundada e dirigida pelo próprio. Na listagem dos militantes dessa tal Federação está o nome de José Correia Leite como um dos membros. No prontuário 1538, da Frente Negra Brasileira, um relatório do investigador de polícia também faz alusão a Federação. No entanto, não conseguimos qualquer outra informação sobre a tal Federação. Muito menos que relacionasse Leite aos seus quadros. 189
91
comemorado entre os dias 19 e 20 setembro de 1936, estiveram presentes, além das delegações do interior de São Paulo e de outros estados da federação, importantes autoridades locais. O jornal A Voz da Raça registrou a presença do representante do governo estadual, além de representantes do clero e da grande imprensa.190 Um outro exemplo de bom relacionamento entre as lideranças frentenegrinas e o governo de São Paulo foi a nomeação da professora Aracy Ribeiro de Oliveira, adjunta num grupo escolar local, para reger turma na sede da Frente Negra Brasileira, em 24 de agosto de 1937.191 Em 1936, os militantes registraram no Tribunal Eleitoral da cidade de São Paulo, o Partido da Frente egra Brasileira, reconhecido nacionalmente em 1937.192 Os ativistas argumentavam que o negro "constituía considerável força nacional" sendo a identidade de frentenegrinos mais convincente e mobilizadora que a forjada nos partidos como PRP e PC. Em agosto de 1937, a palavra de ordem era "procurar nas urnas, o que nunca achamos no patriotismo dos governos".193 Entretanto, em novembro de 1937, nascia a ditadura do Estado Novo. Uma das primeiras atitudes do governo foi proibir existência das organizações de caráter político. Os partidos políticos foram obrigados a deixarem de atuar, inclusive o recém fundado partido da Frente Negra Brasileira. A Frente Negra Brasileira ainda procurou se reorganizar com fins puramente culturais. Para isso, criaram uma outra organização denominada União Negra Brasileira, "uma associação de fundo Caritativo-Cultural-Patriótico" composta por
190
A Voz da Raça, out/1936, no. 58, p.1 A Voz da Raça, set/1937, ano IV, no.69, p.4. Conforme depoimento de Francisco Lucrécio “a escola da Frente Negra era formada por quatro classes, com professoras nomeadas pelo governo”. QUILOMBHOJE,1998:42 192 QUILOMBHOJE, 1998:13 193 A Voz da Raça, "O Momento Político", ago/1937, ano IV, no.68, p 4 191
92
"brasileiros, amigos da ordem e elevadamente patriotas".194 Porém, segundo depoimentos
de diversos militantes não surtiu o mesmo efeito. A União Negra
Brasileira ainda organizou o cinqüentenário da Abolição juntamente com o pessoal do Clube Negro de Cultura Social e alguns intelectuais ligados à Secretaria de Cultura em São Paulo. Depois dessa data a entidade deixou de atuar de fato. Retornando apenas em 1945, com a volta da democracia. Vimos que as lideranças políticas da Frente Negra Brasileira organizaram uma associação de auxílio mútuo, mas com pretensões voltadas à participação nas estruturas formais de poder, quase sempre pela via conservadora. Daí a aproximação ideológica com o Estado brasileiro que durante os anos 1930 tendeu ao autoritarismo de direita, com a Ação Imperial Patrinovista Brasileira e Ação Integralista Brasileira, ainda que intelectuais com posicionamentos mais à esquerda não tivessem travado contato e freqüentado os eventos da entidade. A prestação de inúmeros serviços à comunidade negra, destituída de direitos básicos gerou uma filiação considerável nos quadros da organização, tanto em São Paulo como em outros estados, proporcionando prestígio e interesse de setores externos ao movimento negro. Razão para motivar as lideranças frentenegrinas em registrar a entidade enquanto um partido político nacional no ano de 1936, o que não logrou resultados efetivos, pois logo era instaurada a ditadura do Estado Novo. O Clube egro de Cultura Social O Clube Negro de Cultura Social (CNCS) ou O Cultura Social como era mais conhecido no meio negro, foi fundado em São Paulo no dia 1º de julho de 1932. Neste mesmo mês, se iniciou a Revolução Constitucional que mobilizou inúmeras forças
194
Inventário DEOPS/SP, Isaltino Veiga dos Santos, prontuário 2018
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políticas, inclusive setores do movimento negro paulistano. A militância negra bastante diversa, naquele momento, não tomou uma decisão única: alguns ficaram a favor do governo central, outros do lado dos paulistas e ainda outros numa posição neutra como foi o caso de Correia Leite e a maioria do grupo que vinha da formação adquirida no Clarim d' Alvorada.195 Por isso, o Clube Negro de Cultura Social ficou quase fechado durante os três meses que durou a Constitucional, voltando suas atividades normais apenas no mês de outubro. O CNCS nasceu da iniciativa de José de Assis Barbosa, o Borba196 e teve de pronto três objetivos: retomar a militância com uma outra roupagem e estratégia de ação com atividades voltadas ao esporte e a cultura como a encenação de peças teatrais, organização de saraus, bailes e competições esportivas; dar uma resposta a altura aos irmãos Veiga dos Santos que passaram a denegar Correia Leite e seus companheiros chamando-os de "coveiros e judas da raça"197; além de viabilizar uma moradia para Correia Leite e sua família. O Clube existiu até o ano de 1938, desempenhando funções ligadas ao esporte e a cultura em geral, como bailes, saraus, teatro, campeonatos esportivos e veiculação de notícias. Estas atividades estavam distribuídas em três departamentos: o cultural, o esportivo e o intelectual. O departamento intelectual fez circular durante a existência do CNCS a revista Cultura (com apenas cinco publicações) e o jornal Clarim. No Clube Negro de Cultura Social o postulado da democracia imperava, com a realização de eleições periódicas onde se escolhia o corpo dirigente que tinha como liderança máxima o cargo de presidente. Correia Leite foi o primeiro presidente da 195
No período da Revolução Constitucional a Frente Negra Brasileira que era oficialista ficou fechada. José de Assis Barbosa era muito popular no meio negro e sua militância remontava à época do Centro Cívico Palmares. Esteve com José Correia Leite em outros projetos do Movimento Negro. Além do Borba, participaram do CNCS Osvaldo Santiago, Raul Joviano do Amaral, Benedito C. Toledo, Sebastião Gentil de Castro, Manoel Antônio dos Santos, Benedito Vaz Costa, Átila J. Gonçalves, Luís Gonzaga Braga, Antunes Cunha, entre outros.
196
94
entidade, depois em 1934 foi eleito dirigente novamente, concorrendo pela Chapa Oficial com a Ala-moça.198 A composição de uma chapa para disputar com o grupo de Correia Leite denota, de fato, a base democrática em que se sustentava a organização. Entretanto, seria interessante atentarmos para a denominação da chapa concorrente: Ala-moça. A Ala-moça supostamente, deve ter agregado na sua agenda aqueles associados ligados à nova geração que freqüentava o Cultura Social, muito interessada, salvo alguns sujeitos, na dimensão cultural, decerto festiva do Clube. Muitos do grupo dos moços, mais tarde romperiam com o Clube para liderar outras iniciativas, condizentes com suas expectativas.199 O ativismo que existiu no Clube Negro de Cultura Social foi se diferenciando com o passar do tempo daquele liderado por Leite no Clarim d' Alvorada. O contexto político apresentado pela sociedade paulistana pós Revolução Constitucionalista, às polarizações políticas entre os grupos do Movimento Negro e o tipo de público que o CNCS atraiu levaram a estas mudanças de atuação. A maioria dos associados era formada de jovens que tinham seus pais nos quadros da Frente Negra Brasileira, mas que não se identificavam com o programa da organização que era muito politizado. De um modo geral, podemos afirmar que as atividades realizadas pelo "Cultura Social" estiveram voltadas à sedimentação de uma identidade negra entre a juventude paulistana, funcionando como um mecanismo de reconhecimento social frente a comunidade negra e a sociedade paulistana em geral. Daí associar as competições esportivas (o forte da entidade) com datas comemorativas ligadas à história do negro, como a prova anual de pedentrianismo200, nomeada de "13 de Maio", realizada no dia
197
LEITE,1992:102-103 Revista Cultura. São Paulo, janeiro de 1934 apud, DOMINGUES, 2004b:8 199 LEITE,1992:113,128 200 Termo em desuso atualmente, mas utilizado no período para designar uma espécie de esporte que consiste em grandes marchas a pé realizadas no espaço da cidade. 198
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comemorativo da abolição da escravidão. A competição saía do Largo do Arouche, ao pé da estátua de Luiz Gama, fazia um percurso de seis quilômetros e meio pelas principais ruas da cidade e retornava ao seu ponto de partida. Da prova de pedentrianismo, que era moda na época, participariam diversas organizações negras, inclusive a Frente Negra Brasileira.201 Os militantes do Cultura Social com esses eventos difundia entre os jovens o interesse pelas biografias dos abolicionistas negros tidos como heróis pela militância mais antiga, ou seja, não deixava que as gerações mais jovens os esquecessem. Essas atividades também ajudavam a erigir uma identidade positivada entre eles, contrariando as representações mais comuns que associavam o grupo racial negro as figuras do maltrapilho ou pedinte espalhados pela cidade. Associar o esportista, saudável e competitivo com a data do 13 de Maio significava mostrar um outro lugar para o negro na sociedade, longe do senso comum do incapaz e indolente, como afirmou Leite anos depois: "o esporte sempre leva a pensar em estudar, em melhorar de vida. (...) Muitos moços me convenceram que o esporte era também uma parte da cultura, para o jovem sair do marasmo, de certos pensamentos de bailes, coisas inertes, sem conseqüências".202 Uma análise recente supõe que "a prática desportiva ou cultural desta entidade não passava de uma tática de conscientização e mobilização racial no bojo do projeto político do movimento social dos negros na época, cujos resultados foram satisfatórios".203 A prova disso foi o status alcançado pelo CNCS na cidade de São Paulo sendo a única entidade a rivalizar com a Frente Negra Brasileira na arregimentação de associados.
201
A Voz da Raça, maio de 1937, ano IV, no.65 LEITE,1992:113 203 DOMINGUES,2004b:9 202
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Entretanto, as lideranças negras que se utilizaram dessas práticas sofreram outro tipo de crítica. A de que o chamado culturalismo não conseguiu fazê-los transpor da cultura para a política, pois essa estratégia não foi capaz de mobilizar a coletividade para uma luta de unidade e rompimento com a situação de subordinação racial enfrentada pelo grupo negro no pós-abolição.204 Ainda que essa discussão tenha suscitado debates205, percebemos, pelo menos no caso do Cultura Social e mesmo da Frente Negra, que a tática da cultura de entretenimento e do esporte, de fato, foi uma maneira de atrair mais participantes para as organizações. Contudo, nem todos tornaram-se engajados politicamente nas ações das entidades, até porque esse não parecia ser o objetivo final da maioria das lideranças. Havia um grupo, o que chamamos intelectuais-militantes que assumiram a vanguarda nessas organizações. Cabia a eles formular, organizar e falar pela coletividade. Eram eles que mantinham as pautas dos jornais negros e organizavam as celebrações consideradas significativas e de interesse da comunidade negra. Tais práticas, pensadas e articuladas por esses ativistas, contribuíram sim à formação de uma identidade negra entre aqueles que se associavam, ou seja, os que usufruíam os "serviços", mas não significaram necessariamente, o nascimento de sujeitos políticos preparados para romper com o status quo. O objetivo maior era promover uma efetiva integração na sociedade paulistana. Para muitos, participar dessas entidades simbolizava estar entre os ditos iguais. Iam a procura de espaços de lazer que propiciassem prazer, longe dos olhares de interdição encontrados nos espaços organizados e liderados pelos brancos. Entretanto, essa busca pelo lazer strictu senso no CNCS gerou algumas dificuldades para o grupo de Leite, pois segundo seu relato tinha uma concepção distinta do papel do intelectual204
HANCHARD,1996:227-230
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militante:
o esforço para ser criada uma ideologia a fim de que o negro pudesse se sentir orientado, não por uma pessoa, mas por idéias, tudo aquilo dentro de um clube não era possível. Não sei por que cargas d'água as pessoas que eram conhecidas como militantes não deram tanta atenção para o Clube egro de Cultura Social, que acabou sendo um chamariz para a mocidade. (...) Então eu comecei a ter dificuldades, porque eu tinha de cuidar de esporte. Eu virei um esportista.206
Antigos militantes do Clarim d' Alvorada, aqueles que criticavam o comportamento festivo do negro não participaram efetivamente do Clube Negro de Cultura Social. Nele esteve uma nova geração de negros, que iniciava a vida associativa naqueles anos. Anos estes, em que movimentos de cunho estritamente político, como os liderados pelo pessoal do jornal de Leite, não eram vistos com bons olhos. Ainda que o ativismo negro parecesse não dispensar tanta preocupação, se compararmos o universo da militância negra existente em São Paulo com o número de investigados listados pela polícia política. Era uma juventude que não tinha experienciado o que Leite e seu grupo havia vivido na década anterior. Tudo isso significava um desafio, mas também uma certa decepção para o militante. O desafio era promover o diálogo entre os grupos geracionais. Aprender com o novo e também ensiná-lo em tempos difíceis. A decepção passava pela questão da adaptação e do reconhecimento que muitas das vezes não correspondia ao sentimento que Leite tinha do quanto havia sido importante o trabalho realizado pelo grupo do Clarim d' Alvorada. Algumas lembranças retratam estes sentimentos:
205 206
Cf. BAIRROS,1996:173-186. LEITE,1992:110
98
O Clube continuou com tudo que era do Clarim d' Alvorada (móveis, escrivaninha, máquina de escrever, biblioteca), inclusive a nossa tipografia. Quando nós fundamos o clube, a idéia era fazer com que ele continuasse a publicar o Clarim d' Alvorada. Mas, diante da avalanche de moços com aquelas outras idéias, ficou difícil incentivar os membros do antigo O Clarim d’ Alvorada para voltarem naquela mesma linha de atuação, de luta, de pregação de idéias.207
Leite, como um intelectual ciente de seu papel conscientizador, herdado da experiência com o Clarim d' Alvorada, não conseguia sintonia dentro da entidade. O episódio em que esse se afasta, devido alguns burburinhos relativos a uma possível doença contagiosa (tuberculose) e de que estaria se aproveitando do dinheiro da organização, num momento em que ficara desempregado, são lembrados pelo militante com decepção devido a falta de reconhecimento que parece não ter havido entre os que estavam no CNCS. No entanto, o fato de Correia Leite até aquele momento, não ter uma profissão e nem mesmo um emprego estável, colaborava para que se sentisse instável
emocionalmente,
influenciando
sobremaneira,
suas
relações
tanto
particulares208 como de grupo, devido o aparecimento de dúvidas sobre a sua honestidade como as relatadas acima. Um outro exemplo de decepção e mágoa pela falta de reconhecimento pelo pessoal do CNCS está na seguinte passagem:
"Nessa época eu fiquei sabendo que alguém foi comprar carne num açougue da Rua Manuel Dutra e a carne foi embrulhada num jornal. Esse jornal era uma página do Chicago Defender. Nós, que tivemos tanta alegria na redação do Clarim d' Alvorada de ter recebido o exemplar desse grande semanário americano, não podíamos imaginar aquilo, um fim tão melancólico para o nosso acervo".209
Mas o momento era outro. Uma nova geração foi atraída para o Cultura Social, 207
LEITE,1992:111 Apenas na década de 1940, Leite conseguiu um emprego estável na prefeitura da cidade de São Paulo. Casa própria só foi ter nos anos 1950. 208
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não pela trajetória de conscientização voltada ao negro que orientara as práticas e representações dos militantes do Clarim d' Alvorada, mas pelas propostas de lazer e esporte que a nova organização apresentava. Ou seja, suponhamos que os novos militantes do CNCS não tinham dimensão do que havia acontecido antes e, portanto, não dessem o devido reconhecimento aos pioneiros do ativismo negro. Esse é um dos problemas que podem ocorrer no interior das organizações que têm em seus quadros mais de uma geração. Muitas das vezes, os novos quadros não são formados no interior do grupo mais antigo, contribuindo para que estes mais recentes minimizem os feitos dos antigos. O não estabelecimento de uma identidade de pertencimento com indivíduos que não partilharam as experiências passadas, pautadas por erros e acertos, perdas e vitórias, acabou provocando um distanciamento ideológico e uma falta de solidariedade por parte dos novos, ocorrendo, nesses casos, uma ausência de diálogo e consequentemente um certo descaso pela história anterior. Fora isso, desde 1932, a militância política vinha sendo perseguida pela polícia política em São Paulo. Mesmo que os militantes não tenham se posicionado nem do lado de São Paulo nem do governo central, optando por cessar as atividades do Clube que tinham poucos dias de existência a deflagração do Estado ovo também proibiu a existência do CNCS. Os militantes que já estavam desarticulados fecharam a entidade. Os depoimentos, a literatura sobre o movimento e as análises históricas do período, fazem-nos concluir que diferentes fatores explicam o refluxo do ativismo político negro. A ditadura imposta pelo Estado Novo figura como um dos fatores mais importantes210, mas a falta de um projeto e perspectiva única entre os próprios militantes, além da crença difundida na maioria da população de que, ainda que num período exceção política, as condições de vida dos trabalhadores nacionais caminhava 209
LEITE,1992:113
100
para uma possível melhoria se comparada às décadas anteriores, são pertinentes.211 Depoimento colhido décadas depois reafirmam as hipóteses acima: "o governo do Getúlio para o negro foi bom, porque ele atendia a todos os nossos pedidos, às nossas reivindicações."212 Para além do aparato propagandístico articulado a uma eficiente repressão e censura, o Estado ovo valeu-se também de uma relação direta com o povo. Os pedidos dos trabalhadores ou populares, seja em forma de audiência marcada seja de cartas, se não eram atendidos, pelo menos eram ouvidos pelo estadista. Esses se valeram desse recurso inúmeras vezes. Desconstruindo, assim, a retórica da "manipulação das massas" e percebendo a capacidade do povo fazer escolhas que lhe trouxesse benesses, aproximamos-nos de uma explicação mais coerente que nos faz entender os comportamentos dos trabalhadores e populares, capazes de perceber "naquela circunstância política, algum reconhecimento, obtendo, então, certos ganhos, não exatamente os ideais mas os possíveis".213 A breve história das organizações que por ora apresentamos, nos fez compreender que foi exercendo uma escrita e uma prática que visava formar, esclarecer e argumentar para e em prol do grupo negro, possível através da atividade jornalística que Veiga dos Santos e Correia Leite tornaram-se referência no meio negro letrado e entre uma emergente intelectualidade branca. Vimos que entre o final dos anos 1920 e início da década seguinte, com as promessas de mudanças que vieram no bojo da "revolução" e os desdobramentos políticos, tanto progressistas como reacionários que decorreram desse contexto, o grupo dos intelectuais-militantes 210
ANDREWS,1991 Ver LEITE,1992 e GOMES,1995 respectivamente. 212 QUILOMBHOJE, 1998:55 depoimento de Francisco Lucrécio. 213 REIS,2001:56 interpretando as cartas de populares enviadas a Vargas, chegou a seguinte conclusão: homens e mulheres que compunham as classes populares no período do Estado Novo, interpretaram-no com um código cultural próprio, buscando vantagens e direitos. Contrariando, portanto, as análises que 211
101
negros, composto além dos militantes aqui citados, também por Jayme de Aguiar, Lino Guedes, Argentino Celso Wanderley, Vicente Ferreira, Isaltino Veiga dos Santos, Francisco Santos, Guaraná de Santana, Raul Joviano do Amaral, Justiniano Costa, Francisco Lucrécio dentre outros, procurou articular e potencializar suas ações. Estes fizeram com que essas ganhassem um caráter de militância política mais eficaz dialogando com o Estado, gestor das políticas públicas e com a população negra, setor que necessitava de tais direitos. Sendo essas atribuições tarefas típicas dos intelectuais nas formações sociais nas quais tais sujeitos posicionam-se como vanguarda.
2.3 Atuando em outros movimentos... Deixando por ora, a esfera da mobilização política negra e relacionando os dois personagens com outros movimentos político-sociais que se organizaram durante as décadas de 1920 e 1930, tanto José Correia Leite como, particularmente Arlindo Veiga dos Santos dialogaram ou estiveram comprometidos visceralmente com outras iniciativas de mobilização. Arlindo Veiga dos Santos fundou e foi uma das principais lideranças da Ação Imperial Patrianovista Brasileira (AIPB) atuante entre 1932 a 1972. Fora isso, foi militante católico durante toda sua vida, além de ter sido, nos seus primeiros anos de existência, simpatizante da Ação Integralista Brasileira (AIB). José Correia Leite teve participação em movimentos políticos não ligados à questão racial de forma esporádica, comparecendo as reuniões de sindicatos operários e àquelas organizadas por lideranças comunistas, doutrina política com o qual o militante declarou simpatia. Mas, se estamos analisando práticas políticas e representações sociais dessas lideranças no interior das organizações negras em que atuaram, que importância teria
somente viam resignação e passividade no grupo.
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inserirmos em nossa análise, um breve histórico das organizações políticas com as quais estes dois sujeitos tiveram envolvimento, seja como efetivos ativistas, simples simpatizantes ou freqüentadores esporádicos? Constatamos que especialmente, Arlindo Veiga dos Santos teve sua prática e representações produzidas no interior do movimento negro, permeadas por outras vinculações político-culturais. Arlindo patrianovista, monarquista e nacionalista de extrema direita, levou a Frente Negra Brasileira a essa filiação. Já Correia Leite colocou-se à esquerda das posições de Arlindo. Inclinado às ideologias de esquerda, dialogou com o comunismo, anarquismo e movimento operário. Portanto, essas filiações políticas também marcaram profundamente as dinâmicas de Veiga dos Santos e Correia Leite no interior do movimento negro paulistano, explicando, outrossim, alguns de seus antagonismos. O projeto político de Veiga dos Santos era ambicioso, pois não se reduzia a questão racial brasileira. Sua participação enquanto militante negro se justificava pelo pertencimento racial, mas mobilizar o grupo negro também fazia parte de uma outra causa: difundir o patrianovismo. Assim, no curto período que acompanhamos a trajetória do militante na condição de ativista do movimento negro, percebemos o quanto seu discurso esteve implicado com o projeto patrianovista, confundido, através do papel de presidente da Frente Negra Brasileira, as reivindicações do segmento negro com as oriundas desse movimento católico monarquista direitista. A simpatia de Arlindo pela monarquia não era uma exceção. Ela não se dissolveu prontamente após a instauração da forma republicana de governar. A historiografia informa a existência de inúmeros políticos ilustres, não ligados a oligarquia paulista que preferiam o Império à República. O surgimento do Partido Monarquista, em São Paulo, no ano de 1895, e do Centro Monarquista, no Rio de 103
Janeiro, em 1896, refletia esse ressentimento de setores da sociedade com o novo regime. Esses espaços abrigavam desde jovens bacharéis em Direito, até jovens ligados a políticos em decadência, católicos radicais e descontentes por inúmeras razões. Outrossim, a participação de monarquistas em alguns episódios ocorridos no início da República, nos dão idéia de que eles não foram poucos. Os monarquistas atuaram na renúncia do Marechal Deodoro da Fonseca, na Revolta da Armada, na Revolução Federalista, na Revolta de 1902, em São Paulo, na Revolta da Vacina e na candidatura de Hermes da Fonseca.214 Sobre Deodoro da Fonseca, um artigo publicado no A Voz da Raça, em 24 de junho de 1933, escrito por Viriato Correa, intitulado "Deodoro e a Idéia da República" usava como argumento final, fragmentos de uma carta escrita pelo militar ao sobrinho Clodoaldo da Fonseca, provavelmente antes do golpe republicano, em que constava o seguinte conselho: "não te metas em questão de República, por quanto, República no Brasil e desgraça completa é a mesma cousa: os brasileiros nunca se prepararam para isso."215 Mas o que explica a simpatia que tiveram alguns negros pela Monarquia, uma vez que, foi durante o império que vigorou a escravidão? Alguns estudos procuram elucidar esta aproximação, ou melhor, compreender a dissociação que houve entre a forma de governo e o sistema econômico, propiciando assim uma apologia ao Império. Uma das hipóteses afirma que foi durante a Primeira República que se configurou um novo projeto civilizatório para o país, através de uma política de branqueamento e de uma série de medidas sanitárias autoritárias que visavam extirpar através de uma espécie de "limpeza" étnica a massa popular que habitava as grandes capitais. Em decorrência dessa política, o contingente de ex-escravos e seus descendentes ficou a mercê de sua própria sorte, sem garantia de emprego, terra, habitação, educação, 214
MALATIAN,1990:8
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direito à participação política, manifestação cultural ou religiosa. Práticas advindas das massas populares, em sua maioria negra eram reprimidas pelas autoridades policiais como os cultos de matriz africana, a capoeira e o jogo do bicho, ou seja, o segmento populacional negro foi sistematicamente discriminado no período, provocando em alguns a sensação de que no passado próximo a vida teria sido melhor. Tratava-se de uma espécie de nostalgia pela ordem anterior ao compará-la com a vigente.216 Uma outra perspectiva acredita que as razões para a afinidade com a monarquia não devem ser explicadas apenas pela vertente político-social e sim levar em conta a dimensão cultural, pois a representação social da realeza impregnava o imaginário social desde antes do cativeiro. Assim, a escolha pela monarquia não seria uma postura absurda dos negros, vistos como incapazes de "desfrutar da liberdade alcançada"217, uma vez que na África esta era a forma de governo mais comum. Daí a existência até os dias atuais de grupos culturais que festejam os reizados, as congadas, os maracatus e as cavalhadas, momentos em que reis negros são coroados retomando uma memória ancestral africana. Portanto, ao saudar e enaltecer "a princesa Isabel, os negros estavam expressando sua concepção de realeza tal como a entendiam na África".218 O fato é que no final dos anos 1920 e no ano de 1930, o jornal Progresso estampava em suas páginas artigos simpáticos à monarquia e notícias relativas as organizações e clubes monarquistas do meio negro.219 Por conseguinte, quando Arlindo Veiga dos Santos lançou sementes do patrianovismo no meio negro, sabia que algumas germinariam. Nessa brecha entrou a Ação Imperial Patrianovista Brasileira. O 215
A Voz da Raça, 24/06/1933, Ano I, no. 13, p.3 DOMINGUES,s/d:19-20 217 Afirmação atribuída a Rui Barbosa que não entendia o apreço dos ex-escravos pela família real. Cf. DAIBERT JR.,2004:207 218 DAIBERT JR.,2004:208-209 219 ANDREWS, 1998:81 216
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próprio editava um jornal mensal, Monarquia, que teve longa duração. Essa análise contraria a afirmação de que os movimento sociais negros surgidos no período não questionavam a ordem político-social estabelecida. Pelo contrário, estavam satisfeitos, pleiteando apenas que "ela também valesse para eles".220 A opção por analisar o movimento negro dos anos 1930 como um bloco monolítico, originou essa conclusão. Uma análise mais apurada das diferentes iniciativas existentes no período fez-nos concluir que projetos diferentes existiram e até mesmo entraram em choque, ainda que a maioria desses embates tenham tido ressonância no universo do ativismo negro. Ou seja, não implicou outros setores da sociedade, o que pode ter gerado a conclusão citada acima. A Ação Imperial Patrianovista Brasileira A Ação Imperial Patrianovista Brasileira - AIPB surgiu num contexto de reorientação católica e quase todos os seus fundadores saíram da Faculdade de Filosofia e Letras São Bento. Tratava-se de recém formados nacionalistas e conservadores que condenavam os rumos da política no Brasil, considerando modelos impróprios para o país, tanto o liberalismo capitalista quanto o comunismo. A única saída seria a implantação de um "Estado orgânico" liderado por um chefe autoritário, ou melhor, "uma monarquia orgânica, tradicionalista e coorporativa".221 Nessa lógica, o pensamento patrianovista se aproximou bastante de outros movimentos autoritários como o integralismo, que atuou no âmbito nacional e os fascismos que existiram na Europa. A Igreja Católica no Brasil, mais especificamente, após a Primeira Guerra Mundial, iniciou um movimento de recatolização do país "pelo alto", orientado pela 220 221
FERNANDES,1978:8 vol. II MALATIAN,1990:36
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principal liderança institucional do momento o Cardeal Sebastião Leme que direcionava a atuação de intelectuais e movimentos de leigos à aproximação com as classes médias urbanas emergentes.222 A Igreja visava recuperar o espaço perdido após o advento da República, quando o Estado se instituiu laico. Em 1922, surgiu o Centro D. Vital, sendo resultado do esforço de D. Leme em "organizar e formar um grupo de intelectuais a fim de fazer frente ao anti-clericalismo", 'ao ateísmo, à indiferença religiosa das elites republicanas' ". O Centro tinha como dirigente um leigo, o intelectual Jackson de Figueiredo. Esses intelectuais publicavam para os fiéis e influenciavam a política local e nacional, mas sem assumirem uma posição mais diretamente favorável a determinado partido político, ainda que as doutrinas de esquerda fossem veementemente rechaçadas pela Igreja, com aprovação do papado.223 O Centro D. Vital publicava uma revista nacional chamada A Ordem e, mais tarde, fundaram, em 1935, a Ação Católica. Os patrionovistas participaram do Centro D. Vital de São Paulo, uma espécie de filial do Centro do Rio de Janeiro, além de escreverem assiduamente para a revista A Ordem. O movimento Pátria-Nova teve dois momentos. Um primeiro iniciado em 1928, com o Centro Monarquista Social Político Pátria-Nova, com sede em São Paulo e Arlindo Veiga dos Santos como dirigente maior. Nesse período foi elaborado o programa da organização composto pelas seguintes teses: Credo, Monarquia, Pátria e Raça Brasileira, Divisão administrativa do país, Organização Sindical, Capital no centro do país e Política internacional altiva e cristã.224 Nesse período, surgiram mais dois centros, o de Fortaleza e o de Petrópolis, além de se instituir a Guarda Imperial Patrianovista constituída de jovens militares vestidos com uma camisa branca e uma
222
MALATIAN,1990:35 CARVALHO FILHO, 1983:passim. 224 MALATIAN,1990:37 223
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cruz vermelha no braço esquerdo, mas que não se tornou um grupo armado, por orientação da Igreja, pois pelo chefe geral, Arlindo Veiga dos Santos, caso fosse necessário, os patrianovistas lutariam "violentamente, pela pena, pela palavra e pelas armas".225 O segundo momento se iniciou com a fundação da Ação Imperial Patrianovista Brasileira, em 1932. A partir do ensejo, o grupo tornou-se um movimento político de fato, passando a disputar declaradamente um projeto para o país. Essa mudança de estratégia decorreu do contexto político iniciado com a "Revolução de 1930", que para os dirigentes foi entendido como uma brecha para a instauração do III Império, devido a conjuntura de instabilidade política que se apresentava. Para Arlindo, o processo iniciado em 1930, seria um mal necessário. A AIPB na gestão de Arlindo, em especial após 1932, ampliou os seus quadros através de uma propaganda agressiva e forte apelo emocional226, chegando computar 93 núcleos entre 1932 e 1937. Em 1933, alguns patrianovistas intentaram participar da Assembléia Constituinte e para isso deveriam fundar um partido político. No entanto, a Igreja decidiu apoiar o que chamou de Liga Eleitoral Católica, grupo composto de políticos de diferentes origens partidárias de direita e comprometidos com algumas reivindicações da Igreja, com a argumentação de que não cabia dividir os fiéis.227 Deuse a primeira fragmentação do movimento, visto que Arlindo Veiga dos Santos na época, também presidente da Frente Negra Brasileira, decidiu candidatar-se pela entidade negra afastando-se da AIPB. Malatian supõe que um outro motivo deve ter afastado Arlindo: a experiência do racismo.228 Suposição que se confirma, caso 225
O Comando Patrianovista. Boletim pessoal do Chefe-Geral Patrianovista Arlindo Veiga dos Santos, dez/1933, p.6 apud DOMINGUES,s/d:8 226 MALATIAN,1990:38 227 CARVALHO FILHO,1983:passim 228 MALATIAN,1978:113 A ação imperial patrianovista brasileira. São Paulo: Dissertação de Mestrado, PUC/SP apud DOMINGUES,s/d:9
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levemos em conta as considerações de Paim Vieira, um militante patrianovista que via a Frente Negra como um "clubezinho de negros", local de uma "subcultura".229 O novo dirigente da AIPB foi Paulo Dutra Silva que procurou rivalizar com o comunismo, ocorrendo até mesmo, confrontos violentos entre os grupos, principalmente após 1936 quando o Estado brasileiro passou a perseguir declaradamente os militantes comunistas. Contudo, nem todos os patrinovistas apoiavam a nova linha do movimento, orientada pela Igreja Católica no mundo, ocorrendo nova dissidência com a fundação, em 1935, da Ação Católica Monarquista Brasileira, no Rio de Janeiro e em São Paulo, pelos que se opunham a luta armada e eram favoráveis à aproximação com o príncipe herdeiro.230 Veiga retornou à direção no final de 1936, mas sem o apoio da maioria, pois seguiu uma linha independente à influência do príncipe e voltada à tendência da Igreja que buscava um diálogo com o segmento operário, com promessas de um "império dos trabalhadores" no Brasil, com reformas sociais que garantissem "trabalho, pão, casa, educação e proteção às famílias numerosas".231 A mesma tática discursiva implantada na Frente Negra Brasileira desde 1931, agora, se voltava para outros grupos subalternos da sociedade. As questões específicas do segmento negro estavam contidas no terceiro ponto do programa da AIPB que convergia os interesses monarquistas e dos movimentos ou grupos que faziam da identidade racial ou étnica o motivo para a mobilização. Textualmente o item “Pátria e Raça Brasileira” propunha a
"afirmação da Pátria Imperial Brasileira. Sua valorização espiritual, (intelectual, religiosa e moral), física, econômica. Afirmação da raça brasileira em todos 229
MALATIAN,2001,58 MALATIAN,2001:52 231 Chefia-Geral da AIPB. Bolletim Patrianovista, SP, set.1936 apud MALATIAN,2001:53 230
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os seus elementos tradicionais e novos-integrados (filhos de estrangeiros). Solução definitiva do problema negroindígena-sertanejo. Formação e valorização física, intelectual e religiosa-moral racionalista Raça-brasileira. Definição da situação do estrangeiro dentro do império instaurado. Reação contra todas as formas de imperialismo estrangeiro no Brasil".232
Os militantes católicos organizaram um conjunto de idéias, o qual denominaram “orgânico-sindicalismo”, que segundo eles seria a “garantia única da destruição político profissional dos liberais, e penhor da vitória da terra, da raça, da tradição e do trabalho, contra o argentarismo e contra o bolchevismo.” Suas idéias refutavam certo tipo de capitalismo “prepotente cuja injustiça vai aniquilando os governos e a nação” e o socialismo, considerado uma “tirania que ameaça as tradições, os nossos lares, nossa minguada economia e a nossa terra”.233 Entendiam o Brasil como uma terra singular, em que floresceria uma nova civilização. Essa nova sociedade teria um regime monarquista, centralizado e seguidor da autodeterminação do chefe maior, ou seja um Estado autoritário, anti-liberal. Único capaz de viabilizar a redenção dos brasileiros e colocar o país entre as nações de grande porte, como a Alemanha por exemplo. O patrianovismo enquanto movimento político organizado existiu até a década de 1970. Em 1964, quando aconteceu o golpe civil-militar, os patrianovistas estiveram diretamente ligados à ditadura militar. Entretanto, passados alguns meses, Arlindo, ainda uma liderança importante, declarava seu descontentamento com o que ele chamou de "covardias, bobagens, impunidades, ignorâncias e traições" dentro do movimento. Novamente, a estratégia dos ativistas monarquistas de se aproveitarem da crise e prepararem o caminho para o III império, não surtiu efeitos positivos. Logo, a AIPB seria proibida de organizar-se em território nacional, frustando as aspirações de 232
Programa Patrianovista apud MALATIAN,2001:56
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seus dirigentes. A Ação Integralista Brasileira Outro movimento social de extrema-direita existente no Brasil, dos anos 1930, foi o integralista, que teve como liderança maior Plínio Salgado. A Ação Integralista Brasileira combinou o ambiente propício à ascensão das ideologias fascistas na Europa com o contexto interno de incerteza política e reformulação do Estado-Nação iniciado por Getúlio Vargas, convencendo as massas para uma luta nacionalista de extremadireita. Contudo, convém ressaltar que o próprio Salgado gostava de estabelecer as bases que o afastavam do fascismo, afirmando ambiciosamente que seu movimento não deveria ser confundido com o "hitlerismo e o fascismo", pois era "muito maior" e "muito mais profundo que ambos".234 Liderado pelo Chefe acional Plínio Salvado, um dos fundadores do movimento Verde-amarelo que pregava o retorno do país as suas origens, a Ação Integralista Brasileira surgiu na cidade de São Paulo, em 7 de outubro de 1932, se ramificando como um partido político de massas por todo o país, a partir de 1935, quando reunidos em seu II Congresso nacional, ocorrido em Petrópolis, os militantes redefiniram a organização. Esta deixou de ser apenas uma associação nacional de direito privado, voltada a promover estudos sociológicos, elevar moral e civicamente o povo brasileiro e buscar implantar o Estado Integral235, para se tornar uma "associação civil, com sede na cidade de São Paulo e um partido político, com sede no lugar onde se encontrar o seu chefe supremo (...)"236
233
A Voz da Raça, Ano 1, nº 7, p.1, 1933 CHASIN, J. 1999. O integralismo de Plínio Salgado. Belo Horizonte: UMA Editoria, São Paulo: Estudos e Edições Ad. Hominem. Apud MACHADO,2005:57 235 Estatutos da AIB, Monitor Integralista, Ano II, n. 6, maio de 1934, p.3 apud CAVALARI,1999:16 236 Estatutos de março de 1935, Monitor Integralista, Ano V, n.22, 7 de outubro de 1937, p5 apud CAVALARI,1999:16 234
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A memória de Correia Leite relata o contato de Veiga dos Santos com algumas lideranças integralistas, antes mesmo do movimento se instituir oficialmente no país. É certo que muitos patrianovistas participaram da Ação Integralista Brasileira em seus primórdios, pois as idéias e bandeiras levantadas pelo integralismo estavam em consonância com as do movimento Pátria-Nova. Os patrianovistas participaram dos encontros integralistas em 1930, e aglutinaram-se na Sociedade de Estudos Políticos, fundada em março de 1932, instituição da qual se originou o movimento integralista. O afastamento dos dois grupos deu-se no processo de construção do Manifesto de Outubro237, quando os integralistas decidiram estabelecer o "movimento como republicano e assumiram uma postura dissonante dos patrianova em relação ao catolicismo".238 O conservadorismo e a religiosidade cristã eram as principais linhas de aproximação, pois tanto os integralistas quanto os patrianovistas tinham como lema Deus, Pátria e a Família. Entretanto, não devemos confundir os dois movimentos, pois apesar de nacionalistas e conservadores implementaram ações e divulgaram idéias muitas vezes antagônicas. Além do que, ambos tinham com objetivo final o controle do Estado, tendo os integralistas oportunidade para serem mais radicais no propósito, devido a total independência em relação as orientações da Igreja católica. Outros movimentos de orientação de extrema-direita atuantes no período foram a Ação Social Brasileira (Partido Nacional Fascista); Legião Cearense do Trabalho e Partido Nacional Sindicalista.239 As primeiras lembranças de Correia Leite sobre sua participação na política se remetem à greve de 1918. Nessa época ele era lenheiro e, por curiosidade, foi numa
237
O Manifesto de Outubro é o documento de fundação da AIB, foi lançado em 7 de outubro de 1932, mas vinha sendo escrito desde maio, estando pronto em junho daquele ano. O lançamento foi atrasado devido a deflagração da Revolução Constitucionalista. Cf.CAVALARI,1999:15 238 MALATIAN,2001:66 239 TRINDADE,1979:97
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manifestação. Surpreendeu-se com a organização dos trabalhadores, muitos estrangeiros e de orientação anarquista. Posteriormente, esteve numa reunião do grupo, mas não voltou a freqüentar por achar demasiadamente utópico.240 Nessa época também disse ter ido a algumas passeatas estudantis: "gostava de participar do movimento da estudantada, que sempre iniciava os protestos contra o aumento da passagem de bonde e outros assuntos políticos. Certa vez o Rui Barbosa fez uma conferência atacando o Epitácio Pessoa e ele foi responder no Teatro República. Houve uma agitação e eu também fui corrido pela cavalaria".241
Mais tarde, já como ativista no Clarim d' Alvorada, teve contatos com membros do Partido Comunista, que tentaram lhe convencer da sensibilidade dos comunistas para com a questão racial. Por eles, ficou sabendo do Caso Scottsboro, em que jovens negros norte-americanos acusados de mexerem com prostitutas brancas foram defendidos por advogados do Socorro Vermelho. Contudo, sua relação com o comunismo não se aprofundou. Leite alegou ter se afastado das organizações comunistas, pois não poderia confundir seus "ideais de negro" com suas "obrigações de brasileiro, de cidadão".242 O que demonstra estar profundamente difundido na sociedade da época a concepção de que as idéias importadas dos comunistas e anarquistas, na maioria das vezes trazidas por estrangeiros, não condiziam com a realidade nacional. Essa representação do comunismo como coisa de estrangeiros, possivelmente, afastou dos seus quadros muitos militantes do movimento negro, pois a principal bandeira de luta dos ativistas era a prerrogativa da nacionalidade do negro presente desde a formação das primeiras instituições nacionais, porém preterido político e socialmente. Daí, a afinidade com os movimentos direita, pois todos pregavam um nacionalismo exacerbado, quase sempre 240 241
LEITE,1992:54 LEITE,1992:27
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xenófobo, mas que priorizava, ainda que, hierarquicamente, os grupos raciais vistos como os pilares da nação. Uma lembrança de Correia Leite reforça essa nossa afirmação que crê na possibilidade de uma maior afinidade com as ideologias de direita. Em meados dos anos 1930, Leite reencontrou um conhecido da época do Clarim d' Alvorada, que todo vestido numa farda verde, ou seja, trajado como um membro integralista lhe disse: "agora sim eu acertei. Agora eu acertei o caminho da nossa integração, da nossa participação. Porque nós temos a possibilidade de lutar para a integração da família na nacionalidade..."243 Fazendo um balanço, anos depois Correia Leite disse não acreditar que qualquer uma das orientações políticas antagônicas na época: integralista ou comunista fossem resolver a questão racial brasileira. Para ele o racismo brasileiro tinha particularidades que deveriam ser tratadas num âmbito específico, ainda que as idéias de esquerda lhe fossem mais simpáticas por achar que elas tocavam na questão da imensa desigualdade que afastavam abissalmente ricos e pobres no país.244 Vale salientar que mesmo entre os intelectuais comunistas brasileiros a questão racial não tinha uma discussão muito progressista. Num ensaio de Otávio Brandão, importante dirigente, encontramos afirmações que aproximam suas idéias daquelas expressadas pelos estudiosos racialistas décadas antes. Revelando um positivismo latente Brandão escrevera: no Brasil, o “homem, como a terra, ainda estavam em formação” e por isso ainda “não havia um brasileiro, um tipo definido” e sim “uma mistura desordenada de raças e subraças” o que interferia em “numerosos aspectos da vida nacional”. Mas o que revela tal afirmação? Que a questão racial tal como pensava o movimento negro, não alcançava a agenda comunista, mesmo que em seus quadros já constassem filiados negros que se
242
LEITE,1992:54 LEITE,1992:118 244 LEITE,1992:55 243
114
projetaram como o operário Minervino de Oliveira, primeiro vereador e candidato à presidência da República pelo Partido Comunista, em 1930. E em 1934, o Partido Comunista Brasileiro deferiu uma resolução que entendia as reivindicações dos negros brasileiros como uma luta por território e nacionalidade e conclamava a todos constituírem seus “próprios governos, separados dos governos federal e estaduais”, saída para a efetivação de uma nação propriamente negra com “território, governo, costumes, religião, língua e cultura próprios”
245
Como pode-se ver totalmente
contrário ao que almejavam os ativistas negros paulistanos daquela década. Contudo, foram as incipientes convicções de esquerda citadas acima que puseram Correia Leite em oposição às idéias de Veiga dos Santos e de outros negros simpatizantes ou ativistas das ideologias mais conservadoras. Como vimos, anteriormente, essa oposição de idéias políticas fez com que Leite e alguns outros ativistas se afastassem da cúpula da Frente Negra Brasileira. E provavelmente, este por suas idéias políticas, ao contrário dos irmãos Veiga dos Santos, pouco se beneficiou das relações que envolviam o jogo político local e mesmo de âmbito nacional. Para as lideranças frentenegrinas este alinhamento viabilizou a obtenção de empregos para o corpo de associados à entidade, uma acomodação em cargos de confiança na esfera municipal ou estadual, a visita prestigiosa à sede da organização de autoridades locais, etc. Porque apesar da projeção nacional que a organização liderada por Veiga dos Santos teve, com tão substantivo número de sócios, não seria exagerado afirmar que seu prestígio se dera muito em função da afinidade de idéias existente entre os dirigentes da FNB, declaradamente direitistas, e o ordenamento político nacional cada vez mais à direita, posteriormente comprovado com a deflagração do Estado Novo em 1937. Conclusão corroborada pelo seguinte fragmento: "Frente Negra Brasileira
245
Augusto Buonicore, La Insígnia, 25/05/2005, p.1 www.lainsignia.org/2005/mayo/ibe_085.htm
115
congratua-lhe vivamente nova Constituição destino Pátria Brasileira. Tem a honra apresenta felicitações Vossa excelência, Exército e Marinha nacionais. Queira V. Excelência aceitar respeitosos cumprimentos".246
246
A Voz da Raça, no.70, nov/1937 p.1 Telegrama enviado pelo presidente Justiniano da Costa a Getúlio Vargas, parabenizando-o pela ditadura do Estado Novo.
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3.CAPÍTULO - O " P R O B L EM A
"EGRO" E OS
Q U E S T I O " A M E " TO S D O " E G R O : A RA Ç A E A P R O B L EM Á T I C A D A F O R M A Ç Ã O " A C I O " A L
A cor da pele parece constituir obstáculo, a anormalidade a sanar. Dir-se-ia que na cultura brasileira o branco é o ideal, a 247 norma, o valor, por excelência .
3.1 O quantitativo populacional negro como um problema nacional O quantitativo populacional negro brasileiro e as demandas político-sociais do grupo, na época constituído por cativos e libertos, foram encarados como "problema" para o progresso do país ainda no Estado Imperial, quando vigorava a escravidão e o trabalhador africano ou seus descendentes eram mão-de-obra indispensável. Participaram do debate governo, políticos e cientistas toda vez que o assunto era a ocupação do território nacional e a o fim do trabalho escravo. A situação se agudizou, a partir da segunda metade do século XIX, depois que a elite dirigente e pensante, percebeu que a abolição viria mais cedo ou mais tarde. Idéias hoje questionadas, mas bastante hegemônicas na época, calcadas no darwinismo social, evolucionismo248 e positivismo foram combinadas pelos "homens de sciência" brasileiros - como eram chamados os intelectuais ligados às instituições de pesquisas da época - na tentativa de encontrar saídas à problemática de um país visivelmente diverso racialmente e substancialmente composto por afro-brasileiros que a partir de 1888 quando a abolição efetivamente se realizou e os negros, antes escravos passaram a ser juridicamente
247
RAMOS,1981:57 ORTIZ, 1994:14-15 A perspectiva evolucionista tentava estabelecer uma relação lógica entre as diferentes sociedades humanas ao longo da história; aceitava o postulado que o "simples" (povos primitivos) evoluía naturalmente para o mais "complexo" (sociedades ocidentais). O resultado final disso tudo era estabeler leis gerais que ordenassem o progresso das civilizações. 248
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cidadãos. Podemos dizer que a unidade territorial e lingüística fora conquistada com eficiência pelos governos monárquicos, mas o regime escravocrata que durou mais de 300 anos, atrasara o projeto de unidade do povo brasileiro que segundo concepções da época, baseadas em teorias raciais importadas e adaptadas à nossa realidade, deveria ser composto de apenas um tipo249, ou seja, não cabia a variedade de características fenotípicas visíveis entre os brasileiros, fruto de uma sociedade formada pela composição de povos com origens diversas. Essa questão foi transferida para o Estado republicano. Daí a pertinência em discutirmos as idéias sobre a raça e a formação nacional circulantes na Primeira República. Essa problemática, por sua vez, esteve nos círculos freqüentados por Veiga dos Santos e Correia Leite. Esses construíram representações sociais da realidade racial brasileira, combinando a experiência vivida às idéias dos especialistas, tidos, na maioria das vezes, como o pensamento de ponta sobre a realidade nacional. Por essa razão que, numa parte do capítulo, relacionamos a produção intelectual desses especialistas, especialmente aqueles citados na imprensa ou nos depoimentos com o entendimento que tinham nossos intelectuais-militantes, a partir dos artigos que os mesmos publicizavam nos jornais voltados à comunidade negra letrada. Era a maneira que estes sujeitos tinham de refletir temas tão em voga e que diziam respeito, efetivamente a manutenção ou não do grupo negro enquanto político, social e culturalmente reconhecido. No período da Primeira República, discussões em torno do ideal de nação e por conseqüência, do modelo de Estado mais adequado à sociedade brasileira foram inúmeras. Intelectuais, administradores públicos e governo, algumas vezes em arenas 249
A idéia de tipo remete-se as teorias racistas de cientistas europeus que classificava as populações
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opostas, discutiam e lançavam propostas que, segundo o paradigma escolhido, deveriam combinar três variáveis: povo (raça), cultura (civilização) e língua.250 Dentre as três, faltava a formação de um autêntico povo brasileiro que deveria ser composto por uma unidade racial geneticamente superior. Essa era a condição imprescindível para a existência de um efetivo Estado-nação e viável modernização capitalista.251 Teorias raciais ligadas ao evolucionismo, que se erigiram com força política no decorrer do século XIX, encontraram terreno fértil entre os "homens de sciência" brasileiros que as adaptaram para os administradores públicos. Tais teorias viam a diversidade humana como sinônimo de desigualdade e diferença racial, numa hierarquia em que o branco europeu ocupava o topo da pirâmide, negros e indígenas se revezavam na base e todos os outros tipos ocupavam posições intermediárias.252 Nessa perspectiva, na transição do trabalho escravo para a mão-de-obra livre, não parecia viável que o trabalhador negro, tido como racialmente inferior, fosse capaz de sobreviver à nova ordem econômica. Daí a urgência da ocupação do território nacional com trabalhadores brancos europeus. Com a abolição efetivada, cientistas de todas as estirpes tentavam a todo custo, por meio de elucubrações cientificizantes, procurar saídas para uma nação que se queria branca, condição imprescindível, no entendimento da elite política e intelectual para o progresso econômico, tecnológico e político do país. O exemplo vinha dos países da Europa Ocidental tidos como as nações mais ricas do mundo, pelo simples fato de serem compostos por povos "arianos", os mais "evoluídos" na hierarquia das raças. Algumas análises, da qual corroboramos, entendem que esta ideologia serviu para legitimar a posição hegemônica do ocidente e expandir o capitalismo no
humanas. 250 SEYFERTH,1996:41 251 IANNI,1993:433
119
mundo.253 Nessa lógica, duas noções foram muito utilizadas para explicar o atraso do Brasil: a raça e o meio. Aprofundaremos a discussão sobre a raça devido importância que tem em nosso estudo. É
importante
salientar
que
a
definição
de
raça
fundamentava-se
substancialmente na biologia, acreditando na existência de caracteres genéticos específicos, próprios de cada grupo humano, que além de estabelecerem o fenótipo, determinavam as aptidões intelectuais, o comportamento sócio-político, em suma, o destino das populações. Em nosso trabalho raça foi utilizada não no sentido biológico stricto senso, mas como uma noção que no âmbito das relações sociais ainda se funda em parâmetros biológicos para regular
diferencialmente os grupos que agregam
características fenotípicas distintas e convivem em sociedades hierárquicas produtoras de desigualdades. Portanto,
"não há 'raças' biológicas, ou seja, na espécie humana nada que possa ser classificado a partir de critérios científicos e corresponda ao que comumente chamamos de 'raça'. 'Raça' tem existência nominal, efetiva e eficaz apenas no mundo social e, portanto, somente no mundo social pode ter validade plena".254
Mas, no final do século XIX e início do XX, essa discussão da desigualdade entre as raças trouxe a tona uma outra: a explicação da origem do homem. A maioria dos cientistas acreditava no monogenismo, ou seja, na crença de que a humanidade era una, conforme postulavam os escritos bíblicos. Contudo, nem todos os seres humanos podiam ser colocados em pé de igualdade, ou seja, ainda não havia conseguido alcançar os mesmos padrões evolutivos. Sendo necessário uma classificação que envolvia caracteres fenotípicos, comportamentos e valores numa gradação decrescente 252 253
SEYFERTH,1996:43 ORTIZ,1994:15;
120
que ia dos "civilizados" aos "incivilizados". Para uma outra abordagem: a poligenista, surgiram diferentes centros de criação da espécie humana. Ou seja, acreditavam na existência de diferentes espécies humanas. Portanto, os humanos eram desiguais entre si, "não redutíveis, seja pela aclimatação, seja pelo cruzamento, a uma única humanidade".255 Esse postulado servia, naquele momento, para contestar e enfraquecer os dogmas da Igreja, além de fortalecer as áreas de conhecimento que interpretavam os grupos humanos somente pelo viés biológico, como por exemplo, a antropologia. A partir de investimentos em pesquisas e surgimento de teorias como a frenologia e antropometria, a ciência passava a explicar, na perspectiva dos determinismos, os comportamentos criminosos, os transtornos mentais, além da "ausência de civilização", que afirmavam ocorrer em algumas sociedades humanas. O poligenismo questionava qualquer tipo de solidariedade entre os povos, já que se tratavam de espécies distintas entre si, incapazes de alcançar o mesmo nível algum dia. Na verdade, o que os poligenistas fizeram, foi se apropriarem de maneira deturpada das idéias de Charles Darwin sobre a seleção das espécies e sobrevivência dos mais aptos, instituindo o darwinismo social, perspectiva que via diferenças fundantes entre as raças. Esses teóricos colocavam por terra o próprio darwinismo que, pelo evolucionismo postulava uma origem comum, além de ver positivamente o futuro da espécie humana.256 No Brasil, os "homens de sciência" não cansaram de se utilizar das duas teorias, seja o evolucionismo social dos monogenistas, seja o darwinismo social dos poligenistas. Serviam para explicar o nosso atraso em relação aos avanços alcançados pelas nações européias e para condenar a mestiçagem como algo totalmente
254
GUIMARÃES,2002:50 SCHWARCZ,1993:49 256 Cf. SCHWARCZ, 1993:47-54 255
121
impraticável, visto que se tratava do cruzamento com espécies ou diversas ou em níveis díspares de evolução, logo inexeqüível. O resultado seriam indivíduos degenerados que herdariam os piores caracteres das raças em cruzamento, uma vez que as características adquiridas, não se transmitiam por meio da miscigenação, "nem mesmo num processo de evolução social", via educação, por exemplo.257 Mestiçagem mesmo, só como último recurso, caso os experimentos de ocupação do território com o imigrante europeu não dessem certo. Respaldados pelos escritos de Gobineau, Chamberlain, Haeckel e Lapouge, os cientistas brasileiros projetavam a nação. Ela estaria comprometida, caso não se efetivasse, uma política intensiva de recomposição do elemento nacional que deveria ser laborioso, inteligente, obstinado e cristão. Todas essas qualidades, biologicamente herdadas, não seriam encontradas segundo esses pensadores258, entre a maioria da população nacional da época, composta substantivamente por descendentes de africanos e indígenas.
257
Cf. SCHWARCZ,1993:57-58 A eugenia foi um movimento que acreditava na perfectibilidade humana a partir da genética e não da educação e que incentivou a "seleção da espécie" a partir do cruzamento entre indivíduos puros e superiores. A prática da eugenia teve seu ápice com a instituição do nazismo na Alemanha governada por Hitler. 258 SEYFERTH,1996:45 analisa os trabalhos de Tavares Bastos apresentado à Sociedade Internacional de Imigração em 1867, de Augusto de Carvalho, de 1874 e o do Conselheiro Menezes e Souza apresentados ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, de 1875 como representantes de um pensamento que articulava a preocupação com a ocupação territorial do país e a construção de uma civilização brasileira que passava necessariamente pela entrada do trabalhador do branco europeu, único capaz desse feito.
122
3.2 Uma saída para o Brasil do futuro: o branqueamento pela mestiçagem Aceitar a idéia de um Brasil mestiço no final do século XIX era muito difícil para aqueles interessados em resolver o problema negro brasileiro. Para muitos a mestiçagem era a via que explicava o "atraso ou uma possível inviabilidade da nação",259 mas por outro lado, poderia ser o único instrumento capaz de proporcionar o desaparecimento, a longo prazo, das características negro-indígenas na composição do povo brasileiro.
Portanto, em meio a todos estes debates que aconteceram na
passagem de um século para o outro, surgiria uma saída "científica", genuinamente brasileira, resultado da combinação das teorias raciais citadas anteriormente: a tese do branqueamento e do mestiço superior. Alguns especialistas que vinham readaptando e reelaborando as teorias raciais desde o início do século XX, passaram a incentivar a saída pela mestiçagem no Brasil. Branquear, nesse segundo momento significaria ocupar sistematicamente o território nacional com imigrantes europeus, em especial aqueles mais propícios a se assimilarem. Sob estas novas perspectivas, passaram a condenar a imigração alemã (colocada em prática no Império), organizada em colônias fechadas de estrangeiros, dificultando a assimilação com o elemento nacional. O português, o espanhol e o italiano seriam considerados os mais propícios ao empreendimento por serem tipos latinos, tidos como racialmente mais próprios às misturas, capazes, portanto, de provocar o chamado caldeamento das raças que daria futuramente no tipo brasileiro, físico e culturalmente homogêneo.260 Assim, 259
SCHWARCZ,1993:13
123
"o papel do imigrante, portanto, está bem definido: concorrer para a formação de um tipo brasileiro, elemento da unidade nacional (que, paradoxalmente, vê comprometida pela 'desarmonia das índoles' decorrentes da mestiçagem). Trata-se de uma construção racial clarear a pele do brasileiro do futuro, pelo menos -, pois a nacionalidade já tem sua cultura, sua língua e sua religião."261
A mestiçagem, moral e biológico-cultural, possibilitaria a aclimatação da civilização européia nos trópicos.262 Nesse sentido, cabia ao branco "puro" concorrer para a assunção da genuína raça brasileira, fruto da depuração racial gestada pelos cientistas nacionais e, colocada em prática pelos governantes. Percebamos que a mestiçagem comunicava a metáfora do cadinho, que ao guardar as singularidades de cada raça, acabava por contemplar o português, o africano e o índio brasileiro, elementos fundadores do Brasil de acordo com a fábula das três raças.263 Joaquim da Silva Rocha criticava o Império, que não resolveu a questão da unidade nacional, diga-se "a fusão do sangue", propondo no I Congresso Nacional das Raças, ocorrido em 1911, o efetivo aperfeiçoamento da espécie para que assim ocorresse, de fato, a nacionalização da população brasileira, ou seja, a verdadeira composição do "tipo definitivo".264 Também Batista Lacerda, neste mesmo Congresso, discursaria a favor do branqueamento, única maneira de se chegar a uma nação homogeneamente branca num futuro próximo.265 Lacerda, então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, apresentou um quadro de Modesto Brocos, chamado A redenção de Can, exemplificando o efeito que teria a depuração da raça negra a partir de sucessivos cruzamentos com a branca. Com
260
SEYFERTH,1991:174 SEYFERTH,1996:51 262 ORTIZ,1994:20 263 Da MATTA,1990. 264 SILVA ROCHA,1918:5 vol.II História da Colonização no Brasil apud SEYFERTH,1996:54 265 SCHWARCZ,1993:94 261
124
esse mecanismo de seleção dos mais "aptos", o cientista acreditava, fundado na perspectiva do evolucionismo, que somente as características positivas de cada raça seriam combinadas, surgindo o tipo ou raça ideal brasileira.266 O progresso seria incompatível com o contigente nacional de origem africana, finalmente cidadão, pelo menos no âmbito legal. Mas, a eles ainda cabia uma missão derradeira: antes de desaparecerem totalmente deveriam promover a nacionalização dos imigrantes através da difusão da língua e da cultura nacional.267 Era como se os negros, incapazes natos, devessem se doar em sacrifício, em favor de um desfecho feliz para a nação. Esse pensamento de inferioridade dos negros, ou melhor, não apenas desses, mas de todos os não-brancos, servia para justificar as condições em que vivia essa população na Primeira República. A saída seria a mestiçagem maciça da população nacional devendo ser incentivada, até que se conseguisse padrões de brancura próximos ao europeu. A essas conclusões chegaram a maioria das produções literárias e científicas da época. Tratavam de idéias bastante difundidas entre os brasileiros letrados e que convenceram, inclusive, alguns intelectuais-militantes que escreveram na imprensa negra dos anos 1920. Chegando ao ponto de em 1923, o jornal negro Getulino, de Campinas expor opinião contrária à vinda de imigrantes negro-americanos para o Brasil. Influenciados pela fala dos especialistas ilustrados do início do século que creditavam o atraso econômico e a inferioridade tecnológica do país à existência das raças bárbaras, negra e americana, os militantes não aceitavam de forma alguma a entrada de mais negros no país. Para eles, essa imigração prejudicaria a resolução do "problema
negro"
brasileiro,
caracterizado
por
um
expressivo
contingente
populacional de negros difícil de se assimilar e as mazelas sociais decorrentes disso, 266
Cf. SCHWARCZ,1993:12
125
ameaçando a harmonia da raça brasileira e a paz da nação. Aludindo às teorias raciais da época, lembravam que a vinda desses indivíduos prejudicaria a equação matemática que pregava o desaparecimento gradativo da raça negra do Brasil.268 Em depoimento colhido entre os anos de 1983 e 1984, ao falar desse passado, Correia Leite chegou a conclusão de que a maioria dos negros não tinha consciência do tipo de preconceito que vigorava no Brasil, mesmo os militantes. No seu entendimento, as teorias raciais que acreditavam no desaparecimento do negro eram uma justificativa para a omissão do Estado. "Houve um tempo em que se ouvia muita gente dizer que nossa luta não tinha razão de ser porque o negro ia desaparecer. Foi uma idéia gerada por estudiosos."269 Idéia essa que influenciou o pensamento de muitos negros intelectualizados como pudemos ver. As teorias raciais chegavam ao senso comum através da imprensa, especializada ou não, e pelos livros publicados. Embora parte do conhecimento adquirido por Correia Leite e outros militantes, também tenha ocorrido nos bares da cidade e reuniões informais, que muitas vezes varavam a madrugada, uma vez que “pensar e sonhar requerem um tempo desregulado”.270 Com vidas de 'boêmios intelectuais"271, segundo as próprias palavras de Correia Leite, os militantes tinham acesso as opiniões dos ditos sociólogos do momento, em torno do tão discutido "problema negro". O intelectual-militante lembrou que algumas opiniões eram corroboradas pelo grupo como "o negro representa a redenção universal" creditada a Rocha Pombo e "o negro acompanha o branco do berço a sepultura" ou "o negro madrugou no alicerce da formação da 267
SEYFERTH,1996:56 Jornal Getulino, Campinas 23-09-1923 apud DOMINGUES,2004a:306 269 LEITE,1992:21 270 JACOBY,1990:41 271 JACOBY, 1990:39-65 aponta a boemia com seus cafés, bares e ruas apinhadas de transeuntes como um importante locus formador do intelectual. 268
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nacionalidade e da nossa base econômica" ligadas a Sílvio Romero. Mas outras eram refutadas, pois "não tratavam os negros com a devida justiça e viam neles um exemplo de atraso". Entre essas, estavam as opiniões de Oliveira Viana, xingado pelos ativistas de 'mulato safado'.272 Décadas mais tarde, com uma trajetória de vida marcada pelo engajamento na questão racial brasileira, pontuada por expectativas e decepções, Correia Leite, partilhando de um outro olhar para com os sociólogos do passado, daria menos importância àquelas idéia sobre a sua própria formação:
"Quando eu militava, nunca me baseei nas palavras, nos conceitos dos teóricos, para levar a minha luta. Era muito comum se falar em Nina Rodrigues, um antropólogo que sempre viu negativamente o negro em seus estudos. Só que de minha parte, eu nunca fui procurar os estudiosos, embora mais tarde tivesse tido contatos."273
Mas um texto de Correia Leite de 1928, publicado no São Paulo Jornal e reproduzido no Clarim d' Alvorada dias depois, abusou das citações de especialistas da época para rebater as críticas de um colaborador do jornal paulistano, o Dr. Couto Esher274 que discordava do culto à Mãe-Preta por não ver qualquer valor positivo da raça negra na formação da nacionalidade brasileira. O ativista contra-argumentou citando Franklin Távora e Batista Pereira, vistos como "as maiores mentalidades da nossa grande pátria". Ao primeiro atribuiu a afirmação de que o negro era uma "raça épica" que "acompanhara o branco do berço a sepultura". Ao segundo, a já propalada idéia de nossa fusão étnica, refutando assim qualquer tentativa de purismo racial entre 272
MOREIRA & LEITE, s/d:5 LEITE,1992:21 274 O médico Nicolau Soares de Couto Esher era protestante da Igreja Presbiteriana e figura influente no estado de São Paulo. Em 1921, lançou sua candidatura avulsa ao senado. Entrevistado pela Folha da oite fez críticas ao voto de cabresto e a apatia das massas em relação ao pleito. Era contra a reeleição e a favor do voto secreto. Foi o primeiro presidente da Associação Cristã de Moços de São Paulo e Rio de Janeiro e é considerado um pioneiro entre os presbiterianos no Brasil. Ver http://www1.folha.uol.com.br/folha/almanaque/brasil_19fev1921.htm e www.ipb.org.br/especial_aniversario/pioneiro.leigos.php3 273
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os brancos nacionais.275 Meses mais tarde, Veiga dos Santos ao escrever no Clarim d' Alvorada também iniciou seus argumentos remetendo-se aos especialistas. Selecionamos alguns excertos escolhidos pelo intelectual-militante que faziam referências positivas a presença do negro na formação da nacionalidade. Citava Arthur Bomílcar, de 1921: '"a única espécie de immigrantes que aqui não veio para depredar as nossas riquezas naturaes e exhaurir as nossas minas, e nos beber lentamente o sangue, foi a immigração preta"'; Sílvio Romero, Revista do Brasil, de 1916: '"A escravidão, apesar de todos os seus vícios, operou como factor social, modificando os nossos hábitos e costumes. (...) Desenvolveu-se como força econômica produzindo as nossas riquezas; e o negro foi assim um robusto agente civilizador"'; Conde de Affonso Celso276: "no terreno social o nacionalismo quer de todo extinguir o preconceito de raça ou de côr, conferindo ao Índio e sobretudo ao Africano e ao Mestiço o ponto de honra que lhes compete na evolução brasileira".277 Foram frases estrategicamente retiradas dos textos produzidos pelos ilustres homens de letras ou de ciências que comunicavam a metáfora do amálgama das três raças fundadoras, conferindo a cada uma papéis significativos na formação da nação, sobretudo ao trabalhador africano visto como resignado, forte e afetivo, adjetivações que para aqueles militantes e leitores dos periódicos produzidos eram vistas como positivas e dignificantes. Dentre os chamados estudiosos em voga, escolhemos analisar os escritos de Nina Rodrigues, Sílvio Romero e Oliveira Vianna, além de alguns trabalhos do historiador Rocha Pombo, porque foram citados nos textos produzidos na época pelos 275
LEITE, "A nossa raça é uma raça mestiça e superior", O Clarim d' Alvorada, nov/1928, no.10, Segunda fase. P.2 276 Afonso Celso publicou em 1900, o livro Por que me ufano de meu país, trabalho extremamente nacionalista que louvava o país, sua natureza, povo e cultura. O livro que segundo o autor tinha a finalidade de incutir nas crianças o dever moral e cívico de respeitar e valorizar a pátria, foi bastante lido conforme o número de edições que teve: em 1936 estava em sua 11º edição. Cf. LEITE, 1992:195-201
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intelectuais militantes ou então lembrados especialmente por Correia Leite anos depois. Como vimos anteriormente, outros intelectuais públicos na sociedade brasileira foram citados na imprensa negra, porém mais pontualmente. Como um paradoxo, o contato com as opiniões de alguns especialistas favoreceu, pouco a pouco, o aparecimento de um pensamento próprio entre os militantes. Vejamos de que maneira. Os especialistas estavam convictos de que a primeira atitude no sentido de resolver a problemática racial seria conhecer, profundamente o próprio país. Passaram a estudar o que denominaram os elementos constituintes do caráter brasileiro enquanto nação em formação. E, se a mestiçagem estava na constituição de nossa formação racial, além de ser considerada, para alguns, o caminho para o branqueamento do Brasil, se fazia necessário fundamentar os benefícios decorrentes de sua efetivação. Esses estudos, baseados nos paradigmas científicos produzidos pelos trabalhos antropológicos da época, procuravam enumerar as características positivas e negativas do africano, indígena e português. A partir desse esmiuçamento, acreditavam que poderiam melhor manipular tais caracteres, eliminando os negativos e incentivando a manutenção dos positivos. Ainda que não intentamos e nem tenhamos como mensurar a completa influência desses especialistas sobre a formação intelectual de Leite e Veiga, constatamos que houve uma releitura, ou melhor, uma apropriação dos dados sobre a história do negro publicados nas publicações de Rodrigues, Romero, Oliveira Vianna e Rocha Pombo. Contribuindo assim para a (re)elaboração de uma imagem positiva do grupo negro, a partir de uma "imagem gratificadora de si próprio, de seu passado como agente histórico e de sua dignidade no presente e no futuro".278 Como já dissemos, durante todo o período de existência, seja do Clarim d' 277
Veiga dos Santos, Clarim d' Alvorada, 9/06/1929, no.17 p.1 Segunda fase.
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Alvorada seja do A Voz da Raça, encontramos reelaborados, junto às idéias próprias dos ativistas, referências a esses escritos. Alguns desses estudiosos foram citados na íntegra, ou seja, caso algum artigo, publicado em jornal de grande circulação, fosse julgado significativo para o público negro, era prontamente republicado nos jornais negros. Outros não sofriam uma espécie de apropriação, seja pela veiculação de um argumento interessante, seja pela citação literal de uma frase de impacto como vimos anteriormente. Muitas das idéias desses especialistas eram ventiladas primeiramente em revistas especializadas como a Revista do Brasil279, por exemplo. Depois saíam livros, editados mais de uma vez. São considerados, até hoje, clássicos do pensamento nacional. O caso de Rocha Pombo é excepcional, pois sendo um historiador, diferentemente dos outros, foi mencionado inúmeras vezes na imprensa negra e posteriormente nos depoimentos de Correia Leite, o que denota sua importância como historiador. A trajetória de Nina Rodrigues (1862-1906) se consolidou como a de um profundo estudioso do negro entre o final do século XIX e início do século XX. Preocupado com o que ele considerava "o problema O egro no Brasil", o autor partia do princípio que para resolvê-lo, seria necessário um sério conhecimento desse grupo racial, composto por diferentes etnias advindas do continente africano. Foi em busca desse objetivo que o médico baiano pesquisou e publicou inúmeros estudos sobre o negro, seja em revistas especializadas ou livros. Sua obra póstuma280, Os africanos no Brasil, muito colaborou para reforçar uma inferioridade desses e seus descendentes, tidos como biologicamente responsáveis 278
FERNANDES,1978:24 vol.II A Revista do Brasil teve início na Primeira República 280 RODRIGUES,1932 foi publicado mais ou menos 15 anos após a morte do médico. O organizador recolheu todos os manuscritos durante anos e lhe deu uma feição lógica. Não sabemos portanto, se a ordem estabelecida pelo organizador seria a mesma de Nina Rodrigues, pois em alguns momentos sentimos que alguns capítulos estão desconexos. Na verdade, o livro não tem uma ordenação perfeita, 279
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por entravar a marcha para a civilização no Brasil. Trata-se de um livro profundamente etnocêntrico a ponto de atribuir todo sinal de "civilização" em África a feitos de brancos ou "quase brancos" que lá estiveram. Segundo Rodrigues havia uma "incapacidade orgânica e morfológica" que impedia os negros de alcançarem o mesmo patamar de civilização atribuído aos brancos. Por isso, creditou aos "chamitas", uma subespécie da raça branca, os sinais de civilização encontrados no continente africano, em especial no Egito e Abissínia, atual Etiópia.281 Mas contrariando Rodrigues, Arlindo Veiga dos Santos, em 1929, ao refutar uma conhecida frase de Miguel Pereira que associava o país a um "vasto hospital", nos mostra sua concepção a cerca do "problema negro". O intelectual não temeu dizer que essa realidade desoladora derivava de uma doença mais grave: "o preconceito de raça e de cor" legitimados pelos governantes, "deixando que pereça toda uma gente que precisa ser substituída, porque é mestiça, porque é negra e deverá ser branca, custe o que custar, mesmo à custa do esfacelamento do Brasil, pela vasa do arianismo imigrado".282 Percebemos que Arlindo, numa linguagem irônica e direta, criticava as políticas imigratórias, interessadas ao fim ao cabo no branqueamento da população nacional. Não obstante o livro de Nina Rodrigues trouxe outras contribuições. Pesquisou os diversos grupos étnicos africanos que vieram como trabalhadores escravos cá. Enfocou a permanência das religiões, línguas, artes e história dos africanos durante a Colônia e o Império no Brasil. Nele, os intelectuais-militantes negros possivelmente, tiveram acesso a história dos quilombos, em especial do quilombo de Palmares, e das sublevações mulçumanas do século XIX. Acreditamos que com a leitura dos
parece mais a junção de alguns ensaios e apontamentos de pesquisa. 281 RODRIGUES,1932:398-399 282 Veiga dos Santos, Clarim d' Alvorada, 9/06/1929, no.17 p.1 Segunda fase.
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apontamentos de Rodrigues, os intelectuais-militantes do movimento negro puderam incorporar positivamente, a história da resistência negra e do papel colonizador do negro no Brasil. E ao mesmo tempo, desprezar ou então, repensar a partir da prática, aspectos tidos como inferiores da cultura africana existentes no Brasil. Essa análise explicaria, em parte, de certa forma, o afastamento dessa elite negra letrada e citadina das manifestações culturais estritamente negras e sua conseqüente aproximação com a cultura branca, européia e cristã. Outro aspecto interessante desse trabalho de Rodrigues é a recorrente aproximação entre a realidade brasileira e a norte-americana. Ao contrário do que se crê nos dias atuais, já naquele período, as relações raciais nos dois países eram comparadas. Num posicionamento que considerava a inferioridade dos africanos um "fenômeno de ordem perfeitamente natural", mas que condenava o tipo de escravidão tido nos EUA, Rodrigues afirmou que "o critério científico da inferioridade da Raça Negra nada tem de comum com a revoltante exploração que dele fizeram os interesses escravistas dos norte-americanos."283 Num outro momento, ao se referir ao "problema o negro", creditava uma certa vantagem aos EUA porque "tinham um excedente respeitável de população branca", não tinham uma grande parte do país em plena região tropical, portanto, mais suscetível aos negros que aos brancos, conforme as teorias do meio geográfico da época. E, por último, já "estavam discutindo o seu problema étnico" com diferentes propostas de soluções como a fusão, o êxodo para a África ou à América Central ou Meridional.284 Ainda num outro momento, fazendo claramente uma diferenciação entre o padrão das relações raciais daqui com o de lá, preocupou-se em distinguir e até mesmo criticar o que se definia como negro nos EUA "compreendidos todos, com os mestiços, na rubrica coloured men, - forma de 283
RODRIGUES,1932:14
132
condenação a mais formal exclusão de qualquer tentativa de longo mestiçamento". No caso brasileiro, entendia a questão como algo que estava no "cerne da constituição da nossa nacionalidade", ou seja, a mestiçagem havia se incumbido desse amálgama. Mas ainda assim, numa perspectiva negativa, própria dos apontamentos científicos do momento, acreditava que "no sangue negro havemos de buscar, como em fonte matriz, com algumas das nossas virtudes, muitos dos nossos defeitos".285 Daí a importância e atualidade de seu estudo, naquele momento. Sílvio Romero pertenceu a chamada "geração de 1870", conhecida por absorver e reelaborar os postulados científicos difundidos na Europa, mas também pelo fato de tentar entender o país a partir do estudo das suas origens e apontamento dos seus problemas.286 Balizado pelo cientificismo que resultaria no progresso nacional, Romero escreveu inúmeros trabalhos preocupados em avançar os estudos sobre o país, além de resolver seus mais pungentes problemas, sendo um deles, a constituição do que se entendia por povo brasileiro. No decorrer dos anos seu pensamento diferenciou-se dos postulados da época porque deu significativa importância para o tema da mestiçagem. Polêmico, afirmava que todo brasileiro era um mestiço. Ou era no sangue, pela combinação de fatores como convívio entre o português, o negro e o índio, somadas as peculiaridades do meio, ou era nas idéias devido a prática de imitarmos tudo o que era estrangeiro. Em O Brasil na 1ª década do século XX, publicado em 1911, inicia suas considerações a partir de severas críticas a um autor da época chamado Onraldo Cruz que, ao analisar as condições de vida da população no Pará, afirmara, em linhas gerais, que se tratavam de "raças cruzadas profundamente desgraçadas". Cruz atribuía a desgraça, a um
284
RODRIGUES,1932:17 RODRIGUES,1932:26 286 MOTA,2000:25 285
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conjunto de fatores relacionados ao meio e as condições sociais, políticas e religiosas, no qual a predominância indígena concorrera para aquele estado de coisas, que consequentemente também acabou influenciando as outras raças.
Romero teceu
críticas virulentas e irônicas ao "eminente cientista" afirmando que o "escritor é um genuíno rebento dos três povos e foi nascido ali. Quem o ler, ignorando os fatos, poderá pensar que quem está a escrever aquelas conclusões é algum puríssimo ariano da Escandinávia ou da Inglaterra nas zonas mais extremas de misturas. Puro engano. Trata-se de um cafuso irrecusável, exemplar típico para servir de exemplo. Nada mais cômico do que ouvir sujeitos, como esse citado, fazerem referenciais as raças cruzadas287 do Pará, como alguma coisa que está fora deles, alguma coisa que lhe é estranha, de que não fazem parte, a que são superiores...288
Como se pode perceber, Romero tinha as suas próprias conclusões acerca da mestiçagem, que se relacionarmos com o pensamento da época devem ter sido vistas como progressistas e até incômodas. Daí o interesse dos nossos intelectuais-militantes negros por suas idéias. Mas não nos enganemos. Romero conseguia combinar doses de pessimismo e otimismo quando o assunto era a mestiçagem no Brasil e nossos militantes devem ter se apropriado do que os interessavam. Efetivamente, Romero entendia a mestiçagem como recorrente na nossa constituição nacional e que, de certa maneira, seria hipocrisia fugir dessa constatação. A mestiçagem era a "marca e a afirmação de nossa identidade".289 Sua obra mais conhecida é História da Literatura Brasileira. Nesse trabalho o autor analisa a produção literária brasileira - autores e obras - desde a Colônia. 287 288
Grifos do próprio autor. ROMERO,1911:69
134
Importa-nos aqui, entendermos como o autor abordou a temática racial, em especial a questão da mestiçagem. Logo no início do capítulo intitulado: Diversas manifestações na prosa - História, o tema aparece ao atribuir um certo atraso nas idéias de Karl Friedrich von Martius em matéria etnográfica. O alemão ganhou o concurso realizado pelo Instituto Histórico e Geográfico do Brasil sobre como escrever uma história do Brasil. Para Romero o "afamado sábio" laborava em fantasias românticas pois ainda acreditava no
"resultado maravilhoso da mistura de raças inteiramente diversas, em oposição aos mais perfeitos estudos dos mais competentes naturalistas, que demonstraram que as raças demasiado distanciadas pouco coabitam e, quando o fazem, ou não produzem, ou se produzem, são bastardos infecundos, depois da 2ª ou 3ª geração."290
Romero certifica o leitor da existência de mestiçagem também nos continentes antigos. A mestiçagem havia causado a decadência da Europa. O surgimento das doutrinas anarquistas e socialistas naquele continente seria a prova de "monstruosa reversão racial". Nesse sentido, caberia ao "homem de sciência" não somente teorizar sobre o assunto, mas com uso meticuloso de seus modernos conhecimentos ajudar. Seu papel era interferir na realidade social brasileira manipulando o mecanismo do mestiçamento que até ali vinha combinando "raças inteiramente diversas", no sentido de concorrer para a completa arianização do povo brasileiro. Logo, a mestiçagem, agora pela substituição do sangue africano pelo europeu, faria prevalecer com o passar dos anos a raça mais numerosa e forte: a branca. O que nas projeções do intelectual talvez ocorreria em quatro séculos, caso seguissem seus conselhos. Em sua análise mesmo a mestiçagem que houvera durante a Colônia e o 289
MOTA,2000:70
135
Império, já concorrera para um melhoramento da raça. O que se comprovava pela quantidade de mestiços que se destacaram na prosa e na poesia. Nomes como Romualdo Seixas, os irmãos Rebouças, Torres Homem, Justiniano da Rocha, Francisco Otaviano e Caetano Lopes de Mouraes foram citados por Romero. Além do jurista e parlamentar Antônio Pereira Rebouças que para o autor era "quase negro". Antônio Rebouças testemunhava "a capacidade do mestiço para instruir-se e chegar a uma bela posição pelos seus talentos", pela junção de inteligência, "rara energia e inteireza de caráter".291 O teórico que também foi político e professor no colégio Pedro II durante 30 anos, colaborou na discussão dos problemas nacionais de várias estirpes. Costumava culpar a distância entre o povo "ingênuo e generoso", composto pelas "gentes mais apáticas do mundo _ índios negros e portugueses" da elite dirigente, formada substancialmente, de políticos, jornalistas e literatos "incompetentes ou traficantes", por
arremedarem seja na política, economia e até mesmo cultura, os modelos
estrangeiros, ao invés de se debaterem na busca por uma via genuinamente nacional.
Contudo, malgrado essas críticas, Romero foi um homem de seu tempo. Para ele, faltava reconhecer que a "raiz do mal" estava entre os próprios brasileiros, de índole inconsistente naquele momento, "incapaz de grandes organizações, conquistas reais e duradouras."292 E com autoridade de cientista, dava conselhos projetando o futuro:
"estas são idéias que propagamos para que, pelo meios educativos, pela intrução, pela seleção, pela mescla de bons elementos étnicos de contigentes 290
ROMERO,1943:143 ROMERO,1943:224 292 ROMERO,1911:42 291
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imigratórios superiores, espalhados em todo o Brasil, especialmente nas magníficas terras do Centro e do Norte, nos regeneremos."293
A obra escolhida de Rocha Pombo é História do Brasil Ilustrada, composta de 10 volumes. O historiador foi mais de uma vez citado no Clarim d' Alvorada. Acreditamos que sua coleção de história do Brasil desde a chegada dos portugueses até os primeiros anos da República deva ter sido um importante manual indispensável para aqueles interessados em compreender e escrever sobre o país e o povo. Num dos volumes, Rocha Pombo teceu o que ele denominou "considerações gerais sobre os diversos elementos étnicos e as condições do caldeamento". E é o que nos interessa para este trabalho. Analisando os povos formadores e comparando a história do Brasil com a de outros países da América chegou a conclusão que, o contato racial no Brasil até aquele momento, vinha contribuindo para que não se falasse mais em várias raças, mas num amálgama, ou seja: seria impossível estabelecer qual das três estava mais presente.294 Contudo, as três raças também no entendimento do autor, não ocupavam o mesmo lugar na hierarquia valorativa. No processo de caldeamento, o branco europeu atuou como líder, o negro e o indígena apenas como coadjuvantes. Esse processo deveria continuar. Por isso era partidário da entrada de imigrantes europeus, não só para suprir a defasagem de mão-de-obra, mas principalmente para promover a "melhoria da contextura das três raças". Isso não tinha ocorrido, com efeito, até aquele momento, devido a preponderância dos elementos bárbaros, pois era sabido que a mestiçagem de "dois typos diferentes produz um typo médio, acima do mais rude, mas abaixo do mais culto".295 Sua História do Brasil Ilustrada ajudou a fixar no senso comum a idéia de que 293
ROMERO,1943:162 ROCHA POMBO, 1905:21 295 ROCHA POMBO,1905:8-9 294
137
todo brasileiro é em essência um mestiço. Rocha Pombo também reforçou a visão de que tivemos uma colonização pacífica, até mesmo providencial. Afirmando textualmente que não foi uma conquista, mas sim "encontro, um concurso, uma cooperação de raças."Analisando a participação das "três raças fundadoras", assegurou que havia uma necessidade da Europa se expandir, pois estava exaurida. Por outro lado, os brancos mais evoluídos acabaram por ajudar a "raça americana" na marcha para alcançar uma "cultura e uma civilização própria". No saldo, os povos autóctones lucraram com a fusão. Contudo quem mais perdeu foi o "negro que entrou aqui como escravo e como escravo ficou".296 O africano que para cá veio como escravo foi adjetivado pelo autor de afetivo e resignado. O que demonstra um afinamento de opinião com relação à antropologia que insistia em relacionar o comportamento social à constituição biológica. Sendo características do africano negro a resignação e afetividade, quando posto na condição de cativo essas permaneceram. Daí, certamente a representação da Mãe-Preta e Pai João recorrente no imaginário social brasileiro. O escravo negro assumiu o Brasil como sua pátria e no seu entendimento procurou cooperar para a edificação da nova terra. No seu entendimento não cogitou retornar à África. Aqui estava a “civilização”. Lá a “barbárie”. A escravidão seria o preço a ser pago para alcançar a evolução na América. Assim, fugas, sublevações, quilombos, etc. são vistos pelo historiador como protestos, não contra o cativeiro, mas sim contra os excessos do martírio.297 Para todos esses autores a mestiçagem funcionou como o amálgama da formação racial nacional, que ainda incompleta caminhava para um desfecho positivo via sangue europeu proporcionado pelas levas de imigrantes brancos, é claro. Pensamento uníssono entre Rocha Pombo, Sílvio Romero e mesmo, Oliveira Vianna. 296
ROCHA POMBO,1905:30-31
138
E, se por um lado, os textos de Nina Rodrigues afirmavam que, a mescla de raças incompatíveis entre si e sem nenhum controle de especialistas provocou a degenerescência do tipo brasileiro, com conseqüências na ordem política e social, por outro, acabou por publicizar estudos sobre os negros nunca dantes conhecidos. Frases de efeito de Sílvio Romero e Rocha Pombo foram utilizadas tanto por Veiga como por Leite na imprensa negra. Convictos de que dentre os chamados nacionais era impossível encontrar um indivíduo geneticamente puro, uma vez que na constituição do povo brasileiro concorreu o elemento autóctone, o africano e o europeu, os militantes recorriam a estes escritos para terem mais argumentos de autoridade. Por último, resta-nos Oliveira Vianna. Como vimos anteriormente, o advogado niteroiense mais conhecido por seus estudos que, procuraram explicar a compleição histórica, social e política do país pelo viés da constituição biológica do povo e sua interação com o meio, do que pelos préstimos de sua profissão de formação, foi rechaçado entre os intelectuais-militantes negros. Vejamos se havia motivos. Oliveira Vianna via a diversidade de fenótipos humanos como prova da existência de desigualdades biológicas. Seriam essas diferenciações genéticas capazes de promover o progresso ou atraso de uma nação. Tudo dependeria da quantidade de características tidas como inferiores ou superiores que esse povo apresentasse. Daí a necessidade que tinham, os países interessados em alcançar patamares mínimos de civilização, em estudar sua própria constituição racial e as maneiras para alcançar a eugenia. Assim como Romero, Vianna quis encontrar uma saída para a questão da formação nacional brasileira. Para tal, foi um entusiasta do branqueamento ordenado e
297
ROCHA POMBO, 1905:32
139
controlado, capaz de gerar indivíduos eugenicamente mais aptos, os quais Vianna chamou de "mestiços superiores". Seus primeiros estudos saíram na Revista do Brasil, a partir de junho de 1917. Depois foram compilados, o que resultou no livro Populações Meridionais, com primeira publicação em 1920. Bastante lido e aceito na época, cumprindo trajetória de sucesso. A todos que quisessem conhecer o Brasil, recomendava-se Oliveira Vianna.298 Imbuído da tarefa de trazer a tona o passado "latente e obscuro" do brasileiro, único mecanismo capaz de possibilitar ao homem do presente seu autoconhecimento, uma análise fria e severa de sua composição e estrutura, além das "tendências particulares de mentalidade e caráter", afirmava ser esse empreendimento somente viável com a ajuda de alguns conhecimentos, no seu entendimento, os mais atuais. Para tal citava Ratzel, Gobineau, Lapouge, Le Bom, Le Play dentre outros, tidos como os gênios das ciências da natureza e da sociedade que contribuíram para suas formulações sobre o Brasil e o brasileiro. Fiquemos com suas afirmações sobre o estado de São Paulo. Negando de forma gritante os dados sobre a história colonial, logo "inventando a história"299, o autor deu significativa valorização ao estado, afirmando terem os paulistas desenvolvido uma sociedade urbana e aristocrática composta de altivos e dignos proprietários de terras. Todos "descendentes autênticos das mais notáveis e ilustres casas de Península". Sobre a aristocracia rural, Vianna foi só elogios. Novamente contrariando as evidências históricas, em Pequenos estudos de psicologia social, publicado primeiramente por volta de 1921, Vianna tratou do poder político dos coronéis contra a ordem imposta na Colônia e parte do Império, em que só parcela mínima da população
298
VENANCIO,2003:219; também um texto contemporâneo, datado de 1925, publicado na Revista do IHGB, tomo 97, vol.191 cita o sucesso de Vianna com suas "obras sempre esgotadas". 299 LEITE,1992:224
140
podia votar e ser votada. Segundo ele, os "grandes proprietários do interior", atuavam como "brilhantes caudilhos locais" levando até "a boca das urnas apáticas populações rurais". Ou seja, no lugar de ver manipulação e coerção eleitoral no “voto de cabresto” praticado pelos chamados coronéis, Vianna via compromisso com os mais fracos e democratização do processo político eleitoral. O final trágico desse grupo, composto por "pura" e "respeitável" aristocracia rural se deu em 1888, com a Lei da Abolição, adjetivada de inopinada e inepta pelo autor.300 Nessa passagem, deve ter começado a antipatia dos ativistas negros. Vianna defendia declaradamente os latifundiários e provavelmente deve ter sido um defensor da indenização aos proprietários de escravos. Em Evolução do Povo Brasileiro, escrito em 1922, o autor se propunha fazer uma correlação entre os indivíduos e os territórios habitados especialmente nos primeiros séculos de ocupação. Lançou a tese do dólico-louro, um dos tipos do H. europeus, do qual supunha que os antigos bandeirantes descendiam. Pela preocupação do autor em minimizar, na segunda edição, o que havia escrito antes, suas conclusões não devem ter agradado a muitos, pois se redimiu afirmando serem "simples conjecturas para a psicologia excepcional dos antigos pioneiros paulistas". O livro desfila um contínuo de dados sobre a constituição física e psicológica das "três raças distintíssimas, duas das quais exóticas" presentes nos primeiros séculos de nossa formação. Nomeou os brancos que vieram para cá de "dólicos louros", originários da nobreza portuguesa e "braquióides" ou "dolicóides brunos", "tão pobres que trazem nas costas tudo o que possuem". No seu entendimento, os caracteres biológicos conformavam a organização econômica e social. Portanto, todas as famílias da aristocracia rural que dominaram o país desde o período colonial eram descendentes de
300
VIANNA,1942:103
141
dólicos louros puros ou cruzados. Vianna dedica muitas linhas para reforçar o eugenismo301 dos Cavalcantis, Prados, Lemes, Buenos dentre outros.302 Especialmente sobre os africanos, disse que a variedade era ainda mais vasta, contribuindo para "trazer a esse caos o contingente de maior confusão e discordância". Descreveu fisicamente algumas das tribos ou nações, sempre de forma etnocêntrica e preconceituosa, uma vez que o modelo comparativo era branco. Na sua concepção os iebu, caçanje e haussás "têm fealdade dos tipos negros puros". Já os mina, fula, achanti ou felani por serem de "cor mais clara" e terem "cabelos menos encarapinhados" tinham "grande beleza e suavidade nos traços". Mas nenhum desses tipos citados suplantavam os jolofos e sereres, "cuja soberba compleição tem a pureza, a graça e nobreza do tipo europeu". Vemos, portanto, na caracterização desses tipos que tudo o que se assemelha ao branco é positivado. E, se os comportamentos psico-sociais decorriam da conformação biológica, suas conclusões continuariam na mesma linha. Assim, afirmou que havia "tribos indolentes", como os gêges e angola. Outros eram "laboriosos" como os timinins, minas e daomeanos. Algumas eram "pacíficas, obedientes e humildes passíves de civilizar", caso dos minas, iorubás, egbas e felanis. Quanto a moralidade, Vianna disse que iorubás, egbas e haussás tinham "costumes honestos". Já os gêges e angolas eram "facilmente corrompíveis", ainda que superiores intelectualmente em relação a outras nações.303 Mas a formação racial brasileira e o problema da mestiçagem foram mais detalhadamente discutidos em outro livro. Raça e assimilação saiu em 1932, e teve assim como os outros grande repercussão, sendo divulgado como um livro teórico. 301
A eugenia foi um movimento que acreditava na perfectibilidade humana a partir da genética e não da educação e que incentivou a seleção da espécie a partir do cruzamento entre indivíduos puros e superiores. A prática da eugenia teve seu ápice com a instituição do nazismo na Alemanha governada por Hitler. Cf. SCHWARCZ,1993:57-58 302 VIANNA,1956:128-132 303 VIANNA,1956:137-139
142
Nele, Vianna procurou atualizar seus conhecimentos sobre a questão racial iniciados em Evolução do Povo Brasileiro.304 Introduziu a noção de etnia e demarcou sua distinção da categoria raça, ainda que continuasse a se pautar em pressupostos biológicos. Fica parecendo que, as questões econômico-sociais da época resolver-seiam com a entrada de mais "dolicocéfalos louros", "pequenos braquicéfalos louros", "grandes braquicéfalos brunos", "grandes dolicocéfalos brunos", dentre outros tipos brancos citados pelo autor. Especificamente sobre a mestiçagem, afirmava que intencionava contribuir para resolver sua problemática, a partir de uma "seleção eugênica da imigração e da distribuição racional das etnias arianas conforme uma maior ou menor adaptabilidade às diversas zonas climáticas do país".305 Esses mecanismos gerariam os "mestiços superiores", resultado da diluição do sangue indígena ou negro numa maior quantidade de sangue ariano. Duas práticas concorreram para o atraso da completa arianização do povo brasileiro: a formação das colônias de imigrantes que, no mais, cruzavam-se entre si e a existência de "preconceitos de raça, classe, origem e ideais de beleza", entraves para a ascensão dos mestiços à elite.306 Na hierarquia das raças continuaria enfático, destinava ao conjunto da raça negra o último degrau. O negro foi mais de uma vez foi apresentado como simiesco, troglodita, decadente moral e inferior.307 Em resposta a uma crítica de Arthur Ramos, que acusara Vianna de estar preso a "uma ciência do século passado", disse que os argumentos de Ramos sobre o fato de terem sido encontrados vestígios de civilização no interior do continente africano, logo, de que os negros possuíam as mesmas capacidades dos brancos não procediam, pois se tratavam de afirmações infundadas 304
LEITE,1992:232 VIANNA,1938:90 306 VIANNA,1938:97 305
143
baseadas num estudioso "imaginoso". Disse ainda que tais civilizações devem ter sido certamente criações de mestiços afro-semitas, isto é, negróides berberizados ou arabizados.308 A inferioridade racial de negros, indígenas e os ditos mestiços inferiores serviria para justificar a dominação de classes. Nesse sentido o africano puro nunca seria um criador de civilização, daí a subordinação do continente "negro" pelo outro, "branco". De forma contundente conclui
"até agora a civilização tem sido apanágio de outras raças que não a raça negra, e que para os negros possam exercer um papel civilizador qualquer, faz-se preciso que eles se caldeiem com outras raças, especialmente com as raças arianas ou semitas. Isto é: que percam a sua pureza.309
Daí decorria a idéia dos mestiços superiores, sujeitos arianos pelo "caráter" e pela "inteligência", prontos a "colaborarem com os brancos na organização e civilização do país".310 No seu entendimento, o valor de um grupo étnico deveria ser medido pela capacidade que o mesmo tinha de gerar tipos superiores. Por isso, os brancos ocupavam a hierarquia das raças, uma vez que pelo caldeamento com o indígena e africano vinham proporcionando ao país uma geração de novos tipos "capazes de ultrapassar pelo talento, pelo caráter ou pela energia da vontade, o escalão médio dos homens de sua raça ou do seu tempo".311
Talvez Vianna precisasse
acreditar nessa premissa, já que pelo menos dois estudos, além do depoimento de Correia Leite, informaram-nos que o mesmo era mulato.312 Pelo que nos parece, os
307
LEITE,1992:232 VIANNA,1938:277 309 VIANNA,1938:285 310 VIANNA,1952:153 Populações meridionais do Brasil: história, organização e psicologia. Rio de Janeiro, José Olympio apud LEITE,1992:227. 311 VIANNA,1956:153 312 LEITE,1992:222 ; MAUES,1997 308
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militantes tinham razões para repudia-lo. Por conseguinte, diante dessas constatações, podemos afirmar que o "problema negro" brasileiro teria uma significação e receberia propostas de soluções diferentes conforme o segmento que o analisaria. Para parte influente da elite branca, formada no interior do pensamento do racismo científico do final do XIX, do qual já tratamos anteriormente, o negro representaria um estorvo ao progresso da nação, enquanto seu fenótipo fosse encontrado entre os brasileiros, pois o que causava o atraso do país seria a preponderância desse estoque genético inferior e não a insuficiência de políticas públicas na área da saúde, educação, habitação e emprego incapazes de fazer com que toda a população partilhasse de condições dignas de sobrevivência. Por outro lado, para muitos militantes negros ao redor dos anos 1930, o pejorativo "problema negro" passaria aos poucos, a ser tratado como uma questão racial, ou seja, eles entendiam que havia entre alguns setores dirigentes falta de vontade política para promover a efetiva cidadania da população negra, surgindo, portanto uma questão negra no Brasil. Conscientes dessa realidade, os militantes procuraram formular outras explicações e propor um conjunto de soluções pragmáticas que não passassem necessariamente, pela perspectiva do branqueamento via mestiçagem, mas pela tomada de consciência tanto do segmento negro que deveria se adequar ao novo ordenamento sócio-econômicoespacial, como das elites políticas e econômicas responsáveis pela formulação de políticas públicas capazes de incluir satisfatoriamente os negros. Essa postura política dos militantes mantida desde meados dos anos 1920, seria, mais tarde, referendada pela produção acadêmica dos intelectuais brasileiros, formados na Escola de Chicago, conhecida por deslocar do biológico para o cultural as razões para as desigualdades existentes em formações sociais diversas. Caso do Brasil. Um pequeno texto do Dr. Veiga dos Santos, publicado em abril de 1937, ilustra 145
o que tentamos argumentar. Consideramos importante citá-lo, pois cremos que as convicções teóricas e políticas do intelectual-militante tenham se fortalecido, a partir do momento que novos paradigmas científicos surgiram no lugar das explicações do determinismo biológico, como ocorrido mais sistematicamente, a partir dos anos 1930. Numa retórica que visava positivar o negro e questionar os ditos especialistas, o intelectual-militante inicia afirmando estar longe o tempo em que se cuidava apenas de rebaixar a "maior contribuição racial da formação brasileira: o negro". E, se regozija de "toda uma literatura séria que deixou o campo do romantismo racista para entrar no campo rijo da observação real", provocando assim "uma rehabilitação nacional dos filhos de Henrique Dias". Contudo, mais à frente, numa crítica irônica e virulenta às práticas científicas brasileiras disse que "no nosso querido Brasil, vale muito mais do que o testemunho do real a afirmação duma ciência , ainda que de carregação seja ela, ralando portanto para o terreno resvaladio do cientificismo ôco." E conclui, citando o caso do culto a Tiradentes, mártir da Inconfidência ou Conjuração Mineira, tido como primeiro movimento de libertação nacional. Veiga dos Santos alertava aos frentenegrinos: "há em nossa História, uma página épica de organização, trabalho, sangue, luta e independência: O Estado Palmarino". Portanto, ao invés do culto a Tiradentes, que pelo menos entre os frentenegrinos, se incluísse a celebração de Palmares. O militante ainda propôs a fixação de um dia, "o dia dos Palmares e dos seus reis ou Zambys. E não se dirá mais que foi Tiradentes quem primeiro pensou em independência".313 Além de uma outra abordagem para a questão racial brasileira, Arlindo tocava, já na década de 1930, numa questão que se tornou bandeira de luta no final do século passado: o tema de Palmares. Prova de que semelhanças existiram entre uma época e outra.
313
Veiga dos Santos, "Datas históricas", A Voz da Raça, abril/1936, pag.1
146
Diante desses novos postulados e cônscios do papel de paladinos, os intelectuais-militantes através da imprensa negra incentivavam também a incorporação pelo segmento negro leitor, dos valores advindos da cultura burguesa citadina, numa tentativa de se afastarem de algumas objetivações negativas como do negro atrasado, incapaz e fadado ao fracasso enquanto grupo racial. A incorporação de novos valores estéticos (alisamento dos cabelos, uso de chapéus e vestidos finos) e de novos valores musicais (dançar a valsa francesa em detrimento do samba e do maxixe) dentre outros foram significativos. O branqueamento nesse sentido tinha um outro significado: pode ser entendido "como a interiorização de modelos culturais brancos pelo segmento negro, implicando a perda do seu ethos de matriz africana.314 Para os intelectuaismilitantes, era demasiadamente importante que o conjunto da população negra paulistana adotasse cada vez mais tais valores que figuravam, segundo eles, como prova de que o negro seria capaz de se tornar um sujeito "civilizado" como qualquer branco. Ou seja, poderia deixar de ser um "problema" para a sociedade. Assim, a questão a ser enfrentada passaria a ser outra: provar a existência da discriminação e preconceito racial no país e os mecanismos de diferenciação e exclusão social decorrentes deles, causadores das desigualdades raciais existentes. Daí os inúmeros artigos escritos pelos intelectuais-militantes sobre essa temática. Dr. Arlindo Veiga dos Santos e José Correia Leite durante os anos que militaram, em especial entre os que nos propomos investigar, freqüentemente falavam dessa questão. Fizeram um verdadeiro movimento de incorporação de novos comportamentos ditos sadios que passava pelo uso moralizante dos valores cristãos e modo de vida burguês. O comportamento libertinoso decorrente do alcoolismo e vadiagem, o subemprego, a moradia alugada nos porões e cortiços da cidade e mais a
314
DOMINGUES,2004a:253
147
baixa escolarização eram veementemente condenados. Os militantes em seus textos incentivavam o nascimento de um "novo negro", emergido dessas novas condutas, capaz de prezar pela família nuclear, comprar uma casa própria e participar das sociedades ditas de família. Mas convém pontuar que este movimento ao mesmo tempo em que numa idéia de circularidade315 consumia os valores da cultura branca, incorporava a história e a tradição cultural negra, ou pelo menos parte dela, considerada mais coerente às novas representações sociais que tencionavam construir. No caso das festividades do carnaval, bastante praticado pelas classes populares através das agremiações, podemos afirmar que não houve um total afastamento, pois saía na imprensa negra a programação dos grupos carnavalescos. Fora isso, tanto o grupo de Correia Leite quanto o da Frente Negra Brasileira, realizou em vários anos concursos, nos quais se premiavam os melhores cordões.316 Porém constatamos que essa aproximação com o que conhecemos hoje por escolas de samba se dava apenas durante o período do carnaval. Até os anos 1930, os participantes das agremiações carnavalescas sofriam constantemente perseguição policial, pois o Estado os viam como negros vadios. Talvez por isso, os intelectuais-militantes não quisessem ver o nome das entidades que fundaram, associado a tais grupos. Mas em relação a uma reelaboração positiva de práticas e símbolos da cultura negra, um texto de Veiga dos Santos, intitulado o "Natal da Frente Negra" nos é mais significativo:
(...) O simbólico papai-noel foi desde o ano passado, exonerado do meio frentenegrino e em substituição a ele, foi empossado o venerável pae João - o progenitor da raça no Brasil desde a data do seu 315 316
GINZBURG, 1987. Cf. Chibata, s/nº. ano 1932.
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descobrimento; portanto, é das mãos do Pae João, criançada, que recebestes as vossas alegrias _ o vosso presentinho de Natal."317
Vimos, pelo fragmento que desde 1933, Arlindo havia instituído um Natal mais coerente com a realidade das crianças que freqüentavam a Frente Negra Brasileira, pois a objetivação de um velhinho branco barbudo foi substituída por uma outra, a do Pai João, considerado, nessa lógica, um símbolo mais apropriado por ser negro. Veiga dos Santos associou Pai João a um homem sadio, forte e progenitor da "raça no Brasil" contrariando a representação do velho escravo, trôpego, de fala engrolada e olhos mansos, dedicado e servil que acompanhou o senhor branco por toda vida, ou seja, uma antítese do quilombola revoltado. A objetivação do Pai João de Arlindo ainda estava no vigor da vida adulta. Por isso sua imagem não representava a subserviência e sim um agente na formação da nacionalidade brasileira, junto com o branco e o índio. O que não deixava de comunicar a fábula das três raças e o desejo do militante de que num futuro próximo o convívio fosse fraterno.
3.2 Década de 1930: a afirmação da democracia racial A política nacional-desenvolvimentista do governo Vargas fez deslanchar a industrialização e a urbanização nas cidades do centro-sul. São Paulo se tornava em passos largos a principal cidade no cenário político-econômico nacional. Criaram-se novos empregos, principalmente na área de serviços e negócios. A burguesia gerada pela nova economia, era a mais importante no cenário político da época, que se transformou com a inclusão de novas forças políticas no âmbito do Estado nacional. O movimento de 30, liderado por Vargas, caracterizou-se por um reordenamento dos poderes nacionais numa perspectiva que privilegiou outros setores das classes 317
A Voz da Raça, 29/12/1934 s/nº , ano II
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dominantes. Mas de que modo a questão racial passava a ser encarada a partir dessas mudanças? Será que no âmbito do pensamento social brasileiro as idéias foram ventiladas? A história da década de 1930 nos mostra que além de mudanças na esfera política, outras em relação a questão racial ocorreram. Isto não se deveu somente a uma política estatal que procurou incorporar no seu discurso o nosso mito de origem, ou seja, o tripé das raças fundadoras e o resultado disso: a mestiçagem. As idéias em 1930 também decorreriam de uma tendência nacionalista que vinha desde a Primeira Guerra Mundial que procurou se desvencilhar das teorias raciais e ambientais características do início da "República Velha", ou melhor, tentava explicá-las por uma vertente mais positiva: a da cultura. Nesse sentido, a publicação do livro Casa Grande e Senzala, escrito pelo sociólogo Gilberto Freyre, em 1933, veio para legitimar no âmbito de uma intelectualidade de renome e mesmo dos dirigentes políticos, idéias que já vinham sendo ventiladas na imprensa negra há anos. E também o médico Arthur Ramos, discípulo de Rodrigues, mas influenciado pelos pressupostos teóricos da antropologia cultural não mais biológica, publicaria uma série de escritos sobre o negro no Brasil e se consagraria como um importante especialista. Os escritos de Vianna foram pouco a pouco perdendo prestígio. E com essa nova abordagem as ações dos intelectuaismilitantes passam a ter mais respaldo. O ativismo dos militantes deixava pouco a pouco o meio político estritamente negro, como disse o militante Francisco Lucrécio:
"os brancos que freqüentavam eram intelectuais que iam lá para fazer seus discursos, iam também transmitir ensinamentos. Eram aquela linha de intelectuais nacionalistas, como Cassiano Ricardo, Menotti Del Pichia, Jorge Amado, Oswald de Andrade, Mário de Andrade. Esses eram os intelectuais com quem a Frente tinha contato e que se entendiam muito bem
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conosco, porque fazíamos troca de conhecimentos. Eles iam fazer palestras e às vezes viajavam conosco para o interior, mas não eram sócios.318
Assim como todos citados por Lucrécio, Arthur Ramos também esteve na sede da Frente Negra Brasileira. Uma notícia publicada no A Voz da Raça mencionou seu comparecimento à sede da organização.319 Não temos como saber se Ramos lá esteve outras vezes. Se foi convidado para uma sessão domingueira. Mas podemos supor que os trabalhos do especialista em medicina social devem ter chegado ao alcance dos ativistas negros. Ramos, em 1934, publicou de sua própria autoria O negro brasileiro. Em 1935, O folclore do negro brasileiro e em 1937, As culturas negras no ovo Mundo. Entretanto, para nossa investigação sua publicação mais significativa foi O negro na civilização brasileira, datada de 1939. Neste livro há um capítulo que trata somente do que o autor denominou "O negro na política. Associações Negras Contemporâneas". São inúmeras informações sobre as organizações negras das décadas de 1920 e 1930, em especial sobre o Clarim d' Alvorada e Frente Negra Brasileira, prova de que houve amplo contato entre o estudioso e os militantes. E, foi uma via de mão dupla. Ou seja: os intelectuais-militantes paulistanos também aprenderam sobre a história do negro com Ramos. Contudo, podemos inferir que o estudo de Freyre encontrou mais ressonância porque pensou uma outra saída à questão do povo brasileiro. Ela passava pelo reconhecimento de que o Brasil era formado por uma "raça mestiça", ou seja "mestiço" seria o povo brasileiro e não cabia ficar a procura de um outro, imaginário. A mestiçagem não era vista apenas como um meio para se chegar a um futuro branco, englobava de fato, uma parcela muito maior do contigente nacional, pois dentro da 318
QUILOMBHOJE,1998:40 depoimento de Francisco Lucrécio. Menotti Del Pichia vinha desde os tempos do jornal Clarim d' Alvorada escrevendo na imprensa negra. 319 A Voz da Raça, julho/1936, pag. 2
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categoria "mestiço" encontrava-se uma gradação de cores que ia dos mais brancos aos mais pretos. Não estava mais à procura do branco brasileiro, mas de um povo "moreno", homogêneo, para compor junto com a língua e o território, o tripé formador do Estado-nação. Não obstante, nesse mesmo período as idéias de Adolf Hitler se difundiam largamente na Alemanha e França, reforçando a hierarquia das raças e consequentemente, condenando a mestiçagem como degeneração e vergonha racial. Por outro lado, a França em oposição à ideologia nazista, lançava a idéia de mestiçagem cultural num projeto de assimilação, com viés político e pedagógico, direcionado às colônias em África.320 Como podemos perceber, no Brasil e no mundo, as idéias estavam em confronto. Nesse sentido as representações sociais formuladas por Freyre em seus escritos iam ao encontro daquilo que anos antes vinha sendo propagado pela imprensa negra pelos escritos dos intelectuais-militantes. Entretanto, mesmo diante do paradigma freyreano, gradativamente incorporado pelo Estado varguista, é importante salientar que havia uma significativa distância entre a produção acadêmica e as representações formuladas pelos formadores de opinião que abasteciam as concepções do sendo comum. O texto que se segue, publicado no jornal Folha da Manhã, em 1935, pelo político Azevedo de Amaral é representativo:
"Incluo-me entre os admiradores da raça negra. Sem poder compartilhar do que se me afigura a ilusão dos que acreditam na igualdade das raças e na homogeneidade essencial da família humana; não tendo em relação ao africano outros sentimentos, que não o do apreço pelas magníficas qualidades que o caracterizam, tornando-o um typo de vitalidade de força, em que certas aptidões inevitáveis compensam até certo ponto as deficiências mentais a que acha sujeito o seu grupo étnico."321
320 321
MUNANGA,1999:45 Cf. Prontuário 1538 - DEOPS/SP Frente Negra Brasileira.
152
O texto de Azevedo Amaral, intitulado "A propósito da Frente Negra Brasileira", foi escrito depois que ele tomou conhecimento do teor político da organização, destoando, portanto da concepção difundida na sociedade paulistana de que os negros tendiam a se associarem somente para atividades festivas. Tidos como intelectualmente inferiores, ainda que portadores de "vitalidade e força", o autor considerava que o surgimento de qualquer espécie de organização política entre os negros, não lograria efeito positivo, pois haveria uma inviabilidade genética. Observem que mesmo se posicionando mais à direita no confronto político dos anos 1930, a FNB enfrentava um ambiente hostil. Amaral ainda afirmaria:
"A crença de que a educação possa obliterar profundas differenças biológicas e transmitidas de geração em geração senão intatas, pelo menos com alterações lentas, que seu valor social e político se torna nuleo, pode ser incluida na mesma categoria da confiança ingenua dos catechistas que julgavam transformar pela agua do baptismo a alma do gentio (...)".322
Provavelmente, o que disse Amaral seria perfeitamente comum entre as concepções dos leitores. O articulista não era um especialista da questão racial como deixou claro numa outra passagem de seu texto, mas tinha suas próprias convicções e, consciente de sua condição de formador de opinião, achava importante externá-las. Numa crítica declarada aos que acreditavam numa possível nação multirracial e demonstrando preocupação com um contingente negro tão numeroso, ainda diria:
"O ponto essencial do problema ethnico brasileiro é que se apresentam entre nós raças profundamente afastadas antropologicamente umas das outras, e tendo cada uma delas tendências culturais que difficilmente podem ser harmonizadas. A circunstancia de occasionalmente apparecer um afro-brasileiro de puro sangue africano assimilando os aspectos scientíficos da cultura branca, não tem mais significação no apreço do 322
Prontuário 1538 - DEOPS/SP - Frente Negra Brasileira
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problema collectivo, que o fato de existirem muitos eurobrasileiros perfeitamente brancos e sobre as quais a influencia do fetichismo africano se exerce como força preponderante, senão exclusiva de sua consciência religiosa. (...) O conflito das culturas se apresenta no Brasil como inevitavel conseqüência das differenciações irredutiveis de grupos ethnicos psychicamente inassimilaveis".323
Fica evidente que o jornalista não tinha conhecimento para distinguir cultura de raça, tratando as duas categorias como sinônimos. Vimos anteriormente que no contexto das primeiras décadas do século XX, raça era o resultado do entrelaçamento de características físicas e mentais, ou seja, não era meramente uma questão de diferenciar a partir de um conjunto de traços fenotípicos semelhantes. Raça combinava aparência externa mais etnia, língua, nacionalidade e religião324, tornando-se para a maioria das pessoas, sinônimo para cultura. Mas Veiga dos Santos, em 1934, já refletia, no A Voz da Raça sobre o incômodo de alguns com os movimentos políticos negros. Segundo ele "a igualdade para o negro está desviada de sua devida aplicação" e que "há quem continue dizendo que o negro tem tudo no Brasil e que é injustificável a sua ação em querer justificar uma União, como esta que se está verificando com o aparecimento da Frente Negra Brasileira."325 O fragmento apresentado, novamente fazia uma clara crítica às políticas públicas implementadas que ao invés de proporcionar a devida cidadania ao afrobrasileiro, concorria para a sua efetiva subordinação social. Além disso, o texto mostra-nos que desde sua fundação, a entidade sofria questionamentos recorrentes por uma parte da sociedade paulistana, quanto a sua efetiva necessidade como mostramos no artigo do Folha da Manhã. Arlindo Veiga dos Santos, na perspectiva racista de
323
324 325
Prontuário 1538 - DEOPS/SP - Frente Negra Brasileira LESSER,1995:308 O Brasil e a Questão Judaica apud RAMOS,1996:61 Veiga dos Santos: "Contra fatos não há argumentos", A Voz da Raça; 28/04/1934 ano II, no. 36, p. 2
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Azevedo Amaral, era um daqueles afro-brasileiros que de forma ocasional, assimilou os aspectos scientíficos da cultura branca326, portanto, grosso modo se por acaso um negro alcançasse o status de doutor, seria uma espécie de erro genético que acometeria aleatoriamente, alguns indivíduos do grupo racial negro, provocando o nascimento de sujeitos inteligentes capazes de aprenderem os ensinamentos científicos, privilégio biológico apenas dos brancos. Entretanto, ao mesmo tempo que idéias pessimistas como as de Azevedo de Amaral circulavam, outras mais otimistas acreditavam numa convivência ordenada entre os diferentes e ainda desiguais grupos raciais formadores da nação. A idéia do Brasil como um paraíso racial, ou seja, de que problemas de ordem racial seriam minoritários no território brasileiro eram fáceis de serem encontradas entre a população nacional. Volta e meia se fazia comparações com outros países, sendo a realidade norte-americana a mais recorrente.327 No ideal da nação perfeita, cada grupo saberia de seu lugar, do seu papel, concorrendo todos para a perfeita convivência. Não seria incorreto afirmar que a partir de 1930, essa idéia tornou-se uma espécie de amálgama, importante na constituição e eficácia de nossa nacionalidade e conseqüente governabilidade. O período da Primeira República ou República Velha na sua acepção negativa ficou conhecido como aquele que quis acabar com a presença negro-indígena do país. O novo período inaugurado com a "Revolução de 30" vinha com um discurso que procurava incluir esses segmentos sociais preteridos. A população nacional ainda bastante composta de negros e descendentes de indígenas deveria ser contemplada pelo novo ordenamento político-social e nesse sentido a idéia do Brasil como o espaço do
326
Azevedo Amaral: "A propósito da Frente Negra Brasileira", Folha da Manhã,1935 texto contido no Inventário DEOPS/SP, prontuário Frente Negra Brasileira, no. 1538 327 RODRIGUES,1932:25-26;
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convívio fraterno entre as raças deveria se consolidar. Nesse momento, o mito da democracia racial328 se consolidava na sociedade brasileira num esforço do próprio Estado em contemplar, à sua maneira, grupos raciais antes preteridos. Assim, o mito nasce com a tentativa de conter uma insatisfação com o status quo, ou seja: evitar a conflagração dos segmentos subalternizados em sua maioria negros como ocorrera outras vezes, especialmente no período em que vigorava a escravidão. Um mito "é uma fala, uma mensagem, um sistema de comunicação".329 A democracia racial como um dos nossos mitos fundantes, deveria comunicar a todos, numa relação que envolvia o significante, o significado e o signo. Essa idéia só sobreviveu na sociedade brasileira porque os diferentes segmentos sociais, em seus pertencimentos raciais e identitários puderam significar e ressignificá-lo nos diversos momentos da história do Brasil. Assim,
"um mito fundador oferece um repertório inicial de representações da realidade e, em cada momento da formação histórica, esses elementos são reorganizados tanto do ponto de vista de sua hierarquia interna (...) como da ampliação do seu sentido (...). Assim, as ideologias, que necessariamente acompanham o movimento histórico da formação, alimentam-se das representações produzidas pela fundação, atualizando-as para adequá-las à nova quadra histórica. É exatamente por isso que, sob novas roupagens, o mito pode repetir-se indefinidamente".330
O Estado liberal republicano via o ideal democrático sob diferentes nuances, ou seja, entendiam que a democracia poderia conter múltiplas definições. Mesmo antes do 328
Segundo Guimarães,2002:138-144 o termo foi usado pela 1ª vez em maio de 1944, por Roger Bastide, num artigo publicado no Diário de São Paulo. O antropólogo após encontro com Gilberto Freyre e observações empíricas de nossa sociedade, afirmou que no Brasil a democracia se fundava numa ordem social e racial, mas não social no sentido dos direitos civis e igualitários reivindicados desde a Revolução Francesa e, sim, numa "região mais sublime: a liberdade estética e cultural e de criação e convívio miscigenado". 329 BARTHES, 1999:132
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Estado Novo alguns teóricos em suas conjecturas afirmavam que no caso específico de nossa formação social, não tínhamos
uma democracia fundada na noção de
igualdade e expressão individual de todos - no sentido clássico do termo - mas sim uma "democracia racial", ou seja, a idéia da igualdade estava intimamente relacionada com o pertencimento racial de cada indivíduo. Conseqüentemente a cidadania não seria a mesma para todos. Assim, a imagem do Brasil como uma democracia racial foi assumida pelo Estado moderno republicano como forma de convencimento para justificar uma ordem de coisas.331 Contudo, vale salientar que esse pensamento apesar de ter se consolidado no período que investigamos, já povoava o imaginário social brasileiro há décadas, alimentando um repertório de representações sociais como a do negro subserviente, afetivo, fiel e festivo, ou seja, cabia a esse segmento racial exercer funções na sociedade em que as qualidades citadas, atribuídas a sua raça, fossem potencializadas. Também é importante salientar que até 1888, a condição de cativo era um marcador importante para definir o limite entre o mundo dos cidadãos e dos não cidadãos. Logo, a cidadania estava relacionada com a origem "racial" do indivíduo, uma vez que, a partir da segunda metade do século XVII, os africanos tornaram-se a mão-de-obra majoritária no Brasil escravista.332 Contudo, o regime de escravidão aqui instaurado deixara brechas, sendo um dos motivos de sua longa extensão no tempo, possibilitando assim ascensão de alguns ex-escravos e/ou seus descendentes numa gradação crescente, ainda que de forma diferenciada.333 Portanto, "essa narrativa é a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da 330
CHAUÍ, 2000:10 GUIMARÃES,2002:110 332 ANDREWS, 1998. 331
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realidade.334 Ela "tem a capacidade de ressurgir em momentos de grandes e intensas mudanças, cumprindo, nesse retorno, a função de dar inteligibilidade ao que parece incompreensível".335 Logo, o componente ideológico do mito está na sua capacidade de "se colocar como um filtro entre o fato e a exigência do conhecimento do fato, deformando o real e estabelecendo um hiato fugidio entre o fato e a sua versão".336 O mito da democracia racial compôs junto com outros símbolos da nacionalidade uma ideologia337 formulada pelo grupo dominante como mecanismo capaz de comunicar uma visão menos desigual e contraditória da sociedade brasileira, ou melhor, uma visão na qual as desigualdades e as hierarquias presentes desde o período de fundação do Estado-nação se justificassem. No caso aqui estudado, vemos nos momentos de transformação mais lenta ou de ruptura mais radical, se retomar a representação social da democracia racial como fala que procurava acomodar os ânimos mais exaltados, como no Estado Novo. Portanto, o mito "projeta-se como componente intrínseco de uma História de longa duração." Estará sempre "disponível na memória, passível de ser utilizado todas as vezes que determinadas condições se impõem".338 É nesse sentido que
"negros e índios, na nova política republicana, são apropriados como objetos culturais, símbolos e marcos fundadores de uma civilização brasileira, mas têm 333
Ver AZEVEDO,1999; SILVA,1997; GRINBERG,2002; MENDONÇA,1999 e 2001. CHAUÍ,2000:9 335 MENEZES,2002:79 336 MENEZES,2002:80 337 Conforme EAGLETON,1997:6, o termo ideologia é bastante polissêmico sendo assim difícil estabelecer uma única definição. No contexto desse trabalho, cabem as ideologias darem algum significado às "experiências das pessoas"; além de comprometerem-se significativamente "com as necessidades e desejos que as pessoas já têm". Portanto elas devem ser "reais o bastante para propiciar a base sobre a qual os indivíduos possam moldar uma identidade coerente, devem fornecer motivações sólidas para a ação efetiva, e devem empenhar-se, o mínimo que seja, para explicar suas contradições e incoerências mais flagrantes". Em resumo, "para terem êxito, as ideologias devem ser mais do que ilusões impostas e, a despeito de todas as suas inconsistências, devem comunicar a seus sujeitos uma versão da realidade social que seja real e reconhecível o bastante para não ser peremptoriamente rejeitada". 338 MENEZES,2002:81 334
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negado o direito a uma existência singular plena como membros de grupos étnicos".339
E foi nesse momento que o conceito de democracia racial começou a ser amplamente difundido pelo Estado vigente e "por conta disso, tudo que iria servir de elemento formador de algum sentimento de 'brasilidade' e de especificidade cultural seria os elementos da cultura negra: a música, a dança, o espírito festivo, a forma 'dionisíaca' de jogar futebol etc."340 Através dessa apropriação o Estado incorporava o legado africano dando um lugar de destaque, porém engessado - o das manifestações culturais- ao grupo depositário desses saberes culturais além de informar que esse patrimônio passaria a ser comum a todos os brasileiros. Sendo assim mais uma maneira ressignificada do mito. O grupo negro procurou então, abrigar-se no colo da democracia racial representada pela nação, que na efetivação de políticas estatais procurou, à sua maneira recebê-lo. A plena industrialização e a regulamentação do trabalho na cidade, assumido pelo governo de Vargas ao longo daqueles anos, teve como conseqüência a valorização deste contingente populacional nacional, ainda que a longo prazo. Com o operariado de origem estrangeira não sendo tão bem quisto quanto antes da 1ª Guerra e acusado de privar o nacional de seus empregos, Vargas instituiu a lei de sindicalização de 1931, que de certa maneira, funcionou como uma política de “ação afirmativa” estatal na medida que, pelo menos na letra da lei, obrigava as empresas a contratar um mínimo de dois terços de operários nacionais. Ainda que não fizesse uma alusão ao pertencimento "racial", essa política provocou uma euforia entre os negros militantes conforme observamos nos escritos da imprensa negra daquele período, principalmente no A Voz da Raça. Mas vale pontuar que entre 1930 a 1945, a legislação trabalhista no 339
GUIMARÃES,2002:121
159
país efetivou amplos direitos sociais. Contudo, trabalhadores rurais e empregados domésticos onde estavam muitos dos descendentes dos escravos, não foram contemplados.341 Veiga dos Santos, Correia Leite e certamente todos os intelectuais-militantes que atuaram nos anos 1930 viam a fala mitológica da democracia racial como procedente. As organizações do movimento negro surgiam não para contestar a democracia racial, mas sim com o intuito de regulamenta-la. Para aqueles militantes o que impedia a efetiva existência da democracia racial entre os brasileiros seria o próprio despreparo do negro, combinado as práticas discriminatórias de algumas instituições tanto públicas quanto privadas. Daí a necessidade da instrução e organização política entre aqueles que se encontravam em desvantagem social: os descendentes
340 341
dos
africanos
SOUZA,2000:151 CARVALHO,2004:85-126
160
escravizados.
4.CAPÍTULO O S
PERCURSOS DOS
“ I" T E L E C T U A I S
DA
R A Ç A ”: P R Á T I C A S P O L Í T I C A S E R E P R E S E " T A Ç Õ E S SOCIAIS E"TRE OS A"OS DE
1928
E
1937
4.1 Veiga dos Santos e Correia Leite: duas personalidades singulares Arlindo Veiga do Santos e José Correia Leite dinamizaram politicamente diversas ações encampadas pelo movimento negro existente em São Paulo entre os anos de 1928 e 1937, pois muitas foram realizadas pelas entidades que dirigiram. Algumas vezes estiveram juntos como no episódio em que os militantes do Clarim d' Alvorada intentaram realizar o Congresso da Mocidade Negra Brasileira. Noutras, as divergências foram maiores - caso da votação do estatuto da Frente Negra Brasileira, explicitando o distanciamento ideológico existente entre os dois, contribuindo para a exacerbação de conflitos, evidenciando o quanto plural foi o movimento negro que lá existiu. Como forma concreta de sociação o fenômeno do conflito não se caracteriza como algo extrínseco às relações sociais. Logo,
"um grupo absolutamente centrípeto não só é irreal, como não poderia mostrar um processo de vida real. (...) a sociedade, para alcançar uma determinada configuração, precisa de quantidade proporcionais de harmonia e desarmonia, de associação e competição, de tendências favoráveis e desfavoráveis".342
161
A existência de posicionamentos discrepantes nas relações sociais está relacionada à complexidade, ou seja, à diversidade de interações que podem existir no interior dos grupos. Ao contrário do que se tende a pensar, a existência de desacordos entre os intelectuais-militantes, denota quão fecundo em projetos foi o movimento negro entre as décadas de 1920 e 1930. O conflito expressa a disputa por um poder que se configura de forma difusa nas relações sociais, estando portanto, suscetível de ocorrer nas competições entre grupos ou indivíduos. Diante dessa premissa, devemos supor, que não foram unicamente as divergências havidas entre os dois militantes as responsáveis pelo declínio do associativismo, mas sim, uma confluência de fatores desfavoráveis à sua continuidade, dentre esses, a configuração de um outro contexto político nacional com a radicalização autoritária do governo Vargas, a entrada de uma geração nova de militantes nos quadros do movimento e mesmo, a interferência de fatores advindos da vida particular na atuação pública dos mesmos, em especial de José Correia Leite. Intentamos
apresentar
neste
capítulo
como
cada
um,
considerando
posicionamento sócio-político e formação ideológica, se movimentou a partir das representações sociais formuladas nos textos e depoimentos que informam sobre suas práticas políticas. Correia Leite e Veiga dos Santos eram compreendidos, aceitos e respeitados da mesma maneira? Como cada qual desempenhava os papéis de intelectuais-militantes que tomaram para si? Estes intelectuais-militantes lançaram mão de representações de todo tipo e com várias finalidades, para tornar compreensível343 algum acontecimento, realidade distante ou então fazer valer a efetividade de uma prática política. Usavam os jornais negros e as atividades públicas realizadas pelas organizações que dirigiam, como 342
SIMMEL, Sociologia Evaristo de Moraes Filho (org.), São Paulo. Ática apud SILVA,1999:111
162
espaço privilegiado para medir suas capacidades de comunicação e liderança. Produto das interações sociais, as representações formuladas por Veiga e Leite resultavam de um processo de mediação em que se relacionava a sociedade e o indivíduo, esse último, alçado ao papel de porta-voz de uma coletividade. Desse modo, cabia a elas, as representações alinhavar o "micro com o macro, o indivíduo e a sociedade, as mudanças cotidianas com a imaginação ideológica."344 Por conseguinte, através de representações sociais concebidas pelos próprios ou da apropriação de representações já conhecidas a partir de informações, imagens, opiniões, crenças, dentre outros, os militantes estabeleciam vínculos de comunicação com a comunidade negra não-militante. Enquanto conhecimento no senso comum, ou seja, mecanismo que explica e interpreta algo através de uma linguagem simples, de fácil assimilação, as representações sociais foram de vital importância, pois proporcionaram, primeiro um meio de diálogo entre os militantes e a comunidade negra e depois, possivelmente a tomada de consciência. Os dois são entendidos, em nossa análise como militantes intelectualizados que se projetaram no meio negro. Arlindo Veiga dos Santos era reconhecidamente, um intelectual. Com formação superior iniciou sua carreira no ensino básico tornando-se posteriormente professor universitário. Já Correia Leite não, foi um autodidata que transpôs as barreiras relativas a falta de educação formal já na vida adulta por meio dos amigos. Essa formação diferenciada fez com os dois tivessem inserções sociais díspares apesar das mesmas origens. Veiga dos Santos pôde trilhar outros caminhos. Assim, um maior domínio dos códigos culturais da sociedade paulistana contribuiu para que Arlindo Veiga dos Santos se projetasse. Contudo, foram as filiações políticas divergentes existentes entre o Dr. Veiga dos Santos e José Correia Leite que mais 343
JODELET, 2001:17
163
concorreram para a exacerbação dos conflitos ocorridos entre as entidades do movimento negro nas quais os dois ocuparam posições de liderança durante os anos 1930. O embate entre esquerda e direita era o combustível para a movimentação política no mundo e, no Brasil o cenário não foi diferente. Comparando-os, cabe afirmar que segundo as próprias palavras de Leite, sua trajetória política esteve direcionada, fundamentalmente, para o meio negro. O próprio argumentou ter sido uma opção, pois entendia a luta contra o racismo com especificidades incapazes de serem articuladas a outras demandas políticas existentes na época.345 Entretanto, supomos que fatores relacionados à sua personalidade também podem ter influenciado neste seu posicionamento. Sujeito introspectivo, carregava consigo, certamente, a frustração de não ter estudado. Como autodidata, procurou sobremaneira, através da literatura, do teatro, da participação em debates, conversas e afins, minimizar a defasagem da escolarização. Num contexto como o da época, em que a instrução era vista como uma saída frente a condição de marginalidade que o negro enfrentava, ou seja, era a via para a ascensão social, sua condição de semialfabetizado deve ter sido utilizada como um capital simbólico para detratá-lo. Pelo menos um episódio reforça o que afirmamos acima. Na época de fundação da Frente Negra Brasileira, as divergências foram inúmeras. Os militantes colocaramse em arenas opostas, especialmente o pessoal do Clarim d'Alvorada e muitos se surpreenderam com a atitude de Correia Leite como o próprio lembrou:
"Havia professores e doutores na direção da Frente Negra. E eu não tenho título nenhum. Sou um autodidata. Isso também me prejudicava. Os fanatizados pela Frente Negra ficavam admirados da minha discordância com os doutores e professores. Muitas vezes eu cheguei a ouvir: 344 345
LIMA,1999:60-61 LEITE,1992:54
164
__ Como é que você consegue discutir com o professor Arlindo Veiga dos Santos, o Dr. Guaraná de Santana?... Eu dizia: __ É uma divergência de idéias e não de títulos. Eu estou vendo que eles estão errados."346
Em outros dois momentos Leite retomaria a questão do abandono e o efeito que isso teve em sua personalidade: "... eu sou um sujeito arredio, tímido. Aliás, essa minha timidez provém da minha formação de menino abandonado;"347 "eu fui crescendo muito complexado. Não gosto muito do convívio com gente importante. Eu me sinto mal. Embora eu tenha quebrado esse complexo, ainda restou muito."348 No seu entendimento sua trajetória revelava uma espécie de realização quase impossível, um sonho, pois como um sujeito "semi-analfabeto, tenha conseguido entrar numa escola de comércio, feito parte de um jornal e convivido com um grupo seleto de negros da época?"349 Seu caso era de uma feliz exceção, pois a escolarização precária funcionava como um dos entraves à politização do grupo negro. Fazendo uma autoreflexão, perguntava-se como pôde ter entrado para o ativismo anti-racista:
"sendo um ignorante, um sujeito semialfabetizado? (...) Como é que consegui descobrir essa questão de que o negro era um marginalizado, com um problema que ele mesmo não discutia, os governos negavam a existência, os brancos diziam que estava resolvido?"
A resposta foi dada pelo próprio ativista algumas linhas depois: "o idealismo surgiu por causa disso também, por causa dessa minha revolta de ver que uma porção de gente confundia a inteligência do negro com esperteza. Nunca admitiam a 346
LEITE,1992:18 LEITE,1992:21 348 LEITE,1992:52 349 LEITE,1992:196 347
165
capacidade de inteligência".350 Contudo, suas ações coletivas tornaram-lhe um homem público, reconhecido entre os pares, ainda que o mesmo usasse de modéstia:
"Mas, quando me chamaram pela primeira vez de intelectual eu fiquei espantado, Uma, porque eu não tinha essas veleidades, e outra, eu não tinha os conhecimentos para tão alto título. (...) E depois começaram a me chamar de jornalista. Eu sei que tive que aceitar aquela condição de jornalista porque eu estava exercendo essa função à frente do grupo que me seguia. (...) Eu comecei a me tornar uma espécie de teórico com as pesquisas da Unesco na década de 50, e mais tarde com outros pesquisadores que procuravam informações relativas as lutas sociais do negro em São Paulo."351
Essa fala nos remete às histórias de vida, as trajetórias e as maneiras com que cada sujeito vem a lidar com um conjunto de condicionantes sociais, econômicos, culturais e políticos vividos. Sendo Correia Leite um semi-alfabetizado, pelo menos nos primeiros anos de sua militância no Clarim d'Alvorada, ainda assim desempenhou tarefas e liderou projetos que poderiam consideram aquém de sua suposta formação educacional formal. Jayme de Aguiar quando o convidou disse que o projeto era de um "jornalzinho" e, Leite o único em quem Jayme depositava confiança, devido a amizade de infância. Correia Leite seria uma espécie de "faz-tudo". Mas o que o levou a superar o "mestre"? Já que foi o próprio amigo que efetivamente o inseriu no mundo das letras. Podemos inferir que o contexto vivido pelo militante esteve propício a tal transformação. Fora isso, sua personalidade reflexiva, propensa mais a ouvir do que falar contribuiu para sua auto-instrução com o passar dos anos favorecendo o surgimento de uma liderança singular, voltada às escolhas coletivas e ao trabalho em conjunto, como pudemos perceber na trajetória do Clarim d' Alvorada e do Clube Negro de Cultura Social.
350 351
LEITE,1992:196 LEITE,1992:196-197
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Ainda assim, o pesar pela falta de estudos acompanhou o militante. Já na velhice, gozando do prestígio e reconhecido como uma espécie de guardião da memória do movimento negro brasileiro, ao ser procurado para relatar a história das décadas anteriores, Leite lembrava da extrema pobreza e conseqüente freqüência precária aos bancos escolares, ao comparar sua infância e a de Jayme de Aguiar:
"eu ficava às vezes despeitado com aquilo, porque ele interrompia a brincadeira para se arrumar e ir para a escola. Saía todo de colarinho engomado... Os que freqüentava grupo escolar tinham pai e mãe. Eu continuava naquela situação de não poder. Um dia descobri que a maçonaria tinha formado um conjunto de escolas pela cidade para meninos impossibilitados de pagar. Consegui entrar para uma delas e passei a me inteirar mais um pouco. Até que a escola terminou. Mais tarde fui fazer um curso de alfabetização criado por um abade do Mosteiro de São Bento, ali na rua Florêncio de Abreu. A escola era destinada a jornaleiros. Mas, como ninguém sabia se eu era ou não (nunca fui), consegui entrar. Aprendi mais um pouco. No entanto, nunca chegava a aprender o suficiente para dizer que sabia ler e escrever.352
Ao contrário, Arlindo Veiga dos Santos foi um homem de letras, escreveu e publicou por conta própria poesias e até pequenos romances, além dos livros doutrinários ligados ao movimento patrianovista.
Ao ingressar na militância
provavelmente por meio do irmão, que estudara até o Colegial, logo alcançou prestígio entre aqueles que freqüentavam as agremiações negras. Seus textos, modos falar e se portar significavam que o negro poderia alcançar o sucesso por meio da educação. Ainda que no começo de sua vida política, Arlindo só tivesse "uma calça, um paletó e um sapato desbeiçado" como depôs o militante Raul Joviano do Amaral.353 A carreira de Veiga percorria uma gradação ascendente e por isso, figurava como exemplo para a juventude negra. Esse destaque agregou prestígio a Arlindo Veiga dos Santos, 352
LEITE,1992:26
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favorecendo-o quando da sua escolha para o cargo de presidente da Frente Negra Brasileira. Ainda que suponhamos, sua condição ter sido de que o grupo abrisse mão da confecção do regimento e aceitasse na íntegra, um documento escrito por ele, como veio a acontecer. Ficando claro que ao escolher fazer sozinho o estatuto da Frente Negra estava demarcada a distância intelectual entre o próprio e o restante dos ativistas. Comparativamente, passemos a partir daqui, a ter uma idéia de como se configurou o ativismo liderado por Veiga e Leite, conhecendo alguns episódios, momentos e situações em que os dois estiveram envolvidos diretamente ou não. Os dois devem ter se conhecido, provavelmente, num dos encontros literários promovidos pelo Centro Cívico Palmares, em que Isaltino Veiga dos Santos era um dos organizadores. O jornal O Clarim d' Alvorada circulante em São Paulo desde 1924, tinha um amplo alcance e aceitação entre a comunidade negra, logo, Correia Leite como um dos responsáveis pelo periódico, freqüentava as diversas agremiações dos homens pretos, espaço de venda e também de inspiração para novas matérias. Com o tempo Veiga passou a colaborar esporadicamente no Clarim d' Alvorada. Quando em 1929, Leite e seu grupo tiveram a iniciativa de realizarem o primeiro Congresso da Mocidade Negra, o Dr. Veiga dos Santos teve destaque no quadro organizativo do evento, pois além da incumbência de expor uma tese, foi o autor do manifesto do Congresso conclamando os "intelectuais da raça", as lideranças negras e as pessoas comuns a participarem. Mas antes tomemos conhecimento da primeira ação de Correia Leite ao assumir o cargo de editor principal do Clarim d' Alvorada, em 1928.
353
DOMINGUES,s/d:6
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4.2 - Uma utopia: re-elaborar positivamente a imagem do negro brasileiro
A campanha da Mãe Preta A representação social é o resultado de práticas construídas pelos sujeitos coletivos conclamando os indivíduos a se unirem em torno de uma ou de várias ações grupais. A campanha em favor do monumento à Mãe Preta e da instituição do seu dia no calendário oficial foi encampada pelos militantes paulistanos, em especial os do Clarim d' Alvorada, com a finalidade incutir na sociedade em geral, a idéia de que fortes laços afetivos uniam os descendentes dos europeus e dos africanos no Brasil.354 Era a objetivação da cativa dedicada e afetiva que contribuiu "sem esperar nada em troca" para a construção da nação. A imagem da mãe preta no presente objetivava as amas-de-leite do passado escravocrata. Símbolo de status entre as famílias tradicionais, o aluguel de seus préstimos tornou-se bastante lucrativo numa dada época, sendo amplamente difundido nos jornais.355 Cabia aos militantes resgatar, do passado recente, o simbolismo do trabalho doméstico dessas mulheres e com ele erigir uma representação positiva dos negros no presente. O papel da representação seria funcionar como um mecanismo de conscientização entre os paulistanos, uma vez que dispunha da utilização da visão de mundo e das concepções ideológicas e culturais presentes na dinâmica social daquela sociedade.356 Mas a idéia não nasceu entre os ativistas da imprensa negra. Em 1925, A otícia, um jornal carioca, publicou um artigo de seu diretor defendendo a fundação do dia da Mãe Preta. Passaram-se alguns anos e o culto foi tomando forma, em 354 355
ANDREWS,1998:336 SILVA,2004:8
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especial na cidade de São Paulo. No decorrer dos anos, os militantes do Clarim d' Alvorada e Centro Cívico Palmares, no 13 de maio ou 28 de setembro, prestavam homenagens à Mãe Preta e lembravam da iniciativa dos cariocas:
"cogita-se na capital da nossa república erigir um portentoso monumento, significativo, à Mãe-Preta, aquella a quem todos os brasileiros, cujos nomes se immortalizaram devem um preito de gratidão e de respeito verdadeiro (...) As mucamas, as mães estremosas que até hoje procuram de quando em vez, o seu filho para recordar os tempos de outrora".357
Uma carta do presidente Washington Luís, favorável ao monumento, denota o vulto que iniciativa vinha tomando. Em linhas gerais, a missiva reforçava a concepção, já difundida, de que no país não havia "superstições de raças, preconceitos de cores, ou exclusivismo de origem". Sendo assim, o local da América do Sul "fadado para a realização da fraternidade" e a Mãe Preta, a demonstração dessa comunhão, por unir "todos os homens como irmãos sem distinção alguma".358 A publicação da correspondência no jornal tinha o propósito de agregar mais simpatizantes devido a importância que tinha uma carta do presidente da República. Surgiram solicitações no parlamento estadual e federal reivindicando verbas públicas para a construção do monumento e estabelecimento da data da efeméride: 28 de setembro. Quando em 1928, Correia Leite assumiu a direção do Clarim d' Alvorada, decidiu conferir mais ousadia e politização ao periódico, lançando em São Paulo a Campanha em prol da construção do monumento e da comemoração do dia da Mãe Preta. Segundo o próprio,
356
SILVA,1999:99 Clarim d' Alvorada, ano I, 25/04/1926, 2ª fase. Texto de Moyses Cintra, pseudônimo de Jayme de Aguiar. 358 Clarim d ' Alvorada, ano I, no.4 13/05/1928, 2ª fase Carta de Washington Luís a Vicente Ferreira, colaborador do jornal e quadro efetivo do Centro Cívico Palmares. 357
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"seria feito um monumento à raça negra simbolizada na figura da Mãe-Negra. Esse monumento teria um pedestal e em volta seriam representadas todas as fases da participação do negro. (...) O governo federal daria 200 contos, que naquele tempo era muito dinheiro, e os estados iam contribuir com outra parcela."359
No número especial do Clarim d' Alvorada de setembro de 1928, vinha estampada a figura de uma mulher negra dando de mamar a uma criança branca. A objetivação
construída
pelos
militantes
negros intentava fixar a imagem do negro como um dos grandes sustentáculos da nação. Não somente através do trabalho compulsório, mas numa doação do próprio fluído vital ao homem branco, objetivado aqui no leite humano, uma transubstanciação do sangue, outro símbolo da vida. Essa mulher também representava a maternidade desprendida da Mãe Preta, capaz de criar "filhos que não eram seus com a doçura do seu amor dando provas de uma resistência incomparável". Uma interpretação que mostrava a Mãe Preta tomando uma postura de resignação e equilíbrio entre o senhor e o escravo, portanto numa atitude conciliadora, capaz de diluir as tensões sociais e os conflitos entre os dois grupos durante o período que existiu a escravidão.360 Leitura coerente com os objetivos do ativismo que existiu durante os anos 1920 e 1930, preocupado, particularmente, em alcançar padrões mais igualitários de existência, no entanto, sem romper com a ordem vigente. Ou seja, a prova de que relações cordiais
359 360
LEITE,1992:97-98 SILVA,1990:126
171
marcaram nossa formação social.361 Sendo a Mãe Preta, o Pai João as contribuições do componente negro à essa representação da cordialidade. As representações sociais estão diretamente relacionadas aos mecanismos da memória e à capacidade de comunicação humana. No exemplo dado acima, o sistema complexo que foi a escravidão negra no Brasil, reduziu-se a uma imagem que não esgotava as questões que envolveram o escravismo, mas que fornecia um emblema às reivindicações dos militantes negros organizados na busca por reconhecimento e cidadania plena. No editorial do periódico de 28 de setembro, intitulado a "eloqüência da raça" faziam um "apello à culta Imprensa Brasileira". Os intelectuais do Clarim da Alvorada diziam-se humildemente cônscios de que até ali não haviam feito nada no campo político nem econômico, mas advogando por justiça, apelavam à imprensa do país em nome das agremiações dos homens pretos de São Paulo, para fazerem do 28 de setembro, o dia da Mãe Preta, como já havia feito o espírito "culto e generoso do notável jornalista Cândido de Campos".362 O jornalista como já dissemos era o dono do jornal vespertino A notícia. Tratava-se de uma periódico popular e "do governo". Ou seja, no contexto político da época em que a grande imprensa era efetivamente controlada pelo aparato do Estado, A otícia figurava entre os periódicos subvencionados por recursos oficiais, logo alinhado com as orientações políticas do mesmo.363 O parecer favorável à homenagem foi dado. No final de 1928, o senador Gilberto Amado destinou verba de duzentos mil réis ao monumento. Na cidade, os militantes mobilizavam-se. Conseguiram que a Cia. Brasil Cinematográfica reservasse à comissão, um dia de bilheteria. Exibiriam o filme "O preto que tinha a alma branca",
361
HOLANDA,1978:101-112 Clarim d' Alvorada, 28/09/1928, no.8, p.1, 2ª fase. 363 Ver www1.folha.uol.com.br/folha/almanaque/memoria_1htm 362
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com a renda totalmente revertida ao caixa do monumento.364 Percebe-se pelo título do filme exibido, que mesmo intentando valorizar o negro, o branco permanecia como paradigma, revelando um tipo interiorizado de racismo marcado pela idéia preestabelecida de inferioridade/superioridade. Entretanto, em São Paulo nem todos concordavam com a mobilização empreendida pelos militantes do Clarim d' Alvorada e apoiada por alguns setores da sociedade paulistana. Em outubro do mesmo ano, o diretor da Gazeta escrevia "Pedese um pouco mais de respeito para com os pretos", em resposta as opiniões contrárias ao monumento. Inclusive, a do próprio redator do jornal que numa crítica irônica, dias após o 28 de setembro, publicou a seguinte manchete: "No dia da Mãe-Preta, a Josephina foi para o xadrez". A reportagem via como contraditória a homenagem às mucamas do passado, se no presente uma empregada doméstica negra havia praticado um furto, na mesma data em que se tentava instituir a data da Mãe Preta.365 Atrelada a concepção de um progressivo desaparecimento do segmento racial negro devido as políticas de branqueamento, estava a convicção de que não havia qualquer valor positivo da raça negra na formação da nacionalidade brasileira. Opinião expressada pelo médico Nicolau Soares de Couto Esher, no São Paulo Jornal, também descontente com a campanha.366 A representação da Mãe Preta ainda seria utilizada em vários outros momentos como forma de comunicação com o público, fosse ele militante ou não. Assim, num artigo publicado em 28 de abril de 1934, no jornal A Voz da Raça portanto, seis anos após a campanha liderada pelo Clarim d' Alvorada, Veiga dos Santos citou a Mãe
364
SILVA,1990:124 Clarim d' Alvorada, outubro de 1928. No.9, P.6 Segunda fase. 366 LEITE, "A nossa raça é uma raça mestiça e superior", O Clarim d' Alvorada, nov/1928, no.10, Segunda fase. P.2 Leite escreveu esse texto publicado no São Paulo Jornal e Clarim d' Alvorada para rebater as críticas do médico Couto Esher ao culto da Mãe Preta em São Paulo. 365
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Preta ao fundamentar seu argumento contrário a presença e às políticas públicas empreendidas em favor dos estrangeiros no estado de São Paulo e posicionar-se de modo divergente dos grupos políticos que faziam oposição a Getúlio Vargas. Em sua análise, a imagem da Mãe Preta fazia ancoragem com a de uma mártir por ter sido ofertada pela "Pátria Brasileira" em benefício dos patrícios brancos, por serem estes "ladrões do nosso trabalho e bem estar que a Pátria Brasileira dividiu generosamente com êles, dando-lhes mesmo a melhor parte (como no caso das mães pretas amamentando os patrícios brancos e deixando os pretinhos na mão!)(...)"
367
Nesse
caso, a Mãe Preta, e seus filhos "os pretinhos", além de objetivarem o martírio do negro, ocupava o lugar de todos os trabalhadores nacionais que vinham sendo sucessivamente colocados de lado em prol dos braços estrangeiros. A representação da Mãe Preta também poderia significar uma espécie de reparação aos descendentes dos escravos, acaso enfrentassem alguma situação delicada. E foi à ela que Isaltino Veiga dos Santos recorreu, quando tentava a todo custo, livrar-se da prisão política no ano de 1936. Em 13 de maio daquele ano, uma data importante para o grupo negro, já que se comemorava o 48º aniversário da Abolição, o militante escreveu uma carta ao Superintendente da Ordem Política e Social, Dr. Egas Botelho, esperando sensibilizar a autoridade policial com uma representação que também povoava sua memória social:
"Avocando aqui a mãe negra, que embalou o Brasil pequeno, Mãe nossa essa, que para mim é representada pela minha que inconsolavel chora a todo momento por me ver preso, eu espero do espirito justiceiro de V. Excia, a minha restituição à liberdade."368
Como se vê, a Mãe Preta punha brancos e negros, ricos e pobres em condições 367
Veiga dos Santos, "Marchando", A voz da Raça, ano II, 28/04/1934, p.4
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de igualdade, pois em certa medida, todos eram seus filhos. Se não legítimos, pelo menos de leite, uma vez que esta alimentou o "Brasil pequeno". Por isso, Isaltino se sentia a vontade para recorrer ao Superintendente com esse aparato simbólico. Contudo, no caso do ativista, o recurso não foi suficiente, pois como mostra o despacho do Dr. Egas Monteiro, datado de dezoito de maio de 1936: " O (ilegível) é um signatários do manifesto da "Frente Popular pela Liberdade", tendo sido por esta delegacia processado em conjunto com os demais assignantes da referida frente. Não convém a ordem política-social, a sua liberdade."369
Contudo, a objetivação da Mãe Preta não teria a mesma finalidade quando ancorada por sujeitos com outros pertencimentos identitários e inseridos em outras relações sociais. A objetivação poderia ser a mesma, mas sua utilização bastante difusa. Ela poderia atestar uma subordinação passiva do negro cativo sob o branco colonizador. A assertiva confirma-se pelo significado que Afonso Celso deu à figura da ama-de-leite. Para ele, seu exemplo mostrava quão menos bárbaros foram os negros que vieram para o Brasil. As mulheres negras eram obrigadas a abandonarem seus filhos, mas nem por isso deixavam de se dedicar aos filhos dos outros. O escritor além de ver como um sinal de barbaridade, ou seja, de atraso, as iniciativas de rebeldia do escravo frente a sua condição, dava graças a relação afetiva construída entre a Mãe Preta e a criança branca. Um dos impeditivos do preconceito de cor no país.370 Mais ou menos na mesma linha, posicionou-se Gilberto Freyre, pois viu no símbolo da Mãe Preta, o privilegiado lugar alcançado pelo negro cativo, resultado das características singulares que teve o nosso escravismo: 368 369
Cf. Prontuário 2018. Isaltino Veiga dos Santos, DEOPS/SP. Cf. Prontuário 2018. Isaltino Veiga dos Santos, DEOPS/SP
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"quanto às mães-pretas, referem as tradições o lugar verdadeiramente de honra que ficavam ocupando no seio das famílias patriarcais. Alforriadas, arredondavamse quase sempre em pretalhonas enormes. Negras a quem se faziam todas as vontades: os meninos tomavam-lhe a benção; os escravos tratavam-nas de senhoras; os boleeiros andavam com elas de carro. E dia de festa, quem as visse anchas e enganjentas entre os brancos da casa, havia de supô-las senhoras bem-nascidas; nunca exescravas vindas da senzala.371
Parecida com a última citação foi a informação deixada em 1852, pelo viajante Charles Expily, no que ele considerava "profissão desejada - ama de leite", relatou que
"Com poucas exceções, todas as jovens negras não tem outra preocupação além de ser mães. ... Uma ama de leite é alugada por mais de uma engomadeira, uma cozinha ou mucama. Para que dê honra e lucro, colocada numa boa casa, o senhor, durante a gravidez, lhe reserva trabalhos mais leves. Após o parto, a rapariga vê suas camisas destruídas e suas roupas velhas destruídas aos companheiros, enquanto seu guarda-roupa é renovado e recebe enxoval novo."372
O documento dá brechas para outras interpretações mais coerentes, pois desprezou o contexto em que ocorria a maternidade dessas mulheres escravas, decorrente, muita das vezes, de relações sexuais forçadas por seus senhores e o destino de seus filhos legítimos deixados recém-nascidos para amamentar filhos de outros. Dados de escravas de primeira "cria" alugadas, ou vendidas sem a "cria", relatos de amas contaminadas por sifilíticos através do aleitamento ou sexo e da morte de seus filhos naturais, pois eram retirados do convívio materno e colocados na Roda dos Expostos, reforçam essa outra interpretação pouco idílica da realidade das amas de leite.373 Mas voltemos aos anos 1930 e às ações de Leite. Nem o busto nem o dia foram 370
LEITE, 1992:197 FREYRE,1998:352 372 Citado por CARNEIRO, 2004:94 371
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instituídos naqueles anos. Com o passar do tempo, o dia da Mãe-Preta, que atualmente é chamada de Mãe-Negra, passou a ser comemorado junto com a data da abolição: 13 de maio. Somente em 1955, a estátua seria construída pela prefeitura de São Paulo, no largo do Paissandu, perto da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Contudo, o feito não corresponderia à imagem pensada pelos militantes no passado. Não na visão de Leite, um homem de seu tempo, seduzido pelo mito da democracia racial:
Estátua da Mãe-Preta
373
GIACOMINI,1988:145-153
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Por que fazer uma negra descomunal, quando todo mundo sabe que uma negra daquela não entraria na casa grande para dar mamá pra um filho do senhor, com aquele pé grande...? Eles cuidavam muito bem das mucamas. Precisava ser muito bonita, muito limpa, muito direitinha. (...) Isso é ignorância da história.374
Como pudemos ver, negros e brancos em lugares distintos e com reivindicações muitas vezes antagônicas, partilharam representações análogas sobre a escravidão como nos mostra o caso da Mãe Preta. O Congresso da Mocidade egra Em 1929, ou seja, após cinco anos de existência do jornal Clarim d' Alvorada, os militantes liderados por Correia Leite, ambicionaram realizar o que chamaram de "Primeiro Congresso da Mocidade Negra Brasileira". O Congresso discutiria a questão da "total integralização" do negro na sociedade brasileira, dando ênfase aos temas que versassem sobre a educação da juventude negra.375 Veiga dos Santos recém formado em filosofia e letras, foi convidado, pelo pessoal do Clarim d' Alvorada para integrar a comissão intelectual. A primeira chamada para o Congresso deve ter sido escrita por Leite, apesar de não assinada: A nossa missão como arautos das idéias moças da geração que neste instante está se estabilisando, arrastou-nos à temeridade de o cogitar-mos a realização de um Congresso da Mocidade Negra de São Paulo, cujo escopo, será o de reunir a nata dos intellectuaes da raça, ao mesmo tempo que constituirá, um passo gigante no instante. (...)376
374
LEITE,1992:99 Acima imagens da Mãe-Preta esculpida pelo artista plástico Júlio Guerra. O mesmo que esculpiu Borba Gato, o famoso bandeirante símbolo de São Paulo. 375 O Clarim d' Alvorada , "Congresso da Mocidade Negra de São Paulo", sem assinatura, 03/02/29, ano IV, p.3 376 O Clarim d' Alvorada, ano VI, abril/1929, no. 4
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Analisemos como Leite definia a si mesmo e seus companheiros: "arauto das idéias moças". Sujeitos que se percebiam como a vanguarda da raça negra com a missão de esclarecer o restante do grupo sobre as transformações que vinham ocorrendo durante a década de 1920. A tentativa era de rompimento com a apatia social do grupo negro:
"um dia saímos com uns cartazes - um negro quebrando uma corrente - lambuzamos os postes e fixamos a idéia: o Primeiro Congresso da Mocidade Negra. Foi um barulho na cidade! A imprensa se movimentou criticando, metendo o pau, achando que era um absurdo, "Que necessidade há nisso? O que se vai falar nesse congresso?"..."377
Quanto a esse posicionamento uma leitora da Bahia teceu as seguintes considerações: "é verdadeiramente bella a idea lançada pelo Clarim d' Alvorada, O Congresso da Mocidade Negra. Para todos a primeira interrogação será: que vão tratar elles? Que querem elles? Será alguma parada em formação? Não, nada disso: não é idea revolucionária, não vão tratar de fazer ataques grosseiros ou comparações absurdas. Não naturalmente, trata de solidificar uma grande idea! A instrução do negro no Brasil. Como já se tem dito nestas colunas, o negro neste paiz não vive vegeta; não devemos ficar nessa liberdade esfarrapada, e não pense que é com fundações de partido e disputas legislativas que vamos conseguir nossa integralização, nem tão pouco é motivo para dar um chá dançante pela passagem do treze de maio. Não é isto. Os iniciadores da idea, apenas pedem que, devemos batalhar em favor do nosso máximo problema. A instrução e a formação dos negros dentro do lar, a obrigação sincera para com a família, porque só assim podemos ter elementos aptos para a defeza de nossas causas. Negros congressistas do Brasil que seja o nosso programma, este ponto de partida a instrucção." 378
377
LEITE,1992:83
179
A leitora e, provavelmente militante de alguma agremiação baiana, vendo os debates contidos no número anterior e possivelmente nas reuniões realizadas pelo grupo do qual fazia parte, resolveu partilhar com os outros leitores do jornal de São Paulo suas reflexões. Uma de suas primeiras considerações foi deixar clara a finalidade primordial do encontro: “a instrução do negro no Brasil”, ou seja: a missão educativa daqueles intelectuais negros. Em seu discurso, procurou definir em que bases isso se daria. Propôs não convidar intelectuais, em sua maioria os brancos, que faziam “comparações absurdas” entre os dois grupos raciais. O que prova sua desconsideração pelas famosas pesquisas dos "homens de sciencia", da qual tratamos no outro capítulo, por chegarem a conclusões baseadas numa hierarquia biológica das raças humanas. No entendimento da autora, o problema negro resumia-se na falta de instrução. Instrução que era sinônimo de educação, mas na sua acepção mais ampla. Por isso, a educação deveria iniciar com a "formação do negro dentro do lar". Estes deveriam se organizar ou então apoiar iniciativas coletivas voltadas a minimizar a falta de escolarização da população negra da época. Em sua convocatória, a militante também fazia críticas ao próprio meio intelectual-militante, desprezando aqueles acostumados a “fazer ataques grosseiros” ou seja, os que de pronto não levaram a sério o evento. O que parecia ser uma característica recorrente entre a elite negra. No entendimento dessa ativista, o encontro deveria prezar pela integração, não fazendo cobranças nem questionamentos ao Estado. Ainda que o tom de denúncia permeasse seu texto, como se percebe na assertiva: "o negro neste paiz não vive vegeta”. Mesmo que mais adiante o discurso se suavize, responsabilizando o próprio negro por parte de sua condição subalterna em: “não devemos ficar nessa liberdade esfarrapada”. Vemos nesse tipo de escrita uma estratégia que tentou ao mesmo tempo
378
Maria Amália Amaral, “O Congresso”, O Clarim d' Alvorada, 13/05/1929, ano VI, no. 5, p. 2
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atrair e convencer novos adeptos, mas sem excluir aqueles que advogavam por uma postura mais conciliatória. O nosso trabalho enfoca as atuações de Veiga e Leite, na cidade de São Paulo em especial, mas isso não nos impede de inferir que esses pensamentos foram partilhados por militantes atuantes em outros locais da federação. A carta da ativista baiana é prova disso. Podemos imaginar a possibilidade da existência de outras organizações no mesmo período, em que a preocupação era a mesma: mudar o imaginário pejorativo que enquadrava o conjunto da população negra através de outras representações sociais que pudessem comunicar uma nova identidade positiva para o negro no Brasil. Vimos que a tentativa de realização do Congresso suscitou polêmicas, pois a sociedade paulistana não compreendeu o propósito do evento. Neste mesmo número do jornal, um outro artigo, agora, assinado por Leite, vinha na mesma linha de convencimento da militante baiana:
“(...) O elemento negro já sabe que precisa trabalhar para a sua integralisação moral e material; é uma conquista imprescindível, é uma necessidade inadiável que nos apresenta, é a maior consagração que se pode oferecer a memória do nosso antepassado. E será também a segurança do futuro da nova geração que vem surgindo e precisa por força, encontrar o exemplo da nossa vitalidade moral, em volta das tantas ideas sans que temos defendido e semeando no seara do bem e do bom viver. Depois de oito lastros de liberdade os remanescentes dos ex-escravos tiveram de lutar, para não ficar intoxicados pela cachaça e outros vícios... Ficaram libertos, porém, sem pão nem lar, embrutecidos pelos martyrios do maldito regimem, tiveram também de enfrentar as correntes immigratórias que sempre foram bem remuneradas e amparadas por todas as leis do nosso paiz... Do negro ninguém cuidou, elle que fora a verdadeira machina de trabalho, para a construção dos alicerces do progresso que hoje assistimos, mas que a mocidade negra não toma parte activa, na tumultuosidade dessa lufa-lufa diária. E, esta folha que, de uma feita adquiriu a confiança da classe, e tornou-se o legítimo
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arauto da nossa mocidade, que ainda não está aparelhada devido a falta de cohesão daquelles que, que até esta data, festejam o treze de maio nas reuniões dansantes, e não numa reunião reivindicadora e nacionalista, espera que os moços de côr sensatos, cumpram seus deveres, alistandose no primeiro Congresso da Mocidade Negra do Brasil."379
Correia Leite deixa clara a sua insatisfação com um associativismo voltado, basicamente, para as festividades e sem projetos mais transformadores. Os negros em geral organizavam-se em torno desses ajuntamentos sociais, mas o militante tinham outras propostas, ao que parece pouco entendidas pela maioria, uma vez que, já estavam em maio e, tanto os negros da elite, quanto os da massa não aderiam à proposta do Congresso. Na sua compreensão, os negros elitizados “não queriam se misturar”. Entretanto, mesmo diante desse desinteresse Correia Leite continuou com o seu posicionamento taxativo. Ao afirmar que os negros “ficaram libertos, porém, sem pão nem lar”, além de terem de competir com “as correntes immigratórias que sempre foram bem remuneradas e amparadas por todas as leis do nosso paiz...” o ativista questionava ao mesmo tempo a Lei Áurea e as políticas públicas estatais da Primeira República voltadas basicamente à imigração européia. À sua maneira, e com evidências do cotidiano, culpava incessantemente a entrada de braços estrangeiros pelo que ocorria com o trabalhador nacional, em sua maioria negros, colocados às margens nas relações de trabalho. Fora esse dado relacionou de forma acertada a história à política, ao implicar o quadro de exclusão social vivido pela população negra no momento, à maneira como se dera o fim da escravidão e a implantação do trabalho assalariado.
Outra questão interessante apontada no texto é a afirmação que
relacionava a acumulação primitiva de capital decorrente do trabalho não remunerado 379
Leite, “A mocidade negra”, Clarim d' Alvorada,13/05/1929, ano VI, no. 5, p. 5
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do negro durante séculos à inserção no sistema capitalista experienciada pelo economia nacional naquelas décadas. O militante concluiu que o trabalho realizado pelo negro no passado tivera significativa importância para o progresso urbano e industrial que em particular São Paulo experimentara no presente, tese exaustivamente comprovada. Em 09 de junho de 1929, foi lançado na primeira página do Clarim d' Alvorada, o manifesto do Congresso. Escrito por Veiga dos Santos, o documento tinha uma estratégia política: alcançar o público não militante. "Negros de São Paulo e quiçá do Brasil", tidos como "bons negros humildes e soffredores silenciosos". Assumindo as verdadeiras funções do intelectual público, Arlindo se propunha escrever com "clareza e em linguagem simples, accessível a todos”. Nessa linha educativa, definiu o Congresso como uma reunião de pessoas, no qual a pauta seria "estudos práticos ou especulativos", voltados para minimizar a "immensa miséria da Gente Negra do Brasil" que no seu entendimento, vivia "das baldas do passado homérico", mas num presente de "desgraça, degradação e humilhação nacional". Decorrente, em parte, da própria "cegueira política" da Raça, mas também do "alude dissolvente da oridas estrangeiras e estrangeirizantes".380 Veiga dos Santos legitimou seus argumentos a partir de outras falas. Assim, inúmeras foram as citações de destacados intelectuais e políticos como Mello Moraes, Sílvio Romero, Basílio de Magalhaes, Assis Chateaubriand, Vicente de Carvalho, Horácio de Carvalho, Conde de Afonso Celso, Rocha Pombo, Tristão de Atahyde, Augusto de Carvalho dentre outros. No manifesto, utilizando uma linguagem que uniu ironia e crítica virulenta, denunciou um estado de coisas legitimado pela sociedade em geral e grupos dirigentes. Em síntese estampou o que pensavam os intelectuais-militantes mentores do encontro. 380
Veiga dos Santos, "Manifesto do Congresso da Mocidade Negra Brasileira, O Clarim d' Alvorada
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Passemos a conhecer alguns fragmentos do documento: "Gosamos, theoricamente, de todos os direitos que, juridicamente, nos garante a própria constituição fundamental. Mas, como o direito, para o ser implica uma expressão de vida real e não abstracção, as forças da sociedade que estão, inapellavelmente, acima da lei ou contra ella, evitam-nos e até nos expulsam de suas instituições burocráticas, de utilidades ou 'polícia' social de ensino, e de formação intellectual, moral e religiosa também; abominam-nos nos orphanatos, e hospitaes e mais casas de assistência social, e até nas casas de expressão econômica em que, em suficiência de capacidade de competência, poderíamos ganhar o pão de brasileiros e humanos. Não há, para nós, a mais das vezes, justiça social. Em situação de direito, quando appellamos para quem nol-a garantia. Já estamos antecipadamente derrotados na demanda. Relegam-nos, pois, a nós brasileiros, uma posição horrível de inferioridade e desprestígio perante o nacional branco e, o que mais revolta, perante o estrangeiro. Nada tem valido os protestos insulados. E elles hão sido muitos, chegando as vezes tragicamente a reacção violenta que é paga pelo castigo de crime communs articulados no Código Penal, sem attenuante. Somos a caricatura ambulante do grande Brasil da epopéia dos 300 annos, para a gargalhada beócia dos que não conhecem a história e as tradições nacionaes que somos nós, que são os nossos antepassados. Esbulhados de posses pessoaes e collectiva, não há quem efficientemnete advogue a nossa causa, enquanto muitos de nós na ignorância da situação, nos esquecemos do futuro nosso. Miguel Pereira e Belisário Penna afirmaram que o Brasil é um immenso hospital. E nós não tememos afirmar que este vasto hospital deriva da doença mais grave, que é o preconceito de raça e de côr, enfim a dor da mentalidade dos nossos dirigentes, deixando que pereça toda uma gente que é preciso que seja substituída, porque é mestiça, porque é negra e deverá ser branca custe o que custar, mesmo a custa do esfacelamento do Brasil, pela vaza do aryanismo internacional immigrado. Começa a esboçar-se a reacção pelas correntes ,09/06/1929, ano VI, no.17, p.1, 2ª fase.
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literárias e artísticas as quaes acuam os bonsos da sociologia que cogitam pelos juízos ao preconceito que arvoreia a Raça Brasileira de si mesma nos seus elementos que o erro dos homens abandonou ao infortúnio presente. Despertae, patrícios! (...) Não precisamos consultar a ninguém para vermos a verdade dos direitos, a realidade tétrica da nossa situação, a rapidez da nossa decadência (...) Isso tudo não está nos livros europeus nem norte-americanos. (...) Auscultando a nossa realidade, tiraremos dela da consideração della o remédio para os nossos males, negando attenção aquelles que querem 'salvar-nos' contra nossas tradições e contra o Brasil. Tenhamos fé e essa fé nos indicará o caminho de seguir. Seja cada um de nós um obreiro dessa reacção contra o sonegamento dos direitos sagrados da Gente Brasileira, de côr, e mais para a efetivação delles; seja cada qual um soldado contra a decadência dos nossos costumes, contra o derrotismo dos perversos e traidores, contra a ignorância e protervia aos preconceitos existentes embora muitos os queiram negar, contra o imperialismo dos advenas, contra a idéa e a política estrangeira aryanizante e, sobretudo, mais que tudo, contra a negação do que já há feito, pode fazer e quer ainda fazer o nosso Sangue, cuja nobreza foi conquistada nas artes nas sciências, na política, na guerra pela identidade, unidade e independência nacionaes. Gente Negra, sede digna dos pretos e índios que ergueram Palmares, primeiro baluarte da pátria livre, nas acercanias gloriosas do Norte. (...) Como quer que seja, seja congressista. Pela Pátria e pela Raça!"381
381
Veiga dos Santos, "Manifesto do Congresso da Mocidade Negra", Clarim d' Alvorada, 09/06/1929, ano VI, no. 17, p.1, 2ª fase
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Vejamos que uma das primeiras denúncias de Arlindo gira em torno de uma estrutura político-social que burlava as leis nacionais, pois apesar de haver uma constituição federal garantidora da igualdade entre todos, esta era mais uma abstração uma vez que "forças da sociedade que estão, inapellavelmente, acima da lei ou contra ella, evitam-nos e até nos expulsam de suas instituições (...)". Assim, a luta seria contra uma situação de inferiorização, existente não devido a incompetência física do negro, mas pela falta de investimento no grupo em igualdade de condições. Acusa também, o desconhecimento no presente, da contribuição do negro com a história nacional. Nesse sentido Palmares serve como um símbolo de realização, pois liderado por negros em conjunto com outro grupo colocado em segundo plano: os indígenas, o quilombo lutou quase um século contra o aparato colonial português. E mesmo ao se reportar aos 300 anos de escravidão negra, deixa subentendido que ante de ser escravo o negro foi um trabalhador. Portanto, há uma tentativa de transformar a derrota do cativeiro em glória pelo trabalho. Por fim é importante salientar o papel que Veiga atribuía as lideranças negras, os chamados “intelectuais da raça” como dissera o ativista Francisco Lucrécio anos depois.382 Cabia a esses intelectuais-militantes liderar as massas, apontar o caminho e formar um novo negro que pudesse por capacidade ser o "obreiro dessa reacção contra o sonegamento dos direitos sagrados da Gente Brasileira, de côr, e mais para a efetivação delles (...)". Contudo, mesmo com o citado manifesto e chamadas que saíram em quase todos os números do jornal desde fevereiro daquele ano, em 14 de julho, não se tinha certeza de que o evento se realizaria. Outros textos conclamando a mocidade negra à participar do Congresso foram publicados. Benedicta Correia Leite, esposa de José Correia Leite, escreveu na Página Feminina do jornal, convocando as "mulheres, mães
382
Francisco Lucrécio, "O negro em face da situação atual", A Voz da Raça, n.º 70, nov/1937, p.1
186
e esposas" a ajudarem os "idealistas contemporâneos".383 Concluímos que a iniciativa não foi bem recebida fora do meio associativo negro. Além disso, entre os próprios ativistas ou colaboradores do jornal havia algumas controversas com relação ao teor do Congresso. Discutiam se deveria participar somente a juventude negra ou se não seria melhor um encontro aberto a todos os brasileiros. Além disso, polemizavam sobre a legitimidade e capacidade intelectual dos congressistas, uma vez que os organizadores se propunham a convidar um conjunto de intelectuais, de preferência negros para expor suas teses. Alguns membros da elite negra paulistana preocupavam-se em não passar a idéia de que tínhamos um problema racial. Um próprio colaborador do jornal questionou o fato do evento estar voltado para um público estritamente negro: "um Congresso de negros só pode cogitar a idéia odiosa da separação". Para ele "seria melhor a realização de um congresso da mocidade brasileira, tirando assim, a palavra "Negra"."384 Comportamento que pode significar a crença do mesmo na representação do Brasil como o exemplo do convívio fraterno entre as raças ou então o medo de que com o Congresso, o grupo passasse a ser visado pelas autoridades estatais como sedicioso. Reagindo a esse impasse no meio negro paulistano, Leite direcionou críticas virulentas às “agremiações dançantes” que não se mobilizavam à realização do referido Congresso. Novamente criticava uma suposta “neutralidade” dos diretores das agremiações, que na verdade impediam seus associados de participarem dos preparativos para o encontro. Para ele “algumas sociedades dansantes, seguem a vontade absoluta de um membro que faz o que entende sem consultar alguém, e assim
383
Benedicta Correia Leite, "A mulher negra e o nosso congresso" O Clarim d' Alvorada, 14/07/1929, ano VI, no. 5, p.3 384 Clarim d' Alvorada, 14/07/1929, ano VI, no. 18
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mata o apoio que podíamos obter da mocidade de São Paulo”.385 Como vemos, o militante denunciava uma espécie de manipulação, existente no meio negro por aqueles que lideravam as entidades associativas na maioria das vezes sujeitos mais instruídos e inseridos preocupados em construir ao seu redor, um grupo cativo de admiradores politicamente alienados. Leite ilustrava sua crítica afirmando que: “não percebem a decadência moral da nossa mocidade que, despreocupadamente, vai descendo cotidianamente, para o lamaçal da ignorância dansando sempre e sempre dansando”.386 Ocorre que havia uma certa diferença entre os ativistas do Clarim d' Alvorada e outras lideranças locais pelo menos desde 1928. O caso da construção de um busto em homenagem a Luiz Gama é emblemático. Argentino Celso Wanderlei que era presidente do Cordão Carnavalesco Campos Elíseos, situado na Barra Funda, decidiu organizar um evento no aniversário de nascimento de Luiz Gama, cujo centenário seria em 21 de junho de 1930. Para tal, pediu ajuda dos ativistas locais. Lino Guedes, reconhecido como poeta e escritor entre a elite negra, resolveu ajudar. No entanto, fazia uma ressalva: vetava a participação do pessoal de Correia Leite. Achava que eles deveriam se ater ao Congresso. O que denota uma disputa política por visibilidade e reconhecimento. Assim parte dos ativistas, se dedicou a construção da herma que contou com ampla divulgação através do jornal Progresso, fundado com a finalidade de divulgar o evento e promover uma cotização da sociedade em geral, em especial dos políticos locais, através da circulação de um livro de ouro. O monumento foi inaugurado no Largo do Arouche, em 1930, e ficou "coalhado de negros". Lá também estiveram políticos locais e intelectuais brancos, impressionados com o que
385
LEITE, O Clarim d' Alvorada 14/07/1929, ano VI, no. 5 , p. 1 LEITE, O Clarim d' Alvorada 14/07/1929, ano VI, no. 5 , p. 1
386
188
costumavam chamar de o alvorecer da raça negra.387
Luiz Gonzaga Pinto da Gama foi uma personalidade bastante cultuada pelos ativistas da época devido a sua aguerrida militância abolicionista e exemplar história de ascensão político e social, marcada fundamentalmente, pelo esforço pessoal. Portanto, sua trajetória agregava características positivas que deveriam ser repassadas aos negros da época como um exemplo de vitória. Nascido na Bahia, em 1830 era filho de Luiza Mahin, africana livre que havia participado da Sabinada388, com um fidalgo de origem portuguesa, pertencente a uma das principais famílias da Bahia. Após o sumiço da mãe em 1837, o menino foi viver com o pai que falido, vendeu-o como 387
LEITE,1992:88
189
escravo aos 10 anos. Trabalhando em São Paulo e já sabendo ler e contar, Luiz Gama fugiu de seu senhor quando tinha 18 anos, após reunir provas que certificavam sua condição de livre. Serviu à Força Pública de São Paulo, trabalhou como amanuense da Secretaria de Polícia de São Paulo e nesse cargo teve acesso a biblioteca do delegado de polícia, o Conselheiro Furtado de Mendonça, que também era professor na Faculdade de Direito de São Paulo. Tornou-se advogado autodidata, sendo bastante admirado e temido nos tribunais de São Paulo.
389
Exerceu também a atividade de
poeta e jornalista. Publicou em 1859 Trovas Burlescas de Getulino e colaborou em semanários de crítica política e humorísticos, como o Cabrião, o Diabo Coxo e o Radical Paulistano.390 Militante ativo da causa abolicionista, foi responsável pela libertação de negros escravizados através de inúmeros estratagemas judiciais que provavam a ilegalidade do cativeiro após a Lei do Ventre Livre, de 1871391; por contribuir com a fundação de uma escola de instrução primária que chegou a ter 200 alunos e por angariar fundos destinados à libertação dos cativos.392 A realização do Congresso também sofreu um outro revés de origem externa. Foi toda a movimentação ocorrida em torno da sucessão presidencial no ano de 1929 e posterior deflagração da "Revolução de 1930". Nesse sentido, os militantes negros se viram impossibilitados de realizarem o encontro, já que não havia ambiente, devido os acontecimentos de âmbito político mais amplo. Um Congresso de envergadura nacional e conteúdo político-ideológico parecido com o pensado pelos intelectuais-militantes que aqui analisamos, só iria acontecer vinte e um anos mais tarde. Foi o 1º Congresso do Negro Brasileiro pensado e organizado por militantes e intelectuais ligados ao Teatro Experimental do Negro, em especial Abdias do 388
Em outra bibliografia, Mahin aparece como sediciosa na revolta dos Malês. MOTT,1988:50 Cf. NASCIMENTO,1985:6 390 Cf. VAINFAS,2002:497 391 MENDONÇA,2001:81-82 389
190
Nascimento e Guerreiro Ramos, realizado no Rio de Janeiro, no ano de 1950.393
Reagindo ao racismo Os intelectuais-militantes Correia Leite e Veiga dos Santos tiveram atuações emblemáticas nas organizações que participaram ou dirigiram. O Clarim d'Alvorada foi tomando características de uma entidade com perfil de movimento negro, a partir, sem dúvida das iniciativas de Correia Leite. São exemplares as atitudes como a de noticiar e condenar os casos de racismo que chegavam aos seus conhecimentos. Vale salientar que os contatos travados com os ativistas norte-americanos propiciaram uma maior aproximação com idéias anti-racistas existentes em outras localidades. Por fim, a mobilização em torno do monumento à Mãe-Preta e da organização do Congresso da Mocidade Negra refletia uma perspectiva mais politizada, na qual a questão racial passaria a ser o assunto principal do jornal, especialmente depois que, em 1928, Leite tornou-se o redator-chefe com a saída de Jayme de Aguiar. Veiga dos Santos vinha atuando em organizações negras desde o Centro Cívico Palmares. São escassos os documentos que relatam suas idéias em torno da questão racial nesse período. Um dos primeiros aparecimentos de Veiga nessa imprensa específica deu-se com manifesto para o Congresso da Mocidade Negra. Anos mais tarde, fundaram a Frente Negra Brasileira e Veiga dos Santos foi escolhido seu presidente geral. Na FNB, o intelectual encontrou maior visibilidade e espaço de atuação. A seu dispor estava toda estrutura burocrática da organização com a expedição de ofícios, marcação de audiências, posicionamento público frente aos assuntos que diziam respeito aos sócios, além das páginas do A Voz da Raça. A partir de 1933, foi no jornal que Veiga dos Santos veiculou a maioria de suas idéias sobre a
392 393
VAINFAS,2002:498 Cf. NASCIMENTO,1982:121-401; PINTO, 1998:213-300 Parte Segunda.
191
questão racial e mesmo as ligadas ao patrianovismo. Apresentaremos a partir daqui, uma mostra de como os ativistas procuravam, através das entidades que dirigiam reagir ao preconceito e discriminação racial na cidade de São Paulo, seja com ações mais efetivas, implicando até mesmo as instituições públicas, através da veiculação de suas próprias opiniões pessoais em forma de artigos, moções de repúdio ou mesmo poesias. A discriminação racial incidia sobre o negro em vários aspectos de sua vida diária como no ambiente escolar, de moradia e trabalho. Em se tratando do acesso ao trabalho, em especial, ao emprego formal, ou seja, de carteira assinada havia mais dificuldades para os afro-brasileiros.
Fatores como o analfabetismo e a falta de
profissionalização funcionava como potencializadores desse estado de coisas, mas efetivamente o racismo paulistano concorreu para o desemprego dos negros entre os anos que investigamos. Bernardo394, ao analisar a memória de velhos e velhas negros e brancos (italianos) na cidade de São Paulo, mostrou que as lembranças da vida passada desses sujeitos comuns, ou seja, não foram nem líderes nem pessoas famosas, estavam fortemente marcadas pelo tipo de inserção social que tiveram. Na memória dos velhos negros e negras aflora uma cidade escura e desconhecida, enquanto que para os brancos, ela representava o progresso e o trabalho. Marcados pela discriminação racial sofrida, especialmente no âmbito do trabalho, São Paulo se tornara sombria e hostil. Para os negros aspectos vividos no mundo do trabalho funcionaram como um núcleo resistente em seus relatos. Este tema em suas lembranças, mais do que um relato, foi um instrumento de reconstrução identitária395, pois suas trajetórias foram marcadas pela busca pelo emprego que, para eles, significava dignidade. O que demonstra que os negros em São Paulo tiveram muito trabalho para conseguir trabalho, como se pode 394
BERNARDO,1998
192
verificar nos seguintes depoimentos:
" Com oito anos eu já trabalhava como aprendiz de sapateiro. Trabalhava numa loja onde aprendi o ofício. Não ganhava quase nada. Era a comida e alguns tostões. (...) Às vezes, ainda me divirto em casa, cortando e modelando, mas tive que sair de lá. O Stacchini preferia os italianos como ele. Era 1927 lembro como se fosse hoje; eu agüentei todos aqueles anos as investidas dos italianos, porque eu praticamente tinha sido criado na loja, mas, em 1927, chovia italiano no Bom Retiro e aí o preto saiu mesmo; acabou o lugar dos pretos nas sapatarias e alfaiatarias. (...)"
"Consegui emprego fixo só com 28 anos. Trabalhava em tudo até essa época, esperando conseguir um trabalho em que me levassem a sério; fui menino de recado, limpava casa na Rua São João, levava marmita de pensão. Quando tinha 28 anos, foi o pior! Minha avó desempregada, o meu pai e eu desempregados. Vendo a situação, um nosso vizinho, branco, me arrumou um emprego no Instituto Biológico como lavador de carro, privada, tudo... Quando era qualquer coisa chamavam o Raul e o Raul fazia."
"(...) Com 30 anos, quando consegui emprego fixo na Otis, empresa de elevadores, foi a maior alegria da minha vida, porque o que eu mais gostava era de trabalhar. (...) Na Otis aprendi que trabalho não tem cor, era empresa norte-americana lembrando agora. Acho que não conseguia nada, porque eu sou preto."
"(...) Com 18 anos, fui trabalhar como lixeiro, não era qualquer lugar que empregava preto, agora preto pega qualquer emprego. (...) Em 1936, fui trabalhar como servente de pedreiro, só que eu fazia tudo. Até hoje tem duas casas que fui eu que construí na Avenida Dr. Arnaldo,1504."396
E no argumento de Arlindo Veiga, em favor do irmão que se encontrava preso, 395
POLLAK,1989:13
193
ao informar que o fato se deu porque o irmão não estava bem material e psicologicamente devido a uma situação de preconceito racial
"realmente, não há muito arranjara um emprêgo, por meio de um amigo, numa grande empresa estrangeira, desta capital, sem que, todavia, os chefes tivessem conhecimento pessoal dêle; sem saberem, portanto, que êle era negro. Certamente os ilustres arianos hóspedes de nossa pátria não desejavam um negro nos seus escritórios. Deram uma desculpa, e não o receberam."397
Arlindo levantava a questão do problema da discriminação racial no acesso ao emprego na cidade de São Paulo para minimizar a atitude do irmão preso por militar numa organização de esquerda, a Frente Popular pela Liberdade, que fazia oposição a Getúlio Vargas. Arlindo não teve receios de tocar na questão, demonstrando o quão ciente o movimento social negro estava da problemática racial na cidade de São Paulo. Acreditamos que a promulgação da "Lei dos 2/3", sancionada por Getúlio em 1930, o tenha auxiliado na fundamentação do argumento. Sua correspondência, em caráter de denúncia, ainda que exemplificando um caso único, o do irmão, pode ser uma prova de que mesmo com a lei que já vigorava há anos, os trabalhadores negros continuavam preteridos, ou seja, todo o imaginário social que reproduzia representações do negro como o incapaz e incompatível à nova ordem econômica estabelecida, mantinha-se vivo entre os paulistanos empregadores, dificultando o acesso ao trabalho formal pelo negro, como mostram as pesquisas e os depoimentos sobre o tema. Na tentativa de reverter esse quadro de exclusão no mundo do trabalho, os militantes negros lideraram várias iniciativas no âmbito de suas entidades políticas. Ainda no tempo do Centro Cívico Palmares ocorreu a mobilização dos ativistas para
396
BERNARDO, 1998:119-120 Carta enviada ao Dr. Egas Botelho, inspetor da Ordem Política e Social em 20/06/1936. Cf. Prontuário 2018 (Isaltino Veiga dos Santos) grifos do próprio autor. 397
194
revogar a lei do chefe de polícia paulistano que impedia a entrada de negros na Força Pública Estadual. Na década de 1930, a Frente Negra Brasileira liderou algumas iniciativas para empregar os afro-brasileiros e uma delas foi criar um banco de empregos. Lá senhoras iam a procura de empregadas domésticas porque consideravam mais idôneas. Ocorreram também cursos profissionalizantes para que os sócios melhor disputassem as vagas disponíveis. Os ativistas tentavam com essas ações, desqualificar o discurso que argumentava pela incapacidade do negro em competir em condições de igualdade com os trabalhadores brancos. Contudo, a iniciativa mais ousada foi pleitear junto às autoridades, vagas para negros na Guarda Civil.398 O A Voz da Raça informanos de pelo menos uma correspondência em que fica claro a existência desse convênio entre Frente Negra Brasileira e a Guarda Civil paulista. Num comunicado enviado a Arlindo Veiga dos Santos, então presidente da organização, o Ten. Cel. Alcindo Nunes Pereira, Chefe do Estado Maior solicitava a suspensão do envio de candidatos, pois, os existentes excediam "em muito as vagas a preencher". A autoridade garantia que os encaminhados seriam atendidos dentro do possível.399 Os relatos dos velhos militantes esclarecem melhor essa iniciativa das lideranças frentenegrinas:
Em relação à Guarda - Civil, na época em que foi formada não aceitava negros. Exigiam do negro uma certa altura, sabíamos que era só para nos impedir. (..) A Frente Negra soube e mandou que os negros fossem fazer a inscrição na Guarda Civil e eles foram barrados. Organizamos uma comissão e fomos ao Rio de Janeiro falar com o presidente Getúlio Vargas. Viemos do Rio com a autorização do presidente Getúlio para procurar o comandante da Segunda Região Militar que, depois da Revolução de 30, era o general Góis Monteiro. Ele 398
A Guarda Civil não era o mesmo que a Força Pública (atual Polícia Militar). Começou com a finalidade de organizar o trânsito em São Paulo, se estendendo posteriormente para a guarda de teatros, parques, jardins, escolas, ruas e policiamento de bairros. O efetivo maior trabalhava a pé, mas posteriormente houve um corpo de motociclistas. Sua sede nos anos 1930, ficava na rua Brigadeiro Tobias embaixo do viaduto Santa Ifigênia. CF. QUILOMBHOJE,1998:88-89. Depoimento de Marcello Orlando Ribeiro. 399 A Voz da Raça, ano I, no. 12, 10/06/1933
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mandou que nós abríssemos inscrições para que os negros fossem para a Guarda Civil. Então, de uma leva foram mais de 200 negros para a Guarda Civil. Isso foi em 1933. Uns que foram eram da Frente e outros foram para lá 400 depois que entraram na Guarda.”
A prerrogativa era ser sócio da FNB e como vimos, a própria entidade fazia uma seleção prévia dos candidatos, denotando uma parceria pioneira entre uma entidade da sociedade civil e uma instituição pública. Um velho associado que compôs o corpo da Guarda Civil informou que com essa atitude, mudou o status das famílias negras beneficiadas, pois as mulheres deixaram de trabalhar fora para serem donas de casa, seus filhos puderam estudar e muitos compraram suas casas próprias. Fato que até virou notícia na grande imprensa. Entretanto, no decorrer dos anos muitos negros foram dispensados, "sob o pretexto de alguns não serem alfabetizados e outros por terem passagem pela polícia". O que não valia para os brancos, pois eram admitidos os de várias nacionalidades: alemães, russos, húngaros e polacos, além dos nacionais. O depoente relatou que teve dois chefes brasileiros, porém analfabetos, admitidos porque eram protegidos de políticos. Dos negros que entraram em 1933, ficaram cerca de cem ou cento e vinte homens.401 Outra iniciativa foi a de auxiliar os frentenegrinos nas situações de desemprego, seja solicitando esclarecimentos quando o associado era dispensado, seja encaminhando-o à uma colocação. Uma carta endereçada a Arlindo Veiga dos Santos explicava os motivos para a dispensa de um sócio: "em resposta ao seu estimado ofício n.79, de 29 de dezembro passado, cabe-nos comunicar-lhe que o sr. Eduardo A. Morais foi dispensado desta Estrada, em vista de sofrer de ataques epilépticos. O Diretor." 402
400
QUILOMBHOJE,1998:55 depoimento de Francisco Lucrécio. QUILOMBHOJE,1998:83-84 Depoimento de Marcello Orlando Ribeiro. 402 Carta da Estrada de Ferro Sorocabana. A Voz da Raça, Ano I, no. 30, 20/01/1934, p.2 401
196
Era o Departamento Jurídico que resolvia esse tipo de problema. E, ao que parece os assuntos que mais surgiam eram os referentes aos casos de discriminação racial, não apenas no mercado de trabalho. Relatos dos velhos militantes e informações por nós encontradas no A Voz da Raça dão uma noção da atuação do referido departamento:
“ Era moda em São Paulo, no inverno, ter os rinques de patinação. Negro não entrava. Nós saímos a campo para saber por que não aceitavam negros. Era um lugar chique, eles não falavam diretamente que não aceitavam negros. (...) na época, a Frente Negra estava com muita força diante do governo de Getúlio Vargas. O chefe de polícia, o Cordeiro de Farias, emitiu uma nota: rinque de patinação que não aceitasse negros fecharia suas portas, como de fato houve rinques de patinação que foram fechados.”403
“ Queixas contra a polícia – com vistas ao Dr. Chefe de Polícia . Crença na ‘marginalidade do negro’ As 21 horas, terminado o ensaio, retiravam-se para casa diversas senhoritas, acompanhadas de rapazes quando, ao chegarem a rua Conde de São Joaquim foram abordados por inspetores de segurança... O inspector sem motivo justificável deu imediatamente ordem de prisão a todos, ordenando que entrassem para o carro de preso. Tal não aconteceu devido ao protesto dos presentes... É necessário Sr. Dr. Chefe de Polícia tome uma providência a fim de coibir tais abusos de seus subordinados. A Frente Negra não é uma organização suspeita ou clandestina e por isso deve ser merecedora de respeito... Aí fica, pois, a nossa justa reclamação a Sr. Ex. para que tal fato não mais se reproduza.” 404
E o Departamento também atuava em outros municípios: "tinha cidade do interior que nós íamos porque os negros não passeavam nos jardins aos domingos, nas retretas musicais. (...) E aí os frentenegrinos chegavam nas cidades e iam entrando nos
403 404
QUILOMBHOJE,1998:54 depoimento de Francisco Lucrécio A Voz da Raça, 1933, ano I, nº 1, p. 1
197
jardins, para espanto das pessoas.”405 Essas ações dos militantes durante os anos 1930, demonstram um processo de compreensão da questão racial em São Paulo que não vemos nos anos 1920. Certamente o contato com a realidade das cidades do interior do estado em que o padrão das relações raciais provavelmente estava assentado em bases mais tradicionais mostraram-nos que o racismo guardava suas peculiaridades conforme a sociedade ao qual erigia-se. Fora isso, os ativistas dos anos 1930, haviam passado por um processo longo de formação, se pensarmos que muitos vinham atuando desde 1926, com a fundação do Centro Cívico Palmares, caso dos irmãos Veiga dos Santos. Assim, muitas das certezas propagadas nos anos 1920, não seriam mais reproduzidas na década subseqüente. Anos antes, o Clarim d'Alvorada noticiava uma matéria que saíra no Correio da Manhã, em 25 de novembro de 1928, relatando um incidente que envolveu o médico baiano Enoch Carteado, o professor Fernando Magalhães e o embaixador Souza Dantas. O Dr. Enoch era negro e reclamava de racismo por parte dos colegas paulistas que tentavam impedi-lo de compor a caravana de brasileiros que se encontravam na França. Fernando Magalhães mandou despacho a Souza Dantas pedindo "proteção para o médico baiano" e circular aos outros médicos informando que "aquelle médico tem direitos iguais aos outros". Em resposta, correspondendo a ordem racial em voga, os médicos paulistas informaram terem "agido num excesso de zêlo", pois ao esconder o colega da curiosidade francesa, tentavam evitar que o Brasil fosse confundido com um povoado africano.406 Como podemos perceber as representações da África como a terra do atraso permeava o imaginário desses profissionais, sendo por associação, os negros também sinal de atraso e barbárie. O caso foi estampado na segunda página do jornal Clarim d' Alvorada, num período em 405
QUILOMBHOJE,1998:54 depoimento de Francisco Lucrécio.
198
que os ativistas estavam envolvidos na campanha do monumento à Mãe-Preta e que inúmeros intelectuais e profissionais liberais como médicos, advogados e políticos posicionavam-se de forma contrária a efetivação da homenagem. Nesse sentido, a publicação dessas notícias tinha como finalidade maior sensibilizar a comunidade negra leitora da necessidade de se refletir sobre a questão racial, especialmente na cidade de São Paulo, locus privilegiado para a existência desse tipo de prática discriminatória devido ao grande contingente populacional de origem estrangeira como mostravam os ativistas. Numa época que as ações preconceituosas e discriminatórias não eram consideradas nem crime de injúria, muito menos de racismo, a função dos intelectuaismilitantes era de levar especialmente ao meio negro, as reflexões que faziam. Os textos tentavam fazer com que negros e até mesmo brancos pudessem tipificar os comportamentos racistas da sociedade paulistana para a partir daí, se posicionarem de maneira mais assertiva contra esse estado de coisas.
4.3 Década de 1930: adesão e dissensão entre José Correia Leite e Arlindo Veiga dos Santos As lembranças em princípio, fazem parte da particularidade de cada um, logo a memória é um fenômeno individual. Mas, nossa memória não é estática, passa por processos de construção e reconstrução, a partir das nossas interações sociais, portanto ela também é coletiva407, uma vez que "trata-se de uma representação do passado que é compartilhada por toda uma coletividade"408. Veiga dos Santos e Correia Leite compreendiam o campo político de maneiras 406
407
Clarim d' Alvorada, nov/1928 no.10 p.2 Cf.HALBWACHS,1990; POLLAK,1992
199
distintas. Enquanto Leite, numa posição mais à esquerda, incentivava a discussão e encaminhamento coletivo das decisões, Arlindo, pelo contrário, mais à direita, creditava ao "líder esclarecido", em outras palavras, à liderança intelectual a capacidade de escolher o melhor caminho para a coletividade. Duas personalidades fortes e por vezes antagônicas que influenciaram na mobilização do conjunto de militantes negros no passado e em alguns momentos também contribuíram para a ineficácia desta, ainda que esse não tenha sido o fator determinante de seu refluxo, decorrente, na verdade, da deflagração da ditadura do Estado ovo. Os depoimentos publicados nos anos 1990, pouco problematizaram tais divergências, apenas Correia Leite, em suas memórias, toca em questões intestinas. Para ele atitudes e concepções antagônicas
influenciaram
profundamente
os
rumos
do
ativismo
negro.409
Denunciamos uma preocupação dessa memória social em manter uma unidade de práticas e representações, que não existiu no passado do ativismo negro porque foi rico em formulações e projetos, logo passível da ocorrência de conflitos. Discutiremos alguns episódios e a partir deles, intentaremos demonstrar como Veiga dos Santos e Correia Leite, a partir de suas filiações identitárias, representavam de dentro do movimento negro a questão racial e além disso, o tipo de filiação política que cada um escolheu para si e, a maneira que essas escolhas afetaram ou não o ativismo que tiveram. Votando os estatutos da Frente egra Brasileira Como já foi dito, em 1931, se criou a Frente Negra Brasileira que nascia, segundo informações dos depoentes e documentação consultada, de um projeto coletivo e um processo exaustivo de discussão em torno da questão racial no Brasil. 408 409
ROUSSO, 1992:95 Cf. QUILOMBHOJE,1998
200
Entretanto, logo ocorreu um “racha” entre o pessoal do O Clarim d’Alvorada e o grupo dos irmãos Veiga dos Santos. Os militantes do Clarim d'Alvorada foram à reunião de votação do estatuto, com o intento de não deixar passá-lo, pois este havia sido escrito estritamente pelo Dr. Arlindo Veiga dos Santos e levado para ser aprovado na primeira assembléia geral. O grupo do Clarim d' Alvorada não concordava com alguns artigos contidos no documento e acusavam Veiga dos Santos de estar usando a Frente Negra para divulgar suas idéias patrianovistas que ideologicamente, situavam-se próximo do integralismo de Plínio Salgado. Para Leite, Arlindo havia se inspirado no fascismo italiano para fundar uma organização de negros em que ele pudesse se projetar como o chefe maior, absoluto.410 De fato, se considerarmos o artigo sétimo do estatuto, no qual está textualmente escrito: "o presidente era a máxima autoridade e o supremo representante da entidade, tendo suas ações limitadas pelos seus próprios princípios" e os artigos primeiro e décimo contidos no item “Da autoridade na Frente Negra Brasileira” que textualmente estabeleceram: “o Presidente Geral tem a última palavra em todas as questões” e “Somente o Presidente Geral póde conferir, em última instância poderes para delegações, comissões ou representações. (...)”411, não é de se estranhar que Leite se colocasse contra tal documento, limitador da ação dos outros militantes tão envolvidos e comprometidos com o projeto quanto Veiga dos Santos, mas que institucionalmente, devido a uma manobra desse último, ficaram numa condição de subordinação ao presidente geral.412 Contudo, os militantes do Clarim d' Alvorada foram impedidos de participarem da votação e o estatuto aprovado na íntegra. Dias depois, Leite encontraria Arlindo na Rua José Bonifácio, em frente ao prédio em que funcionava o jornal integralista A
410
LEITE,1992:94 A Voz da Raça, estatuto da FNB, ano I, no. 6, 15/04/1933 412 RAMOS,1971:196 411
201
Razão, e ao perguntar-lhe se pretendia usar a FNB para a execução de seus ideais políticos, Arlindo disse que sim, pois os integralistas haviam se apropriado de suas idéias. Até tinham lhe convidado para dirigir o jornal, mas depois mudaram de idéia e deram o posto a Plínio Salgado.413 Vale informar que meses depois, Arlindo ainda usaria o nome da Frente Negra para barganhar prestígio entre os integralistas. No primeiro congresso da AIB, o mesmo fez um discurso no qual garantia ao novo "partido a solidariedade da Frente e seus 200.000 negros".414 Depois da votação do estatuto e desse encontro com Veiga dos Santos, Leite que seria um dos conselheiros da nova entidade, colocou-se no lado oposto das idéias propagadas pela Frente Negra, tornando-se um dos seus mais ferrenhos críticos, rivalizando com a direção da organização, em especial Arlindo Veiga dos Santos. Para selar seu desligamento da organização, Correia Leite escreveu à entidade nascente, informando as razões político-ideológicas que o afastavam. Alegando não participar de uma organização da qual não partilhava as idéias, mas se colocando como um “soldado”, disse não se habituar com "incoherencias e personalismos" além de estar em "pleno desacordo com as ideologias políticas e o clericalismo do snr. Presidente dessa instituição ultra-nacionalista", pois como um livre pensador, condenava a "monarquia, a religião e a república aristocrática". Sobre sua simpatia pela esquerda afirmou "ganho o pão para minha prole, com árduos trabalhos", sonhando com uma república socialista democrática. Finaliza argumentando que, ao contrário do que outros pregavam "devemos imitar tudo quanto é útil para nossa elevação material". Por isso, os ativistas negros daqui deveriam encontrar motivação e exemplo nas outras experiências de organização existentes fora do país.415 Numa clara
413
MOREIRA&LEITE,s/d:20 MOREIRA&LEITE,s/d:17 415 Ver inventário DEOPS/SP, prontuário 1538. Frente Negra Brasileira. 414
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referência à luta organizada dos negros norte-americanos ligados ao garveysmo e dos ativistas comunistas europeus, motivos para críticas e denúncias das lideranças frentenegrinas tempos depois. Todavia, Leite não sabia que a citada carta seria oportunamente utilizada contra ele num episódio ocorrido meses depois.
O caso São Sebastião do Paraíso Correia Leite não deixou a militância no Clarim d' Alvorada depois que saiu da Frente Negra Brasileira. O jornal continuou sendo publicado. A Frente Negra Brasileira era novidade para a maioria dos negros paulistanos. Dotada de prestígio no meio negro e não-negro, logo a entidade alcançaria projeção na cidade e fora dela. Associações de negros do interior pleiteavam se filiar à Frente. Para isso era necessária a visita de uma autoridade central à entidade solicitadora. Foi o que aconteceu em São Sebastião do Paraíso, situada em Minas Gerais. Uma delegação liderada por Isaltino Veiga dos Santos foi aquele município para estabelecer contatos e realizar os trâmites da filiação. Porém, Isaltino que era casado firmou namoro com a filha de uma liderança negra local, que posteriormente ficou sabendo do embuste. O pai da moça tomou providências, comunicando à direção da FNB, na pessoa de Arlindo Veiga dos Santos, que não deu importância ao acontecido, declarando ter sido um caso de "leviandade juvenil". O pai não satisfeito foi procurar os militantes do Clarim d' Alvorada para que esses, no papel de "soldados da raça" cobrassem uma atitude mais coerente do presidente frentenegrino e seu secretário. Já que o discurso produzido pela Frente Negra Brasileira exaltava Deus, a Pátria, a Raça e a Família, com uma entidade defensora dos valores morais cristãos poderia manter aquele secretário? O pessoal do Clarim d' Alvorada pedia o desligamento de Isaltino do cargo de secretário geral da entidade. E também declararam greve na redação do Clarim d' Alvorada até que a 203
situação se resolvesse. Atitude que procurava implicar a opinião pública, pois certamente, estranhariam a ausência do conhecido periódico. Ao mesmo tempo, os ativistas publicaram um novo jornal, na verdade um pasquim intitulado Chibata416 que além de relatar o acontecido em São Sebastião do Paraíso, aproveitava para fazer outras críticas às lideranças da Frente Negra Brasileira. Assim, um caso hoje visto como de foro íntimo, tomou proporções políticas interessantes envolvendo algumas lideranças negras locais e autoridades constituídas, como veremos a seguir. Arlindo não deixou passar despercebido, escrevendo também inúmeros manifestos e panfletos contra o pessoal do Clarim d' Alvorada, chegando a alcunha-los de "Judas da Raça". Já Isaltino dizia: "os nossos seguidores não precisam de intelectuais, precisamos de mais ação e menos palavras."417 Em resposta à alcunha de “Judas da Raça”, o Chibata publicava em sua primeira página como subtítulo a seguinte frase: Nós somos Judas da raça, quem serão os Christos?” Em vários textos do jornalzinho há críticas explícitas ou veladas à filiação patrianovista e católica dos irmãos Veiga dos Santos. Na primeira página piadas e textos sarcásticos nos dão idéia do embate: Patriavelha (...) Encarnar D. Juan e outras figuras dos nossos tempos, deve mesmo ser preocupação do irmão do irmão patriavelhista. Nos melhores dias “desses Brasis” repousam nas velharias da Pátria que então tinha pastos a “alimária” negra em pleno paganismo americano e restringido na sensala. Mas “nois” que philosophamos, nois que confessamos, nóis que temo a pátria na vista” devemos tirar a vista da raça porque negro nasceu para viver tapeado. Deve ser analphabeto porém deve saber resar tudinho direitinho sinão não serve p’ra ficar na 416 417
Saíram apenas dois números do Chibata . MOREIRA&LEITE,s/d:20
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patriavelha! Adivinhação Um homem casado que namora uma moça solteira o que é? D. João, conquistador e etc... É apenas “leviandade juvenil” Nós da mocidade negra Não queremos tapeação A bem da nossa moral Exigimos punição! Sahe da Frente secretario Exigimos sem cessar Precisamos gente seria Que possamos respeitar418
O ápice do conflito se deu com o empastelamento do Clarim d' Alvorada. A casa de Correia Leite foi invadida, mas os agressores não chegaram a danificar a oficina. O caso foi parar na Delegacia da ordem Política e Social, pois Leite registrou queixa contra os irmãos Veiga dos Santos. Mas para sua surpresa, as lideranças frentenegrinas também tinham uma denúncia contra sua pessoa: acusava-o de ser adepto do comunismo. Entregaram ao delegado uma cópia da carta em que Leite se demitia do Conselho Geral da Frente Negra Brasileira, meses antes após o episódio da votação dos estatutos da organização, uma cópia do jornal Clarim d' Alvorada, além de uma carta de acusação assinada por dez pessoas. Entre esses dez não estava o nome de Arlindo Veiga dos Santos que de certo, foi protegido pelo grupo. O documento de 28 de março de 1932, continha as seguintes informações:
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Chibata, fevereiro de 1932, s/no. p.1
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"Patrício ilustre, Embora julgassemos impotentes para acalmar os animos exaltados dos nossos associados, com referência ao caso da "A Chibata", e si bem que ela não tinha sahido graças as providencias tomadas pôr V.excia, apareceu ontem, um outro jornal, com termos identicos, mas os dirigentes da "Frente Negra Brasileira", conseguiram evitar qualquer idéia de desforra dos associados fazendo ver que os mesmos deviam tão somente da resolução da polícia, esperar a devida justiça no caso, é assim que junto a presente lhe enviamos um exemplar do referido jornal, e para que V. excia., possa alcançar qual a intenção dessa gente, juntamos a presente, uma profissão de fé, do chefe desse grupo".419
O jornal, como já dissemos, era o Clarim d'Alvorada, o que denota a intenção das lideranças frentenegrinas em intimidar o grupo da Sociedade Cooperadora que editava o jornal. Parece que o objetivo era neutralizar definitivamente a ações dos ativistas do grupo do Clarim d' Alvorada, já que mesmo o tradicional jornal passara a ser perseguido. Já a cópia da carta de Leite vinha com um adendo, contento as seguintes recomendações ao Delegado de Ordem Política e Social: "Pela presente carta, verá V.S. que esse senhor de a muito procurava um pretesto, para se desligar da "frente", a fim de dar expansão, juntamente com o seu grupo, das suas ideais contrárias, o caso pois que eles exploram com o nome do secretário geral da frente, macomunado com alguns elementos de S. Sebastião do Paraízo, é de somenos importância, foi tão somente, uma expansão para demonstrar claramente o seu despeito a sua inveja, pois eles nem brasileiros querem ser".420
A denúncia fazia referências claras à simpatia dos militantes do Clarim d’Alvorada com o ativismo negro norte-americano e o socialismo. No entanto, segundo depoimento de Correia Leite, a autoridade policial não se surpreendeu com o conteúdo de sua carta. Pelo contrário, disse ao presidente da Frente Negra que ele é que deveria se preocupar, pois poderia ser taxado de subversivo uma vez que a
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monarquia não poderia conviver com a república. Já o “comunismo” de Correia Leite entendido pelo grupo de Veiga como uma ideologia estrangeira, não era incompatível ao regime republicano.421 Por conta desse episódio, a Frente Negra Brasileira passou a ser investigada pela Delegacia de Ordem Política e Social de São Paulo. E os ativistas do Clarim d' Alvorada acharam por bem parar com o jornal. No meio negro paulistano pairava a dúvida: "será o inimigo do negro o próprio negro?"422 Arlindo também foi perdendo prestígio dentro e fora da organização. Artigos publicados nos meses subseqüentes revelam uma certa instabilidade e uma tentativa de convencimento dos duvidosos. No ano de 1933 Veiga também disputou uma vaga na Constituinte, mas existia um outro candidato negro ligado à Legião Negra, o batalhão que havia lutado na constitucionalista e essa candidatura dividia as opiniões no estado. Frases de efeito e palavras de ordem foram utilizadas pelo ativista na tentativa de neutralizar as forças opositoras. Vejamos: “Gostamos desses momentos épicos quando as forças do mal se desencadeiam, quando os instinto baixos da escola e da plebe se manifestam, quando o cinismo, a hipocrisia, a infâmia, a canalhice, a estupidez, a sórdida mentira, o ódio e a inveja, os planos inconfessáveis se revelam para destruir os baluartes da verdade e do bem. (...)”. Atacam a FNB, por ser eu, com toda a honra patrrianovista, como com toda honra sou frentenegrino, por ser negro brasileiro. (...) Na falta de argumentos, o pessoal negroenvergonhado que jamais quis cousa alguma ou que, por bons motivos, foi expulso da associação, grita desesperadamente, ás vezes soprado por gente que muito bem conhecemos, e que tem interesse na morte da FNB.423
419
Ver Inventário DEOPS/SP, Frente Negra Brasileira, prontuário 1538. Ver Inventário DEOPS/SP, Frente Negra Brasileira, prontuário 1538. 421 LEITE,1992:100 422 MOREIRA&LEITE,s/d:21 423 Veiga dos Santos, “Alerta”, A Voz da Raça, ano I, no. 3, 1o./04/1933, p.1. 420
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E até mesmo o conjunto de referências cristãs foram utilizados: Judas Iscariotes: Ai do homem por quem o Filho do homem é traído... (...) Tu não serás um chefe digno de um – pois tu não terás sentido o que se pode sofrer por mim - enquanto não tiveres superado essa agonia: ser traído pelos teus, caluniado pelos ‘de tua pátria e tua casa’, beijado por Judas. Desconhecido pelos de Nazaré. (...) O beijo de Judas é a prova do ouro, na hora em que o Senhor se prepara a nos pedir conta dos dinheiros que nos confiou. Bessiéres, “E’ vangile du Chaf” tradução de Arlindo Veiga dos Santos)”424
Contudo, as ações de Arlindo parecem não terem tido efeito promissor, pois em 1934, o mesmo deixou a presidência geral da Frente Negra Brasileira, ainda que permanecesse com destaque nos quadros dirigentes. Não sabemos se foi uma estratégia das próprias lideranças para diminuir as críticas ou resultado da ascensão de outros líderes menos controversos. Como se pode perceber, disputas políticas fracionaram o movimento negro na década de 1930. As ideologias de esquerda e direita, além das motivações individuais enfraqueciam a unidade, pois geravam identidades conflitivas fragmentadoras da luta política de caráter racial. Outros desafetos No período de duração da Revolução Constitucionalista a Frente Negra Brasileira posicionou-se do lado das forças federais. Por conta dessa escolha, há relatos de que a instituição sofreu ameaças de invasão pelas forças paulistas. Muitos 424
Veiga dos Santos, “Uma página Christã para os Frentenegrinos”, A Voz da Raça, Ano I, no. 4,p 1, 08/04/1933
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associados e militantes, antes assíduos da Frente Negra, saíram para lutar a favor de São Paulo. E, após o conflito, a rivalidade se manteve, pois o prestígio dos dirigentes frentenegrinos entre as autoridades locais aumentou, já que a oligarquia paulista perdeu a guerra. Um dos principais dissidentes foi o advogado da Frente Negra, o Dr. Guaraná de Santana. Este que havia defendido os irmãos Veiga dos Santos no episódio do empastelamento do Clarim d' Alvorada decidiu juntar-se as milícias paulistas contra o poder de Getúlio Vargas, atuando como dirigente na Legião Negra. Logrando ocupar um lugar de destaque no meio negro, o advogado via que não tinha espaço de atuação na Frente Negra o que supostamente motivou-o a participar da Revolução Constitucionalista. Esse posicionamento lhe rendeu perseguições posteriores, culminado em sua prisão por crime político em 18 de novembro de 1932, sob a acusação de se tratar de elemento perigoso à ordem devido a participação no movimento liderado pelos paulistas meses antes. A delação partiu dos dirigentes frentenegrinos, conforme a carta abaixo, escrita por Isaltino Veiga dos Santos, em nome do Grande Conselho da Frente Negra Brasileira: " Homem que ostensivamente procuraram esfacelar o país" "arregimentou homens negros para a dita constitucionalista" "tem causado extranheza continuar esse indivíduo perigoso á coletividade completamente solto, a exhibir a sua pose malcreada e, que é grave, conspirando contra o atual governo e fazendo praça dessa circunstância." 425
O episódio mostra o tipo de relacionamento que os dirigentes da Frente Negra tinha com o Estado, representado pelo DEOPS de São Paulo. Volta e meia os irmãos
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Veiga dos Santos acionavam as autoridades repressoras, especialmente para denunciar os suspeitos de serem comunistas. Serviços prontamente retribuídos pelas autoridades municipais ou estaduais em forma de favores ou presença assídua nas solenidades da organização, conferindo-lhe prestígio político e social. Era prática de Arlindo Veiga dos Santos e seu irmão prezar uma boa relação com as autoridades locais, principalmente com a polícia. A Frente Negra como oficialista426, ou seja, como uma organização que não procurou se contrapor ao governo central, de todas as maneiras deixou clara sua posição de apoio a Getúlio Vargas. Como vimos em 1932, a FNB não se posicionou a favor de São Paulo sendo muito criticada por isso. A Frente Negra Brasileira, sob a direção do Dr. Veiga dos Santos em inúmeras vezes usou dessa entrada nos meios oficiais como demonstra o jornal A Voz da Raça e os prontuários do DEOPS/SP. Entretanto, era uma relação de mão dupla. Mostraremos a partir desse momento como se deu essa relação. Nos prontuários do DEOPS/SP encontramos inúmeras correspondências que evidenciam a estreita relação que tiveram as lideranças frentenegrinas com o poder local. Numa carta enviada ao interventor federal do estado de São Paulo, em maio de 1932, portanto antes da Revolução Constitucionalista, o Conselho Soberano da Frente Negra Brasileira pedia ajuda, pois "fontes desconhecidas" traziam um "facto summamente grave": planejava-se por "elementos pertubadores da ordem, um ataque a mão armada a sede da entidade", entre o dia 27 e 28 daquele mês. O documento não informava quem seriam esses pertubadores da ordem e nem a quais grupos pertenciam. Termina reafirmando representações positivas do negro ao interventor Pedro de Toledo, com as seguintes considerações: "não é, pois, o presente, um apello de covardia. É um desejo sagrado e sincero de paz, de harmonia da família brasileira, pois 425
Arquivo DEOSP/SP Prontuário 2029 - Joaquim Guaraná de Santana
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que todos somos pacatos, ordeiros, trabalhadores e nobres em prol da collectividade".427 Já um panfleto escrito por Arlindo no começo de maio de 1932, deixava subentendido que forças ocultas se organizavam contra a Frente Negra Brasileira. É importante lembrar que neste mesmo ano, entre fevereiro e março, havia ocorrido o problema com o pessoal do Clarim d' Alvorada em decorrência da atitude de Isaltino em São Sebastião do Paraíso. Parece então que na verdade se tratava de uma continuação do problema que agora se politizara completamente. Como veremos em alguns fragmentos do panfleto. O panfleto tinha com o título "VIVA A RAÇA!", mas antes mesmo do título tinha a seguinte chamada: "MEUS IRMAÔS NEGROS!", ou seja, mais do que uma entidade política e social, a FNB, no projeto de seu dirigente maior, deveria objetivar a idéia de uma fraternidade, de uma família que vivia em comunhão de idéias e práticas orientadas pelo líder e perfeitamente compreendidas pelos liderados, os irmãos negros. Aqueles que por algum motivo discordassem dessa orientação deveriam ser vistos como traidores e deveriam ser afastados do convívio fraterno, pois agiam como os "Judas da raça". Arlindo que procurou não citar os nomes dos seus desafetos tentava esclarecer os freqüentadores da Frente Negra e organizações similares, dos perigos que representavam alguns sujeitos que segundo ele, faziam do negro paulistano "instrumento de ascensão no campo político e talvez econômico". Sendo o presidente e seu grupo, os "verdadeiros trabalhadores da Causa" seria lógico que seus inimigos desejavam afasta-los da direção. Arlindo considerava os que se opunha um grupo de "esquineiros que conversam fiado,
426 427
OLIVEIRA,2002:83 Inventário DEOPS/SP, Prontuário 1538 Frente Negra Brasileira
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mas não resolvem nada, criticam, mas não constróem".428
Parece que era uma prática dos militantes da Frente Negra Brasileira denunciar à polícia seus desafetos. Caso esse adversário representasse algum tipo de perigo explícito, aí sim, que eles se empenhavam ainda mais. Uma correspondência encontrada no A Voz da Raça, enviada pelo Delegado de Segurança Pessoal, Francisco A C. Franco ao Dr. Arlindo Veiga dos Santos, agradecia a "nobre e digna sociedade" a "gentileza das informações", finalizando com "votos de prosperidade e protestos de estima e consideração".429 Não sabemos do que se tratavam as informações "gentilmente" cedidas ao delegado, mas desconfiamos que elas versavam sobre supostas lideranças que no entendimento de Veiga dos Santos pudessem oferecer algum perigo ao status quo. Fossem esses militantes do movimento negro ou não. A conjuntura política iniciada em 1930, caminhava anos após anos para um Estado autoritário, fato ocorrido em 1937, com a ditadura do Estado Novo. Num período em que premia uma conjuntura revolucionária na qual muitos eram obrigados a se posicionarem política e ideologicamente, Arlindo e seu grupo optaram pelo oficialismo, ou seja, ficaram do lado do governo Vargas, contribuindo em muitos episódios para com o a estrutura de repressão e perseguição política instaurada pelo Estado a partir de 1930 e exacerbada sob o argumento do controle da ordem e paz social depois da deflagração de movimentos como a Revolução Constitucionalista de 1932 e radicalização comunista em 1935.
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Inventário DEOSP/SP, Prontuário 1538, Frente Negra Brasileira. Manifesto de Arlindo Veiga dos Santos 04/05/1932 429 A Voz da Raça, ano I, no.12 10/06/1933
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5.CO"SIDERAÇÕES FI"AIS Quando escolhermos como objeto de nossa pesquisa as trajetórias políticas de militantes negros, nossa primeira intenção era olhar para o movimento negro existente durante os anos 1920 e 1930 por uma perspectiva dos indivíduos, pois muitas abordagens dedicaram-se as organizações surgidas no período, sem necessariamente deterem um olhar mais pormenorizado aos seus protagonistas. Assim, ao iniciarmos as leituras sobre esse passado, dia após dia, apreendíamos a história dessas organizações negras, no entanto, ficavam algumas indagações que aumentavam no decorrer do curso: quais as motivações individuais e coletivas daqueles ativistas? Que barreiras enfrentaram? Quais percursos devem ter percorrido para alcançarem seus objetivos? Que status alcançaram no interior e fora dos grupos em que atuaram? Eram perguntas que não encontrávamos totalmente respondidas nos trabalhos produzidos até o momento. Estes personagens aparecem na maioria dos livros, teses e dissertações como uma espécie engrenagem nas organizações que participavam. Para exemplificar, nos trabalhos de Fernandes430, os ativistas figuram como informantes, restando ao leitor, apenas as iniciais de seus nomes. Limites do fazer metodológico e da proximidade temporal entre o pesquisador e o objeto. E, em Andrews, são abordados de forma irrisória. No caso de Arlindo Veiga dos Santos os dados são escassos e incorretos, cabem quase todos num único parágrafo que afirma ter Arlindo nascido na Bahia, trabalhado na Faculdade de Direito de São Paulo e presidido o Centro Cívico Palmares.431 Outras informações estão contidas em notas de pé de página distribuídas no decorrer do capítulo 5. Já sobre Leite não há qualquer informação, ainda que o 430
FERNANDES,1978:volI e II.
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Clarim d'Alvorada tenha sido exaustivamente utilizado. Portanto, e como já dissemos em nosso primeiro capítulo, as únicas iniciativas preocupadas em compreender esses sujeitos e suas motivações foram realizadas por ativistas contemporâneos em depoimentos colhidos por Cuti e Márcio Barbosa. Nesse caso, Correia Leite pôde depor sobre sua própria história de vida. O mesmo não aconteceu com Arlindo, falecido em 1978. Mas, um trabalho recente, ainda não publicado dá conta de alguns aspectos da história de vida desse protagonista do ativismo negro paulistano.432 Assim, definidos os objetos e os questinamentos que nos levavam à investigação, faltava-nos as abordagens teórico-metodológicas. A literatura mais abrangente, a própria documentação atrelada as perguntas que remetíamos as informações encontradas nos levaram a entender que aqueles personagens tiveram atuações que os definem para além do termo militantes. Por isso os entendemos como intelectuais-militantes, uma definição que combina a prática política do militante com a ação reflexiva do intelectual. No caso de Veiga e Leite, foram formuladores de representações sociais dirigidas à comunidade negra em especial, com a finalidade de dar-lhe instrumental político e cultural capaz de dirimir as situações de discriminação e preconceitos raciais na cidade de São Paulo. Afirmamos no início de nosso trabalho e reiteramos nessa conclusão que de fato, os percursos de vida são moldados, direcionados e freqüentemente modificados pelas interações entre os sujeitos e seu meio coletivo socio-histórico. Entretanto, também corroboramos das assertivas que acreditam ser a ênfase nos indivíduos um mecanismo que permite extrair comportamentos gerais, mas também reconhecer as diferenças particulares no nível individual, pois focando em ângulos de suas vidas, e 431
ANDREWS,1998:230 Trata-se do artigo, ainda no prelo, de Domingues, intitulado O "messias" negro? Arlindo Veiga dos Santos (1902-1978): "Viva a nova monarquia brasileira; Viva Dom Pedro III!", a ser publicado pela 432
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mesmo comparando-as, podemos alcançar aspectos singulares de suas experiências.433 Portanto, para comprovar nossas assertivas iniciais e reafirmadas aqui, optamos por abordar as trajetórias políticas desses dois intelectuais-militantes, numa perspectiva comparada e no âmbito das organizações político-sociais por eles fundadas ou freqüentadas. Somente nesse locus pudemos comprovar a prática intelectual e militante desses indivíduos, pois percorremos as ações implementadas, relações travadas e resultados obtidos. As atuações políticas de Veiga e Leite entre as décadas de 1920 e 1930 guardam características específicas do tempo vivido. Personagens em evidência no interior da coletividade negra, cada qual alcançou prestígio por um caminho distinto, ainda que os dois viessem de famílias humildes como a maioria dos negros da época. Veiga como vimos foi um intelectual erudito, publicou livros ainda na juventude e foi respeitado também fora da comunidade negra por sua atuação católica, monarquista e carreira profissional como professor. Correia Leite se construiu intelectualmente no decorrer de sua trajetória política com reconhecimento preferencialmente no interior do próprio meio político negro. O reconhecimento veio especialmente após os anos 1950, com a comemoração de seus 50 anos, organizada pelo também ativista e intelectual, Fernando Góis. Para o evento que passou a chamar-se "Semana Correia Leite", continuado no decorrer de mais alguns anos, acorreram ativistas de São Paulo, Rio de Janeiro, além de intelectuais brancos como os professores Roger Bastide e Florestan Fernandes.434 Posteriormente, mais precisamente a partir dos anos 80, com a descoberta desse ativismo da primeira metade do século XX pelos participantes contemporâneos, José
Revista de História: Questões e Debates, de Curitiba. 433 SPITZER,2001:21 434 LEITE,1992:160
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Correia Leite tomou lugar destacado nesse universo, transformando-se numa espécie de guardião da memória do passado e personalidade emblemática.435 Sua trajetória política simbolizaria para aqueles que se envolveriam no protesto político negro a partir dos anos 1970, a personalização do ativismo negro que agira décadas antes. E, fundamentalmente por suas posições de esquerda, contrárias das de Veiga dos Santos, declaradamente um conservador reacionário. Esta “outra história” os ativistas do presente não quiseram conhecer, pelo menos não totalmente. Portanto, percebemos que o resgate da memória desses militantes esteve estreitamente ligado ao projeto de construção de uma identidade social436 do movimento negro brasileiro contemporâneo. As narrativas externadas pelas lembranças muitas das vezes tiveram uma lógica intrínseca àqueles que viveram no passado, porém, todavia acabaram por estender-se ao presente, a partir do momento que os que aqui estavam partilhavam as mesmas filiações identitárias. Essa afirmação é facilmente comprovada quando comparamos os depoimentos dos antigos militantes. Questões desagregadoras como dissidências políticas, projetos antagônicos e embates mais diretos vividos no passado, na maioria das vezes foram colocadas em segundo plano, dando lugar a uma narrativa contemporizadora, capaz de acomodar todos, os do passado e do presente, em uma coletividade una. Enfim, a importância maior desses mecanismos de resgate da memória foi o fortalecimento de uma identidade capaz de dar unidade aos dois momentos históricos, contribuindo assim para a construção de uma História do movimento negro brasileiro. Outrossim, os ativistas das últimas décadas do século XX repetiam o que fizeram os intelectuais-militantes de outrora: engendraram inúmeros mecanismos de
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Outros personagens importantes foram os senhores Henrique Cunha, cooperado do jornal O Clarim d' Alvorada na década de 1930 e Francisco Lucrécio, o segundo secretário da Frente Negra Brasileira. 436 POLLAK,1992:204
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conscientização e mobilização da comunidade negra. Veiga, Leite dentre outros ativistas comemoravam o 13 de Maio e demais leis pré-emancipação com cerimônias que incluíam visitas aos túmulos dos heróis abolicionistas Luiz Gama e Antônio Bento e a publicação de editoriais especiais nos jornais homenageando além das personalidades já citadas José do Patrocínio, Princesa Isabel etc. Além dos abolicionistas negros de destaque eram sempre lembradas as datas de aniversário e morte do poeta de Cruz e Souza, de José do Patrocínio, dos irmãos Rebouças, Henrique Dias e até mesmo do emblema Zumbi admirado pela história quase centenária do Quilombo de Palmares. Assim, tais ocasiões se constituíam como um momento profícuo para a produção de novas representações sobre o negro. Objetivando e ancorando imagens positivadas, os intelectuais-militantes reconstruíam uma nova história livre do clichê do negro escravo. E como vimos, mesmo a escravidão foi re-elaborada de uma maneira que os ativistas entendiam positiva. A partir da representação da Mãe-Preta, manipulada em diversos episódios, como mostramos no capítulo anterior. Em suma, nosso esforço foi entender a atuação política de José Benedito Correia Leite e Arlindo José da Veiga Cabral dos Santos como dois exemplos de um conjunto de intelectuais-militantes responsáveis por dinamizar o ambiente político paulistano durante os anos 1920 e 1930. Líderes natos, apesar das atuações públicas distintas que nos esforçamos por descrever ao longo do trabalho, encamparam ações voltadas à comunidade negra paulistana, em particular e brasileira, no geral. Cônscios da condição de subordinação enfrentada pelos negros naquele estado e, mesmo no país, atuaram com as convicções político-ideológicas de que dispunham e algumas limitações pessoais para promoverem a "elevação moral do elemento negro" pela via da instrução, na mais ampla acepção do termo. Única saída à Segunda Abolição. 217
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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