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2. Despojos da primeira batalha
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DESPOJOS DA PRIMEIRA BATALHA
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O francês estava fazendo umas contas e explicando ao coronel Camisão que as grandes dificuldades dessa guerra não eram nem as fortalezas do inimigo – se multiplicando cada vez mais –, nem seus canhões, nem as florestas, as montanhas ou os banhadais. – Além de invadirmos um país que não conhecemos, há outra forte razão a considerar, coronel. Duas mil milhas separam o Rio de Janeiro de Asunción. – É – dizia o coronel –, por ligeiro que se vá, esse percurso leva catorze dias. De barco. Por terra, leva catorze meses. – E tem mais – sempre o francês derrotista –, uma guerra se faz com homens, armas e dinheiro.
E Camisão:
– Dinheiro o Império tem. – Não sei se tem o suficiente, coronel. A invasão do México custou à França 1 milhão de francos. Os ingleses gastaram 500 milhões de libras na Abissínia.
Falavam em soldados, armas e dinheiro – três itens que diminuíam a olhos vistos –, quando o cabo Argemiro trouxe a má notícia: – Fomos atacados ali adiante. Somente uns poucos voltaram. Há desaparecidos, mortos e muitos desertores. – Reúna os homens – ordenou Camisão. – Mas agora? No escuro? – espantou-se o francês.
Os que voltaram narram o ocorrido. Falam pouco. Alguns estão sangrando, outros gemem, se queixam, dão berros horríveis ao receberem os primeiros curativos. Todos suam demais, mesmo os que estavam no acampamento. Um soldado abre um saco de estopa e, à vista de todos, despeja seu conteúdo. São diversas as cabeças cortadas. Um outro vem para o meio da roda, onde todos ouvem as preleções do coronel, com um balaio às costas. Camisão não para de falar, contemplando as cabeças com certo ar de espanto. Homem acostumado aos eventos sinistros de outras campanhas militares, ainda assim não consegue esconder a náusea ao ver as cabeças. Está falando ainda quando o soldado que chegou com o balaio emborca-o ao lado das cabeças. São diversos pênis e testículos. Enquanto isso, dois caboclos chegam com uma rede muito suja de sangue. Parece pesada, pois os dois respiram com dificuldade, suam e gemem mais do que os outros. Com a ponta da
espada e o pé, o subcomandante Juvêncio desembrulha a rede. Agora, já não são poucos os que vomitam, de costas para o cordão que se fez em redor do comandante. Na rede estão braços e pernas em pedaços. – As cabeças são dos nossos – explica o chefe do pelotão interceptado. – As xongas são do inimigo. – Respira um pouco e completa: – Braços e pernas não fui eu quem quis trazer. Não pude impedir alguns excessos dos meus homens e eles esquartejaram algumas residentas, essas mulheres que acompanham os soldados paraguaios. Estupraram as pobres próximas antes. Também isso não pude impedir.
O comandante dá um berro no meio da noite: – Mas para que um espetáculo desses? – Ainda não terminou – diz o cabo Argemiro.
Com efeito, chega outro soldado com mais um saco muito sujo de sangue. Há movimentos dentro dele. O coronel Camisão, um pouco perplexo, interrompe sua fala exasperada e seus conselhos e admoestações sobre a “arte de bem guerrear, sem exageros” e aguarda a surpresa. O soldado levanta a bolsa à altura dos ombros e despeja uma porção de sapos que, ainda mais espantados do que os militares ali reunidos, saem pulando em todas as direções. Os soldados, assustados, começam a atirar nos sapos. Outros disparam a si mesmos, fugindo apavorados. Está desfeita a preleção, desmanchada a avaliação do ataque, instalada a anarquia geral, ainda que momentânea.
Logo estão todos reunidos outra vez. Riem. Uns debocham dos outros, proclamando o medo alheio. Em
meio ao burburinho geral, o comandante quer saber de quem foi a “ideia malsã” de trazer as cabeças dos nossos, e não as dos inimigos. Entreolham-se todos. Há um tom de vacilação na autoridade do coronel em muitos dos olhares. O subcomandante Juvêncio dá um passo à frente, pigarreia e explica: – Foi uma forma que encontrei de verificar quem morreu de fato, para saber ao certo quem desertou. – Mas que é isso, homem? – pergunta o comandante. – O senhor quer dizer que aqueles cujas cabeças não estão aqui, cortadas ou coladas nos pescoços dos que voltaram, só podem ter desertado? – Isso mesmo, comandante. – Mas se esquece dos que foram feitos prisioneiros. – Os paraguaios não fazem prisioneiros – diz Juvêncio. Camisão fica sem jeito, vários auxiliares sentem que o desconforto aumentou. Trava-se uma surda luta de poder na coluna.
O comandante manda que os despojos sejam enterrados. Dispensa a todos. As autoridades subalternas cuidam em destacar sentinelas. A tropa enfim vai poder dormir em paz. Uma coruja pia por perto. A noite está, como de costume, prenhe de sons. Grupos de soldados que se movem nas sombras observavam de longe, sem entender muito bem o espetáculo. Preparam-se para surpreender os brasileiros em pleno sono.