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3. Galopeiras paraguaias
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GALOPEIRAS PARAGUAIAS
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Os soldados que se moviam nas sombras não eram soldados. Eram soldadas, mas ninguém as percebera ainda. Um mestiço franzino por pouco não evitou o ataque. Destacado para sentinela, a oeste do acampamento, esse recruta, de nome Osvaldo, tão logo os companheiros dormiram, acometeu-se de um medo pavoroso, um pânico atroz. O silêncio da madrugada, entrecortado por centenas de sons, dos quais ele conseguia decifrar perto de uma dezena, aliando-se ao nublado de uma noite de lua fraca, acentuava as suas temeridades.
Estava ali de sentinela o Osvaldo, recordando uma namorada que deixara em Corumbá, quando uma coruja veio pousar à sua frente. A imaginação do recruta voou para longe e a coruja lembrou-lhe algumas caçadas e a vida pacata na cidade pequena. Toques de sinos reboaram dentro dele. Esquecido de que estava
na guerra, de repente não era mais soldado. Mirou bem a coruja e disparou seu fuzil.
O tiro deflagrou a mais insólita correria. Soldados mortos de sono, chutados por cabos e sargentos, imediatamente estavam a postos para defender-se dos inimigos. Foi quando o cabo Argemiro apontou para a sentinela, que estava assustadíssima com a movimentação, mas que não tinha visto inimigo nenhum. – Que se passa? – perguntou o guia Lopes, o mais calmo da turma, já rindo, enquanto o recruta, tremebundo, se explicava. – Aqui não tem lugar pra saudade de coisa nenhuma, animal. Fique sabendo! Você está a serviço da pátria. Põe isso no siso!
O coronel Camisão não se conformou. – Você já viu soldado poeta, francês? Pois no Brasil tem. Meus homens vivem falando de pés de cedro que deixaram nas chácaras onde viviam, de plantinhas que regavam todos os dias, de mocinhas com quem se encontraram nos mourões das porteiras. – O senhor não sente saudade de nada, coronel? – Sinto, francês. Sou militar e tudo o que diz respeito a perdas não me é estranho.
Encerrado o incidente, renovadas as admoestações à sentinela, todos voltaram a dormir. E já estavam dormindo outra vez quando a sentinela viu a nuvem descobrir a lua e esta iluminar os descampados. Pôde, então, Osvaldo presenciar, ainda que ao longe, um fenômeno já referido por outros companheiros, num misto de medo e gozo: as galopeiras, que ninguém po-
dia atestar com segurança se existiam ou se eram da mesma estirpe das mulas sem cabeça, boitatás e outras figuras mágicas que povoavam os campos e a imaginação do pessoal.
O espetáculo era realmente belo. Ao longe, as paraguaias seguiam a galope, sacudindo seios, mostrando coxas bem torneadas, com lanças em posição acertada para a cavalaria. Como que faceiros de levar quem levavam ao lombo, os cavalos deslizavam leves como plumas e mal tocavam o chão com as patas, todos eles pégasos. As paraguaias e os cavalos formavam centauras cheias de graça, harmoniosas, velozes, unindo força e beleza, duo raro numa guerra. Traziam nos cabelos ramos de flores essas misteriosas mitacunhãs.
Osvaldo perdeu-se em lembranças outra vez. As galopeiras mexiam com coisas muito profundas dentro dele. Se pelo menos uma delas se desgarrasse, extraviada no Pantanal, Osvaldo Sonhador buscaria o amor dessa paraguaia, beberia a água do desejo que lhe fora dada a beber em tantos cantis inadequados. A última mulher com quem estivera fora uma baixinha de braços curtinhos, pernas tortas, um buço de bode, pelos graúdos no peito, face áspera, coxas de atleta, um hálito horroroso, sem contar um fedor nauseabundo que exalava dos sovacos, sujos há tanto tempo. E agora lindas paraguaias desfilavam à luz suave da lua, no meio da noite, quando a guerra fazia uma pausa.
Osvaldo não teve tempo de completar suas reflexões. Uma faca bem afiada passou rápida em sua
garganta e mal sobrou tempo para uma espécie de suspiro. O fuzil caiu ao lado do corpo, que também desabava. Nenhum tiro.
Mas o cabo Argemiro, que saíra da rede para mijar, deu o alarme. Por pouco não foi tarde. Paraguaios surgidos das sombras, abruptamente, começaram a matar de todo jeito. Tiros. Facadas. Pauladas. Uma formidável gritaria de causar pavor ao inimigo acompanhava o ataque surpresa. – Eles atacam desse jeito – queixou-se Juvêncio. – Parece que não querem matar a gente. Só o que querem é nos levar atrás deles para o meio do mato. – Eu não quero entregar ninguém, nem falar em falso, mas me diga uma coisa, coronel, como é que esses paraguaios sabiam o local exato onde a gente veio dormir? – Parece que eles adivinham, não é mesmo, Argemiro? – respondeu, perguntando, o coronel. – Há um traidor no meio da gente, coronel – disse Argemiro. – Eu sou uma alma cheia de paixões – continuou. – Deixei minha mulher e meus filhos numa situação quase desesperadora, estava com os sentimentos desarrumados, não sabendo mais se gostava ou não deles; da mulher, digo ao senhor, porque amor de pai por seus filhos não vacila. O caso é que eu até posso morrer feliz nesta guerra, mas não vou aceitar uma morte de porco sangrado, entregue por um companheiro, ah, isso não.
O coronel Camisão pareceu surpreender-se. A guerra servia para coisas como aquela. Estava ali uma pe-
quena faceta da personalidade de um comandado que ele considerava meio bronco, sem sentimentos assim tão profundos e sobretudo sem a inusitada capacidade de expressar sua precariedade, suas perdas, seus dramas.
Foi por isso que se abriu com o cabo. – Quando eu tinha a sua idade, a coisa que mais gostava de fazer era espiar umas vizinhas minhas que iam tomar banho de cachoeira. Para falar a verdade, como a lua alumiava as águas, eu não sabia se elas tomavam banho de água ou de lua. – Uma gente como a gente não deveria de guerrear nunca – disse com um brilho esplêndido e súbito no olhar o cabo Argemiro. – A noite é cheia de mistérios – disse o coronel. – Vamos terminar de recolher os mortos e dormir. – É, vamos – disse Argemiro. – Vamos descansar um pouco. Mas só quem vai descansar mesmo são os que estão aí esticados. O Osvaldo, por exemplo. – O descanso da morte eu não quero – disse o coronel. – Este é um descanso que não serve pra nada. Só é bom o descanso que nos permite cansar de novo. Só pra isso descansamos.