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A linguagem e a construção do gênero literário
ção espalhada por essa arma nuclear. Assim como o senhor Takashi Morita, que teve leucemia, muitos outros japoneses precisaram redobrar a atenção à própria saúde e à saúde de seus descendentes, como relata o autor na página 118:
Após o diagnóstico de leucemia em Hiroshima, nunca mais tive problemas desse gênero. Apesar disso, sempre tive de lidar com a preocupação de que a “doença da bomba” nos atingisse. Essa é uma insegurança que todo sobrevivente carrega consigo. [...] Nunca me preocupei em esconder nosso passado, sempre compartilhei minhas experiências com quem quisesse ouvir. No entanto, quando meus filhos estavam em idade de se casar, fiquei com receio de que sofressem preconceito e fossem rejeitados por seu histórico. Acima de tudo, tinha muito medo de que meus netos tivessem problemas de saúde.
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Apesar da gravidade dos eventos que marcaram sua trajetória, o posicionamento do senhor Morita perante a vida, além de seu otimismo e sua empatia, também nos inspirou ao longo do processo de dar forma e lapidar a obra. Essas características do autor foram decisivas para culminar no resultado que o leitor agora tem em mãos.
A linguagem e a construção do gênero literário
Uma das manifestações artísticas do ser humano, a literatura é chamada de arte das palavras, pois representa comunicação, linguagem e criatividade em prosa e verso. Por
intermédio da literatura, a realidade é recriada de modo artístico com o objetivo de proporcionar maior expressividade, subjetividade e sentimentos ao texto. “O texto repercute em nós na medida em que revele emoções profundas de psiquismo, coincidentes com as que em nós se abriguem como seres sociais”, conceitua Domício Proença Filho em seu livro A linguagem literária. 1
Como existem vários tipos de produções literárias, os especialistas decidiram agrupá-las de acordo com suas características em comum. São os chamados gêneros literários. Entre eles estão biografia, autobiografia, poema, romance, novela, história em quadrinhos. Ou seja, um fato pode ser contado sob formas diferentes, dependendo do gênero que se utiliza para contá-lo.
A autobiografia caracteriza-se por apresentar uma narrativa de caráter pessoal, normalmente feita na primeira pessoa do singular. É um gênero que o professor e ensaísta francês Philippe Lejeune, um conhecido especialista em autobiografias, define como:
qualquer texto em que o autor parece expressar sua vida ou seus sentimentos, quaisquer que sejam a forma do texto e o contrato proposto por ele. [...] Uma narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade. [...] Para que haja autobiografia (e, numa perspectiva mais geral, literatura íntima) é preciso que haja relação de identidade entre o autor, o narrador e o personagem.2
1 São Paulo: Ática, 2007, p. 7-8. 2 LEJEUNE, P. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2008, p. 14.
E complementa:
O “autobiógrafo” lhe promete que o que será dito é verdadeiro, ou, pelo menos, é aquilo que ele crê verdadeiro. Ele comporta-se como um historiador ou um jornalista, com a diferença que a pessoa sobre a qual ele lhe promete dar uma informação verdadeira é ele mesmo. [...] Não se lê da mesma maneira uma autobiografia e um romance.3
À luz dessa definição, demonstraremos a seguir de que maneira a obra A última mensagem de Hiroshima se enquadra no gênero autobiografia. Para fazer essa análise, é preciso atentar para dois aspectos principais: a linguagem empregada no texto e a necessidade de fundamentar, por meio de bibliografia, o que é dito ao longo da obra.
Podemos notar, por exemplo, o caráter subjetivo e lírico da linguagem usada por Takashi Morita, como pode ser observado nos trechos A e B a seguir, extraídos das páginas 65 e 55, respectivamente:
A. Ainda em choque, olhei ao redor e vi mais uma cena que tirou minha fala: logo adiante havia um bonde em chamas, todo queimado. Aproximei-me dele e espiei o que havia em seu interior. Diante do que vi, fiquei totalmente aterrorizado. As pessoas ardiam em chamas junto do bonde, cada uma delas com expressão de susto e horror. Era a verdadeira imagem do inferno. O cheiro insuportável de carne queimada, montes de
3 LEJEUNE, P. apud Denise Azevedo e Duarte Guimarães. “Memória e autobiografia: uma abordagem do gênero textual no filme O espelho, de Andrei Tarkovski”. Comunicação & Sociedade, v. 31, n. 53, p. 167-189, jan./jun. 2010.
ossada, parecia o fim do mundo! Eu não consigo nem descrever o que senti, pois vai além do limite que eu poderia aguentar!
B. Como sobrevivi ao dia em que o inferno se fez presente na Terra? Como consegui seguir em frente depois de vivenciar tamanho pesadelo? Não sei. Até hoje não tenho a resposta. No entanto, apesar de todas as chances estarem contra mim, de alguma forma eu consegui. Com todas as cicatrizes, sobrevivi. E é sobre esse dia que vou contar agora.
Nos trechos A e B, é possível identificar dois recursos linguísticos próprios da linguagem literária – a metáfora em “inferno se fez presente na Terra” e o lirismo em “com todas as cicatrizes, sobrevivi”.
Ao longo de toda a obra é possível observar que a voz narrativa é articulada na primeira pessoa do singular, característica já expressa no início da obra: “Eu vejo minha sobrevivência como um milagre”. Como essa perspectiva narrativa é um dos principais indicadores da autobiografia enquanto gênero, percebe-se na integralidade da obra a concordância com esse quesito.
Por outro lado, no livro Hiroshima e Nagasaki: testemunho, inscrição e memória das catástrofes, 4 optou-se por uma abordagem não literária, tanto na linguagem como ao mencionar as referências bibliográficas ao fim do livro, que visam fundamentar as afirmações feitas pelos diferentes autores dos artigos que compõem a coletânea em questão. O assunto dessa obra é a
4 ENDO, P. C.; NAKAGAWA, C. I. (orgs.). São Paulo: Editora Benjamin, 2015.
discussão dos bombardeios atômicos ocorridos em agosto de 1945 sob uma abordagem psicanalítica.
A fundamentação bibliográfica é um ponto crucial para determinar se uma obra é literária ou não. Um historiador, ou seja, o profissional que estuda as evidências documentadas acerca de determinado assunto, precisa obrigatoriamente citar suas fontes bibliográficas a fim de justificar sua argumentação. A obra literária, no entanto, apresenta funções e métodos de escrita distintos, com destaque para o encadeamento da narrativa com ênfase em seus efeitos estéticos, com o claro objetivo de suscitar emoções, reflexão e/ou entretenimento ao leitor.5
Por isso, é válido afirmar que nem todo texto possui linguagem literária. Uma reportagem, por exemplo, pode contar uma história que provoca reações e reflexões no público. Ela usa, porém, linguagem jornalística e seu conteúdo se limita aos fatos apurados pelo repórter. Ou seja, a função do texto é puramente informativa e não literária.
Aguirre Rojas, professor e pesquisador mexicano, diz que uma das missões do gênero autobiográfico é: “fazer falar os silêncios, a versão dos vencidos, restituir os passados vencidos”.6
Aqui encontra-se, mais uma vez, um dos principais objetivos dessa obra: mostrar a versão dos vencidos, de quem estava do outro lado da história comumente contada. Podemos ver exemplos ao longo do livro.
Isso ocorre na página 16, quando o senhor Takashi Morita discorre sobre a educação e mentalidade das pessoas de seu país:
5 DE LUCA, T. R.; RODRIGUES, I. In: Podcast História FM, ep. 44: “Pesquisa em
História: o que você precisa saber para começar?”. 6 ROJAS, A. La autobiografia como gênero historiográfico: algumas reflexões sobre sus possibilidades actuales. In: SCHMIDT, B. O biográfico: perspectivas interdisciplinares. Santa
Cruz do Sul: EDUNISC, 2000, p. 9-48.
Desde o colégio, ou melhor, desde a primeira educação que recebemos em casa e nas escolas, aprendemos o Yamato Damashii, que é o espírito japonês. Fomos ensinados desde cedo a honrar nossas origens, o que envolve o amor à pátria, o respeito à hierarquia e à tradição, além da devoção irrestrita ao imperador, que era visto como uma divindade pelo povo japonês. Valores importantes nesse sentido também eram a lealdade e a coragem, características associadas aos grandes samurais.
E nas páginas 56 e 57, quando faz um questionamento sobre o passado, sobre a veracidade dos eventos frente a tamanho horror:
É difícil expressar o que eu e toda a cidade de Hiroshima passamos nesse dia. Mesmo assim, farei o meu melhor para contar como foi viver um acontecimento tão triste para toda a humanidade. Hoje, aos 96 anos, às vezes chego a me perguntar se tudo aconteceu de verdade, mas as marcas que trago na memória, os problemas de saúde e as imagens da cidade totalmente devastada me comprovam que foi tudo real. Infelizmente, não foi apenas um pesadelo. [...] Nesse momento, eu já nutria um sentimento de frustração com a guerra. Para mim, não fazia sentido o que estávamos sofrendo. Pensava nas vidas desperdiçadas e naqueles que eram obrigados a viver em função do conflito, e não conseguia encontrar algo pelo que valesse lutar.
Ainda sobre a versão dos vencidos, é interessante notar a descrição do autor sobre a cidade de Hiroshima antes e depois do fatídico episódio. Nas páginas 54 e 55, ficamos sabendo como a cidade se preparava para a guerra, mas sem esperar que algo tão horrível estava por vir:
Em Hiroshima todos ficavam cada vez mais desconfiados com o fato de ainda não terem ocorrido bombardeios. Era preciso se preparar para o pior, e o pior que imaginávamos eram mais ataques com bombas incendiárias. Dessa forma, pensando que cedo ou tarde enfrentaríamos esse tipo de ataque, começamos a demolir construções de modo a evitar o alastramento de incêndios. Toda a cidade se mobilizou: o Exército demolia as construções, os alunos do ensino médio e parte da população que vivia nos arredores da cidade eram convocados para fazer a limpeza das áreas centrais. Não restou nada que não fosse para uso militar. [...] Havia períodos em que os aviões norte-americanos sobrevoavam o céu de Hiroshima. O que no começo era alarmante e deixava todos tensos, aos poucos se tornou habitual. Quando o pior dia da história de Hiroshima teve início, talvez poucos estivessem preparados para receber bombardeios, mas certamente ninguém estava pronto para a arma mais potente já produzida.
O autor nos conta ainda como ficaram a cidade e as pessoas após o terrível evento e esmiúça em detalhes preciosos, como se vê nas páginas 99 e 100:
Os sobreviventes da bomba atômica seguiam sem receber nenhum auxílio por parte do governo. Quando da rendição do Japão, houve um acordo com os Estados Unidos. Assim, nem o país nem os sobreviventes teriam direito de reclamar aos Estados Unidos sobre danos da bomba. Toda responsabilidade seria do governo japonês, e ele deveria responder por tudo. Também foi decretado o “Press Code”, para que não fosse divulgado para a imprensa o que havia acontecido e como estava a situação em Hiroshima. Os norte-americanos não queriam que o mundo soubesse o que sua bomba havia provocado em nossas vidas. [...] Em Hiroshima, o centro de pesquisa foi instalado no topo do monte Hijiyama. Os sobreviventes eram frequentemente convocados a se apresentar para serem avaliados. Quando chegávamos lá, tínhamos de tirar toda a roupa e realizar diversos exames. Nunca soubemos dos resultados nem recebemos algum tipo de tratamento. Com o tempo, essa situação começou a ficar muito incômoda para nós, sobreviventes, e começamos a perceber que éramos apenas cobaias. Diante da falta de consideração com que nos tratavam e da falta de suporte, decidimos não seguir mais com os exames. Afinal, não estavam fazendo nada para nosso benefício. Será que havia pessoas que se vangloriavam pela destruição que causaram? Não é uma hipótese difícil de se acreditar.
São fatos que poucas vezes chegam a nós, já que, como dissemos, normalmente a versão mais disseminada é a do outro lado da história.