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Discussão sobre Literatura: Linguagem e gênero

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Primeira Parte

Primeira Parte

razão de seu incômodo com a alta cobrança de impostos por parte da Coroa portuguesa. Foi mediante a influência massiva recebida dos ideais iluministas e da então recentíssima independência dos Estados Unidos, ocorrida em 1776, que essa elite, formada por advogados, mineradores, clérigos, membros de alta patente militar, magistrados e poetas, teve a ideia de transformar a capitania de Minas Gerais em um país independente de Portugal, com estrutura política própria. Em meio aos nomes dessa elite constam Alvarenga Peixoto e Bárbara Heliodora, que recebeu o título de “Heroína da Inconfidência Mineira” por sua participação no movimento Inconfidente.

É importante lembrar que nesse período as mulheres não tinham o direito de estudar, não eram alfabetizadas nem se envolviam em assuntos políticos. O voto feminino, inclusive, só foi homologado cento e quarenta anos depois, em 1932. A voz das mulheres na sociedade do Brasil colonial era, portanto, praticamente nula. Sob essa perspectiva, evidencia-se a força de Bárbara, uma mulher à frente de seu tempo, que assumiu um relacionamento afetivo sem se casar oficialmente, gerenciou as fazendas da família, participou ativamente de um movimento político e cuidou e educou os filhos sozinha depois da prisão do marido.

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DISCUSSÃO SOBRE LITERATURA: LINGUAGEM E GÊNERO

Uma das manifestações artísticas do ser humano, a literatura é chamada de arte das palavras, pois representa comunicação, linguagem e criatividade em prosa e verso. Por intermédio da literatura, a realidade é recriada de modo artístico com o objetivo de proporcionar maior expressividade, subjetividade e sentimentos ao texto.

“O texto repercute em nós na medida em que revele emoções profundas, coincidentes com as que em nós se abriguem como seres sociais”, conceitua Domício Proença Filho, em seu livro A linguagem literária. 2

Mas nem todo texto possui linguagem literária. Uma reportagem, por exemplo, pode contar uma história que provoca reações e reflexões no público. Ela usa, porém, linguagem jornalística e seu conteúdo se limita aos fatos apurados pelo repórter. Ou seja, a função do texto é informativa e não literária.

“O que faz de um texto literatura é o tratamento que a ele se dá”, explicam Cinara Ferreira Pavani e Maria Luíza Bonorino Machado, em seu livro Criatividade, Atividades de Criação Literária. 3 “Uma mesma frase pode expressar o que suas palavras indicam, literalmente, ou ir além, sugerindo significados que exigem um ato interpretativo por parte do leitor”.

Como existem vários tipos de produções literárias, os especialistas decidiram agrupá-las de acordo com suas características em comum. São os chamados gêneros literários. Entre eles, estão biografia, teatro, poema, novela, história em quadrinhos. Ou seja, um fato pode ser contado sob formas diferentes, dependendo do gênero que se utiliza para contá-lo.

No caso de Os inconfidentes: uma história de amor e liberdade, trata-se de uma história baseada em fatos reais, mas imaginada. Por esse motivo, é classificada como obra literária. Essa afirmação se fundamenta no fato de que o texto recria uma realidade, fazendo para tanto uso de lirismo e subjetividade. Um exemplo dessa característica pode ser notado no trecho da página 111:

2 São Paulo: Ática, 2007, p. 7-8. 3 Porto Alegre: UFRGS Editora, 2003, p. 15.

O sol brilhava em todo o seu esplendor. Os raios espargiam-se delicadamente pelas copas das árvores mais altas e, numa tentativa persistente, filetes de luz chegavam tímidos às plantas rasteiras. Ali tudo parecia calmo e favorável ao bem-estar. Contudo, Bárbara tinha os passos pesados e as mãos juntas, mas disfarçava o pesar.

A recriação de uma história pode ocorrer de diversas formas, utilizando-se os mais variados gêneros literários. No livro História do Brasil em quadrinhos: a Inconfidência Mineira, 4 utilizou-se o gênero história em quadrinhos para contar os acontecimentos desse importante movimento revolucionário brasileiro.

Há também a célebre obra da poetisa carioca Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfidência, publicado em 1953, que traz outra perspectiva para a narração de tais acontecimentos, neste caso contados em formato de poesia usando uma forma literária medieval, o romanceiro. No caso da obra de Cecília Meireles, assim como ocorreu com o autor Carlos Alberto de Carvalho, foi necessária extensa pesquisa histórica sobre os eventos que envolveram a Inconfidência Mineira, mas em sua obra a poetisa optou por empregar uma forma literária já em desuso, correlacionando em sua composição poética três épocas distintas, conforme relata a professora Norma Seltzer Goldstein, da Universidade de São Paulo (USP):

Quando lemos Romanceiro da Inconfidência, percebemos um diálogo com três épocas: a época da autora, que escreve em meados do século 20, a época dos fatos relatados, em 4 DINIZ, A. História do Brasil em quadrinhos: a Inconfidência Mineira. São Paulo: Escala Educacional, 2008.

meados do século 18, e a era medieval, que é o berço do gênero romanceiro, um relato popular em versos.5

Já o livro O Tiradentes: uma biografia de Joaquim José da Silva Xavier6 aborda o movimento revolucionário, seus personagens e a sociedade mineira da época, tendo seu foco na vida de um dos principais nomes da Inconfidência Mineira. A perspectiva literária dessa obra emprega o gênero biografia para narrar os acontecimentos.

O nosso livro, Os inconfidentes: uma história de amor e liberdade é um romance que tem como bases tanto lendas quanto fatos documentados envolvendo Bárbara Heliodora e Alvarenga Peixoto, duas pessoas que realmente existiram, nasceram no século XVIII e, mediante sua atividade política, tornaram-se figuras históricas.

Forma literária escrita em prosa, o romance se popularizou na literatura ocidental no século XIX. Sua característica principal é ser uma narrativa longa, dividida em capítulos, além de incluir em sua trama vários conflitos e uma complexa rede de personagens. Isso o difere da novela, outro gênero literário com que é frequentemente confundido por ter características em comum. Na novela, o fator predominante é o evento principal, a história a ser contada em meio a poucos conflitos e personagens. Ou seja, uma novela seria comparável a um filme enquanto um romance seria como uma série, com

5 GOLDSTEIN, N. apud COSTA, C. “A Inconfidência Mineira através da poesia de Cecília Meireles”, Jornal da USP, 14 maio 2020. Disponível em: < https://jornal.usp.br/cultura/a-inconfidencia-mineira-atraves-da-poesia-de-cecilia-meireles/>. Acesso em: 28 dez. 2020. 6 FIGUEIREDO, L. O Tiradentes: uma biografia de Joaquim José da Silva Xavier. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

muitos episódios, em que é possível desenvolver amplamente tramas e subtramas e focalizar diferentes personagens que, em suas vivências, exibem um mundo complexo, cheio de diferentes interpretações.

Há vários tipos de romance, como o regionalista (o lugar onde a narrativa se desenrola é central; o autor deseja mostrar ao mundo a particularidade desse pedaço de mundo), de ação (centrado nas ações do protagonista, que vive uma trama complexa) e psicológico (focado na consciência individual dos personagens), entre outros.

No caso de Os inconfidentes: uma história de amor e liberdade, trata-se de um romance histórico, uma narrativa ficcional que se desdobra em um determinado espaço-tempo. Essa característica possibilita aos leitores o conhecimento de parte da história de determinado lugar em um certo período, além de os envolver com a narrativa de sentimentos e particularidades que não caberiam em um livro de História comum. Os romances históricos, como ocorre com Os inconfidentes – uma história de amor e liberdade, conquistam seus leitores exatamente por essa possibilidade de se deparar com um passado de maneira precisa, mas também cheia de encanto. Ao dar carne e sangue a personalidades históricas, o romance histórico permite conhecer o dia a dia e os sentimentos dos personagens, que adquirem materialidade e se tornam, aos olhos dos leitores, gente como a gente.

Mostraremos a seguir alguns exemplos que justificam a adequação do livro Os inconfidentes: uma história de amor e liberdade enquanto um romance histórico. Em primeiro lugar, a existência de múltiplos conflitos é evidenciada desde o início da obra, por meio da narração de duas histórias, uma ocorrida

no Brasil e outra em Portugal, como mostram os trechos das páginas 33 e 40:

COMARCA DO RIO DAS MORTES, 1777 O calor insuportável daqueles dias provocou Bárbara e muitos habitantes da redondeza: a inquietação estava presente tanto nas conversas, nas orações e ladainhas proferidas no interior da igreja de São Francisco como no andar do povo, no vaivém entre a praça, o comércio e a casa. [...] LISBOA, REAL PAÇO DE NOSSA SENHORA DA AJUDA, MAIO DE 1777 O vento açoitava a janela e era tão fustigante, ou mesmo impetuoso, que uma das abas se abriu e derrubou os jarros com gerânios. Ao mesmo tempo, a rainha se contorcia em grande aflição num dos seus sonhos angustiantes. A mulher transpirava e gemia em uma inquietação esquisita: queria gritar, mas era impedida. A alma era atormentada pelos escondidos segredos do coração.

Além disso, há diversos conflitos que vão se desenvolvendo e se entremeando, como o relacionamento do casal Bárbara e Alvarenga, as reuniões dos homens insatisfeitos com a Coroa, as discussões da rainha de Portugal com seus filhos, o relacionamento de Tomás Antônio Gonzaga e Doroteia, entre outros. Todos esses acontecimentos envolvem uma complexa rede de personagens, entre os quais a família de Bárbara – seus pais e irmãos –, assim como Cláudio Manoel, Silvério dos Reis, Tomás Antônio Gonzaga, padre Toledo – estes últimos figuras

importantes no cenário da Inconfidência – e também a família real de Portugal: D. Maria Francisca, D. José e D. João.

Ao longo da história, o autor apresenta ao leitor não só os aspectos físicos e psicológicos dos personagens, mas também seus pensamentos, evidenciando assim uma das características mais importantes do gênero romance histórico: a narrativa de sentimentos e particularidades que não caberiam em um livro de História comum.

Por exemplo, nas páginas 22 e 27, o autor descreve as características de Bárbara Heliodora, destacando a principal delas – uma mulher diferente das outras de sua época:

No grande salão, cercada de amigos e parentes, ciente de que era observada, Bárbara circulava livre como a nenhuma mulher ou moça era permitido, ia e vinha entre os braços das amigas e as gargalhadas solitárias e irônicas, truques femininos para atrair o olhar dos rapazes. […] – Você lê? Gosta de poesia? – Alvarenga perguntou, interessado. – Leio, leio até demais! Creio que as mulheres deveriam ler mais! – Para quê? – intrometeu-se dr. Cláudio. – Ora, para quê?! Porque assim não ficariam tão submissas e sem ação perante os homens! – respondeu Bárbara de maneira afrontosa.

E na página 46, descreve o que pensou Alvarenga ao conhecê-la:

“Como se sair dessa? Jamais soube de mulher que se interessasse por assuntos tão fora do ambiente doméstico! De onde saiu essa garota?”, pensou entre desconcertado e cada vez mais apaixonado.

O contrário também acontece: na página 29 se encontra a descrição de Alvarenga e o que Bárbara pensou sobre o homem que conhecera:

E então Bárbara olhou-o com firmeza, percebeu melhor os traços delicados do homem à sua frente. Os lábios delgados, os olhos levemente puxados, as sobrancelhas delineadas, delicadas, e a voz, a voz suave, melodiosa, calma. Voz de poeta? Ela se embalava nas sílabas pronunciadas pelo rapaz. […] Ela fez-se séria, mas em seu íntimo estava nervosa com o coração pulsando forte, descompassado. “Que é isso? Que fazer agora? Como resistir a ele e não desmaiar ou provocar um vexame? Que alguém me salve desse momento!”, refletia aflita.

A descrição de particularidades e pensamentos ocorre não só com o casal, mas também com os demais personagens, evidenciando assim uma maior complexidade do enredo, que é outra característica do gênero. Temos então, por exemplo, na página 42, a descrição da rainha de Portugal:

Rainha de traços duros, gestos grosseiros e semblante nada agradável, no entanto tinha uma voz de timbre suave além do

olhar tímido, não arrogante, que não distraía os circunstantes; melhor, atraía para si.

Na página 62, aparece a descrição do padre Rolim:

O homem alto, de rosto comprido e traços irregulares, além da cicatriz profunda na face direita, olhou-o com aqueles olhos esbugalhados, de certa avidez, mas desfez o semblante sério, desanuviou-se, e então sorriu.

E na página 99 fala-se de Tiradentes, então Joaquim José da Silva Xavier:

O número de participantes aumentava e não eram tão-somente militares de altas patentes, padres e cônegos, fazendeiros e grandes comerciantes, juízes e advogados. Ali, diante do anfitrião, estava um jovem alferes chamado Joaquim José da Silva Xavier, protegido do cônego Toledo. – Senhores, temos gente nova. Este jovem alferes, que se empenha em querer mudanças. O vigor e o entusiasmo dele me espantam! – apresentou Tomás Gonzaga o magro rapaz de rosto bonito e bem barbeado.

Os pensamentos dos personagens, mesmo os coadjuvantes, permeiam toda a obra e aparecem também após a prisão de Alvarenga e a consequente solidão de Bárbara. Na página 149, por exemplo, Ana, irmã de Bárbara, lamenta sua situação:

“Mais um pouco e Bárbara enlouquece. Não posso deixar que isso aconteça. Buscarei o padre Jacinto e pedirei para mamãe ficar por aqui um tempo comigo. Ela precisa de casa cheia, gente, distração! Sim, darei um jeito nas coisas, minha irmã não enlouquecerá!”, pensava Ana, com os olhos arregalados, assustada, enquanto ao longe o canto incessante dos galos anunciava o fim da madrugada.

E na página 156, o advogado da família também mostra sua consternação:

“Que desgraça se tornou a vida desta mulher. Quem diria que a bela Bárbara sofreria tudo isto”, pensava o advogado da família.

Na página 167, é Tomás Antônio Gonzaga quem se compadece da situação do amigo com o qual dividia a cela:

“Ele ao menos usufruiu da companhia da amada, de Bárbara, com ela conviveu, teve-a em seus braços, vieram-lhe os filhos, por isso sofre mais. Eu tive os beijos e abraços da Maria, mas daria um ano de minha vida para apertá-la em meus braços mais uma vez”, pensava Tomás.

E, ao final, o lamento de Alvarenga ao ser mandado para o exílio em Angola, nas páginas 171-172:

“É, sozinho, indo para o desconhecido, para Ambaca, em Angola. Que me espera? Pior do que já suportei, creio que

não. Sozinho, eu que tive mulher, família, amigos e um traidor! Sozinho em marcha para o desconhecido…”

Portanto, ao imaginar como aconteceram as reuniões da Inconfidência Mineira e seus desdobramentos, Carlos Alberto de Carvalho criou um romance que exalta a força de pessoas determinadas, dispostas a se sacrificar em prol de um bem maior.

A trama incentiva o leitor a se colocar no lugar do outro, a conhecer seu ponto de vista e suas motivações. Ao trazer ao leitor novos contextos, mundos e realidades por intermédio da leitura, a obra literária proporciona a compreensão das narrativas produzidas ao longo da História a fim de entender e ressignificar o presente, além de estimular a projeção do futuro. Ela incentiva ainda a imaginação, a criatividade, auxilia na ampliação de vocabulário e na construção de conhecimentos de múltiplas áreas do saber.

Há que se notar também a presença de questões atemporais nas entrelinhas da obra, como amor, liberdade, desigualdades e quebra de paradigmas, aspecto que fornece elementos para uma reflexão mais do que necessária sobre a atualidade. Afinal, como defendeu o antropólogo e filósofo Edgar Morin, a literatura nos oferece antenas para entrar no mundo.

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