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Prefácio

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Epílogo

Epílogo

“Bárbara bela, Do Norte estrela, Que o meu destino Sabes guiar, De ti ausente Triste somente As horas passo A suspirar. Isto é castigo Que o amor me dá”

É preciso talento para escrever um romance histórico digno de atenção e de respeito. E aqui encontramos uma narrativa perfeita com fatos bem apurados pelo autor. O limite exato entre o literário e o histórico. A dose certa entre o poético e o prosaico. As palavras corretas entre a ficção e a realidade. É notável como o autor consegue, em cada capítulo, apresentar uma história rica em detalhes a partir de um dos acontecimentos mais importantes da história do Brasil: a Inconfidência Mineira, de 1789. Mais do que isso, a forma como apresenta a personagem Bárbara Heliodora no decorrer do texto merece louvores.

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Ainda não atinei os motivos que levaram Carlos Alberto de Carvalho a escolher-me para prefaciar seu livro. Algumas

hipóteses para tal feito surgiram: a de que minha formação em História possibilitasse uma leitura atenta aos fatos, claro; o contato de Carlos Alberto com alguns textos de minha autoria acerca das mulheres em determinados períodos históricos; ou seria ainda pelo respeito demonstrado pela sua determinação em se manter autor-escritor no Brasil? Ou, finalmente, a escolha de meu nome teria sido motivada pelas palavras de incentivo para levar a cabo a presente empreitada? A verdade é que a deferência visa homenagear a mim, colega de trabalho que sempre se interessou por sua obstinação e qualidade como escritor de temas africanos e personagens brasileiros.

Misto de romance e história, o autor consegue transmitir às páginas de seu livro o entusiasmo em elucidar uma parte da história desse nosso “Brasilzão” ainda muito presa aos livros didáticos. Carlos descortina o palco mineiro e traz à cena uma mulher de personalidade e desejos evidentes. Bárbara Heliodora que, como tantas outras mulheres brasileiras, atuou como ninguém em variadas frentes de batalha. Batalhas do dia a dia. Batalhas pela vida.

Existe um ditado popular que diz: “Por trás de um grande homem, existe uma grande mulher”, e exemplo melhor não teríamos. Bárbara, ou “Babe”, como era conhecida pelos parentes, inicialmente e de forma sutil encontrou uma maneira de participar dos assuntos políticos em que se envolvia o marido, José de Alvarenga Peixoto.

Ah, as mulheres… Donas dos grandes antônimos da vida. E o leitor, dotado de observação sutil, não deixará de perceber a capacidade magistral de retratista da paisagem humana e social descrita ao longo do texto. Como a maior parte do livro transcorre durante o período colonial pelo qual passou

o Brasil, inúmeros foram os artifícios e estratagemas empregados pela protagonista para se fazer presente, visto que era uma mulher e, dentro do sistema patriarcal, um mero instrumento de procriação. Inclusive, é ela, a protagonista, quem passa de esposa à conselheira não só de José de Alvarenga Peixoto, mas, indiretamente, de todos os inconfidentes.

Arrisco-me a dizer que Bárbara Heliodora, ao confabular, mesmo que por trás das cortinas, ou ainda, atrás das portas e ao pé do ouvido do marido, tornou-se um ícone da liberdade feminina e da luta por igualdade de gênero, assunto tão em voga hoje. Ela soube usar sua relação com um dos inconfidentes para expressar suas opiniões, ganhando o título de “heroína da Inconfidência Mineira”.

O livro é um grande convite para viajar pelo rico cenário mineiro, oferecendo ao leitor um relato das transformações de uma aventura sem precedentes para um grupo de homens e uma mulher em especial que, a partir de suas necessidades, lutariam pelo que consideravam ser o melhor para Minas Gerais e, consequentemente, para o povo mineiro. Ou seja, “Liberdade ainda que tardia!”.1 É a história de amor que ajudou a escrever a história do Brasil.

Por mim, recebi com alegria o honroso convite do ilustre colega de trabalho e amigo leal para dar uma olhada nos originais. Assim pude, antes do público leitor, maravilhar-me com o que aqui vai escrito.

Raquel de Castro Högemann é pós-graduada em História do Brasil pela Universidade Federal Fluminense.

1 Lema inscrito na bandeira do Estado de Minas Gerais. [N. E.]

Quem há de saber os governos do coração ou quem há de se deixar envolver pelos desmandos dos afetos?

Eles se deixaram conhecer e no envolvimento afetivo foram surpreendidos pelas mazelas constantes da vida. O infortúnio assaltou a vida do homem e da mulher, mas o equilíbrio fundamentado no amor deu-lhes segurança, paciência.

Sim, Alvarenga Peixoto e Bárbara Heliodora eram amantes e no amor garantiam-se.

Então…

ARRAIAL DE SÃO GONÇALO DO SAPUCAÍ, 1819

Ela tentou olhar através da grande janela, mas não se aguentou e tombou.

A criada a acudiu, solícita. Tomou-a nos braços, endireitou-lhe os travesseiros, correu e descerrou as cortinas, que impediam a luz do dia de entrar melhor. – Melhorou, Bárbara? Ficou melhor? – perguntou.

A mulher aquiesceu com a cabeça. Seus gestos eram limitados, quase imperceptíveis. – Estou melhor, sim… Cândida – respondeu, afinal.

Aquela que fora considerada “a mais bela dos montes” jazia numa cama com movimentos lentos, rosto decrépito e cadavérico, olhos fundos e voz sumida.

Bárbara Heliodora, a bela mulher de olhos largos, sabia que estava prestes a morrer. Sua vida se esvaía, mas não sem antes perceber que fora intrépida.

Num gesto consciente, sacudiu a cabeça e resmungou. – Que houve? Está sentindo dor? – Não, Cândida, lembrei-me dela…

Cândida fechou os olhos, apertou os lábios e curvou-se sobre a outra mulher, enxugando-lhe a testa suada. – Por que se lembrar dela? Que houve?

Subitamente uma rajada de vento seco e quente sacudiu as abas da grande janela e fustigou as jarras e as cortinas do quarto. O vento forte assustou a doente, que arregalou os olhos, espantada. – Que foi isto? Que foi? – Nada, não, não se apoquente… o vento – confortou Cândida.

Bárbara curvou o corpo adiante, apontou alegre para um canto do quarto e disse: – Cândida, faz-me o favor de chamar minha filha, que está ali a nos olhar faz tempo, quieta?

A mulher estremeceu e passou as mãos nos braços, incomodada. – Que filha, Bá? – indagou Cândida, desconfiada. – Ora, que filha? A minha filha, ora essa! – aborreceu-se Bárbara.

Cândida voltou-se para o local apontado e nada viu. Então se inclinou. – Bá, sua filha não está ali. Você está vendo coisas, sim? – Claro que está! Ela está ali e eu estou vendo! – Não, ela não está, Bá! – Cândida falou firme. – Ela está ali, sim…! – Bárbara murmurou.

As duas mulheres ficaram a se olhar, compreensivas, cúmplices, e se calaram comovidas.

A cortina tremulou levemente e o galo cantou no terreiro enquanto o delírio de Bárbara sossegava. Reclinando a cabeça nos travesseiros, ela fechou os olhos.

Cândida cruzou os braços e ficou a olhar a outra, atenta, carinhosa.

– Você pode ir, Cândida, estou bem – Bárbara falou e abriu os olhos, confiante. – Quero ficar, sou tua companhia; estou aqui para isso. – Então, se quer, pode ficar, não é mesmo?

E o silêncio cobriu o quarto, mas foi uma quietação surpreendente, quando tudo fala, mas não transmite bagunça ou sofreguidão; o silêncio dos aflitos que penetra surdamente as almas, que provoca mal-estar, mas não grita ou proclama seu poder, o silêncio insuportável da paciência.

Cândida descruzou os braços, estirou os pés e ajuntou as mãos, preparando-se para fazer as orações, suas preces pessoais.

Bárbara respirou profundamente, ainda incomodada pela presença da filha, que somente ela enxergara:

Estava ali, parada, toda sorrisos, a bela Maria Ifigênia.

PRIMEIRA PARTE

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