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Série Coletivos
NOVE COLETIVOS, UMA CIDADE
Foram realizadas intervenções em espaços públicos da cidade de São Paulo ao longo de três meses pelos grupos Bijari, COBAIA, Contrafilé, EIA, Esqueleto Coletivo, Frente 3 de Fevereiro, Nova Pasta, Ocupeacidade e Projeto Matilha. As intervenções geraram uma exposição e este livro com os registros desenvolvidos pelos coletivos. NA BORDA é um projeto que reúne nove coletivos artísticos em torno da prática e da reflexão sobre a intervenção urbana hoje.
NA BORDA
NA BORDA
NOVE COLETIVOS, UMA CIDADE
Bijari COBAIA Contrafilé EIA Esqueleto Coletivo Frente 3 de Fevereiro Nova Pasta Ocupeacidade Projeto Matilha
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
Portal
Realização
Invisíveis Produções
NA BORDA NOVE COLETIVOS, UMA CIDADE
Apoio
PROJETO REALIZADO COM O APOIO DO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, SECRETARIA DA CULTURA, PROGRAMA DE AÇÃO CULTURAL 2011
Invisíveis Produções
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NOVE COLETIVOS, UMA CIDADE
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
Copyleft Copyleft é uma forma de proteção dos direitos autorais que tem como objetivo prevenir que não sejam colocadas barreiras à utilização, difusão e modificação de uma obra criativa. É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.
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Bijari COBAIA ContrafilĂŠ EIA Esqueleto Coletivo Frente 3 de Fevereiro Nova Pasta Ocupeacidade Projeto Matilha
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LIVRO “NA BORDA – NOVE COLETIVOS, UMA CIDADE” Editores Daniel Lima e Túlio Tavares Coletivos participantes Bijari, COBAIA, Contrafilé, EIA, Esqueleto Coletivo, Frente 3 de Fevereiro, Nova Pasta, Ocupeacidade e Projeto Matilha Revisão Duda Costa Projeto Gráfico Daniel Lima Capa Nova Pasta Publicação Invisíveis Produções Fotos Marcos Vilas Boas Apoio Matilha Cultural e Ação Educativa
EXPOSIÇÃO “NA BORDA – NOVE COLETIVOS, UMA CIDADE” Coordenação do Projeto Daniel Lima e Túlio Tavares Coletivos participantes Bijari, COBAIA, Contrafilé, EIA, Esqueleto Coletivo, Frente 3 de Fevereiro, Nova Pasta, Ocupeacidade e Projeto Matilha Direção de Produção Marcos Farinha Assistente de Produção Rafaela Ferreira Cenografia Mariana Cavalcante Coordenação da Ação Educativa Joana Zatz e Rafael Leona Desenho de Luz Lúcia Chedieck e Lara Galvão Projeto Gráfico Daniel Lima Realização Invisíveis Produções Coordenação Geral SESC Tiago de Souza e Tatiana Zacariotti de Freitas Realização
Invisíveis Produções
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Apoio
Projeto realizado com o apoio do Governo do Estado de São Paulo, Secretaria da Cultura, Programa de Ação Cultural 2011
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Apresentação por Daniel Lima e Túlio Tavares
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Maximizando as bordas por Flavia Vivacqua
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Vazadores (Os ladrões da galeria) por Fabiane Morais Borges Arquivomania por Suely Rolnik
Agência ficcional por EIA
Agentes & transcendentes por Projeto Matilha Teto de vidro por Esqueleto Coletivo
Intervir? por Frente 3 de Fevereiro Sonho meu imóveis por Ocupeacidade O desaparecido por Bijari
A intromissão da dúvida no espaço público por COBAIA
Nada é mais importante do que essa nuança fugidia por Contrafilé A revolta dos burros por Nova Pasta
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NA BORDA POR DANIEL LIMA e TÚLIO TAVARES
NA BORDA surge em 2011, como uma revista on-line. Neste período, lançou as edições Crise e Corpo, antes de chegar à edição Intervenção, que origina este projeto. De maneira geral, ressoavam nas edições anteriores, como ressoam nestas páginas, questões em torno do fazer coletivo e da ação artística no contexto urbano. O processo poético do NA BORDA Intervenção durou dez meses e envolveu etapas que incluíam agir na cidade, debates, oficinas e uma exposição que ocorreu de julho a agosto de 2012 no SESC Consolação. Participaram deste diagrama os coletivos Bijari, Projeto Matilha, COBAIA, Contrafilé, EIA, Esqueleto Coletivo, Frente 3 de Fevereiro, Nova Pasta e Ocupeacidade. Neste livro, às páginas elaboradas pelos próprios coletivos, somam-se reflexões de algumas vozes que mediaram debates durante a exposição: Fabiane Borges, Flavia Vivacqua e Suely Rolnik. Este livro encerra um ciclo do NA BORDA e esperamos que, de alguma maneira, intensifique as forças que continuam a nos movimentar.
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Vazadores (Os Ladrões da Galeria) POR FABIANE MORAIS BORGES
Constantemente corremos o risco de estacionarmos exatamente no posto que outrora criticávamos. Risco popular, em que muitos caem sem sequer perceber ou fazer autocrítica. A história está cheia disso, o escravo fascista, o porteiro autoritário, sujeitos que assumem o papel do opressor. Esse comportamento se dá de forma inconsciente, geralmente com algum gozo, enfeitado por um delírio de poder, que se sustenta com o reconhecimento e a inveja alheia. Os descuidados podem não perceber quando estão assumindo o posto, são os outros que notam. Para não ser prolixa, nem fazer militância vazia contra uma sociedade baseada no poder e no reconhecimento, não posso agredir deliberadamente os modelos de contenção e inscrição dos sujeitos e grupos no mercado de trabalho. Seria muita irresponsabilidade, como se eu mesma estivesse fora desse jogo. Mas tampouco posso ignorar o fato de que é inadmissível que, depois de tantos anos de experiência urbana, trabalhos com movimentos sociais e ações de arte política, sejamos ingênuos e pensemos que estamos apresentando alguma alternativa aos modelos institucionais e do mercado, quando na verdade só repetimos padrões de exibição e notoriedade. As experiências do NA BORDA passam por essas ambiguidades, e os coletivos que participam disso precisam pensar sobre seus procedimentos, para poderem propor uma alternativa aos modelos viciados. Por um lado, sabemos que a matéria com a qual os coletivos atuam ainda tem um conteúdo urbano e político radical, dialoga com a vida pública e com problemas que emergem na constituição das cidades, questionando os valores sociais e o próprio instinto civilizatório. Por outro lado, sabemos das dificuldades que sofrem ao tentar sustentar essas práticas, seja por falta de recursos financeiros próprios ou falta de investimento de órgãos competentes. O mais fácil é que caiam com facilidade na repetição de metodologias de representatividade, em curadorias seletivas, em critérios de valorização de certos grupos em detrimento de outros. 9
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A exposição NA BORDA realizada no SESC Consolação. São Paulo, 2012.
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No dia em que eu estava fazendo a moderação do NA BORDA, uma integrante jovem do coletivo COBAIA, Ana Rosa, falou algo que mudou significativamente a discussão em cena. Ela disse, mais ou menos pelo que lembro, que esse tipo de exposição não dialogava com os jovens, que tinha um gap geracional em torno do nosso trabalho e a vida dos milhares de jovens de São Paulo, e de certa forma nos disse que não tínhamos interesse na criação de acesso ou diálogo, o que enfraquecia a ação. Outra jovem, provavelmente uma moradora de rua, também entrou no debate, tomou a palavra e começou a chorar, dizer que era muito injusto, que ela tinha que cuidar de todas aquelas crianças na rua e que as pessoas naquela sala ficavam só falando e não faziam nada. Logo saiu da roda de conversa. A partir dessas duas intervenções, o teor do debate mudou, e passou-se a discutir sobre a questão da instituição por trás da intervenção urbana, da ação dos coletivos, e do quanto isso despotencializava as próprias ações. A questão é complexa, e sabe-se do tamanho da exigência que essas duas jovens fazem aos artistas, os quais mal conseguem sustentar as próprias contas, as próprias obras, tendo que dividir parcos recursos entre as várias pessoas que integram seus coletivos. E que certamente precisam trabalhar em outras coisas para se sustentar. Elas exigem uma responsabilidade social com os conteúdos produzidos, porque de certa forma acreditam na arte, no trabalho dos artistas, em seus discursos. Acham as ações potentes. A profissionalização dos coletivos de arte já foi debatida em muitas redes, e tem como uma de suas vertentes mais óbvias a domesticação. Ao tirar-se a urgência das ações, tira-se também a necessidade concreta do contexto. Abandonando o contexto, os grupos trabalham com temas abstratos, que de alguma forma se desligam da cidade e passam para esse outro lugar que é do efeito midiático, da espetacularização das ações, que tem uma função significativa, que é a mudança de valor, a formação de opinião, mas que corre o risco de se desvincular totalmente da vida pragmática, cotidiana. A invenção de mundos concretos dá lugar à excelência estética, reduzindo enormemente o vínculo das pessoas com a ação. A diferença entre obras de galeria e obras de intervenção na cidade diz respeito também ao público. Se, na primeira, ele já tem seu lugar de espectador da obra, na segunda ele é parte dela. Isso não é retórica, é uma constatação. As experiências vividas por esses coletivos nas ocupações, por exemplo, foram transformadoras para a vida de artistas e público, o cotidiano das pessoas é que estava sendo modificado. Muito diferente do consumo da obra de arte da galeria, da interação com as obras de arte em espaços protegidos. Para mim, parece que o cerne da questão se assenta na força da obra, que na
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instituição vira coisa de especialistas, por mais que as criancinhas da escola frequentem tais espaços guiadas por seus professores. Mas não se trata somente de criar um antagonismo entre galerias e espaço público, o problema é bem mais difícil que isso. Os espaços institucionais, assim como os editais, são plataformas legitimadoras da obra, que determinam o que serve ou o que não serve para ser consumido por um mercado faminto por novidades. Ao formatarem seus editais, elegem as características dos eventos, desvirtuando por princípio as características mais promissoras dos coletivos, que são os trabalhos em rede estendidos, coletivos. A cultura compartilhada dá lugar a uma competição, em que os grupos são desafiados a criar obras que lhes deem notoriedade, seja pela espetacularização de alguma realidade social, seja pela pesquisa de linguagens individuais. Outra coisa que se percebe como risco é a apropriação dos movimentos. Apropriam-se constantemente das ações das redes, diminuindo seu tamanho, elegendo seus representantes, fortalecendo seus nomes e criando contenção, como um cinturão imaginário que separa o movimento todo dos seus eleitos. Um cinturão que constitui o imaginário político da civilização moderna. Não há espaço para todos na selva de pedras. Essa fissura cria traumas, recalques, desigualdade e, principalmente, exclusão. Os grupos não reconhecidos passam a pensar o evento dos seletos, o curador do evento, os artistas envolvidos no evento como reprodutores de um sistema de opressão, hierarquicamente superiores, algo a ser combatido. Os riscos aqui descritos não têm interesse em imobilizar nenhuma iniciativa; muito pelo contrário, tentam amplificar uma situação na maioria das vezes ignorada. Acredito que mostrar essa tensão, ou esses cinturões, seja necessário para que se criem alternativas à repetição cansativa, a que estamos todos acostumados. Não se sabe exatamente quando se muda de status, quando se para de ser o questionador e crítico e se passa a ser o protagonista na criação de exclusão. Esse momento é delicado e exige certa dose de ousadia para encará-lo, porque se sabe que, no jogo do poder, nenhum lugar é estável. Mas sabemos também que normalmente esse lugar do poder está sempre mais próximo do que pensamos. Longe de julgar comportamentos ou de fazer críticas severas à cena que se desenhou no NA BORDA, faço um esforço aqui de criar uma alternativa simples, interessada em ampliar a acessibilidade dos grupos aos eventos protagonizados por coletivos mais reconhecidos, e manter assim vivos a crítica e o questionamento, sem necessariamente criar antagonismo. Chego finalmente nos Vazadores, os ladrões da galeria. Quem se criou perto de açudes ou barragens conhece o termo. É para onde a água vaza quando a contenção não dá conta de sustentar seu volume. No caso de eventos como o NA BORDA, os Vazadores podem ser
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lugares abertos dentro do evento, da exposição, que funcionem para receber a demanda externa, tanto do público em geral, quanto de colegas, outros coletivos, que de alguma forma sentem que fazem parte do evento em questão. Não se sabe que formato tem os vazadores, pode ser uma parede, um projetor de vídeos, um espaço vazio, um site aberto, uma televisão com vídeos, pode ter os mais diferentes formatos. O que importa é manter esse espaço vivo para receber as informações de fora, deixar vazar o conteúdo interno, manter um diálogo com o lado de fora, com o externo, não fechar o acesso a esse encontro, mas, ao contrário, promovê-lo, para que tanto as obras dos grupos convidados, a produção do evento, como todo o conteúdo em questão seja espaço urbano, intervenção na cidade, ou outro, estejam num jogo produtivo de acesso e autotransmutação. Os vazadores são os buracos da contenção, afrouxam o cinturão divisório, permitem que a participação alheia se efetive, como força inovadora da própria exposição. Estou certa de que os vazadores são medidas inofensivas, que não mexem radicalmente na estrutura institucional, não destroem as contenções, nem servem como alternativa para todo tipo de proposta, porém apresentam uma forma interessante de lidar com os excessos produzidos dentro do próprio evento. Uma maneira de fazer vazar, achar uma saída, ao invés de insistir na cópia de si mesmo. Ampliar o espaço de diálogo com o exterior em qualquer evento é uma boa forma de exercer a generosidade, manter a vitalidade do evento e, ainda por cima, receber informações novas que modifiquem os conteúdos internos, os enriqueçam. A criação de acessibilidade não é somente uma postura ética, é também uma necessidade, uma forma de manter o debate incessante, sem cristalizar um lugar de poder, alvo fácil das pedras certeiras. Fazer vazar é roubar algo da galeria!
FABIANE MORAIS BORGES
Psicóloga, ensaísta, autora dos livros Domínios dos demasiados e Breviário de pornografia esquizotrans, e organizadora de dois livros da Rede Submidialogia: Ideias perigozas e Peixe morto. http://catahistorias.wordpress.com | catadores@gmail.com
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Maximizando as bordas POR FLAVIA VIVACQUA
Na ecologia, as bordas são o espaço limite entre territórios e sabidamente o lugar mais fértil e produtivo que podemos encontrar para a biodiversidade. É ali, na borda, que se estabelece o campo de encontro entre ecossistemas distintos, possibilitando a mescla e potencializando a vida, gerando assim maior resiliência1 ambiental e preservação de espécies. Além disso, uma borda sinuosa é sempre mais extensa que uma linha reta delimitante, ainda que conecte os mesmos dois pontos, o que também a faz mais criativamente potente. Dessa forma, na permacultura,2 um conceito muito utilizado é o de maximizar as bordas, como uma prática de potencializar a biodiversidade para gerar maior resiliência. Maximizar as bordas no contexto da arte e da cultura colaborativa, na prática expressiva dos coletivos de arte, torna-se ação potencializadora para o design de processos de transformação. Transformação social e cultural, em maior ou menor grau, de todos os envolvidos na ação: proponentes ou mediadores da ação; participantes ativados no processo ou simples observadores; também fica incluído o ambiente, no qual esses encontros maximizadores se dão. Atuar nas bordas da urbanidade, do público e do privado, do micro e do macro, será certamente deparar-se com as complexas e múltiplas questões da cidade. A especulação imobiliária, o apagamento da memória e história, o apagamento de espaços de convivência e afetos... Tudo isso somado a todas as questões de classe, de gênero, de etnia, de descompasso, de violência, de miséria, de corrupção, de equívocos... Encontro certo e marcado com tudo aquilo que ainda precisamos reparar e superar, e ainda outros tantos encontros com o que necessita ser reconhecido e valorizado. Para além da curiosidade e da sede por descobrir algo novo simplesmente, há a indignação e o inconformismo diante da miséria material e imaterial e da injustiça social, do comodismo e da alienação. Essas paisagens, vistas apenas de uma única janela, podem facilmente cair nas conhecidas práticas panfletárias e ativistas de simples negação do descontente, sem proposição possível. Todo
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o cuidado é pouco, e esses artistas sabem disso! Os coletivos de arte atuantes na cidade compreendem o centro como periferia e a periferia como centro, nas bordas sociais e culturais que são contornadas e borradas ao transpor as tantas fronteiras físicas e simbólicas. Na busca por ações significativas, muitas práticas passam, por exemplo, pela compreensão da importância do fortalecimento dos laços afetivos, do humor, do resgate de saberes antigos ou mesmo ancestrais, da atuação contundente na ruptura dos padrões que são alienadamente vívidos, para que transformações e sabedorias possam manifestar-se. Uma sabedoria interessante nos processos colaborativos é a integração inteligente de diferentes pontos de vistas e habilidades. Dessa forma, o tempo e o espaço, bem como o ser que os presentifica, ainda que com toda sua significação, ampliam a capacidade de vivenciar uma percepção do outro e de si, diretamente aberta e surpreendentemente criativa. As práticas artísticas dos coletivos atuantes “Na Borda” têm a qualidade da consciência política e estética, ativada para o estabelecimento de um contato presencial que dispara uma reflexão crítica e criativa do contexto ou situação em que se vê chamada a intervir na busca por mudanças qualitativas no cotidiano e modos
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de viver dos territórios da cidade. Reativas ou ativadoras, muitas vezes provocadoras, essas escolhas e fazeres das práticas artísticas atuais não estão alheios às pequenas e múltiplas transformações de cada ser humano ali presente. As práticas artísticas atuais também estão focadas em uma variedade de experiências com diferentes suportes, linguagens, pedagogias, metodologias, ferramentas, adereços, personagens e lugares. Algumas palavras-chaves e temas são forte e recorrentemente ativados, como: O RELACIONAR-SE, com qualidade, intensidade, criatividade e potencialização das singularidades de cada ser humano, que são estimulados pelo coletivo em ação ou mediados por esse agente-criativo-e-múltiplo, capaz de propor transformações para si mesmo e seus comportamentos como um convite para o outro. Então, esse ser hábil de suas próprias habilidades, empoderado de seus desejos, sábio de novos tempos, ritmos e espaços, capaz de assumir sua nova identidade, está pronto para entrar em relação com outros, consciente de sua singularidade, para que possam colaborar com ações de conviver processos de mudança no mundo. O SONHAR, formas de empoderar o cidadão em seu direito de poder ter considerado o desejo que se quer ver ocupando os espaços e imaginários do mundo. Permite a criação imagética de lugares possíveis e impossíveis, que estabelece os desejos e proposições de um lugar no mundo que realize o sentido de pertencimento e outra lógica, comunitariamente resiliente, para o viver cotidiano. Compreende também que o diverso e múltiplo que emerge das pessoas envolvidas no processo se trata de uma inteligência coletiva capaz de mostrar-se inventiva, divertida, irônica, crítica em relação à realidade, adequada à necessidade, lúdica ou curiosamente absurda. Contudo, o sonhar abordado no fazer dos coletivos maximizadores da borda não é aquele romântico alienante, mas justamente o libertador de convenções limitadas, estimulador de criatividade, canal de saberes possíveis às ações revolucionárias, buscando verdadeiramente um compreender mais amplo de possibilidades e corajosamente ousado no agir na realidade. O JOGAR e a LUDICIDADE, muitas vezes relacionados à identidade e seus impactos nas escolhas, construções, conscientização e liberdade. O jogo, que se quer lúdico, de se reconhecer e também o outro em meio aos padrões culturalmente estabelecidos ou em nossas escolhas sobre temas prioritários é submetido ao acaso, como no lance de dados ou em um baralho e sua disposição. Colocando sobre a mesa nós mesmos a nós mesmos. Explicitando o que acreditamos, o que desejamos, o que estranhamos ou, ainda, o que tememos.
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No maximizar as bordas, a prática coletiva apresenta facetas simultaneamente REAL e SURREAL com o viver. Por vezes, explicitando uma prática crítica e realista aos estranhamentos da realidade que se tornou surreal em sua reprodução contínua de padrões insustentáveis. Outras vezes, gerando provocações criativamente surreais e expansivas para uma realidade dormente em seu cotidiano estabelecido, limitadamente normal e formal sobre princípios e valores que norteiam atitudes e escolhas plausíveis de ressignificação ou transformações. Trata-se de um olhar-agir intervencional de quem está inserido, pertencente e participante; ao mesmo tempo, que consegue se distanciar e ver “de fora” o que acontece na situação vivida, disparando perguntas geradoras, diálogos significativos e práticas criativas. Trata-se de resiliência criativa e design de processos, atuando para maximizar as bordas do viver urbano. ...
1. Resiliência é um termo da física, aplicado à biologia para definir a capacidade de elasticidade ou ainda a capacidade de sobrevivência de determinado organismo ou sistema em meio a grande impacto. Esse termo também vem sendo utilizado para compreender a capacidade estruturadora das comunidades e redes sociais que passam por situações críticas. 2. A permacultura foi criada pelos ecologistas australianos Bill Mollison e David Holmgren na década de 1970. O termo, cunhado na Austrália, veio de permanent agriculture (agricultura permanente), e mais tarde se estendeu para significar permanent culture (cultura permanente). A sustentabilidade ecológica, ideia inicial, estendeu-se à sustentabilidade dos assentamentos humanos locais. Trata-se de um método holístico de planejar, atualizar e manter sistemas de escala humana, ambientalmente sustentáveis, socialmente justos e financeiramente viáveis.
FLAVIA VIVACQUA
Artista e designer cultural para sustentabilidade, integrou diversos coletivos e articulou o CORO – Colaboradores em Rede e Organizações. Idealizou o REVERBERAÇÕES – Festival de Arte e Cultura Colaborativa, premiado com o Programa Cultura e Pensamento/MinC. Fundou em 2007 e dirige a NEXO CULTURAL Agência de Design de Processos e Sustentabilidade e CASA NEXO. http://flaviavivacqua.wordpress.com | www.corocoletivo.org | www.reverberacoes.com.br | www.nexocultural.com.br 18
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Arquivomania POR SUELY ROLNIK
Se o passado insiste, é pela incontornável exigência vital de ativarmos, no presente, seus germes de futuros soterrados. Walter Benjamin (psicografado)
Há cultura, que é a regra. E há exceção, que é a arte... Todos dizem a regra: cigarros, computadores, camisetas, televisão, turismo, guerra. Ninguém diz a exceção. Isso não se diz. Isso se escreve, se compõe, se pinta, se filma. Ou isso se vive. E então é a arte de viver. É da regra querer a morte da exceção. Jean-Luc Godard (Je vous salue Sarajevo)1
Uma verdadeira compulsão em torno de arquivos tomou conta do território globalizado da arte nas últimas décadas; uma compulsão que abarca desde investigações acadêmicas de arquivos existentes ou ainda por constituir até exposições neles baseadas parcial ou integralmente, passando por acirradas disputas entre colecionadores privados e museus pela aquisição desses novos objetos de desejo. Sem dúvida, o fenômeno não é fruto de puro acaso. Nesse contexto, urge perguntar-se pelas políticas do arquivo, já que são muitos os modos de abordar as práticas artísticas que vêm sendo inventariadas. Tais políticas se distinguem menos pelas opções técnicas ou metodológicas que orientam a produção de um arquivo, e mais pela força poética que o próprio dispositivo proposto é capaz de veicular. Refiro-me à sua aptidão para fazer com que as práticas inventariadas tenham a possibilidade de ativar experiências sensíveis no presente, necessariamente diferentes das que foram originalmente vividas, mas com um mesmo teor de densidade crítico-poética. Diante dessa proposta, uma pergunta logo se impõe: como seria um inventário portador dessa força em si mesmo, isto é, a produção de um arquivo “para” e não “sobre” uma experiência artística ou sua
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mera catalogação, pretensamente objetiva? Problematizar essa distinção depende, no mínimo, de dois blocos de perguntas. O primeiro refere-se aos tipos de poéticas inventariadas: que poéticas são essas? Teriam elas aspectos em comum? Estariam elas situadas em contextos históricos similares? Em que consiste inventariar poéticas e em que se diferenciaria essa operação da que se limita a inventariar objetos e/ou documentos? O segundo bloco de perguntas refere-se à situação que engendra o frenesi com relação aos arquivos: o que causa a emergência desse desejo no atual contexto? Que políticas de desejo impulsionam as diferentes iniciativas em torno de arquivos, seu surgimento, seus modos de produção, apresentação, circulação e aquisição? Pretendo aqui propor algumas pistas para responder a essas perguntas. Partamos da constatação inegável de que, com efeito, existe um objeto privilegiado por tal ânsia de arquivar: trata-se da ampla variedade de práticas artísticas, agrupadas sob a denominação de “conceitualismo”, que se desenvolvem pelo mundo no transcurso dos anos 1960-1970. Essas práticas, assim como outras igualmente ousadas para os parâmetros da época, resultam de um fenômeno que tem início na virada do século XIX para o XX: a acumulação de imperceptíveis movimentos tectônicos no território da arte que atingem um limiar naquelas décadas e se plasmam em obras que, ao tornar tais deslocamentos sensíveis, reconfiguram integralmente sua paisagem. É esse o contexto em que artistas posteriormente qualificados de “conceituais” tomam como objeto de investigação o poder do “sistema da arte” na determinação de suas criações. Seu foco são as várias dimensões do referido sistema: desde os espaços destinados às obras até as categorias a partir das quais a história (oficial) da arte as qualifica, passando pelos meios, os suportes, os gêneros reconhecidos etc. A explicitação e a problematização de tais limitações na própria obra passam então a orientar a prática artística, na busca de linhas de fuga de suas fronteiras estabelecidas. Essa operação constitui a medula de sua poética e condição de sua potência pensante – na qual reside a vitalidade propriamente dita da obra, o vírus de que é portadora. Mas não são quaisquer práticas artísticas realizadas nesse movimento nas referidas décadas que a compulsão de arquivar abraça. Estão especialmente em sua linha de mira as propostas que se produziram fora do eixo Europa Ocidental-Estados Unidos, mais precisamente aquelas criadas na América Latina em países que então viviam sob regimes militares. Tais práticas foram incorporadas pela história da arte produzida no referido eixo e estabelecida como pensamento hegemônico que define os contornos do território internacional da arte. É dessa perspectiva que se interpreta e
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categoriza a produção artística elaborada em outras partes do planeta, o que tende a causar certas distorções na leitura das práticas em questão, gerando efeitos tóxicos em sua recepção e disseminação. Rompe-se o feitiço
Com o avanço do processo de globalização, de algumas décadas para cá vem se operando uma desmistificação “dessa” história da arte. O fenômeno insere-se no contexto mais amplo de dissolução da atitude idealizadora perante a cultura dominante, por parte das demais culturas até então sob sua influência. Há uma ruptura do feitiço que as mantinha cativas e obstruía o trabalho de elaboração de suas próprias experiências com sua textura e densidade singulares e a peculiaridade de suas políticas de cognição. É todo um mundo instaurado pelo pensamento hegemônico que se desestabiliza: transmuta-se subterraneamente seu território, modifica-se sua cartografia, borram-se seus limites. Opera-se um processo de reativação das culturas até então sufocadas, introduzindo outras sensibilidades na construção do presente, o que provoca diversos tipos de reação. Para ficar apenas em seus extremos, na posição mais reativa encontramos os fundamentalismos de toda espécie que criam a ficção de uma identidade originária vivida como verdade e que passa a estruturar a subjetividade. A versão dessa tendência nos países dominantes é a xenofobia; no caso específico da Europa Ocidental, essa tendência vem se intensificando assustadoramente nos últimos anos, como um canto do cisne debatendo-se contra a morte anunciada de sua hegemonia. Por trás do confinamento nessa miragem de uma essência identitária, há uma denegação da experiência da proliferação de uma alteridade múltipla e variável, bem como da flexibilidade subjetiva e cultural que essa alteridade demanda, características próprias ao processo de globalização.2 Já no extremo da posição mais ativa produz-se toda espécie de invenções do presente movidas, ao contrário, pela abertura a essa pluralidade de outros culturais e aos atritos e tensões de seus efeitos no embate com o modo como o novo panorama acontece em cada contexto e nas experiências culturais inscritas nos corpos que o habitam. À medida que avança uma dessas posições, intensifica-se seu oposto. Evidentemente, esses dois extremos não existem em estado puro: o que há na realidade são diferentes espécies de força que se apresentam numa escala variada de nuances entre o polo ativo e o reativo, interagindo num vasto caldeirão de culturas. É nessa dinâmica que se delineiam as formas da sociedade transnacional. A arquivomania aparece precisamente nesse contexto marcado por uma guerra entre forças que disputam a definição da geopolítica
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Fotos: A ntonio Brasiliano
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Primeiro encontro público do NA BORDA no Espaço Matilha, São Paulo, 2012.
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da arte. Mas por que são especialmente cobiçadas por essa obsessão de investigar, produzir, expor ou adquirir arquivos certas práticas artísticas levadas a cabo naquelas décadas, na América Latina? E por que, entre elas, preferencialmente as praticadas nos países do continente que então se encontravam sob ditaduras? Com efeito, há um aspecto comum a todas essas práticas, que não obstante adquire matizes singulares em cada uma: agrega-se a dimensão política às demais dimensões do território institucional da arte, cujo excessivo poder sobre a criação começa a ser problematizado no período. É que a política que permeia necessariamente o território da arte em sua transversalidade, seja qual for o contexto, torna-se mais explícita em Estados autoritários, sejam eles de direita ou de esquerda, por ser mais violenta sua interferência na determinação das ações artísticas. No entanto, é preciso distinguir duas modalidades de presença desse aspecto nas práticas artísticas latino-americanas tomadas pela arquivomania: macro e micropolítica. As ações artísticas de ordem macropolítica veiculam basicamente conteúdos ideológicos, o que as converte em práticas mais próximas da militância do que da arte. Já no segundo tipo de ação, o político constitui um elemento intrínseco à investigação poética, e não algo situado em sua exterioridade. Independentemente do valor que se queira atribuir a cada uma dessas duas modalidades, o problema é que desafortunadamente a vertente macropolítica foi generalizada pela história hegemônica da arte para interpretar o conjunto das propostas artísticas daquelas décadas no continente, sob a designação de “arte conceitual política” ou “ideológica”. A categoria foi instituída por certos textos e exposições que se realizaram a partir de meados dos anos 1970, no eixo Europa Ocidental-Estados Unidos, e que se tornaram emblemáticos.3 Ela implica a denegação da natureza micropolítica das ações artísticas em questão, entravando seu reconhecimento e sua expansão. A invenção dessa categoria pode ser interpretada como um sintoma que, como tal, impõe a urgência de um trabalho de elaboração que explicite as forças reativas que o equívoco dessa qualificação revela, de modo a combater mais eficazmente seus efeitos. Para isso, faz-se necessário deter-se na diferença entre ambas modalidades de presença do político nas práticas artísticas, especialmente em contextos de terrorismo de Estado. Embora a ação dos regimes totalitários na cultura se manifeste mais obviamente por meio da censura, sua face macropolítica, muito mais sutil e nefasto é seu efeito micropolítico imperceptível, mas não por isso menos poderoso. Esse efeito consiste na inibição da própria emergência do processo de criação, antes mesmo de que sua expressão tenha começado a esboçar-se. A inibição decorre do trauma inexorável das experiências de pavor e de humilhação que lhe são
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inerentes. Tais experiências são efeito dos métodos de prisão, tortura e assassinato praticados à exaustão por governos autoritários com toda e qualquer pessoa que a eles se oponha, impregnando a atmosfera de uma sensação aterradora de perigo iminente. A situação afeta o desejo em seu âmago e o debilita, pulveriza a potência do pensamento que ele convoca e dispara, esvaziando a subjetividade de sua consistência. Sendo o terreno por excelência no qual se produzem as exceções à regra da cultura, a arte é especialmente atingida. Experiências desse gênero inscrevem-se na memória imaterial do corpo: memória física e afetiva das sensações, distinta, embora indissociável da memória da percepção das formas e dos fatos, com suas respectivas representações e as narrativas que as enlaçam (nesse caso, geralmente protagonizadas pela figura da vítima que os interpreta fazendo apelo a um discurso puramente ideológico). Desentranhar o desejo para livrá-lo de sua impotência constitui uma tarefa tão sutil e complexa quanto o processo que provocou seu recalque e a figura da vítima que daí resulta. Tal elaboração pode prolongar-se por trinta anos ou mais, e somente plasmar-se de fato na segunda ou terceira geração. A especial vulnerabilidade de certos artistas a essa experiência em sua dimensão corporal (aquém e além da consciência que tenham dela ou de sua interpretação ideológica) é o que os leva, em diferentes contextos, a afirmar em suas obras a potência micropolítica imanente à prática artística, atitude que se distingue do uso da arte como veículo de informação macropolítica. Caberia perguntar-se, então, se a força micropolítica da arte só pode ser convocada e revelada a partir de experiências de dor, medo e angústia, e mais especialmente ainda quando mobilizadas por situações de opressão macropolítica – seja em regimes totalitários, seja nas relações de dominação ou de exploração de classe, raça, religião, gênero etc. Seria absurdo pensar assim: temos de nos livrar das pegadas da cilada romântica que alia a criação à dor. Qualquer situação em que a vida se vê constrangida pelas formas da realidade e/ou o modo de descrevê-las produz estranhamento. Segue-se um desconforto que mobiliza a necessidade de expressar o que não cabe no mapa vigente, criando novos sentidos, condição para que a vida volte a fluir. É nisso que consiste a experiência estética do mundo: ela depende da capacidade do corpo de fazer-se vulnerável a seu entorno, deixando-se tomar pela sensação da disparidade entre as formas da realidade e os movimentos que se agitam sob sua suposta estabilidade, o que coloca o corpo em “estado de arte”. É uma espécie de experiência do mundo que vai além do exercício de sua apreensão reduzida às formas, operado pela percepção e sua associação a certas representações, a partir das quais se lhes atribui sentido. A tensão
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da dinâmica paradoxal entre esses dois modos de apreensão do mundo torna intolerável a conservação do status quo; e é isso que nos causa estranhamento e nos força a criar. E o corpo não se apazigua enquanto aquilo que pede passagem não for trazido à superfície da cartografia vigente, furando seu cerco e modificando seus contornos. Ora, o desconforto do estranhamento em questão não vem necessariamente embebido de medo e angústia; esses são sentimentos conscientes do ego, decorrentes da impotência diante de circunstâncias específicas, que incluem o autoritarismo e a desigualdade social, embora não se limitem a eles. Em situações extremas, tais sentimentos, como vimos, trazem o risco de inibir a potência de criação, o que leva a substituir o pensamento por fantasmas e projeções. É assim que o trauma produzido em contextos ditatoriais pode provocar a substituição do pensamento pela ideologia. A consequência é a transformação do artista em ativista e sua obra em panfleto portador dos afetos tristes da vítima, seu ressentimento e o desejo de vingança, afetos que se mobilizam igualmente em sua recepção e que têm apenas dois destinos possíveis: a esperança de uma redenção alucinada ou a desesperança movida por uma alucinação de apocalipse. Encoberta sob o véu de projeções ideológicas, tecido com fios de desejo romântico e emoção religiosa, a experiência se ofusca, tornando inacessíveis suas tensões. Estas mantêm assim um poder inconsciente sobre a subjetividade, e é isso que a leva a adotar estratégias defensivas para proteger-se, as quais ao mesmo tempo a limitam. Tende então a produzir-se um mal-entendido acerca da relação entre arte e política que, por ter sua origem em uma operação defensiva, não é fácil desfazer. Para captar tal operação mais precisamente, vale a pena lembrar que a sensação opera no plano corporal inconsciente, enquanto o sentimento ou a emoção operam no plano psicológico. O objeto da sensação é o processo que desmancha mundos e engendra outros, o qual se dá, como vimos, em qualquer contexto em que a vida se encontre diminuída em sua potência. Esse é o processo que move a criação artística. A sensação é, portanto, porta-voz da força de criação e diferenciação que define a vida em sua essência, constituindo-se assim numa espécie de “emoção vital”, o que a distingue dos sentimentos e emoções psicológicas, porta-vozes do ego e sua consciência. No entanto, contextos que mobilizam sentimentos exacerbados de angústia podem impregnar a tal ponto as sensações do processo em curso, que tende-se a misturá-los, como se fossem a mesma coisa. Mas não devemos confundi-los: embora o mal-estar da sensação da disparidade entre as formas da realidade e as forças que causam seu desmanche seja também marcado por turbulências difíceis de sustentar enquanto o que pressiona não se resolva em
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obra, esse estado produz ao mesmo tempo uma estranha alegria. É que a criação abre canais para a afirmação da vida e alimenta a confiança de que ela consegue impor-se até em situações-limite, inclusive em contextos de opressão macropolítica, como é o caso das práticas artísticas aqui enfocadas. É por isso que, embora o que convoca a ação artística nos regimes ditatoriais em curso seja justamente a presença brutal da macropolítica na criação, a natureza de sua potência continua sendo micropolítica. O que orienta o artista, aqui, é sua escuta à realidade intensiva que pressiona e que só consegue furar a barreira e fazer-se presente se concretizar-se nas entranhas de sua poética. Essa capacidade faz da arte um poderoso reagente que, ao propagar-se por contágio, pode interferir na química dos meios em que se insere, dissolvendo os elementos tóxicos de sua composição. É precisamente essa a dimensão política da arte que caracteriza as propostas mais contundentes realizadas na América Latina durante as ditaduras das décadas de 1960-1970. Encarnada na obra, a insistência da força de invenção face à experiência onipresente e difusa de sua opressão tornava-se sensível, em um meio em que a brutalidade do terrorismo de Estado tendia a provocar uma reação defensiva de cegueira e surdez voluntárias, por uma questão de sobrevivência. Tais ações artísticas são, portanto, de uma índole totalmente distinta daquela que rege o plano no qual operam as que se aproximam de ações pedagógicas ou doutrinárias de conscientização e transmissão de contéudos ideológicos, ou ainda de ações socioeducativas de “inclusão”. Por não agirem no plano da experiência estética, estas últimas não têm o mesmo poder sobre o debilitamento do desejo e da subjetividade em sua capacidade pensante. Outro mal-entendido que tende a ser gerado nesse mesmo tipo de situação consiste em supor que nas práticas artísticas em que se afirma seu poder político a forma seria irrelevante. Uma coisa não se contrapõe à outra; ao contrário: em tais práticas, o rigor formal da obra – seja pintura, escultura, intervenção urbana, instalação, performance, etc. – é mais essencial e sutil do que nunca. Contudo, nesse caso, não são suas formas per se, separadas do processo que lhes dá origem, o que as torna poderosas e sedutoras; a forma aqui é indissociável de seu rigor como atualização das sensações que tensionam e obrigam a pensar-criar. Um tipo de rigor que é estético mas também, e indissociavelmente, ético: estético porque torna sensível aquilo que os afetos do mundo no corpo anunciam; ético porque implica bancar as exigências da vida para que ela se mantenha em processo. Nesse sentido, quanto mais precisa e sintônica for sua linguagem, mais vigorosa sua qualidade intensiva e maior seu poder de sedução, e é isso que lhe outorga uma energia de influência efetiva nos
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ambientes pelos quais circula. Ao atingir esse grau de rigor, a arte converte-se numa espécie de medicina: é que a experiência que ela promove é capaz de intervir no processo de subjetivação daqueles que dela se aproximam, precisamente no ponto em que o desejo tende a tornar-se cativo e a despotencializar-se. Quando isso acontece, reanima-se o exercício do pensamento e ativam-se outras formas de percepção, mas também e sobretudo, de invenção e de expressão. Delineiam-se novas políticas do desejo e sua relação com o mundo – ou seja, novos diagramas do inconsciente no campo social que se atualizam em reconfigurações da cartografia vigente. Enfim, trata-se de um rigor vital que se move na contracorrente das forças que desenham mapas cuja tendência é mutilar a vida em seu próprio âmago – o qual consiste, como vimos, em sua insistência em reciclar-se na criação permanente do mundo. O caráter político específico das práticas artísticas sobre as quais aqui nos debruçamos reside, portanto, naquilo que podem suscitar nos meios por elas afetados. Não se trata aqui apenas da consciência das tensões (sua face extensiva, representacional, macropolítica), mas fundamentalmente da experiência desse estado de coisas no próprio corpo e dos afetos mobilizados pelas forças que o compõem (sua face intensiva, inconsciente, micropolítica). Ganha-se assim em precisão de foco, o qual ao contrário se turva quando tudo que é relativo à vida social na arte volta a reduzir-se exclusivamente a uma abordagem macropolítica – o que, como vimos, tende a ser estimulado em situações de opressão por parte do Estado e/ou pela vigência de desigualdade social exacerbada. Tal foi o caso de certas práticas artísticas nas mesmas décadas de 1960-1970 na América do Sul, assim como de certas práticas contemporâneas principalmente a partir dos anos 1990 (e não só neste continente). Essas práticas artísticas, e apenas essas, se poderiam efetivamente qualificar como “políticas” ou “ideológicas”. É nesse ponto que se situa o infeliz equívoco cometido pela história (oficial) da arte, cuja narrativa passou ao largo da essência das ações aqui privilegiadas: ao atingirem potencialmente a natureza afetivo-vibrátil da subjetividade e não apenas sua consciência, essas ações esboçaram a superação da cisão entre o poético e o político. Uma cisão que se atualiza no conflito entre a figura clássica do artista, destituído da dimensão micropolítica própria à sua prática, e a do militante, destituído da dimensão estética de sua subjetividade e dissociado do corpo como bússola vital em sua interpretação do mundo e nas ações que daí decorrem. O conflito extirpa da arte a energia micropolítica que lhe é imanente, e neste caso quando a política é introduzida em práticas artísticas ela se reduz ao plano macro, gerando a figura do artista militante. Da perspectiva desta
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figura, as ações artísticas que não abordam a macropolítica direta e literalmente são rotuladas de formalistas. Embora seja certo que um esboço de superação da cisão entre poética e política já estava em processo nas vanguardas artísticas do início do século XX e avança disseminando-se ao longo da primeira metade do século – e mais intensamente no pós-guerra –, nas décadas de 1960-1970 esta reconexão ganha a consistência de um vasto movimento na arte e impõe-se na cultura no sentido amplo do termo que abarca os modos de existência. Estes se transmutam irreversivelmente no referido período, quando a exceção da arte mostrou-se mais forte do que as regras da cultura. Daí que se tenha dado o nome de “contracultura” a este movimento.4 É essa reativação que, ao sofrer o golpe micropolítico das ditaduras, tendeu a recolher-se de volta no silêncio de seu recalque. O recalque colonial
Para tornar mais precisa esta radiografia, é indispensável lembrar igualmente que a articulação entre o poético e o político tampouco tem início com as vanguardas históricas; ela vem, na verdade, de muito mais longe no tempo. Poderíamos até afirmar que tal articulação constitui um dos aspectos fundamentais da política de cognição que, de diferentes maneiras, caracterizava boa parte das culturas dominadas pela modernidade fundada pela Europa Ocidental. Um regime cultural que, como sabemos, é inseparável de seus corolários no campo da economia (o regime capitalista), assim como no campo do desejo (o regime do indivíduo moderno, origem da subjetividade burguesa, cuja estrutura psíquica Freud circunscreveu sob a designação de “neurose”). Não esqueçamos que essa modalidade cultural se impôs ao mundo como paradigma universal por meio da colonização, cujo alvo não foram somente os outros continentes (América, África e Ásia), mas também as diferentes culturas sufocadas no interior do próprio continente europeu. Entre estas últimas, salientemos as culturas mediterrâneas, que nos concernem mais diretamente – em especial, a cultura árabe-judaica que predominava na Península Ibérica antes das navegações intercontinentais que resultaram na colonização. Como é sabido, a partir desse período os praticantes dessa cultura sofreram a violência da Inquisição, o que levou muitos deles a se refugiar no novo mundo que então começava a se construir na América ibérica.5 Ora, tal violência ocorreu ao longo dos mesmos três séculos em que a África sofreu a violência da escravidão, e as culturas indígenas americanas, a violência de sua quase extinção. Um triplo trauma que funda alguns países latino-americanos, entre os quais o Brasil.
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Mas a coisa não para por aí: as formas de violência que caracterizaram a época colonial deixaram marcas ativas na memória dos corpos nas sociedades americanas pós-Independência, a começar pelos arraigados preconceitos de classe e de raça. Remanescentes da política de desejo colonial-escravocrata, tais preconceitos geraram e continuam gerando a pior das humilhações, constituindo, provavelmente, um dos traumas mais graves e difíceis de superar, devido à permanência do estigma e sua incessante reiteração na vida social. Reforçando e prolongando esse processo, outros males no plano macropolítico, como a miséria, a exclusão social, o domínio externo e os regimes autoritários, foram se misturando com os anteriores, o que no plano micropolítico agravou os traumas já existentes e criou novos no passado e ainda hoje. Podemos então supor que o recalque da articulação imanente entre o poético e o político tem seu início com a própria instalação da modernidade ocidental e culmina nos dias atuais com a política de cognição do capitalismo financeiro transnacional. Arrisco-me a dizer que, do ponto de vista micropolítico, tal operação desempenha um papel central na fundação dessa cultura e sua imposição ao mundo, a ponto de podermos designá-la como “recalque colonial”. Se lemos a colonização sob essa perspectiva, constatamos que esse talvez tenha sido seu dispositivo mais eficaz.6 Vale a pena retomar a descrição da política de cognição que o recalque colonial tem como alvo, agora situada nesse horizonte histórico. Três aspectos a caracterizam: o vigor da vibratibilidade do corpo às forças que se agitam no plano intensivo (a experiência estética do mundo); a sensação mobilizada pela tensão da dinâmica paradoxal entre essa experiência e a da percepção; a potência do pensamento-criação que se ativa quando tal tensão alcança um limiar. O objeto do recalque é precisamente essa força da imaginação criadora e sua capacidade de resistência ao desejo de conservação das formas de viver já conhecidas, desejo marcado por uma política que consiste em adotar o exercício da percepção como via exclusiva de conhecimento do mundo. A operação de recalque faz com que a subjetividade não consiga mais sustentar-se na referida tensão, motor da máquina do pensamento que produz as ações nas quais a realidade se reinventa. Em última análise, o objeto desse recalque é o próprio corpo e a possibilidade de encarná-lo, de que depende seu poder de escuta do diagrama de forças do presente, como principal bússola para o exercício da produção cognitiva e sua interferência no mundo: uma bússola cuja função não é a de situar-nos no espaço visível, mas sim no invisível dos estados de pulsação vital. Ativar essa aptidão do corpo recalcada pela modernidade constitui uma dimensão essencial de qualquer ação poético-política. Sem isso não se fazem
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senão variações em torno dos modos de produção de subjetividade e de cognição que nos fundam como colônias da Europa Ocidental, exatamente a condição da qual pretendemos nos deslocar. O recalque em questão se opera por meio de complexos procedimentos que se diferenciam no transcurso da história. Fiquemos apenas nas experiências mais recentes que estamos examinando aqui. Em regimes totalitários, como vimos, o exercício do pensamento é concretamente impedido e acaba por inibir-se por efeito do medo e da humilhação. Já no capitalismo financeiro, a operação de recalque é bem mais refinada: não se trata mais de impedir esse exercício e tampouco de almejar sua parcial ou total inibição. Pelo contrário: trata-se de incitá-lo e até festejá-lo, mas para incorporá-lo a serviço dos interesses exclusivamente econômicos do regime, destituindo-o assim da força disruptiva imanente a sua poética. É por isso que muitos pensadores contemporâneos consideram que é da força de trabalho do pensamento-criação que o capitalismo contemporâneo extrai sua principal fonte de energia; daí que o tenham qualificado como “capitalismo cultural”, “cognitivo” ou “informacional”, uma ideia que já se tornou moeda corrente. Esse regime tira vantagem da fragilidade provocada pela tensão entre os dois vetores da experiência do mundo, e nela se inscreve, por meio da promessa de apaziguamento instantâneo. O desejo de enfrentar essa pressão e a energia de criação que ela mobiliza tendem a ser canalizados exclusivamente para o mercado. Isso se opera por vários meios, entre os quais o mais óbvio é a incitação da subjetividade a uma caça de imagens de formas de viver prêt-à-porter que povoam a cultura de massa e a publicidade, incansavelmente difundidas pelos meios de comunicação, que oferecem uma variadíssima gama de possibilidades para identificar-se. Incluem-se aqui ofertas específicas de cultura de luxo, igualmente homogeneizadas. Nessa categoria ocupam posição privilegiada certos museus de arte contemporânea e suas espetaculosas arquiteturas, bem como a proliferação de bienais por toda parte, fenômeno que o pensamento crítico designou por “bienalização” do planeta. Ambos funcionam hoje como dispositivos de turismo cultural de classes médias altas e elites, nas quais forja-se uma língua internacional comum classificada como “alta cultura”, composta por algumas palavras e floreios da retórica do momento, alguns nomes de artistas e curadores meteoricamente celebrados pela mídia e um certo “estilo” de comportamento que engloba grifes de moda, design, gastronomia, etc. O desejo é capturado por algumas dessas imagens que ele seleciona e, por meio de um processo de identificação simbiótica, desencadeia-se uma compulsão de consumo dos produtos a elas associados, com o objetivo de realizar em nossas existências o mundo
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que veiculam, iludidos pela promessa de admissão numa espécie de paraíso terrestre. O que atrai o desejo e faz com que se deixe fisgar por essa dinâmica é a miragem de sermos reconhecidos e nos reconhecermos em alguma das mises-en-scène oferecidas pelo cardápio do dia. A intenção é nos livrarmos da angustiante sensação de esvaziamento de si e recuperar nosso valor social supostamente perdido, como num passe de mágica. Entretanto, manter essa ilusão tem seu preço: com a instrumentalização do desejo, perde-se o faro para rastrear a pulsação vital e seus entraves, e nossa capacidade de invenção desvia-se de seu foco primordial: abrir novos caminhos para que a vida volte a fluir, quando isso se faz necessário. O retorno do recalcado
Há, no entanto, um avesso desta dinâmica: não é apenas o trauma da articulação entre poético e político causador de seu recalque que se encontra inscrito na memória dos corpos que habitam as regiões sob o domínio da cultura dominante, mas também a memória da vivência da referida articulação, que fica à espera de encontrar condições para reativar-se e escapar a seu confinamento. Tais condições se apresentam em certos tipos de situação social que favorecem a neutralização dos efeitos patológicos de seu trauma na condução da existência e seus destinos. Uma situação desse tipo se apresenta na própria vivência do estado de coisas na atualidade. O destino da proliferação de imagens-mundos que aparecem e desaparecem sem cessar numa velocidade vertiginosa, propiciada pelo desenvolvimento das tecnologias da comunicação, não é unicamente a instrumentalização de nossas forças subjetivas pelo mercado. Se acrescentarmos a isso a polifonia de culturas que pode ser ouvida e vivenciada a toda hora em qualquer ponto do planeta, veremos que seu efeito é também o de tornar impossível que um repertório, seja ele qual for, mantenha um poder estável e, muito menos, absoluto. Essa impossibilidade é uma das causas da quebra do fascínio e da sedução exercidos pela modernidade europeia e norte-americana, agora em sua versão neoliberal, a qual vem ocorrendo nas últimas décadas, tal como evocado no início deste texto. Já não estamos em um momento de oposição e ressentimento, nem de seu avesso: a identificação e o pedido de reconhecimento, isto é, a demanda de amor – que, nesse caso, é sintoma de uma subjetividade humilhada que idealiza o opressor e depende de seu desejo perverso. O movimento atual consiste, justamente, em maiores ou menores deslocamentos do lugar da humilhação e da consequente submissão ao opressor, buscando ativar o que foi recalcado em nossos corpos.
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Seria estúpido pensar que o objetivo dessa volta ao passado é “resgatar” uma suposta essência perdida que se encontraria nas formas de existência africanas, indígenas ou mediterrâneas anteriores ao século XV; ou na inflexão contracultural dos anos 1960-1970. Tal movimento caracterizou-se justamente por essa tendência a idealizar uma suposta origem perdida, o que levou parte da geração que o criou a uma espécie de caça ao tesouro nessas regiões, como se seu passado estivesse ali resguardado em “estado puro” e pudesse ser “revelado”. No lugar disso, o objeto da reconexão com esse passado é, aqui, o exercício da ética do desejo e do conhecimento que regia aquelas culturas e suas atualizações: zelar pela preservação da vida, que depende da viabilidade da experiência estética para escutar seus movimentos e adotá-los como baliza na orientação da existência; uma ética que, diga-se de passagem, encontra-se hoje igualmente recalcada naquelas regiões. Ora, reconectar-se com esse exercício não passa pela reprodução das formas que essa ética teria engendrado no passado, mas sim pela ativação, no contexto atual, da própria ética em questão, a conduzir as reinvenções da cartografia do presente, na contramão das operações que reiteram seu recalque. É precisamente nesse contexto que irrompe uma vontade incontornável de fuçar arquivos existentes ou constituir novos a partir dos rastros das práticas artísticas realizadas na América do Sul, nos anos 1960-1970, vontade que se dissemina como uma verdadeira epidemia. É que, com as ditaduras, a experiência da fusão das forças poética e política vivenciada nessas práticas havia permanecido encapsulada na memória de nossos corpos, sob um manto de esquecimento; somente conseguíamos acessá-la na exterioridade das formas nas quais se plasmava e, assim mesmo, de maneira lacunar. Como vimos, sua força disruptiva – e o que ela desatou e poderia continuar desatando em seu entorno – ficou soterrada por efeito do trauma que lhe causaram os governos militares, ao que se seguiu sua reanimação perversa pelo capitalismo cognitivo que os sucedeu. O equívoco tóxico da história (oficial) da arte
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É esse o aspecto crucial da produção artística dos anos 1960-1970, no continente, que parece ter escapado à história da arte. Ainda que mantenhamos essa produção sob o chapéu do “conceitualismo”, é inaceitável rotulá-lo como “ideológico” ou “político” para caracterizar a peculiaridade que ela terá introduzido nessa categoria, peculiaridade que na prática ampliou seus limites e transformou potencialmente seus contornos. É que se, de fato, encontramos nessas propostas um germe de integração entre o político e o poético, vivenciado e atualizado em ações artísticas, bem como nos modos de existência
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que se criaram no mesmo período, o germe era então todavia frágil e inominável. Ora, chamá-lo de “ideológico” ou “político” é o sintoma da denegação da exceção que essa experiência artística radicalmente nova introduziu na cultura e o estado de estranhamento que isso produziu nas subjetividades. A estratégia defensiva é simples: se o que aí experimentamos não é reconhecível no domínio da arte, então, para nos proteger do incômodo ruído, o classificamos no domínio da macropolítica e tudo volta ao seu lugar. Denega-se a dimensão micropolítica imanente à arte, aborta-se o germe de sua ativação e, com ele, aquilo que está por vir – que, no melhor dos casos, permanece incubado. A gravidade dessa operação é inegável se lembrarmos que o estado de estranhamento que a exceção da arte instaura constitui uma experiência crucial, pois ele resulta da reverberação da multiplicidade plástica de forças do mundo em nossos corpos, captadas por sua capacidade vibrátil. Um espaço de alteridade que se instala na subjetividade, a desestabiliza e a inquieta, exigindo um trabalho de recriação de seus contornos e do mapa de suas conexões, como condição para alcançar um novo equilíbrio. Ignorá-lo implica o bloqueio da vida pensante que dá impulso às ações artísticas e da qual depende sua influência potencial nas formas do presente. É precisamente tal denegação o elemento tóxico contido nas tristes categorias estabelecidas pela história da arte para interpretar as propostas artísticas em questão; essa é a força reativa que o sintoma de seu equívoco revela, ao mesmo tempo que nos dá a pista do objeto que ela visa. Nesse estado de coisas, impõe-se a urgência de ativar a articulação intrínseca entre o poético e o político, e a força de afirmação da vida que dela depende. Essa é a condição para que o desejo se livre de seu debilitamento defensivo, de maneira a viabilizar a expansão vital, em função da experiência vivida pelo corpo vibrátil no tempo presente. Eis o contexto que, de diferentes maneiras, desencadeia uma série de iniciativas geradas pelo fervor de pesquisar, criar, expor e/ou possuir arquivos que tomou conta no território da arte. No entanto, essa mesma situação mobiliza, igualmente, uma política de desejo diametralmente oposta: no exato momento em que tais iniciativas reaparecem e antes que os germes de futuro que traziam incubados tenham voltado a respirar, o sistema global da arte as incorpora, para transformá-las em fetichizados espólios de uma guerra cognitiva disputados pelos grandes museus e colecionadores da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. A operação tem o poder de devolver esses germes à penumbra do esquecimento; e isso faz dela um eficiente dispositivo do capitalismo cognitivo. Como sugere Godard, “é da regra querer a morte da exceção”. Se o movimento
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de pensamento crítico que se deu intensamente nos anos 1960-1970 na América Latina foi brutalmente interrompido pelos governos militares, no preciso momento em que sua memória começa a reativar-se esse processo é novamente interrompido, agora com o requinte glamoroso e sedutor do mercado da arte, quando seus interesses ganham demasiado poder sobre a criação artística e tendem a ignorar suas poéticas pensantes. Uma operação muito distinta dos procedimentos grosseiros e truculentos exercidos contra a produção artística por governos ditatoriais. Um novo capítulo da história, no entanto não tão pós-colonial quanto gostaríamos... É aqui que ganham relevância a política de produção de arquivos e a necessidade de distinguir suas múltiplas modalidades. O desafio das iniciativas que pretendem desobstruir o acesso indispensável aos germes de futuros, soterrados nas poéticas que tomam como objeto, consiste em ativar sua contundência crítica, criando assim as condições para uma experiência de igual calibre no enfrentamento das questões que se colocam na contemporaneidade. Com isso, a força crítico-poética de tais arquivos pode somar-se às forças de criação que se apresentam em nossa atualidade, ampliando seu poder no combate aos efeitos da vacina tóxica do capitalismo cultural que neutraliza o vírus da arte, o que contribui para que ela tenda a funcionar unicamente a favor de seus desígnios. Uma operação que não acontece apenas no âmbito da arte, mas que nesse campo específico se dá por meio do mercado e, como evocado anteriormente, inclui entre seus principais dispositivos muitos museus de arte contemporânea e a proliferação de bienais e feiras de arte.7 É óbvio que não se trata de demonizar o mercado, nem o colecionismo e as galerias que lhe são inerentes, pois os artistas precisam ser remunerados por seu trabalho, e os colecionadores não têm por que privar-se do desejo de conviver com obras de arte e apreciá-las; tampouco se trata de demonizar os museus em suas importantes funções de constituir acervos das produções artísticas, zelar por sua preservação e disponibilizá-las ao público. Mercado e museus não constituem uma extraterritorialidade da arte, mas são parte integrante de sua dinâmica. A vida não pode ser regida por uma moral maniqueísta que divide as atividades humanas em boas e más; o que conta é o combate entre forças ativas e reativas em cada campo de atividade, nos diferentes tempos e contextos que o atravessam. É assim também no território da arte: é nas forças que o regem, a cada momento, em toda a sua complexa transversalidade, e não em um suposto território imaginário idealizado, que devem ser pensadas as produções artísticas, críticas, curatoriais, museológicas e arquivistas. Um critério ético de avaliação, de cuja perspectiva o que importa é o quanto tais produções são instigadas pelo desejo de inscrever
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a exceção da arte na cultura globalizada, contribuindo assim para preservar o exercício da “arte de viver” em seu traçado polifônico. Se houve uma conquista micropolítica significativa após os movimentos dos anos 1960-1970, e que nos separa daquele período, ela reside exatamente na possibilidade de abandonar os velhos sonhos românticos de “soluções finais”, sejam elas utópicas ou distópicas, os quais sempre desembocaram em regimes totalitários. Ora, o processo de reativação da potência vibrátil de nosso corpo atualmente em curso, embora ainda em seus inícios, já nos permite entrever que não há outro mundo senão este, e que é de dentro de seus impasses que outros mundos podem ser inventados a cada momento da experiência humana. Esse é o esforço do trabalho do pensamento: quer ele se apresente na arte ou em outras linguagens, sua tarefa é a composição de cartografias que se desenham ao mesmo tempo que tomam corpo novos territórios existenciais, enquanto outros se desfazem. Mas não sejamos ingênuos: nada garante que o vírus crítico-poético de que são portadores os mencionados germes vá de fato propagar-se feito epidemia planetária; nem o vírus transmissível de que é portadora qualquer obra de nosso tempo, por mais poderosa que seja. Sempre haverá a cultura que é a regra e a arte que é a exceção. O que pode a arte é lançar o vírus do poético no ar. E isso não é pouca coisa no embate entre diferentes tipos de força, do qual resultam as formas sempre provisórias da realidade, em sua construção interminável.
SUELY ROLNIK
É professora titular da PUC São Paulo (Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade Pós-graduação em Psicologia Clínica) e coautora, com Felix Guattari, de Micropolítica. Cartografias do Desejo.
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1. Vídeo dirigido e editado por Jean-Luc Godard, 1993. Versão curta: 2ʼ15ʼʼ, 2006, França, disponível no Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=LU7-o7OKuDg. Texto de Jean-Luc Godard narrado pelo próprio cineasta. Música original: Arvo Pärt. Câmera: Izet Kutlovac. 2. Incluem-se nessa política de desejo, entre outros, os fundamentalismos islâmicos que se espalham pelo Oriente e a África do Norte, assim como os da ortodoxia judaica, que inventa uma ficção de autenticidade, cujo parâmetro é o modo de viver das pequenas aldeias de judeus religiosos na Europa do Leste nos séculos XVIII e XIX. Podemos situar igualmente aqui o movimento evangélico, cujo veloz alastramento pelo Brasil causa preocupação. Esse movimento partilha com os fundamentalismos uma política de estruturação social e subjetiva extremamente rígida, sustentada pela crença nas ideias de verdade e redenção. Nesse caso, a identidade originária é substituída pela ficção do criacionismo, que retira do humano seu poder essencial de invenção do mundo e, em seu lugar, impõe a obediência a uma moral implacável.
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3. Para nos limitarmos aos principais autores a partir dos quais se estabeleceu esse tipo de interpretação, destacamos o espanhol Simón Marchan Fiz (Del arte objectual al arte del concepto. Madri: Comunicación, 1974), o inglês Peter Osborne (“Conceptual art and/as philosophy”. In: NEWMAN, M.; BIRD, J. (Ed.) Rewriting conceptual art. Londres: Reaktion Books, 1999) e o colombiano Alexander Alberro (Conceptual art: a critical anthology. Massachusetts: MIT, 1999). Entre as exposições, destacamos Global Conceptualism: Points of Origin, 1950s-1980s, organizada em 1999 no Queens Museum por um grupo de onze curadores encabeçados por Jane Farver, então diretora de exposições do museu, Luis Camnitzer e Rachel Weiss. A exposição teve itinerância nos seguintes museus: Walker Art Center (Minneapolis, Estados Unidos), Miami Art Museum (Miami, Estados Unidos) e Stedelijk Museum voor Actuele Kunst (Gent, Bélgica). 4. A ideia equivocada de que a contracultura foi um erro e de que teria fracassado é fruto de uma política de desejo melancólico próprio de carpideiras. Provenientes dessa experiência micropolítica e paralisadas pelo trauma, as carpideiras contraculturais se agarram às formas que a potência de criação inventou na época e ignoram as forças que lhes deram origem, as quais levaram ao desenho da paisagem em que se confrontam novas forças na atualidade, que elas tampouco reconhecem. As formas têm que morrer quando não correspondem mais às forças que pedem passagem no presente. O que não morre, apesar de suas feridas, é a potência de criação de novas formas que volta a mobilizar-se quando isso se faz necessário. Não seria esse o papel da arte? Os afetos tristes de culpa, ressentimento e arrependimento só fazem impedir a fruição de novas constelações dessa qualidade, momentos raros de vitória das forças ativas na vida social. O comentário vale igualmente para o outro coro de carpideiras da mesma geração mas provenientes do ativismo macropolítico que, em sua constante ladainha, lamentam o suposto fracasso ou erro das formas de militância praticadas naquele período. A figura da vítima na qual ficaram confinadas as impede de ver que, também nesse caso, as forças ativas que agitaram aquele movimento são as que prepararam o terreno para os inegáveis avanços políticos, sociais e econômicos que o Brasil conquistou na última década. A eleição de Dilma Rousseff à Presidência do país é um dos sintomas do destino da poderosa experiência macropolítica que caracterizou aquele período. 5. Chega-se a estimar em 80% a proporção de judeus e árabes entre os portugueses que vieram para o Brasil com a colonização, refugiados da Inquisição. Tais dados, contudo, não são comprovados por pesquisas historiográficas. A esse respeito, a historiadora Anita Novinsky comenta: “apesar de documentos diversos confirmarem a vinda de numerosos cristãos-novos para o Brasil, em um processo de imigração ininterrupta durante três séculos, não se conta ainda com dados seguros para precisar sua porcentagem. Nas investigações realizadas por minha equipe de pesquisadores da USP, chegamos, aproximadamente, a 30% da população branca no Rio de Janeiro. Nos estados da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, seu número deve ter sido muito maior. Mais da metade da população branca da classe média era constituída por portugueses de origem judaica” (resposta de Anita Novinsky às perguntas enviadas pela autora deste texto em e-mail datado de 14/12/2010). 6. A historiadora Maria Helena Capelato, após leitura deste texto, sugere que deveríamos chamar esse fenômeno de “recalque histórico”, para ressaltar que ele não se reduz à colonização, mas se desdobrou em inúmeras reconfigurações ao longo dos cinco séculos de história do país e ainda hoje persiste. A sugestão é pertinente, mas preferimos adotar uma política de produção de conceito baseada na força afetivo-vibrátil que ele carrega consigo, da qual dependem seus efeitos. Nesse sentido, a qualificação de “colonial” permite lembrar o modo de existência que nos funda culturalmente e que ainda hoje nos estrutura, contribuindo assim para que reconheçamos sua presença ativa em nossa subjetividade e possamos combatê-la. É também por essa razão que devemos insistir na visão micropolítica no debate que vem se travando nas últimas décadas em torno do chamado “pós-colonialismo”. 7. Assim como constituem objeto de um ritual de iniciação das classes médias e altas destinado a obter um passe de admissão nos camarotes da economia globalizada, como assinalado no corpo do texto, museus de arte contemporânea, bienais e feiras de arte converteram-se igualmente em equipamentos privilegiados de poder das cidades para inserir-se no cenário do capitalismo transnacional. Há que distinguir desse fenômeno as bienais de Veneza e de São Paulo, bem como a Documenta de Kassel, que lhe são anteriores. Especialmente as duas últimas têm origem nos anos 1950, fruto de forças totalmente diferentes das que vêm bienalizando o planeta. A Bienal de São Paulo é um dos dispositivos que deram sustentação à rica produção artística das décadas de 1950-1960 no Brasil, e a Documenta nasceu da exigência de reabrir os poros da pele social alemã para a respiração da potência crítico-poética sufocada pelo nazismo. Prejudicada pelo golpe que essa potência sofreu por parte da ditadura, do qual tenta agora reerguer-se, a Bienal de São Paulo encontra-se atualmente num impasse: ou desperta o germe da força que a fundou, assumindo uma linha de fuga no processo de bienalização do planeta, alinhando-se assim aos vetores mais ativos que por toda parte promovem deslocamentos nessa triste paisagem, ou simplesmente submete-se a ela, identificando-se a seus vetores reativos e apagando definitivamente sua origem. 43
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Iniciamos esta roda com o espaço em branco! Instaurando um espaço de reinvenção, uma roda com entradas e saídas: ao acaso, à surpresa, ao erro e ao não dar certo.
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Aqui e Agora
Aqui e Agora! (3 borrifadas) Aqui e Agora
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Um brinde aos recém-chegados. Temos muito mais dúvidas do que respostas. Nossas receitas estão inacabadas e o coração sempre aberto ao porvir. Diluímos as receitas de como fazer bonito, de como sair bem na foto, que muitas vezes justificam ações urbanas com uma boa e bela retórica, mesmo que vazia, que relâmpago, que fantasiada de coletividade.
Agente Marieta utilizando os elixires durante ação urbana “Cartada” no largo Santa Cecília, realizada conjuntamente com o Projeto Matilha e Ocupeacidade durante a fase de intervenções do projeto NA BORDA, 2012.
O EIA, Experiência Imersiva Ambiental,
é um coletivo de autogestão formado por pessoas de diversas profissões, interesses e trajetórias que têm em comum a necessidade de problematizar política e esteticamente os modos de vida no ambiente urbano. Completando, em 2012, oito anos de existência, o EIA desenvolve frentes de ação que fazem convergir temáticas de diversos campos, como a arte, a tecnologia, o urbanismo, a comunicação, o meio ambiente, a antropologia urbana, os movimentos sociais, entre outros. Estamos em sintonia com redes de pessoas, instituições, organizações e demais iniciativas comprometidas com a criação no aqui e agora de formas de vida mais alegres, colaborativas e criativas, que levem em conta a complexidade de uma cidade tão múltipla quanto São Paulo.
go
( ) DDU
DDU
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Convidamos os leitores a se entregarem ao jogo de se despir de si, deixando espaço para o desconhecido. Um desconhecido em relação, na roda. Um presente se abre. Afirmamos: seja lá o que for a Agência Ficcional, não está pronta, está sendo criada... Necessitamos desta ficção para desaprender, para não saber, para inventar e sustentar o que sempre desejamos: experiência! Norteados pela pergunta-chave do projeto NA BORDA, “Como pensar/agir a intervenção urbana e a produção coletiva hoje?”, nos colocamos mais algumas perguntas: Por que pensar/agir a intervenção urbana e produção coletiva hoje? O que é intervenção urbana e produção coletiva? Em que contexto elas acontecem? Elas são fruto de quais necessidades? O que nos move a pensar/agir a intervenção?
política, a atualidade. O EIA estava bastante viciado no termo “espaço público”. Nossas ações eram no “espaço público”. Nosso objetivo era instalar e problematizar o “espaço público”. Colamos nesse discurso ainda que a ação já fosse outra. Mas nem sempre esta elaboração mais discursiva vem junto com a prática. Principalmente para o EIA, que está sempre mais imerso na experiência, produzindo somente como que textos-rastros, poucas palavras que já nascem um pouco velhas, enquanto a vida vai nos atropelando, nos solicitando, inserindo novas questões e urgências. Pessoas do EIA mudando de cidade, saindo do coletivo, entrando no coletivo, tendo filho, indo morar com o(a) namorado(a), ficando doente, sem dinheiro, turbulências com a cidade, com a falta de tempo. ( )
ade
Atiçado pelas perguntas, o EIA depara-se com vícios, hábitos, costumes. Pesos que uma história traz. Vícios na forma de se apresentar. Hábitos na perspectiva com que cada coletivo analisa a cidade, a
DDU
Dilatador de Tempo
DDU 10 borrifadas e Dilatador de tempo 3 borrifadas DDU
Ingredientes para qualquer lugar
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Um co(r)po repleto de presença Uma pitada de ousadia Confiança Entrega Untar o corpo todo de escuta, sem esquecer as reentrâncias. Leves batidinhas com as mãos em concha iniciando pelos pés e chegando à cabeça. O topo da cabeça busca o céu, a pélvis o chão: espinha ereta e três respirações profundas.
Situações que certamente influem no quanto, com qual intensidade, podemos afetar e sermos afetados. Qual é, afinal, nossa atual escala de ação? A cidade ficando mais difícil, mais insustentável, a política da prefeitura tornando-se mais segregadora, mais manipuladora, mais de fachada... Do que nos damos conta? Em que condições nossa experiência pode acontecer?
( )( )( )
Assim como muitos outros coletivos, nos sentimos engolidos pelos esgarçamentos do cotidiano, que aos poucos ia oprimindo disponibilidades e presenças. Até 2008, tínhamos reuniões semanais. Uma constância de encontros presenciais que facilitavam nossa conexão, nossa ação; mas, com os esgarçamentos, o tempo das reuniões minguou de encontros semanais para raros encontros, ou encontros que só aconteciam sob demanda. É verdade que, mesmo sob essas condições, quando encontrávamos forças e disponibilidade interna para sermos afetados uns pelos outros e pelos contextos que nos surgiam, emergiam trabalhos/processos pungentes, como, por exemplo, a Expedição Espeleológica na EXPOFAU. Ainda assim, na hora de falar sobre o EIA, sobre nosso processo/trabalho, a palavra-chave era a mesma: “espaço público”. Palavra que se esvaziou. Até mesmo porque as táticas do grupo já eram outras, e as avaliações sobre nossas ações na cidade já haviam se tornado mais difíceis de responder, de “equacionar”. Neste contexto, a Agência Ficcional surge como uma tática de reinvenção do EIA e dos modos de subjetivação. Precisávamos de um olhar mais fresco, menos acostumado, um olhar dos agentes ficcionais. As identidades dos participantes do coletivo já não nos bastavam, estavam pesadas, tinham que sustentar papéis que já não serviam, mas que a história acumulada em oito anos de trabalho teimava em nos atribuir. ( )
Diluidor de Identidade (3 borrifadas) (
)
Diluidor de Identidade
As autocríticas, nosso senso de “maturidade”, a palavra crise que sempre vinha nos questionar nos entraves das reuniões estavam tirando a agudez, a confiança, a alegria e a preponderância da ação com as quais trabalhávamos juntos desde 2004. Agudez que não se pode quantificar, mas que é necessária se queremos reunir mais corpos, se queremos nos afetar reciprocamente. Com a Agência Ficcional, decidimos investir em microestruturas, na relação escala um para um, que aos poucos se torna Agente (nós). Abrindo espaços para populações internas oprimidas por convenções sociais e nossas identificações com a realidade. Criando um continente coletivo para desejos e agentes sucumbidos pelo status quo, mas ainda assim latentes. Lançamos a pergunta “E o que pode acontecer se eles se conhecerem e se encontrarem?” Tião, integrante do coletivo Ocupeacidade, tomando elixir diluidor de identidade no largo Santa Cecília, 2012.
-
... ( ) E quando não há espaço para intervenção, e quando não há local específico de interesse? E quando o lugar de interesse é nossa vida, a forma como estamos inventando nossas existências? ( ) E quando o nó(s) se desfaz? E não há encontro? ( ) E quando o lugar de interesse é o encontro e nos deparamos com a impossibilidade do encontro? ( )...
Kit de primeiros socorros dos estados de coletividade. Leia mais informações na caderneta do agente.
Criar/dar espaço para outros eus que possam se encontrar foi a opção. E logo percebíamos que os dispositivos e formas que desenvolvíamos no fazer, a partir desta vontade de gerar o encontro, iam desenhando outros contornos possíveis, sobrepondo-se às impossibilidades. Surge, então, a Agência Ficcional como possibilidade de gerar novos encontros, agenciá-los. Encontros em que nós não estaremos presentes. Não precisamos estar presentes. Podemos nos infiltrar no presente de outros e auxiliá-los a gerar e manter os estados de coletividade. Surgem os elixires, a caderneta, e logo o kit completo: dispositivos auxiliadores da manutenção de estados de coletividade.
Expedição Espeleológica na EXPOFAU – 2010 Depois de uma perplexa visita à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
(FAU) da Universidade de São Paulo, surgiu a ideia de “escrachar” a situação
vergonhosa das infiltrações evidentes no prédio. Bolamos a I Expedição Espeleológica. Montamos uma barraquinha de turismo urbano e, com um megafone, convidamos os interessados a se reunir dali a algumas horas para a Expedição. Providenciamos
equipamento de segurança para todos: capacetes, lanternas de cabeça, binóculos, vidros para coletas de amostras e máquinas fotográficas. Reunimos um grupo de cerca de trinta pessoas e saímos pelos andares da FAU reconhecendo as estalactites e estalagmites que absurdamente se formam no teto e no chão da Faculdade.
( ) Bem-vindo à Agência Ficcional!
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Nome do agente (s): Desejo: Habilidade:
Local/ temática de interesse: Saturações Atuais: Sugestão de novo elixir:
Saturações
Elixir Usado
Contexto
Tipo de Reação
Acompanhamento do uso de elixires
E
specializada em diluição de identidades e conspirações coletivas. A Agência Ficcional tem o objetivo de instaurar e fortalecer estados de coletividade e espaço/tempo desabituais na vida cotidiana das pessoas. Propiciamos a qualquer cidadão interessado a possibilidade de abrir mão temporariamente de sua identidade habitual, criando para si um agente ficcional. O agente ficcional é aquele que tem mais condições de atuar em consonância com seus desejos, conectando-os com os desejos de outros agentes e convergindo-os em ações coletivas. A Agência Ficcional funciona como plataforma de reunião destes agentes e desejos e é propulsora de habilidades adormecidas. Potencializamos encontros e dispomos de dinâmicas e dispositivos magnetizadores de estados coletivos e mantenedores do estado de disponbilidade e presença.
Agência Ficcional
Bem vindo a Agência Ficcional! Para os que não cabem em si ! Transborde…
Agência Ficcional
http://agenciaficcional.wordpress.com
CADERNETA
Ficcional é apenas um pretexto para criar mundos, para emergir o campo dos desejos, que nos dispomos a agenciar. Um passe permissivo para atualizar desejos possíveis, que transbordam de nossas identificações com a realidade corriqueira, preconfigurada e aceita socialmente. Cada agente está em formação, alguns ainda permanecem ocultos, outros secretos. Os encontros entre eles são imprevisíveis e potenciais. A Agência torna-se uma plataforma para o encontro, continente de escuta e legitimação dos delírios, permissão para investigar-se e reinventar-se. O kit de elixires facilita este despir-se da identidade, do que está culturalmente encravado na alma, torna-se uma chave de acesso. Cada elixir abre uma porta e, aos poucos, a pessoa torna-se permeável ao presente, ao encontro, à possibilidade do sair de si e entrar num novo estado. Além disso, os elixires podem ser acionados nas circunstâncias mais diversas e aparentemente “sem saída”, pois são discretos, portáteis e eficientes.
Não são apenas as grandes ordens apreensíveis no cenário macropolítico da cidade, como o trânsito, a especulação imobiliária, a gentrificação no centro e outras partes da cidade, a política de moradia desumana e a mentalidade fascista daqueles que dizem trabalhar pela segurança na cidade que nos afetam.
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DDU 10 borrifadas ( ) Tais configurações urbanas ainda estão em jogo, cada vez com mais força. Entretanto, quando quase subjugados a essas forças, vem num grito a pergunta “como podemos seguir?”, e descobrimos nossos corpos, nossos pensamentos ainda potentes, ainda precisando também serem cuidados para que haja reinvenção possível. “E quais são as condições para isto?” DDU
Passamos a apostar em processos/acontecimentos que, para ganhar vida, dependem de nossa presença física e da criação de condições para que a sempre estranha onda poética possa nos acometer, sendo maior que nós, ultrapassando pele, transformando nossas percepções, ativando uma coletividade fora de controle – são as catarses, pajelanças, revoluções. Processos/acontecimentos que se atentam não a partir dos grandes temas e problemas da cidade, mas a partir do que emerge do Momentum, o que, curiosamente ou não, produz a crítica que nos parece mais potente e transformadora. ( )
SEU SAIA É um dispositivo-indumentária a ser vestido. Ativado pelo corpo que o veste: ao tra[ns]vestir o SEU SAIA, este possibilita que uma atmosfera do JOGO RISCO seja lançada no ambiente. O performer usa uma saia/traje amarela com diversos bolsos transparentes, que guardam cartas com sugestões de performances e dinâmicas coletivas. As cartas são colocadas e retiradas, podendo ser sugeridas ou executadas por qualquer pessoa. Há também cartas em branco para que os participantes criem novas performances e dinâmicas. Também funciona como disparador de memória coletiva e o utilizamos como forma de apresentar o EIA através de cartas com palavras-chave.
Agentes Alpha, Psy Soma, Marieta e Elza cadastrando novos agentes na Unidade Móvel da Agência Ficcional durante a abertura da exposição NA BORDA no SESC Consolação.
ELIXIRES (COMPOSIÇÃO) Descrição: O uso interno e/ou externo destas sustâncias tem efeitos irreverentes e irreversíveis [E.I.I.]. Ler informações ao agente antes de iniciar a utilização. Sugerimos no início o uso na ordem descrita abaixo. Depois de assimilados a ordem pode ser subvertida ou mesmo poder-se-á utilizá-los separadamente. 1- aqui e agora: elixir da chegança, apropriado para iniciar processos. Recomendamos utilizá-lo primeiro. Sugerimos um brinde com o elixir na chegada de cada integrante ao recinto em questão e reiteramos o contato olhos nos olhos. Pode ser utilizado em associação com o DDU. 2- ddu- diluidor de densidade urbana: elixir do descarrego, recomendado para auxiliar na diluição da atmosfera carregada e densa que costuma grudar em nosso campo energético, alterando nossos estados de humor e dificultando nossa presença e disponibilidade, principalmente nos centros urbanos. 3- dilatador de tempo: muito usado em centros urbanos e momentos de acúmulos de afazeres e/ou hiperativismo agudo. Informamos que é difícil prever os efeitos adversos do elixir dilatador do tempo. Recomendamos prudência em seu manejo. 4- diluidor de identidades: elixir para despir-se de si, auxilia no processo de diluição de identidade. Sua ação é irreversível mas não irá diluir totalmente a identidade do usuário. Apenas abrirá espaço interior para emergir o agente ficcional. Oferece um respiro para "eus ensimesmados" e um novo "ponto de experiência" para apreender a vida e manifestar potencialidades. 5- depurador de desejos: elixir indicado para agentes recém iniciados e/ou que ainda não tem tanta clareza de seus desejos. Catalisa a conexão do agente com seu desejo, ajudando-o a adquirir clareza de seu propósito. 6- propulsor de habilidades: elixir auxiliar no resgate e manifestação de habilidades adormecidas, saberes e práticas impressas em nossos corpos de memória e anestesiados pela vida social capitalista. Em cada novo grupo poderão surgir habilidades surpreendentes de um mesmo agente. Este elixir é indispensável para compor e atualizar a inteligência coletiva. 7- conector de desejos: elixir de despedida, recomendado para fechar encontros presenciais e manter a conexão entre os envolvidos. Estimulando e potencializando interações e reverberações entre os desejos dos agentes a fim de convergi-los em ações e composições coletivas. Que o círculo se abra mas não termine! EIA lá… 8- fórmula pessoal: Composição pessoal dos elixires descritos acima e/ou novo elixir canalizado para o contexto que se apresentar ao agente. Pedimos o compartilhamento das novas fórmulas criadas através da central de atendimento (http://agenciaficcional.wordpress.com) para difusão das mesmas a rede de agentes.
Ativadoras) ELIXIRES (Mandalas (COMPOSIÇÃO)
aqui e agora
depurador de desejos
fórmula pessoal
conector de desejos
propulsor de habilidades
diluidor de identidades
dilatador de tempo
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BULA ATIVADORA Apresentação: Este kit é composto de 1 maleta, 8 elixires, 8 mandalas ativadoras, 1 ampulheta, 1 caderneta de agente. Este kit é a síntese de intensas vivências e experimentações em processos coletivos, use-o sem moderação. Uma vez experienciado você poderá utilizá-lo e difundi-lo em diferentes contextos e com as mais diversas pessoas. Via de administração: Este kit é composto de 1 maleta, 8 elixires, 8 mandalas ativadoras, 1 ampulheta, 1 caderneta de agente. Este kit é a síntese de intensas vivências e experimentações em processos coletivos, use-o sem moderação. Uma vez experienciado você poderá utilizá-lo e difundi-lo em diferentes contextos e com as mais diversas pessoas. Informações ao agente: Indicação: Indicado para combater estados de apatia, desinteresses e dispersão. Empiricamente desenvolvido para ativar e manter estados de coletividade. Instaurar processos de ritualização e descondicionamento da vida cotidiana. Indicado para os que não cabem em si. E aos que apresentam sintomas de saturações habituais. Contra indicações: Não há dados disponíveis sobre contraindicações em nossos experimentos até a data presente. Reações Adversas: Intolerâncias relativas a condicionamentos e convenções. Desterritorialização. Superdosagem/Efeitos Colaterais: Em caso de superdosagem algumas mulheres apresentam quadro hiperativo e reflexos de múltipla personalidade agudos, sintomas estes relativos `a Esquizofrenia Feminina Contemporânea Urbana (alguns homens também podem apresentar estes sintomas). Suspenda imediatamente o uso do Diluidor de Identidades e do Propulsor de Habilidades. Recomendamos o uso do DDU e Aqui Agora como antídotos. A superdosagem coletiva pode causar estados de catarse descontrolada. Neste caso única fórmula recomendada é o dilatador de tempo e entregar-se ao momento…
Precauções: O uso contínuo do elixir não provoca vício, porém experiências comprovam que doses periódicas de elixires podem fomentar insurgências nômades e meiosorrisos ao amanhecer, caso a pessoa durma de lado ou tenha insônia. Interações- dados sobre uso concomitante com outras substâncias: Alguns elixires funcionam melhor conjuntamente. O Aqui Agora e o DDU. Outra combinação indicada é Diluidor de Identidades com Depurador de Desejos e Propulsor de Habilidades, lembrando que o último não dever ser utilizado sem a utilização dos anteriores. Posologia: Abra o kit e confira todos os itens. Se relacione intuitivamente com cada um deles. Logo pegue as mandalas ativadoras e disponhaas no espaço e abra os frascos de vidro. Em seguida escolha uma solução a gosto e encha o frasco escolhido, cada elixir pode conter diferentes soluções base, elas serão acionadas pelas mandalas ativadoras e sua intenção. Recomendamos iniciar o ritual de ativação dos elixires (bem como sua utilização) pela fórmula Aqui Agora. Pegue a mandala e o frasco relativos ao elixir Aqui Agora, conecte-se com o símbolo, coloque o frasco encima da mandala e preencha-o com a solução a gosto. Vire a ampulheta e INTENTE ativação do elixir Aqui Agora. Repita o ritual com cada elixir. Pronto está ativado e apto para ser borrifado/uso externo e/ou via oral/uso interno. O ritual de ativação só será necessário novamente após o término da solução.
CONTATO Telefone: e-mail:
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Cabocla mudar de
ade: de
, gosto muito Agente Alpha FM es, sou de flores e verd vo meu caminhar astróloga e le nfigurações através das co as. Sou interplanetári to-astral. sensitiva e al tas são a Minhas ferramen cristais. observação e os o, frequento Sempre que poss salas de planetários e ado, fui uma cinema. No pass os astros burocrata, mas ando e dando foram me libert . O meu dom vida aos poucos scimentos ou é conduzir rena s. autodescoberta
Surgi Ni! Agente Solstag aqui. do imperativo ficcional de s salvar o mundo dos ataque demoníacos e desbravar labirintos, cavernas e tesouro calabouços à procura de e conhecimentos perdidos. Estive em campanhas com meu outros agentes. Carrego hashi bastão de profecias e o transcendente.
Agente Elz a de Med eir os na escuta e na açã o. Con heço muitos age nte s em con strução. Cuido da apuraç ão da fórmula do elixir del ator de blá-blá-blá, essencial para distinguirmos o que é potente do que não é. Gosto de experimentar os estados de coletividade. Ent rei em gre ve do meu trabalho habitual, que é ser pilota de helicó ptero em São Paulo, ganhan do tempo para trabalhar na Agência Ficcional. Câmbio.
Age n t e : Helio Ribeir Desejo ão : e s t a r em m um lug ais de ar a o m esmo t Habili empo da d e : f otogra filma r far e a ç õ es urb Ferram anas ent a s : m áquina tográfi ca e fi fo lmador Luga a r e s d e inte cidade resse : e na n c o n t ros/fe vais d sti e arte públic Suges a t ã o d e novo elixi elixir r d a : onipre sença
Diluidor de Identidade
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Quem vos fala é a agente Marieta, estou em treina alimento. Venho me especi colezando em conspirações do tivas, e estou trabalhan na fórmula do elixir mag es, netizador de proposiçõ capaz de transformar pro icos postas em campos magnét de aglutinação.
Agente Psy – Agente Psysoma – Tece poesias visuais pelo espaço utilizando como principal ferramenta o Torus Vital Autorrenovável. Utiliza o corpo como instrumento dos desejos: conscientizar populações sobre a anestesiação psicossocial e os micromovimentos do poder. Atua na revolução não violenta. Seus lugares de interesse na cidade são os de passagens, lugares de fluxo contínuos, a casa do outro. Repensando o espaço público como o espaço do pertencimento, lugar este para o princípio do afeto: coletividade.
Eu sou a Branca, procuro as pausas e os espaços em branco. Brechas para o novo, por vir... Adoro reticências e parênteses. Atuo por silêncios ( )...
Agente Jureminha Tupã Pinup Cabocla Desejo: encantar, alegrar Habilidade: dançar, dublar, mudar de pele Ferramentas: lona rubra Lugares de interesse na cidade: cineclubes e centro da cidade
Eu sou o Agente Anônimo, no passado tive vários nomes, mas nenhum deles hoje representa quem sou. Tive várias profissões, mas a ausência de identidades me levou a trabalhar como sequestrador de identidades para a Agência Ficcional. Minhas memórias se confundem pelo tempo, aos poucos vou reconquistando meu passado. Meu laço é o conector de IDs.
dor
Nome do agente: Guta ea de Desejo: coleta subterrân lixo Habilidade: mobilidade sse: Local/temática de intere espaço urbano ão e Saturações atuais: poluiç sujeira da cidade redutor Sugestão de novo elixir: de conformismo
Nome do ag en te: Fulô Desejo: ser cria nç a Habilidade: artes ma nu ai s Local/temáti ca de intere sse: cores e cois as coloridas Saturações at uais: estres se e falta de paci ência Sugestão de novo elixir: revelador de pensamentos
N o m De e d o s ag pa ejo en : ra t t H e e f a : r a b Mi fa co ili zer st c d n Lo ver ade: amiz ilid i sa ca ad ad s r l i e e o / n r t t ri s re ere emát r s u e Sa niõ se: ica es tu de fe r g s a u t ç a as Su rda ões e r g a t r es est ão anc uais pa or l : h ad de no or vo d e fe eli xi li c id r: ad e
Nome do agente: ana beatriz Desejo: inteligência e passar de ano Habilidade: concentração Local/temática de interesse: vida Saturações atuais: pressões Sugestão de novo elixir: amenizador de saudades
Depurad or de Desejos
( )
Depurador de Desejos (3 borrifadas) ( )
tihe e ente: do ag quilidade Nome an o: tr Desej ia ecer acont esse: nh compa er : faz e int idade Habil emática d es /t pulsõ Local m s: co : ô atuai bistr ir ações novo elix Satur e ssoal tão d Suges erador pe el desac
ente: Gi Nome do ag Maravilha s e as pessoa Desejo: qu is loucas e ma sejam mais livres izades : fazer am Habilidade tica de Local/temá centro da interesse: andes cais de gr cidade, lo ivos s de execut aglomerado tresse atuais: es Saturações : novo elixir Sugestão de ão imediata transmutaç
Nome do ag en te: RSXT Desejo: ser um mestre Habilidade : artes plásti cas e convívio em grupo Local/temá ti ca de intere sse: música, danç a e cinema Saturações at uais: ex ce ss o de velocidade do mundo (tempo ) Sugestão de novo elixir: diminuidor da necessidad e de dinheiro
se:
ha Gamin ente: ão Paulo S do ag Nome rua or em no o: am so se: a Desej : do teres e idade de in antismo d Habil emática s: pe /t atuai Local ico ações tântr ok Satur o xir: Faceb dade o eli falsi o de nov cedor de tã re Suges esapa or, d do am gram ta e Ins
são/ Nom e do D e a s g e Hab jo: c ente: o i atr lidad r nas Germa no e: á z p s Loc s ena orr onas a gua b i r vig l/tem s par eges áti ent a o c e S s a s a t que de u i Sug raçõe vêm nte s a est res tu ão do s e a s : d tem ias de no is: d pos ias vo de el t s i ol x ir: ransi tór pr o l ong ios ado r
Nome do agente: Clara Desejo: igualdade Habilidade: cantar Local/temática de interesse: rua Saturações atuais: locomoção, habitação e alimentação Sugestão de novo elixir: mata fome
Propulsor de Habilidades
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Propulsor de Habilidades (1 borrifada) ( )
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Nome do agente: Círis Desejo: equilíbrio Habilidade: decisão e transformação Local/temática de interesse: João Pessoa (PB) Saturações atuais: indecisão/ encurtamento temporal Sugestão de novo elixir: contaminador de sonhos
mith iva orn S colet au Bj ença Rosse desav José atual ente: do ag do ão da cial Nome o mun utenç de so n o erida o: ma : tod prosp Desej resse : e t de idade de in eito zador Habil tica econc ciali /temá s: pr reini Local atuai xir: ações o eli Satur e nov tão d al Suges ultur ito c conce
Agradecimentos: Aos integrantes do EIA: Eduardo Verderame, Floriana Breyer, Gisella Hiche, Mile na Durante, George Sander, Fabiana Mitsue, Fabiana Prad o, Pedro Guimarães, Vanessa Jesus, Mariana Marcassa e Euler Sandeville. Com a ajuda de Salua Oliveira na produção e de Leonardo Ceolin na cocriação e confecção da Unidade Móvel da Agência Ficcional. Na fotografia, Henrique Parra e Peetssa. Na diagramação da caderneta, contamos com Renato Almeida e do livro, Danielle Noronha.
Afirmamos: seja lá o que for a Agência Ficcional, não está pronta, está sendo criada... Necessitamos desta ficção para desaprender, para não saber, para inventar e sustentar o que sempre desejamos: experiência!
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vestir a fantasia de si mesmo. despir-se, revelando o devir. brincar de ser, sendo.
Identidades em trânsito Seria possível a identidade que nos acompanha no dia a dia transcender aquilo que acreditamos ser? Quais seriam os desejos pulsantes capazes de deslocar a nossa identidade primeira, constituída pelas condutas sociais? Quantas combinações variantes de identidade cabem num corpo? E como isso se dá? O Projeto Matilha inicia sua investigação artística a partir dessas questões, para abordar dizeres poéticos do indivíduo por meio de seu autorreconhecimento. Quando movida pela ação do desejo, a identidade em trânsito aponta para novas subjetividades dentro do contexto em que está inserida. E sempre aos olhos alheios, pois a noção de identidade é inseparável do conceito de alteridade. É o outro que reconhece, nomeia e autoriza (ou não) aquilo que somos e representamos no âmbito social. Ao propor o conceito de “transcendentidade”, lançamos novas questões sobre cruzamentos e influências na construção de uma identidade transcendente àquela que nos foi atribuída. Ou, ainda, no reforço afirmativo sobre aquela identidade que talvez passemos a vida a negar. Como nos dizermos? Como nos reconhecermos? Como podemos transcender aquilo que sabemos a respeito de nós mesmos? Como expressar a superação de nossas identidades constituídas, ou ainda afirmá-las, a fim de nos reconhecermos no campo poético-relacional? Como dar forma ao transbordamento dos nossos contornos? Como e por que nos reinventarmos?
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Cartas na mesa Sentar-se à mesa para um jogo com outras pessoas. Falar de si. Mentir-se. Inventarse. Revelar segredos. Dizer verdades. O jogo de cartas e algumas questões: quem é o desconhecido? O que sabemos a respeito dele? O que lemos na imagem do outro? O que a presença do outro suscita em nós? Como habitar um tempo/espaço juntos pela cidade hoje? Jogar é o verbo que se apresenta à Matilha faminta por respiros, encontros e afetos. Momento em que a arte se disfarça de vida ou a vida é contornada pela arte? Seduzidos por jogos de disfarces, de exposições e encontros, a Matilha escolheu um cantinho da cidade repleto de fluxo e já imantado pelo calor da disponibilidade: mesas de jogos no Largo Santa Cecília (centro de São Paulo) na saída do metrô. Ali, junto aos grupos EIA e Ocupacidade, realizamos a intervenção Cartada Santa Cecília. A partir do ludismo presente nos jogos, estabeleceu-se um território livre de diferenças entre o artista e o receptor de arte. Na ação, as cartas na mesa revelavam segredos, ideias, preconceitos e vontades. Uma espécie de “buraco das identidades”, em que o objetivo é montar uma canastra de si mesmo. Quatro jogadores recebem oito cartas cada um. O montinho fica no centro da mesa e os jogadores compram e descartam. A primeira carta comprada do monte na mesa é a preferência sexual “homossexual”. A reação vem de forma violenta: — Eita, diacho de jogo! Não quero isso não! — O homem se levanta e não quer mais jogar, mas logo volta à mesa, curioso para bisbilhotar o jogo… Alguém descarta o time “Corinthians” e um outro compra o monte todo: — Este é meu! A moça loira pega a carta de etnia “negro”. Alguém reage: — Mas você não é negra! — É que eu gosto! —, ela afirma. Assim, meio sem saber, fomos nos reconhecendo entre regiões da cidade, comidas preferidas, preferências sexuais, times, crenças e outros detalhes de cada um que, postos na mesa, revelavam as múltiplas escolhas associadas ao discurso identitário. Stuart Hall, em A identidade cultural na pós-modernidade, contextualiza a mutabilidade do sujeito pós-moderno:
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A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia […] à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente.1 No entendimento da arte como campo de troca e expansão perceptiva, a teatralidade da ação artística faz emergir um corpo-poético dentro do espaço público. A simplicidade da proposta desperta o prazer de um jogo quase pueril de “vestir a fantasia de si mesmo”. Ao assumir identidades, desejos e potencialidades de maneira poética, estamos ao mesmo tempo refletindo sobre os papéis sociais que nos são impostos e sobre o hibridismo que sofremos durante todo o processo da vida. A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente, e não biologicamente. […] Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas.2 Identidade e cultura como dinâmicas inseparáveis, movidas pelos desejos, que alimentam nossos sonhos. Estética da (re)invenção constante de si. Como um outro e como o mesmo. Seja no fluxo da contemporaneidade – como reiteração da polifonia –; seja nas bordas, onde podemos criar linhas de fuga na rota do pensamento obliterado pelas imposições que nos oprimem. O que seria então aquela gente ali fantasiada? A moça de peruca, o moço de cartola, a mulher com pele de onça… Um carnaval fora de época? Uma festa à fantasia? Ou apenas o gesto expressivo criando um verdadeiro dizer estético sobre quem somos? Somos todos estes e outros ainda por revelar-se. […] Aqui opera a Agência Ficcional, projeto irmão da Matilha, atenta aos fluxos da imersão e convocando agentes e desejos secretos, na escuta e na legitimação dos devires. Dialogar com a linguagem da arte contemporânea é também pensar a intervenção artística como espaço vivo de relacionamento.
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HALL, 2011, p. 13. Ibidem.
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Espelhos mutantes A contemporaneidade, marcada pela abundância de desejos, necessidade de consumo, mutação e experimentação constantes, reproduz em nós como um de seus sintomas mais incisivos a identidade volátil. Ao sujeito contemporâneo, cabe o papel de trocar infinitamente de pele sem a garantia de vir a ser o que quer que seja. O tempo inteiro vivenciamos a projeção de uma série de imagens consumíveis, baseada em padrões que muitas vezes em nada dialogam com a potencialidade de nossos verdadeiros afetos e desejos. Diante de tal contexto, nossa própria identidade – como cidadãos-artistas – e nossos lugares de atuação são muitas vezes apoderados pela vertigem de um tempo impertinente. Os espaços sociais de encontro e compartilhamento migraram para o ciberespaço, onde a virtualidade como potencial do acontecimento nos mantém sempre à espera. Na tentativa de encontrar lugares possíveis de trocas, nós, como propositores, trazemos para o plano horizontal aquilo que entendemos como nosso material de criação: a relação humana na coletividade e a afetivação dos territórios. O estético como vivência de intersubjetividade,3 em que “a vida não se distingue da obra como campo de experimentação”, aponta Marli Ribeiro Meira em Filosofia da criação.
Coletividade: Matilha Atuar no campo da coletividade artística hoje é também perguntar como lidar com a capacidade de instaurar um espaço onde seja possível criar arte com base na poética do cotidiano. Na configuração de novos processos artísticos, a potência das relações sociais vem sendo destacada por alguns pensadores da arte assim chamada pós-moderna. Nicolas Bourriaud, em Estética relacional, fala da obra de arte como interstício social, e conceitua arte relacional como “a arte cujo substrato é dado pela intersubjetividade e tem como tema central o estar-junto, o ‘encontro’ […] a elaboração coletiva do sentido”.4
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MEIRA, 2007. BOURRIAUD, 2009.
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O trabalho desenvolvido pelo Projeto Matilha junto ao grupo EIA orientou-se pelos conceitos da estética relacional ao privilegiar o encontro lúdico com o público, com ele fazendo uma construção sensível das ações em tempo real. Muitos foram os momentos de encontro estético e troca de saberes vários. Identidades multiplicadas, cruzadas e confrontadas entre si sentaram à mesa e beberam (literalmente) das ideias oferecidas como brincadeira, mas levadas a sério por cidadãos-artistas dispostos a “diluirem-se” por um tempo no espaço da cultura urbana. Talvez no modo híbrido da arte contemporânea estejam latentes algumas pistas para a retomada do “lado de fora”. Voltar-se ao espaço público como lugar de uma expressão estética genuína que se lança ao mundo para além da lógica neoliberal do resultado e do produto. Processo gerando processo ou work in progress. Risco, incerteza e variedade de leitura. Longe das verdades absolutas no terreno estético, a Matilha lança suas proposições criativas ao outro, apontando algumas formas de ver e fazer, mas deixando espaços permeáveis ao modo de criação coletiva, que é única e não se repete, dado que uma das maiores belezas deste processo artístico é ser tão vivo quanto inacabado.
Referências bibliográficas BOAL, Augusto. A estética do oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins, 2009. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2011. MEIRA, Marly Ribeiro. Filosofia da criação. Reflexões sobre o sentido do sensível. Porto Alegre: Mediação, 2007. PARDO, Ana Lúcia (Org). A teatralidade do humano. São Paulo: Edições SESC, 2011. RYNGAERT, Jean-Pierre. Jogar, representar. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
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REPÚBLICA FEDERATIVA DE PINDORAMA Agência Ficcional Desabitual Distrito das Ruas Agentes Ficcionais
CERTIDÃO DE TRANSCENDENTIDADE Certifico para todos os fins de revelação, confluência e transcendência, que _____________________________________________________________________________________ do sexo _____________________________ nascido(a) em __________/___________/_____
na localidade _____________________________________________________________________ Filho(a) de ______________________________________ e _______________________________
Sob as bênçãos de ________________________________________________________________ Passa a partir desse momento a ser ________________________________________________________________________ segundo seu próprio desejo.
O referido é verdade e dou fé. ____________________________________________
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TRANSCENDENTIDADE O depoimento de uma agente ficcional Lili Curado (agente social da dor): a minha identidade secreta desenvolve poderes atávicos na sociedade. Mobiliza sentimento de cura e de necessidade de transformação, abrindo um portal entre o que sou e o que desejo, através da visualização e aprovação de uma identidade que pensava não ser visível. Da recuperação de segredos ou de grandes momentos de dor não superados e carregados como cicatrizes, que ao serem reconduzidas à sua identidade encontram a força que necessitavam para enfrentar os problemas atuais. A princípio, havia um sentimento atávico... Eu, como xamã, mostraria o que aconteceria no futuro. Abrindo as portas da percepção, percebi que o futuro é recheado do que desejamos e de tudo o que somos. Era um jogo de reconhecimento de si. As pessoas buscavam a si mesmas, procuravam vestígios de uma identidade, queriam saber se essa identidade era visível, e aos poucos, por meio das perguntas e dos consentimentos que faziam, eu percebia que não era o futuro que queriam que eu visse. Havia a necessidade de contingência de um passado que as tornava o que eram. Elas queriam ver se eu lia o passado delas, se eu percebia o duro segredo que cada uma delas se esforçava tanto em guardar e perguntavam se mesmo assim haveria um futuro feliz. O jogo de cartas é dividido por temas, e as pessoas escolhem o tema do qual querem saber prioritariamente o significado, tendo um maior número de cartas a ser desvendado segundo a prioridade dada pelo consulente. É interessante notar, até pela curiosidade do fato, que a busca em geral era pelo amor. Este foi o grande tema prioritário a ser buscado e desejado, sendo ao mesmo tempo o menos procurado: o destino.
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Há um certo medo em relação a saber o que acontecerá no futuro. À medida que as cartas vão sendo viradas e as pessoas vão se encontrando nelas, ou seja, enquanto a identidade vai sendo revelada, elas começam a se sentir em paz em relação ao futuro. Se for possível ver na identidade as marcas que foram nos tornando aquilo que somos, é porque essa força nos pertence, e com ela podemos ter o domínio do que virá a acontecer. No dia 21 de abril de 2012, foram realizadas diversas leituras, mas duas foram as que mais me marcaram como agente. Um morador de rua que se declarou alcoólatra tinha dúvidas em relação ao amor, pois havia dois anos tinha abandonado os filhos e a mulher, mas tinha o desejo íntimo de saber se ainda era amado pela família, se ainda poderia aparecer perante eles. Outro momento marcante foi o de uma senhora que chegou acompanhada da filha perguntando sobre o amor, pois havia acabado de se divorciar e tinha quatro filhos com o ex-marido. Queria saber se ainda haveria chances para o amor de ambos. No decorrer da leitura, seguindo as prioridades levantadas por ela, foi revelado que a maior dádiva que ela tinha foi ter podido mudar o seu próprio destino. Ela era órfã e tinha vivido em um orfanato até a sua maioridade, e estava ali com quatro filhos criados, não havendo força maior que essa. Ela sabia que tudo ia dar certo e que o pior já passara. Alimentar os próprios desejos, ouvir os desejos profundos, é o que a transcendentidade faz: transforma as dificuldades socioculturais em destinos não determinados, na necessidade de continuar a construção do que somos, seguindo o imperativo da nossa vontade. Reconhecer a si mesmo mobiliza as forças interiores no sentido de dar importâncias diferenciadas aos problemas vividos pelos consulentes. A ânsia do questionamento e da pergunta do porquê (Por que comigo? Por que assim?) começa a se acalmar e curar quando em confronto consigo e com a sua força. Nesse dia, as emoções foram fortes e libertadoras e pouco a pouco todas as identidades em busca de si foram encontrando amparo em si mesmas e na sua profunda força interior. O trabalho individual termina com o abraço contenedor, em que um ser e outro se encontram e se cumprimentam pela caminhada. Namastê. Esta sou eu, agente Lili Curado em ação.
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BREVE HISTÓRICO O Projeto Matilha é um grupo de intervenções artísticas que acontecem em parceria com grupos e pessoas convidadas, como forma de pensar a criação, o encontro e a celebração coletiva. O primeiro trabalho surge em 2005, no SPLAC, em conjunto com integrantes dos grupos EIA e Bijari. Logo após, vieram Me Convida (EIA), Complexo de Vira-Lata e O Rottweiler de Deus e Sua Mãe (casadalapa) e Lona Rubra (Retrospectiva Zona de Poesia Árida). Dando continuidade ao seu processo, o Projeto Matilha vem investindo no convite para a criação compartilhada a partir de vivências transdisciplinares. Oficinas e intervenções performáticas em espaços públicos que geram um diálogo contínuo entre as propostas e a participação coletiva. O Projeto Matilha no projeto NA BORDA é formado por Fafi Prado, Floriana Breyer, Pedro Guimarães e Amandy Loba Poeta.
http://www.projetomatilha.blogspot.com
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LONA RUBRA apresenta:
TRANSCENDENTIDADE De Gervásio Pústula
uma quase farsa brasileira em 3 atos curtíssimos.
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ATO I ELE – Fucking bitch! Você é puta. Você é puta, que eu sei… ELA – (chora escondendo o rosto entre as mãos). ELE – (após uma longa tragada no cigarro) Eu te tirei da rua. Te dei comida, te dei um nome, te dei um lar. Pára com esse teatro! ELA – Mas eu sou branca e a tua família me aceitou ! PAUSA DRAMÁTICA. ELE – (transtornado, toma um longo gole da cachaça).
ATO II POLACA – (com forte sotaque polonês) Pois venha trabalhar comigo no meu Cabaret. Um mulato alto, forte e robusto como você… hum!
MULATO – Eu não confundo sentimentos com dinheiro. Sou um romântico! Um homem que passa pela vida sem amor é como um morto que caminha! (A cafetina Polaca solta uma longa gargalhada e anuncia a próxima atração da noite).
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ATO III (Jureminha, ao terminar seu show burlesco senta-se à mesa como pirata TUPI. Ela tem algo a confessar)
JUREMINHA – Após tanto tempo, tenho que finalmente confessar a minha identidade. Meu nome é Jureminha Tupã, a pin-up cabocla, banhada em águas doces e perfumada com pétalas macias de rosas vermelhas. Eu sou índia! Índia! PIRATA TUPI – (Canta uma canção em Tupi-Guarani safado: Patchio-Bari
Adios sireh. Os dois bailam juntos, felizes! Reconhecem um ao outro, enfim!)
FIM DO ÚLTIMO ATO.
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Intervir?
por Frente 3 de Fevereiro Em 5 de março de 2012 17:42, Daniel Lima <...> Fevs,
Na quarta passada, fizemos a reunião do projeto NA BORDA. Seguem as anotações abaixo.
Discutimos bastante as dinâmicas de segregação e exclusão da cidade de São Paulo (aplicadas a várias outras metrópoles brasileiras). Espaços como shoppings e suas políticas espaciais (lojas populares versus lojas caras), perfil do shopping elite e popular etc. Também nessa linha veio a ligação com a Daslu. Como estas políticas de segregação são apoiadas pelo poder público em várias esferas? Como são reveladas em dimensões diversas, como o uso da calçada, a localização, acesso?
Joana − Primeiro, a ação. A ação é aquela das lixeiras, que vocês ficam dentro das lixeiras e conversam com as pessoas. É isso? Daniel − É isso. Joana − Ou tem mais alguma coisa? Daniel − Tem a lixeira do SESC, a lixeira dourada, que a gente pensou também em abordar, porque afinal o livro também está relacionado a isso. Joana − Uma lixeira dourada? Daniel − Na exposição do SESC, o nosso trabalho é uma lixeira dourada, toda cravejada de diamantes, joias, bem na entrada do SESC. Joana − Então, tem algumas coisas que tenho pensado. Na verdade, é mais uma conversa, se vocês quiserem ir para outros caminhos... Brait − Falaram que você ia vir provocar a gente...
Joana −Então, a primeira coisa que pensei foi a seguinte. Tem uma ideia, a ideia da borda, que está permeando todo esse projeto. Não sei exatamente como as pessoas têm entendido a borda. Na verdade, acho A partir desse tema ACESSO, que a gente nunca discutiu isso coletivamente. Mas a ponte que faz uma passagem entre diferentes mundos, surgi- tenho estudado um pouco sobre essa imagem da margem. E tem alguns teóricos, principalmente na ram muitas reflexões. A Ponte antropologia contemporânea, que entendem a margem Estaiada foi pensada como símbolo dessa passagem, desse não como lugar específico, não como a periferia, ou acesso exclusivo a carros como um lugar distante do centro, mas como uma situ(sem entrada e permissão a ação. Uma situação de indeterminação. Pode-se enpedestres, ônibus, bicicletas tenter essa situação de indeterminação de diversas etc.). Assim como a Daslu, formas, mas é uma situação de impasse. E, nessa situreproduz a chave-carro que peração de indeterminação, abre-se um espaço de... Um mite a abertura de um portal. espaço. Um tipo de espaço. Só que, neste caso, é o poder público que instaura essa política de separação.
Brait − Ela colocou que na borda se instaura uma situação de impasse. A borda não é um lugar físico, não está longe do centro. A borda é um lugar onde as coisas podem nascer.
Fotos: Frente 3 d e Feve reiro
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O metrô da linha amarela (parceria público-privado), que submete todos ao corredor estreito, buraco de rato. A multidão que caminha como enxurrada nas esteiras embaixo da terra. Novamente no metrô, a terra subterrânea que se abre somente diante da chave que destrava catracas e portas guilhotinas. ACESSO à trama subterrânea que anda mais rápido que a superfície.
O ACESSO está também nas portas giratórias dos bancos, que estão sendo retiradas à força pelos processos civis. As portas giratórias de bancos que somente agora começam a ser consideradas instrumentos de humilhação e discriminação. As portas que travam e não lhe dão acesso. A porta transparente e travada. A porta constrangimento. E o porteiro-juiz da atitude suspeita. Outros dispositivos de exclusão que proíbem o ACESSO: a) O banco do ponto de ônibus, antes reto e possível de deitar, hoje com assentos individuais.
b) As grades pontiagudas que nos impedem de sentar na frente de bancos, lojas, restaurantes etc.
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Joana − Estou estudando antropólogos contemporâneos que pesquisam muito a cidade como escala. Na verdade, hoje não dá para se pensar a cidade como espaço físico, determinado, mas está tudo dentro do marco do urbano e a cidade é entendida como uma escala. O que significa isso? É uma escala na qual todas as escalas operam ao mesmo tempo. As escalas de vida, de experiência, de existência etc. Então é uma situação na qual existe um jogo de escalas que também determina certos jogos de poder. Eu vou dar um exemplo de uma situação: os campos de refugiados, os movimentos sem-teto, ou o movimento sem-terra. Em muitas situações desse tipo, você vai olhar e dizer “isso é campo”, mas ali se instaura uma situação que é uma situação de cidade, uma situação urbana, porque ali passam a operar milhares de escalas. O cara tem acesso à internet, tem acesso a organismos internacionais, de direitos humanos. É essa situação que vem sendo entendida dentro da antropologia contemporânea como uma situação de cidade, ou seja, que está dentro do marco do urbano. E aí, nessa discussão, pensa-se muito como é que se define então a invenção desses lugares. Como é que se define um lugar? E aí tem essa ideia de que é na margem que se funda tanto a possibilidade de ruptura, quanto o próprio Estado, a própria lei. A margem de que eu estava falando é, então, uma situação de impasse, de indeterminação, em que a coisa pode ir para um lado, pode ir para o outro. Então é isso: não é um lugar físico, é uma situação. Aí eu queria tentar pensar com vocês, porque a gente está dentro desse projeto NA BORDA, tentando entender a margem como uma situação que pode se instaurar em qualquer lugar. Ela tem uma dimensão que é física, é contextual, mas também é virtual, simbólica. Em que sentido as lixeiras são margem? Por que vocês criaram essa associação entre a situação de margem, indeterminação, impasse, e a lixeira?
c) As grades que protegem o lixo dos prédios e condomínios. Grade com cadeado para não revirar o lixo. Caixa-forte Brait − Porque a gente começou mapeando a cidade, e do lixo! d) O “lixo humano” expulso até debaixo das pontes. Novas invenções contra o lugar do morador de rua. Nem mais embaixo da ponte se vai...
essas lixeiras blindadas aparecem como um equipamento novo na história de vida da cidade, não é uma coisa a que a cidade estava acostumada. Começou de uns tempos para cá. Nas conversas com porteiros e síndicos, muita coisa interessante apareceu como um Por último, o ACESSO último, a discurso de defesa das lixeiras para proteger o lixo de última chave: a senha. É senha chuva, ou até que a prefeitura tinha imposto alguma para computador, para internet, coisa, mas eu acho que podemos pensar a lixeira, essa para e-mail, para celular, para lixeira blindada, como um elemento para pensar a bancos, para as diversas lojas,
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O terror higienista São Paulo insiste na repressão e usa o crack como desculpa para segregar pobres.
Wálter Maierovitch 14.01.2012
[...] Para acabar com uma Cracolândia, e sem um único posto de apoio médico-assistencial no local, a dupla Alckmin-Kassab, governador e prefeito, partiram para ações policialescas. Mais uma vez, assistiu-se à Polícia Militar atuando violentamente, sem conseguir expulsar os visíveis e expostos vendedores de crack.
A dupla busca a tortura físico-psicológica. Inventaram um novo tipo de pau de arara. Procuram, com o fim da oferta, provocar um quadro torturante e dramático de abstinência nos dependentes químicos. E, pelo sofrimento e desespero, os dependentes, na visão de Alckmin e Kassab, iriam buscar tratamento oficial. Esse torturante plano só é integrado no rótulo. A meta é “limpar o território” com ações militarizadas e empurrar para a periferia distante os “indesejados”. [...] http://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-terror-higienista/
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Pinheirinho, Cracolândia e USP: em vez de política, polícia! Raquel Rolnik 23.01.2012
03 de janeiro de 2012, região da Luz, centro de São Paulo. A Polícia Militar inicia uma ação de “limpeza” na região denominada pela prefeitura como Cracolândia. Em 14 dias de ação, mais de 103 usuários de drogas e frequentadores da região foram presos pela polícia com uso da cavalaria, spray de pimenta e muita truculência. Em seguida, mais de trinta prédios foram lacrados e alguns demolidos. Esta região é objeto de um projeto de “revitalização” por parte da prefeitura de São Paulo, que pretende concedê-la “limpinha” para a iniciativa privada construir torres de escritório e moradia e um teatro de ópera e dança no local. Moradores dos imóveis lacrados foram intimados a deixar a área mesmo sem ter para onde ir.
Domingo, 22 de janeiro de 2012, 6h da manhã, São José dos Campos (SP). Mi lhares de homens, mulheres, crianças e idosos moradores da ocupação Pinheirinho são surpreendidos por um cerco formado por helicópteros, carros blindados e mais de 1.800 homens armados da Polícia Militar. Além de terem sido interditadas as saídas da ocupação, foram cortados água, luz e telefone, e a ordem era que famílias se recolhessem para dar início ao processo de retirada. Determinados a resistir – já que a reintegração de posse havia sido suspensa na sexta-feira –, os moradores não aceitaram o comando, dando início a uma situação dramaticamente violenta que se prolongou durante todo o dia e que teve como resultado famílias desabrigadas, pessoas feridas, detenções e rumores, inclusive, sobre a existência de mortos. [...] http://raquelrolnik.wordpress.com/?p=5 443&preview=true
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para as redes sociais. A senha como segredo último e chave mestra. A senha que substituiu a assinatura, marca da singularidade individual. A senha que você não fala nem para a sua confidente, para seu companheiro, sua mãe... A senha que morre com você.
margem como situação, porque é um elemento urbano no coração do centro. As ações foram feitas todas no umbigo da cidade e, ali, esse objeto, esse elemento, é um instaurador de marginalidades. Ele isola o lixo dos catadores, que foi a nossa primeira visão ao buscar esse tipo de ação. É muito forte essa ideia de proteger o lixo. Essa lógica do lixo: aquilo que você despreza, aquilo que você descarta, quando está no espaço público, ainda assim, você é responsável por aquilo e O que seria uma terapia da quer proteger isso do cotidiano geral, seja só do catasenha? Compartilhe sua senha dor ou dessas outras questões, como proteção do lixo pelo menos uma vez na vida! Exorcize seu segredo final! em relação ao outro. Acho que fomos muito felizes ao lançar esse novo elemento a ser trabalhado na cidade, Enfim, ACESSO único, ACESSO porque essas lixeiras são, ainda, um agente estranho. líquido, ACESSO carro, ACESSO suspeito, ACESSO avesso, CHAVE Falando um pouco agora da intervenção, da experiênmestra, CHAVE única, cia, foi uma situação muito maluca e muito desconforCHAVE perdida. tante para as pessoas verem a gente dentro das lixeiras. O momento em que a gente estava dentro das lixeiras, “As sociedades disciplinares têm dois polos: a assinatura de certa forma, era um ruído muito forte, assim, no coque indica o indivíduo, e o tidiano, na passagem das pessoas. As pessoas não número de matrícula que indica conseguiam entender muito bem o que estava acontesua posição numa massa. É que cendo, se era um protesto, se era uma promessa, se era as disciplinas nunca viram inum martírio... E, sobre a sensação de estar lá dentro, foi compatibilidade entre os dois, e é ao mesmo tempo que o poder muito louca essa sensação, de você se colocar como é massificante e individuante, lixo, de certa forma, um lixo blindado, ainda que não lixo, mas um ser humano. Estando dentro da lixeira, isto é, constitui num corpo único aqueles sobre os quais se muitas coisas se passaram conosco. Teve um momento exerce, e molda a individuali- ali na Maria Antônia que um grupo de moradores de rua dade de cada membro do corpo. atacou a gente na lixeira. Vieram dando paulada... Nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura e nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades disciplinares são reguladas por palavras de ordem (tanto do ponto de vista da integração quanto da resistência). A linguagem numérica do controle é feita de cifras, que marcam o acesso à informação, ou a rejeição. Não se está mais diante do par massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se ‘dividuais’, divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou ‘bancos’”. (Gilles Deleuze, Conversações [Post-scriptum sobre as sociedades de controle], 1990).
Joana − Sério?
Brait − Sério. Pulando e batendo na lixeira... Daniel − Mas brincando... Brait − É, num tom de brincadeira, mas aquela brincadeira agressiva de um moleque de rua, né? Craquei ro. Então ali você estava meio que protegido. Ao mesmo tempo que estar dentro da jaula chama a atenção dos caras para vir interagir contigo, a agressividade deles não vai chegar em você porque você está protegido ali. Isso foi uma sensação, assim, doida, também. De chamar a atenção. De, com um gesto simples do corpo, colocar-se numa situação de estranhamento com a cidade. Que é você estar dentro do negócio, colocando-se como lixo e, ao mesmo tempo, continuando um ser humano, né? Felipe − É, acho que a lixeira traz essas duas dimensões da questão do urbano, de que você falou. Uma é
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PM faz craqueiros darem volta em quarteirão de rua folha.com.br 16.01.2012
Após o veto ao uso de balas de borracha e bombas de efeito moral na cracolândia, carros da Polícia Militar organizam uma verdadeira “procissão” de craqueiros pelas ruas do centro.
Na madrugada de ontem, a Folha viu um grupo de mais de 70 usuários guiados por um carro da Força Tática dar a volta em um quarteirão e retornar para onde estavam em dez minutos. A caminhada começou às 2h04, quando o carro se aproximou dos usuários, concentrados na rua dos Gusmões, e começou a “empurrar” os dependentes. Poucos minutos depois, o mesmo grupo de usuários refazia o trajeto, impulsionado pelo mesmo carro.
Usuários tentavam se desfazer do controle da polícia. “Vamos espalhar! Espalha!”, gritava um deles.
Ainda assim, o carro continuou orientando o movimento de uma parte do grupo. “É a procissão dos aflitos”, definiu o morador de um dos prédios da rua que observava a caminhada.
José Severino Duda, 51, porteiro de um edifício próximo, diz que a ação, que se repetiu em outros pontos da cracolândia na última semana, acontece “quando a polícia está de bom humor”. [...] http://www.observatoriodeseguranca.org/node/4493
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Em 16 de março de 2012 19:49, Felipe Brait <...> Fevs,
Faço algumas reflexões complementares.
A lógica de se pensar o ACESSO passa por um ponto de investigação nosso tal qual a experiência de trabalhar com o muro. Como replicar? Ou como desenvolver um jogo a partir dessa ideia é o que estaria em questão aqui? Ou pensar essa noção de ACESSO também a partir de dados que já passaram pelo universo do coletivo, como: abadá x pipoca, caso Carrefour, caso Casas Bahia, MÃE PRETA, Lei de Cotas, babás-amas-de-leite, acesso público ao julgamento dos assassinos do Flavio, invasão da bandeira na festa de abertura da Copa.
O ACESSO como ponto de ruptura me parece ser um caminho mais interessante e potente de trabalho do que esse caminho do ACESSO individual – compartilhado, não por medo de compartilhar senhas, mas pelo caráter “individualizador” do conceito. Pensar ACESSO como CHAVE, sim. Que o conceito de ACESSO seja o gatilho de disparo entre nossas vontades político-estéticas (ação final) e nosso discurso F3F (reflexões etno-sociais). Daí vamos tomar essa base conceitual do ACESSO como gatilho e explorar as fissuras da sociedade de controle. Está aí o texto do Deleuze pra mostrar isso. AÇÃO-CHAVE deflagrando o ACESSO. Passagem, movimento, mutabilidade descontínua do homem pós-moderno. ACESSO entre a senha da individualidade e o adestramento da multidão? Seria o indivíduo nesse magma de multitudes ou seus destinos que nos interessa? É uma operação
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a dimensão material mesmo, pois ela é um negócio de ferro, feito para não deixar que as outras pessoas mexam no lixo. É um elemento de exclusão material mesmo. Catador não consegue mais pegar a latinha para vender na reciclagem. Mas, por outro lado, também traz essa dimensão simbólica de um projeto de cidade excludente, refletida ali naquele equipamento simples. O cara talvez nem tenha pensado em toda essa dimensão, mas, quando ele a coloca ali, isso aparece. Daniel − A gente olha para a lixeira porque tenta buscar um olhar que não é o olhar hegemônico para as coisas que são – digamos – o natural, o cotidiano, o normal da cidade. O que, desse cotidiano com que a gente convive, tem algo de excepcional, tem algo de dispositivo completamente revelador e, ao mesmo tempo, novo, como essas lixeiras-cofres, essas lixeiras trancadas? Como a gente consegue fazer com que o olhar passe pela borda, mas não no sentido da borda como marginalidade, mas no sentido de que ele não é o cotidiano natural, o hegemônico? É um olhar que vai buscar outra coisa, outra topografia da cidade. Acho feliz esse dispositivo, acho que a nossa ação está no começo, pode ter vários desenvolvimentos, mas só revelar esse dispositivo é muito interessante, porque, como o Felipe falou, tem algo de exclusão material. Isto é, se já existia todo um agrupamento de pessoas que viviam do lixo da cidade, desse que era o lixo desprezado, agora, depois de toda a onda ecológica, o lixo começa a ser valorizado por conta da reciclagem de materiais, e o Brasil é o país que mais recicla. Então, mesmo sendo considerado, hoje, um elemento-chave na responsabilidade social do governo, das empresas, mesmo assim, a gente tem na cidade um mecanismo de exclusão do catador desse lixo, que, antes, era o estereótipo dessa marginalidade. Ou seja, você vive do lixo, vive daquilo que a sociedade põe para fora, que não quer mais e, mesmo estando dentro desse circuito, você sofre um processo excludente. Isso é muito a cara de São Paulo, essa força, o tempo inteiro, de exclusão. Sem falar na questão estética que tem esse dispositivo, que, se a gente não exercita o nosso olhar para conseguir ser estrangeiro à própria realidade, a gente olha para isso e acha normal, mas é um negócio completamente grotesco na cidade, na calçada, que já é uma calçada difícil em São Paulo, essas caixas fechadas, muitas vezes vazias, às vezes com lixo, mas um dispositivo de controle. Para eviden-
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interessante de jogo. Jogar com ciar isso, a gente usou um mecanismo, que na arte conos ACESSOS, seus pontos de temporânea existe em muitos processos, essa coisa de origem, de passagem e de desse colocar corporalmente. E, ao se colocar lá dentro, a tino... É um caminho. Pensar também nas questões dos moradores de rua, numa ótica pós-ação CRACOLÂNDIA janeiro-2012 e o espetáculo da brutalidade policial, e, no contexto específico de São Paulo, deslocamento de população – remoções, especulação imobiliária pós-Itaquerão, conflitos na USP, marchas na paulista, movimento acampa sampa, enfim, atravessamento de percursos. Sugiro a ideia de pensar também no CARRINHO, os carrinhos dos craqueiros, os carrinhos camelôs, os carrinhos de catadores, são bons dispositivos pra jogar com a urbe. Enfim, foi uma pirada, mas creio que presencialmente a gente consiga produzir melhor nossa ação. Ela deve estar elaborada para a conversa pública no dia 28/03? Como apresentar isso? Como vamos nos organizar? Abxx Brait
Em 19 de março de 2012 12:28, Daniel Lima <...> Fala Fevs,
Muito boa colocação, Brait. Você deixou mais claro que devemos pegar este mote ACESSO para ir longe.
Não creio que exista essa dicotomia entre ACESSO individual/individualizador e o ACESSO como ponto de ruptura/separação. Creio que são parte do mesmo processo. Antes tínhamos a assinatura que abria todos os mundos que precisassem de uma comprovação de identidade. Isto nos colocava, em todos os acessos, diante de uma
gente traz também uma discussão que está no cerne do aparecimento da lixeira como trabalho, que é a situação da cracolândia, sobre a qual, vez por outra, você vê a expressão sendo cunhada, de lixo humano. Da ideia de que existe uma parte da sociedade, uma parte jovem da sociedade, que é considerada como a escória, como a escória da escória, o nível mais baixo da sociedade, que hoje em dia é reconhecido no usuário do crack, em toda essa manifestação, como falava o Osvaldo [em entrevista para o Política do Impossível no livro Cidade Luz], essa manifestação política que é a cracolândia. Maurinete − O que me chamou a atenção foi no sentido de qual era a linha, o que tinha de continuidade com os trabalhos que a gente fez. O 3 de Fevereiro tinha uma linha, e eu queria ver em que momento a gente poderia mostrar qual era a linha. É que a gente vive numa arquitetura da exclusão. Essa arquitetura da exclusão se manifesta, do ponto de vista arquitetônico, na cidade aquartelada, na cidade que não é para convivência. É uma cidade feita para não reunir as pessoas. Ela teme aglomeração, teme o ajuntamento. E a questão da lixeira é inovadora, porque evidencia justamente a questão da propriedade. Por exemplo, a rua é pública, mas eu boto um objeto e aquele objeto é referente àquele prédio, e ele tem uma pessoa que cuida dele, que é o zelador, ou o síndico. Você desapropria as pessoas, aquilo que é coletivo passa a ser privado. É uma nuance da cidade, uma característica da nossa cidade. Você não tem a convivência, você aquartela e proíbe. Naquele momento em que eu fecho e boto o cadeado, ela é minha. Esse lixo, então, me pertence. E, quando isso me pertence, expropria aquele que o próprio sistema manifestou como uma categoria, aquele que tem necessidade daquilo, que são os catadores. Ele não pode mais retirar a substância do trabalho dele. A lixeira evidencia isso. Quando a gente entrou na lixeira, o incômodo que dava, ao meu ver, é exatamente porque a lixeira, quando você passa, é invisível, mas, ao entrarem pessoas, seres, que não eram lixo, você é obrigado a mergulhar nesse estranhamento, que, antes, era normal, era para a nossa segurança. A divisão da cidade se dá por isso, pela segurança. Alguma coisa sempre é proibitiva, tem uma razão de ser. Quando uma pessoa
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mesma chave, uma mesma marca individual. Hoje, somos impelidos a criar infinitas chaves (senhas) para infinitos mundos. Pensemos em quantas chaves temos e quais mundos parciais elas abrem. A sociedade de controle se sustenta na capacidade de restringir e dar acesso. Criar filtros, peneiras, tramas em que passem parte da parte daqueles que têm a chave. É fundamental que todas as instituições (que precisam da circulação dessas individualidades) tenham sistemas que permitam a passagem de somente uma parte de nós.
Com ou sem trabalho, todos têm que consumir. Por outro lado, o Estado vive no limite que exclui uma imensa parcela da sociedade de seu direito íntegro de cidadão. Então, como esse sistema integrado público/privado pode controlar o que entra e como entra? Entre os diferentes fluxos que fazem parte do mundo, como criar portas seletoras automáticas? Tornar-nos divisíveis quer dizer que temos acesso a parte de um mundo, em que entra apenas parte de nós. Nunca a senha abre todo o sistema.
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entra na lixeira, a outra se sente incomodada, porque tem um momento em que ela precisa ver, um momento de relance, em que ela precisa raciocinar sobre aquilo. Brait − Como se fosse uma extensão da vida privada na vida pública, não é? Um pedaço do seu quarto. Você deixa o lixo na calçada, fora da sua casa. Aquela vida privada que você não quer dentro da sua casa. Daniel − E que você protege. Brait − Você protege, é meu, é nosso. Daniel − E tranca. Brait − E tranca, exatamente. Mas o que essa investigação está tentando fazer é olhar esse dispositivo como algo que a cidade criou, algo que brotou da cidade. A lixeira realmente parece que brotou, com aquelas pernas que saem da calçada, algo que brotou da cidade e que é muito revelador de como funciona a cidade, de como funciona a lógica do condomínio, a lógica de isolamento do condomínio, e tudo mais. Will − Mas veja que é uma questão de segurança, não é? Quando você coloca o cadeado naquela lixeira, você está assegurando que, da mesma forma como você tranca a porta da sua casa, um outro qualquer não invada aquele lugar. É muito engraçada essa ligação também.
Daniel − E é interessante que outra estratégia que a gente usou para revelar a lixeira como um elemento da cidade – sendo um elemento invisibilizado, então como tornar visível? – foi pintar de dourado, criar essa coisa da lixeira como uma joia. É interessante o mecanismo, porque a gente está apontando que o próprio mecanismo de segurança, o próprio mecanismo da grade, é o bem A lógica é a mesma dos muros maior dessa classe que exerce esse poder. É isso que invisíveis, mas com uma truvale para ela, porque, no final das contas, talvez o que culência distinta, com uma sutileza distinta, com um con- deva ser protegido é a própria ideia da segurança, a própria ideia de que estou isolado do outro, isso é o que trole mais refinado no caso devo preservar, isso é o meu bem maior, é não conviver, das estruturas digitais. Mas toda necessidade de controle não abrir a porta, não ter essa membrana permeável. nasce da mesma lógica. Talvez Brait − Essa exclusividade. o que distinga seja um controle bruto e um controle fino, mais Daniel − Exato, essa exclusividade é o que vale. imperceptível. Veja a questão das portas giratórias dos bancos. Estes dispositivos barram o que consideram “suspeito”. É a falsa imagem da porta seletora
Maurinete − Penso na dificuldade que a gente tem de analisar as coisas de outra forma. Para mim, hoje em dia os arrastões são um grande deboche. Isso os próprios delegados sabem, que, quanto mais você aquartela, mais dispositivos se abrem para a pessoa in-
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automática, que seria como uma real porta detectora de metais. Mas, na maioria dos casos, é segurança apertando um botão de trava. Esse é o controle bruto. E que parte de nós não pode entrar? Aquilo que o segurança manda você tirar! É o filtro tosco. Por isso, está entrando em desuso. Saindo de circulação. É um dispositivo arcaico para o capitalismo atual.
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vadir. Uma discussão que os arquitetos fizeram na Vila Madalena foi exatamente deixar os murinhos baixos, porque você não tem desejo de entrar, porque não é inacessível, porque exatamente tem a convivência. Isso para mim é incrível, e as pessoas não percebem, a gente não percebe. É um grande deboche, e ninguém para e diz: vamos discutir isso? Isso, sim, para mim, é borda. É uma resistência que a gente não está entendendo que é resistência.
Joana − Então, eu queria falar algumas coisas que fui captando. Uma coisa que achei muito legal é a do insNo mesmo caso dos bancos, taurador de marginalidade, que tem tudo a ver com quando estamos diante de um caixa eletrônico, temos a porta essa coisa da margem, que é um lugar, que é uma situação, na verdade, de indeterminação. Outra é o moseletora automática: a senha mento em que alguma coisa se transforma em um bem inicial. Depois de outras (evidentemente, porque o lixo sempre foi um bem), em senhas, entramos no mundo da circulação financeira. um bem que tem um mecanismo de funcionamento, Ali podemos movimentar. Levar porque nos mostra que qualquer coisa que se transvalores de um lugar ao outro. forme em um bem comum pode ser expropriado. Assim, Mas que parte nossa não entra? pode ser qualquer coisa. Se o lixo foi, outras coisas vão Tudo o que não sejam números. Dentro deste mundo financeiro, aparecer para serem expropriadas. Fiquei pensando bastante nisso. Outra coisa é a questão de que esse não podemos acessar infinitos confinamento é para proteger a própria proteção. É um outros mundos. Para investir confinamento identitário mesmo, você se confinar no na bolsa, por exemplo, outro fluxo financeiro, precisamos que você representa socialmente, e você tem medo de de novas chaves. Este é o não ser mais aquilo. Então você protege a própria procontrole fino, que se multiteção da sua identidade. plica atualmente.
Como tornar visíveis essas chaves (bruta e fina)? Acho que podemos pensar numa sequência de ações que envolvam a visibilização da chave, do controle, do acesso. Tornar visível o invisível. Seja no campo físico, seja no digital. Assim poderíamos criar uma narrativa que envolva a discussão do acesso, as ações de ruptura... abr dcfl
Daniel − E é interessante porque o trabalho todo começou como uma coisa muito imaterial, a gente discutindo a ideia de uma sociedade disciplinar que tem todos esses dispositivos materiais, e o que seria uma sociedade de controle, em que esses dispositivos de controle seriam imateriais. Mas é interessante ver como a gente tentou trabalhar com o plano imaterial e foi caindo numa coisa que é tão material, o que, para a gente, é uma novidade, ter esse envolvimento do corpo, de ser uma performance corporal.
Will − Tem uma coisa na história das lixeiras também que é muito engraçada. Se a pessoa está lá catando lixo, já é complicado. Agora, se você está dentro, aí não, aí já é demais esse negócio. Porque você não concorda nem que a pessoa vá lá e cate o negócio, ou recicle, ou pegue, e tudo mais. A pessoa tem essa preocupação, esse estigma, de que você está dentro do negócio: o que você está fazendo lá dentro? O que você quer provar com isso? Você é lixo? Se você for lixo, eu nem falo com você.
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Maurinete − A frase mais impactante que eu achei foi a daquela senhora quando nos viu, que disse assim: “Nossa, eu me acho um lixo.” Brait − “Eu me achei um lixo.” Maurinete − “Eu me sinto um lixo.” É essa reflexão de, em algum momento, o que representa aquilo. Acho que é um olhar desconfortável. É a mesma coisa que a gente dizia do quarto de empregada, que é a mesma coisa que uma senzala. Então, quando você vê outra pessoa no lixo, é esse incômodo que ela sente: ela se revê. E revê mais do que a própria lixeira. E é gozado, vai para outra dimensão, de se sentir um lixo. Aquela frase dela ficou remoendo muito.
Imag ens retiradas do vídeo criad o pe la Frente 3 de Feve reiro http://yo utu.be/dGzHwCgpMCc
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Joana − Me lembrou aquele trabalho do GAC, em que eles colocam a cerca em volta do corpo, fazem tipo uma cerca, supertosca, só que de papelão, uma coisa meio de deboche: “Ah, são cercas particulares?” Só que eu gosto mais desse trabalho de vocês, porque ele se apropria de uma dimensão material da cidade, que está na cidade, vocês não estão inventando o negócio. Como assim o lixo pode ser privatizado dessa forma? Will − Quanto à privatização, isso só aparece quando se começa a entender que lixo reciclável dá um certo dinheiro, é só a partir disso. Antes, a gente não via isso. A gente sabia da preocupação de se colocar lixo na rua, vir a chuva e levar para o bueiro... Mas quando a gente começa a ver que certas coisas que estão lá valem um certo dinheiro, então, a partir daí, sim, começa a haver essa preocupação: opa, se é dinheiro, vamos
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“Integrar as pessoas da cidade coíbe a violência”, diz arquiteto Evandro Spinelli, 04.06.2012
José Armênio de Brito Cruz, 52, assumiu no começo deste ano a presidência do departamento paulista do IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil) com uma festa em pleno centro de São Paulo e a meta de mostrar à sociedade que os arquitetos conhecem as técnicas para construir uma cidade melhor. Ele diz que a segregação dos condomínios fechados é uma das causadoras da violência e afirma que é preciso que as regiões da cidade sejam ocupadas por pessoas de todas as classes sociais. [...]
Também houve um tempo em que condomínios fechados eram moda, e agora há uma discussão de que isso deve voltar a se integrar à sociedade. Essas afirmações que você diz, da moda, vamos entender isso enquanto afirmações de direções. O condomínio fechado é uma privatização do espaço. Aqui, só entra quem é dono. Isso, para a cidade, não é bom, porque a partir do momento em que você diz que aqui só entra quem é dono você está dizendo que milhões de pessoas estão ficando fora. Talvez, esse milhão de pessoas não fique muito contente de ficar fora daquele espaço. Existem teses na USP que já evidenciaram que, ao mesmo tempo em que cresceram os condomínios fechados, a violência também cresceu. A segregação, tecnicamente, é um elemento que aumenta a violência. Seja a segregação do rico no condomínio fechado, seja a reprodução disso nas camadas mais pobres, a integração é contra a
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tomar um pouco mais de cuidado. Daniel − Quando a gente evidencia esse dispositivo, já é uma transformação do dispositivo, uma dimensão do olhar para esse dispositivo e, portanto, uma expansão das ligações que podem ser feitas. Mas eu acho que um elemento que foi se configurando à medida que a gente foi fazendo as experiências de ação foi o fato de não ter a figura isolada de uma pessoa dentro da lixeira, de ser sempre mais de uma pessoa, pois a gente sempre se colocou em bando dentro da lixeira. Eu acho que isso tem uma ideia de convivência, mesmo que seja dentro desse espaço. Mantém uma ideia de que existe um corpo coletivo. Joana − Tipo “vocês não vão tirar isso da gente”. Maurinete − Para mim, volta aquela questão da convivência. É disso que se tem medo, da praça, da aglomeração. Isso é uma coisa muito efetiva, a rua acabou, você não dialoga com a rua, você anda na rua correndo. Se alguém pergunta as horas, você responde e sai correndo, você não dialoga, não olha para o outro, o outro é uma pessoa perigosa. Uma coisa que me chamou atenção, e aí já é uma função minha de socióloga, foi o lugar em que a gente foi fazer a intervenção, o Largo de Santa Cecília. A primeira coisa que você vê é a igreja de Santa Cecília. E é gozado, porque o pátio da igreja é o que tinha de mais coletivo, o pátio era uma praça, mas hoje está todo cercado. Cortou-se o que a igreja representava. Mas repare que em Aparecida ainda tem aquele pátio. Você corta as coisas mínimas e ninguém vê. Era o lugar do perdão, o lugar a que eu tinha direito, entendeu? É nesse sentido que a cidade vai sendo toda modificada. Joana − Tem uma questão que, para mim, ainda não está muito clara, que é esse esgotamento da política de representação. A gente descobriu toda uma forma de embate simbólico, percebeu que o embate simbólico inscreve a realidade de fato. E isso foi superapropriado, mas, hoje em dia, a gente está tentando entender outras formas de embate, que não abrem mão da dimensão simbólica, dessa dimensão imaterial, óbvio, que é o que a gente sabe fazer, mas o que vocês estão falando aqui é da coisa material. Do mesmo jeito a gente do Contrafilé; parece que há uma urgência, uma necessidade, então construímos um parque. Tem uma imagem, tem um símbolo ali que circula, tem uma dimensão simbólica que circula, mas é um negócio gigantesco, então
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violência. Essa exposição, essa disposição em qualificar a cidade, na verdade, é a disposição de ver que nós somos uma sociedade que tem diferenças. Diferenças econômicas, diferenças culturais, mas que pode conviver. [...] Tem aquele caso do Pinheirinho, que chegou na Justiça, se a arquitetura tivesse entrado em pauta o projeto mostraria que é viável, sim, a comunidade que estava lá permanecer lá, e aquilo ser um pedaço de cidade saudável, inclusive com exploração imobiliária, com a população de lá, e efetivamente virando cidade, como qualquer cidade do mundo que não segrega. A atitude que nós não achamos saudável é aquilo virar um espaço segregado, de uso unicamente para um setor. A cidade é mais saudável quanto mais misturada ela está, seja do ponto de vista de classe social, seja do ponto de vista de uso, seja do ponto de vista cultural. Isso é o que a gente defende. Quando a arquitetura entra em pauta, no projeto você vê: olha, dá pra conviver. [...] O que o sr. está dizendo é que lei deve prever a possibilidade de condomínios fechados, mas deve induzir outro tipo de política de desenvolvimento?
É. Deve induzir um território integrado. Daí nós vamos chegar em qualificação do espaço público e potencialização da infraestrutura existente. Isso tudo é investimento público prioritariamente.
Pode ser feito em conjunto com a iniciativa privada. É investimento da sociedade. O governo investe muito na cidade, muito, mas a questão é saber como investir. É a questão que
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a gente criou uma dimensão material. E por que isso? Por que será que a gente está indo para esse lugar agora, de uma dimensão supermaterial? Brait − Acho que existe uma pressão, de você ter que criar uma representação estética. Você está sendo convocado a fazer um trabalho de intervenção urbana, então o que você vai fazer com a cidade? E o nosso trabalho, apesar de material, foi superefêmero, comparado ao grupo que fez um monte de camisetas. Você precisa chegar numa forma, acho que isso pressiona um pouco, você ter que chegar numa materialidade. Se não, a gente só ficava discutindo, discutindo, discutindo, e entregava um texto, não precisava nem fazer intervenção. Daniel − Desse ponto de vista, é muito mais a defesa de uma estratégia do que propriamente uma pressão. É a gente incorporando uma estratégia que sempre foi uma estratégia nossa. Acho que essa foi uma das linhas que nos diferenciou nessa situação em que todos os coletivos estão colocados, esse projeto é muito revelador disso. Acho que existe um esgotamento dessa política de representação do embate com a cidade, com a sociedade hegemônica, com todas as forças do capitalismo. A gente aprendeu muita coisa sobre como fazer isso durante dez anos, todos os grupos aqui criaram importantes trabalhos sobre essas dinâmicas, só que isso vai se esgotando. Entram outras forças em jogo, como a publicidade, que se apropria muito dessas imagens, da imagem do ativista, daquele que sai, como a gente fazia, colando cartazes. Hoje em dia, a propaganda de jeans faz isso. A gente sabe que tem um esgotamento, mas para que lado a gente pode ir? Cada grupo tenta escolher um caminho que seja revelador, que dê uma profundidade, uma luz no final do túnel, um horizonte, e pra gente sempre foi a pesquisa, o que também é semelhante ao Contrafilé. Diferente de outros grupos, a gente sempre teve uma ideia de que tem que pesquisar. Nosso processo de ação tem que ser colado com a ideia de reflexão, retroalimentando-se. E tem que ir sistematizando essa pesquisa, por isso a insistência em produzir documentário, em produzir livro, em produzir uma obra que tenha um entendimento, em vez de apontar para o nonsense completo. Ela tem um entendimento e nunca se basta como obra estética, possui outros elementos com os quais você pode ir cercando um tema, criando um contexto. Neste sentido, nesse trabalho a gente fez o bê-á-bá do que a gente sabe fazer, que é iniciar um tema de pesquisa, cercar o
F oto: Marcos Villa s B oas
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estamos discutindo. Qualificação do espaço público. Mobilidade na cidade é fundamental na democracia, você poder andar para onde quiser o mais facilmente possível. A questão da habitação. Nós temos um deficit habitacional enorme, de milhões de pessoas, o que gera subnormalidade, o que gera favela, porque as pessoas têm direito à cidade. Isso está previsto em lei, a Constituição prevê que o Estado deve prover moradia às pessoas. E essa moradia é a cidade. Nossa casa é a cidade, não é só o nosso quartinho fechado. A gente sai, está na rua. E o pano de fundo é a integração disso tudo. [...]
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tema, ir girando, girando... Tinham vários dispositivos que a gente tinha escolhido, até ir percebendo, no tema de acesso, que o dispositivo que estava gravitacionalmente puxando a gente, que estava nos atraindo, era esse. Até que fomos chegando em uma ação que é muito material, que envolve o corpo e tudo o mais. E agora a gente tenta fazer a sistematização disso e colocar dentro do livro. Maurinete − Olha, para mim foi simples, porque os pontos que a gente levantou são os pontos que, em termos de investigação, sempre me incomodaram. Por exemplo, um dos primeiros momentos pra gente foi a questão da Daslu. O fato de ela comprar uma calçada onde o pedestre não chega. São coisas que a cidade tem que são aberrações, que ninguém se pergunta se é legal, se serve. Não é uma cidade democrática, como aquele refrão, não é uma cidade para todos.
O sr. acha que nós estamos num mo- Felipe − Mas eu acho que esse movimento também tem a ver com o contexto mais amplo. Eu enxergo mento rico dessa discussão? Acho que a gente está mudando. Quando a gente fala da sedimentação de uma cultura urbana, isso faz parte da cultura urbana. Nós somos egressos do campo. Eu nasci aqui, mas na minha geração muita gente veio de fora, do interior, do campo. A gente está construindo essa cultura urbana, e faz parte dessa cultura urbana, assim como ir ao cinema, faz parte discutir a cidade, a comunidade estar organizada, a informação estar transparente, pautar essa discussão. Acho que é um momento rico nesse sentido, a gente está amadurecendo a cultura urbana no Brasil. A partir do momento em que nós viramos um país urbano. E o mundo está de olho nas cidades. Porque o mundo está se urbanizando, e a questão dessa divisão do território para nós, países de terceiro mundo, países emergentes, ela é fundamental. [...] http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1099762-integrar-as-pessoas-dacidade-coibe-a-violencia-diz-arquitet o.shtml
que, se a política de representação se desgastou, na última década ela vem readquirindo espaço. Acho que a década de 1990 foi uma década em que a política havia acabado. Particularmente na América Latina, isso vem mudando nos últimos anos, e o Brasil faz parte disso. Então, essa política mais institucional, essas questões mais materiais voltam num horizonte em que se tem o que fazer dentro desse espaço. Não é um espaço totalmente fechado a que você só pode ir de forma mais simbólica. Acho que isso se reflete no trabalho dos coletivos.
www.frente3defevereiro.com.br frente3defevereiro@yahoogroups.com Frente 3 de Fevereiro, nesta investigação-ação, é formada por Daniel Lima, Felipe Teixeira, Felipe Brait, Maurinete Lima, Pedro Guimarães e Will Robson. Participação: Antonio Brasiliano, Joana Zatz (Contrafilé) e Élida Lima Fotos: Frente 3 de Fevereiro, Élida Lima, Peetssa e Marcos Villas Boas
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1. Encontre dois postes que tenham distância de dois metros e meio. Caso não encontre, podem ser utilizados duas árvores, uma árvore e um poste ou dois outros objetos que possam servir como suporte para a fixação da rede.
2. Amarre uma corda ao suporte de fixação para que possa funcionar como o gancho da rede. 3. A rede com a corda deve ter pelo menos 50 cm a mais que o espaço escolhido. 4. Amarre a rede pelo menos a 1,70 m de altura. Caso não seja alto o suficiente leve um banquinho. ATENÇÃO: recomenda-se que na parte central a rede fique a um metro do chão para que possa ceder com o seu peso.
5. Teste a rede antes de repousar o corpo. 6. Convide seus amigos e leve livros, jornais, óculos, bebidas e guarda-sol se necessário. DICA: Desfrute seu momento de descanso e na hora da partida deixe tudo aquilo que puder para que outra pessoa também possa descansar.
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1. Transforme-se em uma imagem vendável. DICA: pense nas roupas, cabelo e expressões faciais. 2. Faça uma placa e coloque todas as informações da venda e vista-a. Depois de pronto fotografe-se. Caso não tenha alguém para fotografá-lo programe sua câmera para disparo em 10 segundos e posicione-a a 2,5 m de distância de você, aproximadamente a 1,2 m de altura. Faça o teste e ajuste a distância se necessário. 3. Coloque a foto em seu computador. O arquivo deve ter no máximo 1MB. Confira suas propriedades, facilmente acessadas com o botão direito do mouse. Caso a imagem exceda este tamanho, busque um editor de imagem de sua preferência. 4. Coloque sua imagem no sistema RGB. 5. Acesse www.blockposter.com e faça o upload de sua imagem. 6. Você poderá escolher o tamanho que quiser. Lembre-se que o papel A4 tem 21x29 cm e calcule o seu tamanho dividido pelos papéis para descobrir quantas páginas serão necessárias (uma pessoa de 1,60 m precisa de aproximadamente 6 folhas de altura por 4 folhas de largura). O programa irá gerar um arquivo em PDF. 7. Faça a impressão a laser. Obs.: você pode escolher PB ou colorida. 8. Monte sua imagem colando as emendas com cola branca. 9. Deixe secar. 10. Escolha o melhor lugar para colocar-se à venda. Sugestão: aproveite muros, postes, vitrines e pontos de ônibus. Superfícies lisas possuem melhor aderência. 11. Faça a mistura de cola branca com água, colocando os dois produtos na mesma medida. 12. Com o rolinho de espuma passe a mistura de cola nas superfícies onde quer colar a foto e também no verso da imagem. 13. Posicione sua fotografia e cole-a na superfície. Em seguida passe o rolinho novamente na imagem em movimento de dentro para fora, retirando bolhas de ar e fixando-a melhor.
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cidade ci.da.de sf (lat civitate) 1 Povoação de primeira categoria em um país; no Brasil, toda sede de município, qualquer que seja a sua importância. Área urbana especialmente reservada para asilar pessoas que cometeram delitos involuntários; ficavam elas a salvo da perseguição dos vingadores e podiam ser julgadas por representantes autorizados da sociedade. Comunidade residencial planejada ou zona residencial planejada de uma cidade, nas quais por norma legal a área coberta de edifícios não pode ultrapassar determinada e pequena porcentagem da área total, sendo a área restante reservada para parques e jardins. “Diante da necessidade de construir rapidamente cidades inteiras, nos dispomos a construir cemitérios de concreto armado, em que grande parte da população está condenada a morrer de tédio. Bem, para que servem os inventos técnicos mais assombrosos que o mundo tem à sua disposição, se faltam condições para tirar proveito deles, se nada acrescentam ao ócio, se falta imaginação” (Outra cidade para outra vida. Constant. Internacional Situacionista n. 3 / dezembro 1959) “Nosso campo de ação é portanto a rede urbana, expressão natural da criatividade coletiva, capaz de compreender as forças criadoras que se libertam com o declínio de uma cultura baseada no individualismo.” (Outra cidade para outra vida. Constant. Internacional Situacionista n. 3 / dezembro 1959)
especulação imobiliária: fenômeno pelo qual “alguns terrenos vazios e algumas localizações são retidos pelos proprietários, na expectativa de valorizações futuras, que se dão através da captura do investimento em infraestrutura, equipamentos ou grandes obras na região ou nas vizinhanças. Isto provoca a extensão cada vez maior da cidade, gerando os chamados ‘vazios urbanos’, terrenos de engorda, objeto de especulação.”. ROLNIK, Raquel. O que é a Cidade. São Paulo: BRASILIENSE S. A.
público adj. Que se refere ao povo em geral: interesse público. Relativo ao governo de um país: negócios públicos. Manifesto, conhecido por todos: rumor público. A que todas as pessoas podem comparecer: reunião pública. Sinônimo de público: apregoado, auditório, comum, manifesto, notório, povo e sabido.
privada pri.va.da sf (fem de privado) latrina.
privado pri.va.do adj (part de privar) 1 Que se privou; desprovido, falto. 2 O que não é público ou não tem caráter público; particular, pessoal. 3 Interior, íntimo. Antôn (acepção 2): público. sm 1 Confidente. 2 Favorito, valido. 3 Áulico.
posse pos.se ição de uma coisa ou sf (lat posse) 1 Retenção ou fru frui uma coisa, ou a de um direito. 2 Estado de quem direito de possuir a tem em seu poder. 3 Dir Ação ou título de propriedade.
Gentrificação/revitalização: “Gentrificação tem origem na palavra inglesa gentry (pequena nobreza, elite) e se refere diretamente ao processo de substituição da população mais pobre pela de mais alta renda em determinadas regiões da cidade.” Fórum Centro Vivo, Dossiê de Denúncia: Violações dos Direitos Humanos no Centro de São Paulo, 2006.
propriedade pro.pri.e.da.de sf (lat proprietate) 1 Qualidade de próprio. 2 Aquilo que é próprio de alguma coisa; o que a distingue particularmente de outra do mesmo gênero.
6 Domínio exclusivo, mas não ilimitado, sobre uma coisa, com direito de usá-la ou consumi-la, mas não de abusar dela. 7 O direito pelo qual uma coisa pertence a alguém; posse legal de alguma coisa. 8 A coisa possuída; a coisa cuja posse pertence por direito a alguém.
idas ma todas as med to e u q ão aç liz revita tral para um processo de s da região cen re b o [...] estamos em p s ai m s a o a expulsar édia e alta, com m s se as cl necessárias par as d to a para o usufru obiliários. poder valorizá-l reendimentos im p em s o sc te an ig construção de g
reunião - 14.03.2012 - ATA proposta: “uma mesa com dois corretores devidamente trajados. alguns lugares improváveis para locação, venda e ocupação. Um questionário que tenha o contato do possível comprador ou locatário. Suas ideias para o local, quanto tempo quer usá-lo, e quais outros espaços gostaria de alugar ou comprar. Nesses lugares que ofereceremos já podemos dar algumas ideias para seu uso/fim, como, por exemplo: loteamento do minhocão para domingo, espaços para piquenique familiar, espaços para churrasquinhos de gato, áreas para alugar bikes, etc.” Encontro público: (brainstorming) - como vai se dar a abertura/convite/direcionamento para a participação das pessoas? - usar a estrutura da kombi. para fazer o stand. - questionário. - como delimitar ou não a participação? - profissionalizar a sonho meu imóveis. - saber os desejos das pessoas. - desejo de ocupar.
- de que formas a gente pode ocupar a cidade? - deixar mapa em branco para a... - itaquerão. - pinheirinho. - vários lugares. - a abertura do grupo à participação é importante na trajetória do grupo, mas nem sempre é colocada como possível na proposta... - não contar que a imobiliária é de mentirinha. - frases com sutis ironias. crítico mas bem humorado... - kit pode existir ou não, ou não, ou talvez ele caiba. - um kit mais simples... - malinha que abre. - aumenta a opção, leque... - como seria o kit? - bolar um questionário bom para o dia. - coletar umas imagens; plaquinha boa; mesinha boa... - mapa de alguma região da cidade. - lote. - o que vc quer? - demarca no mapa. - qualquer espaço público pode ser privatizado. - acho legal ter foto. - apagar tudo o que é privado no mapa e deixar o que é público. - vender o mapa para ser uma favela. - mapa de prédios vazios no centro. - eu não sei na verdade. - o vazio mais amplo. nem só público, nem só privado. - o questionário e o mapa. o que vai dar conta? - ficha de loteamento do que a imobiliária vai vender.
- o delírio é dentro da tua cabeça. - restringir uma área de trabalho. - intervenção física na rua. - delimitar uma área? - deixar muito livre limita mais? - e a árvore? e o poste? - opção impressa limita tanto quanto o mapa. - dar algumas opções. - você não tem o que você quer aqui? então anota. - pinheirinho e itaquerão estão em voga. - qual estratégia a gente cria para que as pessoas...? - vamos vender o ricardo teixeira? - é uma imobiliária... - qual região? - definir neste dia... - coisas, não região. - onde atuar, de que forma... a gente vai decidir depois do encontro público. - esta área é minha, eu comprei. - x, y, z. imóvel deste tipo, nesta região... - 300 questionários prontos... vamos atuar a partir da necessidade do cliente. - qual forma de atuar baseado neste retorno que o público deu. - o público se vê como participante... encontro público. - eu quero uma casa na árvore. - as propostas de kit são importantes... catálogo de possibilidades... lugar comercial, camelô... alugar um espaço para um piquenique. - ideias de ocupação absurda. - “faça uma fila...” - ensinar a fazer trambiques. “minerva cuevas”. - sugestões de uso. - montar um questionário bom. - ir em uma imobiliária... - “o preço quem dá é você” - como se valoriza uma coisa? - nada se perde!
construir cons.tru.ir (lat construere) vtd 1 Dar estrutura a; edificar, fabricar: “Construiu uma casa para o gato angorá” (Jorge Amado) 2 Fazer construções: Cada qual poderá construir como quiser. vtd 3 Arquitetar, dispor, organizar
1. desconstruir Ato de desfazer o que está construído. desmontar, desagregar, apagar, remover o que está construído.
[...] a cada intervenção no espaço das cidades, seus habitantes vão lhe conferindo um novo significado, escrevendo um novo texto.
Troca: A troca, entendida como movimento de intenção recíproca entre duas partes ou então cedência de um serviço ou de uma coisa como contrapartida de uma outra, é a regra fundamental de toda a relação social.
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pseudoempreendimento imobiliário que visa problematizar os processos de privatização do espaço público, de supervalorização especulativa de determinadas regiões urbanas e de expulsão sistemática de contingentes populacionais das áreas centrais. agência poético-política de mapeamento dos desejos urbanos dos cidadãos. plataforma de cartografia das especulações imaginárias dos diversos modos possíveis de ocupar e reinventar os espaços das cidades. situação lúdica construída com o objetivo de estabelecer coletivamente um espaço de jogo entre os habitantes da cidade a partir da negociação de desejos, modos de vida, espaços construídos, relações interpessoais, vazios urbanos, espaços imaginários etc.
A cidade está à venda. Quem pagar mais leva tudo!!! Aproveitando este boom imobiliário lançamos a SONHO MEU IMÓVEIS: “Você compra, nós vendemos. Você vende, nós compramos” Cidade limpa, cidade linda, cidade cinza.
O DESAPARECIDO Desaparecido é uma pessoa que secretamente (ou não) é abduzida ou presa pelo Estado ou organização política, parapolítica ou paramilitar com autorização, apoio ou consentimento do Estado, seguida por uma recusa no reconhecimento do destino ou paradeiro, com a intenção de remover a vítima da proteção da lei.. Homo Sacer (“o homem sagrado” ou “o homem amaldiçoado) é uma figura do Direito romano, uma pessoa que é banida da sociedade, tem revogados seus direitos como cidadão e pode ser morta por qualquer um com impunidade, mas não pode ser sacrificada em ritual religioso.
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O desaparecimento de presos políticos é uma prática que imaginávamos abandonada em um passado remoto do nosso país. O sequestro e a prisão arbitrários realizados pelo Estado por meio das Forças Armadas ou da força policial foram uma prática recorrente das ditaduras militares nos anos 1960/1970, de brutal violência nos países do Cone Sul. A redemocratização procurou acabar com os porões da ditadura, mas ainda existem elementos saudosos desse período e dessas práticas…
NORMALIDADE Uma manhã quente e úmida, típica do verão paulistano. Cidade em congestão. Pressa paralisada. Em meio às ladeiras de Pinheiros, entre o vaivém apressado da ida ao trabalho em meio ao calor abafado, chuva e indignação pela tortura do dia a dia, estava ele lá, plantado, sem saber que um plano sinistro estava em andamento. Estava estacionado em frente à Galeria Choque Cultural desde o dia 10 de fevereiro, na Rua João Moura, como obra integrante da exposição Estado do Sítio do BijaRi – o projeto investigava os “estados de sítio” não declarados que permeiam a vida cotidiana desde a dimensão coletiva até aquela da privacidade humana. A exposição era comentário poético sobre a dinâmica das tensões políticas no espaço urbano e sobre as formas de poder que se organizam de modo a criar uma ideia de “ordem”. Estacionado junto ao ligustro, o carro-escultura amplificava o espaço público da rua “convidando” os pedestres a se juntar ao redor de sua minifloresta, uma minipraça móvel sobre o asfalto a piratear o espaço quente da via.
DENÚNCIA . Na manhã de 22 de março, um cidadão faz a denúncia anônima de uma carcaça de veículo abandonada na rua, como mais centenas à solta pela cidade, para a rádio Sul-América Paranoia. A rádio, sempre prestativa em turbinar a neurose rodoviária entre os moradores da cidade, repassa a denúncia para a militarizada subprefeitura de Pinheiros, que imediatamente envia sua tropa de especialistas em remoção de veículos abandonados.
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SEQUESTRO E PRISÃO 11:30 Baixo Ribeiro (um dos proprietários da Galeria Choque Cultural) liga para o BijaRi e avisa que os fiscais da prefeitura estão lá e deram três horas para a remoção da obra. Combinamos com ele, então, de chamarmos um guincho para remover o carro e trazer para o nosso estúdio. O que foi combinado seria que o guincho estaria no local por volta das 13 horas para a remoção. 12:00 Nova ligação da Choque Cultural. A equipe de remoção chega ao local e inicia o processo de retirada da obra, passando por cima do acordo prévio. O processo é fotografado pela equipe da galeria. 12:15 Chegamos de bicicleta na Choque, mas o carro já havia sido removido. Voltamos para o BijaRi e saímos de moto atrás do caminhão que levara nossa obra. Da moto, tiramos fotos e seguimos o caminhão até o pátio da subprefeitura de Pinheiros. 12:40 Chegamos à subprefeitura de Pinheiros, onde se iniciam as tratativas com a burocracia policial/estatal. Em conversa com um assessor de lá, conversamos sobre a matéria da revista Veja São Paulo sobre carcaças abandonadas (matéria que mencionava a intervenção verde do Grupo).
A BATALHA Enquanto isso, no front físico, a batalha continua... Na segunda-feira (26) pela manhã, foi agendada uma reunião com o coronel reformado da Polícia Militar e atual subprefeito de Pinheiros, Sérgio Teixeira Alves. Nessa reunião, foi apresentado o conceito e o histórico do projeto Natureza Urbana em suas diferentes configurações e suportes (caçambas, outdoors, ônibus etc.) com registro fotográfico das exposições e projetos (Annenviertel em Graz, Bienal de Arquitetura de São Paulo, Virada Cultural, Zona de Poesia Árida, SWU, entre outros). O subprefeito percebeu o erro, mas não quis admiti-lo. Transformou a multa de abandono de carcaça de veículo em abandono de entulho em via pública, diminuindo o valor do resgate para R$ 500,00 (quinhentos reais) mais diárias de pátio. O procedimento para a liberação da instalação entrou em um labirinto burocrático de formulários, protocolos e prazos inexistentes. Teoricamente, perdemos um prazo de entrada do processo de retirada do carro e fomos expropriados de nossa obra, não podendo retirar o carro, só as plantas. A carcaça iria para leilão de carcaças para ferro-
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-velho. Enfim, de modo oral, sem qualquer notificação ou documento, foi exigida uma multa, ou melhor, um resgate de R$ 12.000,00 – valor da multa para abandono de carcaças de veículos em vias públicas – para a devolução do refém tomado pelas forças policiais. Tudo isso sem notificação, multa ou qualquer tipo de documento com timbre da prefeitura ou qualquer outro órgão oficial. A partir desse momento, é iniciada a batalha pela libertação de nosso preso político... De um lado, está a kafkiana burocracia estatal turbinada pela infiltração militar de sua cúpula. De outro, os artistas e a batalha midiática que passa a ser travada com ampla cobertura dos meios de comunicação. Em breve, o absurdo se espalha pelas redes sociais, expandindo para mídias de massa e atravessando fronteiras. Insólito... A notícia do sequestro do carro chega à China!
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A CIDADE NÃO PODE PARAR Sem motor e ocupado por plantas, o “Carro-Verde” – uma carcaça destituída de sua função original propulsora e símbolo de status e diferenciação social (um não carro) – é uma escultura móvel que faz parte do projeto de intervenções urbanas chamado Natureza Urbana. Sua apreensão é paradigmática das formas de produção e controle do espaço urbano de uma metrópole de 7 milhões de máquinas motorizadas cuja dinâmica molda a cidade desde os anos 1950, quando foi cortada pelo Plano de Avenidas e seguiu sucessivamente atualizada por planos de extensão viária como o “Plano das Marginais” (projeto recente de alargamento das vias marginais que incluiu a derrubada de mil árvores em idade adulta).
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A ação intempestiva da prefeitura revela a ótica a partir da qual tudo que não se move e que não gera fluxo/lucro (no caso específico, ocupa uma vaga que poderia ser ocupada por outros carros) deve ser extirpado. A cidade não pode parar! O carro-planta afronta essa dinâmica ao propor um relaxamento desse sistema e neutralizar uma vaga – uma parcela de solo urbano na zona mais rica de São Paulo –, obstruindo a performance olímpica de nossa metrópole-luz. A obra de arte transcende sua intenção estética e entra em choque com as dinâmicas econômicas, sociais e políticas que moldam a cidade – configurada como um conglomerado de interesses exclusivos e corporativos –, onde conceitos como oferta, competição e consumo substituem outros, como democracia, liberdade, cidadania e ecologia. Em um sistema que cada vez mais desnivela e segrega estratos sociais e culturais, o consumo e a ganância desmedida e irresponsável mostram sua face perversa, atingindo a sociedade como um todo.
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A ARTE Nテグ PODE PARAR
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Como o filósofo Henri Lefebvre apontava, toda política é espacial e cabe aos habitantes e movimentos sociais o dever de reformatar as estruturas de poder com respeito à produção do espaço nas cidades.
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C.O.B.A.I.A. A inserção da dúvida no espaço público
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Uns dez anos se passaram desde que vários dos grupos do NA BORDA se encontraram em ações anteriores. O que nos motivou em 2003 ou 2004? O que nos motiva hoje? Sabemos que não estamos apáticos, percebemos as tensões à nossa volta. Mas sabemos que não há um embate com foco muito nítido, como havia no período em que os coletivos se juntaram em torno do Prestes Maia: 468 famílias sendo despejadas, um prédio simbolizando as contradições urbanas e acirramentos da especulação imobiliária; ou em torno de um ativismo anarco-artístico em questionamento ao estabelecido nos sistemas da arte, da política, da mídia e da vida urbana e pública. Não há um conjunto de ações coesas e precisas, como havia nos projetos que passaram a fazer uso das mídias de forma tática, em uma empolgação percebida anos antes, quando as estratégias da comunicação passaram a ser objeto de interesse comum, para um fim comum. Usemos as mídias, sejamos as mídias: uma mistura do libelo punk DIY que passa a incorporar o programador, o nerd, o artista, o comunicador, o articulador de meios de informação. Hoje o próprio termo (mídia tática) já não é sequer utilizado, nem tanto devido ao seu desgaste, mas talvez porque tais estratégias já foram integradas ao discurso institucional ou de corporações. De fato, desde então, a informação passou a ser mais nitidamente um campo de batalha. Passou a ser necessário entender os domínios da informação, não deixar que ela seja controlada, evitar que ela nos seja imposta unilateralmente. O COBAIA surgiu por essa via, de se fazer um trabalho que acontece na esfera das mídias. Trabalhamos com a informação, com as possibilidades de articulação entre o espaço e seu contexto.
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Desde o tempo do Formigueiro (grupo que antecede o COBAIA), a intenção coletiva era diferente da individual: interviríamos nas mídias e, por consequência, no espaço. E, para um coletivo que atuou por algum tempo entre São Paulo, Belo Horizonte, Belém e Buenos Aires, as questões do espaço público estão também interligadas com as questões urbanas e suas materialidades.
No entanto, o contexto muda, adapta-se às rugosidades, e as tensões ficam ali entranhadas. O cenário das mídias em São Paulo mudou em sua aparência e superfície pública – seriam necessárias novas estratégias. A visibilidade do problema requer vigília contínua. E a sobrevivência nos cobra fragmentação, rearranjos, desdobramentos, revezamentos de atenção, salto duplo de obstáculos. Onde tudo é descontínuo e quando imperam os percalços, nos vemos pequenos – o que pode a arte diante de tudo isso? Passamos a incorporar também a ineficiência da comunicação em terrenos saturados. Se antes assumimos ser cobaias de uma condição,
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de estar a serviço do contexto, à mercê do outro, de aprender com dada situação, agora assumiríamos o despreparo, a desarticulação entre os membros (!), a pouca adesão apesar da coesão pressuposta. E o trabalho pensado para o NA BORDA acabou sendo a síntese disso. Uma série de frases direcionadas para um espaço semipúblico, de grande circulação. Para serem vistas todos os dias pelos frequentadores do SESC, a partir da unidade Consolação, em direção aos arredores e espaços públicos de fato – com o uso de adesivos para serem aplicados em locais bastante específicos. As frases omitem palavras-chave que nos importam e nos representam: são aquilo que queremos ou aquilo que nos incomodam.
Do embate artístico travado pelo grupo, em que as faltas eram presenças cortantes e reais, questões como ineficiência, situação, despreparo, desarticulação, buraco, adesão, acirramento e dúvida afloraram, tanto em longas discussões presenciais e pela rede, quanto no próprio processo do trabalho. No fim, o que se desprendeu de forma clara nesse embate para a criação artística do coletivo foi o cerne da ação, que se traduziu numa frase: “a inserção da dúvida no espaço público”. O que é intervenção e o que é informação? O que é necessário, o que é desejado? O que são as falhas e os buracos? Enfim, entendemos que não somos apenas nós, mas todos estamos despreparados para a atual situação. Aos poucos fomos compreendendo que frase “a inserção da dúvida no espaço público” nos ditou um caminho, ao mesmo tempo que passou a refletir um despreparo geral frente a acontecimentos relevantes que nos rodeiam. Realidade social, falta de tempo, compromisso, coletivo, acirramento, problema, sobrevivência, vida, espaço público. Essas e outras palavras: na tentativa de completar tais termos, as frases com palavras faltantes são uma espécie de charada. Seriam cerca de trinta frases, havia também um plano de utilizarmos QR Codes ou mesmo técnicas simples de realidade aumentada para decifrá-las. Mas preferimos mantê-las em
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estado low-tech, em condição de leitura “desmediada”. As falhas passam a ser incorporadas no processo, assim como os ruídos, as lacunas a serem preenchidas, localmente, em dado espaço e contexto. De certa forma, o norte original do COBAIA, de se deixar ser “intervido” pelo outro no espaço público e urbano, se faz aqui ao deixar que o espectador do trabalho responda (ou não), complete (ou não), preencha (ou não), a condição de falta ou dúvida inserida nesse espaço semipúblico.
A ação do COBAIA partiu da aversão a um tipo de empreendedorismo que despreza processos, percursos individuais e identidades locais. Pensamos em configurações de ações possíveis, que pudessem disparar mobilizações a princípio avulsas (!) em experiências individuais voltadas para o tempo presente (a prestação do mês, a impossibilidade de fruição da vida, a imposição da disciplina).
Percorremos um caminho conhecido: desde as obras de Hans Haacke nos anos 1970, tem-se alguma consciência sobre a forma como o espaço público se molda sob influência dos meios de comunicação de massa. Nos anos 1990, as frases de Barbara Kruger ou de Jenny Holzer nos apontavam as estratégias “midiáticas” presentes no sistema da arte – ou para além deste, como as projeções de Krzysztof Wodiczko que nos sugeriam entender o espaço público como uma associação entre
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a arquitetura construída fisicamente e a informação a ela anexada.
Muitos outros se seguiram, e hoje não há maiores dúvidas de que o entendimento de um espaço comum se faz por meio de uma mescla entre arquitetura e comunicação. Lidamos assim com uma realidade urbana que tem algo de não linear, que encontraria paralelo no que o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos chama de racionalidade cosmopolita. Para percorrê-la, são necessários procedimentos capazes de gerar uma inteligibilidade mútua entre experiências possíveis, sem destruir identidades, incorporando tanto as redes imateriais como as físicas.
Seguimos uma trilha em que o político se encontra em estado híbrido, em uma presença imaterial, e que se torna potente ao se aproximar da fisicalidade de espaços de circulação – e pensamos agora em como nos comunicar de forma simples numa rede de relações moldada pela tecnologia, mas que não depende dela. Com o crescimento do chamado “espaço informacional”, o contexto torna-se maleável, aferido por leitura semântica e semiótica, como efeito de determinadas estruturas urbanas constituídas a partir da comunicação e informação. Percebemos essa camada invisível como uma superfície que esconde profundidades, problemas crônicos envolvendo acirramentos, despreparos, angústias e embates reincidentes. Por meio do COBAIA, nos percebemos vítimas disso, dessas mazelas cotidianas que nos tiram do prumo e afetam nossa capacidade de criação e engajamento em questões que importam. Aceitamos, assim, sofrer esse processo para que possa ser revertido em outra coisa, algo mais tangível, próximo das preocupações reais das pessoas.
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Observo que por se tratar de ações complicadas, demoradas e que requer ......... de todos, as empresas preferem ''pular'' essas ações muitas vezes por falta ...... e ........, e passam a ter consequências negativas a longo prazo, que poderiam ter sido evitadas. Ainda, como o ............. dos indivíduos em questionar as instituições estabelecidas, se reflete nas dificuldades de participação ......... na globalização. O tomador de decisões terá que acostumar-se à ........ para refletir, já que uma pergunta dá a volta ao mundo em segundos. Evidenciam-se então as dificuldades, as limitações dos indivíduos em assumir responsabilidades de decisão, de escapar do determinismo da ........... e encontrar caminhos de participação política. Não foi a primeira vez que ............. demonstrou despreparo e arrogância. Distanciar o indivíduo da sua ............. e econômica é um grande instrumento de estratégia ........, que é utilizado quando se busca explicar as dificuldades que enfrenta para inserir-se socialmente e politicamente na ......... Para algumas lideranças, essa ........... pode culminar com a não priorização da própria vida. A cultura ........... tem quatro importantes funções; criar uma identidade .........., facilitar o ....... , promover a ............. e moldar o comportamento ao ajudar os membros a dar sentido a seus ambientes. Ao assumirem o ........... pela construção de um projeto ......, apontam para o desenvolvimento da "consciência" sobre uma ...... de exclusão ....... da grande massa da população brasileira e sobre a necessidade da participação como forma de ........... dessa realidade. Mais ainda, são produtos e produtores da ........ e também devem ser considerados em sua dimensão ........... e ..........
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belo caras comprometimento despreparo falta de tempo coletivo sucesso fracasso temor liberdade lacunas enigma oculto amizade trabalho transtorno dualidade vida santo fatos morte corpo fotos responsabilidade medo significados amor humor escravidão memória maremoto fundo limitações
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pessoal participação política globalização realidade guarda municipal consequências social econômica estratégia organizacional pergunta estabilidade compromisso coletivo realidade social mudança individual particular sobrevive escrúpulos corrupto dúvida público ponteiros tempo relógio fluxo enchente vendaval arrastão entenderem
útil catarse arrogância arremedo arte atividade reação acirramento confronto verdade blefe falsário busca resposta resgate resto honesto rancor carrasco mágoa carma ideia conceito palavra figura mácula mágica manejo catástrofe compromisso raras
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Grupo C.O.B.A.I.A. Formação durante o projeto NA BORDA: Almir Almas, Lucas Bambozzi e Rogerio Borovik Colaboradores: Ana Rosa – debate e ações Marcos Vilas Boas – fotografias da exposição Luciana Tognon – apoio nas ações
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NADA É MAIS IMPORTANTE DO QUE ESSA NUANÇA FUGIDIA1 Contrafilé2 Enunciação e Emancipação
Este tipo de representación gratuita, desarrollada sobre el territorio de la ciudad donde se produce el acontecimiento antagonista, genera un desplazamiento hacia un tipo de lógica política nueva. Es la lógica del agenciamento, una lógica que emplea la representación por su efectividad material, ayudando a los grupos a articularse a sí mismos de una forma abierta y horizontal. En otras palabras, es una lógica constructiva de expresión múltiple (Brian Holmes).
Se a sistematização dos processos é uma das formas importantes de produção de “imagens” nos trabalhos aqui apresentados, é porque a “obra” é compreendida, em si, como a capacidade de tornar visíveis os agenciamentos3 que produzem e inscrevem “um olhar singular diante do mundo”. O que se torna visível é um acontecimento no qual as estratégias micropolíticas de disputa física e simbólica do espaço social são materializadas, traçando um território novo e frágil. Segundo o sociólogo e filósofo italiano Maurizio Lazzarato (2006, p. 44): El acontecimiento muestra lo que una época tiene de intolerable, pero también hace emerger nuevas posibilidades de vida. Esa nueva distribuición de los posibles y de los deseos abre a su vez un proceso de experimentación y de creación.
1. Este texto é parte da dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) por Joana Zatz Mussi em 2012, integrante do Contrafilé. 2. “Formado em São Paulo, Brasil, no ano 2000, o Contrafilé é um grupo de investigação e produção de arte que trabalha a partir de sua experiência cotidiana, implicado na realização da vida pública, o que é, ao mesmo tempo, ponto de partida e território de proliferação do seu trabalho”. In: A Rebelião das Crianças, publicação apoiada pelo VAI (Valorização de Iniciativas Culturais), São Paulo, 2007. Integram atualmente este grupo: Cibele Lucena, Fábio Invamoto, Joana Zatz Mussi e Rafael Leona.
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A construção de imagens e narrativas críticas que transformam um processo propriamente em um acontecimento ocorre quando nessas se realiza uma síntese disjuntiva, ou melhor, não apenas se evidencia o “antes” e o “depois” do acontecimento, mas o instante de constituição de uma diferença que faz sentido (ZOURABICHVILI, 2004, p. 6). A dificuldade na sistematização de processos para a criação desse tipo de imagem está justamente em encontrar formas de enunciação que consigam captar a fragilidade que compõe a produção dessa diferença. No entanto, captá-la é parte fundamental para a constituição da resistência política aqui relatada, que procura romper com o menosprezo da fragilidade, que necessariamente decorre das experiências de vulnerabilidade ao outro e das turbulências desterritorializadoras (ROLNIK, 2006, p. 5): [...] esta fragilidade nos é essencial pois indica a crise de um certo diagrama sensível, de seus modos de expressão e suas cartografias de sentido. Ao menosprezar a fragilidade, esta deixa de convocar o desejo de criação; ao contrário, ela passa a provocar um sentimento de humilhação e vergonha, cuja consequência é o bloqueio do processo vital. Em outras palavras, a ideia ocidental de paraíso prometido corresponde a uma recusa da vida em sua natureza imanente de impulso de criação e diferenciação contínuas (ROLNIK, 2006, p. 7).
Para a criação dessas imagens da diferença nas quais a fragilidade aparece, um dos elementos de linguagem que foi sendo construído por nós poderia ser designado como o ato de prontidão para corresponder a uma tradução sensível dos enunciados,4 desdobrados como intervenções –5 o Colectivo Situaciones (2009a, p. 13) fala em uma prática de expressão autônoma. 3. De acordo com Deleuze e Guattari: “Segundo um primeiro eixo, horizontal, um agenciamento comporta dois segmentos, um de conteúdo, outro de expressão. De um lado ele é agenciamento maquínico de corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos reagindo uns sobre os outros; de outro, agenciamento coletivo de enunciação, de atos e de enunciados, transformações incorpóreas atribuindo-se aos corpos. Mas, segundo um eixo vertical orientado, o agenciamento tem ao mesmo tempo lados territoriais ou reterritorializados, que o estabilizam, e pontas de desterritorialização que o impelem” (Deleuze e Guattari, 1977 apud ZOURABICHVILI, 2004, p. 8). 4. Enunciados que podem ser de vários tipos: a voz da grande mídia, a voz de pessoas comuns, a voz de pessoas convidadas para pensar juntas a partir de uma determinada “situação”, a ação de um movimento social, as próprias obras-interventivas dos coletivos. 5. Que podem também se dar em vários espaços: na cidade, no corpo, no meio editorial etc.
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Portanto, o acontecimento se dá quando um enunciado adquire propriamente caráter de enunciação, para isso sendo necessário um processo de confrontação simbólica. Um exemplo disso pode ser visto no trabalho A rebelião das crianças. A partir da imagem construída pela grande mídia e pelo Estado dos meninos da FEBEM como “marginais”, “internos”, “bandidos”, e de suas mães como “agentes externos incitadores de rebeliões”, o grupo quis entender do que, afinal, se tratava aquilo, desencadeando todo um processo de tradução e contratradução. Trechos da publicação “A rebelião das crianças” (Contrafilé, 2007):
Neste processo de encarnação dos conflitos, nos deparamos com a criminalização e o extermínio social de uma parcela enorme de crianças e jovens.6 O dado de realidade que nos convocou a olhar com atenção para isso foi uma grande rebelião que acon-
teceu no início de 2005 na Fundação Estadual do Bem-Estar do
Menor (FEBEM) – cárcere juvenil onde vivem cerca de seis mil
crianças e adolescentes julgados como criminosos. Passamos a acompanhar diariamente as notícias sobre a rebelião, fazendo
leituras críticas e coletivas de jornais. Até que começamos a substituir palavras para ver o que acontecia. Ao invés de “ju-
ventude encarcerada”, “internos”, “menores”, líamos: cri-
anças. Assim, pudemos entender também que o que nos move,
nossa urgência, é fazer constantemente esta operação de desnudamento dos fatos, o que nos levou a nomear este trabalho A rebelião das crianças. [...]
Para tornar público o que descobrimos no encontro com o “cir-
cuito das crianças criminalizadas”, pusemos em prática a 6. Por exemplo, entre 2004 e 2006, morreram mais de 28 adolescentes que se encontravam sob a responsabilidade da FEBEM, segundo dados levantados pela AMAR – Associação de Mães e Amigos da Criança e do Adolescente em Risco.
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Interpretação de enunciados e atenção à fragilização que causam: que perguntas levantam? Que desejos disparam? Primeiro desejo disparado: trocar a palavra “internos”, “juventude encarcerada”, “menores”, pela palavra “crianças”. Segundo desejo disparado: conhecer essas crianças através de uma intervenção que evidencie a operação enunciativa realizada. Intervenção: produção de espaços na cidade que anunciem imagens desse devir (“crianças de rua” viram “crianças na rua, brincando”).
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Crianças e Contrafilé na Praça da Sé, São Paulo, 2005.
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Criança no balanço instalado pelo Contrafilé, Viaduto Okuhara Koei/Avenida Paulista, 2005.
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ideia de “assembleia”,7 convidando três pessoas, referentes de
diferentes lutas, para discutir problemáticas que ressoaram no
grupo ao viver este processo: 1. A lógica que mina a potência de criação; 2. Tortura/terrorismo de Estado: o que significa a tor-
tura hoje?; 3. Como ressignificar traumas sociais e culturais que impossibilitam a construção de vida pública?
Conceição Paganele:8 Eu pensei: “Que coisa é essa?!”Aí, ele veio
e já começou a chorar. Eu vi muitos meninos chorando e muitas
mães chorando. Ele falou: “Aqui é terrível, mãe! Aqui eles batem para valer, tem drogas, para você saber.” Eu disse: “Não,
meu filho, você precisa se tratar, ser curado dessa maldição.” “Aqui tem droga, aqui tem tudo, aqui não vai mudar nada na minha história e eu só vou sofrer mais ainda aqui dentro. Se lá
fora é ruim, aqui dentro é muito pior, tem de tudo que você possa pensar.” [...] E quando eu ia sair dali, quase que ele não me larga de chorar, agarrado comigo, quase que eu não consigo
ir embora. E saíam as mães chorando bastante também. Eu
comecei a querer entender. Por que todo mundo chorava se era bem-estar? Todo mundo sai chorando? [...] Quando os meninos entram na FEBEM, as famílias ficam muito envergonhadas.
A dor já era muito grande, já deixava paralisada. E ver o outro criticar e olhar então... Era uma dor muito nossa.
Maurinete Lima:9 O que se busca é destruir a potência juvenil
e, no lugar, instaurar o ódio e a ideia de que existe um inimigo,
um suspeito. É isso que o sistema não percebe. Fazem tudo isso com esses meninos e eles saem uma loucura, matando quem en-
contram na rua, pelo chinelo, pelo tênis. A vida se banaliza. É essa a história. Às vezes eu fico pensando que, se começássemos
retirando desses meninos o olhar de suspeita em todo o lugar a que eles vão, já estaríamos melhorando essa sociedade.
7. Assembleia Pública de Olhares é uma prática criada pelo Contrafilé para potencializar o encontro entre pessoas no intuito de que compartilhem experiências cotidianas a respeito da vida na cidade. 8. Mãe de um jovem que esteve na FEBEM e referência do movimento das mães contra a tortura nas prisões (AMAR).
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Conceição: [...] O processo de criminalização [da AMAR] começa quando o governador Geraldo Alckmin se declara meu inimigo. Ele vai a uma coletiva de imprensa e diz que eu não ajudo, que eu só atrapalho. Eles me acusam de ser a incitadora
de rebeliões, fugas. Iniciam um processo legal contra mim, ainda não estou respondendo, porque está em fase de inquérito. [...] Eles tentam abafar quando a gente quer lutar por um di-
reito totalmente negado, pelo direito de quem não tem direito nenhum. Eles matam a gente, porque socialmente eles estão me matando.
Suely Rolnik: Mas é essa a forma como matam, por isso a gente
precisa conversar uns com os outros para não morrer. Porque
eles matam transformando uma coisa que é altamente digna em uma coisa totalmente humilhante. E dão o nome de terro-
rismo. [...] Eu conheço profundamente a fragilidade em que a Conceição ficou, e sinto isso como uma coisa totalmente comum
entre a gente. E aí também tem um trabalho de descobrir onde que essa fragilidade ecoa, onde essa humilhação ressoa na história de cada um. Porque a humilhação tem sido, sistemati-
camente, uma estratégia do poder para cancelar os movimentos
de ampliação. No começo, eu estava tentando entender o que estou sentindo, e a Conceição me ajudou. É humilhação mesmo. E hoje a humilhação está chegando de outro jeito não só no Brasil, mas no mundo inteiro. [...]
Contrafilé: O Contrafilé trabalha pensando determinadas situ-
ações que partem da nossa experiência e tentando sistematizar o pensamento; e sistematizamos o pensamento também quando produzimos símbolos, intervenções na rua. E a gente vem de-
senvolvendo um trabalho a partir dessa angústia do “confina9. Socióloga e integrante da Frente 3 de Fevereiro.
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“Crianças circulam livremente, a situação está novamente sob seu domínio", ação realizada pelo Contrafilé no Viaduto Okuhara Koei, Avenida Paulista, São Paulo, 2006.
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mento”, que não é a de estar dentro de uma prisão, mas de sen-
tir o confinamento como um estado geral que chega até nós e atravessa a nossa experiência.
Suely: Então, não é só o confinamento dos outros, mas também quando vocês se sentem confinados.
Contrafilé: Sim, é também como a gente se sente confinado. E aí eu acho que o confinamento tem a ver com várias coisas. Tem
a ver, por exemplo, com a dificuldade de se relacionar com o outro, o outro que se configura sempre como um outro distante,
e como, do nosso lugar, isso vai se configurando. E acho que deu
vontade de quebrar um pouco também esse confinamento, esse lugar de elaboração e de “pensar confinado”, sempre entre a gente. Deu vontade de abrir isso e de misturar pessoas com ex-
periências diferentes de confinamento. Como, juntos, podemos misturar experiências para pensar, para ampliar o entendimento disso?
Suely: Estou sentindo um tipo de confinamento que para mim é novo. Não sei se vou conseguir falar direito dele ainda. Nos últimos anos, estava sentindo um movimento de desconfina-
mento, estava sentindo que tinha um monte de gente pipocando
em um monte de lugar. Trabalho muito fora do Brasil e dentro,
vou e volto. Eu sentia que tinha gente em vários lugares em um movimento de criação, vendo o que estava se passando e bus-
cando estratégias para combater, pensar, entender. E agora, re-
centemente, estou sentindo que muito do que foi pensado, falado, apresentado, daquilo que está sendo comunicado é ime-
diatamente incorporado por um discurso oficial e totalmente esvaziado do movimento vital e das tensões que levaram a pen-
sar as situações reais; da experiência de coisas intoleráveis que
estamos vivendo. Esvazia e muda a direção da palavra.Aí, vira
uma coisa “superbacana”, quando na verdade são palavras que falam das coisas complicadas, dos problemas que se está
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vivendo, que você tem que enfrentar. As palavras estão aí, mas
não o conteúdo delas, a experiência não está mais nelas. E essa experiência que se estava vivendo ao inventar essas palavras é completamente anulada, neutralizada. O que predomina não é o que essas palavras significam, mas a falcatrua absoluta, a violência absoluta e total de exploração e dominação.
Maurinete: Agora, para mim, o que sinto, no meu caso de con-
finamento, é que existe um medo, o medo de saber que está existindo alguma coisa nova e ainda não perceber qual a forma
de atuar; e daí eu me apego. E é gozado, me apego exatamente a
essas formas em que não acredito mais. Mas também me apego a novas coisas, é como se estivesse havendo um movimento, uma
coisa nova e que eu ainda não sei o que é, mas está havendo. Concordo com você, ontem vi o Serra falar sobre “autonomia da
universidade”, sobre o “problema dos grupos”, “das pessoas que estão excluídas”. Eles pegam as palavras fortes e esvaziam. Mas, ao mesmo tempo, o sistema não dá conta. Por exemplo, a
favela do Alemão, por mais que diga “É uma luta de traficante lá”, você não acredita naquilo simplesmente, entendeu? É
muito mais complexo. O que eu sinto medo é de que não dê tempo da coisa emergir e eu ter elementos para entender, e essa é uma grande comoção, de saber como agir, e é por isso que eu
fico correndo exatamente atrás do pessoal que não teme as coisas encasteladas, cristalizadas, e acho que é por aí [...].
Toda enunciación implica una comprensión, una ‘capacidad de respuesta activa, una “toma de posiciones”, un “punto de vista”, una “evaluación de la respuesta”. Podemos utilizar la concepción del dialogismo para dar cuenta de la evolución del espacio público, porque lo que hemos visto e oído en esas noches de estallidos y esas jornadas de confrontación semiótico-linguística10 es la acción estratégica, tal como la describe Bajtin: por un lado, los enunciados se refieren a otros enunciados, polemizan
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con ellos, se oponen a ellos o los consienten; por el otro, los completan, se apoyan en ellos. [...] Existe entonces una imposibilidad de encerrar la enunciación en la lengua, de hacer surgir las significaciones, la potencia de transformación y de subjetivación de las meras estructuras semânticas, fonéticas o gramaticales de la lengua. También existe una imposibilidad de hacer de la enunciación una simple convención, una simple instituición, una simple confirmación de las relaciones sociales ya instituídas (LAZZARATO, 2006, p. 23-24).
É, portanto, a partir do embate entre representação e contrarrepresentação, que uma atualização da dimensão pública do espaço se dá como desdobramento imprevisível. Podemos aqui nos reportar ao conceito de “espectador emancipado” de Jacques Ranciére (2010, p. 8), que, segundo Vera Pallamin: [...] defende uma recusa dessa distância radical, dessa distribuição de papéis e das fronteiras entre esses territórios do ver, fazer e falar. É preciso, ele afirma, reconhecer a atividade própria do espectador, que é a de tradução e contratradução daquilo com o qual se depara: “é neste poder de associar e dissociar que reside a emancipação do espectador, quer dizer, a emancipação de cada um de nós como espectador. Nisto verifica-se uma capacidade que faz cada um igual ao outro e que se exerce ‘pelo jogo imprevisível de associações e dissociações’”.
Se entendemos a emancipação do espectador como a capacidade de se dar ao direito de produzir enunciações, vemos isso acontecendo na medida em que o “autor” se coloca sobretudo como um “espectador emancipado público”, aceitando o risco de expor as suas próprias intensidades no sentido de qualificar o debate. Muitas vezes esse movimento é, em si, compreendido como “a” intervenção. Paolo Virno (2006, p. 15), pensador 10. Aqui o autor se refere às revoltas de jovens dos subúrbios franceses, geralmente descendentes de imigrantes, que se espalharam pelas periferias da França durante dezenove dias entre outubro e novembro de 2005.
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italiano, acredita que: Sobre todo al interior del movimiento new global, el rol de la “tercera persona”, del público, es, ya de por sí, una forma de intervención activa. Hoy, quien escucha una ocurrencia o un discurso político, lo rearticula mientras lo escucha, elabora sus desarollos posibles, modifica su significado: en sínteses, lo transforma en el momento mismo en que lo recibe. Tiene que ver, en fin, con un público activo.
Assim, estamos aqui problematizando o papel do próprio “artista” enquanto “público ativo de si mesmo e das relações com o seu entorno”, que o podem levar a uma elaboração dos modos de vida contemporâneos e a enunciações críticas. Uma problemática que constantemente atravessa as enunciações coletivas tem, justamente, a ver com a dificuldade de sair do lugar de “espectador passivo”, “alvo” do pensamento contemporâneo defensivo, já que para ativar-se enquanto espectador-autor no sentido em que estamos entendendo o espectador aqui é necessária, como vimos, a conexão com a própria fragilidade. Entendemos essa dificuldade como uma das responsáveis pela impossibilidade de construção coletiva da vida pública e da cidade (em suas escalas materiais e imateriais), na medida em que o medo de entrar em contato com esse devir, esse fora que nos fragiliza, transformando-se a partir dele, vira “medo do outro”. Que “outro” é este do qual se fala? No livro Ninguna Mujer Nace para Puta, Maria Galindo e Sonia Sánchez (2007) usam a imagem da relação proibida como uma força subversiva interpeladora para falar dessa ruptura subjetiva que ativa conexões entre mundos e o trabalho de tradução e contratradução, a partir do qual espaços de compreensão se tornam possíveis: “Es un lugar prohibido y por eso puede ser muy subversivo, porque romperia con la forma más profunda de control y de poder de un ser sobre otro” (GALINDO;
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Parque para Brincar e Pensar, realizado pelo Contrafilé, Comunidade Brás de Abreu e Jardim Miriam Arte Clube (JAMAC, atelier-escola da artista Mônica Nador localizado no Jardim Miriam), São Paulo, 2011.
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SÁNCHEZ, 2007, p. 165-195). As autoras ainda dizem que a força subversiva não vem simplesmente da enunciação das diferenças, mas da passagem para um lugar mais elaborado, no qual esse tipo de aliança proibida se concretiza a partir de um “cruze de miradas” (intercâmbio de olhares).
Metáforas do Confinamento
Se vem para me ajudar, não se dê ao trabalho, porém se vem porque a tua libertação está vinculada à minha, então trabalhemos juntos (Lilla Watson, aborígene australiana).
Outro elemento da linguagem construída por nós poderia ser descrito mais ou menos assim: sair desse estado defensivo em relação a um outro supostamente externo e ameaçador convocando um estado ativo do corpo, que se coloca no centro das situações mais tensas para perguntar: tenho medo do quê? Onde está a minha fragilidade, o que ela significa? O que aquilo que está acontecendo lá longe diz de mim? Como diz o Grupo de Arte Callejero (GAC/Buenos Aires, Argentina): Sería un verdadero desafío para todos nosotros indagar qué nos hace frágiles y cómo se construye la fragilidad colectiva, qué hacer con el miedo que sentimos a lo desconocido, o cómo dialogar con otras realidades que no son las propias, que nos resultan enigmáticas, desde una actitud inclusiva o analítica, intentando despojarnos de los romanticismos que la militancia supone. También puede resultar interesante preguntarnos por qué encajamos donde encajamos, ya sea que estemos en el lugar del delincuente o en el de su presa (GAC, 2009, p. 137).
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Muitos trabalhos tentam encontrar formas para falar disso: a experiência visível e sensível de viver em uma “sociedade de controle”; acompanhada da experiência invisível, disforme, de nos sentirmos, cada um de nós, autoconfinados em lugares predestinados, nas identidades fixas, aceitando passivamente os “discursos do medo”11 sem, no entanto, conseguirmos agir. A investigação-ação, a partir da qual é possível identificar como acontece a “espacialização desse estado de confinamento”, é, segundo o coletivo Política do Impossível: Uma forma de nos relacionarmos com nosso próprio contexto, onde o investigado não se objetualiza para ser tratado analiticamente. A investigação parte de nós mesmos como subjetividades situadas e em ação. A ação é uma postura que inicia o diálogo, a partir da qual convido o outro a se somar à conversa. Essa ação a partir do nosso próprio lugar se dá através da criação de representações (soluções plásticas) e de ir vendo como as imagens que vou produzindo dialogam com o mundo onde vivo (POLÍTICA DO IMPOSSÍVEL, 2006). As leituras alternativas de fatos sociais hegemônicos acabam, por sua vez, reverberando socialmente por conter, justamente, na escala da experiência, a possibilidade de estabelecer conexões inusitadas, que ampliam as “sinapses possíveis” e revertem as leituras estereotipadas da “realidade” ao introduzir uma representação que contém a consistência processual de “espectadores que se fazem públicos”, para tornar visível uma experiência singular de um contexto comum. Aqui, invocamos o sociólogo Gabriel Tarde, quando fala sobre a relação entre diferença e semelhança: as minúsculas inovações ordinariamente anônimas são, para ele, o que movem a produção do social, sendo que essas passam a contaminar o tecido social através da repetição que se dá pela
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vibração (potência desejante) contida nessa capacidade de diferenciação. A imitação, no entanto, nunca é exatamente igual àquilo que imitou, sendo constituída pela singularidade e subjetividade daquele que imitou e “Qualquer repetição, social, orgânica ou física, não importa, isto é, imitativa, hereditária ou vibratória [...], procede de uma inovação [...]; e assim o normal, em toda a ordem de conhecimento, parece derivar do acidental” (Tarde, 1976 apud THEMUDO, 2002, p. 27).12 Dessa forma, não será a ação concreta e anônima na cidade, transformada em imagem que circula, uma forma de circunscrever, tornando visível, esse momento diferencial de relação com o espaço – que depois afeta pela força do desejo e da crença, mais ou menos contidos na representação que se faz desse instante inaugural do acontecimento? Se “nada é mais importante do que essa nuança fugidia” (Tarde, 1907 apud THEMUDO, 2002, p. 26), se trata, assim, de inventar uma concretude imagética e performática para essa nuança. A partir de pensamentos e imagens dos coletivos, alguns deles presentes nessa publicação, podemos ver como acontece efetivamente o ato de restauração permanente desse conflito, constituindo um conjunto de evidências no campo do visível e do legível de como as instituições normalizadoras são desafiadas e atravessadas por essa vontade de romper o ciclo de confinamento das subjetividades em lugares identitários. Uma das questões mais instigantes das práticas artísticas situadas é justamente o desenvolvimento de uma espécie de saber não excludente que parte de situações reais, nas quais a produção coletiva e compartilhada de dobras, que singularizam e marcam a diferença no espaço social, é o que efetivamente produz a experiência do comum.
11. Segundo Teresa Pires do Rio Caldeira, nas cidades contemporâneas, diferentes classes sociais, especialmente as mais altas, têm usado o medo e a violência do crime para justificar novas tecnologias de exclusão social e a retirada de classes mais baixas dos bairros tradicionais das cidades. A circulação dos “discursos do medo” é, para a autora, parte de uma fórmula que elites do mundo todo vêm adotando para reconfigurar a segregação espacial das cidades (CALDEIRA, 2000). 12. Tiago Themudo está citando Gabriel Tarde. Les lois sociales. Paris, Félix Alcan, 1907, p. 155.
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BIBLIOGRAFIA GERAL
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CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34, 2000.
COLECTIVO SITUACIONES. Inquietudes en el impasse. In: Conversaciones en el impasse: dilemas políticos del presente. Buenos Aires: Tinta Limón Ediciones, 2009a. ______. Epílogo. In: GAC: pensamientos, practicas, acciones. Buenos Aires: Tinta Limón Ediciones, 2009b. CONTRAFILÉ. A rebelião das crianças. São Paulo: [s.n.], 2007. [Publicação fomentada pelo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI)]. FONSECA, Felipe. Um resumo do Brasil profundo. Disponível em: <http://culturadigital.br/redelabs/2010/06/um-resumo-do-brasil-profundo>. Acesso em: abr. 2012. GAC. GAC: pensamientos, practicas, acciones. Buenos Aires: Tinta Limón Ediciones, 2009.
GALINDO, Maria; SÁNCHEZ, Sonia. Ninguna mujer nace para puta. Buenos Aires: Lavaca Editora, 2007.
HARVEY, David. A liberdade da cidade. Tradução de Gavin Adams. Urbânia, n. 3. São Paulo: Editora Pressa, 2008. HOLMES, Brian; EXPÓSITO, Marcelo. Brian Holmes entrevistado por Marcelo Expósito, Estéticas de la igualdad, Jeroglífos del futuro. Revista Brumaria, n. 5. Madri: Associacion Cultural Brumaria, 2006.
LAZZARATO, Maurizio. Politicas del acontecimiento. Tradução de Pablo Esteban Rodríguez. Buenos Aires: Tinta Limón Ediciones, 2006. MUJERES CREANDO. La virgen de los deseos. Buenos Aires: Tinta Limón Ediciones, 2005.
PALLAMIN, Vera M. Invertendo expectativas. Texto apresentado no I Simpósio de Estética – Temas em torno da Arte Contemporânea na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2010. POLÍTICA DO IMPOSSÍVEL. Cidade dos cartógrafos. São Paulo: Oficina Cultural Oswald de Andrade, 2006. RANCIÉRE, Jacques. O espectador emancipado. Tradução de José Miranda Justo. Lisboa: Orfeu Negro, 2010. ROLNIK, Suely. Geopolítica da cafetinagem. 2006. Disponível em: <http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Geopolitica.pdf>. Acesso em: jun. 2012.
THEMUDO, Tiago Seixas. Gabriel Tarde – sociologia e subjetividade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
VIRNO, Paolo. Ambivalecia de la multitud: entre la innovación y la negatividad. Tradução de Emilio Sadier e Diego Picotto. Buenos Aires: Tinta Limón Ediciones, 2006. ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: IFCHUNICAMP [digitalização e disponibilização da versão eletrônica], 2004.
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“A REVOLTA DOS BURROS” “Aos nossos cavalos o eterno reconhecimento; aos burros, o esquecimento.”
NOVA PASTA: Antonio Brasiliano, Augusto Citrangulo, Eduardo Verderame, Fabiana Mitsue, Fabio Meira, Flávia Sammarone, Guto Lacaz, Lucas D, Mariana Cavalcante, Marcos Vilas Boas, Mauro de Souza, Paulo Zeminian, Rogério BoroviK, Rubens Zaccharias Jr, Túlio Tavares
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“Monumento às Bandeiras” (1921-1953) de Victor Brecheret20
A Revolta dos Burros proclama o resgate histórico do burro como importante desbravador de caminhos. Os bravos animais chamados de burros subiam e desciam os morros, transportando todo tipo de coisa, de carga, de gente. A representação do burro na história da arte parece secundária, pois sabemos que muitos trajetos irregulares são realizados no lombo de burros e eles foram agentes participantes da história. Já o cavalo figura como símbolo de status e potência. A Revolta dos Burros questiona o lugar dos burros em passagens históricas, principalmente na cultura brasileira. Este animal, que foi fundamental para o transporte e ocupação dos territórios, está sendo esquecido pelas novas gerações informatizadas e urbanas. Com a modernidade, os burros passaram a ser substituídos pelas ferrovias, e sua função se transformou. Os animais foram também historicamente negligenciados, e muitas vezes a sua representação foi substituída pela representação de outros animais. O burro ainda tem lugar na contemporaneidade? E qual o espaço desses bravos animais na história da arte? O coletivo Nova Pasta elegeu duas obras de referência para seus trabalhos. A primeira é a pintura Independência ou morte (1888), do artista Pedro Américo. Esse quadro retrata uma das cenas mais celebradas no imaginário nacional: simboliza o 7 de setembro, o dia da Independência. O coletivo propõe uma releitura contemporânea da pintura por meio de uma nova configuração do conjunto pictórico com as representações dos artistas atuantes e animais. A segunda ação do Nova Pasta toma como ponto de partida a escultura Monumento às bandeiras (1921-1953), de Victor Brecheret. A escultura popularmente conhecida como “Deixa que eu empurro” representa o monumento símbolo às bandeiras, com suas diversas etnias e animais puxando uma canoa. A ação do coletivo acontece por meio de uma intervenção urbana no espaço público, no qual a escultura de Brecheret é questionada como espaço legítimo de representação do animal burro, no lugar dos cavalos, como comprovam os dados históricos. O desafio seria eleger o burro como novo símbolo do país e resgatar sua importância histórica. A REVOLTA DOS BURROS | NOVA PASTA
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O burro alado “Os grandes problemas estão na rua” Nietzsche A figura do burro e o imaginário. Vamos crer por um momento que não somos nós os donos da nossa percepção. Assim, saindo do prumo, da verticalidade e do ponto de vista, vamos para a horizontalidade animal... Recriar em nossas mentes o que é ou poderia ser um burro. Os incontáveis contornos de nossa própria imagem, psicológicos, sociológicos, fisiológicos, filosóficos, parecem nos levar a crer que é necessário levar a sério um projeto radical. Aqui no caso, combinar a figura humana com outros seres, mais especificamente o burrico! E nesse esforço demonstrar que arte é a hipótese da nossa própria irrealidade. Ser um burro, então, é deixar de ter a pretensiosa percepção de onde o mundo se organiza, é deixar que nossas proposições deixem de servir como medida universal do cosmos. Entre o infinitamente grande e o infinitamente pequeno do universo, acontece muita coisa, e o burro sabe disso. Informe Devemos a Georges Bataille o conceito de bassesse (baixeza) para designar um mecanismo que serve para obter o informe. Para ele, o informe é a categoria que permite desconstruir todas as demais categorias. “O cuspe, deletério em seu estado físico informe.” Bataille acredita que esta metáfora suprime as fronteiras por meio das quais os conceitos organizam a realidade, recortam-na, limitam-na em sentidos, como “sobrecasacas matemáticas”. Nossa fusão com o burro é da ordem do informe, já que este não tem sentido. Nossa fusão é a abstração dos conceitos, das noções de definição. Vamos desfazer as categorias formais, vamos negar que as coisas tenham uma forma que lhes é própria. Afinal, a própria vida veio do informe, vai para o informe, e do informe se alimenta. O burro é aquele cuja existência foi subjugada à razão do homem, o transporte, a distância, a carga, como prêmio, a insignificância e o anonimato. No entanto, sua polaridade entre a obediência e a teimosia já o aproxima do homem. O burro, antes chamado onagro pelos sumérios, representava a fauna selvagem, livre do humano, o testemunho de forças primitivas, fora de nosso controle. Ao contrário do cavalo, que sempre foi associado a formas acadêmicas, apolíneas, cuja perfeição clássica é criação do helenismo, uma expressão acabada e eterna da ideia. Nesse sentido, o cavalo, ao contrário do burro, assemelha-se a tantos animais ideia criados pela fantasia mítica do homem: dragões, faunos, sátiros, centauros, esfinges, sereias, deuses egípcios, indianos, minotauros etc... Todos uma espécie de fusão entre homem e bicho, mas que dizem mais respeito a uma separação: nós estamos aqui, estes são os deuses, só têm uma parte da gente, mas não são a gente, são as fantasmagorias do duplo e da imortalidade. Em contrapartida, o burro pertence a uma classe de animais cujas formas são aquilo que Bataille chamou de dementes, tais como orangotangos, hipopótamos, aranhas. A exemplo desses seres, os burros diferenciam-se do ideal: cavalos, tigres, águias. Seu comportamento é desmesurado, cômico, grotesco, sua voz esganiçada. Justamente por estas características, esses animais projetam sempre um vir a ser animal, algo que está presente no homem, que está em toda a sua plenitude biológica, ou seja, puro movimento, reações, contato, instinto, atração, repulsão, corpo fisiológico, sensório. Esses comportamentos sucedem a idealização, a máscara e o não natural, introduzem a desordem no pensamento, tal como o burro, não evocam o transcendente, o metafísico, e sim o presente, porque o burro sempre está em toda a sua verdade, ele é o caminho, é o feno, é a água. O burro é a fusão com a paisagem e com a gente, não se coloca nem acima nem abaixo, não nos é objeto de adoração e esperança. Ele é o burro, o que vai, o que vem, carregador de todos em todos os tempos, e de todas as cargas imagináveis. Não é o que nós queríamos ser, mas somos nós. Vamos agradecer ao burro por esta revelação! Grupo Nova Pasta
Referência Bibliográfica MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras, 2002. A REVOLTA DOS BURROS | NOVA PASTA
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Fotos Museu do Ipiranga A Casa do Grito no Parque do Ipiranga São Paulo (Pq. da Independência) O Museu Paulista da Universidade de São Paulo, conhecido também como Museu do Ipiranga ou simplesmente Museu Paulista, é um museu localizado na cidade de São Paulo, sendo parte do conjunto arquitetônico do Parque da Independência. “INDEPENDÊNCIA OU MORTE” ou “O Grito do Ipiranga” de Pedro Américo (óleo sobre tela, 1888)
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educadores: Carolina Teixeira, Avelino Neto, Bruna Tavares, Lucas D e Renato Almeida.
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Série Coletivos
NOVE COLETIVOS, UMA CIDADE
Foram realizadas intervenções em espaços públicos da cidade de São Paulo ao longo de três meses pelos grupos Bijari, COBAIA, Contrafilé, EIA, Esqueleto Coletivo, Frente 3 de Fevereiro, Nova Pasta, Ocupeacidade e Projeto Matilha. As intervenções geraram uma exposição e este livro com os registros desenvolvidos pelos coletivos. NA BORDA é um projeto que reúne nove coletivos artísticos em torno da prática e da reflexão sobre a intervenção urbana hoje.
NA BORDA
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NOVE COLETIVOS, UMA CIDADE
Bijari COBAIA Contrafilé EIA Esqueleto Coletivo Frente 3 de Fevereiro Nova Pasta Ocupeacidade Projeto Matilha
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PROJETO REALIZADO COM O APOIO DO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, SECRETARIA DA CULTURA, PROGRAMA DE AÇÃO CULTURAL 2011
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