LEIA A INTRODUÇÃO do O Espaço Como Obra - Joana Zatz Mussi

Page 1

3:57 PM

Page 1

O ESPAÇO COMO OBRA é uma reflexão a respeito dos processos de criação e impacto social das ações dos coletivos artísticos MICO, Contrafilé, Frente 3 de Fevereiro e Política do Impossível (de São Paulo) e GAC (de Buenos Aires), que começaram a atuar em meados dos anos 1990. O intuito é compreender como as intervenções urbanas resultam e geram, ao mesmo tempo, uma rede de afetos e significados e evidenciam a emergência de uma subjetividade política contemporânea que passa, necessariamente, por discutir e concretizar políticas de representação, relação, subjetivação e modos de vida alternativos aos impostos pelo neoliberalismo.

JOANA ZATZ MUSSI

Formada em Ciências Sociais e Jornalismo, fundou e integra os coletivos de arte Contrafilé e Política do Impossível. Doutoranda na FAU/USP, na linha de pesquisa Projeto, Espaço e Cultura, sob orientação de Vera M. Pallamin. Participou, junto ao Grupo Contrafilé, dentre outras exposições, da 31a Bienal de São Paulo (2014); If you See Something Say Something, Mori Gallery, Sydney, Australia (2007); La Normalidad/Ex-Argentina, Museu Palais de Glace, Buenos Aires, Argentina (2006) e Collective Creativity, Kunsthalle Fridericianum Museum, Kassel, Alemanha (2005).

Joana Zatz faz uma investigação ativa e participante de diversos trabalhos realizados pelos coletivos na qual as ações/intervenções são pensadas em seu poder disruptivo, ou seja, em sua capacidade de presentificar acontecimentos que de alguma forma desestabilizem representações sociais e sensações prévias.

Joana Zatz Mussi

11/14/14

o espaço como obra

CAPA 09:Layout 1 copy 2

o espaço como obra ações, coletivos artísticos e cidade

Joana Zatz Mussi

Conheci Joana Zatz quando ela era estudante de graduação e me entrevistou para escrever uma matéria sobre Arte Pública. Acompanhei de perto o nascimento do Grupo Contrafilé. No Mídia Tática Brasil, fiz o convite para o agrupamento que ainda não tinha nome. Num bar, perto da Casa das Rosas, vi o nome do grupo surgir quando escolhíamos o prato do cardápio: Contrafilé! Como parceiros, criamos o coletivo Política do Impossível. Nos auto-educamos, discutimos e concebemos diversas situações em torno da vida pública. Procuramos exaustivamente escapar ao modelo de vida dominante em São Paulo. Em toda esta trajetória, Joana sempre teve muito cuidado e atenção com a "escuta vazia". Olhar vivo às sutilezas do discurso e da vivência. Uma disposição ao desenvolvimento conceitual e teórico dentro das formações coletivas diversas. Uma garantia da sistematização do conhecimento produzido. Uma coleta constante “daquilo que transborda”. Não à toa O Espaço como Obra é minucioso resultado de um esforço persistente de pesquisa. O livro configura um lugar que tanto lutamos para consolidar: do conhecimento vivido, fruto da investigação-ação. É sobretudo uma pesquisa do corpo que se expressa também pelos conceitos, costurados com as “evidências” produzidas por diversos atores de uma geração. O Espaço como Obra é uma maneira de (re)conhecer nossa maneira de conhecer. Estamos a construir pequenas pontes, atalhos, entre as peças irregulares, para abrir passagens para novos mundos.

Daniel Lima

Editor e Artista Membro-fundador da Frente 3 Fevereiro e Política do Impossível


3:57 PM

Page 1

O ESPAÇO COMO OBRA é uma reflexão a respeito dos processos de criação e impacto social das ações dos coletivos artísticos MICO, Contrafilé, Frente 3 de Fevereiro e Política do Impossível (de São Paulo) e GAC (de Buenos Aires), que começaram a atuar em meados dos anos 1990. O intuito é compreender como as intervenções urbanas resultam e geram, ao mesmo tempo, uma rede de afetos e significados e evidenciam a emergência de uma subjetividade política contemporânea que passa, necessariamente, por discutir e concretizar políticas de representação, relação, subjetivação e modos de vida alternativos aos impostos pelo neoliberalismo.

JOANA ZATZ MUSSI

Formada em Ciências Sociais e Jornalismo, fundou e integra os coletivos de arte Contrafilé e Política do Impossível. Doutoranda na FAU/USP, na linha de pesquisa Projeto, Espaço e Cultura, sob orientação de Vera M. Pallamin. Participou, junto ao Grupo Contrafilé, dentre outras exposições, da 31a Bienal de São Paulo (2014); If you See Something Say Something, Mori Gallery, Sydney, Australia (2007); La Normalidad/Ex-Argentina, Museu Palais de Glace, Buenos Aires, Argentina (2006) e Collective Creativity, Kunsthalle Fridericianum Museum, Kassel, Alemanha (2005).

Joana Zatz faz uma investigação ativa e participante de diversos trabalhos realizados pelos coletivos na qual as ações/intervenções são pensadas em seu poder disruptivo, ou seja, em sua capacidade de presentificar acontecimentos que de alguma forma desestabilizem representações sociais e sensações prévias.

Joana Zatz Mussi

11/14/14

o espaço como obra

CAPA 09:Layout 1 copy 2

o espaço como obra ações, coletivos artísticos e cidade

Joana Zatz Mussi

Conheci Joana Zatz quando ela era estudante de graduação e me entrevistou para escrever uma matéria sobre Arte Pública. Acompanhei de perto o nascimento do Grupo Contrafilé. No Mídia Tática Brasil, fiz o convite para o agrupamento que ainda não tinha nome. Num bar, perto da Casa das Rosas, vi o nome do grupo surgir quando escolhíamos o prato do cardápio: Contrafilé! Como parceiros, criamos o coletivo Política do Impossível. Nos auto-educamos, discutimos e concebemos diversas situações em torno da vida pública. Procuramos exaustivamente escapar ao modelo de vida dominante em São Paulo. Em toda esta trajetória, Joana sempre teve muito cuidado e atenção com a "escuta vazia". Olhar vivo às sutilezas do discurso e da vivência. Uma disposição ao desenvolvimento conceitual e teórico dentro das formações coletivas diversas. Uma garantia da sistematização do conhecimento produzido. Uma coleta constante “daquilo que transborda”. Não à toa O Espaço como Obra é minucioso resultado de um esforço persistente de pesquisa. O livro configura um lugar que tanto lutamos para consolidar: do conhecimento vivido, fruto da investigação-ação. É sobretudo uma pesquisa do corpo que se expressa também pelos conceitos, costurados com as “evidências” produzidas por diversos atores de uma geração. O Espaço como Obra é uma maneira de (re)conhecer nossa maneira de conhecer. Estamos a construir pequenas pontes, atalhos, entre as peças irregulares, para abrir passagens para novos mundos.

Daniel Lima

Editor e Artista Membro-fundador da Frente 3 Fevereiro e Política do Impossível


3:57 PM

Page 1

O ESPAÇO COMO OBRA é uma reflexão a respeito dos processos de criação e impacto social das ações dos coletivos artísticos MICO, Contrafilé, Frente 3 de Fevereiro e Política do Impossível (de São Paulo) e GAC (de Buenos Aires), que começaram a atuar em meados dos anos 1990. O intuito é compreender como as intervenções urbanas resultam e geram, ao mesmo tempo, uma rede de afetos e significados e evidenciam a emergência de uma subjetividade política contemporânea que passa, necessariamente, por discutir e concretizar políticas de representação, relação, subjetivação e modos de vida alternativos aos impostos pelo neoliberalismo.

JOANA ZATZ MUSSI

Formada em Ciências Sociais e Jornalismo, fundou e integra os coletivos de arte Contrafilé e Política do Impossível. Doutoranda na FAU/USP, na linha de pesquisa Projeto, Espaço e Cultura, sob orientação de Vera M. Pallamin. Participou, junto ao Grupo Contrafilé, dentre outras exposições, da 31a Bienal de São Paulo (2014); If you See Something Say Something, Mori Gallery, Sydney, Australia (2007); La Normalidad/Ex-Argentina, Museu Palais de Glace, Buenos Aires, Argentina (2006) e Collective Creativity, Kunsthalle Fridericianum Museum, Kassel, Alemanha (2005).

Joana Zatz faz uma investigação ativa e participante de diversos trabalhos realizados pelos coletivos na qual as ações/intervenções são pensadas em seu poder disruptivo, ou seja, em sua capacidade de presentificar acontecimentos que de alguma forma desestabilizem representações sociais e sensações prévias.

Joana Zatz Mussi

11/14/14

o espaço como obra

CAPA 09:Layout 1 copy 2

o espaço como obra ações, coletivos artísticos e cidade

Joana Zatz Mussi

Conheci Joana Zatz quando ela era estudante de graduação e me entrevistou para escrever uma matéria sobre Arte Pública. Acompanhei de perto o nascimento do Grupo Contrafilé. No Mídia Tática Brasil, fiz o convite para o agrupamento que ainda não tinha nome. Num bar, perto da Casa das Rosas, vi o nome do grupo surgir quando escolhíamos o prato do cardápio: Contrafilé! Como parceiros, criamos o coletivo Política do Impossível. Nos auto-educamos, discutimos e concebemos diversas situações em torno da vida pública. Procuramos exaustivamente escapar ao modelo de vida dominante em São Paulo. Em toda esta trajetória, Joana sempre teve muito cuidado e atenção com a "escuta vazia". Olhar vivo às sutilezas do discurso e da vivência. Uma disposição ao desenvolvimento conceitual e teórico dentro das formações coletivas diversas. Uma garantia da sistematização do conhecimento produzido. Uma coleta constante “daquilo que transborda”. Não à toa O Espaço como Obra é minucioso resultado de um esforço persistente de pesquisa. O livro configura um lugar que tanto lutamos para consolidar: do conhecimento vivido, fruto da investigação-ação. É sobretudo uma pesquisa do corpo que se expressa também pelos conceitos, costurados com as “evidências” produzidas por diversos atores de uma geração. O Espaço como Obra é uma maneira de (re)conhecer nossa maneira de conhecer. Estamos a construir pequenas pontes, atalhos, entre as peças irregulares, para abrir passagens para novos mundos.

Daniel Lima

Editor e Artista Membro-fundador da Frente 3 Fevereiro e Política do Impossível


3:57 PM

Page 1

O ESPAÇO COMO OBRA é uma reflexão a respeito dos processos de criação e impacto social das ações dos coletivos artísticos MICO, Contrafilé, Frente 3 de Fevereiro e Política do Impossível (de São Paulo) e GAC (de Buenos Aires), que começaram a atuar em meados dos anos 1990. O intuito é compreender como as intervenções urbanas resultam e geram, ao mesmo tempo, uma rede de afetos e significados e evidenciam a emergência de uma subjetividade política contemporânea que passa, necessariamente, por discutir e concretizar políticas de representação, relação, subjetivação e modos de vida alternativos aos impostos pelo neoliberalismo.

JOANA ZATZ MUSSI

Formada em Ciências Sociais e Jornalismo, fundou e integra os coletivos de arte Contrafilé e Política do Impossível. Doutoranda na FAU/USP, na linha de pesquisa Projeto, Espaço e Cultura, sob orientação de Vera M. Pallamin. Participou, junto ao Grupo Contrafilé, dentre outras exposições, da 31a Bienal de São Paulo (2014); If you See Something Say Something, Mori Gallery, Sydney, Australia (2007); La Normalidad/Ex-Argentina, Museu Palais de Glace, Buenos Aires, Argentina (2006) e Collective Creativity, Kunsthalle Fridericianum Museum, Kassel, Alemanha (2005).

Joana Zatz faz uma investigação ativa e participante de diversos trabalhos realizados pelos coletivos na qual as ações/intervenções são pensadas em seu poder disruptivo, ou seja, em sua capacidade de presentificar acontecimentos que de alguma forma desestabilizem representações sociais e sensações prévias.

Joana Zatz Mussi

11/14/14

o espaço como obra

CAPA 09:Layout 1 copy 2

o espaço como obra ações, coletivos artísticos e cidade

Joana Zatz Mussi

Conheci Joana Zatz quando ela era estudante de graduação e me entrevistou para escrever uma matéria sobre Arte Pública. Acompanhei de perto o nascimento do Grupo Contrafilé. No Mídia Tática Brasil, fiz o convite para o agrupamento que ainda não tinha nome. Num bar, perto da Casa das Rosas, vi o nome do grupo surgir quando escolhíamos o prato do cardápio: Contrafilé! Como parceiros, criamos o coletivo Política do Impossível. Nos auto-educamos, discutimos e concebemos diversas situações em torno da vida pública. Procuramos exaustivamente escapar ao modelo de vida dominante em São Paulo. Em toda esta trajetória, Joana sempre teve muito cuidado e atenção com a "escuta vazia". Olhar vivo às sutilezas do discurso e da vivência. Uma disposição ao desenvolvimento conceitual e teórico dentro das formações coletivas diversas. Uma garantia da sistematização do conhecimento produzido. Uma coleta constante “daquilo que transborda”. Não à toa O Espaço como Obra é minucioso resultado de um esforço persistente de pesquisa. O livro configura um lugar que tanto lutamos para consolidar: do conhecimento vivido, fruto da investigação-ação. É sobretudo uma pesquisa do corpo que se expressa também pelos conceitos, costurados com as “evidências” produzidas por diversos atores de uma geração. O Espaço como Obra é uma maneira de (re)conhecer nossa maneira de conhecer. Estamos a construir pequenas pontes, atalhos, entre as peças irregulares, para abrir passagens para novos mundos.

Daniel Lima

Editor e Artista Membro-fundador da Frente 3 Fevereiro e Política do Impossível


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 3

O ESPAÇO COMO OBRA ações, coletivos artísticos e cidade


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 4


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 5

O ESPAÇO COMO OBRA ações, coletivos artísticos e cidade

São Paulo 2014 Joana Zatz Mussi


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 6

Manifestação no Largo da Batata, São Paulo, Junho de 2013.


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 7

A urgência não é uma bandeira, é uma necessidade que se impõe.1 1. Contrafilé, Lucas Bambozzi, Ricardo Rosas, Artigo Urgência in: Revista Parachute número 116 (São Paulo). Editora: Suely Rolnik, Montreal, Canadá, 2003.


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 8


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 9

para Seba e Rafa, meus amores


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 10


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Prefácio por Vera Pallamin Introdução Conversa introdutória

Page 11

Sumário

Capítulo I – Nada é mais importante do que essa nuança fugidia Aprendendo a se entregar ao risco Não estamos em rebelião: notando na hegemonia a diferença Mídia Tática Enunciação e emancipação Metáforas do confinamento Capítulo II – A cidade em disputa A cidade enquanto espaço referencial Espacialização da norma e da invenção Circulação: o local e o deslocado, encontro do GAC com coletivos de São Paulo e contaminações Capítulo III – Pensando a crítica Justaposição e instituição Repensando a crítica Performatizar a crítica

Capítulo IV – Eles não podem partir sem nós Local e Global: escala 1:1 em movimento Estranhar o próximo, aproximar o distante Um agir que conecta Agradecimentos Bibliografia Lista de Imagens

13 17 31 43 44 61 69 78 96

115 116 124 150

177 178 183 191

209 210 214 217 248 250 255


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 12


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 13

PREFÁCIO por Vera Pallamin “O espaço como obra” e “a cidade em disputa”: nesse trabalho, que é multicêntrico, esses dois núcleos conceituais têm uma enorme força de síntese em relação ao conjunto, uma vez que tencionam os objetos, modos e resultados que estão em jogo nesta arena de produção da cultura. Nele entrelaçam-se os planos do urbano, do estético e do político, em torno de ações que transformam os campos de embate nos quais atuam em plataformas de produção de imagens, cartografias, intervenções e símbolos críticos, que transfiguram artisticamente os limites e as dominâncias ali presentes. Nesse terreno tudo gira em torno do coletivo, da sua vocalização, valorização e fortalecimento, o que, de saída, mostra-se na contramão do fluxo dominante no contemporâneo do individualismo concorrencial, dilapidador, que metaboliza corpos e condutas, redutoramente, como mero ‘capital humano’. Ao contrário, todo empenho reunido nesse livro é motivado pela (difícil) construção em torno de sentidos pactuados, a começar pelas suas narrativas poéticas, feitas de encontros, diálogos, escutas e saberes partilhados. Os diversos estratos propostos mobilizam temporalidades entrecruzadas, seja em relação às durações heterogêneas e conflituais internas às questões urbanas confrontadas, seja frente ao andamento das ações estéticas em suas particularidades. A escrita, em seus detalhes, inclui a retomada de um percurso mais amplo de um grupo de artistas, em meio ao qual conformaram-se, ao mesmo tempo, seus movimentos de subjetivação artística e política. A montagem elaborada entre os coletivos de arte e suas proposições exigiu, a cada caso, conceber-se uma maneira de ensaiar

13


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 14

o modo de dizê-las e mostrá-las. Para tanto, o entrelaçamento de imagens e palavras responde a uma acuidade específica, pois mais do que um documento de memória – cultural, artística e urbana - trata-se também de uma forma de continuidade dos próprios trabalhos em pauta: as séries, sequências, ângulos, inserções e enquadramentos inscrevem-se cuidadosamente em consonância com as matrizes estéticas originais, seguindo de perto suas vibrações e seus campos de força. A relação estética neles privilegiada alinha-se, em termos mais amplos, ao legado dos anos 1960, no qual a experiência estética, deixando para trás preceitos caros ao modernismo, abriu-se à participação do espectador e ao envolvimento ativo da arte em assuntos e circunstâncias de relevância política e social. Essa relação é tratada de modo a apresentar as disposições imediatas experienciadas pelos agenciamentos coletivos, porém balizando-as pela intenção mais forte de refletir sobre como as ações estéticas operam, como colocam em trabalho a recepção, com suas concordâncias e dissonâncias. Há uma processualidade no encontro sensível proporcionado pelo trabalho de arte, na maneira mesma como este se faz presente, como opera nas subjetividades e vice-versa, não apenas na ordem do intelecto, mas atravessando os corpos inteiramente. Essa processualidade faz do estético um meio de intervir e agir, de ensaiar o que se pode fazer, dizer e pensar dessas coisas que não são da ordem da norma, do cotidiano, do consolidado, mas sim da diferença e, como nos casos em estudo, do político. Esses ‘ensaios’ que aqui se mostram se comprometem, sem exceção, com a vontade de transformação das condições de existência coletiva. Sua força está em expressar, fomentar, adensar, consolidar, impulsionar uma vontade cultural e social de mudança da vida pública e, nessa perspectiva, a noção de resistência é como que um

14


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 15

fio que alinhava internamente os coletivos de arte estudados, rearticulando-se segundo modulações, ora como objeto, como resultante ou como projeto. Em suas ações, a tensão entre a micro-situação e a macropolítica é incontornável, uma vez que toda a potência investida no escopo estrito das suas singularidades demonstra possuir um vínculo direto com a polêmica mais ampla da extensão da democracia. Penso aqui na acepção de democracia não como um regime governamental, mas no sentido em que Jacques Rancière a caracteriza, como ‘o motor mesmo da política’, da luta de ‘reconfiguração das distribuições do sensível’, o que implica um alargamento do comum, a ampliação do que é público e a incessante verificação política do axioma da igualdade. Essa produção poética e seus embates no campo do simbólico confronta-se, no plano urbano, com uma condição contemporânea na qual acentua-se a cultura do ilimitado, e em que a (re)produção do espaço urbano é acirrada pela lógica da acumulação e de valorização do valor, sendo submetida a patamares mais intensos tanto do ponto de vista quantitativo quanto da rapidez de sua concreção e comercialização. Nas metrópoles o urbano tem se generalizado em malhas cada vez mais extensas, num movimento simultâneo ao rebaixamento das relações de urbanidade. O predomínio dos fluxos sobre os lugares tem motivado alterações incisivas nos territórios, e estes, pautados pela dinâmica material da mundialização do capital e do mercado, têm sofrido, sob distintas velocidades, ações de parcelamento, fragmentação e segregação física, social e econômica, em grande parte alimentadas pela especulação imobiliária. A horizontalidade facilitada pelas redes mostra-se falsamente contínua, promovendo descontinuidades, divergências e disparidades. Os espaços públicos deixam de ter relevância passando a ser

15


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 16

predominantemente funcionalizados, e a luta dos lugares mostra-se como uma das pontas de lança na cidade sobre como ocorre, no presente, a espacialização das tensões e conflitos sociais. A atitude crítica da autora e dos coletivos em relação a esses processos toma corpo em gestos e imagens que, no trabalho de criação, abrem dimensões do sensível e da linguagem, oferecendo ao leitor certezas, latências e indagações que convidam à reflexão e reenviam à fecundidade de se verificar constantemente, pela arte, o domínio do que é o comum.

16


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 17

INTRODUÇÃO Se existe algo a esboçar no atual ciclo de protestos (que, apenas para descrevê-lo rapidamente, tem períodos de máxima visibilidade com o contexto compreendido entre Seattle e Gênova ou a manifestação mundial contra a guerra do Iraque, momentos fundantes como a insurreição zapatista de 1994, efeitos em escala macropolítica como os processos de mudança institucional na América Latina, etc.), é seguramente a maneira como a inovação constitui uma característica estrutural das novas formas de ação e construção política que estão na base deste ciclo. Parece dar-se nesses anos uma verificação da imagem da máquina que Guattari e Deleuze utilizaram para denominar a necessidade de formas organizativas abertas e flexíveis para a criatividade política, para as quais as dimensões molar e molecular, micro e macro da política, puderam deixar de ser, como em outros momentos foram, mutuamente excludentes (Marcelo Expósito)2.

[…] O Manifesto do Movimento de 15-M afirma muito claramente: ‘As prioridades de qualquer sociedade avançada devem ser a igualdade, o progresso, a solidariedade, o livre acesso à cultura, a sustentabilidade ecológica e o desenvolvimento, o bemestar social e a felicidade das pessoas’. […] A cidadania hoje se constitui como tendência à autorrepresentação. Migrantes, mulheres, pessoas afetadas pelas hipotecas, pela destruição do meio ambiente ou pela degradação dos serviços públicos, comunidades agrupadas em torno de modos de vida singulares, redes sociais e um longo etcetera de composições emergentes têm encontrado for-

2. Por ocasião do Seminário Máquinas, do qual participei junto com Daniel Lima, sob coordenação da Revista Brumaria, Museu d'Art Contemporani de Barcelona (Macba), 2007. 17


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 18

mas de falar por si mesmos, sem as formas calcificadas de mediação por parte do aparato institucional ou representativo. Tudo indica que a esquerda partidária será obrigada a atravessar, não apenas na Espanha, mas em toda a Europa, uma longa jornada através do deserto. É hora de assumir a obrigação de ensaiar, para um futuro próximo, novas abordagens que só podem passar pela aceitação dos limites de sua representatividade e pela cooperação com os movimentos e as formas de associação que crescem nas novas texturas urbanas […] (Marcelo Expósito, Tomas Herreros e Emmanuel Rodriguez)3. Nos últimos quatorze anos, ao longo dos quais estive permanentemente envolvida com práticas artísticas que encontram no espaço urbano um dos seus grandes referenciais, uma necessidade que sempre volta a se colocar para mim é a de pensar o lugar da cidade nessas práticas e, inversamente, o lugar dessas práticas na cidade; ao mesmo tempo, de compreender em que sentidos essa relação diz respeito ao mundo contemporâneo. Portanto, de fazer esse exercício de espelhamento em que a compreensão das problemáticas que se colocam hoje permite um entendimento mais profundo daquilo que gera esse tipo de experiência de produção e usufruto do espaço, no qual coletivos e artistas trabalham a partir da cidade, se vendo efetivamente como produtores dela. Essa produção da cidade pelas práticas artísticas aqui analisadas é discutida como sendo um fenômeno não apenas macropolítico, mas também micropolítico, na medida em que acontece como um trabalho de elaboração da experiência de embate pela construção do espaço público. O estudo dos processos de criação e impacto social das ações de coletivos artísticos que atuam desde meados dos anos 1990, 3. In: Global Brasil/Revista Nômade, edição 14 (on-line), 2011. Link: http://www.revistaglobalbrasil.com.br/?p=690 18


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 19

auge das políticas neoliberais globalizadas, quando surgiram em distintas partes do mundo, evidencia que estes têm como uma de suas práticas mais contundentes a imersão em problemáticas situacionais e é daí que partem para apoderar-se da construção de discursos alternativos, criando com isso uma multiplicidade de formas, representações, soluções criativas e performáticas. Focarei a prática de quatro coletivos: Contrafilé4, com o qual trabalho desde que iniciei, em 2001, as minhas pesquisas e práticas nesse campo de atuação (passarei pelo MICO, grupo a partir do qual o Contrafilé nasceu, para mostrar o surgimento de problemáticas que depois seriam aprofundadas de diferentes formas pelos outros grupos); Política do Impossível5, coletivo formado em 2005 que tem como foco a prática educativa como prática artística e do qual também faço parte; Frente 3 de Fevereiro6, coletivo de São Paulo que trabalha com a atualização das formas de compreensão do racismo na sociedade brasileira; e Grupo de Arte Callejero (GAC)7, de Buenos Aires, Argentina, que me permite abordar o problema a partir de uma perspectiva, ao mesmo tempo, local e (mesmo que minimamente) deslocada. O critério usado para a escolha tem em vista a dimensão crítica do trabalho desses coletivos (ou seja, sua capacidade de produzir novos sentidos no e para o espaço urbano), em contraposição a outras práticas que são capturadas apenas como “produtos culturais”. Além disso, conheço a história dos quatro grupos em profundidade e tenho acesso a um número extensivo de documentação sobre todos os trabalhos por 4. “Formado em São Paulo, Brasil, no ano 2000, o Contrafilé é um grupo de investigação e produção de arte que trabalha a partir de sua experiência cotidiana, implicado na realização da vida pública, o que é, ao mesmo tempo, ponto de partida e território de proliferação do seu trabalho”. In: A Rebelião das Crianças, publicação apoiada pelo VAI (Valorização de Iniciativas Culturais), São Paulo, 2007. O Contrafilé surgiu como decorrência do fim do grupo MICO, formado por cerca de 20 jovens no ano 2000 na cidade de São Paulo. 5. “O coletivo Política do Impossível – PI realiza projetos de educação e produção coletiva de arte desde 2004. Cria projetos de investigação e ação no espaço urbano que colocam os participantes como ativos na dinâmica da cidade, contra sua perpetuação como espaço dissociado da vida, tornando visíveis possibilidades e desejos de transformação no sentido da criação de vida pública. O coletivo entende que é no exercício cotidiano de um olhar íntegro, capaz de relacionar informações e intervir na realidade, que se constitui a possibilidade de produzir sentidos, e não apenas reproduzi-los”. In: Cidade Luz – Uma investigação-ação no centro de São Paulo, publicação realizada com o apoio do Minc/Funarte, São Paulo, 2008.

19


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 20

eles realizados e às discussões sobre seus processos internos de produção e de decisões. O que é fundamental, já que esse tipo de reflexão, que tem como foco a teia micropolítica que se forma para que uma ação artística seja inscrita no espaço visível, macropolítico, conta, necessariamente, com esse tipo de material, nem sempre disponível ou objetualizado. A relação de certo afastamento, que não chega a se configurar como uma negação, dos coletivos em relação às questões do circuito mercantil da arte contemporânea, e o desconforto que possuem quanto às estratégias (institucionais) de sedução mercantil são outro ponto chave, pois permite uma leitura sobre o tipo de crítica institucional que desenvolvem, o que torna mais clara também a compreensão que têm em relação à produção dos espaços urbanos. O que impulsiona a atuação dessa rede de colaboração na qual estão envolvidos os coletivos mencionados é a possibilidade de disputar territórios materiais e simbólicos com os poderes hegemônicos. A prática artística se dá como uma tentativa de fazer emergir, como ao menos a “imagem da experiência de um devir”, outros projetos de sociedade, sendo a cidade o domínio no qual as múltiplas escalas em jogo na disputa por esse projeto se evidenciam, se encontram, se sobrepõem, se atualizam e se confrontam. Essas imagens, que surgem a partir de determinadas situações e problemáticas locais têm, por sua vez, um potencial de iluminar questões em outros contextos situados, na medida em que tanto nomeiam – criando formas de tornar visíveis

20

6. “A Frente 3 de Fevereiro é um grupo de pesquisa e intervenção artística acerca do racismo na sociedade brasileira. Sua abordagem cria novas leituras e coloca em contexto dados que chegam à população de maneira fragmentada através dos meios de comunicação. As intervenções artísticas criam novas formas de manifestação sobre as questões raciais. Para pensar e agir em uma realidade em constante mudança, permeada por transformações culturais de diversas escalas e sentidos, se fazem necessárias novas estratégias. A Frente 3 de Fevereiro associa o legado artístico de gerações que pensaram maneiras de interagir com o espaço urbano à histórica luta e resistência da cultura afro-brasileira”. In: Zumbi Somos Nós – Cartografia do Racismo para o Jovem Urbano, publicação apoiada pelo VAI, São Paulo, 2006. 7. “El GAC / GRUPO DE ARTE CALLEJERO se formó en 1997, a partir de la necesidad de crear un espacio donde lo artístico y lo político formen parte de un mismo mecanismo de producción. Es por eso que a la hora de definir nuestro trabajo se desdibujan los límites establecidos entre los conceptos de militancia y arte, y adquieren un valor mayor los mecanismos de confrontación real que están dados dentro de un contexto determinado”. In: http://grupodeartecallejero.blogspot.com.br, acessado em junho de 2012.


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 21

e legíveis – acontecimentos estratégicos na produção do espaço social contemporâneo, quanto ampliam a visibilidade e legibilidade deles, transformando-os em imagens que circulam e, assim, inserindo-os efetivamente em um “território circulatório” mais amplo. Nesse processo, podemos dizer que se cria um tipo específico de “território circulatório estético e simbólico”, no qual as imagens surgem da colaboração e mostram um uso alternativo, crítico e subversivo do espaço urbano, uma alternativa de produção do espaço social. Neste sentido, os símbolos, discursos, intervenções criados pelas práticas artísticas situadas, podem ser entendidos como formas de forçar a entrada de dizeres dissonantes como produtores no/do espaço urbano. Nos coletivos analisados, as formas de comunicação que articulam a própria cidade como mídia partem do princípio de que somente uma investigação situada é capaz de criar dispositivos estético-políticos com potencialidade de reinvenção do espaço social. Em relação à criação de uma perspectiva que dê conta da dimensão de acontecimento contida nesses trabalhos, [...] a teoria crítica estética, atualmente, abre outras perspectivas de entendimento e atuação por meio da investigação das práticas e manifestações como esferas de representação, nas quais os sujeitos sociais envolvidos e os sentidos são produzidos em situação (Pallamin, 2002, p. 107)

Por isso, não pretendo realizar a análise do “movimento” ou uma cartografia para identificar grupos e circunscrever “tipos de ação”. Mas sim, dar corpo conceitual para questões que permeiam as discussões e práticas aqui analisadas, tais como: como acontece e se expressa este tipo de resistência, no contexto específico e complexo

21


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 22

da cidade como referencial; em que sentidos estas experiências, em sua potência8, podem ser entendidas como políticas; por que estas formas do fazer político são vividas, entendidas e elaboradas em conexão indissociável com a dimensão do corpo; o que permitiu, antes de virtual ou presencialmente se conhecerem, que essas práticas urbanas surgissem e atuassem de forma semelhante em diversas partes do mundo; como se atualiza a noção de “comunidade” a partir da multiplicidade presente nessas práticas; que políticas de subjetivação estão sendo inventadas nesse movimento; como esse movimento cultural atualiza as formas de pensar e experimentar a crítica institucional; o que terá levado ao rompimento com disciplinas específicas9 e caminhos institucionalizados? O enfrentamento deste campo problemático impõe a convocação de um olhar transdisciplinar, já que estão aí imbricadas inúmeras camadas da realidade, no plano tanto macropolítico (fatos e modos de vida em sua exterioridade formal, sociológica), quanto micropolítico (forças que agitam a realidade, dissolvendo suas formas e engendrando outras, num processo que envolve o desejo e a subjetividade) (Rolnik, 2006).

Vamos aqui compreender a “cidade” como esse “campo problemático”. Portanto, em nenhum momento o espaço urbano será aqui colocado de forma “temática” mas, sobretudo, como espaço vivo que se transforma na matéria-prima de criação de todo um movimento cultural que pretende criar modos de vida alternativos, colocando em xeque diversos tipos de estruturas de poder. O contato com universos de pensamento, como o da sociologia e antropologia contemporâneas, foi fundamental já que trazem re-

22

8. “[...] A saber: as ações e as paixões de que algo é capaz. Não o que a coisa é, senão o que é capaz de suportar e fazer. E se não há essência geral é porque neste nível, ao nível da potência, tudo é singular.” (Gilles Deleuze, 2004, p. 50). 9. Os coletivos artísticos, em sua maioria, são compostos por profissionais de diversas áreas: artistas plásticos, sociólogos, geógrafos, arquitetos, músicos, urbanistas, psicanalistas, etc.


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 23

flexões sobre o que leva a cidade a ser a escala privilegiada para a compreensão das formas de produção social. Muitas questões reverberam as estratégias através das quais as práticas artísticas situadas no espaço urbano discutem e disputam o projeto de cidade em curso, pois estas desafiam a pensar os limites entre o legal e o ilegal, o lícito e o ilícito, na medida em que se propõem a disputar a própria definição do que é legal e ilegal na produção do espaço. A partir do momento em que pensamos a cidade como um “campo problemático” no qual operam múltiplas situações de disputa, cabe lançar um olhar reflexivo para entender como ela aparece efetivamente nos trabalhos que serão aqui apresentados e por que é muitas vezes compreendida como espaço por excelência de experiência, reflexão, ação e de percepção de si e do outro; espaço no qual a invenção de uma outra forma de estar no mundo, de conviver e de construir os próprios valores e critérios de beleza e riqueza se torna viável. Será que podemos encontrar uma pista na ideia de Don Mitchell segundo a qual “Ao reclamar o espaço público em público, ao criar espaços públicos, os próprios grupos sociais tornamse públicos” (Mitchell, 2003 apud Harvey, 2008, p. 16)10? E, assim, aprender a produzir modos de deixar-se afetar pelo entorno e pelo outro somente seria possível em situação? Uma questão que então se coloca é a de quais seriam as condições para que a “representação direta” consiga condensar uma experiência crítica do conflito de forma esteticamente potente. A ideia de “representação direta” foi lançada pelo crítico de arte Brian Holmes em 2000, em Barcelona, durante o workshop “De la acción directa como una de las bellas artes”: Marcelo Expósito: Si te parece bien, comencemos por el término “representación directa”. Consistía en una 10. Don Mitchell, The Right to The City. Minneapolis, Minnesota University Press, 2003, p. 12.

23


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 24

especie de mediación en el debate sobre las nuevas prácticas artísticas activistas que a finales de la década de los noventa, en algunos ambientes, se encontraba inútilmente polarizado entre dos extremos: ‘representación’ vs. ‘acción directa’. […] Martha Rosler habla de “representación participativa” para defender la necesidad de seguir produciendo representaciones no alienantes ni explotadoras en las que el sujeto representado tome parte activa, sin ser cosificado; y tú propones este concepto, ‘representación directa’, en términos no muy alejados de los de Rosler. Brian Holmes: Lancé esta idea de “representación directa” en el 2000, aquí mismo, en Barcelona, durante el taller “De la acción directa como una de las bellas artes”. Era una provocación contra la vieja idea anarcosituacionista de que toda acción simbólica se encuentra alienada respecto al espectáculo unificado de la representación política y el imaginario comercial, de tal manera que la única respuesta solo podría consistir en un acto secreto, denso, invisible y rigurosamente material: bloquear algo, un tren, una autopista, una cumbre. Por supuesto que este tipo de acción puede ser extremadamente efectiva, pero desde el punto de vista artístico se puede hablar también de otras cosas. En el contexto del movimiento antiglobalización, que ha operado tan decididamente a través de Internet, e incluso a través de los medios de masas, la idea de una acción directa ‘pura’ está tan alejada de la realidad que parece absurda. Yo, por aquel entonces, trabajaba con Ne Pas Plier en proyectos que intervenían en la calle. Se trataba de distribuir ‘medios de representación’, de coger pegatinas u otros materiales impresos, y repartirlos en medio de la gente para que millares de personas pudieran llevarlos en su propio cuerpo y darles voz: usarlos, regalarlos a otras personas con el fin de

24


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 25

cualificar una manifestación para que no fuera una mera masa de cuerpos, sino una colectividad que pretende decir algo. La gente podía hablar mediante esas imágenes, a la vez que la prensa y los fotógrafos que formaban parte del movimiento realizaban nuevas imágenes a partir de estos usos. De esa manera el evento transmitía un mensaje de multiplicidad: interpretaciones personales de ideas colectivas que se filtran a través de las diversas capas de la comunicación mediática, posibilitando diferentes tipos de efectos. […] (Brian Holmes entrevistado por Marcelo Expósito, 2006, p. 345).

O estudo dos processos e trabalhos em pauta passa, portanto, por entender como, quando e por que as intervenções artísticas têm um poder disruptivo, ou seja, são capazes de desestabilizar representações sociais e sensações prévias; ao evidenciar a possibilidade de fazê-lo, trazem à tona a produção compartilhada de um novo imaginário a respeito do espaço e, com isso, a experiência do “público” como obra. A intervenção na vida pública, para nós, é uma prática que permite – seja no âmbito da denúncia ou do anúncio – trazer à superfície e colocar em discussão o que estava presente em um determinado contexto, mas por algum motivo não estava sendo dito ou visto. Possibilita gerar um estranhamento de situações normalizadas dando lugar, nesse movimento, a uma mudança da chave de leitura sobre essas situações. As formas a partir das quais estas intervenções são criadas são singulares a cada contexto, já que este é necessariamente o ponto de

25


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 26

partida e de chegada. A intervenção nos permite encarar de forma criativa os problemas sociais, políticos, culturais que nos atravessam todos os dias. Acreditamos que apenas a elaboração coletiva dos conflitos com todas as suas contradições e mistérios possa ampliar as possibilidades de sua compreensão ao criar um espaço de fala, escuta, ação e reflexão. Para nós, esta tem sido uma forma de construir um posicionamento mais efetivo e consciente e de resistir à apropriação automática dos fatos – que os torna formas fixas e esvaziadas de experiência, estratégia clara de controle que contribui para a estabilização e reprodução de toda a estrutura histórica de desigualdade e segregação social. Reinventar, a todo o momento, as formas de denúncia e anúncio dos fatos é, então, parte fundamental deste percurso (Contrafilé, 2007, p. 7).

O fato de que estejam contidas nestes modos de ação no espaço público tanto a dimensão coletiva quanto a dimensão estética não é, portanto, um apêndice deste processo. A dimensão coletiva, por um lado, é intrínseca ao próprio esforço por reivindicar o direito à cidade. Neste aspecto, para David Harvey: “O direito à cidade não pode ser concebido simplesmente como um direito individual. Ele demanda um esforço coletivo e a formação de direitos políticos coletivos ao redor de solidariedades sociais” (2008, p. 15).

26


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 27

Nos coletivos artísticos, este esforço está contido no ato de auto-organizar-se, estabelecer regras e condições de convivência e produção e, por fim, no gesto estético que intervêm no âmbito do público. A dimensão estética, por sua vez, tem profunda relação com a força de um corpo que se coloca em risco11 para tornar visível e legível o instante de invenção de um espaço social com determinadas qualidades. Um componente a ser observado nas ações dos grupos em pauta e que é determinante na maior ou menor potência do gesto estético, é a escolha do contexto onde a intervenção é feita em relação às qualidades do espaço denunciado e anunciado. Interessa pensar como se dá o complexo cruzamento entre uma intervenção artística e o espaço social para que a construção simbólica tenha a potência de “interferir na narrativa social, de gerar, por mais mínimos que sejam, deslocamentos na configuração estabelecida do possível” (Política do Impossível, 2006).

É importante também destacar alguns aspectos que marcam este trabalho. Apresenta-se a construção de uma narrativa que partiu daquilo que movia as preocupações de um determinado grupo, como base para uma interpretação de caráter mais conceitual. Assim, ao mesmo tempo que existe um fio cronológico no trabalho, este é a todo momento interrompido por inflexões que representam descobertas do pensamento conforme a memória é ativada. Saltos e sobressaltos são dados, criando uma teia de ideias que opera a partir de diversas temporalidades sobrepostas. Ao longo do livro privilegia-se a ideia de “investigação-ação”, na qual a própria investigação é compreendida como intervenção. Trata11. Essa ideia de um “corpo que se coloca em risco” é bastante utilizada neste livro e diz respeito à forma acionada pelo tipo de trabalho aqui analisado, na qual o “sujeito” se coloca no centro de situações sociais conflitivas para denunciar e anunciar aquilo que está vendo, pensando e sentindo. Esse tipo de fazer político-artístico resulta em soluções imagéticas nas quais captar o corpo em confronto com o espaço, ou o indício desse enfrentamento, se torna fundamental.

27


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 28

se do exercício de dar corpo conceitual a experiências que são de fato relevantes para aquele que as pensa, acarretando novas experiências. Como diz o coletivo argentino Situaciones: Se nos referimos ao compromisso e ao caráter ‘militante’ da investigação, o fazemos em um sentido preciso, ligado a quatro condições: a) o caráter da motivação que sustenta a investigação; b) o caráter prático da investigação (elaboração de hipóteses práticas situadas); c) o valor do investigado: o resultado da investigação só se dimensiona em sua totalidade em situações que compartilham tanto a problemática investigada quanto a constelação de condições e preocupações; e d) o seu procedimento efetivo: seu desenvolvimento é já resultado, e o seu resultado redunda em uma imediata intensificação dos procedimentos efetivos (Colectivo Situaciones e MTD Solano, 2002, p. 13-14).

O plano teórico de forma alguma pretende se descolar da experiência para tornar-se uma espécie de voz racional da verdade. Esse exercício de fortalecimento da reflexão a partir da prática tem, no entanto, uma série de consequências. Uma delas consiste na opção em apresentar, em alguns momentos, vozes, imagens e reflexões que no andamento processual de certos trabalhos evidenciam certa ingenuidade. A menção a estes momentos tem por objetivo mostrar como se deu, em diversas ocasiões, essa passagem do desejo, da fragilidade, da incerteza, do confronto, para a produção de trabalhos e reflexões com forte impacto simbólico – já que é justamente nesse

28


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 29

movimento que encontramos a potência dos gestos artísticos aqui apresentados. Por último, uma das tantas dificuldades que se apresentaram ao longo deste trabalho de elaboração foi diferenciar as diversas vozes que o compõem. A minha voz como “estudante e pesquisadora”; a minha voz enquanto artista e as vozes dos outros artistas (coletivos) aqui apresentados enquanto citações; as vozes teóricas e da mídia que, em diferentes sentidos, são referências para a construção do pensamento aqui desenvolvido; as vozes dos coletivos, tanto dos quais eu faço parte, quanto dos que eu não faço, quando essas são interpretadas por mim enquanto textos-obras12. O critério utilizado para entender que o trabalho deste livro deveria evidenciar o aspecto múltiplo dele mesmo foi a característica comum tanto dos coletivos aqui acionados, como de tantos outros que compõem essa rede de colaboração, de refletir sobre a própria prática, produzindo textos, livros, manifestos que são, de fato, compreendidos como obras, assim como o são, obviamente, as imagens, performances, intervenções.

12. Nesse sentido, a produção de imagens adquire um caráter amplo, pois diz respeito à invenção e/ou subversão de imaginários, o que pode ser feito através de estratégias distintas (texto, fotografia, intervenção urbana, leituras críticas de jornais, etc.) e muitas vezes sobrepostas.

29


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 30

Vozes: 1. a minha voz como “estudante e pesquisadora”. 2. as vozes dos coletivos enquanto citações.

3. as vozes teóricas, de artistas e da mídia que, em diferentes sentidos, são referências para a construção do pensamento aqui desenvolvido. 4. as vozes dos coletivos enquanto textos-obras. 5.

os textos-obras dos coletivos enquanto documentos.

30


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 31

Conversa Introdutória

Abaixo, reproduzo alguns trechos da “conversa” ocorrida no meu exame de qualificação de mestrado13 que lançam questões para mim fundamentais e que serão tratadas ao longo do livro. Não opto por colocá-la aqui de forma arbitrária, mas porque, ouvindo a gravação, percebi que contribuiu para que eu pudesse, mais uma vez, retomar alguns aspectos daquilo que venho construindo enquanto prática e pensamento. Suely Rolnik, não sem razão amplamente citada neste trabalho reflexivo, foi também parte da banca e as ideias trocadas com ela naquele dia específico ganham uma forma legível para presentificar o tipo de interlocução que tem sido construído entre muitos artistas e coletivos e essa pensadora. A partir de seu olhar interessado e de seu corpo aberto, sempre trouxe de forma vibrante para nós, como importante base de sustentação de nossas indagações, dúvidas, reflexões e, claro, ações, uma forma de pensar abrangente, crítica e sensível às forças do mundo. Além de tudo isso, a conversa, como forma de elaboração de espaço social, é de onde nascem os trabalhos que serão aqui apresentados. É no embate pela produção de um pensamento vivo e compartilhado que os coletivos artísticos partem para inscrever novas configurações de mundo. Joana Zatz Mussi: Quando iniciei o mestrado, me interessava aprofundar teoricamente as práticas dos coletivos artísticos dos quais faço parte ou sou colaboradora, mas o projeto de pesquisa ainda estava muito vago. Cursando as disciplinas, lendo novos autores, me distanciando minimamente do turbilhão do fazer, pude ter uma relação

13. Estavam presentes Joana Zatz Mussi, mestranda, Vera Pallamin (Área de Projeto, Espaço e Cultura da FAU-USP), orientadora da dissertação, e, como membros da banca examinadora, Suely Rolnik (Núcleo de Estudos da Subjetividade – Programa de PósGraduação em Psicologia Clínica da PUC-SP) e Sérgio Regis Moreira Martins (Departamento de Projeto da FAU-USP). São Paulo, 16 de janeiro de 2012.

31


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 32

mais reflexiva com os trabalhos, o que me permitiu entender qual é a questão fundamental para mim, que é a da atuação na cidade e como essas práticas urbanas evidenciam, na produção imagética e simbólica que realizam, as formas e mecanismos de produção e reprodução do espaço social na contemporaneidade. Em alguns momentos, a atuação ocorre em processos sociais já em curso, dando visibilidade e legibilidade para eles, em outros, há a invenção de processos; nos dois casos, é o corpo em risco, o embate entre o corpo e o espaço urbano evidenciando as formas e mecanismos contemporâneos de produção, o que gera um entendimento da dimensão estética nesses trabalhos. Nesse sentido, é importante realizar uma interpretação do que é “a cidade” nessas e para essas práticas, como lugar de partida e de chegada, como lugar físico e simbólico, como presença e também como devir. A interpretação de como “a cidade” aparece e é acionada em alguns trabalhos artísticos a partir dos quais proponho uma reflexão, de como um corpo individual ou coletivo se constitui no embate com a escala urbana, além de ser um problema estético e político, também tem a ver com toda uma discussão feita pelas ciências sociais contemporâneas na tentativa de entender a cidade como espaço referencial em um momento histórico no qual não há mais nada que possa ser pensado estando fora do marco do urbano. A partir disso, muitas questões emergem e uma delas é o tipo de crítica institucional feita pela geração de coletivos artísticos que começou a atuar em meados da década de 1990 e aprofundou a sua prática nos anos 2000. Alguns autores, como o crítico norte-americano Brian Holmes, o artista e pensador espanhol Marcelo Expósito e mesmo Suely Rolnik, aqui presente, dizem que essa geração tende a “entrar e sair da instituição”, entendida não apenas como uma institu-

32


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 33

ição artística. Isso significa que as formas de relação institucional se transformaram, e que dependem também da compreensão que as práticas aqui abordadas têm sobre o que é o marco do urbano. E se concordamos que hoje não é mais possível pensar em um espaço que esteja fora desse marco, fica evidente que as instituições também estão operando a partir dele, portanto, em múltiplas escalas simultaneamente, e que é possível disputar a produção e a re-produção do espaço social mesmo de dentro de uma dimensão institucional mais formalizada. E o que é o “espaço social”? Porque se me interessa entender como, nessa produção imagética, se cria legibilidade e visibilidade para as formas pelas quais o espaço social é produzido e reproduzido, é preciso ao menos iniciar uma tentativa de definição de como estou entendendo o que é esse espaço. Aqui, começo essa tentativa, por exemplo, quando a partir das práticas percebo uma dimensão física e uma dimensão simbólica operando simultaneamente em justaposição; quando percebo que ele pode ser entendido prioritariamente a partir do marco do urbano e que isso não significa rua ou prédio, mas uma forma que atravessa tudo e que pode ser definida a partir da disputa pela definição do que é legal e ilegal, lícito e ilícito, formal e informal, na produção do espaço. Outros pontos importantes a serem olhados criticamente na definição do que seria o espaço social compreendido a partir dessas práticas são os atravessamentos, as redes, as conexões, que geram uma grande mobilidade daquilo que é produzido e o encontro de um espaço comum e compartilhado. As práticas artísticas aqui analisadas aparecem nesse contexto, portanto, como parte fundamental da disputa pela produção do espaço na contemporaneidade e tendo como papel principal a criação das imagens de como isso está se dando; porque o know how e a expertise que foi sendo criada é essa, de um saber circulatório que

33


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 34

nasce a partir da potência dessa representação. E como definir a potência, como entendê-la? O saber circulatório pode ser entendido como um indício da potência de uma imagem. No momento em que essa imagem está sendo elaborada, a sua potência e a possibilidade de que circule não são conscientes, mas é possível sentir a sua consistência pelo quanto carrega de uma experiência real. É isso o que vai fazer com que se prolifere a produção crítica de imagens que tornam visível e legível como a produção do espaço social está se dando em diversos contextos. Sabemos que essas imagens ensinam alguma coisa justamente quando guardam a experiência de um devir como memória das potências sociais dessas imagens.

Suely Rolnik: Você é uma testemunha viva desse movimento cultural14, por isso a importância de registrar, conceituar o que se passou, fazer proliferar. Existe aí uma inquietação. Quando você diz que a cidade se produz em mil camadas e dimensões e que as instituições também, o Félix Guattari tem um conceito interessante para falar disso, que é o conceito de “transversalidade”. Através desse conceito, ele fala como somos compostos do que é imediatamente visível e de muitas outras camadas invisíveis e que é essa dinâmica que vai nos formatando, nos constituindo. Considero essa uma questão central do seu trabalho e vou falar agora um pouco sobre ela. Quando você diz que os grupos trabalham em situações de tensão que já estão lá, nomeadas de alguma forma, e em outras que vocês “inventam” – eu diria que vocês nomeiam a partir de uma dimensão micropolítica –, é isso o que para mim significa colocar o corpo em risco. Por que, afinal, que corpo é

34

14. A ideia de que os coletivos artísticos aqui apresentados fazem parte de um movimento cultural mais amplo aparece em diversos momentos do livro e se refere ao fato de que eles estão inseridos em um conjunto de práticas políticas e estéticas que surgiram a partir dos anos 1990 tendo como mote a luta contra o capitalismo contemporâneo, a precarização da vida de modo geral, a ocupação do espaço público pelas pessoas, a invenção de novas formas de sociabilidade e contestação frente à chamada “sociedade de controle”. Ao longo da obra, algumas das características que marcam este como um “movimento cultural e artístico”, serão analisadas e ficarão mais claras.


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 35

esse que se entrega ao risco? Você está falando sobre a introdução desse conhecimento do corpo na avaliação do estado das coisas e na condução das ações; a introdução e o desenvolvimento do conhecimento de como dar corpo sensível para essas sensações; o que é um ato de resistência fundamental ao pensamento inventado pela Europa Ocidental e que recalca o corpo e restringe o pensamento à percepção e à razão. Não inventamos porque somos inspirados por Deus, mas porque nesse conhecimento corporal, das forças ambientes, os afetos do corpo já estão indicando essa necessidade... Uma coisa é denunciar, outra é anunciar... Já está se anunciando nesse conhecimento corporal uma dinâmica tensional que convoca você a dar corpo para isso, no caso das práticas das quais estamos falando, através de uma proposta de intervenção na cidade. Não é que algumas situações existem e outras ainda não existem, é que algumas ainda não estão no campo do visível, ainda não estão operando como tensão macropolítica, mas já estão presentes no corpo. Quando você fala em “colocar o corpo em risco”, eu entendo muito mais esse anunciar do que o denunciar. Se você levasse somente em conta o fato de ser filha de militante15, esse colocar-se em risco significaria se matar para denunciar; como você é de uma geração que está tentando ampliar o campo da política, até para honrar os seus ancestrais, sabe que hoje, o que faz sentido, é o corpo estar ali implicado para anunciar. Nós, como fomos estruturados pela cultura inventada na Europa Ocidental, pelo processo de colonização, capitalismo, subjetividade burguesa, etc., funcionamos no registro da percepção, da consciência, da vontade, da representação, do sentimento, e do sensorial também. E o sensível também faz parte do regime da per15. Os meus pais fizeram parte do movimento político contra a última ditadura militar, sendo filiados aos grupos VAR - Palmares e Ala Vermelha do PCdoB. Foram perseguidos e, para não serem presos, se exilaram em países europeus. 35


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 36

cepção, porque nele tem um sujeito percebendo um objeto. E o que está recalcado na nossa cultura e está, por outro lado, muito presente nas culturas que nos constituem no Brasil, as culturas africanas, indígenas e culturas mediterrâneas, árabes, judaicas e o cristianismo pré-igreja católica apostólica romana, é essa dimensão da subjetividade ativa. Porque o próprio da subjetividade burguesa, capitalista, é o recalque do corpo na cotidianidade, no modo de aprender, na produção cognitiva, na condução do pensamento e da existência. Nessas culturas, que também nos constituem, isso não está apenas presente, como é ritualizado na cotidianidade. Posso olhar as situações e as tensões próprias da cartografia do presente, como estão organizados os conflitos de raça, de classe, de gênero; mas têm situações nas quais existe uma tensão paradoxal entre o que o seu corpo está captando e a cartografia do presente, o que te coloca em crise. Então, a intervenção será a invenção de algo que vai dar corpo para isso que está se anunciando, mas ainda não está na dimensão do visível. A denúncia e o anúncio são fundamentais, o que não podemos é reduzir o que fazemos a uma coisa ou outra. Por exemplo, se ficamos só na dimensão do desejo e não fazemos o movimento de dar corpo ao que está acontecendo em uma ação, um conceito, no que for, construindo uma representação que se inscreva na realidade visível, não acontece nada e essa pulsão vira pura esterilidade também. Deleuze e Guattari falam em perceptos, um modo de percepção que não passa pela linguagem e que é essa experiência do mundo como corpo vivo, como campo de forças. E a sensação, para Deleuze e Guattari, não tem a ver com o sensorial, é a sensação da tensão, do paradoxo, entre isso que o corpo vivo já está captando e o modo como as coisas estão formatadas. E é essa sensação que dispara a criação, então

36


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 37

não é a experiência sensível que vai ganhando corpo, é a experiência do vivo que vai ganhando corpo sensível e se atualizando. E por que as imagens produzidas nessas práticas urbanas ensinam? Não é só porque eu vou imitar, tem isso também... Mas, principalmente, porque essa ação é portadora de uma experiência de algo que está se anunciando e que eu compartilho. Se eu consigo fazer algo bom, com rigor e disciplina, e que carregue isso que se anuncia, essa ação imediatamente reverbera. A sua ação ensina porque é portadora de uma experiência real. Uma coisa é então descrever o que se passou ali, outra coisa é mergulhar na memória dessa dimensão da experiência e tentar fazer uma ação conceitual, criar conceitos para tornar dizível o que está ali. Mas acho importante tocarmos aqui nessa potência, tendo como indício o saber circulatório do qual você fala. É preciso deixar clara uma visão crítica da mobilidade, portanto, nem resistir a ela e nem celebrá-la. No Brasil, tendemos a idealizar a mobilidade, a antropofagia, com uma falta de visão crítica em relação a essas ideias, tão presentes hoje no sistema da arte em sua identificação com o neoliberalismo. Por isso, vejo um problema fundamental aqui para desenvolver, que é discriminar melhor esses dois campos nos trabalhos analisados, principalmente o conceito de micropolítica, porque macropolítica todos nós dominamos. Isso implica de fato, como você disse, em circunscrever melhor o que entende por “espaço social”, porque é fundamental tentar elaborar como o espaço se produz nesse movimento do micro ao macro e não apenas no espaço macropolítico. No meu entender, o conhecimento estético é exatamente esse conhecimento da passagem do micro ao macro, de colocar o corpo em risco para performatizar o invisível, aquilo que já é vivido como real mas ainda não encontra representação na realidade. É o

37


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 38

conhecimento desse corpo, vulnerável às forças do mundo, que desencadeia a necessidade de pensar como sinônimo de criar e que não vale somente para a arte. Mas como falar dessa experiência do corpo? Uma coisa é falar dessa experiência como um encontro com o outro, como um sujeito que “interage” com outro sujeito, ainda na lógica de sujeito e objeto. Outra é falar a partir dessa lógica na qual já não há sujeito e objeto, mas um corpo mergulhado em um campo de forças que desencadeia nesse corpo a sua potência de criação, o que vai resultar em uma reconfiguração tanto do sujeito quanto do ambiente. Essa história de interagir com o outro é o mínimo que você espera de um ser humano, reconhecer a existência do outro e os seus direitos civis, mas temos que agregar a dimensão da vulnerabilidade de um corpo a esse campo de forças, que tem a ver com a transversalidade do Guattari, quando ele entende a subjetividade como a dinâmica de todos esses atravessamentos. Nesse caso, já não dá para falar em um “outro”. Existe esse “outro” do direito civil, mas existe uma alteridade que nos habita, que é aquilo que escapa do outro como representação, e mesmo da representação de nós mesmos. Essa alteridade é esse campo de forças atravessado pelas forças do mundo e que está o tempo inteiro colocando em xeque as formas do presente. Essa alteridade, nesse sentido, não é o outro que está fora, é uma alteridade que me constitui, que não para de me fazer, desfazer, me desmanchar, e que não para de me obrigar a pensar, criar e agir. E eu penso nisso como um grande ponto de interrogação, porque coloca um problema a cada momento na medida em que coloca problemas que obrigam a pensar. Quando você fala que a dimensão estética está na constituição de um “possível”, é importante distinguir bem essa ideia, porque o “possível” está na dimensão do visível, da representação, mas den-

38


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 39

tro do campo da micropolítica, do invisível, não se fala em possível. Aí tem um virtual que já está se anunciando e que vai se atualizar em uma outra coisa, que não tem a ver com o possível, pois esse está contido no modo como está constituído o presente. Importa então que fique claro isso, não importa tanto o nome que você vai dar, mas que fique claro o lugar de cada coisa. Mas como você chamaria isso, se não é possível, de devir16? Eu chamo cada hora de um jeito, mas agora estou chamando de imanência17. Na dimensão do visível, podemos falar em oposição, contradição, dialética, porque de fato entre preto e branco, homem e mulher, ricos e pobres, classe dominante e classe dominada, existem interesses que são opostos mesmo. Mas não podemos dizer que o que está se anunciando a partir do campo da imanência, do que ainda não é visível, é o contrário do que é visível; isso que se anuncia é uma outra coisa, é um deslocamento, não tem síntese, ele pode mudar a configuração do presente, mas não é a negação do presente e nem está contido nele como possibilidade. Esse movimento, quando estou tomada pela urgência das forças que me atravessam e elas ficam me azucrinando enquanto eu não invento alguma coisa, esse movimento, que seria uma ação do pensamento, é a produção de um devir, uma sublime ação, algo que dê corpo para o que nos atravessa. É sublime porque é uma ação ética por excelência: se responsabiliza pela possibilidade de afirmação da vida e não de um sistema de valores. Então, quando a gente inventa 16. No livro Cartografias do Desejo, Félix Guattari e Suely Rolnik definem “devir” da seguinte forma: “Devir: termo relativo à economia do desejo. Os fluxos de desejo procedem por afetos e devires, independentemente do fato de que possam ou não ser rebatidos sobre pessoas, sobre imagens, sobre identificações. Assim um indivíduo, etiquetado antropologicamente como masculino, pode ser atravessado por devires múltiplos e, aparentemente, contraditórios: devir-feminino que coexiste com um devir-criança, um devir-animal, um devirinvisível, etc. [...]” (2005, p. 382). Em O Vocabulário de Deleuze, François Zourabichvili define da seguinte forma o significado de “devir” para Deleuze, com o qual Suely Rolnik também opera aqui: “Devir é o conteúdo próprio do desejo (máquinas desejantes ou agenciamentos): desejar é passar por devires” (2004, p. 24). 17. Segundo Deleuze e Guattari, autores com os quais Suely Rolnik dialoga a todo o momento: “O plano de imanência é como um corte do caos, e age como um crivo. O que caracteriza o caos, com efeito, é menos a ausência de determinações do que a velocidade infinita com a qual elas se esboçam e desaparecem […]” (Deleuze e Guattari, 1992 apud Zourabichvili, 2004, p. 39).

39


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 40

alguma coisa nesse sentido, estamos produzindo um devir em nós mesmos e no ambiente. Por isso, um grande deslocamento é o de uma concepção tanto de tempo quanto de espaço restrita à dimensão da representação, para uma outra concepção, que é do tempo como devir, porque aí ele é a própria constituição de espaço, ele não existe se não se atualizar como outra forma de espaço. Nesse sentido, não dá simplesmente para passar do tempo histórico para o espaço social como referencial para entender o contemporâneo, pois a temporalidade é indissociável do engendramento de espaço, não há como separar uma coisa da outra. Joana Zatz Mussi: E você acha que é possível pensar esse engendramento do tempo-espaço social a partir da micropolítica?

Suely Rolnik: Tanto eu acredito que dedico a minha vida inteira a isso. Eu acredito plenamente, essa é a minha maior convicção. Hoje em dia eu acho que essa é a atitude de resistência política mais fundamental, do ponto de vista micropolítico, a toda a história colonial, do império da Europa Ocidental sobre o planeta, que inibiu e recalcou essa capacidade cognitiva que é nossa bússola vital, diferente de uma bússola moral, ligada à justiça social, por exemplo. Eu posso defender os valores de justiça, mas estar super-reativa ao que a vida está pedindo, porque estou com a bússola vital danificada, recalcada, sendo que é ela que nos dá a noção de onde a vida está totalmente estrangulada e onde tem que colocar energia para ela deslanchar. A Lygia Clark, quando chamava os objetos que fazia de “objetos relacionais”, o que estava tentando com a obra dela, na minha leitura, era ativar essa dimensão “micro” da subjetividade, tanto que

40


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 41

no último trabalho, em que ela traz essa dimensão terapêutica, não é que ela virou terapeuta, é que ela incluiu uma dimensão clínica na proposta artística dela porque ela se deu conta de que você pode estrebuchar e virar do avesso para que o espectador viva uma experiência que vá convocar isso – essa dimensão da potência, da micropolítica, da imanência –, mas a barreira neurótica de recalque disso é tão poderosa em todos nós que não adianta... Então, ela faz um trabalho no qual justamente está explorando essa barreira. Tudo isso nos faz pensar o que estamos aqui chamando de política. Estamos acostumados com o conflito entre o poético e o político. O que eu gosto dessas histórias, é poder entender que a experiência do mundo como corpo vivo que nos atravessa é política, é micropolítica. Você sair do recalque, dar conta do que o corpo vivo está anunciando e fazer a sublime-ação, é ético e é político...

Vera Pallamin: Merleau-Ponty critica a relação entre sujeito e objeto, rompendo com essa dicotomia que você comentou. Desde o começo isto está presente em sua filosofia, e depois, em textos como “O Olho e o Espírito” e outros, em direção à etapa final do seu trabalho, isso se evidencia reiteradamente. Isso implicou em sua revisão da noção de alteridade – ele diz: “Sou eu mesmo sendo sempre outro”... Pode-se estabelecer um diálogo entre a filosofia dele e várias coisas que você falou. No artigo em que falo da Frente 3 de Fevereiro como um corpo coletivo segurando aquela imensa bandeira18, Merleau-Ponty me ajudou a pensar aquela ação enquanto vontade e corpo coletivos. Estou dizendo isso porque fico pensando se seria possível entender o que você está dizendo a partir de um outro referencial teórico, que não necessariamente o da psicanálise... 18. Aqui, Vera Pallamin se refere ao texto “Do lugar-comum ao espaço incisivo: dobras do gesto estético no espaço urbano" (2007).

41


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 42

Suely Rolnik: É sim possível entender tudo isso sem ser “psicanalista”. Alguém que tenha uma experiência psicanalítica pode entender muito bem, porque não depende apenas de uma experiência teórica, eu acho que alguém que frequente um candomblé bom, que tenha a experiência do transe, que tenha alguma relação com a cultura africana, é tão capaz de entender quanto alguém que encontrou um bom analista. No fundo, tudo isso que fazemos e sobre o que falamos hoje aqui são intervenções políticas na cultura, formas de reativar essa dimensão da imanência na cultura, essa dimensão do corpo, das pulsões e do desejo.

42


PROJETO JO 15A:Layout 1

11/14/14

4:19 PM

Page 43

CAPÍTULO I

Nada é mais importante do que essa nuança fugidia

43


PROJETO JO 15B:Layout 1

11/15/14

11:40 AM

issuu.com/invisiveisproducoes invisiveisproducoes@gmail.com

Page 260


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.