Olhares sobre os problemas sociais complexos

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Guiné-Bissau

Governação Integrada na Guiné-Bissau

Olhares sobre os problemas sociais complexos Este projeto é financiado pela União Europeia

Guiné-Bissau

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Governação Integrada na Guiné-Bissau Olhares sobre os problemas sociais complexos


Ficha técnica Edição: Instituto Padre António Vieira Texto: Vários Design Gráfico: Miguel Rocha 2ª edição: dezembro de 2017 Depósito legal Pré impressão & Impressão: Impress - Impressral Center Unipessoal, Lda. ISBN: 978-989-99993-0-5 Secretariado Executivo do GovInt Guiné-Bissau Morada: Rua Justino Lopes 80, Chão de Papel — Bissau

Este documento foi elaborado com a participação financeira da União Europeia e cofianciamento do Camões - Instituto da Cooperação e da Língua. O seu conteúdo é da responsabilidade dos autores de cada capítulo, no âmbito do projeto Governação Integrada Guiné-Bissau (GovInt), promovido pelo Instituto Padre António Vieira - IPAV e pela Universidade Jean Piaget da Guiné-Bissau. Agradecemos a colaboração de todas as pessoas e instituições que, direta ou indiretamente, contribuiram para a publicação deste manual, resultante das reflexões de 4 grupos de trabalho que se debruçam sobre problemas sociais complexos da realidade guineense. A presente edição segue a grafia do novo Acordo Ortográfico da língua portuguesa.


Olhares sobre os problemas sociais complexos

Governação integrada na Guiné-Bissau Olhares sobre os problemas sociais complexos

Este projeto é financiado pela União Europeia

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Índice Nota introdutória ........................................................................................................................................................................ 7 por Edson Incopté Complexidade e Problemas sociais: desafios para a Guiné-Bissau .........................11 por Rui Marques Bairros ....................................................................................................................................................................................................33 por Saturnino de Oliveira (coord.) e Minhone Seidi (coord.) Desemprego Jovem ................................................................................................................................................................47 por Dautarin Monteiro da Costa (coord.) Desigualdade de Género ...............................................................................................................................................57 por António Spencer Embaló (coord.) Reconciliação Nacional: Um processo complexo para a Guiné-Bissau ...........73 por Braima Sambu Dado (coord.) e Halen Armando Napoco (coord.)

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Nota introdutória Governação integrada: desafios da Guiné-Bissau A Governação Integrada na Guiné-Bissau é um projeto implementado pelo Instituto Padre António Vieira – IPAV, em parceria com a Universidade Jean Piaget Guiné-Bissau, num horizonte temporal de 24 meses, financiado pela União Europeia e cofinanciado pelo Camões – Instituto Português da Cooperação e da Língua. É baseada no pressuposto que a governação integrada constitui uma estratégia de resposta aos “problemas complexos” centrais e atuais da Guiné-Bissau, na medida em que procura juntar atores estatais e Organizações da Sociedade Civil (OSC) na definição e realização de um trabalho mais concertado, em rede e sustentado no tempo. Tem como principal objetivo contribuir para o fortalecimento das OSC guineenses e das políticas públicas, promovendo uma governação integrada, enquanto modelo de Boa Governação adequado à compreensão e resolução de problemas sociais complexos. A sua execução é dividida em quatro eixos: Eixo 1 – Capacitação de 120 dirigentes/ técnicos de OSC da Guiné-Bissau para a governação integrada; Eixo 2 – Disseminação de boas práticas de governação integrada entre OSC guineenses; Eixo 3 – Participação e influência das políticas públicas através da constituição de um Fórum de Governação Integrada – Guiné-Bissau; Eixo 4 – Concertação entre as OSC, o Estado e a comunidade, através de uma experiência piloto de Governação Integrada no Bairro de Cuntum Madina.

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A sua implementação é uma empreitada que levanta e tem levantado enormes desafios, na medida em que é baseada numa visão de construção de relações interorganizacionais, que procura coordenar o desenvolvimento e a implementação de políticas e respostas transversais a diversos atores, especialmente na abordagem aos problemas sociais complexos, juntando atores estatais e organizações da sociedade civil. O primeiro desafio tem que ver com as debilidades do próprio Estado, carente a todos os níveis. E o segundo tem que ver com o ambiente em que as organizações da sociedade civil atuam: um ambiente em que não existe uma definição e controle das próprias agendas, condicionadas por linhas de financiamento e interesses transitórios, originando não só disputas por fundos e apoios — institucionais e financeiros, mas também uma clara proliferação de atuações desconcertadas visando, em grande medida, apenas e só, a sobrevivência da organização. Assim, a promoção da temática da colaboração e da interdependência nas relações interorganizacionais para a identificação e resolução dos problemas sociais complexos, revela-se uma peça fundamental num contexto em que ela é, completamente, subvalorizada. Mas se a colaboração interorganizacional é sempre um desafio, na Guiné-Bissau torna-se ainda maior, tendo em conta a fraca cultura colaborativa das organizações, tanto estatais como da sociedade civil, por razões já acima mencionadas. E a sua promoção coloca em questão temáticas como a liderança, a participação, a comunicação, a monitorização e avaliação, que importam ser trabalhadas, sobretudo a nível das organizações da sociedade civil, de forma a prepará-las para uma abordagem mais colaborativa dos problemas. O breve diagnóstico efetuado juntos das organizações da sociedade civil — no início do projeto – revelou um ambiente de atuação em que as organizações, na sua grande maioria, não se conhecem, não se contactam e muito menos partilham agendas, visando coordenar as suas atuações e interesses para uma resposta mais eficiente e eficaz aos problemas comuns. Nem o Estado — insuficiente para as necessidades do país —, desenvolve relações de cooperação, coordenação e de colaboração com as organizações da sociedade civil, para que através destes possa chegar às populações e resolver os referidos problemas complexos, que pela enorme carência do país, se revelam difíceis de priorizar. 8


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O projeto, contudo, fez um esforço por definir quatro problemas sociais complexos na Guiné-Bissau, abordados no eixo 3 do projeto, referente à constituição de um Fórum de Governação Integrada: o desemprego jovem, a reconciliação nacional, a desigualdade de género e os bairros críticos, enquanto problemas multidimensionais, difíceis de definir com rigor, que se caracterizam como interdependentes, multicausais, que atravessam fronteiras organizacionais, sectoriais, territoriais ou profissionais. Foram, assim, criados grupos de trabalho temáticos, constituídos por entidades estatais, organizações privadas, da sociedade civil e pessoas individuais com conhecimentos nas respetivas áreas, procurando fomentar uma reflexão partilhada baseada em visões distintas, mas necessariamente complementares para a identificação e resolução dos problemas sociais complexos. A integração dos membros e instituições públicas guineenses, – ao nível dos grupos de trabalho, – procurou que as reflexões sobre os problemas sociais complexos e as respostas/ propostas de solução pudessem, efetivamente, influenciar as políticas públicas nas respetivas áreas. Contudo, a instabilidade política do país, manifesta em constantes mudanças de pessoas/ funções nas instituições públicas, não tem permitido a realização de um trabalho tão contínuo como o pretendido. Em síntese, a governação integrada surge como uma estratégia de resposta aos “problemas complexos” da Guiné-Bissau. Porém, é notório que o contexto do país exige ainda um aprofundar de elementos fundamentais à colaboração, enquanto pilar para a existência de uma efetiva governação integrada. A confiança entre os atores é algo que, necessariamente, tem que ser desenvolvido para a criação de uma rede interorganizacional e interpessoal, para a resolução dos problemas. Apenas com a construção de confiança os atores poderão retirar um maior benefício a nível da partilha das visões, informações e melhor definição das agendas de atuação, possibilitando uma relação mais aberta e transparente. Edson Incopté Coordenador adjunto do projeto GovInt GB Outubro 2017

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Complexidade e Problemas sociais: desafios para a Guiné-Bissau Rui Marques (Presidente do Instituto Padre António Vieira – IPAV) Tal como muitos outros países do mundo, a Guiné-Bissau enfrenta inúmeros desafios. Muitos deles configuram problemas complexos (wicked problems), que se apresentam difíceis de definir e, sobretudo, difíceis de combater. Nesse contexto, a reflexão elaborada no âmbito do Forum para Governação Integrada Guiné-Bissau sobre complexidade de problemas sociais como o Desemprego Jovem, a Desigualdade de Género, os Bairros ou a herança pós-conflitos com necessidade de Reconciliação Nacional, são alguns dos exemplos que foram abordados por grupos de trabalho constituídos por cidadãs e cidadãos guineenses, que colocaram o seu melhor em termos de empenho cívico na discussão destes temas e na construção de mapas conceptuais. Para apoio a essa reflexão e aos passos que se seguirão, recupera-se os contributos desenvolvidos no âmbito da governação integrada, que ajudarão a enquadrar o tema da complexidade e dos problemas sociais.

O que são problemas complexos?I É fácil admitir que os problemas não têm todos iguais níveis de complexidade. Há um gradiente entre o mais simples até ao infinitamente complexo. Importa especificar o que distingue esses níveis de complexidade. Roberts (2000) tipificou esta divisão em três níveis: os problemas tipo I (simples / lineares) caracterizam-se pelo consenso quanto à definição do problema e à sua solução. Os problemas tipo II (mais difíceis do que os de tipo I) têm uma definição comum e partilhada pelas partes interessadas, mas estas divergem na solução, não sendo simples encontrar consenso sobre que solução adotar. Finalmente, os problemas

I Excertos da publicação Marques, R. (2107). Problemas sociais complexos e governação integrada, Forum para a Governação Integrada, Lisboa.

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tipo III (complexosII) são os que têm maior potencial de conflito entre as partes interessadas, pois não há consenso nem na definição do problema, nem na solução a aplicar. Esta divisão não equivale a que só existam exatamente três tipos de problemas. Mais do que três tipos, há na classificação da tipologia de problemas uma continuidade de linear até complexo ou mesmo supercomplexo1. No que se refere aos problemas supercomplexos, acrescem a todas as características dos complexos, três outras dimensões: a extensão global e aspetos potenciais negativos serem significativos; os mais responsáveis pelo problema são os que menos interesse têm em resolvê-lo e, finalmente, a existência de um efeito cumulativo que vai piorando o problema2. Um outro aspeto a ter em consideração é que, quando se fala de problemas simples ou lineares, não se exclui uma potencial dificuldade, como a que é oferecida pela resolução de uma equação, pela construção de uma ponte ou pela ida à Lua3. No entanto, ainda que estes problemas sejam tecnicamente exigentes, são definidos claramente e são resolúveis por especialistas, usando abordagens analíticas da sua área académica ou técnica4. Um outro tipo distinto dos anteriores, num outro eixo de análise, que é considerado, é o do “problema crítico”. Surgindo em forma de “crise”, caracteriza-se pela sua evidência óbvia, encapsulada num período de tempo muito curto para a decisão e para a ação e exige um modelo de gestão de “comando”5. Note-se que, sendo uma categoria de problema particularmente grave, difere substantivamente dos problemas complexos. Numa perspetiva complementar, Adler (2005) introduz na diferenciação do tipo de problemas a questão do dilema de valores, deixando de ser uma questão essencialmente técnica (problema tipo I). Nos problemas tipo II, e sobretudo no tipo III, coloca-se frequentemente uma divergência e conflito de valores e de interesses que tornam difícil o acordo quanto à solução. Cada parte interessada está referenciada aos seus interesses e valores, mesmo quando existe acordo quanto à definição do problema (tipo II). Quando se cruza o eixo do conflito de valores com a da incerteza, obtém-se uma colocação do “problema linear” e do “problema complexo” em quadrantes opostos (Figura 1). II Será utilizada como tradução portuguesa de “wicked” a expressão “complexa”, ainda que não corresponda à tradução mais usual (perverso, malévolo) por esta poder constituir um equívoco.

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Um outro contributo para caracterizar a diferença entre estes tipos de problemas é dado por Chapman (2004), assinalando o facto de que os problemas complexos (tipo III) diferem dos restantes por não se conseguir delimitar exatamente o foco, bem como o tempo e os recursos necessários para os resolver.

Alto

Incerteza

Problema Complexo

Baixo

Problema Linear

Baixo

Conflito de valores

Alto

Figura 1 - Problemas lineares vs. Problemas complexos Fonte: Adaptado de Batie & Schweikhardt (2010: 23)

Atendendo ao foco desta tese, deixaremos de lado os problemas simples/ lineares ou problemas críticos, aprofundando exclusivamente os problemas complexos, referenciados na literatura anglo-saxónica como “wicked problems”.

1. “Problemas complexos” (“wicked problems”) O olhar fundador que fixou o ponto de partida para a análise estruturada do conceito de “problemas complexos” deve-se a Rittel & Webber (1973), com o seu artigo seminal Dillemas in the general theory of planning. Apesar de anteriormente, num editorial da Management Science, Churchman (1967) se ter referido a este conceito, só após Rittel & Webber (1973) terem teorizado sobre este tópico, cresceram exponencialmente as referências a “wicked problem” na literatura científica de várias disciplinas, conceito que 13


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hoje se impõe como um instrumento central para compreensão dos problemas sociais. Estes autores partiram da sua experiência face aos problemas de planeamento urbano (e aos insucessos que experimentavam), reconhecendo que não podiam ser tratados com sucesso através de abordagens lineares clássicas. Afirmavam perentoriamente que a procura de bases científicas para enfrentar problemas de política social está fadada ao fracasso, por causa da natureza desses problemas. São problemas complexos, enquanto que a ciência se desenvolveu para lidar com problemas lineares6. Para caracterizar esta tipologia, propuseram nesse seu artigo uma grelha de análise que distinguia os problemas lineares (“tame”) dos problemas complexos (“wicked”), salientando que estes se definem pelas seguintes características: 1. N ão há uma formulação definitiva de um problema complexo. A informação necessária para entender o problema complexo depende da solução que se encontrar. Na sua perspetiva, a formulação do problema complexo é o problema7. 2. Os problemas complexos não têm um final / solução (stopping rule). Na resolução de um problema de xadrez ou uma equação matemática, quem o está a fazer sabe quando a sua missão está concluída: termina quando encontra a solução. Nos problemas complexos, nunca se chega à solução perfeita. Termina-se porque se esgota o tempo, o dinheiro ou a paciência. 3. As soluções para os problemas complexos não são “verdadeira” / “falsa”; mas “boa” / “má”. 4. Não há um teste imediato ou definitivo da solução para um problema complexo. As soluções para problemas complexos, depois de serem implementadas, gerarão vagas de consequências durante um extenso período de tempo. As consequências, na sua totalidade, não podem ser observadas até que as repercussões terminem e não há maneira de estudar todos os efeitos dessa solução. 14


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5. Cada solução de um problema complexo é um caso único (“one-shot operation”), por isso não se consegue aprender por “tentativa-erro” e cada tentativa conta efetivamente. Sendo “cada caso, um caso”, potencialmente irrepetível, não se pode criar um modelo fechado de resposta, com um algoritmo estável. Acresce que cada solução implementada tem consequências e deixa marcas que não podem ser apagadas. 6. Problemas complexos não têm um conjunto fechado (ou de descrição exaustiva) de soluções. 7. Cada problema complexo é essencialmente único. 8. Não há classes de problemas complexos a que sirva um tipo de soluções para todos esses casos. Cada problema complexo pode ser considerado um sintoma de um outro problema. 9. A natureza e a solução adotada perante um problema complexo podem ser explicadas de múltiplas formas. A escolha da explicação determina a natureza da resolução do problema. Perante problemas complexos, o modelo de raciocínio usado é muito mais subjetivo que no discurso científico, permitindo aos interlocutores uma escolha da explicação. As pessoas escolhem a explicação que acham mais plausível para si. Numa outra perspetiva comparativa, podemos assinalar as diferenças desta forma: Diferenças entre “problema linear” e “problema complexo” Característica

Problema linear

Problema complexo

A definição clara do problema também desvenda a solução O problema

Não há acordo sobre qual é o problema

O resultado é verdadeiro ou falso; A solução não é “verdadeiro” ou “falso”, o máximo a bem-sucedido ou mal-sucedido que se consegue chegar é “melhor”, “pior”, “suficiente” O problema não está sempre a O problema está sempre a mudar mudar

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Partes interessadas e o seu papel

Especialistas resolvem-no usando Muitas das partes interessadas têm diferentes a ciência ideias sobre o “real” problema e as suas causas O fim é determinado pelas partes interessadas, A tarefa termina quando o Final (stopping rule) forças políticas, disponibilidade de recursos ou problema é resolvido uma combinação destas Soluções dos problemas estão baseadas em Especialistas seguem um “julgamentos” de múltiplas partes interessadas, Natureza do protocolo que guia as escolhas não há “boas práticas”, cada problema é único e problema das soluções as soluções têm de ser customizadas

Fonte: Adaptado de Kreuter et al (2004: 43)

Reforçando a tese de que há um continuum entre problemas lineares e problemas complexos8, uma abordagem proposta por Head & Alford (2008) correlaciona dois eixos (Figura 2): a diversidade de partes envolvidas e a complexidade decorrente de se conhecer (ou não) o problema e a solução. Diversidade Uma parte Complexidade Problema e solução conhecidos

Múltiplas partes, cada uma com informação relevante

Múltiplas partes, com valores / interesses conflituantes

Problema linear

Problema conhecido, solução desconhecida Problema e solução desconhecidos

Problema complexo Problema complexo

Problema muito complexo

FIGURA 2 - Tipologia de problemas, relacionando complexidade com diversidade de atores Fonte: Adaptado de Head & Alford (2008: 10)

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Reconhecer que estamos perante um “problema complexo”, no quadro conceptual apresentado, pode ser, na perspetiva de Denning (2009), resultado de um conjunto de sinais, que sinalizam esse facto:

Sinais de problemas complexos Ameaça Sem progresso Paralisia social Resistência ativa Sentimentos negativos

Algo de grande valor está ameaçado no seio da comunidade; muitas partes interessadas estão envolvidas. Nenhum ou pouco progresso, apesar dos esforços significativos; as tentativas de melhoria não funcionaram; as soluções existentes são adhoc, incompatíveis e ineficazes. Não há acordo sobre a definição do problema, sobre as causas, ou sobre as estratégias de solução. Múltiplas partes interessadas têm os meios políticos e sociais para bloquear ações que não suportem a sua agenda. Gera-se desconfiança e ressentimento entre eles. Frustração, sensação de bloqueio, confusão, discórdia, conflito, controvérsia, desconfiança, ressentimento.

Fonte: Adaptado de Denning (2009: 718)

2. Quais são os problemas complexos? Os problemas complexos não se limitam ao campo social. Questões relacionadas com a segurança nacional, o ambiente (e.g. as alterações climáticas), a saúde, os mercados financeiros ou a liberalização do comércio evidenciam os traços típicos deste tipo9. Uma das características já enunciadas, que veio adensar a complexidade, é a globalização. Quando se analisam à escala global as correlações de riscos que tornam particularmente complexos estes problemas identificados, percebe-se melhor a dificuldade que o tempo presente nos coloca, quando se procuram soluções (Figura 3).

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Liquidez / restrições ao crédito Abrandamento da economia chinesa

E E

E

Colapso no preço dos ativos Desequilíbrios globais e volatilidade da moeda Volatilidade extrema no preço ao consumidor

Volatilidade extrema no preço das matérias-primas

E

E

Crises fiscais

E

Migração

S

S

G

S

S

Troca ilícita G

G Estados frágeis

Terrorismo

G

G

Segurança de dados e informação online

T

Conflito geopolítico

Segurança alimentar

Mudanças climáticas

T

G

T

Perda de biodiversidade

Armas de destruição maciça Ameaça de novas tecnologias E

Poluição aérea

Falha em infraestruturas críticas Críticas

Fragilidades de infraestruturas

Governação dos oceanos

Cheias

Tempestades e ciclones

Terramotos e erupções vulcânicas

E

T

Riscos Económicos Maior

Maior

Maior

probabilidade

impacto

interconexão

Tráfico ilícito

E

Corrupção

E

Crises fiscais

S

Volatilidade extrema do preço da energia

S

E Segurança alimentar

S

Crime organizado

G Estados frágeis

Nexo de desequilíbrios macro-económicos

Riscos Tecnológicos

Riscos Sociais

Segurança da água

G G

Desequilíbrios globais e volatidade da moeda

G

Riscos Ambientais

Riscos Geopolíticos

Colapso no preço dos ativos E

Segurança no espaço

Crime organizado

Falhas de Governação Global G

S

G

Corrupção

G

S

Doenças infeciosas S Segurança da água

Falhas regulamentares

E

Disparidade económica

Desafios demográficos

Doenças crónicas

E

E

Volatilidade extrema do preço da energia

Redução nas ações de globalização

E

Nexo da economia ilegal

Figura 3 – Mapa das correlações entre riscos Fonte: World Economic Forum (2011: 4)

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Mudanças climáticas

Nexo água-alimentos-energia


Olhares sobre os problemas sociais complexos

Os problemas sociais mais complexos das sociedades contemporâneas evidenciam os traços dos problemas complexos, segundo a grelha de análise proposta por Rittel & Webber (1973). Temas como a pobreza, o desemprego jovem ou o de longa duração para pessoas com mais de 45 anos, o isolamento dos idosos, a reincidência na criminalidade, os maus-tratos a crianças e jovens ou a obesidade infantil constituem exemplos relativamente consensuais. A evidente dificuldade das instituições públicas e privadas em encontrarem uma resposta social definitiva ou “verdadeira” para estes problemas enquadra-se neste referencial teórico. A pobreza é um exemplo típico sempre citado. Aliás, este tema foi escolhido por Rittel & Webber (1973) para exemplificar o conceito que queriam tornar explícito: “Pobreza significa baixo rendimento? Sim, em parte. Mas quais são os determinantes desse baixo rendimento? É fruto da deficiente economia nacional ou regional ou é resultado das deficiências das competências ocupacionais e cognitivas da força de trabalho? Se for esta última a definição do problema e a sua solução passa por envolver o sistema educativo. Mas será dentro do sistema educativo que o problema reside? O que pode então querer dizer “melhorar o sistema educativo”? Ou o problema da pobreza reside numa deficiente saúde física e mental? E se é isso, devemos juntar essas causas ao nosso pacote de informação, e procurar dentro dos serviços de saúde uma causa plausível. Devemos incluir a privação cultural? A desorganização espacial? Problemas de identidade? E por aí adiante.”10 Gardner (2011) sinaliza também a pobreza enquanto um problema complexo, pois é condicionada por dinâmicas múltiplas, cumulativas e intercruzadas, que vão desde as tendências económicas globais até aos níveis salariais de uma região, das mudanças no mercado de trabalho à exclusão social, entre outras. Acresce que as raízes da pobreza são afetadas por tendências estruturais no mercado de trabalho, na economia e na sociedade, sendo aquelas permanentemente sujeitas a mudanças. Numa análise mais micro, alguns autores11 têm procurado desenhar as interações entre várias dimensões da pobreza, evidenciando a sua complexidade. Entre eles, Narayan et al (2000) identificaram dez eixos do problema e apontaram as suas correlações, estruturadas no seguinte diagrama: 19


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RHeala b

(falta (problemáticas de informação, deeeducação, desiguais)de competências e de confiança)

errsitdóerigoés çTõe

ro ne

(problemáticas (precária, e desiguais) sazonal, inadequada)

Rela

sro nene

eascdideagdée çaõp

ro nse

RelaC

aeçsãdoeegbé çiõt

(isolados, (problemáticas de risco, poucos serviços, e desiguais) estigmatizados)

Rela

OrgRaenlaiz

(problemáticas (fracas e edesligadas) desiguais)

(mal alimentado, (problemáticas exausto, e desiguais) doente e fraca aparência)

Rela

(problemáticas (desconfiança, afastamento, e desiguais) preconceito)

es de gé çõ

ro ne

ro ne

etistudieçõgeés çnõs

Rela I

esordpeogé C çõ

ro ne

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eõsedsedgoés çaõç

(problemáticas e desiguais)

ReRlea

RCeolam

(problemáticas (discriminação, isolamentio) e desiguais)

ro ne

egsurdaengçéa Sçõe

Rela

(desregrados (problemáticas e abuso dos mais fortes) e desiguais)

eõsedsesogcéi lçaõç

ro naeis

rso nteo

eosrtdaemgeén çpõ

(problemáticas (falta de proteção e desiguais) e de paz de espírito)

Figura 4 - Diagrama da pobreza como problema complexo Fonte: Adaptado de Narayan et al (2000: 249)

É facilmente compreensível, analisando este diagrama, o que é um exemplo de um problema complexo e, consequentemente, por que razão é tão difícil combater, com eficácia, a pobreza. A abordagem clássica da decomposição de um problema em partes, para que compreendendo / resolvendo cada parte por si se tenha, no final, a resolução do todo, não é adequada aos problemas complexos, como a pobreza. Ao isolar as componentes das suas interações e ignorando estas, a solução obtida pela resolução das partes dos problemas pode estar muito longe da efetiva resolução do problema complexo. De igual forma se percebe, como veremos adiante, que só uma abordagem sistémica e holística poderá ter alguma probabilidade de sucesso sustentável12. 20


Olhares sobre os problemas sociais complexos

3. Por que se tornou mais complexo o sistema social? A crescente complexificação do sistema social ocorre em consequência do efeito convergente de várias mudanças. Parece óbvio haver uma correlação positiva entre o crescimento do número de intervenientes e de interações diferentes e imprevisíveis com o aumento da complexidade de um sistema13. Aqui reside a essência da complexidade crescente das últimas décadas. Desde logo, o impacto das tecnologias de informação e comunicação, com a sua dimensão de rede conectiva permanente e tendencialmente universal, aumentou exponencialmente as interações e, através delas, a complexidade14. O movimento imparável iniciado com a digitalização da informação e, sobretudo, com a internet, a que se somaram as comunicações móveis, os dispositivos pessoais de comunicação e processamento de informação (computadores, telefones inteligentes...), a capacidade de armazenamento de informação e a rede de comunicação por satélite e por fibra ótica, entre outros, induziu um nível de complexidade crescente. Vivemos uma dinâmica da sociedade de “contacto perpétuo”, com todas as consequências daí decorrentes15. Se é verdade que todas estas ferramentas nos permitiram conhecer mais e, em alguns casos, resolver melhor problemas que antes se mostravam muito resistentes a uma solução, ao mesmo tempo constitui uma espiral caótica. Axelrod (1999: 26) tem uma afirmação muito expressiva quanto a esta correlação: “A redução dos custos de propagação e de armazenamento aumentou as possibilidades para os efeitos da interação. A revolução da informação transformou-se na revolução da complexidade”. Por outro lado, globalização e o “achatamento” mundial16 – com resultados muito menos positivos do que o autor desta expressão imaginava – provocaram, entre outros efeitos, uma diluição de fronteiras entre o nacional e o global, com a afirmação da interdependência a uma escala nunca antes vista. Este sistema densamente interconectado, em que decisões e ações locais podem ter impacto global e vice-versa, reforça o aumento da complexidade e reforça a necessidade de uma compreensão sistémica da realidade17. A mobilidade humana crescente, com a afirmação de sociedades multiculturais e com grande diversidade étnica e religiosa, coloca importantes desafios neste eixo. 21


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No campo da prestação de serviços públicos, são também evidentes os sinais do incremento da complexidade18. Desde logo, a diversificação crescente das partes interessadas e dos responsáveis, que envolve não só o Estado, mas também as organizações da sociedade civil e mesmo as empresas, em algumas missões anteriormente desempenhadas exclusivamente pelo Estado, aumentou a complexidade, quer pelo envolvimento de um número superior de intervenientes, quer pelas culturas organizacionais diferentes de que são portadores. Mas a complexidade decorre também de os Estados terem aumentado significativamente o seu campo de ação, em particular na esfera social, promovendo crescentemente a intervenção em temas que no passado eram descurados ou objeto de ação particular (pobreza, apoio no desemprego, apoio na velhice…). Um dos conceitos essenciais que entra em crise com esta visão dos serviços públicos enquanto sistemas complexos é a responsabilização de “quem no sistema é responsável pelo quê”. Ao invés de um sistema mecanicista em que é possível separar o contributo das partes e, dessa forma, isolar o erro e atribuir responsabilidades, numa perspetiva sistémica aberta, dadas as interações e interdependências, torna-se muito difícil definir exatamente um quadro de responsabilização das componentes do sistema. É mais uma das dificuldades das políticas e dos serviços públicos em lidar com a complexidade intrínseca e extrínseca em que se situam. Os sistemas sociais humanos, refere Eppel (2008), são, pois, complexos, adaptativos, interdependentes, abertos e não-lineares.

4. Como responder a problemas sociais complexos? A resposta a problemas complexos constitui, em si mesmo, um desafio enorme. Como referem Conklin & Weil (2007), representa mesmo um “sofrimento” para as organizações, que começam por radicar na incompreensão da natureza do problema. Esta leva a que se procure resolver problemas complexos usando o raciocínio, as ferramentas e o método usado para problemas lineares. Quando não se compreende a diferença de natureza entre estes dois tipos de problema, esse sofrimento aumenta. Paradoxalmente, esse sofrimento é atenuado, na perspetiva destes autores, não tanto pela resolução (tendencialmente impossível) dos problemas complexos, mas pela consciência de que se está perante “um novo tipo de problema que não pode ser resolvido pelos métodos tradicionais”19. 22


Olhares sobre os problemas sociais complexos

A resposta a um problema linear é-nos familiar. Usando um processo sequencial e ordenado, parte-se do problema para a solução, começando por entender o problema, através da recolha e de análise de informação, e seguindo-se a formulação e a implementação da solução. Linearidade

Reunir dados

Problema

Analisar dados

Gerar uma solução

Implementar uma solução

Solução

Tempo Figura 5 - Abordagem para a resolução de problemas lineares (em cascata) Fonte: Conklin & Weil (2007: 3)

Fórmula tradicional utilizada na resolução de problemas complexos: a “Cascata”

Esta abordagem serviu, durante séculos, uma sociedade mecanicista, com trajetos “balísticos” e razoavelmente previsível. Hoje falha perante a complexidade. Nesta mesma linha, Kovacs (1985: 442) sublinha que: “A fragmentação dos conhecimentos e a desconfiança mútua dos especialistas impedem o diálogo e reforçam a tendência para o anonimato e para um possível neo-obscurantismo (…) esta tendência pode tornar-se reversível com o alastrar de uma nova maneira de pensar, que implique um olhar integrador, uma visão de conjunto, em que não se separam as dimensões económica, psicológica, social, cultural, ou histórica, para poder captar a complexidade.” A existência, como referido anteriormente, de interações e interdependências, num sistema aberto, sujeito a múltiplos constrangimentos, torna ineficaz uma abordagem linear20. Exige uma visão holística, capaz de compreender as inter-relações entre um conjunto alargado de potenciais causas e atores, sabendo que a natureza de um problema complexo implica uma dificuldade intrínseca em o compreender plenamente. 23


Governação Integrada na Guiné-Bissau

Uma armadilha típica que se coloca nestas respostas é o isolamento de um subproblema e concentrar aí a atenção e os recursos. Essa resposta muito estreita e focada numa única causa representará, normalmente, uma fonte de frustração pois ignora a complexidade, nomeadamente a multicausalidade e as interações21.

Metodologias e ferramentas Cilliers (2004) defende que não conseguimos lidar com a realidade em toda a sua complexidade, necessitando, por isso, de recorrer a modelos, que a reduzem de forma a produzir algo inteligível. Acresce que dada a natureza distinta dos problemas complexos, as ferramentas utilizadas para resolver problemas lineares não são adequadas22. Coloca-se, portanto, o desafio de encontrar ferramentas que ajudem a aproximar a compreensão da complexidade, nomeadamente através do desenho de modelos, ou da construção de metáforas na expressão de Misoczky (2003), que refere que “aos modelos corresponde descrever um domínio menos conhecido – a realidade – em função de relações com um domínio fictício melhor conhecido.”23. Desta forma, é compreensível que um dos “criadores” do conceito “problemas complexos”, Rittel, tenha focado a sua energia criativa no desenvolvimento de uma nova ferramenta para gerir este tipo de problemas, dando origem ao IBIS – Issue-Based Information Systems. Este sistema, que havia começado a ser desenvolvido anteriormente, visava apoiar a coordenação e o planeamento de processos de decisão política, guiando a identificação, estruturação e a fixação dos temas abordados por grupos de trabalho, focado na resolução de problemas. O IBIS inclui tópicos, temas, questões de facto, posições, argumentos e modelos de problemas, que segundo a lógica dos temas, são organizados e operacionalizados, inicialmente de uma forma manual e, posteriormente, com desenvolvimento informático24. Este salto que Rittel e os seus colaboradores induzem à abordagem sistémica linear, anteriormente usada no planeamento, representa uma segunda geração do método de análise de sistemas, que veio colocar no centro as relações humanas e as interações sociais25. Ao IBIS sucederam-se múltiplas soluções, entre as quais se destaca o Dialogue Mapping, desenvolvido por Conklin (2006). Este processo pretende fazer face às podero24


Olhares sobre os problemas sociais complexos

sas forças de fragmentação induzidas pela conjugação entre problemas complexos, complexidade social e complexidade técnica, procurando alcançar coerência (que se opõe à fragmentação) através do mapeamento das ideias de participantes de grupos de trabalho26. Para gerir melhor problemas complexos, este autor define a necessidade inicial de “compreensão partilhada” entre as partes interessadas a que se deve somar o “compromisso partilhado” na ação sobre o referido problema, constituindo o Dialogue Mapping um contributo relevante para esse objetivo. Vandenbroeck (2014) utiliza, tirando partido dos recursos do diálogo e do design, uma abordagem da Soft System Methodology — SSM, a partir da referência de Checkland & Poulter (2007). Neste método, começa-se por focar na capacidade de expressar o problema, muitas vezes esquematizando-o, progredindo para um modelo conceptual e cenários, a contrastar com o problema como foi desenhado inicialmente. Segue-se a definição de mudanças desejáveis e as ações para melhorar a situação, conforme se esquematiza de seguida.

Monitoramento e avaliação

7

1

Resolução do problema ou melhoramento da situação

Definição não-estruturada do problema

Ação

Averiguação

6

2

Definição de mudanças possíveis e desejáveis

Definição do problema

Tomada de decisão

Formulação de objetivos

5

3

Comparação de 4 com 2

Avaliação de modelos

Definições de sistemas relevantes

4

Modelos conceptuais e cenários

Figura 6 - Soft System Methodology Fonte: Adaptado de Vandenbroeck (2014: 46)

25

Construção de modelos


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A SSM está particularmente vocacionada para o trabalho com pequenos grupos e para problemas complexos próximos. Para uma abordagem de grandes sistemas, em mudanças sistémicas significativas, Vandenbroeck (2014) sugere a utilização da “Gestão de Transição” (Transition Management), em que se ambiciona uma mudança estrutural e cultural sustentável, que possa estabelecer as condições necessárias para a evolução. Inclui três etapas: (a) a elaboração de uma visão inovadora de como poderia o sistema ser sustentável a longo prazo, visão essa que mobilize e inspire as partes interessadas; (b) assegurar um espaço / contexto de experimentação de práticas inovadoras; (c) ter uma rede de aprendizagem que alavanque o processo de mudança. Na mesma linha destas ferramentas, surge recorrentemente o “pensamento sistémico”. Williams & van’t Hof (2014) sugerem a aplicação conjunta de três princípios: ›A compreensão das inter-relações (“Como é que as coisas se ligam entre si?”); ›O reconhecimento de que a perspetiva (“Quais são as diferentes formas como a situação pode ser entendida?”) influencia aquela compreensão; ›A aceitação de que as escolhas de fronteiras (“O que está “dentro” e o que está “fora””) não é opcional e requer uma deliberação baseada em razões éticas, políticas e práticas. Todas estas ferramentas têm como subjacente o princípio que problemas complexos exigem aprendizagem contínua, o que leva Chapman (2004) a afirmar que “a aprendizagem é a chave para lidar com a complexidade associada à falta de previsibilidade e controle”. O autor refere, assim, a necessidade de uma “aprendizagem sistémica” que envolve prática e reflexão a partir da experiência de cada um, que complementa a aquisição de competências e conhecimentos sobre o funcionamento de sistemas. Exige, como é próprio do pensamento sistémico, um nível de abstração maior que o pensamento mecanicista, capaz de uma abordagem holística ao invés da segmentação. Roberts (2014) salientava, a propósito dos desafios que se colocam neste contexto que precisamos de começar “a reformular as nossas escolas e programas edu26


Olhares sobre os problemas sociais complexos

cativos de forma a preparar os nossos alunos para a resolução de problemas do século XXI. Dar-lhes ferramentas simples, baseadas em regras lineares de causa e efeito não é suficiente para que consigam resolver os nossos problemas. É necessário que os ajudemos a trabalhar de forma eficaz com sistemas adaptativos complexos nos quais as dinâmicas do sistema e os ciclos de retroação tornam as reações imprevisíveis. (…) Precisamos de programas interdisciplinares que desafiem os alunos a resolver problemas de forma criativa e a pensarem em termos de sistemas.”27 Uma outra dimensão da aprendizagem que surge referenciada na literatura sobre colaboração interorganizacional é a “aprendizagem expansiva”, considerada como a capacidade de reinterpretar e expandir o objeto da atividade específica, repensando os objetivos, as atividades e as relações com outros prestadores de serviços e clientes. Assim, os profissionais podem começar a responder de uma melhor forma, produzindo novos padrões de atividade, que expandem a compreensão e mudam a prática28. As “comunidades de prática” ou “hubs” são referidas enquanto grupos de pessoas que partilham uma preocupação, um conjunto de problemas ou uma paixão por um tema e que querem aprofundar o seu conhecimento nessa área, por via de uma interação regular com outras pessoas que partilham o mesmo interesse. São apontadas como sendo uma ferramenta útil para lidar com problemas complexos29. Uma das necessidades evidentes para gerar respostas a problemas sociais complexos é a identificação abrangente e inclusiva das instituições relevantes para o tema e das relações entre si (Australian Public Service Commission, 2007). Nesse contexto, as metodologias e as ferramentas de análise de redes sociais (social network analysis) revestem-se de uma relevância significativa, embora neste contexto só mereçam uma referência muito breve. A perceção dinâmica das relações interorganizacionais e a sua caracterização podem ser essenciais para desenhar soluções colaborativas adequadas a problemas complexos.

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Olhares sobre os problemas sociais complexos

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Olhares sobre os problemas sociais complexos

Bairros Saturnino de Oliveira (coord.) Minhone Seidi (coord.) Outubro 2017

Enquadramento O presente artigo enquadra-se no projeto Governação Integrada na Guiné-Bissau (GovInt GB) implementado pelo IPAV, em parceria com a Universidade Jean Piaget Guiné-Bissau, financiado pela União Europeia e cofinanciado pela Cooperação Portuguesa através do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua Portuguesa e tem como desafio a problemática dos bairros críticos da cidade de Bissau (no caso do presente grupo de trabalho). A problematização dos bairros críticos revelou-se algo complexo, num quadro de dubiedade onde não se enquadrava o tipo ideal de Bairro que obedeça a um Plano Diretor Municipal, organizado, com infraestruturas que permitam uma vivência harmoniosa. O diagnóstico alcançado pretende contribuir para uma reflexão e a responsabilização de todos os atores envolvidos (moradores, ONGs, entidades estatais e organizações da sociedade civil) de forma a conseguir no futuro uma intervenção articulada, a partir da qual se melhora a qualidade de vida e potencialidade dos bairros e, ao mesmo tempo, colmatar as deficiências diagnosticadas que possam conduzir a um plano de ação para a resolução desses problemas. Neste sentido, analisam-se os atuais processos e dinâmicas nos bairros mais críticos destacados da cidade de Bissau, Reno e Mindará, através da caracterização e análise de casos de estudo representativos. Pretende-se compreender como se relacionam os fenómenos de segregação e exclusão sócio espacial que destacam os principais problemas, complexos e multifacetados, dos processos que os envolvem e das aspirações e perceções dos atores envolvidos.

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Introdução A Cidade de Bissau foi projetada para 50.000 habitantesIII embora neste momento apresente, segundo os últimos dados censo de 2009, uma população atual na ordem dos 450.000 habitantes para uma população do país a rondar 1.530.673 habitantes. Grande parte da população residente nasceu fora da capital e habita os diversos bairros periféricos. O agregado familiar é, em média, de 8 membros e as oportunidades de obter rendimentos persistem deficitárias. Os bairros constituem toda a zona envolvente à cidade de “cimento”, prolongando-se pela Av. Dos Combatentes da Liberdade da Pátria até à Rotunda do aeroporto. A ocupação anárquica dos espaços, a construção frequentemente rudimentar e a falta de acesso a serviços elementares e a equipamentos de apoio social, caracterizam muitos destes bairros.

Figura 1 - Plano Urbanístico de Bissau, aprovado no ano de 1948 Fonte: Câmara Municipal de Bissau, 1948

Cerca de 90% da população de Bissau concentra-se nos bairros periféricos, introduzindo uma alteração significativa nas paisagens, anteriormente dominadas por espaços verdes naturais ou cultivados, hoje transformadas em superfícies construídas essencialmente com habitações precárias. Tudo isto faz com que a III Conforme Plano Geral Urbanístico (PGUB) de Bissau 1948

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relação entre a densidade populacional nas áreas urbanizadas e periféricas seja significativa, variando e evoluindo entre os 10 a 300 de habitante por hectare, aproximadamente. A edilidade, assim como as instituições encarregues de gerir o espaço urbanoIV, não tiveram em conta a tarefa de planificar, executar e gerir o desenvolvimento de todo o território em causa. A Câmara Municipal, enquanto instituição do Estado, não se encarregou cabalmente da elaboração e gestão da política sobre uso de solo na área da sua administração, facto que se reflete na inexistência de um Plano Diretor Municipal, Planos de Urbanização Detalhados ou Planos de Pormenor de grande parte dos bairros.

Metodologia Para a realização do presente artigo foi feita uma pesquisa local na cidade de Bissau, tendo por base uma metodologia diversificada em termos de recolha e tratamento de dados. Foi valorizado o método participativo e de proximidade com a comunidade, numa dimensão interativa, que permitiu elaborar um diagnóstico estruturado em quatro partes distintas: I. Diagnóstico participativo dos problemas e obstáculos que assolam os Bairros com um grupo de trabalho diversificado, no qual estavam representadas várias esferas da vida pública, designadamente ONGs, Câmara Municipal e Associações de moradores de alguns bairros críticos; II. Djumbai (tertúlia) de reflexão, com associações de moradores e redes juvenis e escolha dos bairros mais críticos — com base numa grelha de análise previamente elaborada (quadro 1, abaixo apresentado); III. Visita ao terreno dos bairros destacados que permitiu o enquadramento dos problemas identificados; IV. Elaboração e conceptualização de mapa de problemas, através da reflexão da parte do grupo de trabalho. IV Câmara Municipal de Bissau, tutelada pelo Ministério da Administração territorial

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Principais problemas comuns identificados nos bairros mais críticos de Bissau Após os diferentes encontros e visitas efetuadas nos bairros, com o acompanhamento sempre da associação dos moradores, como forma de ter a perceção da realidade dos bairros, também foram feitas sessões de djumbais, das quais resultou o quadro que se segue.

Discrições/Bairros

Reno

Mindara

Madina

Bairro Militar

Pluba

Nº de Habitantes Nº de Escolas Nº de postos de saúde N° de organizações N° de espaços religiosos

6155 6 0 1

5897 3 1 1

20283 23 1 11

33269 57 6 56

11200 5 0 3

12

6

24

86

18

Três principais dificuldades do Bairro Espaços verdes Espaços recreativos Espaços desportivos

Ausência de Saneamento Saneamento Água potável Desemprego infraestruturas sociais Falta de Higiene e Espaço Acessibilidade Saneamento Saneamento Saneamento Básico desportivo Delinquência Juvenil/ Espaço de Desemprego Acessibilidade Iluminação Criminalidade Lazer 0 0 0 0 0 0 0 0 3 1 0 0 2 40 1

Quadro 1: Comparativo de problemas dos bairros1V

13% 27%

20%

7%

Saneamento Falta de vias de acesso Ausência de infraestruturas sociais Delinquência juvenil Falta de espaços educativos

33%

Figura 2: Principais problemas identificados V As informações contidas no quadro foram dadas pela associação de moradores destes bairros. Quando são referidos os espaços religiosos estão incluídos espaços animistas, ou seja, da religião tradicional africana. No caso de nº de organizações, tem a ver com associações de base e de moradores.

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Olhares sobre os problemas sociais complexos

Pluba Espaços desportivos Espaços recreativos Espaços verdes N.º de espaços religiosos N.º de organizações N.º de postos de saúde N.º de escolas

B. Militar Madina Mindará Reno 0

20

40

60

80

100

Figura 3 - Djumbjai de reflexão e escolha dos bairros mais críticos e visita ao terreno para enquadramento dos problemas

O quadro 1 foi elaborado com base nas informações fornecidas pelas associações dos bairros em menção, revelando-se determinante na escolha dos Bairros de Mindará e Reno como prioritários. Passaram assim os dois bairros a ser foco do nosso diagnóstico.

Mindará e Reno: dois Bairros problemáticos no coração da cidade Estes dois bairros, curiosamente, situam-se um ao lado do outro, separados pela avenida Combatentes da Liberdade da Pátria, no cinturão da praça de BissauVI. Se tivermos como referência a via praça de Bissau para a Chapa, Mindará situa-se do lado esquerdo e Reno do lado direito. Nas suas faixas laterais, separadas pela Av. dos Combatentes da Liberdade da Pátria, da parte de Mindará encontra-se o mercado de BandimVII. O hiperlotado mercado transborda a outra margem da estrada, onde se encontram alguns armazéns, lojas e feiras informais. A razão principal do estigma associado a estes dois bairros reside na interligação entre o espaço habitacional e o mercado de Bandim, um dos maiores mercados a céu aberto do país, onde tudo se mistura e se vende, desde produtos de primeira necessidade até animais.

VI Zona centro ou praça de Bissau, contempla a maior parte das instituições públicas e a maior parte das infraestruturas são heranças do colonizador. VII Mercado de Bandim – o maior mercado de Bissau

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Não existem registos oficias de datas da implantação desses bairros. No entanto, baseando-se nos relatos dos moradores, pode-se afirmar que estes bairros nasceram há mais de 70 anos. Contudo, o mercado de Bandim remonta dos anos 60, segundo coleção Lala Kema, do INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas, edição Bandim. Em termos de densidade populacional, Reno alberga 6155 habitantes e o bairro de Mindará 5897 habitantes, segundo os Censos (2009). O Bairro de Mindará é engolido, literalmente, pelo mercado de Bandim, que penetra as ruas no seu interior, estende-se espontaneamente a outros sítios sem, de facto, ser imposto um limite territorial. Por vezes, os vendedores cercam residências privadas, criando assim pequenas feiras informais. A situação da sobrelotação do bairro é mais do que preocupante, visto que reforça os níveis de risco social existente no mesmo. No caso de Mindará, a situação de conflito de espaço é maior, uma vez que está completamente rodeado de mercados e feiras, nomeadamente o Caracol na zona Norte e toda a zona Sul, onde se concentra o mercado ambulante.

Figura 4 – Bairro de Mindará Fonte: Autor

Esta imagem ilustra a farmácia tradicional (à direita) e feira de roupa usada (à esquerda). 38


Olhares sobre os problemas sociais complexos

Esta característica atípica tem como consequência principal maior produção de resíduos sólidos, mas também elevadas taxas de absentismo e abandono escolar das crianças. Estas muito cedo se tornam comerciantes de roupas usadas e de outro género que permitam a obtenção rápida de dinheiro, conforme nos foi dito por um dos entrevistados: “Se vou estudar para ter dinheiro e consigo a oportunidade de o conseguir mais rapidamente porque é que vou perder o meu tempo na escola?” (morador do bairro). É neste contexto que a adolescência é construída, enquanto fonte de preocupação e inquietações sociais. Está associada ao risco de delinquência juvenil, nomeadamente através do tráfico e consumo de drogas, bem como prostituição. O rótulo da criminalidade está associado aos dois bairros, e nem a existência da Polícia Judiciária no bairro de Reno constitui um fator inibidor. Conforme nos foi relatado por um morador de Reno “Cada ladron ku si polícia” ou seja, existe uma coligação entre polícias e criminosos, que impossibilita a “limpeza do bairro”. As denúncias, ao invés de resultarem em apreensões, são alvo de represálias, o que desencoraja a comunidade a ter um papel mais vigilante em relação aos atos criminosos praticados no bairro. Por outro lado, há ainda o problema da sobrelotação e ausência de espaço, que tornam o bairro menos atrativo para possíveis intervenções de cariz social. A aglomeração está, como já foi referido, relacionada com a proximidade do mercado, que torna os bairros em questão mais apetecíveis para os estrangeiros, nomeadamente emigrantes e refugiados, que procuram melhores condições de vida. As casas ganham mangas (anexos de forma horizontal) à medida que a família cresce, potenciando conflitos entre vizinhos relativamente à questão do limite do espaço. Esta característica também é partilhada com o bairro de Reno. Neste último, para além de ser gritante a situação da sobrelotação, das residências / casas não constituírem uma garantia de privacidade por serem “amontoadas”, é também visível e preocupante a situação de pouca higiene e saneamento, apesar do bairro ter sido contemplado em 1993VIII no “Projeto de melhoramento do bairro” e ver as ruas abertas e as valetas pluviais construídas. Hoje, as valetas servem para a “drenagem” de lixos caseiros. Quando chove, a VIII Esta informação foi transmitida pela associação dos Moradores do Reno. No entanto, carece de apuramento oficial. Todavia, é notável o resultado do projeto no bairro.

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maior parte já nem serve como canal de passagem de água por ser obstaculizada pela areia. As carências colocam em dúvida a esperança de muitas famílias. Reno é também conhecido pela delinquência juvenil, seja ela praticada pelos residentes ou como espaço que acolhe os marginais. É neste bairro que nasce um dos primeiros pontos da prostituição da cidade de Bissau, denominado de “Chaparia”. Para agravar, nos últimos anos aumentou a venda e o consumo da canábis entre os jovens. Todas estas variáveis, em conjunto, patenteia Reno como uns dos bairros de maior risco da cidade de Bissau. Para os moradores, a debilidade do bairro tem sobretudo a ver com a ausência e a inércia do Estado na promoção da justiça social.

Elaboração e conceptualização de um mapa de problemas Insegurança

Falta de espaço de intervenção

Falta de planeamento urbanístico

Ausência de espaços recreativos

Bairros Reno/Mindará

Mercado de Bandim

Falta de higiene e saneamento

Falta de infraestruturas sociais

Delinquência juvenil

Falta de privacidade

Falta de iluminação

Falta de vias de acesso

Figura 5 – Mapa conceptual do problema dos bairros de Reno e Mindará

O mapa constituído pelo grupo evidencia os problemas complexos observados nos bairros, relatando ainda a interdependência entre eles. O mercado de Bandim ganha destaque por ser um elemento que, para além de ser comum aos dois bairros, interfere de forma significativa na dinâmica da cidade de Bissau. A ausência de planeamento urbanístico aparece como fator determinante, apesar do crescimento espacial acentuado se verificar na cidade de Bissau. A sua orgânica não sofreu grandes alterações em termos estruturais e funcionais em relação 40


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ao que era a cidade colonial, mantendo ainda, assim como no passado, as suas funções de centro administrativo e de concentração do poder central. Para a cidade de Bissau, e mais concretamente para os bairros diagnosticados, a aglomeração urbana não se traduziu numa melhoria de condições que proporcionem o bem-estar básico, mas uma série de problemas onde se destaca a falta de espaço para uma possível intervenção para a construção de infraestruturas sociais. Também a falta de privacidade constitui um dos focos de conflito. Construções informais resultam em casas abarrigadas de tal forma que não há limites territoriais claros. Encontram-se frequentemente construções de casas de banho no quintal do vizinho ou o acesso a casa faz-se passando pela varanda da casa do vizinho. Estas condições atípicas criam uma mistura explosiva que favorece a insegurança, para além de ser favorecida pela falta de iluminação no interior do bairro. A falta de privacidade, a inexistência de vias de acesso rápido e de carros, impedem uma intervenção eficaz dos serviços de proteção civil, de acesso à saúde e polícia, em caso de alguma calamidade ou problema. Por outro lado, existe o problema do desemprego e densidade populacional (que aumenta a um ritmo acelerado), que atuam no mercado informal, motivo que propicia a criminalidade. A criminalidade é vista como uma via, sobretudo pela camada mais jovem que, pela falta de oportunidades, se envolvem em redes de furto, tráfico de droga, prostituição, entre outras, como forma mais fácil de garantir o seu ganha-pão. A falta de espaços recreativos acaba por estar também relacionada com a delinquência juvenil, na medida em que os jovens não possuem espaços de lazer ou desportivos, acabando por ser improvisados — serve-se de cruzamentos das ruas para campo de futebol, de uma residência privada ou da sede de um partido político para organizar eventos. E, deste modo, vão crescendo espaços improvisados para o efeito. O ócio, embora necessário, revela-se demasiado enraizado, acabando por se traduzir em comportamentos desviantes de forma significativa pela população mais jovem. Os relatos da população do bairro de Reno, resultado do trabalho de terreno do grupo, dão conta do aumento de consumo de droga e do vício de jogos a dinheiro.

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Figura 6 – Condições do bairro do Reno Fonte: Autor

O serviço deficitário em termos de saneamento e higiene constituem para todos os bairros auscultados, e sobretudo para os bairros de Reno e Mindará, que estão próximos ao mercado do Bandim, o maior problema com que se deparam diariamente. A higienização da cidade é da responsabilidade da Câmara Municipal de Bissau. A não intervenção efetiva da Câmara no interior dos bairros leva os moradores a buscar fórmulas alternativas através de serviços voluntários promovidos, geralmente, pela associação dos moradores. Os lixos são deitados em locais públicos ou mesmo ao lado dos restaurantes improvisados, sem mínimas condições, ou lojas de produtos alimentares. A água que abastece estas comunidades é, também ela, fator de risco. As pessoas são abastecidas com recurso a águas dos poços, como alternativa à falta ou irregularidade no abastecimento de água canalizada. Os poços, por sua vez, por vez são poços abertos ao lado das retretesIX, sem nenhum tipo de tratamento. Ainda no âmbito da falta de higiene e saneamento, o mercado de Bandim, por sua vez, participa como um agravante à situação já incómoda e preocupante, sobretudo pelas barracas de cozinha improvisadas e sem mínimas condições sanitárias, as quais resultam na acumulação de restos de comida e água utilizada para lavar — de forma precária — os utensílios de cozinha, pratos e copos utilizados pelos clientes. IX Casas de banho ao céu aberto, construídos geralmente nos quintais das casas, muitas vezes partilhadas por várias famílias.

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Olhares sobre os problemas sociais complexos

Considerações Finais A classificação dos bairros de Bissau, em relação ao nível de criticidades, revela-se muito complexo. As carências são generalizadas, desde a falta de infraestruturas sociais até aos serviços sociais básicos. Ficou assente que a causa essencial de todas as situações críticas é a ausência de um Plano Diretor Urbanístico adaptado à realidade da cidade. Essa ausência faz com que os bairros surjam de uma forma não projetada, não organizada, sem existência de infraestruturas, que impossibilita uma harmonia e funcionalidade em termos de acesso aos recursos – o que contribui para a criação de contextos de exclusão, pobreza, isolamento e estigma destes territórios. O exercício de escolha dos bairros mais críticos revelou-se algo complexo, sobretudo pela parecença em termos de desequilíbrios tendo em consideração critérios / elementos que se revelam estruturantes para contribuir para uma comunidade sustentável, e que satisfaça os seus residentes. Para isso, enfatizamos a centralidade de um planeamento urbanístico adequado, com oferta de bens e serviços, igualdade de oportunidades em termos de educação e acesso ao trabalho e boa qualidade de vida, num ambiente seguro e que respeita o meio ambiente. Perante esta situação o espaço de manobra em termos de intervenção torna-se diminuto, dando nesta fase espaço para mais questões do que respostas: Que tipos de serviços sociais são passíveis de produzir resultados mais imediatos em termos da vulnerabilidade diagnosticada? Qual a melhor forma de dotar a Câmara Municipal das capacidades necessárias para que, de forma responsável e eficaz, preste serviços, sobretudo na área do saneamento e ambiente? Que sinergias podem ser desenvolvidas para dar resposta à desadequação da malha urbana e ausência de Planos Diretores Municipais, Planos de Urbanização e planos dos bairros ao pormenor? Que potenciais sinergias podem ser criadas com a sociedade civil para, a curto prazo, a promoção de atividades que gerem melhorias na qualidade de vida dos habitantes de Reno e Mindará? A resposta à problemática dos bairros críticos de Reno e Mindará revela-se, com o seu diagnóstico, bastante complexo e implica um envolvimento interministerial. Implica ainda o desenvolvimento de parcerias e mobilização de diferentes atores da sociedade. Neste sentido, é importante assegurar um plano de recuperação e desenvolvimento dos bairros críticos que tenha em conta o abastecimento regular 43


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de água, águas residuais e resíduos sólidos urbanos. A não descurar o esforço de investimento em termos de infraestruturas, nomeadamente equipamentos sociais e recreativos, a qualificação das redes e dos serviços ambientais, acompanhado de um programa de diagnóstico e sensibilização das populações para adesão a estes sistemas, tendo especial atenção a população mais jovem e vulnerável.

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Referências bibliográficas Câmara Municipal de Bissau (1948), Plano Geral Urbanístico de Bissau 1948 Câmara Municipal de Bissau (1996), Plano Geral Urbanístico de Bissau 1996 Câmara Municipal de Bissau, (2009),Recenseamento Populacional - Censo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP), (1996), Coleção Lala Kema. Edição: Bandim

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Olhares sobre os problemas sociais complexos

Desemprego Jovem Dautarin Monteiro da Costa (coord.) Outubro 2017

Introdução A centralidade da problemática do desemprego jovem tem sido incontornável nos debates sobre a promoção do desenvolvimento humano. Nesta linha, no quadro da nossa contemporaneidade, o fenómeno do desemprego jovem constitui-se enquanto problema social complexo, cuja abordagem é absolutamente fundamental. Porém, a diversidade e a transversalidade inscritas nas suas múltiplas manifestações obrigam, necessariamente, à configuração de modelos ecléticos e multidimensionais de análise. A importância atribuída ao desemprego jovem nas sociedades contemporâneas deve-se ao facto de se configurar enquanto sintoma de um determinado processo de desintegração. Um processo que pressupõe o reconhecimento social da importância de os jovens participarem ativamente nas estruturas de oportunidades, de modo a garantirem a inscrição nos processos de produçãoX. Tal participação, reveste-se de importância na medida em que viabiliza processos de emancipação que se evidenciam na materialização de ideias de bem-estar social. Esta lógica permite-nos assumir que a integração social, no seu entendimento mais amplo, deriva, em boa parte, da participação e inclusão nos sistemas de produção. Os posicionamentos nos sistemas de produção traduzem-se, por inerência, em posicionamentos nos processos de integração e de definição de lugares nas dinâmicas sociais de (re)produção da(s) realidade(s). É fundamental que os jovens tenham oportunidades concretas nos processos de construção do mundo, que também lhes pertence.

X Produção é aqui tratada no seu sentido lato. Entende-se por produção tudo o que decorre dos processos de estruturação e de transformação da realidade social.

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O caso Guineense num olhar panorâmico Considerando os dados do último relatório de Desenvolvimento Humano das Nações UnidasXI, a Guiné-Bissau a apresenta um Índice de Desenvolvimento Humano bastante baixo, encontrando-se entre os dez países com os piores resultadosXII. Uma evidência que se expressa no Índice de Pobreza Multidimensional, cujos resultados apontam para 84,4% da população numa situação de pobreza multidimensional, sendo que desses, 58,4% se encontram numa situação de pobreza severa. Olhando especificamente para os dados de empregabilidade, observa-se que a taxa de desemprego da população (>15 anos) é de 32,8% e a taxa relativa à população ativa (15-60 anos) é de 27,3%. No que respeita à população jovem (15-24 anos) a taxa é de 12,4%. À primeira vista, os dados, embora preocupantes, assemelham-se aos de muitos países considerados de elevado desenvolvimento. Porém, quando cruzados com os indicadores relativos aos rendimentos decorrentes do trabalho, verifica-se que 79,4% da população empregada continua pobreXIII. Relativamente aos indicadores socioeducativos, a média de anos de escolaridade na Guiné-Bissau é de 2,9. A este cenário alia-se o facto de, em média, a população ativa guineense ter um nível de escolaridade inferior aos primeiros quatro anos de ensino básicoXIV. Cruzando dados de empregabilidade com os dados relativos à pobreza da população e, finalmente, com os indicadores socioeconómicos, observamos que o fenómeno do desemprego jovem na Guiné-Bissau decorre de uma multiplicidade de fatores, que não só configuram o problema, como também concorrem para a sua perenização. Os dados permitem identificar que parte significativa da população se encontra numa situação de desemprego, que a maior parte das pessoas empregadas continuam pobres e que, em termos gerais, existe uma escassez de recursos humanos devidamente preparados para a inscrição no mercado de trabalho. O desemprego jovem na Guiné-Bissau integra uma dinâmica viciosa que articula a pobreza, a precariedade e a baixa escolaridade/ formação profissional. XI UNPD, Human Development Report 2016. XII Posição 178 num conjunto de 188 países e territórios. XIII Pessoas com rendimento diário até $3,10. XIV ILAP, 2010.

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Olhares sobre os problemas sociais complexos

A complexidade do problema e o desafio da governação integrada Os aspetos realçados nos pontos anteriores permitem perceber que o desemprego jovem na Guiné-Bissau é um problema de facto complexo, cuja superação implica, antes de tudo, uma compreensão profunda das suas múltiplas articulações e, consequentemente, das suas múltiplas manifestações. Foi com base nessa perspetiva que o grupo de trabalho temático “Desemprego Jovem” foi desafiado. Um desafio acolhido com a clara noção de que seria um trabalho eternamente inacabado, pois o objeto de análise e de intervenção é eminentemente dinâmico e permeável aos processos de mudança. Em termos de abordagem, importa clarificar, ainda que de forma breve, o conceito de problema social. O princípio sociológico fundamental sobre os problemas sociais pressupõe que só é problema aquilo que é entendido socialmente como problema. Ou seja, um problema social só o é, de facto, se lhe for reconhecida relevância social. Este reconhecimento é absolutamente vital para o alargamento dos processos de análise e de estruturação de modelos integrados de intervenção. O ideal de governação integrada face a um problema é tanto mais consequente, quanto maior o reconhecimento dos interlocutores de que o problema existe e de que a intervenção sobre as suas manifestações é urgente. No caso da Guiné-Bissau, o problema do desemprego jovem carece ainda de um amplo reconhecimento social, o que torna maior o desafio de integrar e articular esforços. Porém, por outro lado, o amplo reconhecimento só será uma realidade se os atores que já reconhecem o problema produzirem conhecimento relevante em termos de compreensão do problema. O trabalho do grupo temático “Desemprego Jovem” assenta nesta premissa e o presente texto resulta de uma primeira imersão analítica.

Modelo de análise Nesta primeira fase dos trabalhos, o grupo dedicou-se fundamentalmente ao mapeamento concetual do problema do desemprego jovem na Guiné-Bissau. Para a concretização deste objetivo importava fundamentalmente definir um 49


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roteiro dos trabalhos (Figura 1). Para esse efeito entendeu-se que, antes de mais, era fundamental definir o conceito de emprego jovem, considerando as especificidades do contexto guineense. De seguida, desenvolver um debate aturado sobre as dimensões sociais que concorrem para a estruturação do problema do desemprego e, por fim, com base nos resultados dos debates, elaborar o mapa concetual do problema.

Definição do conceito

Identificação e compreensão das dimensões do problema

Mapeamento do problema

Figura 1 – Roteiro do trabalho

Definição do conceito Considerando os dados expostos no segundo ponto, o grupo de trabalho entendeu que era fundamental a clarificação do conceito de emprego jovem. A compreensão aprofundada do conceito de desemprego jovem só é possível através da adoção de uma perspetiva concreta e inteligível do que é o emprego jovem (Figura 2). Neste sentido, o grupo de trabalho considera que o desemprego jovem diz respeito a todos os jovens entre os 15 e 25 anos de idade, que se encontrem desintegrados dos sistemas de produção geradores de rendimento. Seguindo esta linha, foi definido e assumido que o emprego jovem teria, necessariamente, de configurar uma situação face aos sistemas de produção de modo a integrar aspetos que garantam a sustentabilidade face ao trabalho. Entendeu-se que essa sustentabilidade só será possível através da articulação de condicionantes, tais como: estabilidade, possibilidade de progressão na carreira, capacidade/ possibilidade de inovar e capacidade de gerar/ obter rendimentos que garantam as condições sociais de existência dos jovens. A articulação destes aspetos, na perspetiva do grupo, configura uma situação de empregabilidade sustentável. A partir deste ponto, o grupo adotou o conceito de emprego jovem sustentável. 50


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Olhares sobre os problemas sociais complexos

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Emprego jovem sustentável

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Dimensões do problema Como já foi referido, o fenómeno do desemprego jovem é um problema social complexo, sendo essa complexidade decorrente da sua dinâmica multidimensional. Por outras palavras, podemos afirmar que, no contexto guineense, existe um quadro multidimensional que desencadeia e alimenta o fenómeno do desemprego jovem. Partindo desta constatação, o grupo elegeu um conjunto de dimensões-chave (figura 3) cujo entrelaçamento configura e dinamiza o problema. Nesta linha, entende-se que a compreensão do problema obriga, necessariamente, à compreensão da articulação entre as dimensões política, educativa, económica e cultural da realidade social guineense.

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Eco n Figura 3 – Dimensões-chave do Desemprego Jovem

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Dimensão política Das ramificações que emergem do sistema político e que alimentam o fenómeno do desemprego jovem (figura 4), podemos destacar a ausência de políticas consistentes para a promoção da empregabilidade dos jovens.

Política Falta de políticas consistentes de promoção do emprego jovem Falta de implementação de políticas existentes Falta de articulação entre o Estado, entidades empregadoras, escolas e OSC Instabilidade política Figura 4 – Dimensão política

O Estado, enquanto protagonista central na conceção e implementação de políticas públicas, não evidencia uma agenda concreta para resolução do problema. A ausência do desemprego jovem da agenda política viabiliza processos que redundam em fragilidades no que respeita à implementação de políticas esboçadas em períodos anteriores. Consequentemente, não havendo um interesse óbvio do poder político, cria-se um terreno fértil para a desarticulação entre o Estado e as organizações da sociedade civil, dedicadas à formação e inscrição de jovens nos sistemas de produção. O cenário de crise política endémica que assola a sociedade guineense estabelece um quadro de instabilidade permanente. Um quadro que, por um lado, tem desviado a atenção dos responsáveis políticos para assuntos relativos à obtenção e captura do poder e, por outro, remete para segundo plano o desenvolvimento de políticas que visem a melhoria das condições sociais de existência da população. O não mapeamento político do problema cria a ilusão de que o problema do desemprego jovem não é, de facto, um problema.

Dimensão económica No plano económico, o grupo destacou a falta de investimento e a exiguidade do mercado de trabalho guineense enquanto elementos propulsores de uma situação adversa no que respeita à promoção do emprego jovem (figura 5). 52


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Económica Exiguidade do mercado de trabalho Falta de investimento Precariedade laboral Subaproveitamento de recursos Desequílibrio entre os setores de produção Fragilidades na execução de políticas fiscais Ausência de incentivos fiscais Figura 5 – Dimensão económica

A estes aspetos alia-se o desequilíbrio entre os setores de produção, evidenciado na ausência do setor secundário. Na Guiné-Bissau, por tendência, apenas os setores primário e terciário é que se afiguram enquanto espaços de absorção da população ativa. Não existem indústrias, apenas unidades de produção semi-artesanais, e no setor primário a produção é feita tradicionalmente, praticamente sem recurso a máquinas. Resta o setor terciário, que acaba por concentrar a maior parte da população ativa. Trata-se de uma realidade que releva uma tremenda ausência de dinamismo económico, o que resulta, consequentemente, em processos de precarização do trabalho e em baixos rendimentos.

Dimensão educativa Como ficou demonstrado anteriormente, observa-se uma escassez de recursos humanos devidamente preparados para a inscrição e dinamização do mercado de trabalho. A falta de preparação de recursos humanos decorre, fundamentalmente, da disfuncionalidade do sistema educativo guineense. Na fig.6 encontram-se destacados os aspetos que contribuem para o desemprego e precarização do trabalho. A falta de oportunidades formativas de qualidade retira capacidade de superação aos jovens e alimenta a dinâmica viciosa do problema.

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Educativa Falta de orientação vocacional nas escolas Falta de diversidade e qualidade das ofertas formativas Fragilidade no controlo e supervisão do sistema educativo Falta de um quadro legal mais ajustado à realidade educativa Figura 6 – Dimensão educativa

Dimensão cultural Por fim, a dimensão cultural (figura 7). Provavelmente, a componente fundamental do problema. Os entendimentos sociais sobre um problema determinam, de forma crucial, a sua configuração e manifestações. É no quadro das construções culturais que uma dada situação social ganha legitimidade.

Cultural Normalização da corrupção Inversão de valores Cultura de trabalho pouco meritocrática Figura 7 – Dimensão cultural

Na Guiné-Bissau observa-se um aparente conformismo generalizado face ao status quo do desemprego e precariedade do trabalho, que se alia a um conjunto de representações normalizadoras da corrupção. Em termos genéricos, observa-se uma profunda crise/ inversão de valores, que retira capacidade de reação positiva aos jovens. Tem-se desenvolvido um quadro cultural potenciador de dinâmicas de resiliência que, por sua vez, privilegiam expedientes alternativos desvalorizadores do mérito, conhecimento, profissionalismo e consistência técnica. Estas dinâmicas estabelecem um cenário de insustentabilidade, na medida em que retiram valor às referências positivas e promovem uma realidade onde a ilegalidade e a falta de ética se transformam em espécies de normas oficiosas. Considerando estas dimensões, nas suas múltiplas manifestações e articulações, o grupo de trabalho concebeu um mapa concetual do problema do desemprego jovem na Guiné- -Bissau (figura 8). No mapa procurou-se demonstrar graficamente as dinâmicas viciosas e interdependentes que confiram e alimentam o problema. 54


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› Falta de orientação vocacional nas escolas; › Falta de diversidade e qualidade das ofertas formativas; › Fragilidade no controlo e supervisão do sistema educativo; › Falta de um quadro legal mais ajustado à realidade educativa.

› Falta de políticas consistentes de promoção do emprego jovem; › Instabilidade política.

Dimensão política

Dimensão educativa

Desemprego jovem

Dimensão económica

Dimensão cultural

› Exiguidade do mercado de trabalho; › Falta de investimento; › Precariedade laboral; › Subaproveitamento de recursos; › Desequílibrio entre os setores de produção; › Fragilidades na execução de políticas fiscais; › Ausência de incentivos fiscais.

› Institucionalização da corrupção; › Inversão de valores; › Cultura de trabalho pouco meritocrática.

Figura 8 – Mapa conceptual do problema do desemprego jovem

Perspetivas de Desenvolvimento Como foi referido anteriormente, o desafio de compreender o fenómeno do desemprego jovem na Guiné-Bissau foi acolhido com a clara noção de que seria um trabalho eternamente inacabado. O presente texto decorre de uma primeira imersão analítica no problema. Este trabalho representa, fundamentalmente, o início de um percurso que implicará uma caminhada em que os elementos do grupo desenvolverão, necessariamente, aprendizagens e aprofundarão entendimentos sobre o objeto de análise e de intervenção. Em jeito de balanço, podemos concluir que, nesta fase, os objetivos do grupo temático foram cumpridos. A elaboração do mapa concetual do problema representava o primeiro grande objetivo. Neste sentido, para a fase seguinte, os próximos trabalhos exigirão, sobretudo, o aprofundamento do mapa concetual do problema e a elaboração de propostas concretas que visem caminhos integrados de superação. 55


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Referências bibliográficas Instituto Nacional de Estatística, (2010), Inquérito Ligeiro para a Avaliação da Pobreza. República da Guiné-Bissau, (2015), Plano Estratégico e Operacional 2015-2020, Terra Ranka. RESEN, (2013), Relatório da situação do sistema educativo: Margens de manobra para o desenvolvimento do sistema educativo numa perspetiva de universalização do Ensino Básico e de redução da pobreza, Ministério da Educação Nacional, da Cultura, da Juventude e dos Desportos RESEN, (2015), Para a reconstrução da escola da Guiné-Bissau sobre novas Bases –Resumo Executivo. Secretaria de Estado da Juventude, Cultura e Desporto, (2015), Plano de desenvolvimento dos recursos humanos para a implementação da Política Nacional da Juventude da Guiné-Bissau SNV – Connecting People’s Capacities (2011). Sistemas de Inspeção da Educação. Os modelos teóricos e a sua aplicação no Senegal, Mali, Benim e Guiné-Conacri por comparação com a Guiné-Bissau, Bissau UNPD,(2016), Human Development Report: Human Development for Everyone.

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Olhares sobre os problemas sociais complexos

Desigualdade de Género António Spencer Embaló (coord.) Outubro 2017

Introdução Os desafios de liderar um processo de reflexão de um fenómeno social tão premente, com uma especificidade própria de problemas sociais complexos e cuja compreensão e apresentação de propostas de soluções são tão urgentes e necessárias, ao ponto de serem assumidos em várias dimensões: intelectual e profissional; liderança e auto-mobilização voluntária para uma causa; mobilização dos pares e disposição de estar ao serviço de outrem; acabam por assumir, em nós, o caráter patriótico. Na prática, este desafio colocou os coordenadores do grupo temático de desigualdade de género (CGTDG) perante uma oportunidade de utilizarem as suas ferramentas profissionais para a facilitação de um processo de reflexão e debate de ideias, com forte conhecimento da realidade precisa, à volta de um problema social específico, com intuito de encontrar respostas concretas – e não absolutas ­­­­– – e caminhos mais ou menos claros, e nunca fechados. A natureza do desafio, as características profissionais e pessoais dos que aceitaram o repto, a metodologia que se tem utilizado para estímulo e obtenção de resultados, e o produto de todo o processo em si mesmo, não permitem outra coisa que não olhar para o resultado deste processo como algo ongoing. Ou seja, vai-se provocando reflexões e debates, vai-se obtendo resultados, vai-se comparando e progredindo, sempre num quadro de processos: característico de algo dinâmico e suscetível a mudanças no sentido de ganhos de novos conhecimentos e alterações de resultados cumulativamente. Posto isso, e abordando este exercício em concreto, o documento foi concebido com o objetivo de facilitar a compreensão de quem o lê no sentido de promover a perceção clara de todo o processo que antecedeu a elaboração deste documento. Assim, após a breve introdução e enquadramento, seguir-se-á uma breve explicação da abordagem metodológica adotada, com as suas vantagens e limitações. Seguindo o curso, é explorado o modo como o problema foi abordado, bem 57


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como os passos dados, de forma detalhada. O documento é concluído com a apresentação dos resultados e sua análise – também ela pormenorizada – e, por último, a partilha de advertências, que foram consideradas necessárias. Todo este processo foi desencadeado pelo IPAV – Guiné-Bissau no âmbito do projeto GovInt Guiné-Bissau com o objetivo de analisar problemas sociais complexos numa perspetiva e atitude colaborativas de modo informal. Para isso, foram envolvidos atores individuais e/ ou organizacionais, setor público e privado, que estudam, refletem e agem sobre os citados problemas sociais complexos e que, no fim do processo, diagnostiquem os problemas, bem como apresentem os primeiros passos na reflexão em torno de caminhos que possam conduzir à sua diminuição e até à sua resolução.

Metodologia Tendo em conta os desafios assumidos para com o projeto, a coordenação do grupo temático (GT) assumiu que era assaz importante trabalhar em equipa em torno da necessidade de, em primeiro lugar, a própria equipa ter conhecimento das características profissionais de cada um dos elementos que compõe o grupo temático de desigualdade de género (GTDG), das expectativas individuais em relação ao projeto, em relação aos resultados da sua participação na identificação de problemas associados à desigualdade de género e propostas orientadoras para próximos passos. Neste processo, foram ainda partilhados receios de funcionamento neste caminho de grupo, e aspetos que poderiam pôr em causa os objetivos preconizados. Ora, para garantir que o grupo se conheça e que seja participativo no processo de identificação de problemas e de soluções assumiu-se, metodologicamente, as seguintes etapas: a) Integração dos elementos e a sua consolidação no GT; b) Sessões de reflexão e identificação dos problemas e das suas dimensões; c) Sessão de reforço anímico do grupo de reflexão; d) Sessões de reflexão e identificação de propostas de soluções. 58


Olhares sobre os problemas sociais complexos

Para percorrer este caminho metodológico, foi necessário o recurso à metodologia ação-reflexão-ação, através de dinâmicas participativas e de grupo sustentadas pela premissa de vivenciar as experiências e posteriormente refletir e debater sobre as mesmas, enquanto processo que facilita a aquisição e consolidação do conhecimento.

O problema: Desigualdade de Género – o processo Primeiro passo: integração dos elementos e a sua consolidação no grupo de trabalho. O desafio de criação de um grupo de trabalho heterogéneo, capaz de produzir resultados significativos em tão curto espaço de tempo, ter e manter uma coerência interna em termos de reflexão, debate e produção de resultados imediatos que respondam à questões concretas e que fujam aos vícios resultantes de processos de reflexões de grupos homogéneos (pares: empresários; setor público; terceiro setor; juristas e advogados; etc), foi superado não só pela dimensão e diversidade de elementos que compõem o grupo mas também pelo investimento em duas sessões de trabalho para integração e consolidação dos elementos que compõem o GT – conhecer as áreas e funções profissionais de cada um, as suas expectativas, receios e atrapalhações em relação ao projeto e ao grupo de trabalho.

Segundo passo: desconstrução conceptual. O básico interpretativo de qualquer realidade social — abstrata ou concreta —, deve passar necessariamente pela contextualização da referida realidade e dos conceitos que irão servir de “almofadas” interpretativas ao longo do referido processo. Assim sendo, os coordenadores do grupo temático (CGT) lançaram o mote e o GT recebeu-o em três sessões de trabalho: O que é Desigualdade (ou desigualdade social)? Falar de Desigualdade na Guiné-Bissau (GB) – quiçá em África – é a mesma coisa que falar em desigualdade noutros países? Por exemplo: do hemisfério norte? E género? O que será género na GB e para os guineenses? A seguir, o que será o entendimento do GT sobre desigualdade de género? Admitindo, a priori, que decorrerá de um processo social, como se manifesta na sociedade guineense? E a mais provável manifestação do referido fenómeno 59


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social, variará em função de que elementos também sociais (idade, sexo, áreas de residência: urbano/ rural, classe social, escolaridade, pertença étnica/ religiosa)?

Terceiro e quarto passos: as dimensões do problema e o desenho do mapa Decorrente de um problema social complexo, as suas formas de manifestação foram analisadas e construidas utilizando diferentes enfoques: político, económico, cultural, religioso e/ ou animista.

Os Resultados Kuma parmanha ku na sabi, madrugada ku ta sintil! (Dizem que uma boa manhã, sente-se de madrugada!, — em Crioulo da Guiné-Bissau) Tendo em conta o suficiente conhecimento teórico dos temas em questão e a realidade social concreta em análise, os CGTDG (coordenadores dos grupos de trabalho de desigualdade de género) optaram por desafiar o GTDG a refletir e debater as significâncias gerais e específicas dos conceitos, sem perder de vista as diferentes realidades sociais que podem (em alguns casos, devem) ser relacionadas com os referidos conceitos. Nesse sentido, da dinâmica de grupo que estimulou os participantes a refletir sobre o que é desigualdade (ou desigualdade social), resultaram nos seguintes termos e noções: privação de liberdades; exclusão; injustiça social; discriminação; corrupção; violação de direitos; etc. Ora, do longo e estimulante debate, de tentativas de definição, clarificação e defesa acérrima dos termos propostos, o GT assumiu como sua definição de Desigualdade na GB:

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“Um processo social (situacional) de privações de recursos e oportunidades — económica, educacional e social/ simbólica – com potencial de gerar situações de injustiça, de discriminação, de exploração, de humilhação, de corrupção e de violência impulsionadora de problemas e conflitos estimulados, também, pela ignorância capazes de deshumanizar a sociedade”. Seguindo a mesma metodologia de trabalho, os coordenadores voltam a desafiar o GT, desta vez, com a questão relacionada com a clarificação do conceito de género com toda a sua novidade académica-social num país de 44 anos. Ora, se com o conceito de desigualdade social o GT teve o cuidado de evitar generalizações indevidas e especificidades exageradas, em relação ao género a atenção foi redobrada, sobretudo pela sua introdução mais «recente» no léxico nacional da GB e no dia-a-dia dos investigadores e técnicos que lidam direta ou indiretamente com o conceito. Nesse sentido, numa linha necessária de clarificação conceptual com intenção de evitar generalizações que possam potenciar confusões desnecessárias, adverte e aconselha a investigadora guineense: “os países africanos (submetidos na sua maioria a um processo de colonização) precisam encontrar mecanismos internos para compreender as dinâmicas sociais internas e precisam escolher os temas e as metodologias de pesquisa que melhor se adequam às necessidades locais e não às demandas externas”. (Gomes: 2014). Assim, respondendo ao desafio da definição de género, enquanto conceito, mas partindo de questões muito simples como o que vos passa pela cabeça quando escutam a palavra género?, O GT avançou com os seguintes termos como resposta: igualdade; equidade; feminismo; feminismo = machismo; tomada de decisão; superioridade =/ poder; e capacidade de decidir. Entretanto, o debate no GT assumiu, em suma, três interessantes caminhos: até que ponto serão equidistantes os conceitos feminismo e género? Assumindo que o feminismo é equivalente ao machismo, e assumindo que género é a mesma coisa que o feminismo, até que ponto o género – enquanto conceito – não estará também a reivindicar a superioridade das mulheres em relação aos homens e nada de igualdade entre os dois? E a superioridade de que se fala é no sentido de poder e maior capacidade de tomada de decisão, ou será antes no sentido mais biológico do termo (por exemplo, de um ser que nasce superior ao outro; assim sendo, da mulher que nasce biologicamente superior ao homem)? 61


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Da intensa e autêntica «batalha» para produção de conhecimento, clarificando um conceito deveras importante não só para o GT mas também para os demais interlocutores do projeto nesse campo específico, resultou a seguinte definição: “É uma construção social, proveniente do nosso processo histórico-social, do significado de ser homem e ser mulher na nossa sociedade — a guineense. E como tal, pressupõe desempenho de papéis comunitariamente expectáveis.” Ora, na sociedade guineense, tal como uma outra qualquer, os atores sociais têm vários papéis a desempenhar. Neste caso concreto, o GT disponibilizou-se a analisar o desempenho de papéis sociais destes dois atores: mulheres e homens guineenses. O desafio passa por analisar, à luz das perceções do GT, o que se espera socialmente de uma mulher guineense? Como é que uma menina guineense se deve comportar em casa, na escola e nos espaços de sociabilidade? As mesmas questões também devem ser colocadas às senhoras guineenses: em casa, no trabalho e nos espaços de sociabilidade? O GT, após discussões e trocas de argumentos, concluiu que o que se espera socialmente duma menina não é muito diferente do que se espera duma senhora guineense: espera-se que sejam obedientes, zelosas e cumpridoras de tarefas domésticas; ótimas alunas e funcionárias (se tiverem essas oportunidades nessas duas situações) mas sem ameaçar a liderança masculina; e, por último, recatadas e exemplares, até porque sobre elas pendem a responsabilidade, entre outras, de educação dos irmãos e/ou filhos. Fundamentalmente, numa redução quase grotesca, espera-se que uma mulher guineense seja “casada, que tenha filhos e seja uma boa dona de casa”. No mesmo sentido, utilizando as mesmas premissas, deve-se também questionar e analisar os papéis sociais do menino e do homem guineense: como é que um menino guineense se deve comportar em casa, na escola em espaços de sociabilidade? E o homem guineense, como se devem comportar: em casa, no trabalho e nos espaços de sociabilidade? Tal como a situação anteriormente analisada (meninas e senhoras), o GT concluiu que tirando a variabilidade etária, os papéis do menino não diferem muito do homem: é-lhes esperado alguma responsabilidade nas tarefas domésticas, sobretudo associado a questões que os ligam a universos fora da esfera doméstica — 62


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— fazer recados é um ótimo exemplo —, e que lhes sobre tempo para lazer, que servirá para estimular e treinar a sua audácia e coragem; que sejam bons alunos e funcionários/ técnicos com boa capacidade de liderança; e, finalmente, que seja um exemplar chefe de família — que sustente a casa, a(s) mulher(es) e os filhos que terá. Resumida e caricaturalmente, espera-se que um homem guineense seja corajoso, audaz, líder e sexualmente vigoroso. Após a longa viagem pela desconstrução conceptual, o GT assumiu como sua definição de desigualdade de género, neste contexto concreto do desafio de análise dos problemas e apresentação de propostas de resoluções, o seguinte: “É um processo social (situacional) de privação de recursos e oportunidades — — económico, educacional e social/simbólico - com base no papel social que a mulher guineense deve desempenhar. E o referido desempenho de papel social da mulher guineense está carregado de potencial de produção de situação de injustiça, de discriminação, de exploração, de humilhação, de corrupção e de violência impulsionadora de problemas e conflitos estimulados, também, pela ignorância e interesses dos homens capazes de desumanizar a humanidade (sociedade guineense).” Uma parte importante, se não fundamental, deste processo tem a ver com arrumações claras de conceitos que, pela sua capacidade explicativa e pela tendência de universalização, não tendo o devido cuidado em clarificá-los e contextualizá-los, podem criar ilusões e leituras erradas capazes de deturpar todo um esforço e trabalho merecedor de, pelo menos, uma leitura e análise atenta. Aprofundados e desmistificados os conceitos, o GT lançou-se para o desafio seguinte: analisar o problema definido. Ora, na Guiné-Bissau, a desigualdade de género, tal como acima definida, constitui um sério problema de convivência social, um entrave à «abertura de espírito», refinamento e honestidade intelectual às mulheres e homens que almejam um equilíbrio social, o crescimento económico e o desenvolvimento do país. Segundo os dados da INE-GBXV, as atividades económicas empreendidas pelas mulheres constituem uma das principais alavancas económicas do país. Entretanto, antes de mais, convém analisar muito bem as formas como se manifesta o problema. Nesse sentido, o GT elencou numa dimensão bem mais generalizada, que antecede e engloba todo o proXV Instituto Nacional de Estatísticas da Guiné-Bissau

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cesso. E quatro dimensões específicas do problema que merecem ser analisadas separadamente e, só depois, analisar o funcionamento em conjunto.

Construção social e histórica (da nossa existência enquanto povo) Todos os povos percorrem um ou vários caminhos para se constituírem como tal, e no caso da Guiné-Bissau, território outrora muito usado como esconderijo de grupos que se sentiam ameaçados, foi sendo sempre fortemente disputado pelos diferentes grupos que por lá passavam e/ ou tentavam permanecer para a criação de gado, desenvolvimento da agricultura e ter acesso às zonas marítimas. Mais tarde, fortemente pressionado e influenciado pelo tráfico de escravo, primeiro, e colonialismo, depois. O povo da Guiné-Bissau, fruto da intensa atividade migratória protagonizada por vários grupos étnicos africanos, de inúmeras disputas, batalhas, guerras e conquistas, de impetuosa atividade comercial esclavagista, de violento e massacrante período colonial que culminou com uma luta armada de libertação nacional, que durou onze anos – o resultado de todas essas convulsões sociais durante séculos. É neste quadro referencial que a construção histórica do povo guineense deve ser encarada — sem esquecer todos os elementos simbólicos associados a perdas e conquistas, com elevado fluxo de deslocações e afixações, e de todas as formas de interpretações das interações e de jogos de papéis sociais.

Fator cultural Este é assumido aqui como um conjunto de regras e práticas não convencionais em termos formais, mas cuja vigência no quotidiano é causadora de impactos capazes de criar padrões no dia-a-dia das pessoas. Ora, criado o padrão, a prática ganha temporalidade – muita vezes, maior que aquela que lhe é devida de facto, pois passa a ser recorrente ser evocada como uma prática ancestral – e assume legitimidade, porque o recurso às questões culturais para justificar determinadas práticas passa a ser frequente: “porque na nossa cultura é assim”; ou porque, “de 64


Olhares sobre os problemas sociais complexos

acordo com a nossa cultura, faz-se assim”. A combinação desses três elementos — — padrão, temporalidade e legitimidade —, dão a prática quotidiana uma dimensão cultural: “é assim porque é assim” - padrão; “é assim desde o tempo das nossas avós” - temporalidade; e “é assim porque é a nossa forma de ser/ fazer as coisas” — legitimidade). É partindo dessa premissa que o GT analisa esta dimensão específica do problema e conclui que fatores como «posse da terra; acesso limitado ao sistema de ensino; levirato; poligamia; casamento precoce e forçado; violência doméstica» têm contribuído fortemente para o desequilíbrio, baseado em género, de acesso às ferramentas estruturantes da vida social e atribuição de enormes vantagens aos homens, pois os citados fatores culturais servem fundamentalmente para perpetuar a secundarização do papel da mulher na sociedade guineense. Abundam os exemplos de senhoras que cultivam as suas terras mais de 20 ou 30 anos e depois, por falecimento dos maridos ou por divórcio, ficam sem a referida propriedade. Isto porque, segundo as leis tradicionais (aspeto cultural), o legítimo herdeiro da família e, consequente cabeça de casal, é o filho mais velho do homem – independentemente de ser também o filho da mulher. Tanto assim é, uma vez que a poligamia é uma prática tradicional aceite e incentivada pela maioria – se não todos – os grupos étnicos da Guiné-Bissau. Numa esfera diferente, mas igualmente penalizadora para as mulheres e, sobretudo, jovens raparigas guineenses, está a situação da permanência das jovens raparigas no sistema do ensino. Segundo os dados do INE, só 25% das raparigas rurais são alfabetizadas, face a 54% dos rapazes. Na região de Gabú, por exemplo, onde a discrepância é maior, a percentagem das jovens alfabetizadas encontra-se abaixo da média: só 22% das raparigas e 36% dos rapazes. Significa que existe aqui um claro desinvestimento do Estado e das famílias guineenses na permanência e continuidade escolar das jovens raparigas. Com o agravante de que o referido desinvestimento das estruturas competentes coincide com a altura em que as jovens raparigas são fortemente treinadas para assumirem outras responsabilidades na estrutura social – o casamento precoce e/ ou forçado é disso um excelente exemplo complementar. Por último, e não menos importante, as várias e constantes situações de violência doméstica com base no género têm sido das marcas mais humilhantes para a 65


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mulher guineense – independentemente do seu estatuto económico-social, da sua origem étnica, da sua idade ou escolaridade. Apresentado assim não significa que todas as mulheres da Guiné-Bissau passam necessariamente por essas situações. Significa, no entanto, que uma larga maioria da população feminina guineense está sujeita a viver situações de violência doméstica com base no género porque, entre outros fatores, existe um quadro étnico-cultural que propicia e legitima esta prática. Por exemplo, a utilização de dotes não podia gerar efeitos mais perversos: uma parte significativa dos homens guineenses sentem-se verdadeiros e legítimos donos das suas esposas, ao ponto de aplicarem corretivos físicos em caso destas se portarem mal, pois entre outros sentimentos e justificações apresentadas recorrentemente, constam o pagamento de elevadas quantias para elas serem umas ótimas donas de casa.

Fator económico Entende-se que são um conjunto de práticas levadas a cabo no quotidiano, tanto na esfera pública quanto na privada, e que provocam um sem número de casos que não promovem, de todo, a igualdade de oportunidades e de acesso aos recursos, como preconizam a Lei Fundamental e as demais leis do país. Concorrendo para um posto de trabalho em igualdade de circunstâncias, um homem guineense leva léguas de vantagens em relação à mulher guineense. Vantagens ganhas tão somente por ser homem – e pelo estatuto que esta condição lhe confere. Quando a mulher finalmente consegue ganhar um concurso e se emprega, após anos de luta para a sua afirmação profissional, não deixa de enfrentar outros desafios – a desigualdade salarial é disso um ótimo exemplo. Homens e mulheres, em igualdade de circunstâncias, desempenham as mesmas funções mas tendem a ganhar salários diferenciados em função do género. Duas outras situações – direito desigual à herança e à posse da terra – mencionadas anteriormente (e ótimos exemplos) como fatores culturais são, igualmente, fatores económicos pela sua natureza e valor no mercado. 66


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Estes foram elementos apontados pelo GT como exemplos elucidativos das situações com pendor económico que podem ajudar a analisar a desigualdade de género a partir da dimensão económica.

Factor religioso e/ou animista Neste campo, o GT decidiu analisar um conjunto de práticas que se assumiu estarem enraizadas no quotidiano guineense, acima de tudo por motivações religiosas – judaísmo, cristianismo e islamismo —, e/ou animistas. Segundo o GT, as situações de incentivo e/ou de obrigatoriedade da mulher em se submeter ao seu marido, o fraco incentivo, ou a ausência dele, a liderança feminina, a estrutura familiar e/ou a estrutura religiosa, o facto de a mulher e o filho deverem seguir a religião do pai e/ou marido, terem o apelido do pai – constituem elementos que ajudam a prejudicar ainda mais a situação da mulher guineense, já de si débil. Ou seja, se a mulher guineense já enfrentava situações deveras complicadas em termos de desigualdade de género, provocadas por fatores culturais e económicos, as religiões e/ou o animismo acentuam mais ainda a situação, pois as práticas quotidianas acima referidas são, elas também, justificadas pelos praticantes como premissas religiosas e/ou animistas. Consequentemente, a ideia de luta pela igualdade de género não passa disso mesmo: uma mera ideia.

Fator político Em termos legislativos e ações concretas levadas a cabo pelas entidades públicas para a promoção de igualdade de oportunidades e de acessos a recursos, pode-se indicar que o país está relativamente a meio percurso, pois existem leis, políticas e entidades públicas especializadas na defesa e promoção de igualdade de género. O problema coloca-se, acima de tudo, na fragilidade da promoção das políticas públicas e o seu fraco resultado em termos do impacto no dia-a-dia das pessoas. Ora, tendo o Estado criado um Ministério que designou de Mulher, este criou um Instituto Público para a Promoção da Igualdade, que tem a obrigação de criar ferramentas que mobilizem a sociedade para uma prática mais igualitária, questões como assédio sexual e a ausência da pedofilia como crime 67


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no código penal nacional demonstram, por si, o quão longe estamos em termos da promoção da igualdade. Desta forma, a dimensão política contribui, também, para aumentar o fosso da desigualdade de género. No entanto, uma ferramenta política que podia contribuir significativamente para mitigar o referido fosso, continua muito longe do debate e posterior decisão política – a utilização de quotas. Muitas mulheres guineenses, sobretudo as que conquistaram uma posição económica e social de certo relevo, continuam a olhar para a eventual utilização de quotas como ferramentas de desprestígio e promotor de facilitismo e, por isso, nada dignificante para elas. Nesse sentido, não conseguindo ter a visão mais abrangente – o alcance do universo mais alargado (“mulheres de todo o país”), — — uma boa parte das mulheres nem querem ouvir falar de quotas. Construção do Mapa de Problemas Construção Social e Histórica (da nossa existência) Fator político

Fator cultural

Desigualdade de género

Fator económico

Fator religioso e/ou animista

Figura 1 – Mapa de um Problema complexo: Desigualdade de Género

No mapa conceptual – acima apresentado – o grupo procurou resumir toda a dinâmica de funcionamento das várias dimensões na vida dos guineenses num campo muito específico — desigualdade de género, enquanto um problema social complexo. Ora, embora partindo da «Construção social e histórica» e terminando com o «Fator político», na vida o dia-a-dia, os relacionamentos, as influências, as interdependências são mais fluídas e dinâmicas, consequentemente, com fronteiras tênues. Tudo isto faz com que, no quotidiano, não seja muito percetível a sepa68


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ração das dimensões, pois elas acontecem, tendencialmente, em simultâneo. No entanto, o GT tentou indicar a forma como funciona o problema no seu todo: a) Construção social e histórica, embora fora da dinâmica da relação direta, é o elemento que antecede o problema e, consequentemente, os seus fatores (dimensões). Entretanto, é dele a responsabilidade de alimentação do problema e, indiretamente, dos seus fatores. Por outro lado, o contrário também é verdade: o problema é complexo e seus fatores vão, também, reforçando os aspetos históricos e sociais de que se alimenta; b) Os fatores entre si vão funcionando de forma circular – embora representado na imagem em retângulo – e vão-se influenciando mutuamente, influenciando, assim, o problema complexo.

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Advertências Aproximando-se do fim desta etapa inacabada, é de todo justo para quem investiu o seu tempo e paciência para ler estas linhas que a tenha feito sem perder de vista o seguinte: ›N a base deste processo de ação-reflexão-ação estiveram, basicamente, cerca de 11 voluntários: 2 coordenadores de grupo + 9 especialistas que compõem o GT. Significa isso que, toda a leitura, toda a desconstrução e definição conceptual, toda a produção de conhecimento, toda a interpretação obedeceu as regras científicas, mas sobretudo de bom-senso dos 11 elementos acima citados. Por outras palavras, adverte-se que a leitura, interpretações e ilações que se vá retirar deste quadro deve ser restritamente contextualizado aos condicionantes da sua produção; ›N o início do parágrafo mencionava o carácter inacabado do texto por duas razões fundamentais: 1ª: a fase de reflexão e debate com GT à volta do diagnóstico sobre as principais causas deste problema complexo ainda não terminou, pois a ambição do GT é a de alargar a discussão a 3 sectores do interior do país – situados, respetivamente nas 3 províncias da Guiné-Bissau. Significa que só após o mini-périplo de recolha de impressões e perceções pelo interior é que o GT irá fechar esta primeira fase do projeto; 2ª: após a fase do diagnóstico sobre as causas, o GT irá iniciar a reflexão em torno de propostas de soluções e medidas concretas que possam ajudar, pelo menos, na minimização do referido problema complexo. Nesse sentido, como se vê, o processo ainda vai longe do fim.

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Referências bibliográficas Dicionário de Sociologia, (1997) “As noções, os mecanismos e os autores”, Plátano Embaló, A., (2016), Política Nacional da Família, Ministério da Mulher, Família e Coesão Social Gomes, P., (2015), O estado da arte dos estudos de gênero na Guiné-Bissau: uma abordagem preliminar, Outros Tempos, Universidade Estadual do Maranhão Brasil (2016a), “Guiné-Bissau para além da libertação: As mulheres e a produção intelectual do INEP” In: Soronda : revista de estudos guineenses. Número especial 30 anos do INEP. (2016b) “Para além dos feminismos: uma experiência comparada entre Guiné-Bissau e Brasil” Rev. Estud. Fem. [online]. vol.24, n.3, pp.909-927. Handem, A., Barbosa, F., (2008), Relatório Síntese de condições de vida da mulher guineense nas esferas da vida social, económica, cultural e política, SNV Barros, M., (2012), Política Nacional para a Promoção de Igualdade e Equidade de Género, Instituto Nacional da Mulher e da Criança Instituto Nacional de Estatísticas da Guiné-Bissau, (2009), Censos, Ministério da Economia e Finanças. Carvalho Ferreira et all, (1995), Sociologia, McGraw

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Reconciliação Nacional: Um processo complexo para a Guiné-Bissau Braima Sambú Dabo (coord. e autor do texto) Halen Armando Napoco (coord. e autor do texto) Outubro 2017

Participantes do grupo de trabalho Isaiete Djabula, Voz di Paz (Voz de Paz) em português; Justino Sá, Assembleia Nacional Popular (ANP); Osiris Ferreira, Supremo Tribunal de Justiça ( STJ ); Nelvina Barreto, MIGUELAN Mindjeres di Guiné Lanta (Mulheres da Guiné levantaram-se); Quemo Dabo, Fórum para a Paz (Bafatá) Erickson Mendonça, Secretário (IPAV)

Coordenadores Hallen Armando Napoco, Advogado & Consultor jurídico, Equitas Braima Sambú Dabo, PROCIVICUS GNB

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Introdução Fazendo eco ao apelo do projeto Governação Integrada Guiné-Bissau, o grupo de trabalho para a Reconciliação Nacional, imbuído de boa fé e da responsabilidade que cabe a cada um na promoção do desenvolvimento nacional, aceitou colaborar na procura, análise, reflexão e ação sobre a solução de problemas sociais complexos na Guiné-Bissau. O projeto Governação Integrada Guiné Bissau, por sua vez, é uma rede colaborativa de carácter informal, composta por atores individuais e organizacionais, de natureza pública e privada. Este grupo informal estuda, reflete e age sobre problemas sociais complexos, acerca da realidade guineense, promovendo modelos de governação integrada. É também pretendida a participação e influência das Organizações da Sociedade Civil (OSC) nas políticas públicas através de uma abordagem de governação integrada (assente numa cultura organizacional das instituições públicas e privadas que privilegie a colaboração, a partilha de recursos e a parceria estratégica, estruturada em torno de um modelo de liderança colaborativa, da participação efetiva das partes interessadas e de práticas de monitorização e de avaliação adequadas). Pretende ainda desenvolver e aprofundar a compreensão dos problemas complexos selecionados, divulgar e disseminar a reflexão e investigação produzida a fim de contribuir para o conhecimento das abordagens e temáticas tratadas (através de publicações, conferências, etc.), assente numa perspetiva prática e aplicada à realidade da Guiné-Bissau. Em estreita colaboração com o projeto, o grupo de trabalho da Reconciliação Nacional definiu, no contexto dos trabalhos, algumas matrizes e abordagens metodológicas que permitiram gerir os trabalhos, canalizar sinergias entre os diferentes participantes, com vista a uma programação mais concreta e pertinente, à capitalização das experiências e conhecimentos relevantes sobre o contexto a nível nacional, por forma a melhor circunscrever a temática de intervenção num processo de concertação necessariamente participativo entre os diferentes representantes. Deste processo surgiu um programa de trabalho validado por todos os participantes e os respetivos calendários. Sem antes superar o conflito inerente, procurou-se o princípio da observação neutral de análise estruturada – mesmo perante os factos sensíveis, — de modo a evitar comportar riscos de politização com resultados nefastos. 74


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Em todas as sessões, o grupo esteve sempre acompanhado de um secretário, tendo este como missão de proceder ao registo das reflexões dos membros do grupo. Para isso, houve registo em atas das respetivas sessões, permitindo alimentar e estruturar melhor as reflexões nas sessões seguintes.

I. O contexto geográfico A Guiné-Bissau está situada na costa ocidental de África. Ao norte é delimitada pela República do Senegal, ao sul e leste pela República da Guiné e a oeste pelo Oceano Atlântico. Tem uma parte continental e uma parte insular composta pelo arquipélago dos Bijagós, constituído por vários ilhéus adjacentes. A superfície total deste país tropical situada a baixa altitude é de 36.125 km2.

SENEGAL

Gabú

Bissorã Cacheu Quinhámel

Bafatá

Bissau Bolama

Buba Catió

GUINÉ Oceano Atlântico 15 km

Figura 1 - Mapa da Guiné-Bissau Fonte: FADOC Guiné-Bissau (2015)

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Segundo o Recenseamento Geral da População e Habitação (2009), a Guiné-Bissau tem uma taxa de crescimento anual de 2,4% e a população guineense é estimada em 1.530.673 habitantes. A população feminina representa 51.7% do total geral da população da Guiné-Bissau. O território da República da Guiné-Bissau está divido em oito regiões administrativas, uma das quais com estatuto de sector autónomo. As regiões subdividem-se em 37 sectores e estes em secções. É um território caracterizado por savanas e planícies pantanosas e composto hidrograficamente por numerosos rios sujeitos à influencia das marés, com enorme potencialidade nas áreas da agropecuária e turismo. A distribuição espacial da população é marcadamente desigual. Assim, 24,4% da população guineense vive no sector autónomo de Bissau – a capital do país – ou seja numa área de cerca de 78 km2. Por outro lado, na maior região do país, Bafatá, a superfície é de 5.981 km2 e alberga apenas 14,8 % da população total do país. A população vive dispersa nas 3.976 localidades ou tabancas que compõem a base da divisão administrativa do país. As cidades, por sua vez, estão divididas em bairros – sem prejuízo da divisão administrativa normal. Das oito regiões administrativas do interior do país, duas têm taxas médias de crescimento populacional inferior a 1% — a região de Bolama, que tem 0,4% de crescimento populacional e a região de Biombo, com 0,5%. Com um crescimento médio igual ou superior a 1% e inferior a 2% figuram as regiões de Cacheu (1%), região de Oio (1,2%), região de Quinara (1,6%) e a região de Bafatá com 1,9%. A região que demonstra maior crescimento é a de Gabú, cuja taxa media de crescimento anual é de 2,2%, seguida da região de Tombali com 2,1%. As principais religiões que se praticam no país são: a religião islâmica (46% da população), religiões africanas / animismo (39%) e a religião cristã (15%). A população guineense é pluricultural e multilinguística. É constituída por mais de 30 grupos étnicos distribuídos por todo o país. Cada grupo étnico possui o seu “chão”, a sua parcela de território que historicamente lhe pertence. As várias etnias estão unidas por uma língua nacional, o Crioulo, que representa um dos símbolos da Guinendade. 76


Olhares sobre os problemas sociais complexos

A Guiné-Bissau é caracterizada economicamente por uma economia de subsistência. Mas apesar do forte potencial do setor, o mesmo sofre de insuficiências estruturais que não ajudam ao aproveitamento desse potencial, nomeadamente a falta de infraestruturas e a pobreza nos meios rurais, que constituem fortes condicionantes à diversificação da produção. Isto leva a que o setor continue a concentrar-se, quase que em exclusivo, na produção da castanha de cajú, que representa 93% das receitas de exportação do país e 12% da produção mundial (UEMOA- BCEAO, 2005).

II. O contexto político e socioeconómico Aspeto político O país viveu, nos cinco últimos anos, com extrema profundidade o rigor do subdesenvolvimento e da instabilidade política, que motiva a inconstância dos pelouros governamentais e, consequentemente, a paralisação ou suspensão de algumas ações programadas nas instituições públicas e privadas. As rinhas institucionais, golpes e contra golpes, corrupção ativa, tráficos diferenciados e a permanência da instabilidade crónica, bem como a fragilidade do Estado, consequência governativa de mais de cinco primeiros ministros em dois anos de mandato – uma política desconexa de uma visão e perspetiva de desenvolvimento fora da realidade sociopolítica e económica do país. Mesmo com uma mesa redonda anunciada de grandes êxitos – que ficou na expetativa dos dirigentes políticos, – o país real continua dependente dos recursos financeiros e económicos dos credores, principalmente das instituições de Bretton Woods (o Banco Mundial e o FMI), os quais ditam as condições e regras de governação local. Esta instabilidade afeta os propósitos de influenciar políticas e de implementar ações que permitam uma maior dinâmica na sensibilização e mobilização do governo e da administração pública. Afeta ainda na definição de políticas sectoriais em benefício das populações – particularmente dos menos favorecidos – e na capacitação dos decisores administrativos e políticos sobre valores como o 77


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diálogo, a reconciliação e seu reconhecimento institucional e legislativo – como instrumento efetivo de combate à instabilidade, às crises, à violência, à pobreza e à valorização do potencial local e dos seus atores, – em prol de uma sociedade de paz reconciliada com a sua própria história. O país efetuou pelo menos oito iniciativas de paz circunscritas num período temporal e com um objetivo específico. Estas iniciativas demonstram que os guineenses estão preocupados com a paz e a reconciliação. No entanto são iniciativas aparentemente isoladas, cada qual fazendo uso da sua própria estratégia e recursos. Está atualmente em vista uma nova iniciativa de reconciliação nacional com o atual processo de preparação da Conferência Nacional de Diálogo e Reconciliação Nacional, liderado pela Comissão Preparatória, com o patrocínio da Presidência da República da Guiné-Bissau. Esta, se implementada, constituirá a primeira iniciativa coadjuvada pelo governo da Guiné-Bissau, com dimensão nacional. Sabemos hoje que a reconciliação é um processo coletivo, por vezes muito difícil e não de simples resultado. Tomando em consideração o ambiente de crispação institucional atualmente vigente na Guiné-Bissau, evidenciam-se muitas incógnitas relativamente ao novo processo de reconciliação nacional, por se vislumbrarem perspetivas muito diferentes sobre o que é realmente o problema, os fatores a ele subjacentes e como resolvê-los. Paira muita incerteza sobre a capacidade de podermos progredir para resolver o desafio da tão desejada reconciliação nacional, e muitas dúvidas sobre os verdadeiros objetivos, a existência de vontade dos líderes políticos, os moldes e perfil dos que devem ser envolvidos. Supõem-se que o processo de reconciliação, como qualquer questão complexa, requer a conciliação de interesses e de objetivos divergentes, aparentemente insolúveis no presente momento político.

Análise socioeconómica O modelo económico do país caracteriza-se pela monocultura do cajú, com recurso a força braçal na base da mão de obra familiar. Decorre também a produção de arroz, amendoim, mandioca, batata doce e gergelim, – vocacionados para o consumo e venda de um escasso excedente, para necessidades essenciais. 78


Olhares sobre os problemas sociais complexos

Estes produtos, bem desenvolvidos e estruturados, poderiam constituir uma mais valia na diversificação da atividade agrícola e produtiva do país. As políticas públicas não beneficiam muitas localidades nem contemplam as suas realidades. Não existem apoios nem recursos destinados ao desenvolvimento local, muito menos um promotor da articulação entre os atores que intervêm no terreno: cada uma conta com os seus recursos e projetos próprios, agindo desarticuladamente e havendo sobreposição. A escolaridade na Guiné-Bissau constitui um empreendimento custoso e ineficaz, denunciando seletividade, desigualdade e fraquezas que têm como consequências uma elevada taxa de insucesso escolar. A taxa de analfabetismo é muito elevada entre as mulheres, constituindo 52% da população guineense, 85,5% entre elas são analfabetas, – o que justifica a fraca proporção da presença feminina nos diferentes postos chave da produção nacional (Seck, Momar, 2015). A alfabetização na Guiné-Bissau apresenta um quadro bastante preocupante em toda sua magnitude. Este aspeto é relevante na medida em que o analfabetismo constitui um elemento estrutural relativamente ao disfuncionamento do sistema formal da educação e incidências na estabilidade política e social. Afeta ainda em termos de obstrução de iniciativas de desenvolvimento e da boa governação, dado serem aspetos consideráveis que podem comprometer qualquer estratégia de desenvolvimento. Presentemente a situação apresenta-se estável. As instituições financeiras que tinham suspenso os seus programas de financiamento voltaram a confiar no país. O FMI, no seu último relatório, indica um crescimento de 4,8% num país bloqueado há mais de 24 meses. Mesmo assim, os investidores desencorajados relutam em investir e não são visíveis resultados concretos. Não há investimento nos setores da saúde e da educação. Estes não constituem uma prioridade institucional nem governativa. A Guiné continua a figurar na lista dos três países mais pobres e um dos mais endividados do mundo. O quinto governo da nona legislatura tomou posse a 13 de Dezembro de 2016. Governo este constituído por 37 membros para os próximos dois anos. Esta pirâmide superlotada, com apenas quatro mulheres não reuniu o consenso entre os atores políticos, prevalecendo assim o impasse, o radicalismo e a intolerância verificados nos dois últimos anos. 79


Governação Integrada na Guiné-Bissau

Os salários continuam a ser pagos com dívida contraída no exterior, que aumenta a cada dia sem as relativas melhorias das condições de vida das populações. Ao contrário, a atual conjuntura macroeconômica, – onde a dívida é muito alta, – depende inteiramente dos juros do mercado mundial e todo o benefício obtido é posto ao serviço da dívida, não do bem público, – o que impõe a persistência da pobreza. A situação financeira é preocupante. As finanças públicas não estão em condições de atender às necessidades e obrigações do Estado. As receitas são pouco significativas e a execução orçamental durante o ano de 2016 só funcionou com retroativos – dado não haver Orçamento Geral do Estado (OGD) aprovado pelo Parlamento desde agosto de 2015. As instituições sociais e sindicatos continuam as suas lutas persistentes pela melhoria de condições salariais e de trabalho. As greves sucedem-se, com consequências nefastas para os setores da saúde, – fundamentalmente para as camadas menos favorecidas, – com elevadas taxas de mortalidade materno-infantil, o agravamento das epidemias, da desnutrição aguda, da insegurança alimentar e, na educação, com baixa taxa de escolaridade e um elevado índice de analfabetismo. No âmbito da cooperação internacional e bilateral, as intervenções baseadas na transferência de recursos e mensagens éticas implícitas, interagem de forma positiva ou negativa com certos parâmetros do ambiente político, social e económico do país. Atualmente, face à persistência do impasse político e governativo, muitas organizações de apoio ao desenvolvimento suspenderam os seus programas. O bloco dos P5 – constituídos pela União Europeia (UE), pela Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) , União Africana (UA), a Organização das Nações Unidas (ONU) e pela Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CE DEAO), – mostram-se disponíveis em continuar a apoiar o país, no entanto estão condicionados com o final da crise. Entretanto, muitas ONG e organizações da sociedade civil guineense, – que são as maiores promotoras de iniciativas de reconciliação e paz, – encontram-se profundamente afetadas pela crise, vendo diminuídas as suas capacidades de intervenção efetiva em prol do desenvolvimento local, pra além da implementação no terreno da política de cooperação verificada nos anos 80, – agora com cariz de disputa de espaços e fundos da União Europeia entre ONG locais e ONG estrangeiras sediadas no país, em vez da necessária e saudável colaboração institucional entre atores do desenvolvimento. 80


Olhares sobre os problemas sociais complexos

III Métodos de trabalho do grupo Como frisado na introdução do presente documento, o grupo definiu no contexto dos trabalhos algumas matrizes e abordagens metodológicas, as quais permitiram avançar no percurso dos objetivos traçados, tendo em consideração a definição prévia de ambiente de trabalho: › Apresentação dos participantes: Apresentação dos membros da equipa efetuou-se mediante apresentação sucinta da pessoa, do seu trabalho e da sua organização, e quebra-gelo; › Definição de normas de conduta durante as reuniões de trabalho; Gestão de tempo; Pontualidade; Não monopolizar a palavra; Passar a palavra a todos os presentes, Falar de forma audível; Valorizar todas as contribuições; Aceitar a contradição; Abertura e participação livre; Escutar atentamente. Em termos metodológicos o grupo adotou a metodologia “open space technology” (OST), ou metodologia de espaço livre ou espaço aberto. Trata-se de uma metodologia de pesquisa e de planificação participativa e inclusiva concebida para ser extremamente flexível. Tendo como ponto de partida a imagem da árvore e da palavra, convida os participantes a falarem livremente sobre um ou mais assuntos, de forma a que os conteúdos sejam inteiramente determinados pelos participantes. Esta metodologia do espaço aberto é assente em cinco princípios simples, os quais para além de favorecerem a conceção de um processo inclusivo e transparente, oferecem uma abordagem de senso comum face as incertezas na avaliação dos riscos. Princípio 1: “As pessoas que estão são falíveis, expostas a errar.” Significa que a pessoa que participa tem suficiente interesse por estar presente e tem matéria suficiente para participar, ajudar ou favorecer a discussão.

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Princípio 2: “As conclusões tiradas, são efetivamente as únicas a que se podia chegar”. O participante aceita que os produtos saídos do encontro são os melhores que poderiam ter sido alcançados, da livre contribuição dos outros. Princípio 3: “As cessões não podem ter início, se não no momento mais conveniente”. Isto significa que para ilustrar (garantir) a liberdade dos participantes, será necessário flexibilidade no ritmo e no tempo. Princípio 4: “Quando termina, terminou”. Tudo o que sair da sessão deverá restar nesse quadro. Nem frustração, nem ressentimentos, nem rancor, nem raiva. Princípio 5: “Geralmente não escrito, ilustra e garante a liberdade de cada participante em “fazer uso dos seus dois pés” para partir ou ir-se juntar a um outro grupo de discussão. (Yablonski, 2001) O grupo teve uma fraca participação de alguns membros do grupo nas sessões planeadas por razões de agenda pessoal. Houve, inclusivé, pessoas que declinaram em participar no grupo, sem oferecer informações claras de suas indisponibilidades. Este facto conduziu a vários adiamentos de encontros previstos e perda de tempo – valioso para todos – em diligências no sentido de contactar e obter deles as informações necessárias. Assim, o grupo colocou-se perante as seguintes questões: › Como podemos constituir de forma diferente a constituição do grupo? › Há necessidade de elevar o número de participantes? › Qual o perfil das pessoas que necessitamos contactar (homens, mulheres, de todas as partes do conflito, de uma só parte do conflito, etc..)? › Quais as diferentes formas possíveis de trabalhar? › Qual o período e horário mais conveniente a todos? Uma vez feita esta reflexão no grupo – opção dos trabalhos, – definiram-se os calendários, a programação das atividades, a caracterização geral das fontes de tensão na Guiné-Bissau, bem como as normas de conduta, a observar durante os debates.

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Caracterização geral das fontes de tensão e conflitos 1. Sistemas (sociais, políticos, económicos) e Instituições › Legislação inadaptada e distribuição desigual; › Implicação de igrejas; › Preconceitos. 2. Atitudes, ações, comportamentos › Banalização da violência; › Justiça partidária e cumplicidade da administração; › Discriminação perante as oportunidades; › Desafios de autoridade. 3. Valores e Interesses › Intolerância (religiosa, de cultos, etc.); › Acesso aos recursos (naturais, públicos); › Valores sociais acrescentados (cargos, estatutos). 4. Experiências › Agressões repetidas e reações de autodefesa; › Traumatismos e sequelas; › Abuso de poder e frustrações repetidas; › Experiências de guerra, independência, guerra civil, etc. 5. Símbolos/ Acontecimentos › Disputas nos aniversários de eventos; › Intercâmbios eleitorais.

IV - Organização logística Todas as condições necessárias para o bom desenrolar das sessões de trabalho foram tomadas em consideração, assim como as sugestões formuladas. O espaço físico para os encontros foi disponibilizado pela EQUITAS - Advocacia & Consultoria Jurídico. Outros espaços ficaram igualmente disponíveis para os encontros de trabalho do grupo, como a sede do IPAV- Bissau e da PROCIVICUS GNB. 83


Governação Integrada na Guiné-Bissau

Todos os participantes recebem via correio eletrónico as atas de cada reunião, redigidas pelo secretário do grupo. Estas são assumidas por todos, após observação e concordância de cada um. Foram também postos à disposição dos participantes o programa e calendários de trabalho validados e que podem ser revistos em cada sessão, conforme a avaliação da situação em concertação entre os presentes. No final de cada sessão é feita uma síntese dos trabalhos, permitindo reconciliar as opiniões, estruturar as sessões, e alimentar a reflexão do grupo.

V - A análise do contexto do conflito Pretende-se, nesta primeira fase, identificar os problemas iniciais e chegar a uma compreensão aprofundada da questão. Partindo da proposta de análise do contexto e da qualidade da evidência, foram identificadas as principais fontes de tensão que criam ou acentuam a clivagem e das ligações entre as comunidades políticas, que obstaculizam o processo de reconciliação nacional. Foram ainda identificadas as principais formas de expressão do conflito e suas consequências. Numa segunda fase, elencadas as contribuições teóricas com vista à ampliação do diálogo sobre as várias dimensões da reconciliação nacional – desde o entendimento, às responsabilidades e motivações, – tentando identificar os principais conectores que possam aproximar as partes desavindas, com o objetivo de trazer algumas contribuições para uma melhor compreensão do fenómeno em causa. O processo de informação e discussão da metodologia e matrizes de abordagens permitiram gerir os trabalhos do grupo, inscritos num processo de aprendizagem e de capitalização das diferentes iniciativas e resultados obtidos no âmbito da reconciliação, considerando igualmente os constrangimentos e as dificuldades encontradas na prática por cada um dos atores. A equipa tentou partilhar com diferentes individualidades, incluir e redefinir as variantes conforme proposições e compreender melhor a complexidade e os desafios que se colocam nesta abordagem, bem como que assuntos precisam ser trabalhados. 84


Olhares sobre os problemas sociais complexos

De salientar que, tendo em conta a diversidade de experiências dos membros que constituem o grupo, a partilha de experiências e de testemunhos em primeira pessoa permitiram acompanhar as reflexões sobre os conceitos e a identificação dos problemas complexos inerentes à reconciliação nacional na Guiné-Bissau. Não menos importante, o grupo de trabalho lançou ao atual processo de preparação da Conferência Nacional de Diálogo e Reconciliação Nacional, a proposta de estabelecer uma análise comparativa ou estudo comparativo. Essa segunda metodologia permitiu ao grupo identificar/ estabelecer, de forma bastante clara, os pontos de estrangulamento ao processo de reconciliação nacional e a complexidade dos mesmos, bem como o preenchimento dos conceitos que foram sendo trabalhados pelo grupo. Uma terceira metodologia utilizada pelo grupo foi a de absorver outras experiências e críticas às reflexões do grupo, através de opiniões e experiências de convidados oriundos de diferentes quadrantes socioprofissionais, o que permitiu aprimorar todo o trabalho feito, produto final de todo processo de reflexão. Em suma, a coesão resultante desta abordagem metodológica serviu como ponto de partida para uma análise abrangente e estruturada dos conflitos latentes na sociedade guineense. Daí adveio a incidência sobre a identificação dos entraves e barreiras ao processo de reconciliação nacional, conciliação da liberdade e da responsabilidade de participar nas discussões. A capitalização dos ensinamentos retirados das experiências inscritas num processo participativo de concertação e de programação com os diferentes atores permitiu caracterizar, partindo da base estrutural e conjuntural dos problemas, os entraves e as barreiras que se colocam ao processo de reconciliação e a dimensão da sua complexidade ao largo de todo o território. Assim, houve um melhor conhecimento dos atores implicados, do contexto dos conflitos a nível nacional e subregional e uma visão consensual mais alargada do processo.

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VI - Problemas complexos na Reconciliação Nacional Relativamente aos objetivos propostos ao grupo na produção de um mapa de problemas complexos em matéria de Reconciliação Nacional, o primeiro desafio que o grupo enfrentou foi na definição de objetivos e propósitos da Reconciliação Nacional, para o caso da Guiné-Bissau. Este caminho foi baseado na experiência e metodologias dos participantes. Para responder a esta questão, o grupo realizou uma discussão aberta, designada “chuva de ideias”, na base da qual foram definidas três hipóteses de visão/ propósito: Uma sociedade/ Nação em paz com a sua própria história?; A construção de um sistema mais justo ou mais equilibrado?; ou de perspetivar o desenvolvimento nacional?. (figura 1)

Figura 1 - Definição de visão/ propósito do grupo

Uma vez enquadrados em relação aos propósitos no quadro da realidade guineense, surgem logo, e como consequência da primeira, um conjunto de questões cuja respostas constituem elementos fundamentais para a definição do conceito de reconciliação na Guiné-Bissau. Questões tais como: a) Saber se existe, de facto, uma necessidade de reconciliação nacional na Guiné-Bissau. Se a resposta for positiva, então (o quê? quem? por quê? para quê? como e quando?) seria essa reconciliação, na medida em que o seu entendimento 86


Olhares sobre os problemas sociais complexos

varia de acordo com a realidade e os objetivos preconizados por cada povo/ sociedade e Estado. b) Definir o perfil do agente, e o perfil da vítima; c) Definir os moldes em que o processo deve ser desenvolvido, – os termos de referência e quem os deve fazer?, – o tratamento dos atores e o momento político adequado para o efeito; d) Como será ou pode ser essa reconciliação? E quem poderá promovê-la? (A presidência da República? Porquê? A sociedade Civil, porquê? As entidades religiosas, porquê?, Ou se deveria ser partilhada, dependendo da fase do processo, e porquê? Com que parceiros?) (figura 2).

Figura 2 - Definição do conceito de reconciliação nacional e visão

Ao responder a estas questões, – que no fundo são conceitos, – o grupo estaria em condições de poder avaliar as experiências partilhadas por cada um dos seus membros, identificar as lições positivas e negativas dos mesmos e estabelecer, a 87


Governação Integrada na Guiné-Bissau

partir daí, uma análise crítica ao já referido processo de reconciliação nacional, atualmente em curso/ preparação. A experiência na Guiné-Bissau dita, face aos crescentes conflitos verificados e suas complexidades, que os meios utilizados para a prevenção, resolução e ações de reconciliação pareceram limitadas ou impotentes. Numerosas iniciativas foram levadas a cabo por organizações da sociedade civil – com apoio de varias instituições públicas e privadas, – denotando preocupações e sensibilidades quanto ao problema. Não obstante a disponibilidade demonstrada pelos diferentes atores e parceiros na resolução do problema, as sinergias e recursos dispensados na prospeção, aprendizagens e lições recolhidas, algo nos indica que o desafio é muito complexo e há elementos que faltam realizar face aos sucessivos falhanços e persistência dos conflitos. Estes factos remetem-nos novamente para a questão inicial: saber se existe, de facto, uma necessidade de reconciliação nacional na Guiné-Bissau e a perceção dos guineenses sobre o mesmo (Quadro 1).

Iniciativas

Ações desenvolvidas

I - “Gorée 1 e Gorée 2”

Dois encontros da classe política e da sociedade civil organizados pelo Instituto de Gorée, para refletir sobre as possíveis saídas de crise após o golpe de Estado de 2003.

II - Estados gerais

Uma tentativa de promoção de debate nacional em torno de temas geradores de conflitos. Iniciativa lançada por um grupo de cidadãos que procuram soluções baseadas num compromisso político e social.

Uma tentativa de debate que congrega cidadãos independentes, que gozam III - “Cidadãos de boa vontade” de um certo prestígio social que lhes permite intervir como mediadores em conflitos de ordens diversas e fazer intervenções diversas a favor da paz. IV - Combersa pa paz (Conversa para a paz)

Uma iniciativa lançada pela ONG AL ANSAR, em parceria com ALTERNAG com a finalidade de desenvolver atividades de sensibilização para a paz e segurança na zona norte do país. Esta iniciativa surge no seguimento da influência do conflito em curso na Casamata, no sul do Senegal.

V - Movimento da Sociedade Uma estrutura de intervenção de várias componentes da sociedade civil civil para paz, desenvolvimento que funciona como grupo de pressão e intermediação nas situações e democracia potencialmente geradoras de conflitos. VI - Programa Voz di Paz (voz de paz)

Em parceria com a Interpeace – ONG Internacional de apoio as iniciativas de paz, com a Sede em Genebra (Suíça).

VII - Comissão de Reconciliação das Forças Armadas

Uma iniciativa destinada a consolidar a reunificação e paz nas forças de defesa após a divisão provocada pela guerra civil de 1998-99.

VIII - Comissão Justiça e Paz

Uma estrutura da Igreja Católica que se dedica à promoção dos valores de justiça e paz.

Quadro 1 - Diferentes tentativas de reconciliação nacional levadas a cabo pelos atores sociais na Guiné-Bissau. Fonte: Seminário Verdade e reconciliação 1 e 2

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Olhares sobre os problemas sociais complexos

Apesar de todas as tentativas realizadas, existem ainda demasiadas incógnitas relacionadas com a credibilidade, a apropriação, a liderança do processo e desequilíbrios sociais, e o ambiente em que se desenvolveram e se desenvolvem os problemas e em que é feita política. Corre-se igualmente o risco de, sendo um processo político, poder ser altamente politizado, envolvendo organizações, pessoas com valores, interesses e medos concorrentes, aparentemente irreconciliáveis. Feito isto, é dizer, definidos os objetivos e propósitos do nosso trabalho, os marcos importantes que nos permitiram realizar uma análise crítica e aprofundada. No âmbito do nosso quadro conceptual, pudemos então atacar as referências fundamentais com base da sistematização das nossas experiências e produzir um mapa conceptual, validado por todos os membros do grupo.

VII – Os resultados alcançados A equipa contou com tempo determinado para demonstrar resultados e definir a raiz do problema. Nesse sentido, procurámos identificar, de forma detalhada, as causas iniciais, para além das evidências, os efeitos sintomáticos. Por tal baseámos o nosso trabalho na análise sobre temas diversificados e em diferentes contextos, facto que nos permitiu pensar de forma crítica e incorporar novas questões e preocupações. Tratando-se de um problema complexo, por envolver diferentes atores nos diferentes níveis e períodos, a equipa recorreu ao mapeamento dos problemas, tentando compreender como cada fator influência outro e como a mudança de comportamentos de um ator provoca a mudança noutros. Como frisado anteriormente, o processo suscitou uma série de questões, algumas dos quais, terão que ser respondidas com outros recursos de investigação. Como resultado, foi elaborado um mapa conceptual (diagrama simples), que poderá servir para formular um plano de ação e provocar mudanças estruturais, nas atitudes daqueles que informam, fazem, implementam e avaliam políticas (figura 3). 89


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Figura 3 - Mapa conceptual de problema complexo

Descrições dos cinco eixos principais do mapa 1. Dos interesses divergentes e medos • Político-partidário: ›A spiração ao poder, ou a serviço de outras metas; ›R eação ao sentimento popular e étnico (populismo); ›P romoções políticas (demagogia); ›C lientelismo (fidelidade ao patrão / ao chefe); › Abordagem e métodos políticos dependente do contexto, das oportunidades temporárias (oportunismo); ›C ompetição por recursos e por responsabilidades administrativas. 2. Vantagens • Económicas: › Procura de fontes de financiamento (lucros politicamente condicionados); › Interesse pessoal, reparação material, esperança em recompensa, e medo de perder tais benefícios como as recompensas; › Dominação patriarcal e patrimonial; › Confluência de receitas regulares e confiáveis — a partir da detenção do poder. 90


Olhares sobre os problemas sociais complexos

• Religiosa / étnica: Pretensão exclusiva e desconstrução sistemática da teologia de outras religiões, etnocentrismo e tribalismo. • Status social: Gozar do poder em virtude do sentimento de prestígio social que fornece (honra social). • Interesses internacionais: › I nteresses geopolíticos internacionais; ›R iscos incalculáveis de manipulação e erros de julgamento. 3. Apropriação do processo • Necessidade de reconciliação: Objetivos diferentes, resistência comportamental, receios e expetativas diversas. • Credibilidade: A confiança é uma questão central. A sua falta congrega a tentação de negar todo o processo não controlado pelo próprio e a recusa de toda forma de reconciliação. Deste modo, não há identificação com o processo. • Forma de comunicação: Necessidade de clareza na informação, que produza sensação de respeito, que facilite uma abordagem colaborativa e a aquisição de credibilidade. 4. Liderança • Os partidos políticos: ›P rocessos imprevisíveis; ›A usência de coerência política; ›L uta pela concorrência eleitoral; › As estruturas do Estado (a Assembleia Nacional Popular [ANP], a Administração executiva, o Sistema Judiciário, e a Presidência): › I ngerências de poderes, apesar da separação e competências diferentes; › Inoperância dos mecanismos de verificação e de equilíbrio na definição de políticas; ›F ortes interesses envolvidos dificultam o engajamento;

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• A Sociedade civil: Aspiração a influenciar o poder, ou beneficiar-se dele. Ausência de consistência nos posicionamentos, deficit de democracia interna; • As entidades religiosas: Racionalização intelectual, que condiciona a tomada de posição em relação às questões relativas ao significado da ação política. O mosaico religioso e a questão da legitimidade institucional para a liderança. 5. Formação do processo • Questões focais ›O ambiente político e institucional; ›O s critérios e legitimidade de conduzir o processo; ›Q ual seria o mandato fundamental?; ›Q uais serão os reais objetivos?; ›Q uem deve ser envolvido?; › Quem disponibiliza os fundos/ meios e processo para sua concretização?; ›Q uais são as reais capacidades internas para a reconciliação nacional?. 6. Desequilíbrios do sistema estrutural • Pobreza: Os indicadores continuam extremamente preocupantes; • Justiça: Relatórios sociais desiguais, prevalência de fenómenos de exclusão ou marginalização de grupos sociais; • Saúde: Prevalência de doenças endémicas e alta taxa de mortalidade, pondo a população em causa. • Educação: Elevado índice de analfabetismo funcional e político; • As estruturas coercivas do Estado (os estamentos), detentoras de violência considerada legítima (exército, segurança) ou pessoas voltadas para a administração de meios materiais importantes, constituídas sem ter em consideração o funcionalismo profissional.

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Olhares sobre os problemas sociais complexos

- Partidos políticos; - Departamentos (PR, ANP); - Organizações da Sociedade Civil; - Entidades religiosas; - Liderança partilhada. - Quem lidera? - Arquitetura da estrutura; - Constituição da estrutura; - Monitorização do processo; - Independência da estrutura.

- Necessidade de reconciliação; - Credibilidade da estrutura; - Falta de identificação; - Forma de comunicação.

Liderança

Apreciação do processo

Formação do processo

- Pobreza; - Justiça; - Saúde; - Educação; - Estamentos; - Entre outros.

Entraves & barreiras

Interesses divergentes e medos

Desiquilíbrio do sistema

- Político-partidária; - Vantagem económica, religiosa e étnica; - Status social; - Interesses internacionais.

Figura 3 – Mapa conceptual do problema da reconciliação nacional

VIII - Conclusões O processo de definição de resultados para esta primeira fase de reflexão do grupo de reconciliação nacional, num contexto de forte suspeição e divisão da sociedade guineense, não tem sido muito fácil, mesmo para um grupo reduzido de pessoas conscientes da necessidade de reconciliação, munidos de práticas e vontade de partilhar experiências nos seus diversos setores de intervenção. O grupo defrontou-se com muitas questões que precisam de um trabalho de diagnóstico mais detalhado. Não obstante termos expandido as ações na medida do possível a diferentes atores identificados com importantes recursos de informação, nem sempre houve uma resposta positiva. Ainda assim, o exercício permitiu reforçar as nossas capacidades individuais, estabelecer melhor nossos os objetivos, identificar as nossas próprias fraquezas e aprender uns com os outros. É ainda necessário reforçar a comunicação no 93


Governação Integrada na Guiné-Bissau

seio dos potenciais recursos, impondo-se uma nova abordagem para explicar e compreender os conflitos e prover resultados válidos através de informações, partilha de diferentes práticas, falhas das dinâmicas locais e formas de atuação. A reconciliação nacional deve ser um processo de longo prazo, requerendo uma abordagem colaborativa e participativa dos diferentes atores sociais, se queremos melhorar os resultados. Relativamente ao projeto, sendo uma iniciativa inovadora, tem o mérito de ser uma ação de integração de valores, assente na construção de parcerias com atores que sustentam e suportam projetos inovadores, encorajam a transparência e tentam reduzir os conflitos. Como resultado de um trabalho notável efetuado pelo grupo, foi possível a conceção de um mapa conceptual que ilustra de forma clara a complexidade do processo de reconciliação que, para a sua concretização, apenas poderá concretizar-se através: › Do envolvimento de todas as partes potencialmente implicadas, com o propósito do processo de reconciliação devidamente apropriado; › Por meio de uma liderança de consenso amplo e isenta de quaisquer interesses suscetíveis de estrangular o rumo e ritmo do processo; › Debeladas as causas do desequilíbrio do sistema social e institucional do Estado da Guiné-Bissau. A reconciliação nacional deverá ser um processo contínuo e transversal, para provocar uma mudança estrutural das instituições do Estado Guineense, do comportamento individual e coletivo do povo guineense. No fundo, esse processo/ exercício, poderá até suscitar a necessidade de uma revisão, quer expressa, quer tácita, do pacto social sobre a qual se fundou o Estado da Guiné-Bissau e a definição ou renovação de objetivos, enquanto nação/ Estado. Por fim, o produto final mereceu atenção de instituições e grupos que – direta ou indiretamente – têm vindo a debater a questão da reconciliação nacional na República da Guiné-Bissau. Prova disso são os convites formulados 94


Olhares sobre os problemas sociais complexos

ao grupo pelo Gabinete das Nações Unidas para a Consolidação da Paz na Guiné-Bissau – UNOGBIS, à Comissão Organizadora da Conferência Nacional para Paz, Diálogo e Reconciliação Nacional, com a preocupação de apresentação dos resultados do trabalho.

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Referências bibliográficas Ferreira, O. (2017), Seminário Verdade e Reconciliação: Experiência da Guiné-Bissau e da Casamata (Senegal). Instituto de Desenvolvimento Global, (ed) ACEP, (2003), Guia de engajamento e de influência política, Edição ACEP Instituto Nacional de Estatísticas, (2009), Recenseamento Geral da População e Habitação. Oscar et Pierrette (2001), Ressoutage dans les domaine du conflit - Atelier d`Oxfam America sur la gestion des conflits et promotion de la paix. Quells solutions locales? Oxfam America, (2001), Introdução da metodologia OST “open space technology”, Oxfam Seck, M. (2015), Estudo Diagnóstico da AENF na Guiné-Bissau, UNESCO Max W., (ed), (ano), A Ciência e a política, Martin Claret Ltda. São Paulo. Marques, R. (coord), (2014), Problemas complexos e governação integrada, Edição Forúm para a Governação Integrada, Lisboa Yablonski, J., (2001), Driot Humains - Atelier d`Oxfam America sur la gestion des conflits et promotion de la paix. Quells solutions locales?, Oxfam America

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Notas finais 1 Australian Public Service Commission, 2007 2 Vandenbroeck, 2014 3 Chapman, 2004; Conklin, 2006 4 Bjørgo & Røiseland, 2013; Palmberg, 2009 5 Grint, 2008 6 Rittel & Webber, 1973 7 Este facto leva a que alguns autores prefiram usar a expressão “mess” (desordem, confusão) em vez de “wicked problem” pois não chega a haver consenso sobre qual o problema (Denning, 2009). 8 Roberts, 2014 9 Allen et al, 2013; Batie & Schweikhardt, 2010; Grint, 2008; Rego, 2015; Vandenbroeck, 2014 10 Rittel & Webber, 1973: 161 11 Veiga & Bronzo, 2014 12 Veiga & Bronzo, 2014 13 Cilliers, 2004 14 Klijn, 2008 15 Hartzog, 2004 16 Friedman, 2006

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17 Allen et al, 2013 18 Haynes, 2015b 19 idem: 8 20 Rittel & Webber, 1973 21 No documento “Tackling wicked problems – a public policy perspective” (Australian Public Service Commission, 2007) refere-se o exemplo da redução da violência nas escolas colocando um detetor de metais à entrada, ou o exemplo do combate à obesidade infantil retirando das cantinas escolares alimentos pouco saudáveis. Embora ambas as medidas sejam úteis, aplicadas isoladamente não resultaram. 22 Conklin, 2006 23 idem: 2 24 Kunz & Rittel, 1970 25 Conklin, 2006 26 Conklin 2006 27 idem: 36 28 Warmington et al, 2004 29 Roberts, 2010

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