A história da Academia Ubuntu

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Eu sou porque tu és

C OM O A POIO

AVA L I AÇ ÃO

ACADEMIA UBUNTU

A filosofia Ubuntu é uma filosofia de vida, uma maneira de ver o mundo e uma ética social. É um complexo código moral de valores interligados que guia as ações dos indivíduos. Pode ser descrito como um sistema cujos valores incluem a compaixão, o respeito, a dignidade humana, uma orientação humanística e o papel do coletivo." John Volmink

A história da Academia Ubuntu Filipe Pinto e Ana Pires (org.)

“A Academia Ubuntu é um projeto de capacitação de jovens com elevado potencial de liderança, provenientes de contextos de exclusão social e/ou com intuito de trabalhar neles, com o objetivo de que possam vir a desenvolver projetos de empreendedorismo social ao serviço da comunidade. Conceptualizado a partir de referências da cultura africana – Ubuntu – Eu sou porque Tu és - e do exemplo de vida de grandes figuras como Nelson Mandela, Martin Luther King, Desmond Tutu, Gandhi, Aung San Suu Kyi, Aristides de Sousa Mendes e outros, este projeto visa despertar uma nova identidade, uma transformação paradigmática, que se reflete num conjunto de ações, atitudes e pensamentos que cada participante apresenta em relação à comunidade, aos indivíduos com quem interage e a si próprio. Ubuntu é um conceito filosófico e um princípio organizacional de origem africana, das populações Bantu (na África do Sul, nas línguas Zulu e Xhosa), que contém na sua essência os princípios da partilha, solidariedade, confiança, respeito e cuidado mútuos. Ubuntu contém em si um estado (ser) e uma ação (tornar-se) que se complementam num modo de estar interdependente, contrário à lógica do individualismo. Para o Ubuntu, ser humano significa afirmar a humanidade própria através do reconhecimento da humanidade dos outros e estabelecer relações humanas solidárias. Não se baseia nem na lógica do indivíduo por si só, nem apenas na superioridade do grupo em relação ao indivíduo, mas antes na relação inacabada e em constante transformação entre ambos.”


Eu sou porque tu és ) ACADEMIA UBUNTU


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Edição: IPAV – Instituto Padre António Vieira | Coordenação: Ana Pires e Filipe Pinto Design gráfico: Coworklisboa | Fernando Mendes | Fotografia: IPAV Impressão: AlfaPrint – Artes Gráficas, Lda. | Tiragem: 500 exemplares ISBN: 978-972-99721-2-6 | Depósito Legal: xxxxxx/xx © Academia Ubuntu Agradecimentos: Aos autores e a todos que contribuíram para este livro


#Índice

Prefácio 04 Nota de abertura

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Partir

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Andar I – Ubuntu: filosofia de vida e ética social

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Andar II – Liderança inspiradora

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Andar III – Kit pedagógico

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Andar IV – Contextos únicos e especiais

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Andar V – Prémios Nobel da Paz

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Andar VI – Parceria

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Andar VII – Avaliação

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Andar VIII – Dar de volta

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Andar IX – Ubuntu Global Network

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Andar X – Histórias de vida

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) #PREFÁCIO

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Quando há quatro anos se colocou à Fundação Calouste Gulbenkian - FCG o desafio de apoiar o Instituto Padre António Vieira - IPAV no desenvolvimento de um novo projeto de educação não formal, que mobilizasse descendentes de imigrantes em Portugal, colocando os seus talentos de jovens líderes ao serviço da comunidade, não se imaginava tudo o que a experiência da Academia Ubuntu viria a significar. Com efeito, a sua dinâmica, enquanto projeto inovador e experimental, veio a revelar um enorme potencial que, passadas duas edições, importa rever, refletir e divulgar. A Fundação Calouste Gulbenkian esteve desde o primeiro momento na génese deste projeto, tendo uma participação empenhada no seu desenho e acompanhando o desenvolvimento de cada etapa. Através da nossa equipa do Programa Gulbenkian de Desenvolvimento Humano pudemos interagir com a equipa formadora e cocriar o modelo com que hoje trabalham. Conhecemos, por isso, o que a Academia tem significado para tantos jovens líderes de contextos vulneráveis que dela beneficiaram. Acresce que as várias avaliações externas produzidas (Centro de Estudos de Povos e Culturas de expressão Portuguesa - CEPCEP/Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Letras da Universidade do Porto e Porto Business School) vieram a evidenciar a força do projeto e o seu caráter inovador e transformador. Vemos, assim, com particular interesse, esta obra que regista os traços essenciais desta experiência. Como as pessoas estão sempre no centro das opções que tomamos, importa começar por reconhecer a enorme qualidade humana que encontrámos nos participantes na Academia Ubuntu. A sua coragem, o seu caráter, a sua resiliência e a sua determinação constituem uma razão mais do que suficiente para justificar a aposta que a Fundação tem feito neste projeto. O investimento em cada um deles vale a pena, para um verdadeiro desenvolvimento comunitário sustentável e para um crescimento pessoal integral de cada um(a). De tudo o que o programa da Academia Ubuntu nos trouxe, salienta-se desde logo, na nossa perspetiva, a força da escolha da filosofia Ubuntu – "Eu sou porque tu és", isto é, "eu só posso ser pessoa através das outras pessoas" – como base de inspiração humanista para uma liderança servidora. Esta consciência da interdependência e de que a justiça só se constrói através do "cuidado pelo outro" e "com o outro", foi essencial para mobilizar os jovens participantes para uma visão que os desafiasse a ir além da reação de desintegração social ou de impotência perante o "destino". A encarnação desta filosofia em líderes como Nelson Mandela, Martin Luther King ou Gandhi, cujas bio-


grafias os jovens participantes estudaram profundamente, foi também essencial. Mas a Academia Ubuntu foi mais longe. Com um conjunto de parceiros, que entretanto se juntaram ao projeto e que, enquanto patrocinador principal, queremos saudar – a Universidade Católica, a everis - E, o IADE - Instituto de Arte, Design e Empresa, a Fundação Serralves, a LIPOR - Serviços Intermunicipalizados de Gestão de Resíduos do Grande Porto, entre outras –, foi possível desenvolver um programa de excelente qualidade onde pontuaram, entre muitos outros convidados, três Prémios Nobel da Paz (Desmond Tutu, Ramos Hora e Ximenes Belo) e o Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados (António Guterres). Com conferências, visitas, workshops e fins de semana residenciais, cumpriu-se um roteiro de desenvolvimento de competências para uma liderança servidora. A este portfolio somou-se um grande investimento, num ciclo de formação para a conceção e desenvolvimento de projeto, aplicado a uma ideia concreta, no domínio do empreendedorismo social, de onde nasceram vários projetos. Queremos igualmente sublinhar a experiência extraordinária que significou acolher na sede da Fundação, o ciclo de conferências "Vidas Ubuntu", em que os participantes puderam apresentar a sua história de vida, relida com a "lente" Ubuntu, capaz de ajudar a encontrar sentido e propósito na sua experiência vivida, por mais dura que tenha sido. Estes jovens participantes na Academia, selecionados pelo IPAV a partir de candidaturas apresentadas por instituições de base local (Associações, Juntas de Freguesia, Escolas, Programa Escolhas, ), mostraram todas as suas potencialidades no contexto destas conferências, assim como noutros momentos da vida deste projeto. Na reta final desta segunda edição, que já tinha alargado o seu âmbito da área metropolitana de Lisboa também ao Porto, nasceu uma nova realidade que, de novo, a Fundação acolheu: a Ubuntu Global Network. Sob o impulso da Academia Ubuntu foi possível reunir treze projetos de oito países distintos, inspirados todos eles pela filosofia Ubuntu, e definir uma Carta de Princípios comum e uma estratégia de ação partilhada. Esta rede, fundada em Lisboa para o mundo, é mais um dos eixos que a Fundação Gulbenkian se congratula de ter ajudado a desenvolver. As muitas sementes que a Academia Ubuntu lançou nestes últimos anos já começaram a dar frutos e continuarão a fazê-lo nos próximos anos. A Fundação Calouste Gulbenkian orgulha-se de ter ajudado nessa sementeira. Isabel Mota (Administradora da Fundação Calouste Gulbenkian)

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# N O TA D E A B E R T U R A

O desafio de fixar em livro a experiência da Academia Ubuntu - AU é um risco assumido. Se é verdade que a riqueza imensa de um mundo de emoções, relações e aprendizagens é intransponível para frases e imagens, tal é a sua dimensão, também é verdade que se não se registar o essencial – e o possível – com o tempo, perder-se-á a memória do que foi feito e como foi feito. Na melhor das hipóteses, ficará escrito na vida de cada um(a) dos (as) participantes o que quis dizer a Academia, sem que outros possam conhecer a razão de ser, o trajeto e a estrutura deste projeto. A história da Academia Ubuntu, projeto desenvolvido pelo Instituto P. António Vieira, com o patrocínio da Fundação Calouste Gulbenkian – FCG e o apoio da Universidade Católica Portuguesa (CEPCEP e CR - Centro Regional do Porto), da everis, da Aprender & Agir, do IADE, da Fundação Serralves, da LIPOR e da União Distrital das Instituições Particulares de Solidariedade Social - UDIPSS Porto, tem a sua raiz longínqua num encontro fortuito, na FCG (sempre ela, como forum de geração de ideias e oportunidades), com John Volmink, um inspirador professor sul-africano, a quem ouvi, pela primeira vez, falar de cultura Ubuntu. Numa conferência sobre educação, ouvi-o discorrer sobre essa visão humanista, baseada na compaixão e na interdependência: "eu só sou Pessoa, através das outras Pessoas", sintetizava. A aplicação por Nelson Mandela e Desmond Tutu desta filosofia à realidade dura da África do Sul, pré e pós-apartheid, mostrava que não se tratava de um enunciado de boas intenções, mais ou menos líricas. Ao invés, o Ubuntu assumia-se uma poderosíssima ferramenta de transformação social e de construção de um mundo mais justo, através de um processo profundo de verdade e reconciliação. Tornou-se desde logo claro para nós que a filosofia Ubuntu era uma oferta muito especial de África para o mundo, com imenso potencial transformador e que Portugal não a podia desperdiçar. Ao tempo, a nossa equipa estava dedicada ao desenvolvimento de uma política de acolhimento e integração de imigrantes, no Alto-comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas - ACIME, que queríamos que fosse espelho desta cultura humanista e fraterna. Entre as muitas frentes, havia uma particularmente desafiante: a dos descendentes de imigrantes, em particular os que viviam (em) situações mais vulneráveis. O peso da não-pertença, nem ao país dos seus antecessores, nem ao país que os viu crescer, a persistência endémica de um racismo subtil ou a contínua desigualdade de oportunidades geravam inevitavelmente desintegração social. Perante tal evidên-

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cia, tornou-se determinante apostar na formação de jovens líderes provenientes dessas comunidades, que pudessem interpretar uma reação construtiva a esse universo de injustiças, ao jeito de Mandela. Se alguns passos foram dados ainda nesse contexto, o grande salto viria mais tarde, com a criação da Academia Ubuntu, em 2011. Já fora do contexto ACIME, agora no quadro da sociedade civil, com o IPAV, surgiu este projeto com uma missão clara: capacitar jovens líderes provenientes de contextos vulneráveis para um modelo de liderança servidora, através do modelo Ubuntu. Assim começava esta aventura. Manda a verdade que se diga – e se agradeça – que sem a Fundação Calouste Gulbenkian, através do seu Programa Gulbenkian de Desenvolvimento Humano, nunca este projeto teria visto a luz do dia. Foi o seu apoio corajoso e decidido que permitiu arrancar com um modelo experimental e correr o risco. A este apoio, juntaram-se outros que vieram a tornar este projeto algo de verdadeiramente único. Universidades, empresas, instituições do Terceiro Setor, colocaram-se ao lado da Academia, proporcionando aos seus participantes um programa único. A Católica, espaço e instituição anfitriã das nossas sessões deu o seu melhor, desde os seus quadros envolvidos, ao ambiente académico ou ao prestígio emprestado à iniciativa. A everis e a LIPOR, com os seus consultores dedicadíssimos, foram mestres inigualáveis na aprendizagem sobre conceção e gestão de projetos. A Associação Aprender & Agir, com o seu programa de desenvolvimento pessoal e profissional, proporcionou caminhos para os jovens ganharem mais consciência sobre si próprios e orientarem as suas ações. O IADE (Lisboa) e a Prof. Teresa Sarmento (Porto), com os seus alunos de design, ajudaram a desenvolver excelentes imagens corporativas de cada projeto Ubuntu. A Fundação Serralves, a Orquestra de Câmara Portuguesa, a Escola Nuno Delgado, ou o Corpo de intervenção da GNR, entre outras, contribuíram com oportunidades únicas de formação que deixaram, tantas vezes, a sensação de se estar a viver um momento irrepetível. A todas as instituições e pessoas que mostraram, com o seu apoio, que é possível criar alianças solidárias para a formação de novos líderes, o nosso "Muito obrigado!". Durante as duas edições já concretizadas, que revisitamos neste livro, várias vezes os seus participantes deram conta da dificuldade em conseguir explicar aos amigos o que viviam na Academia, na sua plenitude, com um discurso inteligível. Alguns diziam que após os momentos mais intensos que haviam vivido nesta experiência, necessitavam de um tempo subsequente de silêncio e "digestão". Com graça, várias vezes lhes perguntavam se a Academia era um género de "seita" ou uma religião ao estilo "new age". Todos sorríamos perante estas perplexidades externas sobre o que acontecia quinzenalmente na Academia. Realmente, é difícil explicar todo o "por dentro" da participação neste projeto. Talvez possamos sublinhar o poder transformador da aprendizagem feita com as biografias dos grandes líderes que estudámos, mas também com cada um(a) daqueles(as) que constituem a Academia. As suas vidas – de uns e de outros – ensinam-nos tanto, mas tanto, que é impossível ficar a mesma pessoa


depois de passar pela experiência Ubuntu. A resiliência, a esperança, a sabedoria, a capacidade de recomeçar, a fortaleza, o foco no essencial são algumas das estações desta viagem pelas vidas Ubuntu. E essa energia não deixa ninguém indiferente. Mas há uma outra dimensão essencial: as relações que se tecem entre os participantes e entre estes, a equipa técnica e as pessoas/instituições que constroem a Academia. É dito no relatório de avaliação externa que esse é o "segredo" da AU. Não é possível compreender este projeto sem dar atenção cimeira a esta dimensão relacional. Um dos outros aspetos surpreendentes dos ciclos de formação Ubuntu foi a inesgotável generosidade dos que connosco se cruzaram. Os formadores, os conferencistas, os consultores, os designers, os avaliadores todos eles, sem exceção, deram o melhor que tinham, num impulso espontâneo e gratuito. Do mais graduado – a Academia cruzou-se com três Prémios Nobel, um Presidente da República, um Alto-Comissário da ONU, entre muitas outras personalidades – até aos mais discretos, tivemos contributos extraordinários. Cada um, a seu modo, ajudou-nos a interpretar melhor o conceito Ubuntu, no quotidiano e nos dilemas que enfrentamos. Cabe aqui também um agradecimento muito especial à equipa do secretariado executivo e aos formadores Ubuntu, que foram incansáveis em todo este processo. O profissionalismo a par da interpretação apaixonada do "ser Ubuntu", fez do funcionamento da Academia um fenómeno de qualidade, competência e seriedade. O registo que se segue resulta do contributo de vários autores. Até nisso levamos a sério a dimensão coletiva da cultura Ubuntu. É uma obra escrita a várias mãos, com diferentes tonalidades e sem preocupação de coerência de estilo ou forma. Acima de tudo quisemos deixar-vos a memória de alguns dos que ajudaram a construir esta experiência tão especial, desejando que possa ser útil para ajudar a acreditar que vale sempre a pena ousar, inovar e apostar num mundo melhor. Rui Marques (Diretor Academia Ubuntu)

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PARTIR

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) Um livro Ubuntu

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O livro nasce de várias motivações. Se por um lado se faz pelo simples gosto da partilha, por outro brota dos bons apelos que acolhemos de tantos que nos dizem que o que se apreende na AU não pode deixar de ser comunicado; se por um lado tem a intenção de registar e relatar a história, por outro procura que essa mesma história transpareça vida e VIVA; se por um lado quer sublinhar "ventos avassaladores", momentos únicos e extraordinários, por outro quer revelar as pequenas grandes transformações que foram e vão acontecendo nos participantes - e em cada um de nós - através de um percurso exigente de dois anos cheios de pormenores e "suaves brisas"; se por um lado se quer oferecer com humildade a quem o ler como fonte de inspiração, por outro quer apenas espelhar a profunda gratidão pela incomensurável generosidade de tantas pessoas e instituições que fizeram e fazem existir a Academia Ubuntu. Como diz Rui Marques, na nota de abertura, o livro é feito a várias mãos, bem ao modo de ser Ubuntu. Composto por variadíssimos contributos, forma-se a partir de múltiplas perspetivas, olhares, práticas, reflexões, realidades e utopias. Dividido em dez capítulos, estrutura-se como um edifício que se ergue movido pela consistência do inabalável, onde em cada andar se apela à descoberta ativa de novos compartimentos, salas de estar, entradas, passagens secretas, quadros, retratos, sofás ou mesas onde podemos estar e ser juntos. Por trás de cada porta encontramos perplexidades, pessoas, projetos e ferramentas de um caminho educativo que cremos consistente para as lideranças jovens que desejam colocar-se ao serviço das pequenas comunidades e da sociedade em geral. Concetualizado sem grandes pretensões, quer permitir ao leitor a possibilidade de o ler “de fio a pavio” mas, também, aos poucos, poder deambular entre divisões e ajudar na construção da essência do que é tornar-se Ubuntu. Optámos pela ideia de o estruturar em andares de um prédio por estes motivos e porque a própria palavra andar(es) nos remete naturalmente para a ação de caminhar. E isso é também a AU: um ponto de partidas e chegadas, chegadas e partidas, partidas e partidas! Ana Pires (Membro AU – 2ª edição) Filipe Pinto (Formador AU – 2ª edição)


O que é a Academia Ubuntu? A Academia Ubuntu é um projeto de capacitação de jovens com elevado potencial de liderança, provenientes de contextos de exclusão social e/ou com intuito de trabalhar neles, com o objetivo de que possam vir a desenvolver projetos de empreendedorismo social ao serviço da comunidade. Conceptualizado a partir de referências da cultura africana – Ubuntu – Eu sou porque Tu és - e do exemplo de vida de grandes figuras como Nelson Mandela, Martin Luther King, Desmond Tutu, Gandhi, Aung San Suu Kyi, Aristides de Sousa Mendes e outros, este projeto visa despertar uma nova identidade, uma transformação paradigmática, que se reflete num conjunto de ações, atitudes e pensamentos que cada participante apresenta em relação à comunidade, aos indivíduos com quem interage e a si próprio. Ubuntu é um conceito filosófico e um princípio organizacional de origem africana, das populações Bantu (na África do Sul, nas línguas Zulu e Xhosa), que contém na sua essência os princípios da partilha, solidariedade, confiança, respeito e cuidado mútuos. Ubuntu contém em si um estado (ser) e uma ação (tornar-se) que se complementam num modo de estar interdependente, contrário à lógica do individualismo. Para o Ubuntu, ser humano significa afirmar a humanidade própria através do reconhecimento da humanidade dos outros e estabelecer relações humanas solidárias. Não se baseia nem na lógica do indivíduo por si só, nem apenas na superioridade do grupo em relação ao indivíduo, mas antes na relação inacabada e em constante transformação entre ambos. A Academia Ubuntu, enquanto projeto de capacitação de jovens líderes, através da filosofia e prática organizacional Ubuntu, é em si mesma uma comunidade de destino. Potencia-se na identificação com modelos de “Liderança Servidora”, que os jovens procuram adotar na construção de projetos de empreendedorismo social. A primeira edição realizou-se na região da Grande Lisboa, entre 2011 e 2012, destinando-se a jovens descendentes de imigrantes. Tendo beneficiado da experiência e aprendizagem alcançadas, a segunda edição (2013/14) diferenciou-se por se dirigir a um público-alvo mais abrangente e multicultural, com o mesmo referencial preferencial de proveniência de contextos vulneráveis. Distingue-se também por ter alargado a sua intervenção ao Grande Porto, para além de manter a região de Lisboa. Os valores da Academia A Verdade e a Honestidade são alicerces da Academia Ubuntu. Ser verdadeiro para consigo próprio e para com os outros significa assumir a palavra proferida e as consequências das suas ações. Torna a pessoa de confiança e promove relações justas e transparentes. Desafia os seus participantes no exercício do autoconhecimento, na disponibilidade e no desejo de conhecer as comunidades e a sociedade que constitui. A Academia Ubuntu tem como pilares o Respeito e a Dignidade, que se manifestam

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através do acolhimento e valorização da diversidade de culturas, origens socioeconómicas, histórias de vida, crenças e convicções. Promove o reconhecimento das capacidades e do potencial de desenvolvimento do ser humano e o compromisso na construção de um modelo harmonioso de convivência assente na hospitalidade, tolerância, aceitação e procura de consensos. A Partilha e a Interdependência são estruturantes para a Academia Ubuntu. A frase "eu sou porque tu és" traduz a convicção do ser humano como fundamentalmente relacional, que se desenvolve através das pessoas com quem interage e das comunidades em que se insere. Pressupõe alegrar-se com as alegrias e conquistas do outro, saber compartilhar a "sorte" e o sofrimento e reconhecer que só é possível ser totalmente feliz se os outros tiverem a possibilidade de o serem também. Exige aos participantes treino na escuta ativa e diálogo, esforço de empatia, capacidade de crescimento mútuo e cooperação. A Academia Ubuntu baseia-se no Serviço e Cuidado pelo Bem Comum, sendo sensível e atenta aos problemas da realidade social, procurando combater as injustiças e as desigualdades existentes. Implica desenvolver comportamentos e atitudes baseados na compaixão, atenção ao outro, reciprocidade, dádiva e reconciliação. Compromete-se a enfrentar a vulnerabilidade, contribuindo para a melhoria das vidas e circunstâncias das pessoas e comunidades, através da promoção de projetos de empreendedorismo e inovação social sustentáveis. Estes valores traduzem-se em princípios metodológicos, orientadores de todo o planeamento e ação da Academia: • • • • • • • • • • • • •

Promoção do desenvolvimento integrado de competências; Enfoque no participante, na sua história de vida, percurso, competências, limites e potencialidades; Valorização do testemunho e do exemplo como veículo educativo; Aprendizagem a partir de experiências e desafios práticos; Investimento na diversidade de métodos pedagógicos, criativos e surpreendentes; Incentivo à aprendizagem mútua, participação democrática e voluntária; Promoção do sentido de compromisso e corresponsabilidade; Aposta clara na excelência e qualidade do processo formativo; Valorização de lógicas cooperativas e sentido de comunidade; Centralidade no conceito de liderança servidora; Desenvolvimento de sinergias e trabalho em parceria; Relevo na avaliação e na melhoria constante; Sustentabilidade, inovação e empreendedorismo social;


Os participantes Os participantes da Academia Ubuntu são jovens com idades compreendidas entre os 18 e os 35 anos, com elevado potencial de liderança e com a firme determinação de cumprir todo o programa. Privilegiam-se os participantes provenientes de circunstâncias ou contextos vulneráveis. São selecionados a partir de propostas apresentadas por escolas, universidades, associações de imigrantes, associações culturais, associações sem fins lucrativos, programas governamentais, etc., e a partir de entrevistas individuais. Os critérios de seleção são predominantemente as motivações, a disponibilidade e a maturidade dos candidatos. O método Ubuntu A Academia Ubuntu começou por ser uma iniciativa de formação não formal, experimental e inovadora, tendo tido como principal fonte de inspiração a filosofia Ubuntu e também as vidas dos líderes escolhidos para seus patronos. O método Ubuntu baseia-se em abordagens criativas, inovadoras e não formais, assentes numa permanente atenção às necessidades, opiniões e motivação dos participantes. Esta proximidade ao público-alvo, trabalhada com recurso a diferentes instrumentos, a que se junta a atenção à promoção da relação entre participantes e entre estes e a equipa, uma grande liberdade de adaptação da formação às necessidades e gosto dos formandos, e a promoção de um forte sentido de responsabilidade, são alguns dos traços identificadores desta metodologia formativa. Pensado para ser desenvolvido num espaço temporal de dois anos, onde o primeiro ano tem características mais inspiracionais e o segundo ano, um maior enfoque na preparação para a devolução à comunidade das aprendizagens adquiridas. Essencialmente, o Método Ubuntu é um processo de aprendizagem e de transformação social, através de uma pedagogia de relação. Baseia-se num roteiro assente em: Gráfico 1 – Método Ubuntu

Modelos

Desafios

Modelos: Aprofundamento das histórias de liderança de Mandela, Luther King, Gandhi, Aung San Suu Ferramentas Kyi, Desmond Tutu e Aristides de Sousa Mendes. Ferramentas: Aquisição de conhecimentos em comunicação, resolução de Experiências conflitos, autoconhecimento, gestão de projetos, gestão financeira, , etc. Experiências: Participação ativa em ateliers temáticos,

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) desenvolvidos em contextos atípicos, que promovem a aprendizagem através da participação. Foram exemplos as sessões de Judo e Liderança, Dança Contemporânea e Liderança, Orquestra e Liderança, etc. Desafios: Construção em grupo de projetos de inovação social, organização dos Dias Mandela, Conferências de Vidas Ubuntu, etc.

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|Primeiro Ano| No primeiro ano, a Academia proporciona ateliers temáticos com a duração de um dia (normalmente ao sábado), uma periodicidade quinzenal e dois fins de semana residenciais. Os Ateliers propostos seguem abordagens diversificadas que proporcionam aos participantes experiências formativas enriquecedoras pela sua variedade e profundidade. As propostas de ateliers dividem-se em: • Conferências temáticas dinamizadas por convidados, incluindo período de perguntas e respostas; • Workshops temáticos que partem normalmente do lançamento de uma questão, ilustrada através de um suporte de filme, livro ou apresentação, seguido de respetivo debate. Algumas das sessões incluem trabalho de grupo e/ou apresentações de trabalhos desenvolvidos pelos participantes. (Ex.: Seminário Mandela ou Seminário de Gestão de Conflitos e Negociação). • Ateliers realizados fora da sala, em contexto atípico, que pretendem atingir os objetivos pedagógicos de uma forma criativa, com vista a uma aprendizagem prática (ex. “Desenho e Liderança” em Serralves, "Judo e Liderança" com o Nuno Delgado, etc.); • Apresentações individuais por parte dos participantes, sobre a sua história de vida, a partir de momentos chave experienciados e consequente avaliação; • Fins de semana residenciais, realizados em locais inspiradores, com um forte investimento na construção de laços e relação entre os participantes (team building) e onde se trabalham temas centrais do Método Ubuntu (ex. fim de semana Invictus no Convento da Arrábida ou no Inatel da Foz do Arelho); • Ações especiais ao longo do ano que resultam em iniciativas pontuais, com o intuito de reforçar a prossecução dos objetivos da Academia, quer na perspetiva de treino para a organização de eventos, quer para a divulgação da Academia e dos seus participantes (ex. dia Nelson Mandela); Conferência final dedicada ao tema “Vidas Ubuntu”, que representa um dos grandes momentos da Academia e que consiste na apresentação pública da história de vida de cada participante olhada à luz do impacto e das aprendizagens vividas na Academia.


Todas as sessões e atividades da Academia Ubuntu partem da experiência vivida para a aplicação prática, no contexto da liderança servidora e de acordo com a filosofia, princípios e valores que estão na sua essência. |Segundo Ano| Nesta etapa o Método Ubuntu utiliza o modelo de “ação-formação”. Os participantes iniciam em grupo, o desenvolvimento e implementação de projetos de empreendedorismo social, procurando, dessa forma, devolver à comunidade a aprendizagem vivida durante o percurso que estão a fazer. Durante o primeiro semestre do segundo ano mantêm-se os seminários quinzenais que passam a contemplar temáticas de apoio ao desenho e desenvolvimento dos projetos, embora intercalados com sessões e atividades de natureza mais inspiracional. No segundo semestre, os projetos desenhados começam a ser testados no terreno, contando para tal com o apoio da Incubadora Ubuntu da responsabilidade da equipa do secretariado executivo do IPAV, dos consultores que acompanham os projetos, dos padrinhos (figura que existiu sobretudo na primeira edição da Academia) e de parceiros que se tenham juntado ao projeto em causa. O segundo ano da Academia Ubuntu, procura ajudar os participantes a passarem do sonho à realidade, sensibilizando-os para quesões muito práticas como a sustentabilidade do projeto, a sustentabilidade da equipa que o vai desenvolver, etc. A Incubadora Social Ubuntu assume aqui um papel fundamental de apoio e mentoring: Gráfico 2 – Incubadora Social Ubuntu

Essenciais para o funcionamento bem-sucedido são as parcerias estabelecidas entre Consultores do projeto (área de conceção e gestão de projeProjecto Empreendeto), Madrinhas/Padrinhos (especialistas da área dorismo de interesse dos participantes ou grupos de parSocial Padrinhos Consultores ticipantes com a função principal de incentivar e Técnicos apoiar efetiva e afectivamente) e designers (criação da imagem corporativa do projeto). Todo o processo de concetualização, implementação, execução e acompanhamento é efetuado com o apoio destes parceiros, que se caracterizam por uma disponibilidade e presença próximas, mas também por possuírem competências técnicas altamente qualificadas. Todo este processo se desenvolve com garantias de lealdade à filosofia, princípios e valores da Academia, acentuando-se o clima de máxima transparência e companheirismo entre projetos e entre estes e a comunidade em geral. Designers

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ANDAR I ) UBUNTU: FILOSOFIA DE VIDA E ÉTICA SOCIAL

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) Ubuntu: Filosofia de Vida e Ética Social Começamos este caminho como deve ser - pelo início - e, como qualquer construção, levantamos este edifício pela base. Como se este primeiro andar fosse antes o rés-do-chão ou, até mesmo, os alicerces que se encontram invisíveis debaixo do solo. É ainda pouco o que se encontra escrito sobre o Ubuntu em língua portuguesa e, podermos transferir para o papel a reflexão do Prof. John Volmink sobre o conceito, é uma honra e uma satisfação. O Prof. Volmink é um amigo importante da Academia Ubuntu - foi a partir de uma semente lançada por si em 2007 que o projeto nasceu - acolheu os participantes da primeira edição da AU na viagem que fizeram à África do Sul e a sua presença foi fundamental para que a Ubuntu Global Network, descrita com profundidade no andar IX, se constituísse em Abril de 2104. A partir da sua intervenção na Ubuntu Global Conference, procuramos contribuir para o aprofundamento do conceito que nos inspira.

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Ubuntu, uma nova ética global Conferência do Prof. John Volmink na abertura da Ubuntu Global Network. (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 12 de Abril de 2014)

É importante ter um sonho. No entanto, isso não é o suficiente, visto que há pessoas que morrem sem nunca terem concretizado o seu sonho. A única maneira de realizarmos os nossos sonhos é através do estabelecimento de parcerias, ou do trabalho em conjunto com pessoas que têm o mesmo sonho. O que eu vejo aqui nesta audiência é o sonho concretizado. É espetacular ver que não só em Portugal, não só na África do Sul, mas em todo o mundo, incluindo a Rússia, há uma chama acesa em nome da filosofia Ubuntu. Caso queira fazer a diferença neste mundo, a única coisa que deve fazer é assumir um compromisso com o não-elitismo. Não se pode ser um elitista e fazer a diferença. Com isto, não digo que seja errado ser elitista, mas se realmente queremos fazer a diferença, é importante termos uma visão que englobe todos: os que se encontram em posições mais vantajosas, mas também os que tradicionalmente são excluídos - os mais pobres entre os pobres. Sem isso, não fazemos qualquer diferença neste mundo. O mundo enfrenta inúmeras crises globais, como por exemplo as alterações climáticas, o VIH e a SIDA e, até com maior mediatismo, a crise financeira. Estas crises não respeitam as fronteiras regionais e por isso compelem à necessidade de cooperações a nível global. Coloca-se assim a questão de saber como lidar com estes desafios, crises e cooperações a nível global e, neste sentido, interrogo-me sobre se esta forma de cooperação global não colocará a humanidade no rumo de uma globalização caracterizada por uma nova ética global, ao invés de apenas prolongar a construção de uma desenfreada arrogância neoliberal e cultural. Gostaríamos de acreditar que o conceito africano Ubuntu dará uma genuína contribuição para uma nova ética global. Sendo de uma natureza profundamente relacional, é indiscutível que o Ubuntu, tal como os nossos desafios, atravessa todo o tipo de fronteiras, sejam elas políticas, económicas, culturais ou da sociedade civil. Consequentemente, tem o potencial de influenciar a esfera das políticas públicas de cidadania, desenvolvimento e governação. Podemos olhar para o Ubuntu em termos clássicos, como uma filosofia moral ou, numa linguagem pós-moderna, como uma metanarrativa. A tradução da expressão Zulu Ubuntu pode ser "Eu sou porque tu és e tu és porque nós somos". Este conceito incomoda muitas mentes cartesianas (de René Descartes - Penso, logo existo) porque este conceito de cariz individualista tem de alterar o seu sentido solitário para solidário, de independe para interdependente. Do indivíduo distinto da comunidade, para o indivíduo no seio da comunidade. Levanta-se novamente a questão de saber se a filosofia Ubuntu pode influenciar o mundo ou se consegue apenas exercer influência num contexto mais local. É claro que a filosofia Ubuntu tem profundas raízes africanas mas que, por outro lado,

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se estende para além das fronteiras africanas. Pense por um instante sobre o antigo ideal capturado no termo Sânscrito Ahimsa, que significa "para não ferir" e tem subjacente uma filosofia de não-violência que consiste em não magoar, não prejudicar, não fazer mal. Ou mesmo o termo utilizado por Mahatma Gandhi (que viveu na África do Sul durante 20 anos) Satyagraha que significa "verdade, firmeza e constância", , traduzido como uma insistência na força da verdade, ou na força da alma que providencia as bases para a resistência não violenta. E foi esta filosofia de resistência não violenta que influenciou a atuação de homens como Martin Luther King e Nelson Mandela. Hoje há também um conceito de justiça social na ética cristã, que afirma que os humanos são criados à imagem de Deus e, como tal, fazem parte da natureza humana os valores da bondade, da solidariedade e da verdade. Todas estas filosofias levam-nos a pensar que existe um oceano de correntes filosóficas que influenciam a metanarrativa, no qual a Ubuntu é apenas uma corrente. Longe de querer defender a ideia de que o Ubuntu é um tipo de panaceia sociopolítica, há muitas vozes que nos afastam do particularismo cultural e nos orientam para uma vasta humanidade e universalidade. Uma dessas vozes é a do Arcebispo Desmond Tutu, que nos diz que o Ubuntu é a essência do ser humano. Não é ser Sul-Africano, não é ser Português. A essência do Ubuntu é ser Humano! Podemos compreender ou não, mas todos temos uma identidade partilhada com outros. Segundo o conceito Ubuntu, cada pessoa tem a garantia de que pertence a algo maior do que ela própria, que é diminuída quando os outros são humilhados, torturados e oprimidos. Nelson Mandela diz no seu livro Um Longo Caminho para a Liberdade: «Eu sempre soube que no fundo de cada coração humano há misericórdia e generosidade. Ninguém nasce odiando outra pessoas apenas pela sua cor de pele, origens ou religião. As pessoas aprendem a odiar. Se podem aprender a odiar, então também podemos ensiná-los a amar. O amor vem mais naturalmente ao encontro do nosso coração do que o oposto». Dizia Nelson Mandela que mesmo nos tempos mais negros na prisão, quando os seus camaradas eram torturados pelos guardas, ele conseguia ver um pequeno sinal, talvez apenas por um segundo, de humanidade naqueles guardas e que isso era o suficiente para que continuasse a acreditar que «a bondade é uma chama que pode estar escondida, mas nunca extinta.» Através das vozes de Nelson Mandela e de Desmond Tutu, o conceito Ubuntu tem vindo a afastar-nos do particularismo e a encaminhar-nos no sentido de um vasto humanismo e universalismo. Estas não são as únicas vozes, mas são vozes importantes. Nelson Mandela teve um grande e inegável impacto na metanarrativa no mundo, contribuindo para uma humanidade global formada por uma ética global. É este tipo de ética que precisamos quando lidamos com desafios que transcendem as fronteiras nacionais e apelam à cooperação global. Foi este espírito Ubuntu que fez


com que nós, sul-africanos, estivéssemos no coração da tomada de decisão para escolhermos o caminho da verdade e reconciliação. Não era necessário mas era importante. Desmond Tutu disse que «no espírito Ubuntu a preocupação central é a cura dos traumas resultantes das violações, a reparação de desequilíbrios, a restauração de relacionamentos quebrados, a busca da reabilitação tanto da vítima quanto do agressor, onde a este último deve ser dada a possibilidade de integração na comunidade». Isto é único na África do Sul, e não me recordo de outro país que tenha feito o mesmo – esta foi a contribuição sul-africana para a metanarrativa. Neste contexto, uma ideia no discurso cidadania global que merece, na minha opinião, mais interrogatórios é a ideia de cosmopolitismo. Essa é a ideia de que todos os seres humanos, independentemente da sua filiação política, origem e nacionalidade, podem pertencer a uma única comunidade e que esta comunidade deve ser cultivada. A filosofia Ubuntu oferece uma orientação moral para este debate na secção da discussão mais ampla da metanarrativa, mas não é apenas esta que tem sido influência no discurso da cidadania global, também o tem sido o discurso dos Direitos Humanos no mundo. Tem sido argumentado que o espírito Ubuntu fornece uma conexão entre o sistema de valores indígenas e os direitos humanos universais, consagrados a nível internacional. Além disso, é argumentado que os valores da filosofia Ubuntu deveriam ser incorporados numa versão reformulada da Declaração Universal dos Direitos Humanos (há algumas pessoas que trabalham a sério para isso aconteça). Permitam-me regressar, por um minuto, à pequena narrativa, à narrativa do povo sul-africano. Se alguma vez houve um sistema diametralmente oposto ao espírito Ubuntu, então esse sistema é o apartheid. O meu primeiro contacto com Ubuntu acontece com a experiência de crescer num sistema que promoveu e impôs o separatismo. Este sistema esteve constantemente a agredir a minha dignidade e humanidade, e diferenciou a minoria em detrimento da maioria, como um modelo fundamental de organização social. O apartheid defendia ainda, como muitas pessoas em todo o mundo ainda hoje defendem, que em nome de uma ideologia, crença, ou em legítima defesa, um ser humano tem o direito de ferir ou até mesmo matar o outro. Foi este sistema que me fez deixar a África do Sul. Se me permitem, um interlúdio pessoal: 1976 foi um ano difícil na África do Sul, os jovens revoltaram-se contra o sistema. Eu estava casado há um ano. Nesse mesmo ano de revolução e prisões, deixei os meus estudos e fui dar aulas num bairro pobre dos subúrbios e, durante o ponto alto dos motins, quase fui morto. Entretanto os meus sogros, que viviam em Standford (local onde a minha mulher foi criada, e que fica a cerca de 160 quilómetros de distância de onde estávamos, pediram que eu e a minha mulher os fôssemos visitar com urgência. Nesse ano, o apartheid tinha espalhado os seus tentáculos até Standford e quando lá chegámos havia polícias por toda parte e um bulldozer. A polícia já tinha avisado os meus sogros que tinham que deixar a sua

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casa, mas eles tinham-se recusado a fazê-lo. A nossa chegada coincidiu com o momento em que os polícias decidiram que não haveria mais negociação e disseram: “Só têm cinco minutos para saírem desta casa!”. Os meus sogros recusaram-se a abandonar a sua casa mas, ignorando a sua vontade, os polícias levaram alguns objetos que mais lhes agradaram e, em seguida, o bulldozer derrubou a casa enquanto toda a família assistia. E o meu sogro ainda teve que pagar uma multa por não querer deixar a casa. Dois meses depois, um dia antes do Natal, estava a caminho da missa e tinha pedido a uma amiga americana (branca) para dar boleia à minha irmã para a igreja. Quando estavam a caminho, infelizmente, um condutor alcoolizado embateu de frente na viatura da Margaret. Cheguei à cena do acidente e pude constatar que a Margaret estava presa ao volante e a minha irmã estava ao lado dela a esvair-se em sangue. Nesse momento concluí que tinha de levar a minha irmã para o hospital. Enquanto estava a tentar perceber como iria transportá-la, uma cara surgiu no vidro do lado do passageiro. Era o condutor de uma ambulância que tinha vindo buscar a Margaret. A minha amiga pediu-lhe que levasse antes a minha irmã pois estava a sangrar, mas o condutor respondeu que não o podia fazer pois aquela ambulância era apenas para brancos. Uma hora depois chegou uma ambulância sem máquinas de suporte de vida. A minha irmã morreu a caminho do hospital. Quando recebi a notícia disse a mim mesmo: o Sistema acabou de matar a minha irmã e melhor amiga (ela era a minha melhor amiga, crescemos juntos). Deixei o país alguns anos depois porque não consegui fazer as pazes com esta morte. Deixei a África do Sul para me reorientar e estive fora do país cerca de dez anos. Eu conseguiria perdoar uma pessoa, mas como se perdoa um Sistema? Não consegui encontrar uma resposta durante dez anos. Dez anos depois, estava eu em Nova Iorque, sentado em frente à televisão a assistir ao momento em que Nelson Mandela saiu da prisão e declarou: “Embora o sistema tenha feito tudo isso contra mim, eu perdoo o sistema”. Disse a mim mesmo que se Nelson Mandela, enquanto meu líder, podia fazê-lo, então eu também podia tentar perdoar esse sistema. Fiz as malas e regressei. Eu queria fazer parte desta reconstrução, a construção de um novo país, dando uma pequena contribuição para uma nova África do Sul, na minha área em particular, na educação. O Livro Branco Sobre a Educação, com base na Constituição Interina da África do Sul, de 1993, foi o documento que marcou a minha jornada de estudo da filosofia Ubuntu de uma maneira formal e que passo a citar: «Esta Constituição prevê uma ponte histórica entre o passado de uma sociedade profundamente dividida, caraterizada pelo conflito, sofrimento e injustiça e o futuro fundado no reconhecimento da democracia, coexistência pacífica e o desenvolvimento de oportunidades para todos os sul-africanos independentemente de raça, classe, credo e sexo. A busca pela paz, unidade nacional e o bem-estar de todos os cidadãos sul-africanos, requer reconciliação entre as pessoas da África do Sul e reconstrução da sociedade. A adoção desta Constituição


estabelece as bases seguras para que o povo da África do Sul transcenda a divisão social e a luta do passado, que gerou um crescimento de violação dos direitos humanos. A transgressão dos princípios humanitários e o legado de ódio, o medo, a culpa e a vingança, estes não podem ser abordados. Há uma necessidade de compreensão, mas não de vingança, existe uma necessidade de reparação, mas não de retaliação. Precisamos da filosofia Ubuntu e não de vitimização.» O Livro Branco Sobre a Educação foi o primeiro documento oficial onde encontrei a palavra Ubuntu. Duas outras questões chamaram a minha atenção no documento: uma foi o conceito de humanidade comum, e outra foi a ideia de um futuro comum. Nelson Mandela fez-me perceber que o sentido de comunidade é absolutamente essencial, especialmente numa sociedade como a nossa onde crescemos alimentados por suposições inquestionáveis e mitos sobre “o outro”. Desde sempre assumimos que as divisões entre os grupos de pessoas com base na raça, na origem, língua, ocupação, sexo, religião, nacionalidade são mais reais e duradouras do que a nossa humanidade comum. No livro Let Africa Lead de Reuel J. Khoza, o primeiro capítulo é dedicado à filosofia Ubuntu. Nesta obra, Nelson Mandela refere que «Ubuntu é uma grande simples ideia que afirma que o terreno comum da nossa humanidade é maior e mais duradouro do que as diferenças que nos dividem. Assim deve ser, pois partilhamos a mesma condição humana, somos criaturas de carne e osso, orientadas pelo idealismo e sofrimento, embora nos diferenciemos pela cultura e religião. E, apesar de a história nos dividir como pessoas livres e não-livres, indivíduos com poder ou impotentes, ainda assim somos ramos da mesma árvore de humanidade.» Percebe-se a linguagem de universalismo e não particularismo nas palavras de Nelson Mandela. Apelo à Ubuntu Global Network para incentivar sempre uma perspetiva global, celebrando o que é distintamente humano em todas as culturas, ajudando-nos a reconhecer que as rivalidades e a competição nacional desmedida podem conduzir-nos apenas para uma destruição total. É através da diversidade que expressamos a nossa unidade final. No trabalho da rede não devemos fugir das diferenças entre as pessoas, mas sim celebrá-las como boas notícias e como oportunidades de aprendizagem. O Livro Branco Sobre a Educação refere também que «Apesar dos sul-africanos quererem uma cidadania de igualdade para todos no presente, o seu passado não deve ser apagado. O complexo legado (bom e mau) vive no presente. Talvez seja muito difícil, mas os sul-africanos precisam de conhecer a história de cada um, a cultura “do outro”, os seus valores e aspirações. Não deve haver um afastamento das diferenças se quisermos construir um futuro comum melhor.» Em relação à identidade e ação, Ubuntu tem uma dimensão filosófica de não fragmentação (mantém as coisas, pessoas e ideias em unidade). Esse conceito de totalidade é um meio de entender a filosofia africana. A palavra Ubuntu está dividida em duas pa-

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lavras: NTU [pessoa] e UBU [tornar-se]. São dois conceitos indivisíveis e não devemos quebrar essa totalidade. Por um lado a filosofia Ubuntu vê a pessoa como indivíduo, uma dimensão lógica em si mesmo, por outro lado a interdependência encaixa a formação da identidade individual na comunidade partilhada. Há uma diferença entre a filosofia Ubuntu e o coletivismo absoluto. Eu não acredito no coletivismo. Ubuntu enquanto filosofia de orientação de vida, opõe-se ao individualismo, o grupo não despersonaliza o indivíduo. Ubuntu põe em relevo dois extremos que eu gostaria de mencionar: você pode dizer a si mesmo que está tão separado de toda a gente que a sua expressão, enquanto ser humano, não tem nada a ver com a expressão das outras pessoas. Eu não me importo com os outros, estou neste mundo apenas para mim, é quase uma abordagem anarquista, que pode levar a todos os tipos de crimes; No outro extremo está a visão de que eu sou um membro de um grupo sem o qual não consigo decidir sobre as minhas ações. Fora deste mundo coletivo, eu não me consigo diferenciar dos outros membros do grupo. A preservação e cuidados com o grupo estão acima dos meus interesses. Esta corrente de pensamento deixa pouco espaço para a auto reflexão e para ser-se crítico das suas próprias ações. Há uma fusão e um compromisso que me diz que eu tenho um papel distinto, e acredito que o meu ponto de vista está mais próximo daquilo que a filosofia Ubuntu significa. Eu tenho um papel a desempenhar ao agir localmente enquanto penso a nível global. Este papel precisa de ser alinhado com os papéis dos outros. Devo procurar a excelência sendo eu a parte de um todo (podendo ser a excelência o padrão que define o todo), tendo eu neste todo uma identidade exclusiva (nunca perco a identidade). Ubuntu reconhece aquele que age e o resultado das suas ações com um só (não se podem separar). A filosofia Ubuntu ajuda-nos a perceber que a razão moral básica da ação é o bem maior para o maior número de pessoas (é desejável se ajudar a desenvolver a comunidade). Ubuntu reconhece a individualidade ao serviço da comunidade. Concluindo, a filosofia Ubuntu é uma filosofia de vida, uma maneira de ver o mundo e uma ética social. É um complexo código moral de valores interligados que guia as ações dos indivíduos. Pode ser descrito como um sistema cujos valores incluem a compaixão, o respeito, a dignidade humana, uma orientação humanística e o papel do coletivo. No livro Um Longo Caminho para a Liberdade, Nelson Mandela afirma: «Durante os longos e solitários anos que passei na prisão, a minha fome pela libertação do meu povo tornou-se numa fome pela libertação de toda a gente. Eu compreendi que o opressor deve ser libertado tal como o oprimido. Um homem que rouba a liberdade de outro homem também fica prisioneiro do ódio, preconceito e intolerância. Para se ser livre é preciso partir as correntes e respeitar a liberdade dos outros.» Para terminar, cito Martin Luther King Jr.: Corrigir com amor tudo aquilo que se rebela contra o amor.


John Volmink nasceu e foi criado na Cidade do Cabo. Iniciou a sua carreira académica na Universidade de Western Cape e completou o doutoramento em Educação Matemática na Universidade de Cornell, Ithaca Nova Iorque em 1988. Após uma década nos Estados Unidos da América, regressou à África do Sul em 1990 e tendo tido um papel importante como Diretor do Centro para o Avanço da Ciência e Educação Matemática, em Durban. Como Pro-Vice-Chanceler da Universidade de KwaZulu foi responsável por programas de parceria com empresas, governo, comunidade e serviu como Diretor Executivo da Fundação de Desenvolvimento da Universidade. No pós-apartheid foi convidado pelo Ministro da Educação, para desempenhar um papel de liderança na transformação da educação na nova África do Sul. Foi nomeado presidente do Umalusi, organização que monitoriza e melhora a qualidade geral do ensino, da educação e da formação na África do Sul. Lidera vários Conselhos de muitas organizações não-governamentais de desenvolvimento sul-africano envolvidos na educação, na saúde e na capacitação da comunidade. Pela sua história de vida e pela proximidade ao Arcebispo Desmond Tutu, é hoje um dos grandes precursores da filosofia Ubuntu.

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ANDAR II ) LIDERANÇA INSPIRADORA

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) Liderança Inspiradora Ao entrar no segundo andar somos recebidos pelos ilustres líderes de referência da Academia: Nelson Mandela, Desmond Tutu, Martin Luther King, Aung San Suu Kyi, Mahatma Gandhi e Aristides de Sousa Mendes. Outros homens e mulheres se poderiam juntar a este extraordinário grupo de líderes que lutaram pela dignidade e pelos Direitos Humanos, contudo, acreditamos que estes, através da sua história de vida, traduzem toda a filosofia Ubuntu. No percurso da Academia estudamos as suas biografias e procuramos integrar o seu exemplo e as suas lições. Aqui, podemos conversar um pouco com eles. Participantes da Academia, responsáveis do IPAV e amigos da AU como o Prof. Roberto Carneiro e o jornalista António Mateus, apresentam-nos e conduzem este diálogo.

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É a nossa vez! Nelson Mandela visto por António Mateus «Ergo-me aqui não como um profeta mas sim como humilde servidor de vós, o povo!» Nelson Mandela ajeitava os óculos de moldura pesada, estranhos, desajustados ao recorte da sua cara. Só muito mais tarde nos explicaria que ao sair da cadeia de Victor Verster, após 27 anos de encarceramento, se esquecera dos próprios óculos, no banco detrás do carro, antes de subir apressado a escadaria do edifício municipal do Cabo. Madiba, como era afetuosamente conhecido (então apenas pelos seus mais próximos), virou-se para Winnie Mandela e pediu-lhe os dela (tinham ambos a mesma graduação), para ler o seu primeiro discurso em público. «(...) como humilde servidor de vós, o povo !» Mandela lia as palavras, compassado, dando a cada uma delas um valor próprio, como quem liga um colar de pérolas. E a multidão, estendida à sua frente, via e escutava pela primeira vez aquele homem de quem durante décadas não fora publicada fotografia ou escritos. O comandante do Umkhonto We Sizwe ("A Lança da Nação"), que lançara a luta armada contra o sistema de apartheid e uma campanha de atentados bombistas em edifícios públicos e alvos financeiros, fora preso como um homem arrogante, intolerante, promíscuo e egocêntrico. Uma rocha que foi esculpida em algo bem distinto, durante a reclusão de 27 anos em Robben Island, Pollsmoor e Victor Verster. E assomava ali, na varanda do município da cidade-mãe sul-africana, transbordante de humildade e descentrado de si. Dedicado a um povo pelo qual prescindira do amor da família e dos confortos que, de outra forma, poderiam ter sido seus. «Somos tão fortes quanto os mais frágeis de nós». As palavras daquele homem grande subtraíam o cinismo e reservas da multidão de jornalistas que o passaram a acompanhar, a cada passo, mais habituados à retórica precária, dos líderes políticos comuns. Não eram lugares-comuns. Nunca o eram. Mandela falava o que sentia após refletir cuidadosamente sobre as implicações da palavra proferida. O homem que passara "dias-sem-fim" de prisão a ler e meditar biografias de grandes pensadores, percebera que um verdadeiro líder estimula o melhor em todos à sua volta, entende o pensamento divergente como uma oportunidade de crescimento e é um construtor de pontes. «Nunca vejam em mim um santo a não ser que este o seja, para vós, um pecador que continua a tentar». Era assim que Rolihlahla (“aquele que agita os ramos”) - rebatizado Nelson pela profes-

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) sora no seu primeiro dia de aulas – se subtraía à tendência humana de autodeslumbramento, quando se é reverenciado, em vida, como um semi-Deus. E fazia-o de forma autêntica porque era o primeiro a ter consciência lúcida das próprias fragilidades, contradições e das suas insuficiências afetivas para os mais próximos, a começar pelos filhos. O pai-da-Nação, que se dedicara a reconciliar o seu povo e a libertá-lo da indignidade, deixara "orfãos de amor" os do próprio sangue, descobrindo-se assim, paradoxalmente, numa ilha de solidão, no outono da sua vida, até encontrar Graça Machel. Ao nascer do dia em que o seu corpo desceu à terra, em Qunu, sentei-me no morro oposto ao local de sepultura. Precisamente onde começava o lajedo de pedra onde ele, em menino, brincava com os seus amigos. Fechei os olhos e arrepiei-me com aquele cheiro do mato despertado pelo orvalho da madrugada. "Vi-os" a deslizarem de rabos nús, na lama por eles retirada do leito do rio para transformarem a placa de pedra polida num imenso escorrega. Era ali que quisera regressar no despedir do mundo físico. Àquelas terras áridas, despojadas, raízes de uma infância onde aprendera primeiro com o seu pai, Soba (líder tribal), e depois, com o regente dos Xhosas, que um líder o é, primeiro do que tudo, pelo exemplo. E depois, pelo amor com que cuida dos mais frágeis. Bordando uns e outros num sentir comum, de família alargada. Aquela noção vivida e praticada, dia a dia, de Ubuntu. De que nenhum de nós alguma vez será verdadeiramente feliz enquanto o procurar para si em vez de o semear e acarinhar nos outros. p

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"Começar em nós a mudança que sonhamos para o mundo" O princípio assim fraseado (ou de forma próxima) nasceu de Mahatma Ghandi, nas mesmas terras que trouxeram, depois dele, três prémios Nobel à África do Sul. E foi a prática desse valor, a que dedicou o resto dos seus dias, após sair da prisão, que tornou Mandela um líder amado à escala mundial. "Ninguém é livre enquanto não libertar o seu carcereiro". É a nossa vez. António Mateus (Jornalista. Convidado AU das 1ª e 2ª edições)


Mandela: As 8 Lições de Liderança Richard Stengel, Revista Time, 9 de Julho 2008 Nelson Mandela sempre se sentiu mais à vontade em torno das crianças e, de certa maneira, a sua maior privação foi passar 27 anos sem ouvir um choro de bebé ou ter segurado a mão de uma criança. No mês passado, quando visitei Mandela em Joanesburgo - um Mandela mais frágil e enevoado que o que eu conheci - o seu primeiro instinto foi o de abrir os braços para os meus dois filhos. Em poucos segundos eles estavam a abraçar o simpático velho homem que lhes perguntava quais os desportos que gostavam e o que queriam para o pequeno-almoço. Enquanto conversávamos, ele pegou no meu filho Gabriel ao colo, cujo nome do meio é complicado: Rolihlahla (o primeiro nome de Nelson Mandela). Ele explicou ao Gabriel o significado do nome que, em Xhosa quer dizer “puxando a ramada de uma árvore para baixo “ mas, na verdade, o seu significado é “perturbador”. Celebrando o seu 90º aniversário na próxima semana, Nelson Mandela viveu desafios suficientes em várias ocasiões da sua vida. Ele libertou um país de um sistema de preconceito violento e ajudou a unir brancos e negros, opressores e oprimidos, como nunca tinha sido feito antes. Na década de 1990 trabalhei com Mandela durante quase dois anos na sua autobiografia Longo Caminho para a Liberdade. Depois de tanto tempo passado na sua companhia, senti uma terrível sensação de abstinência quando o livro foi editado. Parecia que o sol tinha saído da minha vida. Vimo-nos ocasionalmente ao longo dos anos, mas eu queria fazer o que poderia ser uma última visita e permitir que os meus filhos o encontrassem uma vez mais. E também queria falar com ele sobre liderança. Mandela é a realidade mais próxima que o mundo tem de um santo secular, mas ele seria o primeiro a admitir que é algo muito mais prosaico: um político. Ele derrubou o apartheid e criou uma África do Sul democrática e não-racial, sabendo exatamente quando e como fazer a transição entre o seu papel de guerreiro, mártir, diplomata e estadista. Desconfortável com conceitos filosóficos abstratos, ele costumava dizer-me que um problema «não era uma questão de princípio, era uma questão de tática». Ele é um mestre de estratégia. Mandela já não está confortável com entrevistas. Ele está com medo de não estar à altura do que as pessoas esperam quando visitam um “deus vivo” e tem suficiente vaidade para cuidar de que não o pensem diminuído. Mas o mundo nunca precisou tanto dos dons de Mandela - como estratega, como militante e, sim, como político – como agora, como ele mostrou mais uma vez em Londres, em 25 de junho, quando se levantou para condenar a selvajaria do Zimbabwe de Robert Mugabe. À medida que entramos na reta final de uma campanha presidencial histórica nos EUA, há muita coisa que ele pode ensinar aos dois candidatos. Eu sempre pensei que o que está prestes a ler como Lições de Madiba (Madiba, o nome do clã, é o que todos os seus próximos lhe chamam), seriam reunidas a partir de novas e antigas conversas e de uma

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) observação de perto e de longe. Elas são essencialmente lições práticas. Muitas delas decorrem diretamente da sua experiência pessoal. Todas elas são calibradas para causar o melhor tipo de inquietação: a que nos obriga a perguntar como podemos tornar o mundo um lugar melhor.

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1) Coragem não é ausência de medo – É inspirar outros a ir para além do medo. Em 1994, durante a campanha eleitoral presidencial, Mandela entrou num pequeno avião a hélice para voar até aos campos de extermínio da província de Natal e fazer um discurso para seus partidários Zulu. Eu concordei em ir ao seu encontro no aeroporto, onde iríamos continuar o nosso trabalho depois do seu discurso. Quando o avião estava a vinte minutos da aterragem, um dos motores falhou. Algumas pessoas no avião começaram a entrar em pânico. A única coisa que as acalmou foi olhar para Mandela, que, silenciosamente, continuava a ler o seu jornal como se fosse um viajante no seu comboio matinal para o escritório. O aeroporto estava preparado para uma aterragem de emergência, mas o piloto conseguiu pousar o avião com segurança. Quando Mandela e eu nos sentámos no banco traseiro do seu BMW blindado, que nos levaria ao comício, ele virou-se para mim e disse: «Homem, lá em cima eu estava apavorado!». Durante o seu tempo na clandestinidade, durante o julgamento em Rivonia que levou à sua prisão, ou durante o seu tempo em Robben Island, Mandela teve medo muitas vezes: «Claro que tive medo!», disse-me mais tarde. «Teria sido irracional não ter. Mas como um líder, você não pode deixar as pessoas saber. Você deve colocar uma máscara». E isso é precisamente o que ele aprendeu a fazer: disfarçar e, surgindo sem medo, inspirar os outros. Foi um Mandela, simulador aperfeiçoado, que esteve em Robben Island, onde havia muito a temer. Presos que estavam com ele disseram que ver Mandela a atravessar o pátio em posição vertical, e com orgulho, foi suficiente para mantê-los animados por vários dias. Ele sabia que era um modelo para os outros e isso deu-lhe a força para triunfar sobre o seu próprio medo. 2) Liderança na frente - Mas não deixe para trás a sua base de apoio. Mandela é cauteloso. Em 1985, foi operado a um tumor na próstata. Quando voltou para a prisão, foi separado dos seus colegas e amigos, pela primeira vez em 21 anos. Eles protestaram. Mas como o seu antigo amigo Ahmed Kathrada recorda, ele disse-lhes: «Esperem um tempo... algo de bom pode vir disto». O resultado positivo foi Mandela iniciar as suas próprias negociações com o governo do apartheid. Este era um anátema para o Congresso Nacional Africano (ANC). Depois de décadas a dizer «os prisioneiros não podem negociar», e a advogar uma luta armada que iria colocar o governo de joelhos, ele decidiu que era o momento certo para começar a conversar com os seus opressores. Quando iniciou as negociações com o governo em 1985, havia


muitos que pensavam que ele tinha sido derrotado. Dizia Cyril Ramaphosa, o então líder da poderosa União Nacional de Mineiros: «Nós pensámos que ele se estava a vender. “Eu fui vê-lo para lhe dizer: o que é que está a fazer?” Foi uma iniciativa incrível. Ele assumiu um risco enorme». Mandela lançou uma campanha para convencer o ANC que o seu caminho era o correto. A sua reputação estava em jogo. Ele foi ter com cada um dos seus companheiros de prisão, lembra Kathrada, e explicou-lhes o que estava a fazer. Lenta e deliberadamente, ele trouxe-os para a sua posição. «Você tem de ter o suporte da sua base de apoio», diz Ramaphosa, que foi secretário-geral do ANC e agora é um magnata dos negócios. (...) Para Mandela, recusar-se a negociar foi uma questão tática, e não de princípio. Ao longo da sua vida, ele sempre fez essa distinção. O seu princípio inabalável – a queda do apartheid e, consequentemente, o princípio “um homem, um voto” - era imutável, mas quase tudo o que o ajudou a chegar a esse objetivo ele considerava como uma tática. Ele é o mais pragmático dos idealistas. «Ele é um homem histórico», disse Ramaphosa, «Ele estava a pensar muito mais à frente do que nós, tinha em mente a posteridade: como vão eles ver o que fizemos?». A prisão deu-lhe a capacidade de pensar a longo prazo. Não havia outra visão possível. Ele estava a pensar não em termos de dias ou de semanas, mas de décadas. Ele sabia que a História estava a seu lado e que o resultado seria inevitável, era apenas uma questão de quanto tempo demoraria e como isso seria alcançado. «As coisas serão melhores no longo prazo», disse Mandela por vezes. Ele sempre jogou para o longo prazo. 3) Liderar a partir de trás – E fazer os outros acreditarem que estão na frente. Mandela gostava de relembrar a sua infância e as suas tardes preguiçosas de pastoreio de gado. «Sabe», dizia ele: «você só pode conduzi-los a partir da retaguarda.» (...) Em criança, Mandela foi grandemente influenciado pelo Jongintaba, o rei tribal que o influenciou. Quando Jongintaba tinha reuniões da sua corte, os homens reuniam-se num círculo, e somente depois de todos falarem é que o rei começava a falar. O trabalho do líder, disse Mandela, não era para dizer às pessoas o que fazer, mas para formar um consenso. «Não se deve entrar no debate muito cedo», costumava ele dizer. Durante o tempo em que trabalhei com Mandela, ele muitas vezes convocava reuniões do seu gabinete, na cozinha da sua casa, em Houghton, um subúrbio antigo e encantador de Joanesburgo. Reunia uma meia dúzia de homens, (Ramaphosa, Thabo Mbeki e outros) ao redor da mesa da sala de jantar ou, às vezes, num círculo na sua garagem. Alguns dos seus colegas gritavam-lhe - para se despachar, para ser mais radical - e Mandela simplesmente ouvia. Quando finalmente falava, nessas reuniões, ele resumia lenta e metodicamente todos os pontos de vista e, em seguida, apresentava os seus próprios pensamentos, encaminhando subtilmente a decisão na direção que queria, sem a impôr. O segredo da liderança é deixar-se ser liderado também. «É sábio», disse ele, «persuadir as pessoas a fazerem as coisas e fazê-los pensar que eram a sua própria ideia.»

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4) Conheça o seu inimigo - E aprenda sobre o seu desporto favorito Já em 1960, Mandela começou a estudar africânder, a língua dos brancos sul-africanos que haviam criado o apartheid. Os seus companheiros no ANC brincavam com ele sobre isso, mas Mandela queria entender a perspetiva do africânder. Sabia que um dia ele estaria a lutar contra eles ou negociar com eles e, de qualquer forma, o seu destino estava ligado ao deles. Esta decisão foi estratégica em dois sentidos: por falar a língua dos seus oponentes, ele pôde entender as suas forças e fraquezas e formular táticas em conformidade. Mas ele também se insinuou junto do seu inimigo. Todos - desde os carcereiros comuns, a P.W. Botha - ficaram impressionados com a vontade de Mandela em falar africânder e com o seu conhecimento da história daquela comunidade. Ele aprendeu ainda tudo sobre rugby, o desporto favorito dos africânderes, sabendo avaliar jogadores e equipas. Mandela entendia que negros e africânderes tinham algo fundamental em comum: os africânderes acreditavam tão profundamente serem africanos quanto os negros. Ele sabia, também, que os africânderes tinham sido vítimas de preconceito: o governo britânico e os colonos brancos Ingleses olhavam-nos de cima para baixo. Os africânderes sofriam de um complexo de inferioridade cultural, quase tanto quanto os negros. Mandela era advogado e, na prisão, ajudou os guardas nos seus problemas jurídicos. Eles eram muito menos cultos e educados do que ele, e era extraordinário para eles que um homem negro se dispusesse e fosse capaz de osajudar. Estes eram «o mais cruel e brutal dos personagens do regime do apartheid», diz Allister Sparks, o grande historiador sul-africano, e Mandela «percebeu que, mesmo com a pior e mais cruel personagem do apartheid poderia negociar.» 5) Mantenha os seus amigos por perto – E os seus rivais ainda mais perto. Muitos dos convidados que Mandela convidou para a sua casa em Qunu, eram pessoas que – confidenciou-me - não lhe inspiravam confiança. Mas ele convidava-os para jantar, chamava-os para os consultar, lisonjeava-os e oferecia-lhes presentes. Mandela é um homem de um charme invencível - e ele tem usado frequentemente o efeito desse encanto ainda mais sobre os seus rivais, do que junto dos seus aliados. Em Robben Island, Mandela sempre incluiu entre os seus homens de confiança alguns de quem não gostava ou a quem não estava ligado. Uma dessas pessoas foi Chris Hani, o chefe impetuoso da ala militar do ANC. (..). «Não era apenas Hani», diz Ramaphosa. «Foram também grandes industriais, as famílias de mineração, a oposição. Ele pegava no telefone e ligava-lhes nos seus aniversários. Ele ia a funerais da família. Ele viu isso como uma oportunidade». Quando Nelson Mandela saiu da prisão, incluiu os seus carcereiros entre os seus amigos e colocou no seu primeiro gabinete líderes que o haviam mantido na prisão. No entanto, eu sabia muito bem que ele desprezava alguns desses homens. Houve momentos em que ele se afastou das pessoas - e momentos em que, como tantas pessoas de grande encanto, ele se permitiu ser seduzido. Mandela desenvolveu inicialmente um relacionamento rápido com o Presidente


sul-africano F.W. de Klerk, razão pela qual, mais tarde, se sentiu tão traído quando de Klerk o atacou em público. Mandela acreditava que abraçar os seus rivais era uma forma de os controlar: eles eram mais perigosos por conta própria do que dentro do seu círculo de influência. Ele apreciava a lealdade, mas nunca estava obcecado por ela. Afinal, ele costumava dizer que «as pessoas agem em seu próprio interesse». Era simplesmente um facto da natureza humana, não uma falha ou um defeito. O outro lado da moeda de ser um otimista - e ele é um - é confiar demasiado nas pessoas. Mas Mandela reconheceu que a maneira de lidar com aqueles em quem tinha confiança era neutralizá-los com muito charme. 6) As aparências importam - E lembre-se de sorrir. Quando Mandela era um pobre estudante de direito, em Joanesburgo, vestindo o seu fato usado, foi visitar Walter Sisulu. Sisulu era um agente imobiliário e um jovem líder do ANC. Mandela viu um homem negro sofisticado e bem sucedido, o qual poderia imitar. E Sisulu viu o futuro. Sisulu disse-me uma vez que a sua grande luta na década de 1950 foi a de transformar o ANC num movimento de massas. Então, um dia, lembrou com um sorriso: «Um líder de massas entrou no meu escritório». Mandela era alto e bonito, um pugilista amador que transportava o ar majestoso de um príncipe. E ele tinha um sorriso que era como o sol que irrompe num dia nublado. Às vezes esquecemos a correlação histórica entre a liderança e a corporalidade. George Washington foi provavelmente o homem mais alto e mais forte em cada sala onde entrou. Tamanho e força têm mais a ver com o ADN do que com os manuais de liderança, mas Mandela entendeu como a sua aparência poderia ser uma vantagem para a sua causa. Como líder da ala militar clandestina do ANC, ele insistiu em ser fotografado com o uniforme adequado e com uma barba, e ao longo da sua carreira, teve a preocupação de se vestir adequadamente para sua posição. O seu advogado George Bizos lembra que conheceu Nelson Mandela, na década de 1950, numa loja de um alfaiate indiano e que Mandela foi o primeiro negro sul-africano que viu com um fato completo. Agora o uniforme de Mandela é uma série de camisas exuberantes que o apresentam como o avô feliz da África moderna. Quando Mandela era candidato à presidência, em 1994, sabia que os símbolos importavam tanto quanto os conteúdos. Nunca foi um grande orador público e, muitas vezes, após os primeiros minutos de discurso, as pessoas não se identificavam com o que estava a dizer. Mas era a iconografia que as pessoas entendiam. Quando estava em palco dançava sempre o toyi-toyi, dança dos subúrbios pobres, que era um emblema da luta. Mas o mais importante era o sorriso deslumbrante, beatífico e inclusivo. Para os sul-africanos brancos, o sorriso de Mandela simbolizou a ausência de amargura e sugeriu-lhes que Mandela seria simpático para com eles. Aos eleitores negros, disse: «eu sou o guerreiro feliz, e nós vamos triunfar». O cartaz eleitoral omnipresente do ANC era simplesmente o seu rosto sorridente. «O sorriso», diz Ramaphosa, «era a mensagem». Depois ter saído da

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) prisão, as pessoas diziam que era surpreendente como ele não se tinha tornado amargo. Existem mil e uma coisas com que Nelson Mandela foi amargo, mas ele sabia que mais do que qualquer outra coisa, tinha que projetar a emoção oposta e dizia sempre: «Esqueçam o passado» - mas eu sei que ele nunca o fez.

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7) Nada é preto ou branco Quando começámos a nossa série de entrevistas, muitas vezes eu fazia perguntas a Mandela como esta: “Quando é que decidiu suspender a luta armada? Foi porque percebeu que não tinha força para derrubar o governo ou porque sabia que podia convencer a opinião pública internacional, escolhendo a não-violência?” Ele então lançou-me um curioso olhar e disse: «Porque não ambas?». Eu comecei a fazer perguntas mais inteligentes que estas, mas a mensagem era clara: A vida nunca é uma coisa ou outra, preto ou branco. As decisões são complexas, e há sempre fatores concorrentes. A procura de explicações simples é a tendência do cérebro humano, mas isso não corresponde à realidade. Nada é tão simples quanto parece. Mandela está confortável com a contradição. Como político, ele era um pragmático, que via o mundo como infinitamente matizado. Muito disto, creio eu, resulta de viver como um homem negro sob um sistema de apartheid que oferecia um regime diário de atrozes e debilitantes escolhas morais: “Eu devo submeter-me a um patrão branco para fazer o trabalho que quero e evitar uma punição? Devo levar o meu passe?”. Como estadista, Mandela foi pouco leal a Muammar Kadhafi e Fidel Castro. Eles ajudaram o ANC, quando os EUA ainda assinalavam Mandela como terrorista. Quando lhe perguntei sobre Kadhafi e Castro, ele sugeriu que os americanos tendem a ver as coisas em preto e branco e censurou-me pela minha falta de “nuance”. Cada problema tem muitas causas. Embora ele tenha sido, indiscutível e claramente, contra o apartheid, as causas do apartheid eram complexas: eram históricas, sociológicas e psicológicas. A questão de Mandela foi sempre: “Qual é o objetivo que procuro e qual é a maneira mais prática para chegar lá?” 8) Sair também é liderar Em 1993, Mandela perguntou-me se eu sabia quais os países onde a idade mínima para votar era menos de 18 anos. Fiz algumas pesquisas e apresentei-lhe uma lista bastante medíocre: Indonésia, Cuba, Nicarágua, Coreia do Norte e o Irão. Ele acenou com a cabeça e soltou o seu maior elogio: «Muito bom, muito bom». Duas semanas depois, Mandela foi à televisão sul-africana e propôs que a idade de voto fosse reduzida para 14 anos. «Ele tentou vender-nos a ideia», lembra Ramaphosa, «mas foi o único defensor». E ele teve que enfrentar a realidade de não ganhar essa batalha. Aceitou-o com grande humildade. Não amuou. Essa foi também uma lição de liderança. Saber como abandonar uma ideia, uma tarefa, ou uma relação é muitas vezes a mais difícil de decisão que um líder tem de tomar. Em muitos aspetos, o maior legado de Mandela


como Presidente da África do Sul é o caminho que ele escolheu para deixar de o ser. Quando foi eleito em 1994, Mandela provavelmente poderia ter pressionado para ser o presidente para a vida - e havia muitos que achavam que, em troca dos seus anos na prisão, era o mínimo que a África do Sul poderia fazer. Na história de África, houve apenas um punhado de líderes democraticamente eleitos que voluntariamente se afastaram do cargo. Mandela estava determinado a estabelecer um precedente para todos os que o seguiriam - não só na África do Sul mas em todo o resto do continente. Ele seria o ‘anti-Mugabe’, o homem que deu à luz o seu país mas se recusou a mantê-lo refém. «A sua tarefa era definir o rumo, não governar o navio.», diz Ramaphosa. Ele sabe que os líderes conduzem tanto pelo que decidem fazer como pelo que decidem não fazer. Em última análise, a chave para a compreensão de Mandela são os seus 27 anos de prisão. O homem que entrou em Robben Island em 1964 era emocional, teimoso, facilmente irritável. O homem que saiu era equilibrado e disciplinado. Ele não é - e nunca foi - introspetivo. Muitas vezes lhe perguntei qual era a diferença entre o homem que saiu da prisão face ao jovem homem voluntarioso que havia entrado. Ele odiava essa questão. Finalmente, um dia, num momento de exasperação, disse: «Eu saí maduro». Não há nada tão raro - ou tão valioso - como um homem maduro. Feliz aniversário, Madiba. p

Nelson Rolihlahla Mandela nasceu em 18 de julho de 1918, em Mvezo, Transkei (África do Sul), no seio de uma família de nobreza tribal, numa pequena aldeia do interior onde possivelmente viria a ocupar cargo de chefia. Abandonou este destino aos 23 anos ao seguir para a capital Joanesburgo, passando do interior rural para uma vida rebelde na faculdade, transformando-se em jovem advogado na capital e líder da resistência não-violenta da juventude em luta. Mandela foi o fundador da Liga Jovem do Congresso Nacional Africano (ANC), em 1944, e traçou uma estratégia que foi adotada anos mais tarde pelo Congresso na luta contra o apartheid. No ano de 1948, o Partido Nacional, que era a favor da segregação racial, ganhou as eleições, o que fez com que Mandela ficasse ainda mais ativo na sua luta. Inicialmente os movimentos liderados por Nelson Mandela não envolviam violência, porém, após o massacre de Sharpeville, quando a polícia sul-africana matou 69 negros numa revolta de manifestantes, foi criado um braço armado do ANC. Mandela permaneceu preso de 1964 a 1990. Nestes 27 anos, Mandela jamais ficou alheio aos eventos: a vida na prisão era para ele uma "versão reduzida da luta no mundo". Libertado aos 71 anos de idade, ao sair da prisão, exibia um sorriso e falava do seu sonho para o país, onde fosse respeitada a dignidade de todas as pessoas, com paz, democracia e liberdade para todos. Deixando para trás a sua

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) juventude fervorosa, conquistou uma calma interior que lhe permitiu conduzir a África do Sul num processo de transição que não resultasse em banhos de sangue e vingança. Em 1993, ganhou o prémio Nobel da Paz, juntamente com o último presidente do apartheid, Frederick de Klerk. Foi um reconhecimento pela sua atuação na negociação para instaurar a democracia no país. Em 1994, Mandela tornou-se o primeiro presidente negro da África do Sul. Governou o país até 1999, sendo responsável pelo fim do regime segregacionista no país e também pela reconciliação de grupos internos. Com o fim do mandato de presidente, Mandela afastou-se da política dedicando-se a causas de várias organizações sociais em prol dos Direitos Humanos. Faleceu a 5 de dezembro de 2013 na cidade de Joanesburgo.

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Um Homem para a Eternidade Martin Luther King Jr. visto por Roberto Carneiro Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade. (Artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos do Homem)

O doutor Martin Luther King, Jr., (15 de janeiro, 1929 – 4 de abril, 1968), recebe o grau académico mais elevado outorgado pela Boston University, em 1955, na tenra idade de 25 anos. Na mesma cidade de Boston, ele casa com Coretta Scott; dessa união nascem quatro filhos, dois rapazes e duas raparigas. A sua tese de doutoramento debruça-se sobre a obra de Paul Tillich, em particular sobre as suas reflexões em torno da trilogia: Amor, Poder e Justiça. Nessa sua dissertação, o futuro pastor cristão e ativista social, aflora a doutrina pela qual vem a reger a sua corajosa intervenção pública na defesa de ideais superlativos da dignidade e da liberdade humanas, causas pelas quais vem a morrer: • Na vida, para ter uma existência coerente, cada um terá de encontrar um alinhamento pessoal entre amor e poder, entre deveres e direitos, entre paixão e potência. • O poder sem amor é destrutivo, e abusivo, enquanto o amor sem poder é sentimental, e anémico. O amor é o que torna o poder generativo, enquanto o poder faz do amor uma força generativa. • Esta colisão entre um poder imoral e uma moralidade impotente, qualifica a maior crise do nosso tempo. Em 1954, Martin Luther King, Jr. torna-se pastor da Dexter Avenue Baptist Church, Montgomery, Alabama. Cedo se revela um verdadeiro Servidor-Líder do movimento mais expressivo, de natureza não violenta, na história dos EUA, o qual é por ele comandado a partir de dezembro de 1955, luta essa que culmina em 21 de dezembro de 1956, quando o Supremo Tribunal americano declara inconstitucionais as leis de segregação nos transportes escolares. Em 1957, ele é eleito presidente do Southern Christian Leadership Conference, um movimento cujos ideais se inspiram no Cristianismo e na ação cívica de Gandhi, enquanto fator da construção da moderna democracia indiana. Em reconhecimento do seu papel exemplar como pacificador e combatente pelos direitos fundamentais da pessoa, sem o recurso a métodos violentos, Martin Luther King, Jr. é solenemente galardoado com o Prémio Nobel da Paz, em 1964, com apenas 35 anos.

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) Martin Luther King,. Jr., é assassinado na varanda do seu quarto de hotel na noite de 4 de abril de 1968, em Memphis, Tennessee, quando liderava uma marcha de protesto dos trabalhadores de recolha do lixo. Tinha, tão só, 39 anos de idade.

Horizonte O sonho é ver as formas invisíveis Da distância imprecisa, e, com sensíveis Movimentos da esp’rança e da vontade, Buscar na linha fria do horizonte A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte Os beijos merecidos da Verdade. (A Mensagem, Segunda Parte: Mar Portuguez, Possessio maris Fernando Pessoa)

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No dia 28 de agosto de 1963 o Doutor Martin Luther King, Jr. transforma a promessa de um banho de sangue numa marcha pacífica sobre a capital americana. Aí, perante uma multidão de 250 000 manifestantes ele faz o seu mais celebrado pronunciamento: “I Have a Dream". Para quem, como eu, que me encontrava circunstancialmente na cidade de Washington, D.C., ao abrigo de um programa de intercâmbio de jovens finalistas do ensino secundário, e que teve o raro privilégio de assistir a esse histórico evento, não poderia deixar de se ver marcado pela sua vida fora pelo frémito de emoção vivido pela multidão apinhada junto ao Lincoln Memorial e pelo conteúdo da poderosa mensagem do Nobel da Paz. •

Devolver ódio com ódio multiplica o ódio, acrescentando escuridão a uma noite desprovida de estrelas. A escuridão não é capaz de afastar a escuridão; só a luz pode fazê-lo. O ódio não afasta o ódio, só o amor o consegue ( ) Não procuraremos satisfazer a nossa sede de liberdade, sorvendo do cálice do revanchismo e do ódio ( ) Agora, e sempre, elevar-nos-emos à grandeza de enfrentar a força física com a força anímica. Continuaremos a trabalhar com a convicção de que todo o sofrimento imerecido é redentor (...) Não satisfaremos a nossa sede de liberdade bebendo do cálice do rancor e do ódio. Elevaremos sempre o nosso combate aos planos da dignidade e da disciplina. Não deveremos permitir que o nosso protesto criativo degenere em violência física. Antes, deveremos manter-nos sempre à altura de responder à força física com a força anímica.

Martin Luther King, Jr. corporiza o ideal do Servidor-Líder, na genuína definição do genial criador desse conceito, Robert K. Greenleaf (1970): The Servant as a Leader ["O servidor-líder é primeiro servidor, só depois aspira à liderança"].


Segundo a inspirada conceptualização de Greenleaf, o Servidor-Líder distingue-se por 10 princípios fundamentais que orientam, em permanência, a sua conduta pessoal e cívica. •

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Escuta (Listening) Os líderes são normalmente valorizados pela sua qualidade comunicacional. O SL escuta intensamente o outro... E esforça-se continuamente por ouvir a sua voz interior – o que o seu corpo, a sua mente, o seu espírito, a sua consciência, lhe dizem. Empatia (Empathy) O SL procura sempre aceitar e reconhecer o que há de específico e único no outro. Cura (Healing) O poder da cura é um força enorme de transformação e de integração. O SL tem o grande potencial de curar-se a si e ao outro, em permanência, na procura da integridade e do todo (search for wholeness). Atenção (Awareness) O SL não teme o desafio – o desassossego – da busca interior que leva à autoconsciência das fraquezas e fragilidades pessoais. A consciência da sua "pequenez" torna-o mais atento ao outro, fá-lo pobre do outro. Persuasão (Persuasion) Persuasão e inspiração, mais do que exercício da autoridade, é a forma como o SL comunica e convence os outros. Conceptualização (Conceptualization) O SL desenvolve a capacidade de “sonhar grandes sonhos”, de olhar para o problema de forma a transcender a sua realidade limitativa. Antecipação (Foresight) O SL compreende as lições do passado, as realidades do presente, para pensar a construção do futuro. O SL cultiva sem descanso a mente intuitiva. Direção / Orientação (Stewardship) Uma boa orientação a todos mobiliza – líder, liderados, diretores, colaboradores – de forma confiante para a realização do bem da sociedade. Compromisso (Commitment to the Growth of People) O SL acredita no valor superlativo das pessoas independentemente da respetiva condição ou vinculação laboral / institucional. O SL assume um compromisso inalienável com o crescimento pessoal, profissional e espiritual de cada pessoa na organização. Comunidade (Building Community) O SL sabe que na ausência de comunidade o indivíduo está perdido. O SL é um empreendedor social, um produtor de capital social, em todas as instâncias em que se encontra empenhado.

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) Martin Luther King, Jr. é verdadeiramente o inspirado Servidor-Líder que eleva a sua conduta a um nível supremo de solidariedade e de doação. Noutro continente, a milhares de quilómetros de distância, uma outra grande figura de estadista, Nelson Mandela (Madiba), já na dobra de século e de milénio, define a filosofia Ubuntu Africana com a seguinte narrativa: Um viajante que deambula pelo país decide parar numa aldeia onde não tem de pedir comida nem água. Logo que chega, as pessoas levam-lhe comida e entretêm-no. Essa é uma dimensão do modo de ser Ubuntu, mas há vários outros aspetos salientes. Ubuntu não significa que as pessoas não possam enriquecer. Significa antes o seguinte: acumularás esse património com a finalidade única de o colocar ao serviço do crescimento e do progresso da comunidade que te rodeia! A essa notável filosofia o bispo Desmond Tutu contribui com um pequeno, mas substantivo, acrescento: A essência de ser humano reside na nossa interdependência. Quando praticas o bem, ele propaga-se. Ele beneficia toda a humanidade.

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É por isso que qualificamos o Doutor Martin Luther King, Jr. como um Homem para a Eternidade, na mais cristalina e genuína aceção Ubuntu. Na verdade, a sua maneira de bem fazer, ou de fazer o bem, contaminou de maneira irreversível e indelével toda a humanidade, sem restrição de espaço, nem de tempo. O seu exemplo marca uma viragem na história da humanidade, bem como no tempo do nosso viver em comunidade. O Sonho ascende, com ele, a categoria superior antropológica, aquela que permite ao comum mortal adquirir as asas que lhe permitem sair do rés do chão da vida e atingir a eternidade, aquando da efetivação da oferenda, incansável e ilimitada no preço, feita a favor - e em nome - do superior serviço ao bem comum. O sol dos Sonhos derreteu-lhe as asas. E caiu lá do céu onde voava Ao rés do chão da vida. A um mar sem ondas onde navegava A paz rasteira nunca desmentida… Mas ainda dorida No seio sedativo da planura, A alma já lhe pede impenitente, A graça urgente De uma nova aventura. Miguel Torga, Ícaro, Diário, XII Roberto Carneiro (Professor Universitário. Convidado AU das 1ª e 2ª edição)


A Senhora Aung San Suu Kyi vista por Francisca Assis Teixeira Uma beleza profundamente feminina, olhar penetrante, rosto doce, cabelo sempre pontuado de flores, uma delicadeza tocante e uma harmonia que parece fazer o corpo sobrevoar o chão por onde passa, escondem uma mulher com caráter de aço, determinadamente comprometida, até às últimas consequências, com os ideais em que acredita. Aung San Suu Kyi é uma mulher de fé e de cultura, aparentemente talhada para uma bem-educada mãe de família, escolhe escrever a sua própria história de forma diferente, entrelaçando-a com a do seu povo, que escolhe servir, custe o que custar. Não foi a mãe ou a mulher que provavelmente ambicionara ser, escolhendo um outro caminho que, no entanto, inspirou e continua a inspirar o mundo afirmando, com o seu exemplo, que há valores pelos quais vale a pena dar a vida. A sua coragem, abnegação, inteligência, perseverança e capacidade de perdão colocam-na a par de Gandhi, Luther King ou Mandela, figuras incontornáveis da humanidade. É por isso um dos modelos inspiradores escolhidos para a Academia Ubuntu. As origens Aung San Suu Kyi, filha de Aung San e de Khin Kyi nasceu em Rangun, capital da Birmânia, então colónia inglesa, em 19 de junho de 1945, muito pouco tempo antes do final da II Guerra Mundial. Aung San, general e político, grande combatente pela independência da Birmânia, assassinado em 1947, foi considerado por muitos o pai da independência da Birmânia conseguida em 1948. Khin Kyi, professora e enfermeira de profissão (apesar da resistência familiar), casou com Aung San em 1942, depois de o ter assistido no hospital da capital onde trabalhava. Viúva de um herói nacional, é convidada em 1953, para ministra dos Assuntos Sociais e, mais tarde, em 1960, para embaixadora da Birmânia na Índia. Aung San Suu Kyi é oriunda de uma família abastada, que lhe permitiu estudar nas melhores escolas de Rangun, na Índia, onde a mãe foi embaixadora e em Oxford, onde fez a sua formação universitária. É aqui que conhece Michael Aris, jovem professor especialista em civilização tibetana, com quem casa em 1972. Do casamento nasceram Alexander, em 1973 e Kim, em 1977. Até 1988 leva uma pacata vida em Oxford, desempenhando o papel de mulher e mãe. No entanto, a grande mudança chega com um telefonema, chamando-a ao seu país amado que nunca esquecera.

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) O regresso And love is not the easy thing The only baggage you can bring Is all that you can’t leave behind... (Walk On - U2)

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Em março de 1988 é avisada de que Khin Kyi, sua mãe, estava gravemente doente, razão que leva Suu Kyi a tomar a decisão de regressar. A Birmânia que encontra é bem diferente daquela que deixara. A ditadura militar instalada fechara o país ao exterior, transformando aquele que fora um território rico, num dos mais atrasados da região. O descontentamento da população é notório mas a ditadura musculada encarrega-se de manter a situação, esmagando qualquer tentativa de rebelião. É neste ambiente opressivo e deprimido que Aung San Suu Kyi acompanha a mãe no hospital da capital. No entanto, a presença da filha do "pai da pátria" não passa despercebida e rapidamente Suu Kyi se vê mergulhada no movimento de contestação, iniciado pelos estudantes mas à qual se juntam muitos intelectuais e o povo anónimo, que ganha coragem para mostrar a sua indignação. A ditadura não sabe como agir. O General Ne Win demite-se e fala em eleições. No entanto, a oito (8) de agosto (8) de 1988 tem lugar um terrível massacre de mais de 3000 pessoas, naquela que ficou conhecida pela Revolta 8888. Não era possível pensar em abandonar o país. A 26 de agosto, naquele que viria a ser o seu primeiro discurso, Rangum paralisa quando a multidão se junta em volta do Templo de Ouro. Suu Kyi sabe que o facto de ter saído do país e, mais grave, de ter casado com um estrangeiro, fazem com que muitos a olhem com desconfiança. E enfrenta as críticas sem medo: «Vou ser honesta convosco desde o início. É verdade que vivi no estrangeiro por um longo período. Também é verdade que casei com um estrangeiro. Mas isso não quer dizer que não ame o meu país. Esta revolta é uma luta nacional. Eu sou filha do meu pai e esta não é a altura para pensarmos em nós». Sobre este discurso afirma Moe Thu, da LPD «Foi um discurso que nos fez acreditar que Aung San Suu Kyi era a verdadeira líder do país». 1 Neste momento histórico estão presentes os seus filhos, Alexander e Kim, acompanhados por Michael. Em setembro de 1988 muitos dos apoiantes da democracia juntam-se na formação de um novo partido a que chamam Liga Nacional para a Democracia e Suu Kyi é a sua Secretária Geral. Defendem a democracia, a política da não violência e a desobediência civil, claramente inspirados por Mahatma Ghandi e pelo Budismo. A campanha decorre num clima de grande intimidação até que, a 20 de julho de 1989, Aung San 1 The Choice. Documentário sobre a vida de Aung San Suu Kyi.

https://www.youtube.com/watch?v=1_IjNKT_T5o


Suu Kyi é colocada em prisão domiciliária. No entanto, apesar da sua prisão, a Liga Nacional para a Democracia apresenta-se a eleições e os militares são surpreendidos pelos seus resultados. Anulam as eleições e prendem a maioria dos recém-eleitos. O preço da Liberdade «Nada é de graça e se quiseres alguma coisa valiosa, tens de pagar o seu preço.» 2 «Eu gostaria muito de ter estado com a minha família, de ter visto os meus filhos crescer, mas não tenho dúvidas de que tinha de escolher ficar aqui com o meu povo.» 3 No seu primeiro grande discurso no Templo de Ouro, em junho de 1988, perante uma enorme multidão, a presença de Michael, Alexander e Kim, então com 16 e 11 anos respetivamente, foi muito especial. Embora muito avessa a falar da sua vida privada e mais ainda de sentimentos, Suu Kyi confidencia no documentário The Choice: «Falámos sobre o meu envolvimento na política e ele disse que achava que eu me devia envolver.» 4 Michael soube, desde sempre, que a sua mulher tinha um compromisso moral com o seu povo e que este se sobrepunha a todos os outros. Diz Michael "Ela previu o que nos ia acontecer 20 anos antes, na véspera do nosso casamento. Não foi um flash ou uma intuição. Foi o saber que, algures no tempo, teria de servir o seu Povo."5 No entanto, apesar do apoio dado, não era possível imaginar, naquela altura, o sabor amargo que esta escolha traria a esta família durante tantos anos. No primeiro Natal após a primeira prisão domiciliária, Michael, embora sem os filhos, pôde visitar a sua mulher. A chantagem exercida era tremenda. «A família é muito especial. Quando a família é separada não é bom, nunca é bom».6 O sofrimento contido nesta resposta mostra o que lhe vai no coração. Por várias vezes foi oferecida a Aung San Suu Kyi a possibilidade de abandonar o país. Estava presa numa gaiola de porta aberta para sair e nunca mais entrar. A escolha de ficar era feita diariamente. Michael Aris, seu dedicado marido, desempenha um papel fulcral, não deixando que a luta da sua mulher, presa num país que se fechara a todos, seja esquecida. Suu Kyi afirma no seu discurso em 2012 ao comité Nobel «Ser esquecida é morrer um pouco».7 Michael não permite que a esqueçam. Em outubro de 1990 recebe o Prémio Rafto para os Direitos Humanos, em julho de 1991, o Prémio Sakarov do Parlamento Europeu e, três meses depois, em outubro do mesmo ano, o Prémio Nobel. Aperta-se o cerco ao governo de Rangun que não sabe como lidar com esta mulher que se torna cada vez mais incómoda. Oferece-lhe, mais uma vez, a possibilidade de 2 Aung San Suu Kyi; Lady of No Fear ; www.youtube.com/watch?v=7KuA_GY9Gkc 3 The Choice. Documentário; https://www.youtube.com/watch?v=1_IjNKT_T5o 4 Idem 5 Idem 6 Idem 7 http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/peace/laureates/1991/kyi-interview.html

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) sair para receber o prémio em Oslo. Sabendo que não poderia voltar ao seu país, Su Kyi recusa. «Escolhi não ir receber o prémio porque achei que não era correto». Cabe a Alexander, o seu filho mais velho, proferir o discurso de aceitação. O mundo acorda para esta causa e a luta pela democracia na Birmânia deixa de ser entre a ditadura, Suu Kyi e os seus companheiros, mas passa para a cena internacional. No entanto, e apesar da atenção mediática, Suu Kyi só será libertada definitivamente em 2010. Desde a sua primeira detenção em 1989 até à sua libertação definitiva em 13 de novembro de 2010, Aung San Suu Kyi esteve mais de 15 anos em prisão domiciliária. O seu compromisso com o povo, com a democracia e com os Direitos Humanos é a energia que a faz ultrapassar os obstáculos mais difíceis e dolorosos. Um dos mais duros aconteceria em 1999. Embora seja sempre parca em palavras quando se trata de assuntos pessoais ou sentimentos, mesmo com os mais próximos, a prova mais difícil por que terá passado terá sido a doença e morte do seu marido Michael no dia 27 de março, exatamente o dia em que faria 53 anos. Terá dito à empregada com quem partilhara os longos anos de prisão domiciliária: «Perdi a pessoa mais preciosa que tinha na vida». 8

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Continua a andar! «Ela não é só a combatente, ela é a Comandante» 9 ...Walk on! Walk on! What you got, they can’t steal it No, they can’t even feel it Walk on! Walk on! Stay safe tonight… (Walk On U2)

Libertada em 2010, com os olhos do mundo postos nela e no seu país, torna-se possível sonhar com a democracia. Nas eleições de 2012, a Liga para a Democracia teve uma votação esmagadora para a Câmara Baixa. Um passo importante, num país que continua dominado por militares pouco sensíveis aos valores da democracia. O mundo olha para ela e o seu povo também. Suu Kyi não gosta desta exposição excessiva. «Estou muito reconhecida pelo apoio que as pessoas me têm dado e, embora aceite, ultimamente não é a mim que apoiam mas sim à causa que eu sirvo. ( ) O que tenho dito em todos os discursos de campanha é que as pessoas não têm de depender

8 The Choice. Documentário; https://www.youtube.com/watch?v=1_IjNKT_T5o 9 Aung San Suu Kyi Lady of No Fear ; https://www.youtube.com/watch?v=7KuA_GY9Gkc


de mim ou de qualquer outra pessoa para conseguirem as mudanças que querem. Têm de ser eles próprios a fazer as mudanças que desejam, tomar parte nos processos políticos ( ).» 10 Aung San Suu Kyi na campanha eleitoral de 2012 e nos anos seguintes, fala constantemente de reconciliação contrapondo-a à confrontação ou vingança. «O que os generais vão ter de perceber é que o futuro deste país é também o seu futuro. ( ) Temos de convencer os generais de que temos de trabalhar em conjunto.»11 Outros antes dela mostraram que vale a pena tentar. Suu Kyi, a Senhora, como carinhosamente o povo a trata, sabe que caminho quer construir com o seu povo mas também sabe que: «Isto é somente o início do caminho para a democracia e não podemos dar por adquirido o que até agora se conseguiu.»12 Na luta pela Democracia passou mais quinze anos da sua vida em prisão domiciliária e talvez por isso possa afirmar com tanta segurança e conhecimento de causa que «A única prisão real é o medo. E a única liberdade real é a liberdade de não ter medo.» A free bird... which is just freed used to be caged now flying with an olive branch for the place it loves. “A free bird toward a Free Burma” in In the Quiet Land, por Aung San Suu Kyi13 Francisca Assis Teixeira (Co-Fundadora AU)

10 Idem 11 http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/peace/laureates/1991/kyi-interview.html 12 Idem 13 http://www.burmatoday.net/burmatoday2003/2003/06/030609_suukyi.htm

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O Mestre da Reconciliação Desmond Tutu visto por Rui Nunes da Silva Já todos tínhamos lido e estudado muito sobre a sabedoria e o amor que a sua presença transbordava, mas quando, naquele dia 25 de maio de 2012, aquela figura pequenina e enérgica, a tocar o cómico, surgiu por entre a comitiva que o acompanhava até à sala onde nos encontrávamos, uma luz irradiou à vista de todos. Era como se tudo o que tínhamos vivido até ali convocasse para aquele momento, cada seminário quinzenal desaguava naquele instante, cada conversa começada chegava à sua conclusão, cada abraço trocado ganhava novo significado. O longo mas transformador percurso da Academia Ubuntu acabava formalmente ali, onde tudo agora de facto começava, numa ironia inacreditável para aqueles que a estavam a viver. O embaixador da paz, o mestre da reconciliação, o inspirador que tinha servido de referência para todos nós, juntamente com Nelson Mandela e Martin Luther King, materializava-se à nossa frente para fechar a primeira edição da Academia Ubuntu entregando a todos os diplomas de participação. Dias antes tínhamos recebido a notícia inesperada que Desmond Tutu estaria em Portugal, a convite da Fundação Calouste Gulbenkian, para participar na conferência “Diálogos sobre a Paz e o Desenvolvimento Sustentável” e que, por generosidade daquela instituição parceira, seria possível a realização de um encontro privado com a Academia Ubuntu que, por coincidência (se é que isso existe) concluíra na véspera o seu programa. Cumpria-se assim um encontro desejado ao qual o destino tinha trocado as voltas alguns meses antes, aquando da viagem que tínhamos feito à Cidade do Cabo, e na qual uma audiência programada se tinha gorado por motivos de agenda do arcebispo. Desmond Tutu é uma figura incontornável para a Academia Ubuntu. Como "guardião" da filosofia Ubuntu, é um dos inspiradores de todo o projeto e talvez tenha sido até o primeiro a atingir esse estatuto. «Ubuntu é a essência do ser humano. Fala-nos do facto que, sozinho, ninguém pode existir como ser humano. Lembra-nos da nossa interdependência», pode ler-se na primeira definição de Ubuntu que é utilizada na Academia e que é uma frase da sua autoria, talvez a melhor para traduzir o conceito de forma simples. Por essa razão, é-lhe dedicado um papel essencial no percurso formativo da Academia Ubuntu, não apenas pelo muito que escreveu sobre Ubuntu, mas muito mais por aquilo que fez para que este se consumasse, e de que maneira, aos olhos de todos. Na África do Sul, Desmond Tutu foi durante anos a voz dos muitos que se achavam destituídos dela, sempre lutando para que essa sua voz não fosse substituída por violência idêntica à do opressor. Nos anos de dor e de luto que se viveram presidiu a um número infindável de funerais dos que pereciam mostrando a sua enorme coragem para se colocar na linha da frente e defender a dignidade humana, suprimindo a violência

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latente que sempre se adivinhava. «Ele era a voz e a consciência dos oprimidos – assim como a consciência daqueles que os oprimiam» (Mike Nicol, 2006). Dele se ouviu pela primeira vez a referência à Nação Arco-Íris e foi por ela que lutou com esperança, durante tantos anos, aceitando tornar-se porta-voz da injustiça do apartheid para todo o mundo, causa que lhe valeu o Prémio Nobel da Paz em 1984, contribuindo decisivamente para o sonho que preconizou. Mas foi preciso esperar dez anos para ver o sonho começar a acontecer. Apesar da euforia, o Arco-Íris que idealizava tinha que nascer da reconciliação e o processo seria extremamente doloroso. Com a eleição de Mandela veio de pronto o pedido inevitável para que fosse ele a presidir à Comissão Verdade e Reconciliação do novo país. A demanda de colocar frente a frente vítimas e opressores, para que estes se pudessem retratar perante as narrativas de violência ditadas pelos primeiros, era o passo necessário mas penoso que tinha que ser dado. O país e mundo não esquecerão as sessões interrompidas pelas lágrimas vertidas por Desmond Tutu prostrado sobre a mesa de audiências, incarnando assim a dureza e a agonia que a Comissão representava. Algo que sem ele jamais teria sido possível levar a cabo. Apesar disso, podemos hoje ler as suas palavras: «Eu sabia que o fim do apartheid seria um teste ao próprio Ubuntu. No entanto, nunca duvidei do seu poder conciliador» (Desmond Tutu, 2007). Nas mentes dos participantes da Academia Ubuntu, os que estiveram presentes e os que ouviram os relatos, ressoarão sempre as palavras que, com o seu riso contagiante, nos reservou naquele final de tarde na Fundação Calouste Gulbenkian: "Às vezes dizem que há VIP’s [Pessoas Muito Importantes]. As outras pessoas ficam nas filas demoradas enquanto os VIP’s percorrem as passadeiras vermelhas e toda a gente prepara coisas para eles. Ah! Não são muitas as pessoas que são VIP’s, mas toda a gente é um VSP [Pessoa Muito Especial]. Portanto, quando acordarem de manhã, olhem-se ao espelho (não se assustem muito com o que vêem...) e digam: Ei! Eu sou um VSP! Eu sou uma Pessoa Muito Especial! E saiam à rua e ajam como pessoas muito especiais." Rui Nunes da Silva (Formador AU)


O Líder da Não Violência Mahatma Gandhi visto por Paula Almeida Para alcançar a personalidade e a profundeza de um ser humano como Gandhi, começo por homenageá-lo com uma frase de Leonardo da Vinci: “Fico impressionado com a urgência de fazer. Saber não é suficiente, devemos aplicar. Ter andado não é suficiente, temos de fazer.” Foi nesta ânsia de transformação que Gandhi viveu, uma ânsia que nunca desassocia o corpo da mente, uma ânsia de caminhos paralelos, caminhos comuns, em que o material se torna imaterial em prol do ser humano, com uma noção clara de que todo o homem é ser de cuidado para gerar cuidado. Gandhi acredita fortemente nesta realidade. Revisitou o seu interior para aclamar a beleza do ser humano e do amor, que este merece, em qualquer tempo e modo, em especial no presente do indicativo. Esta noção autoconsciencializou-o para profetizar esta demanda: «A minha vida é um todo indivisível, e todos os meu atos convergem uns nos outros; e todos eles nascem do insaciável amor que tenho para com toda humanidade.» Esta ação-reflexão-ação foi uma constante na vida de Gandhi, em vários campos de atuação tais como a África do Sul, nas sociedades de grandes contrastes culturais indianas, ou na exploração injusta dos proprietários contra os trabalhadores de tecelagem na índia. Gandhi assumiu ser e estar em nome dos oprimidos. Toda a sua postura representava uma harmonia espiritual, que devastou caminhos árduos e obstáculos duros como o preconceito, o desrespeito, a violência e o uso exacerbado do poder. Todas estas ações cabiam dentro de outros seres humanos, que ele acreditava serem dignos de perdão, para recomeçarem. A tolerância e o diálogo são estacas permanentes na “procissão” de Gandhi, estacas contra qualquer tipo de divisão racial, étnica, religiosa e económica. Gandhi inicia sua a viagem de diálogo por vários países, no entanto, onde inicia o Movimento de mudança foi na África do Sul, onde ele próprio viveu arduamente momentos de grandes discriminações, onde se deparou com o atentado à sua vida e à vida humana, espaço de confronto, espaço de consciencialização, mas também, espaço de início de várias transformações. Nestes vários reboliços na África do Sul Gandhi viveu um episódio de discriminação racial, quando foi expulso de um compartimento da primeira classe de um comboio, por não ceder o lugar a um branco sendo mandado para a terceira classe, lugar reservado aos negros, mestiços e indianos, segundo a lei sul-africana. Após este incidente Gandhi verbalizou: «O perdão é ornamento do valente», um episódio que o tornou mais voraz na ânsia de harmonizar as ligações, de equilibrar os direitos e deveres através do ouvir e dos seus próprios retiros espirituais, baseado no

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respeito por todas as religiões tendo sempre consigo guias espirituais diferenciados, como por exemplo, leituras hindus e cristãs, para as suas meditações diárias. A África do Sul representou, para Gandhi, o início da sua ação para com o mundo, tendo exercido a profissão de advogado, que assumiu como missão, dizendo: «Eu tive uma aprendizagem, que me levou a descobrir o lado melhor da natureza humana e entrar nos corações dos homens. Eu percebi que a verdadeira função de um advogado era unir rivais de festas diferentes.» Gandhi apresenta-se como ícone da paz, paz interna e gerador da paz. Criou o lema da não-violência para todas as manifestações populares e encontros privados. De volta à Índia, Gandhi passou a exercer o papel de consciencializador da sociedade Hindu e Muçulmana, na luta pacífica pela independência Indiana, baseada no uso da não-violência, que se baseava na desobediência civil (Movimento de Não Cooperação). Gandhi rejeita qualquer tipo de movimentação brusca e opressiva, quer física, quer verbal. Declara que a força da alma e do amor são o elo de ligação de paz e harmonia entre as pessoas. Nesta ótica, Gandhi sublinha várias vezes que «A força não provem da capacidade física. Provem de uma vontade indominável.» Uma vontade que ele usava como ornamento bélico, como armadura de paz contra todos os processos violentos, onde a inferiorização massiva do ser humano fosse declarada, como por exemplo, na luta pacífica pela independência Indiana. Gandhi tornou-se símbolo de esperança e luz para muitos oprimidos e desesperados, torna-se também num escudo civil para as questões de grandes injustiças. Estou certa de que a verdade do seu ser e estar despertou muitos sonhos adormecidos. Alerta de forma pacífica os “donos” do poder para uma intervenção mais igualitária, com palavras de ação como estas: «Um covarde é incapaz de demonstrar amor. Isso é privilégio dos corajosos.» Quando um sonho se realiza, o termo “outrora” perde a sua essência, no entanto, eu quero felicitar a sua existência, pois é o caminho que dá origem a uma concretização. Gandhi retrata a possibilidade de vários sonhos e caminhos para várias concretizações. Acredito na doação gratuita de Gandhi. É nesta sua forma de atuar no mundo, que ele é importante para mim e para toda Academia Ubuntu. Torna-nos maiores no pensamento e na ação, maiores na capacidade de observar o exterior e o interior. Enquanto no exterior se dá o alargamento horizontal, no interior observamos as várias bifurcações com direito a um olhar crítico, responsável, mas também disponível para o diálogo. Nas várias representações dá-se também a descoberta da nossa essência, a essência que traz uma forte consciência de agir com brio e verdade. Gandhi expressa essa verdade em todos os seus atos, verdade acompanhada pela sua simplicidade, refletida no seu modo de vida (refletida também na casa/museu, onde viveu durante as suas estadias em Bombaim). Simplicidade, que não abdicou, mesmo no encontro com George V em Londres, apresentando-se vestido como usualmente.


Gandhi renova-se para melhorar todos os ditos e ações, e, incansável, pronunciou «A alegria está na luta, na tentativa, no sofrimento envolvido e não na vitória, propriamente dita.» A Academia Ubuntu, na sua lógica, na sua missão de “gerar construtores da paz”, de nos tornar ligadores de contrastes culturais, de nos fazer ser e dar som aos microfones dos mensageiros unificadores, não podia deixar de estudar, conhecer a fundo este líder que é Mahatma Gandhi. Este grande líder chama-nos à reflexão, desassossega qualquer tipo de acomodação, faz-nos inquietar com as atrocidades que diariamente acontecem, faz-nos repensar e, sem qualquer presunção, dar lugar à humildade. A personalidade de Gandhi e a sua força interior faz eclodir em nós o verdadeiro amor, a que todos somos chamados, o amor ao próximo. Ressuscita o barulho necessário para a ação transformadora, para o serviço, para querer mudar. A primeira missão é silenciar os vários tipos de barulhos internos. Como? Tendo como missão secundária de silenciar os meus outros Eu’s -“ Eu sou porque tu és”, tendo a capacidade de desencadear uma onda de paz interior em cada Homem e gerar paz, só com o estar presente. Um estar tateável e vibrante como o espaço mundo e tudo o que o constitui, desde o ser rastejante, ao Homem de pé. Gandhi chama-nos à razão, desperta-nos para a grandeza que existe em cada um de nós e dá-nos as coordenadas dizendo-nos: «O amor nunca faz reclamações, dá-se sempre. O amor tolera; jamais se irrita e nunca exerce vingança.» Para mim, ter na Academia Ubuntu, o líder Gandhi como referência, é uma riqueza impossível de traduzir em palavras e todo o dito será pouco para tamanho caráter e espírito missionário. Toda a sua força servidora, paciente e espiritual reveste-nos de capacidade transcendental e despoja-nos de qualquer ato contra o ser humano e toda a vida contida no ecossistema. Paula Almeida (Membro AU 2ª edição)

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O Salvador de Bordéus Aristides de Sousa Mendes visto por Nila Amado A Academia Ubuntu tem sido uma ferramenta extraordinária para o nosso desenvolvimento social e humano. A cada sessão apresenta-nos uma nova personagem que é capaz do nos inspirar, fazendo-nos acreditar veementemente que o mundo é feito de pessoas comuns, cujos feitos são extraordinários. E a beleza dessas personagens prende-se com o facto de que tudo o que fizeram ou fazem ser em função do outro. Porque nelas há um sentido de dever para com a humanidade. E a esse dever, chama-se: Ubuntu. Filosofia que tantos homens carregam em si, cujo conceito até podem desconhecer, mas os seus atos comprovaram que o Ubuntu existe em cada ser humano. Foi com a missão de disseminar o Ubuntu, que a Academia nos levou até à "Cidade Invicta". Ainda era inverno e o frio sentia-se à medida que nos íamos afastando da capital, mas o desejo de partilha e aprendizagem acalentava-nos a alma. E foi com o calor dos nossos colegas do Porto que fomos recebidos ao chegar à nossa segunda casa mais a norte. Essa sessão foi pautada pela surpresa e pelo encorajamento, desde logo pela maneira como fomos acolhidos, que me fez perder as palavras. Na minha alma ecoam ainda o bater das palmas com as quais fomos saudados, os cumprimentos em roda, os sorrisos a rasgar as faces, os balões coloridos a voar presos pelas mãos, numa verdadeira aura de apoteose. Tamanho era o êxtase, que até mesmo a chuva que levemente pranteava sobre as nossas cabeças, se comoveu perante aquele ambiente de festa. E para festejar o encontro as mãos ergueram-se num brinde com vinho do Porto. Centro e norte, enfim juntos. Foi um dia repleto de momentos cheios de beleza, desde o passeio fugidio pelas ruas do Porto- abrigados por guarda-chuvas e capuzes - à vista sobre a ponte que liga as duas margens com o imponente Douro a desfilar por de baixo. Soube a pouco. As horas fugiram dos ponteiros e o tempo avançou velozmente. Todavia, os nossos anfitriões continuaram a surpreender-nos e além de nos oferecerem a sua hospitalidade, também prepararam um roteiro com os pontos de paragem obrigatória para que, quando os ponteiros abrandassem pudéssemos, com calma, apreciar a bela "Invicta". Após o passeio foi-nos apresentada a figura que seria o nosso próximo líder de estudo: Aristides de Sousa Mendes. Até então, para mim era um desconhecido. Naquele dia, em conjunto com todos os alunos da Academia, tive a oportunidade de conhecer o homem que salvou mais de trinta mil vidas e também o realizador Francisco Manso que o imortalizou no seu belíssimo filme. A partir desse dia, passei a conhecer o homem que foi capaz de pôr a vida acima de todas as coisas, anulando-se a si mesmo, para que outros pudessem sobreviver. A vida que ele pôs no altar não era a sua, mas sim a de todos aqueles cuja

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vida estava em risco. Deu de si o melhor que tinha: força, coragem, audácia, perseverança, altruísmo, generosidade. Enfrentou o medo, desafiou Salazar e lutou por aquilo em que acreditava. Ele acreditou na vida, e por essa razão arriscou a sua carreira diplomática, a sua vida social e familiar, concedendo o direito aos vistos (na verdade à vida) àquelas pobres almas que se refugiaram em Bordéus. O Cônsul, como era apelidado, tornou-se num herói e o seu nome foi gravado na História da Humanidade. Todavia, como acontece com tantos outros, aqueles que fazem o bem são os mais perseguidos. Sousa Mendes não escapou a essa dura regra, tendo sido afastado do seu cargo, atividade profissional e carreira diplomática por não ter cumprido ordens. O homem que salvou mais de trinta mil pessoas foi ainda alvo de um processo disciplinar e incapacitado de exercer a sua profissão como advogado. E nem o facto de ter agido, segundo ele, em defesa dos valores éticos e humanitários, lhe valeram uma sentença menor. O "Salvador de Bordéus", como ouso intitulá-lo, viveu os últimos anos da sua vida com graves problemas financeiros e a 3 de abril de 1954 deu o último suspiro, despojado praticamente de tudo e sozinho. Depois do retrato realizado por Francisco Manso no filme O Cônsul de Bordéus, aquele que é reconhecido como o "Justo entre as Nações" jamais me voltou a passar despercebido. Tanto que me lembro, com um leve sorriso nos olhos, de passar pelo metro do Marquês de Pombal e ver, numa pequena exposição, o seu nome exposto como uma referência no que toca ao tema da paz. E a cada vez que me deixava guiar pela passadeira rolante daquela estação, os meus olhos apenas se focavam naquele nome: Aristides de Sousa Mendes. O desconhecido que se tornou meu conhecido. O "dia no Porto", tal como o lembro quando vasculho as minhas lembranças, foi pautado pelo calor do inverno e pela coragem no meio do medo. Gravados já estão todos os pedaços daquele dia, desde o mítico encontro como os Ubuntus do Porto, passando pelo passeio abençoado pela chuva, ao privilégio de ouvir e ver o depoimento de Francisco Manso, quer através das suas palavras, quer do seu filme, que enaltece o grande homem e líder que foi Aristides de Sousa Mendes. Levo comigo desse seminário o acreditar que cada um nós tem o poder de transformar a realidade e dar-lhe mais cor, mesmo que isso implique o apagar da cor em nós (pela sociedade). Ser Ubuntu é ser pelo outro. Por isso há que se ser inconformado, quando todos se conformam que não há mais nada a fazer. Há que saber erguer os braços e lutar. E há que se saber reconhecer que mesmo que lutemos nem sempre seremos reconhecidos. Nila Amado (Membro AU 2ª Edição)


ANDAR III ) KIT PEDAGÓGICO

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) Kit Pedagógico Este é o andar da biblioteca e ludoteca da AU, onde guardamos livros, filmes e outras ferramentas pedagógicas que utilizamos. Um local amplo, com poucas divisões, permitindo multiusos. Distribuído com recantos de silêncio onde nos poderíamos surpreender e deleitar com livros como o "Legado de Mandela", com mesas junto às janelas para trabalhos de reflexão em grupo, com espaços vazios onde se poderiam treinar, por exemplo, encenações e, ainda, uma simples mas confortável sala escura onde seriam projetados filmes inspiradores que tanto ensinam, movem e fazem emocionar. Na Academia a diversidade de métodos é estimulada de modo a responder aos diferentes estilos de aprendizagem dos participantes, estes são apenas alguns deles.

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Filmes

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Invictus Invictus é um filme central no programa da Academia, que ilustra na perfeição o conceito do espírito Ubuntu, a liderança servidora de Mandela e o caminho de reconciliação que nação Sul-Africana teve que percorrer depois de décadas profundamente dividida pelo apartheid. É um relato inspirador sobre uma equipa e um povo unidos por um objetivo maior.

Mandela: Longo Caminho Para a Liberdade Nelson Mandela é um modelochave para a Academia Ubuntu e este é o relato da sua extraordinária vida, desde a sua infância numa pequena aldeia até à sua eleição como Presidente da África do Sul. Baseado na sua autobiografia, o filme mostra-nos o político ativista pela defesa dos direitos humanos e pelo fim do Apartheid, mas também o homem simples, meigo, brincalhão e de sorriso fácil que era Madiba.

Mandela: Meu Prisioneiro, Meu Amigo Baseado nas memórias do guarda prisional de Nelson Mandela em Robben Island, a famosa ilha-prisão, Mandela: Meu Prisioneiro, Meu Amigo acompanha a improvável mas profunda relação de amizade que se estabeleceu entre os dois homens, através de anos de convívio diário e a transformação das suas formas de pensar, abordando um tema chave da Academia: perceber o bem que existe nos outros e as suas motivações.

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Um Amor em África (In my Country) Um filme utilizado no contexto da Academia para ilustrar a realidade das Comissões de Verdade e Reconciliação. O que muitos acreditaram tratar-se apenas de um subterfúgio para os culpados escaparem sem punição, foi mais tarde entendido como um momento crucial que permitiu exorcizar os fantasmas do Apartheid estabelecendo os princípios de uma justiça restaurativa.

Gandhi Este é um filme que, através da figura de Mahatma Gandhi, celebra os princípios da não-violência, da tolerância religiosa e da liberdade, valores transversais ao espírito Ubuntu. Gandhi não governou nenhum país, mas conseguiu com estes valores o que ninguém tinha conseguido antes: conduziu uma nação para a liberdade e foi a esperança de todo um povo.

Um coração dividido (The Lady) The Lady relata como o amor, a devoção e a compreensão humana conseguem resistir a longos períodos de separação e à ameaça de um regime hostil. É um filme imprescindível para a AU pois aborda a temática da liderança feminina, pacífica e resiliente, na figura de Aung San Suu Kyi, que se encontra no centro do movimento democrático de Burma (Birmânia).

Aristides de Sousa Mendes O Cônsul de Bordéus O filme sobre Aristides de Sousa Mendes desvenda a consciência e a coragem de um homem que ousou desafiar Salazar. Utilizado para demonstrar os dilemas que se enfrentam na tomada de decisões e como, muitas vezes, pensar no bem maior implica arriscar o nosso bem estar e o dos que nos estão próximos.

Páginas de Liberdade Na Academia aprendemos a importância da nossa história de vida e do seu relato, celebrando a maravilha de cada um. Esta é a história de uma professora que desafia os seus alunos a contarem as suas próprias histórias e ouvirem as histórias dos outros, reclamando as suas vidas despedaçadas e mudando os seus mundos, dando-lhes o que eles mais precisam: uma voz própria.

Colisão (Crash) No contexto da Academia a interculturalidade e da gestão de diferenças são algumas das bases da matriz Ubuntu. Ousado e polémico, este drama urbano gira à volta das encruzilhadas inconstantes de um elenco multi-étnico, numa luta constante pelo domínio dos seus medos e preconceitos.


Os Coristas Sujeitas ao autoritarismo excessivo do diretor da escola, este filme relata a história de crianças que apresentam comportamentos turbulentos e do seu professor de música. Para as inspirar e fortalecer o seu desenvolvimento, tenta despertá-las para a música, criando um coro e disseminando os valores da comunicação, da entreajuda e do estar aberto e disponível para os outros, pilares da filosofia Ubuntu.

Quem se importa? O documentário “Quem se Importa” mostra o trabalho de 18 empreendedores sociais cujas ideias visionárias já transformaram milhões de vidas e é um verdadeiro manual de empreendorismo social. Um manual que inspira as pessoas a transformarem o mundo, num filme que nos ensina que tudo é possível, seguindo a máxima de Nelson Mandela: “tudo parece impossível até que seja feito.”

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Livros

O Legado de Mandela – Quinze lições de vida, amor e coragem Richard Stengel Editora Planeta Manuscrito

Um longo caminho para a Liberdade Nelson Mandela Editora Planeta Manuscrito

Nelson Mandela – Arquivo Íntimo Nelson Mandela Editora Objectiva

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Mandela – A Construção de um Homem António Mateus Oficina do Livro

Nelson Mandela - Uma Lição de Vida Jack Lang Editorial Bizâncio

Um Arco-íris na Noite Dominique Lapierre Editora Planeta Manuscrito

Ubuntu! Uma tradição africana de colaboração e trabalho de equipa Bob Nelson e Stephen Lundin Gestão Plus Editora

Liderar como Mandela Martin Kalungu-Banda Editora Prime Books

Mandela – O rebelde exemplar António Mateus Editora Planeta Manuscrito

As mais belas Fábulas Africanas Nelson Mandela Editora Alfaquara

No Future Without Forgiveness Desmond Tutu Editora Image

Feitos para a Bondade Desmond Tutu Editorial Bizâncio

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Aung San Suu Kyi - A Voz da Esperança Alan Clements Editora Pedra da Lua

Eu tenho um Sonho – A Autobiografia de Martin Luther King Clayborne Carson Editorial Bizâncio

Gandhi – A Minha Vida e As Minhas Experiências Com a Verdade Mohandas K. Gandhi Editorial Bizâncio

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Esta noite a Liberdade Dominique Lapierre, Larry Collins Círculo de Leitores

Manual para Transformar o Mundo Filipe Santos, Isabel Lopo de Carvalho, João Cotter Salvado Fundação Calouste Gulbenkian

Aristides de Sousa Mendes, Um Herói Português José-Alain Fralon Editorial Presença

O Cônsul Desobediente Sónia Louro Editora Saída de Emergência

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) Fé – Palavras e Inspiração de Desmond Tutu QuidNovi Editora

Sonho – Palavras e Inspiração de Martin Luther King Jr. QuidNovi Editora

Links Academia Ubuntu www.academiaubuntu.org Nelson Mandela www.nelsonmandela.org www.nelsonmandelachildrensfund.com www.mandeladay.com/ p

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Aung San Suu Kyi www.suufoundation.org Gandhi www.gandhifoundation.org www.gandhipeacefoundation.org Desmond Tutu www.tutu.org www.tutufoundationuk.org Martin Luther King www.thekingcenter.org www.thememorialfoundation.org www.mlkculturalfoundation.org Aristides Sousa Mendes www.fundacaoaristidesdesousamendes.com

Sonho – Palavras e Inspiração de Mahatma Gandhi QuidNovi Editora


ANDAR IV ) CONTEXTOS ÚNICOS E ESPECIAIS

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) Contextos Únicos e Especiais

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As aprendizagens mais significativas da nossa vida são feitas em contextos informais e a Academia procura proporcionar experiências únicas e desafios coletivos que sejam marcantes, inspiradores e com conteúdos relevantes de liderança servidora. Pretende desenvolver atividades práticas, proporcionando experiências que permitam a reflexão, a discussão, a generalização e a ligação com a vida. Fomos passando por estes contextos ao longo dos sábados regulares e dos fins de semana residenciais. Tivemos a oportunidade de privar com líderes e pessoas-exemplo de vários campos de actividade: desde as artes ao desporto, do trabalho à política ou à intervenção social. Contactámos com espaços tão nobres como o Palácio de Belém, a Fundação Gulbenkian, Serralves e tantos outros. Pudemos usufruir de contextos interpeladores e de excelência que sempre nos motivaram a querermos devolver e multiplicar o que vivemos, a querermos construir uma humanidade melhor e a fazermos mais pelo mundo e pelos nossos pequenos lugares. Porque a Academia é rica nestas experiências, este andar é grande, enorme, quase gigantesco mas, mesmo assim, ainda insuficiente para revelar tudo o que pudemos vivenciar. Aqui deixamos apenas alguns desafios e seminários, bem como os relatos da nossa participação nas comemorações anuais do Dia Mandela e da viagem à África do Sul da AU da primeira edição.


Dias Mandela Nelson Mandela nasceu a 18 de julho de 1918, e esse foi o dia escolhido pela Organização das Nações Unidas - ONU para reconhecer a vida e legado deste grande homem, prémio nobel da paz, referência para a humanidade. O mote são as próprias palavras de Mandela ao dirigir-se à multidão que se reuniu para celebrar o seu 90º aniversário: «Está nas vossas mãos ». De facto, todo o seu legado está nas nossas mãos, está ao nosso alcance fazer do espaço em que vivemos um lugar melhor. Dar mais visibilidade ao internacional “Mandela Day” em Portugal, foi o primeiro embarque da Academia nesta iniciativa internacional, que ao ser-nos proposta fez muito sentido. Dia Mandela 2011 O primeiro “Mandela Day” começou por ser, de algum modo, muito intimista, apesar de termos contado com a presença da comunicação social e o termos vivido em espaços públicos como o Castelo de S. Jorge e o Palácio de Belém onde fomos muito bem recebidos pelo Senhor Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva e a Primeira-Dama, Maria Cavaco Silva. O ponto de partida foi a divulgação de panfletos alusivos ao significado deste dia, mas quisemos fazer algo mais. À hora marcada lá nos encontrámos no Castelo de S. Jorge, com a camisola que nos identifica na Academia (T-shirt preta com o número de cela e ano em que Nelson Mandela foi preso em Robben Island). Este primeiro sinal chamou a atenção e serviu para interpelar e conversar com os transeuntes e turistas - recordo-me da criança que sabia que 466/64 significava o número de prisioneiro de Mandela. Uma vez reunidos num dos miradouros, recitámos o poema Invictus a três vozes e evocámos, à vez, as nossas memórias sobre o que havíamos estudado e o que de melhor guardávamos da vida de Mandela. Saímos dali rumo ao Palácio de Belém, onde éramos aguardados pelo Senhor Presidente da República e a Primeira-Dama. Fomos recebidos, cada um, com um aperto de mão e ouvimos os discursos proferidos pela Filomena Djassi e Ana Tica, enquanto nos refrescávamos com sumos gentilmente servidos. Houve uma simbólica largada de balões nos jardins, ao que se seguiu uma visita guiada ao palácio e fotografia para memória futura, num dos salões mais nobres, onde se recebem altas figuras de estado nacionais e internacionais. Foi um dia inesquecível, com um profundo significado.

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) Discurso do Presidente da República Portuguesa, Prof. Aníbal Cavaco Silva As minhas primeiras palavras são para saudar estes jovens da Academia Ubuntu. É para mim e para a minha mulher uma satisfação receber-vos neste dia tão especial: 18 de julho, o Dia de Mandela. E quero felicitar os responsáveis pela Academia, na pessoa do Dr. Rui Marques, tal como quero felicitar as associações que apoiam este projeto: a Fundação Calouste Gulbenkian aqui representada pelo Dr. Rui Vilar e a Dra. Isabel Mota, e também a Universidade Católica que desde o início apoia este projeto. Um projeto que visa capacitar e formar jovens em liderança para que eles possam ser agentes ativos de mudança nas suas comunidades, nos seus bairros. E levá-los a encontrar formas inovadoras e criativas de integração. Principalmente neste tempo de crise que nós atravessamos, é muito importante afastarmo-nos das formas tradicionais de intervenção social e apostar naquilo que hoje se chama, a Inovação Social. E vocês têm aqui a inspiração desse grande Homem que é Nelson Mandela. Um Homem que passou por muitas dificuldades, viveu grandes sacrifícios, foi tratado muito injustamente, mas sempre recusou a violência. É uma lição para todos nós a vida de Nelson Mandela, e é isso que nós também queremos que vocês levem às vossas comunidades: ajudá-las a transformar, a mudar, a conseguir mais justiça, mais empreendedorismo, mais criação de riqueza, mas p

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recusando sempre a violência. Estou convencido de que a presença na Academia vai trazer novas oportunidades, uma nova capacidade de liderar, e vocês foram escolhidos precisamente pela vossa capacidade de adquirir liderança, a vossa capacidade de resolver conflitos, a vossa capacidade de comunicar e de gente que chega agora à comunidade com uma maior autoestima. Estou convencido, e como foi dito, de que cada um está seguro de que pode vencer, de que as dificuldades podem ser ultrapassadas. Sabem que Portugal é uma nação de muitas nações, e que há uma preocupação de que todos convivam de forma amiga. São muitas as comunidades que existem no nosso país, não é apenas a comunidade africana. Aqui está representada a comunidade africana, muitos membros da comunidade africana, mas existem outras comunidades. Mas não sei se existem muitos outros países em que haja um esforço, um esforço claro para a convivência de todas as comunidades. E penso que este trabalho da Academia Ubuntu, é um trabalho no sentido de vos mostrar que é possível terem sucesso, e tendo sucesso contribuem para uma sociedade portuguesa mais justa, mais empreendedora, e dessa forma, mais rica do ponto de vista cultural. Sabem, eu tive o privilégio de contactar com Nelson Mandela, foi talvez uma das visitas que mais me marcaram. Ele veio a Portugal em 1993, recebi-o como Primeiro-Ministro. Um Homem que tinha passado 27 anos na prisão e que não revelava o mínimo ressentimento, a mínima vontade de vingança. Apostava tudo no diálogo, na negociação, para construir uma sociedade sem apartheid, uma sociedade justa. E por isso, quando há precisamente


três anos eu escrevi um artigo sobre Nelson Mandela, dei-lhe como titulo "Um gigante do nosso tempo" e, de facto, ele é um grande gigante do nosso tempo. Portanto, é grande a vossa responsabilidade, dado que têm como inspirador um Homem com esta grandeza, e por isso se instituiu mesmo o Dia de Nelson Mandela - "Mandela Day", o dia 18 de julho, aquele que hoje estamos aqui a viver. E por isso, eu quero desejar-vos o maior sucesso na vossa vida, mas desejar também o maior sucesso no vosso contributo para melhorar a situação da comunidade em que cada um de vós se insere. Cada um tem um projeto, tem um projeto em prol da vossa comunidade, e é importante que a vossa prova de que valeu a pena este ano, estes finais de semana passados na Academia Ubuntu, a vossa prova de que valeu a pena, está no sucesso do vosso projeto, o vosso contributo para a melhoria do bem-estar, para a maior justiça na vossa comunidade. Se tiverem sucesso, eu estou convencido de que Portugal também terá sucesso. Será um contributo também para a sociedade mais justa, mais próspera, mais solidária que nós desejamos para o nosso país, e por isso eu quero agradecer-vos do coração aquilo que já estão a fazer, e aquilo que certamente irão fazer para a melhoria das relações entre as diferentes comunidades do nosso país. A todos vós o meu muito, muito obrigado.

Dia Mandela 2012 Em 2012 o Dia Internacional Nelson Mandela foi o pretexto ideal para o encontro entre a Academia Ubuntu e a Assembleia da República. Sermos recebidos pelo Dr. Ferro Rodrigues, Vice-Presidente da Assembleia da República, e os Deputados com assento parlamentar, podermos participar numa reunião de trabalho da Comissão de Ética, Cidadania e Comunicação, teve tanto de emblemático como de real oportunidade para trocarmos impressões com aqueles que se propõem defender e lutar por uma verdadeira democracia, onde ninguém é excluído. O lugar certo, as pessoas certas, o tema certo: “liderar é servir e para servir há que conhecer”, e foi esse um dos significados deste feliz encontro. Ficará na memória a visita guiada ao Parlamento, bem como a emoção de entrar pela primeira vez na imponente Sala do Senado. Celebrar Nelson Mandela na casa da democracia portuguesa foi um momento alto para o nosso álbum de recordações. Foi tempo de escuta dos políticos que partilharam como Mandela os inspira, e tempo dos nossos delegados Ubuntus partilharem questões que nos preocupam enquanto jovens afrodescendentes portugueses e jovens migrantes. Finalizámos em festa, ao som da Orquestra Juvenil GeraJazz que, para além de outras peças musicais, nos brindou com uma especialmente escrita para prestigiar o homenageado do dia: Viva Mandela!

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Dia Mandela 2013 Presenças ilustres associaram-se a esta iniciativa e honraram-nos com a sua presença, na Praça do Rossio: A Câmara Municipal de Lisboa, a Embaixadora da África do Sul e uma Delegação dos Trabalhadores, a Alta-Comissária para o Diálogo Intercultural, o grupo de músicos da Orquestra para Todos, a comunicação social, as pessoas que iam passando e que se aproximavam de nós, interpelando-nos sobre o que estava a acontecer. O Rossio transformou-se por um dia na “Praça Mandela”. Durante breves instantes o Rossio ficou mais colorido e Portugal, com a ajuda da comunicação social, despertou para o Dia Mandela, nomeadamente, as instituições que acolheram as iniciativas deste dia, onde acabámos por envolver outros jovens, crianças e idosos, intervindo em diferentes contextos. “Praça Mandela por um dia”: Depois do descerrar da placa e dos discursos houve a largada de 67 balões, e em cada fio ia preso um papelinho com uma ação (que foi desenvolvida por um ou mais Ubuntus naquele dia) que correspondiam aos 67 anos que Mandela dedicou a lutar pelos direitos da humanidade, 67 ações para mudar o mundo em 67 minutos. Este foi o desafio que os Ubuntus abraçaram e desenvolveram: durante uma hora, uma ação numa instituição ou na sua comunidade. E para recordação, cada um dos envolvidos recebeu um postal, com uma frase inspiradora, só possível de ser lida em espelho, numa clara alusão à inter-relação que precisamos de cultivar à nossa volta. O final da tarde foi tempo de nos reunirmos nos jardins da Gulbenkian e ao partilharmos o tanto que tinha sido realizado, testemunhámos a nossa capacidade de nos envolvermos com a comunidade e desenvolvermos ações, que desejamos que não sejam pontuais. Contámos com a presença de alguns convidados e finalizámos com um belíssimo cocktail nos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian. A Academia Ubuntu no Porto juntou-se à “Maior aula de Judo do Mundo”, organizada pela Escola Nuno Delgado, pai da iniciativa “Achieve, collect and give back”. Este é um movimento cívico, que começa em cada um de nós, na perspetiva de consciencializar e alertar para a responsabilidade na formação cívica e desportiva das crianças e jovens. No dia 20 de Julho de 2013, em Matosinhos, os Ubuntus do Porto estiveram presentes no evento, dando o seu contributo nesta homenagem a Nelson Mandela. Eugénia Quaresma (Membro AU 1ª edição. Formadora AU 2ª edição)


À conversa com... ... António Guterres "É muito emocionante e muito estimulante conviver com um grupo tão dinâmico de jovens que claramente sentem vocação para poder servir. Ter uma enorme capacidade de liderança, já perceberem que essa liderança só faz sentido se for posta ao serviço dos outros." Mensagem de António Guterres (segunda edição da AU) Quando a Academia Ubuntu me lançou o desafio de entrevistar o Eng. António Guterres, enquanto Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), estava longe de me inteirar de um tema tão antigo e atual pela sua relevância. Uma coisa é ouvir, muitas vezes sem escutar, as notícias sobre os refugiados de uma forma tão banal - talvez seja necessário pensar numa forma inovadora de informar sobre este velho tema - que acabam por passar ao lado, outra coisa é escutar histórias dramáticas desses mesmos refugiados, contadas por uma pessoa que trabalha e vive uma boa parte do seu tempo a lidar com eles. Por um lado, foi uma experiência extraordinária, onde, num ambiente sem salamaleques, tive a oportunidade de lhe endereçar algumas perguntas que, em conjunto com outras perguntas dos meus colegas, tornaram um painel interessante de trocas de ideias, experiências e relatos de alguns factos marcantes. Até esse dia, refugiado para mim era um termo tão abstrato como para aqueles que só o conhecem pelos jornais e televisão. Hoje em dia, mudei muito a visão que tinha. Por outro lado, o que não esperava era ouvir histórias que me deixaram, além de triste e pensativo, a sentir muito ignorante em relação a uma certa realidade africana. Como cabo-verdiano, portanto um africano insular, sempre convivi com partidas, saudades, emigração (um outro tipo de refúgio), mas felizmente nunca me confrontei com aquilo que se pode considerar “ser refugiado”. Aliás, eu mesmo tive que abandonar o meu país muito novo para poder prosseguir os estudos, confrontando-me com os mais diversos problemas de integração nos parâmetros sociais, documentação, entre outros. Contudo, como disse anteriormente, nada que se possa comparar à situação de um refugiado. Tendo em conta alguns episódios relatados, ficaram sobretudo sensações inquietantes: primeiro, vivo numa África à margem das outras Áfricas, onde tudo é diferente do habitual. As histórias e as realidades dos países ao lado são contadas como se fossem deles e não nossas. Tenho uma sensação semelhante quando vejo a indiferença de muitos países em relação aos imigrantes clandestinos que fazem do Mediterrâneo e do Atlântico o cemitério dos vivos; segundo, ao compreender “o que faz exatamente o ACNUR”, a existência de um órgão destes nas Nações Unidas e os esforços para apoiar

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) e proteger os refugiados do mundo inteiro são reconfortantes. Mas, por outro lado, não deixa de ser inquietante saber que a situação de refugiado esteve presente na nossa realidade ao longo da história, fazendo-me pensar que é (im)possível erradicá-lo. No entanto, se educássemos a sociedade para que cada um olhasse para o outro como um espelho da sua imagem, poderíamos acabar com refugiados no mundo. Por último, não podia deixar de fazer referência àquela história contada pelo Dr. António Guterres sobre uma refugiada que andou quilómetros com os filhos, dos quais só sobrou um no final da viagem. Essa história fez-me pensar um pouco nos meus irmãos e nas relações que nós temos. Pensei: fiz bem em deixá-los e vir para Portugal? Algumas respostas tive de imediato, mas a outras o tempo há-de responder-me. Hoje cuido melhor dos que caminham comigo porque não sei se chegaremos juntos ao mesmo destino. Nelson Carvalho (membro AU 2ª edição)

... António Vitorino p

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O Dr. António Vitorino foi Ministro do Governo de António Guterres durante dois anos. Foi várias vezes chamado a outras funções, tendo sido Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares no IX Governo Constitucional (1983-1985), Secretário-Adjunto do Governador de Macau (1986-1987), juiz do Tribunal Constitucional (19891994), Deputado no Parlamento Europeu (1994-1995), onde presidiu à Comissão das Liberdades Cívicas e dos Assuntos Internos, Ministro da Presidência e Ministro da Defesa Nacional no XIII Governo Constitucional (1995-1997) e Comissário Europeu, responsável pela Justiça e Assuntos Internos (1999-2004). Quando se está a caminho de encontrar alguém com um currículo destes e se sabe que se tem a responsabilidade de lhe colocar algumas questões, pensa-se em muita coisa. Na viagem entre o Porto e Lisboa, a caminho da Fundação Calouste Gulbenkian, tive tempo para colocar algumas coisas em perspetiva – sabia que seria uma oportunidade única e queria estar preparado mas, acima de tudo, estar à altura deste desafio. Quando chegámos, encontrei-o no topo das escadas, rosto sereno e afável. Vivemos num mundo em que a nossa maior tarefa é, muitas vezes, a de competir uns com os outros, pelo que tenho para mim que homens saudáveis tendem a ter um certo senso ou sentido de humor, mordaz e pertinente, sobre toda esta corrida por posição. E foi essa a primeira impressão que tive do Dr. António Vitorino: uma pessoa incrivelmente bem disposta e cordial, com um magnetismo absolutamente fantástico no olhar e que o eleva bem acima do seu metro e sessenta de altura. Quando subi ao painel de oradores no auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, não sabia muito bem que tipo de reação teria ao que tinha para lhe perguntar e estava, por isso mesmo, um pouco nervoso. Estamos a falar de uma pessoa que, por tudo


aquilo que é, fez e representa, subiu à estratosfera dos opinion makers, coisa rara em Portugal. Uma pessoa que tem nos seus comentários e opiniões o poder de influenciar a opinião pública em relação a temas fundamentais. Uma pessoa que não foge nem contorna as questões que lhe são colocadas, que é específica e pormenorizada nas suas respostas. Comecei então por lhe perguntar que opções reais tem esta nova vaga de empreendedores sociais, que buscam respostas não-convencionais assentes em processos de educação não-formal, se vêm suprir necessidades reais no contexto da sociedade portuguesa? Depois, com uma plateia cheia de jovens líderes empreendedores, perguntei-lhe que visão tinha para os próximos vinte anos em Portugal e se conseguia desde já antecipar que tipos de mudanças estruturais acontecerão, qual o seu impacto no mercado da Economia Social e se teremos nos responsáveis políticos, respostas fiáveis e inspiradoras. Recordar-me-ei para sempre da sua reação: «Se soubesse que vinha aqui responder a questões tão difíceis... não tinha vindo» – não pude deixar de sorrir e de sentir uma sensação de realização. Em seguida, muito calmamente, deu alguns exemplos de barreiras e obstáculos que ultrapassou, fazendo uma análise dinâmica do tecido social português, do futuro do empreendedorismo social, da sua ligação ao contexto europeu e aos centros de decisão política. Mas a mensagem mais poderosa que deixou, na minha perspetiva, foi a de que as pessoas procuram coisas, realidades e outras pessoas que permitam efeitos mais ou menos imediatos e que o que o preocupa é que temos um obscuro "não-querer", um querer incompleto, vazio da sua força original. Não é uma ausência de liberdade, é uma experiência livre de um fracasso consentido. É por isto mesmo, que temos uma responsabilidade maior. Pelas experiências, pelos testemunhos e pelas vivências que a Academia sempre nos proporcionou, desde o seu momento inicial. Lembro as suas palavras, não raras vezes – «é preciso fazer a diferença no dia a dia, no nosso contexto pessoal, um dia de cada vez». Esta foi toda uma experiência transformadora, um verdadeiro privilégio e uma oportunidade de aprender com um mestre, no verdadeiro sentido da palavra. Deixo-vos com as palavras com que finalizou a conferência, em jeito de "até sempre": «Não tenham medo de crescer (...) e de se cumprirem». Obrigado por tudo, Academia e António! Nelson Soares (Membro AU 2ª edição)

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) Um dia com... ... A Guarda Nacional Republicana

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A participação da Guarda Nacional Republicana (GNR) no projeto Academia Ubuntu, surgiu na sequência da participação do Dr. José Ramos Horta, Prémio Nobel da Paz em 1996, na sessão de apresentação da segunda edição da Academia Ubuntu, no dia 4 de janeiro de 2012. Ficou claro que, enquanto instituição de referência para a construção de um futuro mais seguro, a Guarda poderia não só dar o seu contributo para a formação destes jovens, como também a partilha de experiências poderia enriquecer pessoal e profissionalmente ambas as partes. No fundo, perceber que a construção de um país verdadeiramente livre exige segurança, mas também assumir que todos temos uma palavra a dizer para um verdadeiro ambiente de segurança e bem-estar. O projeto Ubuntu, iniciativa do Instituto Padre António Vieira (IPAV), visa capacitar jovens com elevado potencial de liderança para se constituírem agentes de formação entre comunidades desfavorecidas, ajudando-os a desenvolver competências de liderança e de serviço à comunidade. O elevado sentido de responsabilidade social, decorrente da construção efetiva e permanente do sentimento de segurança do cidadão através da atividade diária desenvolvida por todo o dispositivo da GNR, assume-se como um espírito análogo ao do projeto da Academia Ubuntu. Ubuntu é um conceito que significa: acolhimento, respeito, entreajuda, partilha, comunidade, cuidado, generosidade e confiança, sendo que a tradução integral é "Eu sou porque tu és." A integração da GNR neste projeto proporcionou um evento organizado pela Unidade de Intervenção em conjunto com o IPAV. A Escola da Guarda em Queluz foi o local escolhido para desenvolver o evento que decorreu no dia 22 de junho de 2013. O encontro visou a partilha de experiências de vida e reflexões que permitiram que os cerca de 100 jovens envolvidos conhecessem os militares para além da farda que envergam no dia-a-dia no decorrer do serviço policial. O evento permitiu também, valorizar as competências individuais dos jovens que integram o projeto, partilhando e identificando as dificuldades sentidas nas atividades propostas. Foram propostas cinco atividades repletas de desafios, pelas quais todos passaram. Todas as especialidades da Unidade de Intervenção contribuíram, através da organização de uma atividade prática integrada naquilo que é o serviço diário de cada uma delas, essencialmente para a valorização do conceito de liderança e do trabalho em equipa. A primeira atividade teve a intervenção do Grupo de Intervenção Cinotécnico (GIC). A atividade consistia em varrer uma área considerável e encontrar uma pessoa desaparecida, onde se percebeu, logo de início, que o trabalho de equipa era fundamental para realizar a missão de salvamento com sucesso. Após a conclusão da prova os


participantes foram desafiados a enumerar quais as características que os "liderados" devem ter. A segunda atividade teve a participação do Grupo de Intervenção de Operações Especiais (GIOE) responsável por operações policiais de alto risco. Os jovens tiveram contacto com o equipamento e fardas usadas pelo GIOE. A atividade consistia numa situação de resgate e socorro de um ferido num cenário hostil. Tiveram de efetuar o transporte de um dos colegas em maca, através de um percurso com obstáculos, exigindo imensa coordenação entre o grupo. A forma como o líder conseguia fazer valer a sua decisão era o segredo do sucesso desta missão de alto risco. Após a conclusão da atividade os participantes responderam quais deveriam ser as características essenciais de um líder. O terceiro desafio contou com a participação do Centro de Inativação de Explosivos e Segurança em Subsolo (CIESS). Este desafio consistia em deslocar, através de cordas suspensas, um recipiente supostamente perigoso sem que este tocasse em qualquer superfície assinalada como "não segura". Sem entreajuda e solidariedade, esta tarefa não teria sido levada a cabo com êxito. As considerações finais reportaram-se à definição de sucesso. A quarta atividade foi desenvolvida pelo Grupo de Intervenção de Proteção e Socorro (GIPS). Simulado que foi um incêndio, o grupo teve de equipar com o uniforme de combate aos incêndios, projetar os elementos do grupo e o equipamento para o cimo de uma colina e encher um recipiente de água. Esta atividade teve como objetivo simular uma das atividades levadas a cabo pelo GIPS diariamente no combate aos incêndios. O espírito de sacrifício e trabalho de equipa foram cruciais para dar cumprimento a esta dificílima tarefa. No final do exercício, partilharam-se opiniões acerca da definição dos erros cometidos ao longo da vida. Por último, foi proposto um desafio impar, com o envolvimento do Grupo de Intervenção de Ordem Pública (GIOP). Simulou-se uma manifestação, onde alguns dos alunos tiveram a oportunidade de "vestir a pele" dos militares do GIOP, e de estar frente a frente com os manifestantes. Passaram pelas várias fases de uma manifestação, desde uma fase sem demonstrações de violência, até à fase de cargas policiais, percebendo a grande dificuldade que é fazer cumprir a lei e a ordem pública. O resultado desta experiência foi bastante enriquecedor para ambas as partes, sobretudo pela partilha de experiências, olhar para as mesmas situações de perspetivas diferentes. A realidade é que muitas vezes, na forma como avaliamos os problemas, estamos condicionados por aquele que é, e sempre foi, o nosso ponto de vista. Olhar para os mesmos problemas de outra perspetiva, ajuda o cidadão a perceber o papel da Força de Segurança, e ajuda o militar da Força de Segurança a perceber a posição do cidadão. Se por um lado foi visível, através das expressões dos alunos da Academia Ubuntu, o sentimento de respeito pelo serviço que as Forças de Segurança prestam à sociedade, de igual modo foi notório que as histórias de vida dos alunos da Academia, a sua hu-

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) mildade, maturidade e humanismo perante as dificuldades do passado e a esperança num futuro melhor, inspiraram os militares da GNR a valorizar a verdadeira dimensão da sua missão, mais do que a segurança em si, há um papel social que é ou deve ser estruturante. Extrapolando o conceito Ubuntu, todos percebemos que a GNR existe para ajudar e garantir a segurança de todos, a razão de ser é a existência dos cidadãos e da sociedade. No fundo "Nós somos por que vocês são!" Para nós, foi um privilégio partilhar este sentimento e vestir a camisola Ubuntu. Capitão Nogueira | Capitão Lage (Corpo de Intervenção da GNR)

... A Escola de Judo Nuno Delgado

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No dia 7 de maio de 2013 o Nuno Delgado, campeão olímpico de Judo mundialmente reconhecido, desafia-nos a sermos "campeões para a vida". É um desafio demasiado ambicioso para respondermos levianamente que sim, porque nos desinstala! Sabemos que esse "sim" vai exigir suor e lágrimas no nosso dia-a-dia, quando estivermos frente a frente com os nossos medos, falhas e limites. E, por isso, a tentação de nos descartarmos da proposta é aliciante! Racionalizamos que ser campeão é só para os talentosos que vão representar o seu país nos jogos olímpicos e aproximamo-nos de uma "espiral de fugas" que nos diz que não precisamos de ser campeões para sermos felizes. Mas a questão é que não se trata de sermos felizes, trata-se de vivermos em plenitude! E apenas um "campeão para a vida" ousa viver plenamente, com toda a intensidade que tal ousadia pressupõe. Independentemente da sua condição física, um "campeão para a vida" procura ativamente, na força das batidas do seu coração, a energia que lhe irá restituir a paz, ao sentir que está a dar o seu melhor no campeonato da vida (Não quer ser o melhor, mas quer dar o seu melhor!). Através da metáfora de uma aula prática de judo, o Nuno Delgado exemplificou-nos diversas posturas que um "campeão para a vida" é convidado a assumir, no seu dia-a-dia, onde quer que esteja. Primeiramente, o "campeão para a vida" é alguém que ESCOLHE ser campeão. E esta escolha tem que ser profundamente livre, pois ninguém irá "praticar judo" por ele. E, assim, o campeão aceita o convite para ser protagonista das suas próprias batalhas e jamais desiste de lutar. Para e descansa, reavalia e modifica as suas estratégias, mas jamais desiste quando acredita que o percorrer do caminho o pode tornar mais forte. E essa fortaleza só faz sentido se for partilhada com outros e colocada ao seu serviço, pois caso contrário transformar-se-ia em "autossuficiência" e um campeão jamais conseguirá ganhar o que quer que seja sozinho. E por isso, um "campeão para a vida" é alguém que não desiste de ser campeão por saber que através da sua fortaleza poderá fortalecer outros e ser, também, cada vez mais forte através deles. Neste sentido, um campeão para a vida é alguém que se supera, no caminho de per-


sistência diária que percorre, por saber que muito mais valiosas que as medalhas que se entregam no pódio, são as medalhas que se alcançam (e partilham!) no decorrer do percurso. Medalhas baseadas em valores como a justiça perante os resultados, o respeito perante os adversários, a verdade perante si próprio, a fidelidade perante o compromisso dos objetivos, a confiança nos respetivos treinadores, a entreajuda na utilização de estratégias e técnicas, a humildade perante as vitórias e as derrotas. E assim, o campeão consegue cultivar a solidariedade, juntamente com aqueles que percorrem o caminho com ele, cuidando de quem cai ao seu lado e deixando-se cuidar quando cai. Um campeão para a vida é alguém que se inquieta quando se sente na zona de conforto, por saber que aí tem pouca margem para aprender e progredir. Desta forma, coloca sucessivamente objetivos audazes para si próprio. E quando vê que o seu sonho está demasiado distante, tenta aproximar-se dele de forma paciente, através de passos curtos mas consistentes, voltando à "sua base" sempre que for atropelado pelas adversidades e recomeçando através dela e daquilo que é (e não através daquilo que gostaria de ser). Mas para isso, é necessário que o campeão tenha a coragem de apostar no seu autoconhecimento, pois se "saltar" esta etapa (por nem sempre gostar daquilo que vê ou por gostar demasiado que nem tem coragem para "verificar" a realidade!) o campeão ficará sempre aquém das suas capacidades. Só partindo daquilo que o campeão é de verdade (sem doping!) é que o seu potencial será cada vez mais rentabilizado. Porque a postura base de um verdadeiro campeão é o que lhe restitui a sua liberdade, pois será aquilo que o sustentará sempre, independentemente dos ventos contrários e adversidades que existam. Assim, é essencial que o campeão procure ativamente a sua fonte de equilíbrio, capaz de fortalecer o seu autocontrolo e a entrega genuína aos seus sonhos. E, apesar de ser sonhador, o campeão sabe que para sonhar alto é preciso "abdicar alto" e quando se trata de abdicar dos valores que estão na sua base, de abdicar dos meios para atingir os seus fins, o campeão prefere acordar do sonho e recuar nas falsas conquistas que o afastam de si próprio e dos outros. Um campeão da vida não utiliza fugas ilusórias para evitar o sofrimento, porque sabe que "a dor é a fraqueza a sair do corpo". E assume o medo de perder, porque sabe que só perde quem não tenta. E por isso, é alguém que decide recomeçar diariamente, quer seja porque na véspera levou uma sova ou porque levou uma medalha para casa. Por ser alguém que tem a coragem de usufruir com grande intensidade das suas conquistas (sem estar permanentemente à procura de reconhecimento) e ousadia para usufruir das suas derrotas, como ponto de partida para um recomeço. Aprender quem é este campeão da vida, através do testemunho de alguém que já o é, foi das maiores lições de liderança que tivemos, por ser um testemunho baseado na coerência de vida de quem lidera através do exemplo e do constante serviço à comunidade. Um líder servidor é, por tudo isto, um campeão na busca incansável de ser sempre campeão. Obrigada, Nuno Delgado! Filipa Barradas (Membro AU 2ª edição)

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) ... A Orquestra de Câmara Portuguesa A Razão não tem coração. E sem Música, o ser humano não tem humanidade. Nikolaus Harnoncourt (n. 1929)

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O Ensaio de Orquestra é uma experiência que a Orquestra de Câmara Portuguesa desenvolveu a pensar nos seus parceiros e clientes como veículo de promoção da música erudita e da própria Orquestra, no que respeita à sua sustentabilidade e valores: como a partilha da responsabilidade e espaço de expressão da criatividade. O ambiente intimista e direto partilhado pelos músicos e maestro transforma definitivamente a visão e o conceito da experiência interior de quem nos visita. Desta vez, recebemos a Academia Ubuntu, que, pela natureza da sua existência e propósitos, ajudou-nos a provar mais uma vez que a solidariedade ativa da prática musical, que nasce e se partilha no seio de uma orquestra, seja durante os ensaios ou nos concertos, também pode transbordar para a sociedade. Após a apresentação da orquestra e dos seus diversos naipes e sonoridades, e de uma breve explicação do processo do trabalho de ensaio, entregámos a batuta a vários jovens Ubuntus: com um simples trecho de uma sinfonia de Haydn, puderam assim “sentir na pele” a influência do chefe de orquestra no momento da manufatura da Música: a sua respiração, a sua presença, a sua “aura”. Foi interessantíssimo observar como a diferente postura de cada um se refletiu na reação genuína da orquestra e na música produzida. Um dos membros da Academia aceitou de bom grado o desafio e com uma confiança impressionante. De batuta em riste, apressou-se a produzir um gesto enérgico e pleno de autoridade, mas, infelizmente, de impossível leitura para a orquestra. Visto ter reinado o silêncio e a orquestra não ter correspondido ao gesto ineficaz, a violinista no posto de concertino da orquestra decidiu (literalmente em décimas de segundo!) dar entrada ao coletivo, que desta forma salvou o maestro desta situação potencialmente embaraçosa. Nos momentos que se seguiram, o maestro foi conduzido pela orquestra que pouco a pouco foi retomando ele a direção, passando a orquestra a segui-lo, produzindo um momento inédito e apenas vivido naquele instante; irrepetível e pleno de solidariedade atenta. A questão é complexa: o que leva duas pessoas desconhecidas (a nossa concertino e este jovem da Academia), com histórias de vida tão radicalmente distintas, de contextos tão profundamente distantes, a uma solidariedade tão imediata, a uma união espontânea, a um sentimento fraterno, na responsabilidade e partilha daquele momento? A Música é uma linguagem, cuja interpretação é feita a partir de símbolos, indicações em notação musical que indicam elementos vitais: ritmo, melodia, harmonia, dinâmica, tempo e uma miríade de possibilidades expressivas: da mais instrumen-


talmente idiomática à mais singela indicação emotiva e/ou expressiva. Por isso a sua aprendizagem é complexa e um teste à nossa capacidade de inclusão de todos os seus elementos acima mencionados. Ao mesmo tempo, é um processo físico, intelectual e emocional desafiante. O breve exemplo de solidariedade musical acima descrito, é um dos vários exemplos que continuam a inspirar o nosso percurso. Acreditamos que a Música e a Orquestra, são exemplos extraordinários para a sociedade. O trabalho do chefe de orquestra e dos músicos pauta-se pela inevitabilidade da não-cedência ao compromisso: é a luta pelo ideal absoluto. Pode, por esse motivo, a Música ser um exemplo pela sua prática, que na sua essência é um ato de coragem. O próprio processo de ensaio é, em si, uma prova dura, que testa até ao limite a nossa coragem (individual e coletiva) e que tantas vezes nos revela o melhor e o pior, da nossa natureza. O trabalho do maestro é articular o “outro”: todo o seu trabalho é feito em prol de cada indivíduo na orquestra e do resultado final, o concerto: nada mais que a celebração do processo de trabalho. É um desafio gigantesco. Lembra-nos Barenboim de que «(...) a arte, para Goethe especialmente, é sobre a viagem para o “outro”, longe do que é tão habitual nos nossos dias.» A chegada ao “outro” terá de ser plena de integridade, honestidade e verdade. O encontro com a Academia Ubuntu permitiu-nos cultivar um pouco desta verdade. Foi fantástica a forma como todos colaboraram ativamente, com perguntas e opiniões reveladoras de uma maturidade excecional, deixando-nos como prenda a luminosidade do seu espírito e uma energia muito positiva. A orquestra adorou a experiência, que passou a ser assunto recorrente nos diversos momentos e oportunidades em que nos reunimos. O exemplo da tarefa a que Academia se propõe, as pessoas em que se inspira e o dinamismo que demonstra confere-nos uma confiança e esperança de que é possível e vale a pena trabalhar por uma sociedade mais inclusiva. É um orgulho para a OCP fazer parte desta dinâmica, e desta forma ajudar a mudar o Mundo, nota a nota. Pedro Carneiro (Maestro OCP) NOTA: Citação de Daniel Barenboim: Daniel Barenboim e Edward W. Said, Parallels and paradoxes: explorations in music and society, Vintage Books, Nova Iorque, 2004 e Edward W. Said, Parallels and paradoxes: explorations in music and society, Vintage Books, Nova Iorque, 2004.

Viagem à África do Sul A viagem dos dezassete participantes da Academia Ubuntu à Cidade do Cabo, na África do Sul, entre os dias 9 e 16 de setembro de 2011, foi de extrema relevância e um dos pontos altos no percurso formativo da AU – primeira edição. Destaca-se a receção calorosa, no dia 10 de setembro, em casa da família Volmink, e o

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) primeiro contacto com o Professor John Volmink, um homem de uma simpatia enorme, um exemplo de participação na comunidade, amor à família, preservação dos amigos, exemplo de futuro para os mais novos e alegria de viver, bem como as sábias palavras da sua mulher, Engela Volmink, que nos falou da importância do perdão, do futuro enquanto somos jovens, da importância de tornarmos significantes as nossas experiências, de não vivermos ao acaso e de que todas as experiências deveriam ser portas de aprendizagem, partilhadas com outros. O grupo teve a oportunidade de visitar vários locais de interesse, relacionados com a filosofia Ubuntu e também com a história da África do Sul, tais como: - A Igreja Rapha Fellowship Centre, localizada numa township, o Guguletu. Esta foi uma das primeiras experiências Ubuntu na África do Sul, em que se presenciou o forte espírito Ubuntu desta comunidade, que consegue expressar as suas mágoas e alegrias ao mesmo tempo e que está aberta a receber o outro;

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- O District Six Museum, que se localiza no centro histórico de Cape Town. O regime do apartheid decidiu expropriar arbitrariamente os habitantes deste distrito, alegando a separação das raças. A alternativa à venda era a perda sem indemnização e, consequentemente, os antigos habitantes foram conduzidos para zonas degradadas da periferia, nas encostas ventosas e frias que se estendiam até ao mar, com poucos meios de acesso aos bens e serviços do centro da cidade, habitando em alojamentos precários e sem qualquer apoio social; - O Slave Lodge Museum, museu dedicado à escravatura. O edifício, um dos mais antigos da cidade, foi construído para a Companhia Holandesa das Índias Orientais e utilizado para manter cativos os escravos capturados, antes de serem acorrentados aos porões dos navios e deslocados para fora do continente; - O Castelo da Boa Esperança, uma das principais atrações da Cidade do Cabo. É uma fortificação pentagonal bem conservada, considerada como o mais antigo edifício da era colonial, e ainda em funcionamento, de toda a África do Sul. Construída pela Companhia Holandesa das Índias Orientais, entre 1666 e 1679 com o principal objetivo de ser um ponto de reabastecimento marítimo. - O Cecil Rhodes Memorial, construído em homenagem ao grande explorador mineiro britânico do séc. IX, que viveu na África do Sul e que criou uma grande companhia internacional do comércio, ligado às minas de ouro e diamante; - A "Victoria & Alfred Waterfront", um dos destinos mais visitados na África do Sul, tanto por turistas como por profissionais das mais diversas áreas, pois tem diversas


zonas comerciais, vários escritórios, espaços de lazer, apartamentos de luxo, locais de interesse histórico e uma paisagem magnífica; - Robben Island, a ilha prisão onde Nelson Mandela, presos políticos e outros estiveram presos durante vários anos. Robben Island foi um lugar de muitas paragens, com histórias completamente diferentes, umas muito sofridas, mas também muitas vitórias; - O bairro de Mfuleni, onde vive uma comunidade negra caracterizada pelas precárias condições de habitação; - O Cabo da Boa Esperança, onde Portugal fez história e onde pudemos ver o encontro de dois oceanos, que deixaram muitas tormentas na história dos nossos navegadores; Também tivemos a oportunidade de contactar com várias individualidades, nomeadamente: O Reverendo Lionel Louw, que apresentou o contexto histórico do país, desde a época pré-colonial à implementação do apartheid; Glenda Wildschut, que falou sobre a sua experiência de participação na Comissão de Verdade e Reconciliação; O jornalista Denis Cruywagen, que destacou a importância dos media no processo das Comissões e cuja cobertura permitiu dar uma forte dimensão pública ao que se estava a passar; Gerald Paulse, que nos levou ao memorial Trojan Horse que celebra a memória de três jovens durante as revoltas contra o apartheid. Gerald integrou um grupo de cerca de cem pessoas, que se manifestavam contra a política segregacionista do apartheid quando, à semelhança das narrativas associadas à conquista da cidade de Troia, as forças de segurança prepararam uma emboscada aos manifestantes; Lionel Davis, um antigo prisioneiro político na ilha de Robben Island, que conheceu Nelson Mandela, e viveu todo o processo de luta contra o regime do apartheid; Christo Brand, um dos guardas de Robben Island que desenvolveu uma relação de amizade com Nelson Mandela enquanto este esteve preso na ilha. A viagem à África do Sul desafiou-nos a passar à ação. Conscientes de que não o podemos fazer sozinhos, as expetativas são de que as pessoas envolvidas no processo da AU sejam a alavanca de que precisamos para concretizar a visão do mundo que almejamos. É de realçar a união do grupo, que foi e será sempre, um grupo maravilhoso, que soube cooperar para que houvesse uma vivência solidária, compreensiva e de paz entre todos.

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) Esta viagem foi uma oportunidade sem igual e serviu para consolidar os conhecimentos adquiridos na Academia. Visitar locais e conhecer pessoas que marcaram a história da democracia da África do Sul foi deveras inspirador e fez-nos acreditar que, como diz Nelson Mandela, «tudo é impossível até que seja feito». O convívio ao longo de vários dias promoveu uma maior interligação entre os participantes e também destes com a equipa de formação. A filosofia Ubuntu foi de extrema importância para a reconciliação entre os povos da África do Sul. Durante o percurso da AU foi como um farol que nos orientou, no sentido do que se entende por uma liderança servidora. Na África do Sul estivemos com pessoas que respiram e bebem do espírito Ubuntu no seu dia a dia. Isso reforçou positivamente a necessidade de intervirmos nas nossas comunidades, com projetos de inovação social pensados segundo esta filosofia, segundo a noção de que só podemos ser pessoa através das outras pessoas e que pertencemos a algo maior. Voltámos para Portugal com vontade de fazer a diferença, de sermos agentes de transformação no seio das nossas comunidades. Cada um de nós pode ser uma gota num imenso oceano, fazer a diferença a nível local e ter impacto a nível global. Hélder Delgado (Membro AU 1ª edição. Formador AU 2ª edição p

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ANDAR V ) PRÉMIOS NOBEL DA PAZ

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) Prémios Nobel da Paz Não é todos os dias que temos o privilégio de estar presencialmente com alguém que tenha recebido um Prémio Nobel da Paz. Na AU sentimo-nos altamente afortunados, estivemos com três - testemunhos de entrega ao erguer de valores como a liberdade e a justiça. Poderia parecer estarmos a entrar no andar do fantástico ou da magia, onde habitam líderes-pássaros, pontes e faróis. Mas não, faz parte da realidade em que nos movemos, onde a humanidade demonstra a sua grande estatura pela capacidade que tem em ser generosa e de essência simples. No centro do plano de formação e objetivos da Academia Ubuntu está o conceito de liderança servidora, pelo que se procura desenvolver a capacidade de gerar consensos e trabalhar as qualidades normais do líder para a aceitação, confiança e espírito de serviço em prol do bem comum.

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Liderança Servidora: para ti, para nós, humanidade Vista por Joana Morais e Castro A primeira vez que ouvi falar sobre o conceito de liderança servidora, fiquei curiosa pela contradição que à primeira vista me provocou. Inconscientemente, associava liderança a poder individual, a frenesim económico, a bolsas de valores, mercados financeiros, política, não associando muitos aspetos positivos...Quanto mais fui entranhando a liderança servidora, apercebi-me que o erro estava em mim, não apenas pela associação redutora, mas antes por partir sempre do mesmo ponto de partida de olhar. Um líder ao serviço da humanidade, tem presente cada homem com que se cruza em todos os momentos do dia. Sente, ouve, interage com todos e faz todos sentirem-se únicos numa coletividade que se chama humanidade. Como disse Desmond Tutu quando entregou os diplomas na primeira edição da Academia Ubuntu «Todos vocês são V.S.P. - Very Special Person». Esta centralidade na pessoa é a grande distinção de um líder ao serviço dos outros, um líder Ubuntu.

Um dia um pequeno rapaz viu um homem numa esquina. Esse homem estava a vender balões. Balões verdes balões brancos balões vermelhos balões pretos. Tinha-os todos presos por pedaços de fio e deixou voar um. E este pequeno rapaz disse “Desculpe, senhor.” E ele respondeu “Sim?” “Como é que quando larga um balão verde, branco, vermelho, ou até preto todos eles voam em direção ao céu?” E o homem disse ao rapaz “Não é a cor do balão que interessa mas aquilo que está dentro dele” Excerto do discurso de Desmond Tutu (primeira edição da AU)

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) Há um instrumento essencial à navegação dos líderes servidores: o caleidoscópio da liderança. Este caleidoscópio não serve para medir riscos, estratégia, indicadores, impactos mas antes para se posicionar sob vários pontos de vista, sublinhando o valor de Pessoa a cada um deles, procurando consensos a favor da comunidade, lutando por uma ideia de destino partilhado. No centro do plano de formação e objetivos da Academia Ubuntu, lado a lado com a filosofia Ubuntu, procura-se desenvolver em cada um dos participantes a capacidade de gerar consensos e trabalhar as qualidades normais do líder para a aceitação, confiança e espírito de serviço em prol do bem comum. «Vais fazer alguma coisa para melhorar a tua comunidade?», pergunta Nelson Mandela numa entrevista enquanto explica a filosofia Ubuntu. É esta a pergunta que a Academia Ubuntu faz a cada candidato. A partir do Sim, nasce esta comunidade aprendente e de destino onde cada um que nela participa é desafiado a aplicar a liderança servidora Ubuntu na construção de projetos de empreendedorismo social e na sua vida.

O Programa UBUNTU é fundamental para a formação da nossa juventude. Inspirá-los com os valores do Ubuntu, da solidariedade Humana de forma a que em cada bairro, em cada comunidade nossa possamos ser líderes em solidariedade e cada um contribua p

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individualmente com pequenas coisas, com grandes projetos, para melhor aproximação do Mundo, das culturas, da sociedade, da civilizações e por isso, para aqueles que se vão registar nesta nova edição de Ubuntu, encorajo. Participem ativamente com confiança porque dali podem sair gente melhor, com mais esperança, mais fé no que cada um pode de fazer, e tem de fazer para melhorar as vidas das nossas comunidades e dos nossos respetivos países. Mensagem de Ramos Horta na abertura da segunda Edição da AU

A “liderança servidora” assenta na capacidade de gerar consensos e na vontade coletiva de procura de soluções para problemas concretos. Não se pretende desenvolver um conceito de liderança concentrada num só indivíduo, na verticalidade hierárquica ou na lógica de poder, mas na capacidade de um ator de um determinado contexto, em registo relacional e interdependente, potenciar as capacidades dos outros em prol do bem comum. Para a liderança servidora, a aceitação surge através da lealdade e da confiança nas qualidades normais do líder. Durante as duas primeiras edições da AU, vários prémios nobel da paz deram-nos a honra de conhecer a Academia, de se interessar pelos participantes e partilharem o seu testemunho. É inacreditável sempre que percebemos que estes homens, reconhecidos pela humanidade pelo seu contributo para a paz, se disponibilizaram humildemente a estar perante jovens Ubuntus.


Reviver as suas presenças na Academia, faz surgir a pergunta prévia: o que lhes terá feito estar connosco? Ao lado de uma óbvia ousadia do criador da AU, o Rui Marques, está a afinidade da linguagem. A linguagem da liderança servidora, da linguagem Ubuntu é a paz. Em primeiro lugar, sabemos todos o que é que significa a palavra "paz"? É uma palavra pequenina, constituída apenas por 3 letras, mas uma palavra de profundo significado, também muito difícil de ser vivida e de ser praticada. A paz, um valor e um dever universais, está fundada sobre a ordem moral da sociedade. A qual, por sua vez, tem raízes no próprio Deus, fonte primária do Ser, da verdade essencial e de tudo o que nós consideramos absoluto e supremo. A paz é um dom divino que nós, os Homens, podemos construir ou deitar a perder, a paz não é simplesmente a ausência da guerra, que poderia ser a sua primeira definição. Também não é somente o resultado de acordos entre potências mundiais, da diplomacia, de conversações ou de diálogos. A paz, hoje, tem um significado muito mais amplo. O Papa Paulo VI, definiu a paz com um novo nome: desenvolvimento. Desenvolvimento progressivo de cada pessoa, desenvolvimento integral de todos os povos e de todas as nações. No século IV, um bispo chamado Agostinho (que, mais tarde, se viria a chamar de Santo Agostinho), definia a paz como a tranquilidade na ordem. Se formos à praia do Estoril num mês de verão, está tudo calmo. Não há ondas revoltas, é a tranquilidade, é a paz. Portanto, a falência da paz é a guerra. A guerra, como flagelo que é, não pode ser encarada como um meio idóneo para resolver problemas, no interior de uma nação ou entre as nações. Nunca o foi, nunca o será. Porque uma guerra gera novos conflitos, cada vez mais complexos. Compromete o presente e põe em risco o futuro da Humanidade. Nada se perde com a paz. Ao contrário, tudo se perde com a guerra. Os danos causados por um conflito armado não são apenas de natureza material, são também de natureza social, moral e espiritual. A guerra é, em definitivo, o fracasso de qualquer autêntico humanismo. É sempre uma derrota para a Humanidade. E perante tão elevado grau de destruição de vidas e de bem-estar, as pessoas constituídas autoridade, quer nas religiões, quer nas comunidades internacionais, lançam o apelo: – Jamais os Homens uns contra os outros! Jamais a guerra!”. Li há pouco tempo um artigo que dizia que durante 6000 anos da história da Humanidade (4000 anos antes de Cristo, 2000 depois) houve no Mundo apenas 300 anos de paz. O resto, foi tudo guerras. Guerras e mais guerras, com milhões e milhões de vítimas. Portanto, mesmo hoje, há muitas assembleias, muitos estudos, muitos acordos sobre a paz, a declaração universal dos Direitos do Homem... no entanto, os conflitos perduram: no Afeganistão, no Iraque, no Paquistão, agora na Costa do Marfim. Mas os conflitos não existem só lá. Também aqui em Lisboa os podemos ter, ou no Porto, ou no interior das nossas famílias. Quando nós falamos da paz, falamos da tranquilidade de consciência, da paz connosco mesmo... se nós não temos paz, pois também estamos em conflito. Por isso, a primeira iniciativa para prevenir a guerra é a educação para a paz

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) e deve-se iniciar este processo começando na família e continuando na escola. Um pouco hoje, durante o almoço, estive a conversar com alguns de vós que sois líderes nas vossas comunidades. Quando vos preocupais em conversar e dialogar com os pais das crianças da vossa zona ou com os jovens da comunidade para evitarem o conflito, as discussões e a violência, estais precisamente a educar-vos a vós mesmos para serem embaixadores da paz, para semearem a paz no vosso meio e para levarem estes vossos companheiros a praticarem a paz.(...) Excerto do discurso de D. Ximenes Belo (primeira edição da AU)

Todos estes homens com histórias diferentes, lutas distintas, percursos únicos e desfechos imprevisíveis, têm em comum a linguagem do amor e da paz. Cada um deles, permitiu-nos experimentar, sentir, tocar uma lição de liderança servidora, que contém características comuns, não obstante a beleza da diferença entre eles. Destacamos algumas das características de um líder servidor que cada um deles nos ofereceu: 1. Líder farol

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«(...) E quando deixamos a nossa própria luz brilhar, inconscientemente permitimos que outras pessoas façam o mesmo. Quando nos libertamos do nosso medo, a nossa presença automaticamente liberta as outras pessoas.» Nelson Mandela

Os faróis encontram-se em locais isolados, por vezes completamente sós no meio do oceano, e a sua grande função é transmitir luz durante o tempo de escuridão. Os faróis são redondos de forma a garantir uma luz igual para todos. Os líderes servidores têm esta missão conscientemente. Os faróis recordam-nos o silêncio que os líderes servidores utilizam como forma de autoconhecimento, sobretudo enquanto forma de consciência e melhoramento da sua relação com os outros. Por isso, caríssimos irmãos, caríssimos jovens líderes, espero que sejais todos embaixadores da paz e amantes da paz. A paz começa, em primeiro lugar, em vós próprios. A paz é sobretudo uma coisa interior. Se eu vivo aborrecido comigo mesmo, se não ando satisfeito com nada, se estou revoltado contra os meus pais, os meus professores, com a minha situação... não posso falar de paz. Para falar de paz, preciso abstrair-me de tudo isso. Aceitar tudo, mas também com uma grande vontade de construir. Para terminar: a paz não é uma coisa fácil. No princípio, disse-vos que era preciso rezar. Mas a paz exige muito esforço, muita coragem e também exige muito martírio de nós próprios. (...) Excerto do discurso de D. Ximenes Belo (primeira edição da AU)


Ao colocar a comunidade no centro, a sua prioridade, reforçam a importância que atribuem às relações, à interdependência de todos os homens. O líder farol evita sempre a humilhação do outro, o respeito pela dignidade da pessoa sobrepõe-se. Nesta medida, assume intrinsecamente o conceito Ubuntu ao pressupor um conceito de ser humano culturalmente interligado, universal e igual, não obstante o reconhecimento das diferenças. Assim, como Ubuntu, o líder servidor parte da adoção conceptual do Nós. Paralelamente e no mesmo nível de importância do silêncio está a Voz que surge como luz, guia, exemplo, orientação, transformação, ousadia. Voz que por vezes se impõe, outras vezes sossega e não raras vezes conduz à voz de outros. Todos os líderes servidores, onde se encontram Ramos Horta, Desmond Tutu e D. Ximenes Belo provocam solenidade. Os seus percursos foram arriscados, tantas vezes até com a própria vida, e este risco é medido por cada um de nós, humanidade. Esta solenidade que nos provocam chama-se exemplo. Um líder farol é acima de tudo um exemplo que nos inspira a sermos melhores: «Apenas sei que caminho/Como quem é olhado, amado e conhecido/E por isso em cada gesto ponho/Solenidade e risco» (Sophia de Mello Breyner) 2. Líder ponte p

«Do rio que tudo arrasa, se diz que é violento mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem» (Bertolt Brecht)

Estes líderes conseguiram criar diálogo, perdão, reconciliação em cenários e comunidades completamente divididas e onde a desconfiança mútua era um sentimento generalizado. Por exemplo, as comissões de verdade e reconciliação criadas pós-apartheid lideradas por Desmond Tutu ou a questão de Timor que Ramos Horta e D. Ximenes Belo foram protagonistas tinham em comum a divisão, a mágoa, desconfiança, medo e a extrema violência. A ideia, o valor do perdão é uma das principais lutas do líder ao serviço do outro. Um verdadeiro sentido de perdão no compromisso pelo valor da justiça pode capacitar para o inter-relacionamento resiliente criando plataformas de consenso, de diálogo. Este perdão pressupõe diálogo e verdade. (...) Quem perdoa, não fica condicionado por aquilo que o provocou, mas liberta das suas consequências tanto quem pode perdoar, como quem é perdoado. Perdoar, portanto, não é um gesto rotineiro muito difundido, não é o hábito de todos os dias. É, acima de tudo, uma ação de heroísmo. É uma flor escondida, é uma flor original, que sempre floresce sobre um fundo de dor e de vitória sobre nós mesmos.

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) (...)O perdão tem este valor libertador. Faz-nos a nós mais Homens, liberta-nos a nós mesmos e liberta também aqueles que nos querem fazer mal. O perdão comporta a rejeição do enclausuramento de outrem no seu passado e também recusa a reduzi-lo ao mal que ele cometeu. Quem perdoa, não permite que a ofensa seja a base da relação com outrém, nem menos ainda reduzir o outro ao ato que cometeu. Quando falamos da reconciliação e da paz, peguemos nesta palavrinha perdão , como um ato de libertação em dois sentidos: de um lado, está o ofendido, liberto do seu rancor. Do outro, surge o agressor, que deixou de ser identificado com o seu ato. Trata-se, portanto, de uma atividade dinâmica, transformante, que não implica apenas uma mudança de disposição interior de quem perdoa na medida em que também produz efeitos na pessoa perdoada e provoca uma mudança da situação. Se a pessoa que nos ofendeu tiver esta atitude positiva de aceitar o perdão, gera-se esta corrente mútua de simpatia que leva depois à reconciliação, na verdadeira aceitação do seu passado, do seu pecado, juntos querendo dar as mãos na construção de um mundo novo e de novas relações. Quem concede o perdão ao seu agressor não pretende apenas aliviar o seu sentido de culpa: quer também que ele floresça de novo para o bem. Quer reabilitá-lo, quer dar-lhe um novo nascimento, para que ele recomece uma nova vida, com um novo olhar, com um novo entusiasmo e com novos horizontes. (...) Excerto do discurso de D. Ximenes Belo (primeira edição da AU) p

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Ora, a esta capacidade de criar espaços para o perdão e verdade chamamos líder ponte. Com efeito, liderança servidora pressupõe capacidade de construir pontes entre organizações e pessoas, ultrapassando limitações (Marques, 2013), reconhecendo o que têm em comum em vez de sublinhar as diferenças. O líder ponte tem uma busca permanente de equilíbrio, de justiça como pressuposto à paz, como valor partilhado de uma sociedade. (...) Em primeiro lugar, falamos de paz e já o profeta Isaías, 700 anos antes de Cristo, dizia que a paz se baseia na justiça. A justiça é fruto da paz. Pois, se queremos a paz entre nós, nos nossos bairros, nas nossas nações, nos nossos estados, temos de praticar também a justiça. Por detrás de cada conflito, pode notar-se facilmente uma drástica negação de justiça. A injustiça nasce da falta de respeito pela dignidade do ser humano e pelo desprezo dos seus direitos fundamentais. Desprezar o ser humano, é prepará-lo para o conflito. Quando nós olhamos de cima para baixo em relação ao nosso colega, estamos a prepará-lo para o conflito, para a revolta interior. A justiça fundamenta-se no respeito pelos direitos humanos – justiça e paz não são conceitos abstratos, nem ideias inacessíveis, são valores inseridos no coração de cada pessoa como património comum. Indivíduos, nações, comunidades, todos são chamados a viverem em justiça e a trabalhar para a paz. E, por isso, quando desprezamos ou ignoramos os direitos de cada um – da


criança, do jovem, da mulher, do imigrante, do trabalhador – estamos a prepará-los para a revolta e para o conflito. Por isso, a exigência por justiça aumenta no mundo atual e a resposta a esta exigência ou não chega ou chega lentamente Parte do discurso de D. Ximenes Belo (primeira edição da AU)

O líder ponte investe a sua energia para a transformação e reconciliação preparando-se, motivando-se para aceitar a capacidade de bondade do outro, mesmo que este outro se encontre na outra margem. Para isso, investe na habilidade para motivar todos a adotarem uma atitude positiva e construírem uma visão partilhada para a comunidade. Esta procura de entendimento mútuo como ferramenta para a transformação, permite a construção de pontes entre margens, não tornando o rio menos violento mas abrindo possibilidades de passagens seguras para o encontro. 3. Líder pássaro «Há quem diga que todas as noites são de sonhos. Mas há também quem garanta que nem todas, só as de verão. No fundo, isto não tem muita importância. O que interessa mesmo não é a noite em si, são os sonhos. Sonhos que o homem sonha sempre, em todos os lugares, em todas as épocas do ano, dormindo ou acordado.» (Sonho de uma Noite de Verão) William Shakespeare

Os líderes servidores são Mulheres e Homens que sonham, sempre, e são seres livres. Esta liberdade assenta na profundidade, no rigor e constante autoavaliação. O líder pássaro leva tão a sério esta liberdade interna e externa, que quando se sente demasiado agarrado ao poder ou que este está a sobrepor-se à sua liberdade interdependente, renuncia ao contexto que lhe prende as asas. Mais uma vez arrisca em nome dos outros, porque é exemplo, porque é mais pessoa através dos outros e age com o bom senso da liberdade de estar onde sente que é necessário. O líder pássaro voa na maioria das vezes em bando e a sua posição enquanto líder no bando vai variando conforme a ocasião e necessidade comum. Aos sinais de perigo e derrota está na frente, nas situações de vitória e alegria está na retaguarda. Este estado de constante atenção com os outros torna-o capaz de ser um entre todos, um por todos e capacitar os outros para serem todos por um. O líder pássaro tem medos pois é consciente e atento mas é persistente nas tentativas de remover os obstáculos, aqui reside a sua imensa coragem, a sua humildade, o seu

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exemplo. O líder pássaro tem a esperança como motor. É no acreditar, na confiança que ganha a força estrutural para levantar voo mesmo nas situações mais difíceis ou hostis. Estes líderes servidores e a experiência da AU procuram transmitir o valor da confiança como central nas organizações sociais, políticas, nas relações entre os homens e civilizações. A confiança que se transmite, enquanto valor, é também uma forma de ação. Ou seja, o cuidado e atenção permanente que estes líderes têm em relação aos outros não é apenas contrária à lógica da desconfiança, mas vai mais além sendo contrária à passividade ou à indiferença. Com efeito, indiferença, como sentimento ou não ação grave é silenciosamente violenta, tão violenta quanto a desconfiança. Um líder pássaro é um ativista da confiança. O respeito dos líderes servidores para a particularidade do outro, liga-se intimamente ao seu respeito pela individualidade. Mas, note-se, esta individualidade não é de método cartesiano. Aliás, contradiz diretamente a conceção cartesiana da individualidade. O indivíduo cartesiano existe antes ou separadamente e de forma independente do resto da comunidade ou sociedade. O resto da sociedade não é senão um extra adicionado a um ser pré-existente e autossuficiente. Pelo contrário, a liderança servidora, define o indivíduo no seu relacionamento com os outros. Ser um indivíduo, por definição, significa “ser-com-os-outros”. Esta relação implica uma cultura de diálogo, de escuta ativa, de participação, de cooperação. A perceção sobre os outros nunca é fixa ou rigidamente fechada, mas ajustável. Na gramática da liderança servidora Ubuntu há um processo de autorrealização através dos outros. No fundo, coloca em relação o princípio da igualdade e o princípio da diferença para, a partir daí, construir diálogos interculturais. Às vezes parece incrível o processo de transformação vivido com a AU e é difícil de explicar a magia dos processos de interligações, de tomadas de consciência individuais e coletivas. Ter o testemunho e as lições de liderança de pessoas cuja humanidade inteira reconhece na construção da paz foi mágico, bonito e único, assim como foram todos os momentos com cada um que passou pela Academia, com todos. A linguagem comum é a paz como uma forma de amor, o amor como forma de sonho, a humanidade como forma de liberdade. No final da Academia, em comum, todos temos um sonho, servir-te a ti. Joana Morais e Castro (Formadora AU 2ª edição) Referências Bibliográficas Brecht, Bertolt, Poema “Sobre a Violência” in Poemas, Edições Asa Breyner, Sophia de Mello, Poema “ Escuto” in Geografia, Editorial Caminho, 1991 Brubaker, Timothy A., Servant Leadership, Ubuntu, and Leader Effectiveness in Rwanda, Emerging Leadership Journeys, Regent University School of Business & Leadership, 2013 Ferch, Shann R., Servant - Leadership, Forgiveness and Social Justice, Gonzaga University, 2003 Mondi Shanduka Newsprint, Mandela´s lessons in leadership Shakespeare, William, Sonho de uma Noite de Verão, Relógio d’Água, 2003 Stengel, Richard, O legado de Mandela, Planeta, 2009 Vervliet, Chris, The Human Person, African Ubuntu And The Dialogue Of Civilizations, Adonis Abbey, 2009


Carlos Ximenes Belo Carlos Filipe Ximenes Belo, nasceu em Uailacama, Baucau, Timor-Leste a 3 de fevereiro de 1948. Os anos de infância foram passados nas escolas católicas de Baucau e Ossu, antes de ingressar no seminário de Dare, nos arredores de Díli, formando-se em 1968. D. Ximenes Belo repartiu o seu tempo entre Portugal e Roma, onde se tornou membro da congregação dos Salesianos e estudou filosofia e teologia antes de ser ordenado sacerdote em 1980. A sua obra corajosa em prol de uma solução justa e pacífica para o conflito em Timor-Leste e em busca da paz e da reconciliação foi internacionalmente reconhecida quando, em conjunto com José Ramos-Horta, lhe foi entregue o Prémio Nobel da Paz em dezembro de 1996. Desmond Tutu Desmond Mpilo Tutu nasceu em Klerksdorp em 7 de outubro de 1931. Aos 12 anos a família muda-se para Joanesburgo, onde faz parte dos seus estudos, mas é no King’s College em Londres que faz os seus estudos em Teologia. Em 1975 torna-se o primeiro deão negro da Catedral de Santa Maria em Joanesburgo e mais tarde no primeiro negro nomeado Arcebispo da Cidade do Cabo e Primaz da Igreja Anglicana da África do Sul.. Desmond Tutu mantinha como proposta para a sociedade sul-africana direitos civis iguais para todos, abolição das leis que limitavam a circulação dos negros, um sistema educacional comum, e o fim das deportações forçadas de negros. Foi esta sua posição antiapartheid – a política oficial de segregação racial – que lhe garantiu, em 1984, o Nobel da Paz.

José Ramos Horta José Manuel Ramos Horta nasceu em Díli, a 26 de dezembro de 1949. Estudou Direito Internacional na Academia de Direito Internacional de Haia, nos Países Baixos (1983) e na Universidade de Antioch (Estados Unidos) onde completou o mestrado em Estudos da Paz (1984), bem como uma série de outros cursos de pós-graduação sobre a temática do Direito Internacional e da Paz. Em dezembro de 1996, José Ramos-Horta partilha o Nobel da Paz com o compatriota bispo Carlos Filipe Ximenes Belo. O Comité Nobel laureou-os pelo contínuo esforço para terminar com a opressão vigente em Timor-Leste, esperando que o prémio "despolete o encontro de uma solução diplomática para o conflito em Timor-Leste com base no direito dos povos à autodeterminação". Durante a ocupação do seu país pela Indonésia, desempenhou um papel crucial como porta-voz a resistência no exterior, não deixando o mundo esquecer a questão de Timor Leste. Pós independência foi Ministro dos negócios estrangeiros, Primeiro Ministro e Presidente da Républica.

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ANDAR VI ) PARCERIAS

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) Parcerias Avançamos neste caminho em direção ao sexto andar, onde se concretiza a interdependência Ubuntu para além do que são as relações pessoais. Um andar onde se cruzam as instituições, em particular, parceiras da AU - instituições com missões diversas, enquadradas em vários setores, com diferentes papéis que, juntas, dão forma e luz a este desafio. Um espaço onde talvez fosse expectável encontrar várias divisões separadas com as portas fechadas, contudo, ao invés, deparamo-nos com um espaço aberto, repleto de pessoas em movimento, apressadas em cooperar. Pessoas ligadas pelo esforço e disponibilidade oferecidos, pelo compromisso e confiança partilhados – essa teia de fios invisíveis mas fortes – e pela vontade de fortalecer os jovens participantes e os projetos a implementar.

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A capacitação como motor de inclusão social Os desafios das sociedades atuais passam, em grande medida, pelo conceito de inclusão. Quando olhamos para a inclusão podemos analisá-la da forma mais abrangente possível, partindo da base da inclusão social para outras dimensões. Isto porque pode ser vista também na vertente económica, através do acesso às oportunidades económicas e, no limite, também numa vertente ambiental, garantindo a todos um futuro mais seguro. Em cada um destes casos, encontramos um denominador comum – as pessoas. Pessoas com vontade e pessoas com conhecimentos fazem a diferença e criam a mudança que todos ambicionamos. A Academia Ubuntu é um projeto inovador, que tem a característica extraordinária de capacitar jovens num contexto de exclusão social com as competências que lhes permitirão atuar e desenvolver projetos inovadores, mas também a de lhes proporcionar uma competência ainda mais difícil, a capacidade de acreditar em si próprios e nos seus projetos, e a capacidade de sonhar. É por isso que a everis aceitou em 2011 participar na AU, porque acreditamos que as pessoas fazem a diferença e que a mudança pode acontecer se conseguirmos conjugar duas condições – indivíduos líderes com elevado potencial e indivíduos que consigam atuar sobre as comunidades em que estão inseridos. Na primeira edição, a colaboração da everis materializou-se na disponibilização e comprometimento de dezoito consultores séniores, que durante seis meses acompanharam e orientaram o processo de desenvolvimento de cada projeto dos participantes da AU. O balanço desta participação foi extremamente positivo, pelo empenho das nossas equipas e pelo efeito que esta colaboração e partilha mútua tiveram, para capacitação das equipas Ubuntu mas também dos profissionais da everis envolvidos. Quando recebemos o desafio para participarmos na segunda edição, decidimos partir de uma análise do envolvimento na edição anterior e propusemos uma nova abordagem com base no trabalho efetuado e nas lições que aprendemos no terreno. Desta forma nasceu a metodologia que criámos para a Incubadora Social Ubuntu. Esta foi desenhada especificamente para microprojectos, e tem como principais objetivos: • •

Alinhamento em termos de conhecimentos e conteúdos no desenvolvimento de cada um dos projetos; Aposta num modelo de ação – formação, em que os seminários intercalam com a preparação de cada um dos projetos, havendo assim conjugação entre a formação prática e teórica; Disponibilização das ferramentas necessárias para que os futuros líderes Ubuntu terminem esta etapa com os conhecimentos necessários para servirem como exemplo dentro das suas comunidades, independentemente da concretização de cada um dos projetos.

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) Adicionalmente, comprometemo-nos a acompanhar e monitorizar os empreendedores, transmitindo-lhes conhecimentos e experiência das inúmeras iniciativas que a empresa desenvolveu ao longo dos anos. Desta forma, tiramos partido da experiência das nossas equipas para fazer aquilo que sabemos fazer melhor – capacitar e criar projectos que permitam fazer a mudança. Fiéis ao princípio Ubuntu – Eu sou porque tu és. Porque acreditamos que, ao apoiarmos estes jovens empreendedores, vamos não apenas mudar comunidades, mas mudarmo-nos a nós próprios. Porque Attitude makes the difference. Francisca Buccellato (Gestora Parceria AU/everis)

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No ano de 2013, a Fundação de Serralves estabeleceu um protocolo de parceria com a Academia Ubuntu. Esta Academia forma jovens líderes para operar em contextos de exclusão social, sendo estes jovens provenientes tanto desses mesmos contextos, como apenas desejosos de trabalhar nesta área. A perspetiva de formação de liderar para servir o bem comum reflete uma missão e um posicionamento ético e humano que consideramos merecedora de todo o apoio. A participação de Serralves passou por organizar experiências com uma forte componente prática, envolvendo várias dimensões na qual a Fundação de Serralves opera, com um enfoque especial no campo da arte contemporânea, revelando assim as suas potencialidades num processo de formação e de capacitação para um agir social consciente das ligações entre sujeito e comunidade. Proporcionando vivências que permitam melhor entender e relacionar-se com o mundo e os seus desafios, a ação da Fundação de Serralves concretizou-se, até à data, em cinco momentos. A 20 de abril de 2013, os alunos da Academia Ubuntu realizaram a oficina Desenhando-se, orientada por dois membros da equipa de educadores e artistas do Serviço Educativo de Serralves, Samuel Silva e Raquel Sambade. Implicando o corpo, o seu movimento no espaço e no tempo, os participantes desta oficina exploraram os limites do lugar onde se encontravam, conduzidos por um universo de estímulos que os levavam a descobrir-se, desenhando-se. Os orientadores desta oficina davam indicações que limitavam as opções dos participantes na realização do desenho e era assim que novas experiências, novas formas de expressão tinham lugar, revelando que os limites, quando tomados de forma criativa e não somente como limitações, podem proporcionar a abertura de espaços de liberdade de ação antes desconhecidos. Citando a proposta desta oficina «O corpo que desenha arrisca um caminho e deixará sempre, por consequência, um rasto» e arriscar um caminho, abrir espaços para caminhar, parece-nos fazer parte do dia-a-dia dos participantes da Academia Ubuntu. Na sua dimensão estética, Desenhando-se foi à raiz de uma experiência fundamental para qualquer processo educativo, em particular num contexto de formação que tem como objetivo a intervenção na sociedade: a consciência de si, num espaço e num tempo com condicionantes que, agarradas como um desafio, deixam de ser limitações, transformando-se em meio de expressão e em oportunidade de ação. A 21 de setembro de 2013, a oficina ÉSculturas, orientada por Cristina Camargo e Ivone Almeida, abordou à noção de que arte e vida se conjugam. Começou-se com a realização de um percurso de sensitivo que passou por obras de arte expostas no museu e no parque de Serralves e prosseguiu-se numa experiência de trabalho oficinal orientada, no qual pequenos grupos de participantes projetaram, pensaram, discutiram, deram sentido e registaram sensações e experiências para, em conjunto, construírem uma forma tridimensional, pondo à prova as possibilidades da construção criativa partilhada.

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Já em março de 2014, convidámos a Academia Ubuntu a passar uma manhã de sábado numa oficina realizada no âmbito de um programa de residências artísticas, programado pelo Serviço Educativo do Museu de Serralves. Esta oficina, realizada pelos artistas em residência And_Lab, visou partilhar um método de trabalho desenvolvido pelo coreógrafo português João Fiadeiro e pela antropóloga brasileira Fernanda Eugénio, o Jogo And. De aplicação transversal a vários domínios de ação, tanto dentro como fora do território artístico, o objetivo deste método é encontrar um plano comum de ação que não apague a diferença de perspetivas e que emerge, não de uma vontade pessoal, de um projeto ou de uma ideia singular, mas das dinâmicas relacionais entre sujeitos sem protagonismo - porque o mais importante é o que está a acontecer no plano comum, e não quem o faz acontecer, reconhecendo até que o "quem" é uma rede interligada de pessoas, agentes e circunstâncias. A parceria com Serralves tomou também outras formas. Em 2013, durante o Serralves em Festa, a Academia Ubuntu foi a nossa Brigada do Ambiente, voluntariando-se para cuidar de que o grande afluxo de pessoas que nos visita neste evento, não pusesse em causa a integridade dos jardins e dos vários espaços do parque. Cuidar da comunidade e cuidar da natureza são atos que se complementam. No dia 07 de dezembro de 2013, teve lugar, no auditório do Museu de Serralves, o Seminário Vidas Ubuntu. Nele, os jovens que então se encontravam num momento charneira da sua participação na Academia Ubuntu, dando início à concretização dos seus projetos de intervenção social, apresentaram a dimensão Ubuntu da sua vida: porque "eu sou porque tu és", como é que as pessoas com quem se cruzaram e as suas circunstâncias de vida, com dificuldades e alegrias, os tinham trazido até ali, instigando em cada um dos participantes a vontade de intervirem socialmente. Foi um dia de partilha emocional intensa e de uma rara generosidade. A comunidade que a Academia Ubuntu construiu naquele dia no Auditório do Museu de Serralves é uma comunidade que acolhe e aceita como socialmente legítimas as experiências singulares de cada indivíduo, mesmo as mais difíceis de revelar, num exercício potenciador de autoconfiança e autoestima fundamental para o desenvolvimento de comunidades e de modos de agir nos quais a confiança prevalece. Vidas Ubuntu transformou-se, inesperadamente, numa homenagem. No dia anterior, Nelson Mandela tinha falecido. Sendo, juntamente com Martin Luther King, Gandhi, Desmond Tutu e Aung San Suu Kyi, uma das referências maiores da Academia Ubuntu, que melhor maneira haveria de o homenagear senão propagando e dando continuidade à sua caminhada, à sua filosofia prática Ubuntu? Que a Fundação de Serralves possa contribuir, em particular através do seu Serviço Educativo, para facilitar esta caminhada Ubuntu, é algo que só nos pode enriquecer a nós, enquanto instituição que age também em prol do bem comum. Liliana Coutinho (Coordenadora do Serviço Educativo do Museu de Serralves)


Desde a primeira edição que o IADE – Creative University1 tem sido parceiro da Academia Ubuntu. Primeiro, porque partilha dos seus ideais humanistas e, segundo, porque sendo um projeto educativo procura capacitar os seus estudantes enquanto profissionais mas, acima de tudo, enquanto cidadãos conscientes. Este convite foi uma excelente oportunidade para promover a proximidade do ensino superior à sociedade civil. Hoje em dia, procuram-se cada vez mais valores diferenciadores que não advêm apenas da formação que é ministrada nas universidades. Os estudantes precisam de desenvolver soft skills que os enriqueçam enquanto pessoas e futuros profissionais. O Creative Weekend contou com a presença de dezasseis estudantes, cinco professores e cinco antigos alunos que, em parceria com a Academia Ubuntu, a CoworkLisboa, Associação dos Antigos Alunos do IADE e a comunidade Wordpress em Portugal, deram apoio a todos os projetos da Academia Ubuntu na definição da identidade visual de cada projeto. Esta relação entre o IADE e Academia Ubuntu possibilitou ainda promover a integração das novas gerações de criativos pela partilha de experiências e conhecimento de quem já está no mercado – sustentabilidade criativa – dando apoio a projetos de inovação social. Para o IADE esta relação simbiótica desenvolveu-se naturalmente e vai-se assumindo como mais profícua e rica na sua expressão humana, ética e profissional. Este processo quebrou barreiras culturais aproximando diferentes experiências de vida que potenciaram o crescimento de cada um de nós e da instituição no seu conjunto. Carlos A. M. Duarte (Presidente do IADE)

1 O IADE foi criado em 1969 com o nome de Instituto de Arte e Decoração e foi pioneiro do ensino

de Design em Portugal. Em 2012, conquistou o estatuto de Instituto Universitário. O Conselho de Ministros aprovou um Diploma que reconhece o interesse público do IADE-U, atribuindo-lhe esse título, possibilitando assim que o Instituto desenhasse um moderno programa de Doutoramento em Design, que assenta em eixos como criatividade e internacionalização. O objetivo é o de posicionar esta formação como uma das opções de topo a nível mundial. É atualmente a maior e mais antiga instituição de ensino superior de design em Portugal, com cursos nas áreas de design, marketing, publicidade e fotografia.

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A Aprender e Agir - Associação para o Desenvolvimento Pessoal e Profissional (http://aprendereagir.wix. com/aprendereagir) nasceu em janeiro de 2013 com o objectivo de promover a concretização de projetos de vida e a realização integral da pessoa e do bem comum, e com a missão de realizar projetos educativos que contribuam para o desenvolvimento pessoal e profissional dos seus associados e de terceiros. Para tal cria e realiza programas de formação, coaching, cursos e muitas outras atividades de desenvolvimento pessoal e profissional, nomeadamente o programa probono que desenvolveu em parceria com o IPAV no âmbito da Academia Ubuntu: cuidar do desenvolvimento pessoal de jovens líderes inseridos neste programa. A Academia Ubuntu promove um modelo de liderança baseado sobretudo nos ensinamentos de Nelson Mandela, ou seja, num modelo onde a consciência da relação que a pessoa estabelece consigo própria e com o outro é considerado fator determinante para a humanização, qualidade e eficácia do Líder: Eu sou porque Tu és. No programa criado pela Aprender e Agir, a perspetiva humanista de liderança que caracteriza o modelo da Academia Ubuntu, é tratada não só como um fim - os projetos desenvolvidos pelas pessoas no âmbito da Academia são na sua maior parte de responsabilidade social - mas principalmente como um ponto de partida e caminho orientador de vivências, focalizado no desenvolvimento das relações interpessoais na totalidade das dimensões da construção do projeto vida da pessoa: Quem quero ser naquilo que faço? A pedagogia transversal ao conceito de desenvolvimento pessoal e profissional da Aprender e Agir, aplicada nomeadamente na parceria com o IPAV/ Academia Ubuntu, baseia-se em três dimensões interligadas: Autoconhecimento, compreensão de vivências e compromisso para agir. Numa ótica de aprendizagem individual e relacional na gestão pessoal da mudança, essa pedagogia promove a consciência duma identidade integrada da pessoa e dos seus valores que se expressam numa assinatura pessoal como empreendedor(a) e cidadão(ã). A metodologia da formação que Ana Costa Cabral e José Manuel Seruya, fundadores da Aprender e Agir, desenvolveram para a Academia Ubuntu, em Lisboa e no Porto, e nela têm atuado como formadores, caracterizou-se muito especialmente pelas sessões presenciais de grupo, de partilha de vivências, e por uma ferramenta online de autoconhecimento de que são autores - o "Programa de desenvolvimento pessoal e profissional" de aprendizagem mista (www.aprendereagir.com) - que serviu de suporte para discussão dos conceitos, temas e partilha de experiências nas ditas sessões presenciais. Ao longo de todo este percurso de formação na Academia Ubuntu, desenvolveu-se uma grande proximidade dos participantes entre si, e entre os mesmos e os formadores, resultante da criação de um espaço de segurança e não julgamento. Tendo como ponto de partida os temas propostos pelos formadores, as sessões fo-


ram sendo co-construídas entre eles e os participantes, incorporando a par e passo o que ia surgindo por parte destes, dando nomeadamente relevância à partilha das suas vivências, e assim contribuindo para a clarificação e sentido da construção dos seus projetos de vida. Queremos agradecer ao Rui Marques, ao Rui Nunes da Silva, à Madalena Saldanha, ao Filipe Pinto, à Joana Castro e aos outros Ubuntu’s que nos proporcionaram a oportunidade de fazer parte da Academia Ubuntu, sem quaisquer reservas na confiança demonstrada à Aprender e Agir e aos formadores, assim como todo o seu apoio e disponibilidade sempre presentes. Ana Costa Cabral Jose Manuel Seruya (Coordenadores da Associação Aprender & Agir)

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) O Projeto da Academia Ubuntu foi, honrosamente apresentando à LIPOR, pelo Dr. Rui Marques, Presidente do Instituto Padre António Vieira. Sem palavras exequíveis que o descrevam, numa presença que transcende a si próprio, o Dr. Rui Marques foi decisivo na inspiração da equipa da LIPOR, para que a máxima de “Tudo parece impossível até que seja feito” (Nelson Mandela) se tenha traduzido numa verdade alcançável. O desafio ainda estava para começar… Reunindo uma equipa de entusiastas, a LIPOR em conjunto com os mentores da Academia Ubuntu, começaram a desenhar as principais áreas de focalização e uma linha estratégica que incidisse numa abordagem inovadora e eficaz, para a concretização dos projetos de empreendedorismo social. Assim, num formato de um voluntariado de competências, os quadros técnicos da LIPOR participaram neste programa em duas vertentes, através do acompanhamento técnico e pela tutoria dos projetos dos participantes da Academia Ubuntu. p

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Até que o desafio começou… Alinhando um programa de formação, o acompanhamento técnico consistiu na exploração de temáticas, com o objetivo de dotar os participantes de competências essenciais em áreas de conhecimento específicas. Neste propósito, as sessões de formação foram subordinadas aos seguintes temas: gestão de projetos, inovação, tecnologias de informação e comunicação, comunicação e educação ambiental, finanças e controlo de gestão e gestão de recursos humanos. Sendo a LIPOR detentora de um manancial de informação, experiência e know-how na área do ambiente, os nossos colaboradores são aquelas pessoas que, como agentes de transformação, poderão ser decisivos na capacitação destes jovens. E ainda queremos fazê-lo pela diferença! Em simultâneo, foram criadas equipas de tutoria, com o objetivo de acompanhar as equipas de projeto dos jovens Ubuntus, apoiando e contribuindo para o enriquecimento dos projetos, perspetivando-se a sua implementação. «No começo de um projeto podemos fazer tudo, mas não sabemos nada. No final do projeto sabemos tudo, mas não podemos fazer nada.» (Peter F. Drucker)


Como pressuposto, e para que o segundo ano de participação na incubadora social pudesse ser uma etapa concluída com êxito pelos Ubuntus, adotou-se como base a metodologia de gestão de projetos. Enquanto Organização, a LIPOR tem como cultura nortear os projetos internos através da ferramenta de gestão de projetos; consideramos, portanto, que o contexto da Academia Ubuntu seria o oportuno para a introdução desta metodologia, essencial no propósito de definição de um Projeto, a sua normalização na gestão, o próprio ciclo de vida do projeto, bem como o seu planeamento, execução, controlo e lições aprendidas. A LIPOR, através do desenvolvimento desta dinâmica, incondicionalmente apoiada pela Academia Ubuntu, teve como intuito proporcionar a cada equipa de projeto as ferramentas necessárias à operacionalização das ideias embrionárias e a sua concretização em projetos empreendedores, na ótica de gestão empresarial. A cada Ubuntu, quisemos que uma orientação dirigida, através da potenciação do indivíduo, se traduzisse no paradigma de que “o todo fosse mais do que a simples soma de todas as partes”. Mas o desafio não terminará… Ao longo dos últimos 8 meses, em que a equipa da LIPOR acompanhou os mentores e os jovens da Academia Ubuntu, o contributo que cada um de nós deu ultrapassou a esfera do profissional, através de uma entrega pessoal, que não pode ser medida (pelas horas dedicadas), que não será quantificada (nas pesquisas efetuadas) nem sequer retribuída (na preocupação desmedida). Hoje, estamos certos, que fomos “Eu Sou Porque Tu És!” Equipa Lipor

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É com muita alegria e reconhecimento que a Católica Porto acolhe o IPAV e os seus projetos, incluindo a edição no Porto da Academia Ubuntu. Estamos muito gratos e contentes por o IPAV ter feito de nós a sua casa no Porto porque isso nos ajuda a fazermos mais e melhor num domínio que é um dos nossos eixos estratégicos: sermos agentes de inovação social. É, por isso, natural que o IPAV e a sua Academia estejam a residir no espaço da nossa casa mais especialmente dedicado à concretização desta orientação estratégica: a nossa Área Transversal de Economia Social (uma forma de trabalho colaborativo envolvendo docentes das várias unidades de ensino da Católica que atualmente gere cerca de 30 projetos de Economia Social) e a nossa incubadora de empresas que, entre outras coisas, apoia o desenvolvimento de empresas sociais. Não se trata aqui de residir apenas no sentido do IPAV ter o seu escritório na nossa incubadora e das sessões da Academia Ubuntu terem lugar em salas da Católica Porto. Claro que esta geografia ajuda a que, vivendo no seio deste nosso ecossistema empreendedor e solidário, sejam já várias as sinergias que têm acontecido entre as atividades do IPAV e da sua Academia Ubuntu e os nossos projetos de Economia Social: alunos e docentes nossos participam em atividades do IPAV e da Academia Ubuntu e colaboradores do IPAV e da Academia Ubuntu que participam em atividades da nossa Área Transversal de Economia Social. Há mais que esta partilha de recursos logísticos e de colaboradores. Entre o IPAV mais a sua Academia Ubuntu e as nossas atividades em prol da Economia Social e da inovação social há comunhão daqueles valores que a filosofia Ubuntu resume muito bem na sua máxima: eu sou porque tu és e tu és porque eu sou. Quando assim é, partilha de recursos e tudo o mais que já fizemos e vamos fazer em conjunto são uma consequência natural. Muito obrigado ao IPAV e à sua Academia Ubuntu por nos ajudarem, assim, a estarmos mais e melhor ao serviço do Bem Comum. Américo M. S. Carvalho Mendes (Coordenador da Área Transversal de Economia Social da UCP-Porto)


ANDAR VII ) AVALIAÇÃO

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Avaliação

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Damos muito valor ao sétimo andar, pois sem ele não nos conseguiríamos manter no caminho e evoluir. Baseados numa cultura de transparência e participação, transformação e progressão contínuas, procuramos extrair aprendizagens a partir dos contributos dos participantes, formadores, equipa, parceiros e avaliadores externos. O princípio da avaliação está presente em todas as vertentes da AU, por valorizarmos a superação das falhas e a potenciação dos êxitos. Na procura de melhorarmos continuamente os processos e alcançarmos os resultados que nos propusemos, empenhamo-nos numa permanente avaliação, essencial para a aprendizagem e mudança. Para além da autoavaliação, somos acompanhados por olhares externos, que construtivamente nos têm feito refletir e estimulado a fazer mais e melhor. É nas suas sábias partilhas que aqui nos concentramos.

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Ubuntu - Um Processo Educativo para Formação de líderes e Incubar Empreendedores A equipa do Centro de Estudos de Povos e Culturas de Expressão Portuguesa - CEPCEP da Universidade Católica Portuguesa, foi convidada a participar como entidade avaliadora da Academia Ubuntu em 2012, acompanhando desde então o processo formativo. Considerando a natureza da Academia Ubuntu, um projeto de educação não formal com o objetivo de capacitar e formar jovens em liderança, que parte de uma abordagem indutiva onde os modelos de referência começam por ser as histórias de vida de Nelson Mandela, Gandhi, Luther King, Aung San Suu Ki ou Desmond Tutu, o processo de avaliação procurou inscrever-se na sua filosofia. No entendimento de que “Ubuntu” se traduz na simples frase “Eu sou porque tu és”, sendo uma afirmação do primado da Pessoa, que pressupõe que afirmamos a nossa humanidade quando afirmamos a humanidade dos outros, o processo de avaliação propôs-se acompanhar o processo de formação. Neste contexto, a proposta de avaliação não se centrou na medição de resultados, mas antes no processo, querendo traduzir o conhecimento adquirido ao longo da formação, em termos tais que permitisse a recolha de dados relevantes para a identificação e consolidação das experiências vividas. Para este efeito privilegiou-se uma abordagem qualitativa, tendo-se recorrido ao estudo de caso querendo preservar as características holísticas e significativas do processo, sendo que estes partilham com outras formas de pesquisa qualitativa a procura do sentido e da compreensão. Assim, a Academia Ubuntu constituiu-se como o nosso objeto de análise, nas suas diferentes dimensões, privilegiando-se face aos objetivos, o ponto de vista dos participantes, uma vez que se pretendia compreender o significado dos símbolos sociais, artefatuais. Utilizou-se um questionário para a construção do perfil dos participantes, de aplicação individual, e dos intervenientes (formadores, consultores everis, padrinhos, voluntários) mas também os dados provenientes da pesquisa documental (relatórios, e outros documentos relevantes do projeto) e da observação participante (em causa os seminários quinzenais e as atividades), para complementar e reforçar a informação recolhida através das técnicas principais, as entrevistas semiestruturadas aos diferentes intervenientes do projeto e os focus groups, querendo compreender os fatores individuais, circunstanciais e estruturais envolvidos no processo formativo. Para se proceder à análise da informação recolhida, pretendeu-se uma circularidade nas partes do processo investigativo, numa estreita ligação entre a coleta e a interpretação dos dados, implicando uma reflexão constante, ajustando-se ao caráter de descoberta de uma metodologia qualitativa. A avaliação teve então como finalidade analisar e avaliar as intervenções realizadas constituindo-se como objetivos:

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) a) Analisar e compreender as múltiplas intervenções ao longo da Academia e o seu impacto no percurso formativo dos participantes; b) Analisar e compreender os processos de desenvolvimento pessoal e social dos participantes, sobretudo ao nível da autonomização pessoal, social e profissional; c) Sistematizar conhecimentos e experiências associadas à Academia Ubuntu para eventual replicação noutros contextos.

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Sem pretender esgotar as conclusões retiradas pela equipa de investigadores, e muito menos inibir as de outros leitores, são seis as perspetivas presentes na avaliação: 1. Um processo educativo que se enquadra bem na tese de Lester Thurow (2003): «O desafio é criar uma nova geração de "exploradores" para a vida cívica, ciência e economia. O sucesso dos países depende da sua existência.» 2. Um processo que assenta no princípio de que «A aventura da aprendizagem tem de ser gratificante e proporcionadora da descoberta de sentido que está na raiz das grandes transformações identitárias» (Carneiro, 2006). 3. As aprendizagens proporcionadas neste contexto radicam naquela consciência social de que Muhammad Yunus (2011) é porta-voz notável: «Os sonhos são feitos de impossíveis. Teremos de nos atrever a dar saltos audazes para tornar o impossível possível. Mal um impossível se torna possível, abala a estrutura e cria um efeito de dominó, preparando o terreno para tornar possíveis muitos outros impossíveis.» 4. Saber ser e (para) saber agir: duas focalizações, distintas mas profundamente interligadas, que mobilizam o serviço prestado pelos intervenientes na Academia, sejam eles formadores, consultores, tutores, conferencistas ou coordenadores do projeto. Aprender a ser, aprender a viver com os outros, aprender a fazer: três dos quatro pilares que a UNESCO propõe no seu Relatório sobre Educação para o século XXI (1999), estão neste contexto bem presentes. 5. Sustentabilidade do projeto não menos do que sustentabilidade pessoal, i.e., da pessoa que o lidera e leva à prática: a conjugação consistente destas duas preocupações é um traço muito marcante da Academia. O reconhecimento inequívoco de que a sustentabilidade de um projeto social não pode concretizar-se sem a sustentabilidade da pessoa que o cria, lidera e realiza. 6. É possível falar-se de um Método Ubuntu, transversal à Academia e à Incubadora: Profundamente relacional na sua essência conceptual – em sintonia, aliás, com a definição Ubuntu: uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas, eu sou porque tu és! – trata-se de um modelo pedagógico com características singulares, a merecer ser vertido, com possíveis ajustes, em "manual de boas práticas" suscetível de utilização noutros contextos.


Ser Ubuntu: A força de um Processo Relacional Considera-se que a Academia corresponde acima de tudo a uma notável experiência humana, transformadora de vidas, muito centrada num processo de aprendizagem e de transformação social, através de uma pedagogia da relação. Destacam-se a nosso ver, algumas linhas de reflexão: a) A aprendizagem do “eu” como possibilidade de crescimento pessoal e profissional. O projeto da Academia centra-se na pessoa enquanto tal e nesse sentido a sustentabilidade deste projeto cruza-se com a sustentabilidade pessoal, isto é, da pessoa que o lidera e leva à prática. Esta conjugação traduz o processo educativo que foi transversal a toda a experiência, num movimento de consciência e conhecimento de si próprio, para posteriormente assumir o seu papel e lugar no mundo. Nesse sentido, as histórias de vida que tanto destacam os participantes, o trabalho em grupo, os momentos de exposição/apresentações e a convivência entre os participantes tornam-se a principal fonte de aprendizagem e conhecimento pessoal, permitindo ao indivíduo perspetivar-se de uma maneira mais positiva e criando espaço de reflexão sobre si próprio. b) Uma mudança pessoal que provoca um agir responsável e comprometido. A descoberta de si para além dos outros, parece permitir uma abertura para o mundo social, definida como abertura de horizontes e um novo olhar sobre o mundo. As sessões parecem envolver a construção de novas experiências, o enfrentar de acontecimentos até então não vivenciados, o experimentar de novos papéis e o aprender de novos comportamentos, através de figuras de referência, de exemplos concretos reais, o que parece permitir uma projeção de si próprio, uma maior crença de que é possível fazer a diferença, e um maior compromisso e responsabilidade com a realidade social. c) O ”saber ser” e (para) o ”saber agir” Fica demonstrada a total razão de ser da adoção de métodos pedagógicos, de conteúdos formativos e de interventores (formadores e outros) que consagram a indispensável conjugação das aprendizagens do ”saber ser” e do ”saber agir”, a primeira precedendo e configurando a segunda. O investimento da Academia, em sintonia com o da Incubadora, foi na interação deliberada de ambas, desafiando os participantes nos dois territórios que eles têm, e terão, permanentemente de reconhecer e saber ocupar: o do autoconhecimento, o da consciência apurada de quem são naquilo que fazem e na sua relação com os outros, a par do como melhor agir nos contextos humanos específicos que lhes são dados viver e nos quais se propõem, de algum modo, “fazer a diferença”.

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) d) Eu sou porque tu és - uma relação dinâmica O entendimento da necessidade fundamental da existência com e através dos outros assumida desde o arranque da Academia, parece configurar a própria dinâmica metodológica do processo formativo. A consciência de si é progressiva e tece-se na relação com o outro, nem sempre fácil num grupo tão heterogéneo e tão grande, onde inclusive se estabelecem distâncias geográficas, pelo que o desafio se situa em criar espaços de encontro, confronto e reconhecimento de si, do outro e do estado do mundo, numa dinâmica onde o “eu sou porque tu és” se torne palpável. O entendimento da Academia como um espaço de pertença, de afetividade e de responsabilização pessoal, clarifica e consagra «O princípio da prevalência das relações afetivas como elemento determinante no desenvolvimento de identidades integradas e saudáveis e nomeadamente no próprio processo empreendedorístico» (Baron, 2008).

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e) Uma nova identidade Ubuntu O resultado emergente de uma aprendizagem que possibilita a consciência de si e do estado do mundo é a vontade e a capacidade para a mudança, para ser a mudança que gera mudança(s). Os Ubuntus vão fazendo pequenas-grandes escolhas ao longo de todo o percurso de aprendizagem, as quais lhes vão esclarecendo e reforçando os seus recursos pessoais, conferindo novos saberes e novas competências, novos compromissos também, mas sobretudo um novo olhar e a convicção de que é possível gerar transformações desde o ponto onde cada um se encontra. As aprendizagens proporcionadas neste contexto favorecem portanto, a emergência de "uma nova identidade" – e toda uma consciência acrescida do que significa, para cada um, ser responsável, sentir-se responsável e agir responsável. Em suma, destaca-se o que parece ser o núcleo substantivo da identidade Ubuntu: um percurso de aprendizagem, no qual se reforçam os recursos pessoais, conferindo novos saberes e novas competências, novos compromissos, mas sobretudo um novo olhar e a convicção de que é possível gerar transformações desde o ponto onde cada um se encontra. O processo formativo conjuga a consciência e conhecimento de si próprio, e a consciência do outro e do mundo.


Referências Bibliográficas Baron, Robert A. (2008), The role of affect in the entrepreneurial process, Academy of Management Review, vol.33, nr2, p.328-340. Carneiro, Roberto (2006), Hibridação e Aventura Humana, in Revista Comunicação e Cultura nº 1, p. 3757, Lisboa: Quimera Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI (1997), Educação - Um tesouro a descobrir Relatório para a Unesco, S. Paulo: Cortez Yunus, Muhammad (2011), A Empresa Social, Lisboa: Presença Thurow, Lester, C. (2003), Fortune Favors the Bold: What We Must Do to Build a New and Lasting Global Prosperity, New York: HarperBusiness Ana Oliveira 1 José Manuel Seruya2 (Equipa de Avaliação CEP-CEP – UCP)

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1 Mestre em Serviço Social e Doutoranda em Serviço Social. Investigador e docente da FCH/UCP na área de Serviço Social 2 Doutorado em Gestão pela Universidade Jean Moulin – Lyon 3; Investigador e Professor Auxiliar da FCH/UCP


) Da Vivência de Prática da Academia UBUNTU à Reflexão Crítica Um olhar de avaliação externo

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A Academia UBUNTU - AU surge no nosso percurso pessoal e académico no ano civil de 2013, partindo de uma feliz coincidência de vontades para o estabelecimento de uma relação colaborativa de investigação mutuamente benéfica, que rapidamente evoluiu para uma experiência pessoal riquíssima que se situa muito para lá do âmbito estritamente profissional. O mote para o primeiro contacto com a AU foi resultado do nosso envolvimento num projeto de investigação de largo alcance, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia no período compreendido entre 2010 e 2014, intitulado "Empreendedorismo Social em Portugal: as políticas, as organizações e as práticas de educação/ formação", estando igualmente em causa trabalhos conducentes a uma tese de doutoramento. Sobre a última dimensão de estudo já havíamos encetado um processo de recolha e análise de informação acerca do campo educativo e formativo português, «Cuja configuração necessariamente recente se encontrava dominada ora por cursos pós-graduados (nem sempre diretamente ligados a esta temática emergente, mas com estrutura internas que permitiam que a mesma fosse abordada no currículo), ora pelo recurso a eventos (palestras, colóquios, sessões de esclarecimento ) esparsos e de curta duração» (Parente, Costa & Diogo, 2013). No entanto, um dos casos destacava-se daquele panorama em termos das suas particularidades imediatas: tratava-se de um programa educativo com a duração de um mestrado universitário (cerca de 2 anos letivos), mas não o era . A sua promoção estava a cargo de uma organização sem fins lucrativos com o estatuto de Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) e contava com uma vasta rede de parceiros institucionais. Não era certamente um programa de formação de executivos ou de qualificação das práticas de gestão das organizações do Terceiro Setor que, quer no domínio da educação, quer da gestão tende a importar, com frequência e acriticamente, muito do que pior existe no setor privado lucrativos. O que significaria então aquele estranho registo que se singularizava do conjunto das ocorrências? Uma anomalia? Uma inovação? E aquele nome quem nos explica o que quer dizer UBUNTU? Questionámo-nos: estaríamos face a uma serendipidade? Interessava-nos estudar a AU por nela vermos indícios de uma «utopia real», como refere Wright (2010), isto é, de uma instituição prefigurativa que incorpora padrões ético-morais desejados/desejáveis nas suas práticas, tidas como socialmente inovadoras, ou alternativas ao status quo. Selecionado o empreendedorismo social como padrão de medida e conceito operativo3 e a educação/formação, com suas estruturas e agentes, como campo de estudo e nexo de articulação fundamental entre ambos, ape3 Adotamos como definição provisória e operacional a proposta de Mair e Marti (2006) de Empreendedorismo Social como o “processo de criação de valor social, através da combinação inovadora de recursos e da exploração de oportunidades com o fim de (…) responder a necessidades sociais” (Mair & Martí, 2006).


nas o desenvolvimento de um metodologia de análise intensiva baseada num estudo de caso em profundidade, com uma forte presença e "intromissão" nossa enquanto investigadores, nos permitiria refletir, acerca da convergência ou divergência da AU face à matriz teórico-conceptual adotada, mas também compreender, no terreno, que relações e significados estavam a ser construídos e que práticas sociais e estratégias pedagógicas estavam a ser acionadas. As nossas intenções originaram um contacto inicial, cuja resposta não podia ter sido mais positiva: na sequência de um mero telefonema trocado com a equipa de coordenação, chegamos sem qualquer obstáculo ao contacto direto com responsável máximo da AU, Dr. Rui Marques, a quem enviámos a nossa proposta de trabalho e os termos do nosso compromisso. Enquanto recebíamos as primeiras informações de enquadramento que desde logo nos foram disponibilizadas, fomos interpelados por um convite à partilha in loco daquilo que nos estava a ser transmitido, através da participação no primeiro fim de semana residencial da AU 2013/2014. Quatro dias depois, ali estávamos, juntamente com cerca 150 pessoas, na nossa primeira investida no trabalho de campo, observando e participando em todas as atividades, quedando-nos, no fim, sensibilizados pelo acolhimento e forte cumplicidade que aqueles dois intensos dias nos proporcionaram. Naturalmente, foi para nós uma experiência muito significativa, diríamos emocional e afetivamente marcante, porque inesperada nos seus conteúdos e nas vivências, mas também por termos sido confrontados com uma prática pouco comum no nosso contexto cultural ou profissional: a dádiva sem outra razão que não seja o facto de sermos aquilo que somos. Perante a partilha, transparente e sem reservas, de um modo de estar UBUNTU – enquanto filosofia prática e prática da filosofia – e porque nada nos foi pedido, a não ser que fossemos nós próprios, o retorno não foi negociado, ficando antes inscrito no exercício da nossa liberdade. Este exercício foi tanto mais evidente, quando mais tarde, já após um ano de trabalho conjunto com a AU, fomos convidados a apresentar alguns resultados preliminares da nossa investigação, numa sessão em que, integrando representantes das várias partes interessadas na AU, foram discutidos o processo e os resultados numa perspetiva de melhoria e aprendizagem contínua, sob o signo e o desejo de "fazermos melhor"! Este conjunto de atitudes traduzem-se em práticas que atravessam diametralmente a AU, e como consequência, impregna todos os que com ela se envolvem, independentemente dos papéis que num ou noutro momento desempenham. Falamos, no fundo, da construção prática de uma legitimidade que não só ninguém ignora, como cresce com cada formando que ali se inscreve, com cada parceiro que se associa, com cada hora que é despendida voluntariamente. A sua essência surge do encontro de vontades, meios e necessidades segundo uma lógica de colaboração permanente, vertida numa praxis quotidiana que dissemina não só um determinado conjunto de valores, mas principalmente um sentido de respon-

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sabilidade pela manutenção e desenvolvimento de um projeto coletivo. No seu, ainda curto, tempo de vida, a AU conseguiu implementar uma cultura que, à semelhança dos seus objetivos e metodologias sociopedagógicos, estimula a comunhão, a coesão, a intersubjetividade e o sentido de bem comum. Por exemplo, ao conceptualizar o grupo de formandos como «uma comunidade de prática» onde a partilha de vivências e interesses é estimulada tendo em vista objetivos comuns (Wenger, 1998, cit in Howorth, Smith, & Parkinson, 2012), o projeto educativo alinha pelos proponentes das Teorias da Aprendizagem Social. Estes concebem a aprendizagem como uma participação no mundo real, inseparável da aprendizagem interpares, da aprendizagem situada, da identidade, da reflexão e do significado (Howorth, Smith, & Parkinson, 2012), sendo igualmente enfatizados os processos de participação e interação, entre e através dos formandos, num contexto real e informal de aprendizagem, em detrimento do foco no processamento da informação debitada por um agente detentor do conhecimento (Gherardi et al., 1998, cit in Howorth, Smith & Parkinson, 2012). Isso é especialmente evidente na vertente de incubadora social, onde são exploradas as dimensões de grounded learning, entendidas como "aprender fazendo" ou a aprendizagem pela prática, existe a preocupação pela paulatina, mas sistemática, construção de um conhecimento cimentado na experiência e contextualizado nas vivências sociais. Colocando estes preceitos no terreno da prática, Brock e Steiner (2009) defendem que a aprendizagem mais eficaz no domínio do empreendedorismo social é mediada pela prestação de serviços à comunidade, que passa pelo planeamento e construção de projetos de socialmente empreendedores, ainda que sob a forma de protótipos. Para além de suportar a formação de uma determinada atitude (empreendedora), que inclui a capacidade de assunção de riscos, a tenacidade ou a resiliência para fazer face à escassez de recursos e às adversidades que um empreendimento social enfrenta, potencialmente também integra diversas vantagens, encapsuladas nas oportunidades de transferência de conhecimento entre a sala de aula e o contexto de trabalho, ou por outras palavras, na síntese entre teoria e prática. Essa é uma dimensão que a AU cumpre ao longo dos dois anos letivos, mas especialmente a partir do segundo, através do desenho e concretização de projetos orientados para a intervenção social, numa fase de aprendizagem caraterizada também pelo forte envolvimento de uma diversidade assinalável de atores individuais e institucionais. Aqui, a iniciativa é impulsionada e não se enfraquece perante os erros, pois estes são encarados como oportunidades, num contexto apropriado à lógica de tentativa-erro onde o insucesso é considerado uma forma de aprendizagem e não representa a exclusão ou a imputação de culpa pessoal. Adicionalmente, é reveladora da cultura de aprendizagem contínua, que sobrepõe a vertente mais prática à teórica. Ainda que este projeto educativo não seja diretamente suportado por linhas de investigação académica, propõe-se a produzir uma refle-


xão teórica a partir da intervenção propriamente dita, em concordância com a lógica indutiva em momentos anteriores aludida, numa postura de descoberta permanente. Assim, pode dizer-se que o projeto educativo dedica-se a promover uma grounded theory, baseada mais concretamente na construção paulatina e sistemática de uma "memória do projeto", quer por via da produção de artefactos (entre os quais, a presente obra) e de registos audiovisuais de todas as atividades, quer pela valorização dos processos e momentos de avaliação, interna e externa, enquanto fonte de legitimação das opções futuras. Também este aspeto se revela crucial na consolidação quer da estrutura criada, quer do caminho por ela percorrido, quer do futuro a projetar e a concretizar. Quanto aos objetivos do programa educativo, estes parecem passar pela obtenção de resultados e impactos diretos nos formandos, bem como resultados e impactos indiretos nos contextos externos, nas comunidades de origem, gerando repercussões que excedem a dimensão pessoal. Por incentivar a criação de espaços de liberdade, autonomia e valor social e económico em comunidades multidesafiadas, tal desiderato configura, inequivocamente, um programa de educação para o empreendedorismo social. Por sua vez, no âmago do perfil educativo/formativo, encontramos menos uma preocupação com a sustentabilidade futura dos projetos que estão a ser desenhados, e um enfoque mais forte na sustentabilidade pessoal, isto é, no trabalho didático ao nível da identidade, pessoal e coletiva, consubstanciada na aquisição e assunção de um conjunto de atitudes e competências que se traduzam num reforço das capacidades de liderança dos formandos. E, em última análise, em potenciais ou reais transformações sociais. Pode dizer-se que a imersão nas políticas de identidade foi o que motivou o processo de materialização da AU, providenciando, em primeiro lugar, todo o conjunto de condições sociais e teóricas que permitiram a "descoberta" desta oportunidade de responder a uma necessidade social não suprida. Com efeito, foi constatado que existe uma parte da população portuguesa – os descendentes de imigrantes – que é especialmente vulnerável à exclusão social e a todos os fenómenos sociais e sentimentos pessoais nocivos que esta acarreta. Concomitantemente vislumbrou-se uma ausência de iniciativas educativas e formativas dirigidas aos adolescentes e jovens adultos desta população, especialmente dedicadas à formação de lideranças capazes de intervir eficazmente nos problemas das comunidades de origem. A identidade tematizada4 dos descendentes de imigrantes está, por assim dizer, na origem deste processo socialmente empreendedor. No seguimento, procurou-se apresentar uma nova luz sobre um conjunto de pessoas 4 As identidades tematizadas, ou políticas de identidade, são estratégias deliberadas e reflexivas de politização e colocação na esfera do discurso público de uma situação social qualquer sob o ponto de vista da problemática identitária, geralmente com o objetivo de se constituírem ou potenciarem dinâmicas de ação social (Costa, 2002: 27).

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portadoras da identidade designada5de "líder servidor". Isto é na AU procura-se ilustrar e transmitir, de forma indutiva, os múltiplos significados de liderança através dos exemplos reais de pessoas, que, nos seus contextos, se constituem como referenciais normativos de ação positiva. O mais notório será o de Nelson Mandela, recentemente desaparecido, mas figura maior da construção da sociedade arco-íris na África do Sul pós apartheid. O seu magnífico e histórico exemplo em favor dos outros parece deter um apelo muito forte a todos os formandos que contactam com a sua experiência de vida. Apesar de um evidente cunho étnico, este substrato filosófico não é restrito, apresentando um potencial multicultural e um apelo universal. De facto, esta não é a única fonte de inspiração, tal como as referências não se esgotam naquela cultura africana. Aqui vai-se mais longe, e buscam-se referências de diversas culturas mas cuja humanidade se situa num plano superior, como por exemplo Martin Luther King, Desmond Tutu, Mahatma Gandhi, ou Aung San Suu Kyi. As vidas destes líderes, ou partes das mesmas, são então exploradas e as suas ações tornam-se alvo de discussão e reflexão em diferentes sessões de trabalho da AU. Os seus estilos de liderança, e consequentes comportamentos e atitudes, servirão então o propósito de ilustração da "liderança servidora" e conceitos adjacentes que aliás enquadram o conceito e leitmotiv UBUNTU: “Eu sou porque tu és". É igualmente essa filosofia que guia o trabalho pedagógico desenvolvido ao nível da identidade experimentada,6 porque é a partir dos percursos biográficos dos formandos, do seu papel na comunidade e da sua proximidade aos contextos críticos, que o percurso pedagógico é encaminhado no sentido da identidade socioprofissional de "empreendedor social". Com efeito, as opções pedagógicas da AU assentam numa construção curricular que, de forma transversal, promove uma aceção integrada da aprendizagem relacionada com a conduta profissional "própria" dos empreendedores sociais que, sob uma certa perspetiva, consiste num conhecimento acerca da gestão de organizações acoplado a um tipo de inteligência emocional com certos valores subjacentes e propiciadores da mudança social (Kickul, Janssen-Selvadurai, & Griffiths, 2012), frequentemente enquadrada por termos como a empatia, a espiritualidade e a compaixão (Mort, Weerawardena & Carnegie, 2003), que se situa algures entre o coração e a mente (Plaskoff, 2012). Desta forma, tenta-se conjugar os anseios de fazer a diferença no mundo com a visão pragmática do gestor/empreendedor social que vai para além de uma mera profissão (Dey & Steyaert, 2012). Contornando as dicotomias simplistas com uma outra aparentemente similar, di5 As identidades designadas reportam-se a construções discursivas ou icónicas sobre grupos ou identidades sociais, atribuídas por outrem que não têm com elas qualquer relação subjetiva de pertença (Costa, 2002: 27). 6 As identidades experimentadas remetem para as representações cognitivas e os sentimentos de pertença que um conjunto de pessoas partilha, relativamente a coletivos categoriais, grupais, institucionais ou outros a que pertencem (Costa, 2002: 27).


remos que a configuração pedagógica da identidade opera num processo dinâmico de interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade (Bourdieu, 1995). Todas as vivências próprias, experiências de socialização ou de trabalho constituem recursos pessoais a serem acionados por estes formandos, cuja maioria conta com experiências anteriores, voluntárias e/ou profissionais, no âmbito da intervenção social. Partindo do pressuposto de que os formandos são não apenas os melhores conhecedores do campo de intervenção, como aqueles que se encontram numa melhor posição estratégica para perceberem as necessidades sociais da sua comunidade, torna-se necessário encetar um caminho de desenvolvimento pessoal que possibilite o desenho e execução de uma intervenção contextualizada e significativa (sem estes elementos não há impacto social, nem potencial de replicabilidade, nem chavões afins). Aqui, a estratégia contempla dois momentos: i) A tomada de consciência sobre o self e as capacidades próprias, através de técnicas de aprofundamento do autoconhecimento; ii) A criação de uma visão estratégica, crítica e criativa, aliada a capacidades empáticas e de escuta ativa, orientada pela sensibilidade subjetiva aos problemas e desafios sociais. Para concretizar esta estratégia, são convidados múltiplos atores - desde personalidades reconhecidas com Prémio Nobel a alumni anónimos de edições passadas - para participar no processo de aprendizagem. Sem que estas pessoas se revelem distantes por via do seu estatuto social, ou que desta diversidade sobressaia uma dependência face a um ou outro tipo de contributo, todos aqueles que dedicam tempo e atitude parecem ser indispensáveis, pelo que tudo tem a ver com a qualidade dos relacionamentos e interações, com o grau de implicação e cuidado que é posto em cada momento. Na AU, toda a metodologia pedagógica se desenvolve em torno de uma conceção relacional do ser humano, em detrimento de uma visão mais funcionalista. O que nos leva ao reverso da medalha, isto é, à intenção pedagógica de exteriorização da interioridade, no sentido em que se espera que a configuração identitária, nos seus diversos níveis, se cumpra nas suas condições objetivas, no espaço exterior aos indivíduos, nas pessoas, nas instituições, nos contextos que o rodeiam. Este processo de exteriorização das disposições internas ocorre desde logo através do estímulo à autoconfiança, por exemplo através do treino de competências de comunicação, com uma abordagem que tem como objetivo fazer germinar nos formandos o sentimento de que têm a capacidade, os recursos e as ferramentas para dar um contributo válido para as suas comunidades. Por outras palavras, o intuito geral também passa por dotar os formandos de um forte sentimento de autoeficácia (Bandura, 1986).Depois, a valorização de todo e qualquer indivíduo, com seu contributo e subjetividade próprios, não impede (antes pede) a possibilidade de realização pessoal pela partilha. Suscita (não exige) um forte envolvimento emocional, consubstanciado no estabelecimento de relações marcadas pela confiança, pela empatia e pela afetividade, o que por sua vez reforça a disponibilidade e a apropriação dos caminhos da intervenção sociopedagógica.

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Se existe algum momento capaz de ilustrar este ponto, esse será o da partilha das próprias histórias de vida dos formandos, com toda a sua complexidade e originalidade. Os impactos provocados, diretamente no sujeito que reflexivamente comunica aspetos da sua própria autobiografia, e indiretamente nos colegas que a ouvem e sobre ela se posicionam, não seriam obtidos na ausência de um espaço solidário sobre o qual se torna possível verter algumas das mais íntimas confidências. É no espelho que cada um observa no outro, que se encontra e percebe a natureza gregária de pertença como uma necessidade básica dos seres humanos. Por conseguinte, estamos defronte de um processo de socialização tendente à configuração identitária, mediante o desenvolvimento de competências pessoais e com base nas necessidades, expectativas, vivências e valores dos formandos, através de uma pedagogia humanista e apologista da interdependência entre seres humanos, tida como substrato espiritual e material da existência, mas também propiciadora da aprendizagem interpares, da coesão grupal e da coesão social. Tudo isto assente na matriz de uma educação não-formal que, para além de permitir uma assinalável flexibilidade programática, surge como novidade relativamente aos diversos percursos escolares de cada formando. Ao promover a surpresa, a reflexividade e a participação, esta é uma metodologia pedagógica que detém o potencial de gerar uma assimilação dos conhecimentos eficaz, por via do acionamento da criatividade e do sentido prático. Parte dos elementos que compõem essa novidade passam pela inclusão de tecnologias e meios audiovisuais não específicos ao terreno da educação e formação, como por exemplo a web 2.07 ou os filmes de longa-metragem. Outra parte surge da relação horizontal, informal, recíproca e responsável que se estabelece entre todos aqueles que se envolvem na AU, visível, por exemplo, nas conversas informais em que "degeneram" as conferências com atores sociais relevantes no panorama nacional e internacional, por oposição a outras instâncias onde o foco está no processamento da informação debitada por um agente detentor do conhecimento (Gherardi et al., 1998, cit in Howorth, Smith & Parkinson, 2012). Outra parte ainda advém, estamos em crer, da impregnação de uma forte racionalidade e sentido estético-expressivo, ou seja, de contemplação e fruição estéticas acopladas às ideias de comunidade, identidade e comunhão (Santos, 2006). É por isso que é dada grande ênfase aos contextos físicos da aprendizagem enquanto marcas de qualidade e prestígio, elementos simbólicos da dignidade e de fruição do belo. É também, e sobretudo, por isso que as artes performativas e a prática desportiva assumem uma centralidade inequívoca no programa educativo. Enquanto veículos da expressão identitária, eles criam, consolidam e incrementam a coesão grupal, contribuindo dessa forma para os objetivos de mudança pessoal e social. 7 Web 2.0 é um termo criado em 2004 para designar uma segunda geração de comunidades e serviços, tendo como conceito a Web como plataforma, envolvendo wikis, aplicativos baseados em folksonomia, redes sociais e tecnologia da informação.


Tudo isto resulta numa experiência, em si mesma, social e pedagogicamente inovadora, que não discrimina classes sociais, níveis de escolaridade, etnias ou géneros, antes inclui todos esses critérios como condição de acesso à sua forja identitária. Contudo, outras racionalidades, com relevância suficiente para figurar num programa educativo dedicado ao empreendedorismo social não se encontram aqui tão presentes, de acordo com o padrão conceptual por nós adotado. Falamos essencialmente de aspetos que, parecendo-nos cruciais para o futuro deste campo, podem ser sintetizados em três défices interligados: i) Défice crítico em relação às formas de opressão vigentes nas sociedades contemporâneas; (2) Défice de conhecimento técnico e científico alternativo; (3) défice de cidadania, advocacia e participação política. Referindo-nos ao primeiro défice, pensamos que ação refletida deve ter em conta não só as potencialidades de emancipação como os constrangimentos que a ela estão inerentes. Por exemplo, o colonialismo8 é, evidentemente, uma manifestação opressiva abordada no currículo da AU, aí representado pelo que foi o apartheid da África do Sul. Mas raramente se exploram as causas subjacentes, os seus mecanismos e motivações. Nem se predispõe uma análise crítica da sua força ou tendências na atualidade. Antes se apontam os caminhos da resolução pacífica dos conflitos, descurando, de certa forma, os ensinamentos e as balizas providenciadas pelo lastro histórico. Imiscuir-se da crítica à opressão pode ser, na verdade, uma consequência do substrato axiológico e filosófico adotado, no sentido em que a congruência acaba por resultar em ganhos e em perdas. Parece-nos que este défice pode limitar não só a compreensão dos fenómenos sociais, especialmente daqueles que designamos por "problemas" ou !necessidades" sociais, mas também a capacidade de neles intervir e provocar a mudança social sistémica. Um outro entrave a essa capacidade encontra-se no segundo défice. Desta vez, a AU sofre pelo facto do próprio campo académico se encontrar ainda num estádio de "infância" (Nicholls & Cho, 2006) onde à falta de reais progressos teóricos e empíricos se contrapõem a abundância discursiva, as imagens heroicas do empreendedor social, ou a fé nas soluções gestionárias e de mercado (Dey & Steyaert, 2012), importadas do setor privado lucrativo, muito inspiradas na escola da inovação social e da geração de receitas de origem anglófona. No entanto, outras escolas teóricas, valorizando outras epistemologias, nomeadamente as epistemologias do sul (Santos, 2008) podem informar a criação de verdadeiras alternativas sob a forma de empreendimentos coletivos. Tal é o caso das seguintes perspetivas: (1) Economia Social, de âmbito europeu, dedicada especialmente à integração jurídica e normativa no Terceiro Setor das novas propostas e dinâmicas mundiais, 8 Referido aqui como um conceito que, num sentido estrito, reflete a opressão de um povo sobre outro por via do exercício de uma dominação material e simbólica, e num sentido lato acaba por englobar qualquer atitude e/ou comportamento discriminatório fundamentados na suposta superioridade de um grupo social face a outros.

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) com uma tónica colocada nos mecanismos organizacionais internos e externos que, obedecendo a uma estratégia e gestão participadas e orientadas para as partes interessadas, asseguram a prossecução de objetivos sociais de acordo com princípios democrático e de governança (Defourny & Nyssens, 2010b). (2) Economia Solidária, conceptualizada por autores francófonos mas com grande adesão na América do Sul e semiperiferia europeia, que para além de uma outra forma de fazer economia, se define como e um movimento de transformação social sob princípios modernos de solidariedade, participação política e cooperação económica, pelo que esta é uma corrente que advoga a adoção de princípios económicos heterodoxos de redistribuição, reciprocidade e utilização criativa de recursos monetários e não monetários, bem como o estabelecimento de relações equitativas, solidárias e democráticas, quer na organização interna do trabalho, quer em relação à comunidade envolvente (Laville, 2009).

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Com efeito, estas duas correntes de pensamento poderiam, no futuro, constar de forma mais visível no programa da AU, pois são as abordagens que melhor podem informar a criação de um conhecimento prático acerca da especificidade da intervenção social, nomeadamente no que diz respeito à organização dos meios de produção, à gestão das equipas de trabalho, às relações com a comunidade e outras partes interessadas Enfim, criando uma organização social alternativa aos modos de produção capitalista e legitimando-a nos seus três polos institucionais: moral/normativa; pragmática e cognitiva (Suchman, 1995). Por fim, a procura de legitimação institucional entronca no terceiro défice elencado, no sentido em que a inscrição de uma dada prática social no terreno das relações sociais normativamente sancionadas implica o seu reconhecimento por parte dos outros agentes, e em especial, do Estado. Dessa forma, uma determinada vivência moral e prática só é legítima se for passível de ser inscrita no quadro da produção e distribuição do Direito. O que também quer dizer que aquilo que está fora desse quadro, ou que acarreta sanções e punições, pode um dia estar dentro e ser alvo, por exemplo, de discriminação positiva. Para tal, implica-se o exercício da cidadania, mais concretamente a participação política com vista à defesa de uma causa ou prática frequentemente ameaçadora para o status quo. Visa, portanto, resistir às tendências de homogeneização e universalização, por via da afirmação de uma ética particular e vivida. Parece-nos que, quanto às éticas particulares saídas da AU, pouca atenção é dada quer ao seu enquadramento jurídico no que existe, nomeadamente na miríade de tipologias organizativas, cada qual com suas especificidades (E.g. cooperativas, associações, mutualidades, etc.), quer aos meios e possibilidades da sua afirmação no que poderá vir a existir. Não obstante, e neste


domínio, é de reter a intensa vivência prática e reflexiva de valores e comportamentos com vista à criação de projetos coletivos (de matriz colaborativa e participativa) e alternativos àquilo que frequentemente se presencia no "mundo real". Se não nos abstemos de afirmar que existem possíveis margens de melhoria, também queremos deixar bem claro que AU apresenta uma estrutura educativa muito completa e incrivelmente diferente dos restantes programas de educação formal e não-formal que se encontram em Portugal. Por isso, não se pode esperar nem exigir que tudo aquilo que é ali construído seja um produto acabado, a materialização de tudo o que os Ubuntus são. Simplesmente porque nem as experiências vividas na AU se cristalizam num projeto organizacional, nem as suas vidas cabem ou se resumem a um projeto educativo, por mais ambicioso que este seja, ou por mais nobres que sejam os seus objetivos. Que esse percurso se traduza na permanente necessidade de construir e participar em ambientes sociais e profissionais mais humanos, colaborativos, inclusivos, justos, democráticos, solidários, equitativos Tal é a marca de sucesso deste programa.

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Referências Bibliográficas Bandura, Albert (1986). Social Foundations of Thought and Action. Englewood Cliffs, N. J.: Prentice Hall. Bourdieu, Pierre (1985). The genesis of the concepts of Habitus and of Field. Sociocriticism, 2, pp. 11-24. Brock, Debbi & Steiner, Susan (2009). Social Entrepreneurship Education: Is it achieving its desired aims? Disponível em : http://ssrn.com/abstract=1344419 Costa, A. F. (2002). Identidades culturais urbanas em época de globalização. Revista brasileira de ciências sociais, 17(48), pp. 15 – 30. Dey, Pascal, Steyaert, Christopher. (2012) Social entrepreneurship: critique and the radical enactment of the social. Social Enterprise Journal, 8 (2), pp. 90 – 107. Defourny, Jacques, & Nyssens, Marthe (2010b). Social enterprise in Europe: At the crossroads of market, public policies and third sector. Policy and Society, 29, pp. 231-242. Dubar, Claude (1995). A socialização: Construção das identidade sociais. Porto: Porto Editora. Fuchs, K., Werner, A., & Wallau, F. (2008) Entrepreneurship education in Germany and Sweden: what role do different school systems play? Journal of Small Business and Enterprise Development, 15(2), pp. 365-381. Howorth, C., Smith, S. M., & Parkinson, C. (2012). Social Learning and Social Entrepreneurship Education. Academy of Management Learning & Education, 11(3), 371-389. doi: 10.5465/ amle.2011.0022 Kickul, J., Janssen-Selvadurai, C., & Griffiths, M. D. (2012). A Blended Value Framework for Educating the Next Cadre of Social Entrepreneurs. Academy of Management Learning & Education, 11(3), 479-493. doi: 10.5465/amle.2011.0018 Laville, Jean-Louis (2009). A economia solidaria: Um movimento internacional. Revista Crítica de Ciências Sociais, 84. Coimbra: Centro de Estudos Sociais. Mair, Johanna, & Martí, Ignasi. (2006). Social entrepreneurship research: A source of explanation, prediction, and delight. Journal of World Business, 41(1), 36-44. doi: 10.1016/j.jwb.2005.09.002 Mort, G., Weerawardena, J., & Carnegie, K. (2003). Social entrepreneurship: towards conceptualisation. International Journal of Nonprofit and Voluntary Sector Marketing, 8, 76-88. Nicholls, Alex & Cho, Hiyunbaye. (2006). Social Entrepreneurship: The Structuration of a field. In A. Nicholls (Ed.), Social Entrepreneurship: New models of sustainable social change. Oxford: Oxford University Press. Parente, Cristina, Costa, Daniel & Diogo, Vera (2013). Educação para o Empreendedorismo Social. In Redford, Dana (Ed.) Handbook de educação para o empreendedorismo no contexto português (pp. 361 411) Lisboa: Universidade Católica Plaskoff, J. (2012). Building the Heart and the Mind: An Interview With Leading Social Entrepreneur Sarah Harris. Academy of Management Learning & Education, 11(3), 432-441. doi: 10.5465/ amle.2011.0010 Santos, Boaventura Sousa (2002). Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. Porto: Edições Afrontamento. Santos, Boaventura Sousa (2008). Epistemologias do Sul. Revista Crítica de Ciências Sociais, 80, pp. 5-10. Smith, B., Barr, T. Barbosa, S. and Kickul, J. (2008). Social Entrepreneurship: A Grounded Learning Approach to Social Value Creation. Journal of Enterprising Culture, 16(4) pp. 339–362. Suchman, M. (1995). Managing Legitimacy: Strategic and Institutional Approaches. The Academy of Management Review, 20(3), pp. 571-610 Wright, Erik Olin. 2010. Envisioning Real Utopias. New York: Verso.

Cristina Parente9 Daniel Costa10 (Universidade do Porto)

9 Doutorada em Sociologia pela Universidade do Porto; Professora Auxiliar com Agregação do Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e Investigadora do Instituto de Sociologia da mesma Universidade. 10 Mestre em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e e Ciências da Educação da Universidade do Porto, doutorando em Sociologia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.


ANDAR VIII ) DAR DE VOLTA

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) Dar de volta Poderíamos chamar a este andar produtos ou resultados da Academia, contudo, resolvemos intitulá-lo de "dar de volta" por ir ao âmago do que são os seus efeitos diretos ou colaterais – querer contribuir mais para a sociedade e ser fator de multiplicação de iniciativas sociais sustentáveis através da capacitação de lideranças jovens. Neste andar poderá encontrar um lugar de trabalho, muito trabalho. Um espaço de experimentação e resiliência, de criatividade e inovação, onde os sonhos se concretizam e autonomizam. Apresentam-se quatro dos projetos desenvolvidos na Incubadora Social Ubuntu da primeira edição, terreno onde se ultrapassa o desenvolvimento de competências individuais e coletivas de gestão de projetos. Evidência da determinação de quem quer criar novos caminhos de intervenção e de resolução de problemas sociais complexos. Porque, tal como a arte, o desporto é um meio educativo de excelência, ainda no mesmo andar (entre cadeiras, computadores e mesas de trabalho): um campo de rugby Ubuntu! p

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Ubuntu Rugby A tarde ia já avançada, a marcar o fim desse dia de luta. Em breve, os jogadores podiam passar à terceira parte do jogo. Esperavam serenamente, entre banhos e curativos, os rituais intemporais de afirmação de grupo e de pertença que se seguem aos jogos de rugby. Nesse torneio de maio de 2011, defrontaram-se as equipas de maior rivalidade vinte anos antes, no Campeonato Universitário de Portugal. Agronomia e Técnico, com mais algumas universidades agrárias convidadas, celebravam de novo os grandes confrontos que os opuseram durante anos, onde se viveram derrotas esmagadoras, reviravoltas e picardias, jogos decididos por um pontapé, em combates sempre reiniciados, mas acima de tudo, onde se forjaram amizades baseadas no respeito e na generosidade da entrega ao jogo. A conversa chegou por aí a um novo projeto de rugby em Portugal, país onde a modalidade estava em franco crescimento, pretendendo-se tirar partido dos valores essenciais do rugby na construção de um mundo melhor. Um treinador sul-africano a viver em Portugal, Philip Kellerman, estava a criar um clube de raiz, angariando jogadores nas regiões limítrofes de Lisboa, onde o rugby não tem tido penetração relevante. Com grande ambição desportiva, mas também com um grande sentido humanista, o Philip trabalhou durante dois anos a lançar sementes de projetos em diversos locais, associando com muita naturalidade as escolas internacionais, às quais a sua condição de expatriado dava um acesso facilitado, com os bairros menos favorecidos, onde a população jovem cresce, e encontra por isso, muitos potenciais jogadores a quem ensinar os rudimentos deste desporto. Um dos ex-jogadores do Instituto Superior Técnico aproximou-se deste projeto, criando uma relação com o Philip Kellerman, e transportando consigo a ideia de dar a experimentar a mais rapazes e homens aquilo que o rugby lhe tinha dado a ele próprio. O projeto Kellerman atinge um ponto de viragem em setembro de 2012 pela necessidade de emigração do Philip e dos seus dois mais próximos colaboradores no projeto. Entra em campo então a força das relações cimentadas nos campos de Rubgy, e o projeto encontra continuidade num grupo de ex-jogadores de diversos clubes que acreditam, também eles, que os valores elevados deste desporto podem servir para formar homens capazes de transformar as suas vidas, e assim transformar as dos que os rodeiam. Homens que têm a coragem para lutar sozinhos, quando a isso são obrigados, mas que sabem o que vale a força da união e da confiança - e por isso sabem dar e receber. E pegam no núcleo de jogadores do Cacém / Rio de Mouro e embarcam com eles nesta aventura.

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) E o que tem o rugby de tão especial para que possa ter este efeito tão extraordinário? Tem um conjunto de valores, promovidos ao mais alto nível pelo International rugby Board (Instituição que governa as federações de rugby a nível internacional), que são vividos em campo e fora dele, e sem os quais o rugby não seria o que é:

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INTEGRIDADE - A integridade pessoal é central na estrutura e organização do rugby, e consegue-se pela honestidade e fair play.

PAIXÃO - A pessoas ligadas ao rugby nutrem verdadeira paixão pelo jogo. O rugby gera entusiasmo e uma ligação emocional, e sentido de pertença à grande família do rugby.

SOLIDARIEDADE - O rugby promove um espírito de união ímpar que invariavelmente promove a amizade, camaradagem, espírito de equipa e lealdade para toda a vida, ultrapassando quaisquer diferenças culturais, políticas ou religiosas.

DISCIPLINA - Parte integrante do jogo, dentro e fora de campo; reflete-se no cumprimento estrito das regras e regulamentos.

RESPEITO - Exige-se sempre o respeito pelos parceiros, adversários, árbitros, e todos os envolvidos no jogo. É verdadeiramente praticado e considerado a única forma de comportamento aceitável.

É por isso que a Academia Ubuntu, ao conhecer este projeto, e ao perceber o alinhamento de visão e missão, apadrinha o projeto, dando-lhe uma nova existência, e projetando-o mais além. É assim que, ainda sob a insígnia Kellerman, é disputado o campeonato nacional da 2ª divisão da Federação Portuguesa de Rugby 2012-2013. Todos os jogos desta época foram perdidos do ponto de vista desportivo (pontos marcados - pontos sofridos), mas muitos foram ganhos pela presença honrada em campo. Um dos jogos, contra o Sporting Clube de Portugal, deixou-nos o testemunho emocionado do treinador desta equipa: «Muitas pessoas dizem-me que o rugby é escola de vida, mas para certas pessoas a vida também pode ser escola de rugby. Quando percebi isso? Simples, aquando de um jogo de rugby onde a minha equipa - o Sporting Clube de Portugal - defrontava na segunda mão a equipa Kellerman. O que eu consegui ver para além da habitual análise técnica da minha equipa foi sem dúvida um grupo de jovens - doze no total, nem sequer tinha uma equipa completa que jogava o jogo pelo jogo, sem olhar para a diferença pontual, ou sequer se estava a


ganhar ou a perder. O que eu vi foi um grupo de amigos sempre a tentar ultrapassar os seus próprios limites. O que eu vi, e que pela primeira vez fez sentido para mim, é que nem sempre quem perde, perde, e quem ganha, ganha. Este grupo, que nunca virou a cara ao desafio, este grupo que nunca, mas nunca, baixou os braços, este grupo não!, esta EQUIPA - é que venceu o jogo. Foi para mim, treinador da equipa adversária, uma enorme alegria ver estas caras cheias de alegria, independentemente da derrota. Via nos olhos e nas caras que o prometido tinha sido cumprido, uns pelos outros, ninguém a baixar a cabeça, sabendo que dentro do campo tinha deixado tudo, pela amizade, pelo companheirismo, e sobretudo pela alegria de poder ainda jogar alguns minutos com esta equipa. Grande trabalho dos dirigentes, grande trabalho do meu amigo treinador mas sobretudo grande lição que estes meninos nos ensinam. Se isto é rugby, sim senhor: após 34 anos a praticar este desporto, voltaria a fazer isso tudo de novo só para reviver estes oitenta minutos que para mim deram um sentido à palavra rugby. Continua esta fabulosa viagem talvez com outro nome, mas para mim, Carlos Castro, a equipa do Kellerman ganhou o meu respeito.»1 A época 2013-2014 arranca já com a equipa integrada na Academia Ubuntu, com o nome Academia Ubuntu Rugby e começam, finalmente, fruto de tanto trabalho e tanta humildade aprendida com as derrotas - ou serão realmente vitórias? - a surgir as primeiras vitórias, para alegria de jogadores e apoiantes. A Academia Ubuntu Rugby continua a procurar dar corpo à sua visão, com as dificuldades e barreiras que sempre aparecem na vida, mas com a força de quem vive na vida o mesmo espírito de combate generoso e franco, sacrificado mas simultaneamente alegre, que a prática do rugby traz aos afortunados que o apreciam e o conhecem. Pedro Mira Vaz (Coordenador Ubuntu Rugby)

1 Carlos Castro Treinador principal do Sporting Clube de Portugal Rugby

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Em Setembro de 2010 a Associação Lusocaboverdeana de Sintra – ACAS recebeu a informação sobre a Academia Ubuntu (AU) e inscreveu quatro jovens com potencial de liderança na qual eu estava incluída, Graciete Borges, colaboradora da Associação. Assim, de Outubro de 2011 a Outubro de 2012, participamos no programa da AU, que visa a capacitação de jovens ao nível da liderança. Após o primeiro ano de implementação da Academia surge um novo desafio, a Incubadora Social Ubuntu, na qual fomos desafiados e pensar num projeto de inovação social para a nossa comunidade. Convidei três amigas a participar nesta segunda fase da Academia, Débora Semedo, Otília Santos e Jairse Freire, que partilhavam da mesma vontade de fazer algo pela comunidade do Bairro dos Navegadores. Como ex-atletas federadas todas nós sabemos da importância do desporto e da participação em atividades estruturadas, para o desenvolvimento pessoal e social das crianças e jovens, e do impacto positivo que pode ter na vida de cada um deles. Assim, o nosso desejo sempre foi poder dar a mesma oportunidade à nossa comunidade. A nossa ideia era clara, criar um Espaço onde as crianças e jovens pudessem ocupar os seus tempos livres de forma saudável e de qualidade, e que possibilitasse aos mesmos saírem dos "muros do Bairro” e conhecer o mundo para além desses limites. Durante nove meses trabalhámos na construção do nosso projeto, que contou com o apoio de José Costa Ramos, Padrinho do projeto, e Patrícia Carvalho, consultora do IADE, que nos deram todas as ferramentas e orientações para passarmos de ideia a projeto estruturado. Após inúmeros encontros e reuniões surge o projeto EMBARCA, um projeto de cariz social que na sua intervenção junta o lúdico ao pedagógico e que tem como objetivo central contribuir para o desenvolvimento pessoal e social das crianças e jovens. O nome "EMBARCA" surgiu através da referência do nome do bairro - "Bairro dos Navegadores", sendo uma espécie de convite à comunidade a embarcar connosco nesta aventura. Depois do nome escolhido e do projeto estar estruturado, foi feita a imagem do mesmo pelo aluno do IADE Manuel Gonçalves, num fim de semana promovido pela AU: Creative Weekend. O logótipo foi pensado na perspetiva do nosso público-alvo principal, sendo este a imagem de um barco de papel. Depois desse período de construção e estruturação do projeto pusemos mãos-à-obra e começámos a estabelecer os primeiros contactos a fim de criar parcerias e conseguir apoios. Os primeiros contactos foram feitos com as instituições locais e depois com a Câmara Municipal de Oeiras. Nesta caminhada tivemos conhecimento da abertura das candidaturas para quinta Geração do Programa Escolhas. Para nós foi a oportunidade perfeita, na medida em que o nosso projeto se encaixava perfeitamente nos objetivos do Programa Escolhas. A Câmara Municipal de Oeiras disponibilizou-se em


ser a nossa entidade promotora e o IPAV a nossa entidade financeira. Reunidos todos os critérios de candidatura necessários, partimos para a elaboração da mesma, que foi aprovada, tendo o projeto arrancado no início de Março de 2013. A equipa Embarca é constituída por seis elementos (Jairse Freire, Helder Silva, Débora Semedo, Otília Santos, Graciete Borges e Nelson Tavares), contando ainda com a colaboração de 3 jovens inseridos no Programa de Ocupação de Tempos Livres da Câmara Municipal de Oeiras e de voluntários. O projeto EMBARCA tem tido grande impacto, não só no público principal (crianças e jovens), mas também no resto da comunidade. Após o primeiro ano de implementação temos como resultados mais relevantes a diminuição do absentismo escolar, a redução dos comportamentos de risco, a participação ativa dos encarregados de educação, o aumento da procura de emprego, um maior contacto com o exterior através de atividades organizadas fora do projeto e o encaminhamento para cursos profissionais. Para além desses resultados o projeto Embarca também ganhou o concurso a nível nacional "Boas Notas", uma campanha de sensibilização, dirigido às crianças e jovens (ciganos e não-ciganos) e seus familiares, para a importância da escola, enquanto instituição de socialização e de promoção de aprendizagens relevantes para a inserção social e profissional. Também uma das jovens do projeto foi nomeada Representante da Assembleia de Jovens de Lisboa, motivo de grande orgulho para toda a família EMBARCA. O Embarca veio para ficar. Acreditamos que podemos crescer cada dia mais com a colaboração de toda a comunidade. O projeto veio trazer uma nova esperança ao Bairro dos Navegadores. Veio mostrar que é possível serem os próprios "filhos da terra" a contribuir para o crescimento do bairro. Veio mostrar que com vontade chegamos lá, basta quer. Graciete Borges (Membro AU 1º edição)

Academia Mente Saudável O projeto Mente Saudável conjuga a arte da capoeira com a delicadeza musical, e usa-os como móbil para combater o absentismo escolar e comportamentos de riscos. Por outro lado, com base na metodologia Ubuntu procura transmitir a sua filosofia promovendo assim um estilo de vida saudável, afastando o que é negativo. A equipa de trabalho é formada por seis elementos: A Coordenadora Dulcineia Moreira, o Mestre Geová Medeiros e os professores de Capoeira, Jay Moreira, Elízio Gomes, Frederico e José Gomes.

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Completaram dois anos que o projeto se encontra inserido na escola Ruy Belo, tendo no seu arranque vinte jovens no segundo ano de escolaridade, com os quais praticámos capoeira uma vez por semana, com rodas, aula de instrumentação musical e aulas de Maculelê. Durante esse tempo foi feita a avaliação com os alunos do projeto, reuniões com os pais e professores responsáveis, para juntos delinearmos formas de atuar com os participantes. Foram também realizadas atividades em eventos escolares. Adicionalmente, foi feita uma reunião com educadores da Creche piloto Diese com o intuito de implementar as aulas de Capoeira. Os mentores Elízio e Frederico têm vindo a desenvolver um trabalho articulado com as educadoras, de forma a criar um ambiente propício para que os participantes desenvolvam e explorem a sua criatividade, facilitando assim a aprendizagem dos conteúdos. Os participantes perfazem um total de 37, e a adesão superou as expetativas, aprendendo a capoeira através de jogos lúdico-pedagógicos sem perder a noção de regras e disciplina inerentes a uma sala de aula. Organizou-se ainda um evento onde a Capoeira, Zumba, Maculelê e palestras sobre o que é o projeto Mente Saudável, uniram os jovens da escola Ruy Belo e elementos do projeto Embarca (um projeto irmão da incubadora Social Ubuntu), entre outros. Deu-se um intercâmbio onde o “gelo” foi quebrado pelas energias maravilhosas das atividades realizadas. Os pais dos nossos participantes revelaram-se um público entusiasta, que se deixou contagiar com o fervor do evento. Dina Moreira (Membro AU 1ª edição)

POSSO «Posso o quê?» - Esta foi a pergunta feita pelo anfitrião e mentor da Academia Ubuntu, Dr. Rui Marques, aquando da apresentação pública do projeto “Posso”, na Fundação Gulbenkian em 2012. Este projeto procura promover o desenvolvimento das organizações através da Cultura, cuja metodologia assenta essencialmente em três prioridades: parcerias, sessões de formação e recolha de informação. Como Guineenses que somos, e com os olhos postos na cooperação para o desenvolvimento, privilegiando os setores da Saúde e Educação na Guiné-Bissau, surge a vontade de reatar pontes com o passado e construir novas com o presente, entre Portugal e a Guiné-Bissau, com o sonho de construir um Centro de Acolhimento de Formadores na Área da Saúde e Educação em Bissau, a partir de 2016.


Por agora a Associação POSSO concentra o trabalho no seu primeiro projeto. O “Homens do Rio, do Tejo ao Geba” consiste no registo escrito, fotográfico e audiovisual do quotidiano dos homens e mulheres cujas vidas no passado e no presente estão fortemente ligadas ao rio e ao mar, captando assim uma riqueza cultural e uma memória histórica única e transversal no contexto da cultura lusófona. O objetivo é registar e divulgar as atividades profissionais e culturais com forte ligação marítima e ribeirinha, em Portugal e na Guiné-Bissau, para a preservação e conservação do património natural e cultural no espaço lusófono. Acreditamos que juntos, podemos melhorar a qualidade de vida dos guineenses e, afortunadamente, encontrámos apoio em parceiros como o IPAV, o Programa Escolhas, a Universidade Católica, a Macedo Vitorino e Associados, a Câmara Municipal de Lisboa e a Câmara Municipal do Barreiro que, tal como nós, acreditam que é possível fazer mais pela Guiné-Bissau, e sem os quais não seria possível atingirmos os objetivos a que nos propomos. Terminamos, voltando à questão com que começámos, e pela qual temos vindo a ser interpelados ao longo do caminho que vimos fazendo… “Posso o quê?”. Ousamos dizer que podemos não conseguir mudar o mundo mas, certamente, iremos contribuir para melhorar a vida de muitas mulheres, crianças, jovens e famílias guineenses. Braima Gomes Cassamá (Membro AU 1ª edição)

Tchintchor Em palavras simples consideramos Tchintchor como a vontade de multiplicar, «saldar a dívida» com a nossa sociedade – como diz Amílcar Cabral. É um projeto ambicioso, que visa ser catalisador para a sociedade guineense em geral, em especial para a juventude ávida de (des)envolvimento no processo de construção de um país mais justo e estável. Assim, depois da experiência, hoje o Instituto Tchintchor (IT) é um processo em andamento, mas que contamos ter finalizado dentro de um mês. Esta organização visa intervir em três frentes: 1) capacitação, formação e qualificação; 2) empreendedorismo e inovação social; 3) cidadania e mudança de mentalidades. Segundo os termos estatutários o IT tem como visão uma Guiné-Bissau onde todos os jovens e as suas famílias tenham a possibilidade real de desenvolver as suas capacidades por forma a atingirem o seu pleno potencial, numa sociedade onde a Igualdade de Género, Dignidade da Pessoa Humana e todos os Direitos Humanos sejam respeitados.

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A sua missão é desenvolver ações para alcançar melhorias duradouras, que possam contribuir para a criação de uma sociedade democrática e justa, através de um processo que une as pessoas de todas as culturas, permitindo que os jovens e as suas famílias satisfaçam as suas necessidades básicas e possam aumentar a sua capacidade de participar e beneficiar da sociedade onde se encontram inseridos. Após a apresentação em Lisboa, o projeto Tchintchor tinha como um dos propósitos mostrar um país além dos meios de comunicação social internacional, ligar pontos, caminhos e vidas através de uma viagem de carro entre Lisboa e Bissau, passando por diversas cidades e países, mas esse propósito não foi alcançado devido a questões burocráticas. Passámos, portanto, para a fase seguinte que consistia em trabalhar no país de ngumbe2 com o objetivo de levar para a Guiné-Bissau as inspirações de Mandela o espírito Ubuntu. Assim, no dia 18 de julho de 2013 – Dia Internacional Nelson Mandela apresentámos o nosso projeto aos guineenses participando, com a Academia Ubuntu, na Jornada Nelson Mandela que incluiu três dias de atividades que visavam homenagear a sua dedicação ao serviço da humanidade, pela resolução de conflitos, relação entre as raças, reconciliação, promoção e proteção dos direitos humanos, direitos das crianças e de outros grupos vulneráveis, e ainda pelo desenvolvimento das comunidades pobres ou subdesenvolvidas. Numa palavra, homenagear a sua contribuição para a democracia internacional e capacidade de promover a cultura da paz através do mundo. Depois disso não parámos mais. Seguiram-se colaborações com o Conselho Nacional de Juventude, realizámos diversos contactos institucionais com organizações juvenis, autoridades nacionais e organizações internacionais da Guiné, de forma a perceber como poderíamos cooperar enquanto pessoas comprometidas com país. Mais tarde, realizámos o Ciclo de Tertúlia: Nô Pensa Guiné Tchintchor Convida um conjunto de debates e de reflexões sobre as questões mais cruciais da sociedade guineense, sobretudo no que concerne aos jovens. Aquando da morte de Nelson Mandela fomos interpelados por um conjunto de personalidades guineenses que nos apresentaram condolências, o que suscitou em nós vontade de apresentar a nossa tristeza, realizando uma Marcha de Pesar. Fomos depois convidados pela Embaixada da África de Sul para dar apoio na realização da homenagem ao Madiba [Mandela]. Estivemos presentes em programas de rádio nos debates sobre esta referência mundial. Devido à nossa dinâmica, em colaboração com um conjunto de organizações juvenis e infantis da Guiné-Bissau, fomos convidados a integrar a Republica di Mininus, um movimento de advocacia que visa levar a voz das crianças e jovens guineenses ao centro de atenção nas eleições gerais de 2014, tendo conseguido alcançar uma as2 Música popular guineense


sinatura de compromisso com candidatos e partidos, que assumiram implementar uma Agenda para a Infância e Juventude, com diretivas claras de respeito aos direitos das crianças e jovens durante o mandato. Orgulhamo-nos por estarmos muito ativos nesta iniciativa e recebermos elogios de distintas personalidades. Registamos com alegria ouvir o representante da UNICEF no país dizer que o seu segundo objetivo, depois de defender direitos das crianças, é – como Tchintchor – promover uma Guiné-Bissau positiva. Dentro de dez dias vamos realizar a Jornada Amílcar Cabral, uma iniciativa de homenagem ao grande herói guineense, como parte do trabalho de promover consciências positivas e referências nacionais. Esta atividade inclui a apresentação do documentário Cabralista, com a presença de um realizador que vem dos EUA, um programa de rádio e a inauguração de um mural. Estes eventos terão lugar nas cidades de Bissau, Bafata e Bolama. É importante salientar que para a concretização e desenvolvimento deste projeto foi fundamental caminhar com as pessoas, envolvê-las e fazer com que se sentissem parte do processo, porque elas são a sua razão de existir. Para nós, para Tchintchor, as pessoas são o ponto de partida e o ponto de chegada. Neste momento, estamos a tratar da nossa formalização, uma fase importante para a maturidade e crescimento do IT. Aguardamos apenas a emissão de uma certidão para que o processo fique concluído. Mamadu Saibana Baldé (Membro AU 1ª edição)

Experiências Pessoais A minha experiência na Academia Ubuntu Por Madalena Saldanha Nunca tinha ouvido falar de Ubuntu e não sabia bem o que era a Academia. Posso dizer que foi uma aprendizagem muito natural e humana, já que o "eu sou porque tu és" está na essência do ser humano e da sua relação com os outros e com o mundo. Houve uma identificação instantânea, como se nos conhecêssemos há muito tempo e tivéssemos convivido desde sempre sem o saber, sem lhe dar um nome. Fazer parte da equipa da equipa responsável e estar presente em todos os seminários, foi um privilégio. E, como costumo dizer na brincadeira, quando chegar ao fim a segunda edição da Academia Ubuntu, também quero receber um diploma de participante! Ter um trabalho em que se aprende tanta coisa é raro, em que se está a contribuir para tornar o mundo melhor é muito especial, e em que se recebe tanto carinho

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é uma maravilha. A Academia é de uma riqueza enorme! A partilha, a confiança, a abertura, os testemunhos, os convidados, os filmes, as questões, os, conteúdos, as conversas, os debates, os livros, os vídeos, o humor, a verdade, a alegria Bem, tenho de parar para isto não se tornar chato. Mas ainda falta o "ingrediente" principal, o mais importante de todos, as pessoas, a sua mudança, a sua transformação, a sua relação e a sua reconciliação consigo mesmas, com os outros, com o passado, com o presente e com o futuro. Tudo isto acontece aos participantes e também a mim. Eu vivo tudo isso na Academia Ubuntu! O que me inspirou nos líderes de referência (Nelson Mandela; Desmond Tutu; Luther King; Aristides de Sousa Mendes; Gandhi; Aung San Suu Kyi), para ser a líder que sou hoje na Academia? Não é fácil resumir de que forma é que me inspira cada um destes líderes. Nelson Mandela, a sua inteligência, a sua visão, a procura constante do bem maior e a sua transformação. Desmond Tutu, a sua capacidade imensa de perceber o coração do homem, de perdoar e a sua extrema bondade. Irradia amor. Martin Luther King, o carisma e a confiança, aquele fogo imenso que nos faz ir atrás e acreditar que tudo é possível. Aristides de Sousa Mendes, o sentido de dever e a coragem de fazer o que está certo, de fazer aquilo em que acredita independentemente das consequências. Mahatma Gandhi, a serenidade, a paciência e a sabedoria. Aung San Suu Kyi, o sentido de missão e a capacidade de sacrifício, a serenidade com que entrega, com que oferece a sua vontade, amor e liberdade. Percebi que não existe uma maneira única de se ser líder, não temos que ser assim ou assado. Uns são fogo, emoção, outros são paz e paciência; uns na frente, outros na retaguarda Não há receitas! Mas há algo em comum em todos estes líderes que é Estarem ao Serviço dos outros, da comunidade, do mundo. Liderança Servidora é a palavra-chave em todos eles. Eu Sou Porque Tu És, porque eu só posso ser pessoa através dos outros, através da relação. Para terminar, tenho que agradecer a entrada da Academia Ubuntu na minha vida. Não só na minha, mas em todas as vidas que dela fazem parte, em especial a dos meus filhos. Conhecerem a Academia Ubuntu e crescerem "acompanhados" de Ubuntu vai com certeza fazer deles pessoas melhores. A mim já me transformou, já me tocou! Sei também que só estamos a começar e que vamos chegar a muitas mais pessoas, vamos tocar e transformar muitas mais vidas. Ubuntu tem o incrível efeito borboleta, o bem que gera vai-se espalhando pelo mundo. Madalena Saldanha (Formadora AU 2ª edição)


Atrás da Lente Ubuntu Por Caroline Pimenta Os vídeos da Academia Ubuntu têm uma missão clara: imortalizar o momento. Um momento que depois fará história. E é um privilégio fazer parte da história da Academia Ubuntu como a pessoa que regista o que se tem vivido. A minha missão é difícil. Tenho que filmar, entrevistar e editar. Mas não é a parte técnica que me desafia, é a parte emocional. A emoção é grande e tenho que controlá-la o tempo todo. Participo nos eventos da Academia Ubuntu do início ao fim, sempre acompanhada da câmara. Mas por vezes esqueço, esqueço que tenho a câmara porque sinto-me como se estivesse em formação. Os temas, os oradores, as histórias, as dinâmicas... é tudo tão interessante, tão emocionante que eu facilmente me transporto para a audiência. Por vezes tenho que me controlar para não pôr a mão no ar e participar no debate. Os Ubuntus vêem-me como integrante da equipa técnica, mas eu vejo-me como uma Ubuntu, aprendendo como eles. Filmar a Academia Ubuntu é um momento de pura felicidade mas que acaba sempre com uma espécie de frustração. Como participar num fim de semana residencial, com dezasseis horas de atividades intensas e transformar isso num vídeo de oito minutos? Passo o fim de semana em êxtase - é tanta adrenalina que nem sinto o cansaço. O fim de semana acaba. Olho para o computador. Dezenas de imagens que não entrarão no vídeo. Tantos depoimentos que também não irão entrar. E agora? Sinto o peso da responsabilidade. Tenho que ser muito eficaz para que aquele momento seja imortalizado o mais próximo possível do que realmente aconteceu. Tento livrar-me das emoções e focar-me no trabalho técnico. Acabo de editar o vídeo, ele é aprovado e divulgado. Mas não estou satisfeita. Eu sei que havia muito mais e eu queria que todos vissem o que eu vi. Será que as pessoas que irão ver este vídeo vão entender a dimensão de tudo o que aconteceu? Sinto-me inquieta. Acompanho a Academia Ubuntu desde a primeira edição e há um fenómeno que se repete: a transformação. E é engraçado observar essa mudança da minha perspetiva. No início eles fogem assim que me vêem aproximar: "Mas não pode ser outra pessoa?! É que não tenho jeito para falar...". Posiciono-os em frente à câmara e enquanto ajusto algumas configurações observo: estão nervosos e inseguros. É um martírio para a maioria deles estar ali. Os olhos mexem-se sem parar. Perguntam mais do que uma vez o que devem dizer. Gravamos uma, duas, três vezes. Assim que acaba a gravação estão nitidamente aliviados e afastam-se de mim quase a correr. Um dia o ponto de viragem acontece. Nesta edição senti a transformação no primeiro Seminário “Vidas Ubuntu” do Porto. Aproximo-me de um deles. Abre-se um sorriso: "Olá Carol, como estás?". Digo que preciso de gravar um depoimento e rapidamente oiço: "Com

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) certeza!". Posiciono-o em frente à câmara. Está calmo, seguro. O olhar é firme e está pacientemente à minha espera, em silêncio. Não me pergunta o que deve dizer. Ele saberá o que dizer, depois de ouvir a minha pergunta. Vem a resposta e fico satisfeita, não será necessário regravar. E a situação repetiu-se com os outros cinco participantes "ubuntus" que entrevistei naquele dia. O mesmo olhar... aquele olhar confiante de quem sabe quem é. É um "ubuntu", e isso quer dizer muita coisa. Muitas vezes falta-nos fôlego na caminhada Ubuntu. Paramos. Estamos cansados e temos dúvidas. E agora? Nessa altura – digo eu – é tempo de olhar para trás, ver o que foi feito, lembrar o que foi sentido em cada momento, e ouvir da nossa própria boca porque entrámos nessa jornada. É hora de sentar e rever um dos nossos vídeos. Caroline Pimenta (Jornalista. Reporter Permanente AU)

De participante a formador Por Kedy Santos

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A minha participação na Academia Ubuntu (AU) tem duas fases: primeiro como participante, e depois como membro da equipa de formação, o que tem contribuído imenso para o meu crescimento e desenvolvimento enquanto pessoa. Na primeira edição da AU, através de Nelson Mandela, Luther King e Desmond Tutu, compreendi o papel de liderança que poderia desempenhar em diferentes áreas da minha vida. Desde projetos em associações de apoio à comunidade onde resido, no seio da minha família, e até mesmo nos estabelecimentos de ensino que frequento. Percebi que a filosofia Ubuntu faz cada vez mais sentido no mundo atual, onde diversos países são fustigados por diversas crises, fruto de força dos interesses económicos e financeiros que afetam os nossos líderes e políticos e que se sobrepõem, cada vez mais, aos interesses sociais. Numa segunda fase, já com um olhar diferente, vivi a AU como formador. Esta experiência deu-me a perceber a complexidade na organização interna da AU através das iniciativas que realizámos, tais como a organização de seminários, o estabelecimento de parcerias, e a criação de atividades com o objetivo de inspirar, motivar e envolver os participantes. "Eu sou porque tu és" – É assim que termino dizendo, de forma sincera, que foi um prazer enorme fazer parte deste projeto, conhecer pessoas maravilhosas e partilhar momentos únicos de aprendizagem. É uma felicidade fazer parte desta grande família Ubuntu, que trabalha todos os dias em prol de um mundo melhor. Kedy Santos (Membro AU 1ª edição. Formador AU 2ª edição)


ANDAR IX ) UBUNTU GLOBAL NETWORK

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) Ubuntu Global Network O nono andar é um espaço internacional, onde encontramos portugueses, sul-africanos, australianos, ingleses, americanos e uruguaios. Mas apesar das sonoridades diferentes, provenientes de quatro continentes, é partilhada uma linguagem comum: Ubuntu. Desvelam-se projetos até à altura desconhecidos, partilham-se abordagens e práticas, trocam-se ideias. Procuram-se modos de potenciar o que nos pôs em contacto e apontam-se possibilidades de colaboração em projetos comuns. Os princípios da interdependência e da reciprocidade manifestam-se e tomam forma. Concretizam-se além-fronteiras. Tornaram-se globais.

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Ubuntu Global Network A Fundação No final de 2013, surgiu a vontade de agregar organizações de todo o mundo, que tal como a Academia Ubuntu - AU, usam a filosofia africana como inspiração para os seus projetos. Após pesquisa e contactos iniciais, ficaram lançadas as primeiras pedras para a construção de um grupo de trabalho internacional. De seguida, endereçaram-se convites para as organizações virem a Portugal a fim de, em conjunto, ser criada a Ubuntu Global Network (UGN). Gradualmente foram chegando as primeiras respostas positivas. Membros de oito organizações provenientes de sete países diferentes, representativos de quatro continentes diferentes, aceitaram o desafio e reuniram-se em Lisboa, entre os dias 8 e 14 de abril de 2014, para a criação de uma rede alimentada pela filosofia Ubuntu. Os convidados, muito generosamente, aceitaram também partilhar com o público português os seus projetos e atividades, participando ativamente na Ubuntu Global Conference, agendada para o dia 17. O encontro da UGN foi concebido com o intuito de desenvolver uma rede global inspirada na filosofia Ubuntu, que contribua para a transformação da sociedade através de atividades, ações e projetos. Neste contexto, o encontro teve como objetivos promover a consciencialização da filosofia Ubuntu e como esta pode ser aplicada na intervenção social, bem como a partilha de abordagens e experiências bem-sucedidas entre os membros da rede, a fim de melhorar a qualidade do trabalho atual. O primeiro contacto direto entre todos os participantes e o staff foi na sessão de boas-vindas no dia 10 de Abril, que teve lugar na Fundação Calouste Gulbenkian (Network Building Activity I). A manhã foi preenchida pela apresentação pessoal de cada participante e dos membros da equipa de suporte. Em seguida, os parceiros descreveram o projeto que representavam. Durante a tarde, o grupo foi desafiado a explorar os jardins da Fundação Calouste Gulbenkian e a visitar o Centro de Arte Moderna. Após o programa cultural, a comitiva da UGN foi recebida nas instalações da everis Portugal, parceira da AU. António Brandão Vasconcelos (CEO) apresentou a empresa e Miguel Fernandes (Diretor – Business Consulting) fez uma breve exposição sobre a relação existente entre a everis e a AU. Os consultores que apoiam os projetos dos participantes da Academia partilharam informações, motivações e expectativas em relação a este trabalho conjunto. O encontro terminou com uma breve visita às instalações da empresa. No fim do dia, os membros da rede foram acolhidos na Embaixada da África do Sul, com um jantar que aliou a cultura e a gastronomia sul-africanas. A Embaixadora Keitumetse Matthews dedicou algumas palavras ao grupo sobre a filosofia Ubuntu e sobre a forma como esta deve estar ao serviço do combate à pobreza a nível global, expressando total apoio à UGN.

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O programa do dia 11 de abril começou com uma visita ao Centro Nacional de Apoio ao Imigrante (CNAI) em Lisboa, criado pelo Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI). Ainda no CNAI-ACIDI, Pedro Calado, Diretor Executivo do Programa Escolhas, fez uma apresentação sobre este programa governamental, criado em 2001. Atualmente, na sua quinta geração, promove cento e dez projetos locais de inclusão social em comunidades vulneráveis, entre os quais o Projeto Embarca, concebido no âmbito da Incubadora Social Ubuntu da primeira edição da AU. Seguiu-se a apresentação da Network Building Activity II, já com a presença do Prof. John Volmink, que fez a moderação dos trabalhos. Nesta sessão foi discutida a ”Carta de Princípios”, onde foi descrita a visão e missão da rede, bem como as estratégias, objetivos e critérios necessários para ser um membro da UGN. Todos os participantes puderam dar o seu contributo para a criação de um documento com o qual se identificassem. Sarah Jarman (representante da Jimmy Mizen Foundation) e Rosalind Scott (membro da Ubuntu4Schools) compilaram todas as contribuições sugeridas e aceites por todos, numa versão final da Carta de Princípios, redigida em inglês. Eduardo Seidenthal (Coordenador da Rede Ubuntu) e Isabel Correia (membro da equipa de suporte) colaboraram na tradução desta versão para português. Ambas as versões foram apresentadas no dia seguinte, durante a Ubuntu Global Conference. Depois do almoço, na Cozinha Popular da Mouraria, João Meneses (coordenador do Gabinete de Apoio ao Bairro de Intervenção Prioritária da Mouraria) descreveu o processo de reabilitação urbana e de revitalização social deste antigo bairro de Lisboa. O fim de tarde levou a comitiva de parceiros ao Bairro dos Navegadores, concelho de Oeiras, onde visitaram o Projeto Embarca, já referido anteriormente. Graciete Borges, participante da AU da primeira edição, criou este projeto para colmatar a falta de ocupação das crianças e jovens de origem portuguesa, africana e cigana, no bairro onde residia. Os moradores do bairro receberam a comitiva de forma calorosa. Após a visita, os membros da rede, a equipa de suporte e alguns membros do projeto Embarca juntaram-se ao vereador Ângelo Pereira, da Câmara de Oeiras, para um jantar de convívio oferecido pela Câmara Municipal de Oeiras. O dia 12 de abril iniciou-se com os preparativos do auditório dois da Fundação Calouste Gulbenkian. Os convidados foram chegando e foram recebidos por elementos da equipa que distribuíam a programação do dia. Paralelamente, dado que a conferência iria ser multilingue, houve a distribuição de audioguias para a tradução em simultâneo, em português, inglês e espanhol. O Presidente do IPAV, Dr. Rui Marques, iniciou e moderou a sessão de abertura dirigindo uma palavra de apreço aos amigos de países diferentes, reunidos para construir a UGN, apenas possível pelo legado de dois homens: Desmond Tutu e Nelson Mandela, através da luta pela justiça e da construção de um país arco-íris para a África do Sul, onde todos possam ter lugar. Seguiram-se as palavras da Diretora do Programa


de Desenvolvimento Humano da Fundação Calouste Gulbenkian, a Eng.ª Luísa Valle, sobre a realização do projeto da AU e a sua evolução. A Embaixadora da África do Sul em Portugal, Keitumetse Matthews, também convidada para abrir a Ubuntu Global Conference, começou por explicar que a filosofia Ubuntu dá corpo à diplomacia internacional da África do Sul, sendo esta uma filosofia que respeita todas as culturas. Sublinhou ainda que falar em “Ubuntu” é promover e apoiar os interesses da comunidade, mas é também fomentar o crescimento pessoal. Por último, o Prof. John Volmink realizou a sua intervenção, transcrita integralmente no primeiro capítulo deste livro. Após um curto intervalo, iniciou-se o painel Ubuntu Portugal, com uma apresentação sobre a AU, realizada por um membro da equipa de formação da Academia, que posteriormente moderou um painel de entrevistados, composto por Filomena Djassi (participante da primeira edição da AU), Raquel Fernandes e Ruben Rocha (participantes da segunda edição), Pedro Mira Vaz (Coordenador da Academia Ubuntu Rugby), Paula Santos (Coordenadora e Treinadora do AMRT Ubuntu Basket) e José Monteiro (participante da segunda edição da AU, mas que regressou a Cabo Verde no início do ano). Os entrevistados partilharam com o público cada um dos seus projetos, a importância que a Academia teve nas suas vidas e a forma como os “líderes inspiradores Ubuntu” - Aung San Suu Kyi, Mahatma Gandhi, Martin Luther King, Nelson Mandela, Desmond Tutu e Aristides de Sousa Mendes, influenciaram o seu modo de estar na vida. Os painéis da tarde deram a conhecer projetos Ubuntu internacionais. A primeira sessão iniciou-se com o painel Ubuntu Europa: Ubuntu Mail (Áustria) - Um projeto que liga crianças de lugares remotos com crianças de outros países, através da troca de correspondência em inglês, com Natalia Vladimirova e Armin Jungschaffer. Ubuntu4Schools (Reino Unido) - Rosalind Scott, explicou como este projeto leva a filosofia Ubuntu às escolas, e como é implementada, junto de docentes, alunos e restante comunidade. Jimmy Mizen Foundation (Reino Unido) - Sarah Jarman, Simon Jones e Camilla Yahaya trabalham na construção da paz nas comunidades, através de projetos que juntam jovens e diversos stakeholders como professores, donos de estabelecimentos comerciais e instituições das comunidades. People United (Reino Unido) - Apesar de não estar presente fisicamente, fez-se representar por um pequeno vídeo sobre o seu trabalho criativo de inclusão social, fazendo expressar a sua vontade em fazer parte da UGN. O último painel do dia contou com membros de países além da Europa. No painel Ubuntu Mundo pudemos contar com as seguintes presenças: Rede Ubuntu (Brasil) - Uma organização que leva o empreendedorismo inspirado pela filosofia Ubuntu a diferentes públicos, representado por Eduardo Seidenthal. Ubuntu Transformación Afrodescendiente (Uruguai) - Uma organização que advoga,

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através da filosofia Ubuntu, os direitos de jovens e mulheres afrodescendentes no Uruguai. Project Ubuntu (Estados Unidos da América) – O Daniel Becton trouxe-nos o relato da sua viagem pelos 51 Estados do seu país, em que levou o conceito Ubuntu “Eu sou porque tu és” a organizações sem fins lucrativos. Ubuntu Theater Project (EUA) - A organização fez-se representar por um curto vídeo, através do qual deu a conhecer a sua companhia de teatro e o seu trabalho junto de comunidades carenciadas e jovens em risco de exclusão social. Ubuntu Project (Austrália) – A Anna Mortensen e o Tom Davies explicaram o propósito da viagem que os tem levado aos quatro cantos do mundo em busca de relatos de pessoas comuns e indivíduos que fazem a diferença nas suas comunidades. Esses relatos são gravados em vídeo e vão ser usados no desenvolvimento de um documentário educativo. A conferência culminou com a leitura da Carta de Princípios da UGN, em inglês e em português, tendo-se realizado a sua ratificação por parte de todos os parceiros presentes. Formalizou-se assim, oficialmente, a fundação da Ubuntu Global Network. Durante a manhã do último dia o grupo visitou vários pontos de interesse da cidade de Lisboa, tendo-se posteriormente dedicado à Network Building Activity III, altura em que os membros da rede decidiram quais os próximos passos a serem dados. Estabeleceu-se que o próximo encontro da UGN será em 2015, na África do Sul. Carla Santos (Membro AU 1º edição. Formadora 2ª edição)


Carta de Princípios O antigo povo Nguni descreve Ubuntu como umuntu ngumuntu ngabantu: "só somos pessoa através de outras pessoas". Ubuntu é uma filosofia humanista, uma ética social, uma ideologia altruísta, uma visão unificadora que enfatiza a importância da comunidade, solidariedade, cuidado, partilha, harmonia, hospitalidade, respeito e capacidade de resposta. Ubuntu reconhece a verdadeira alteridade de todas as pessoas, a diversidade de línguas, as histórias de vida dos indivíduos e do coletivo. Diz-nos que o nosso verdadeiro potencial humano só pode ser reconhecido quando estamos interligados com os outros. As pessoas são pessoas por causa do seu relacionamento com outras pessoas. Ninguém é uma ilha, não poderíamos viver em isolamento. Vivemos numa comunidade e esse sentido de comunidade faz o que somos. Estamos unidos aos outros de muitas formas, com os quais partilhamos o nosso sucesso e a nossa dor. Como indivíduos, não podemos separar a nossa humanidade da humanidade dos que nos rodeiam. «Ubuntu torna-nos cientes de que o mundo é muito pequeno, a nossa sabedoria muito limitada e a nossa vida muito curta, para perdermos tempo com vitórias fugazes à custa dos outros. Temos agora de encontrar um caminho para o triunfarmos juntos.» (Bill Clinton, 2006) «Ubuntu - a essência do ser humano. Ubuntu fala especialmente do facto de que não é possível existir como ser humano de forma isolada. Fala sobre a nossa interligação. Não é possível ser humano por si só, quando se tem essa qualidade de Ubuntu, é-se conhecido pela generosidade.» (Desmond Tutu, 2008) «Ubuntu dá-nos uma nova identidade, perdemos o nosso individualismo, a fim de encontrar uma individualidade dentro da comunidade. Afastamo-nos da independência, para a interdependência.» (Jonh Volmink, 2011) Enquadramento do Ubuntu enquanto filosofia inspiradora: A Ubuntu Global Network reúne organizações de cariz social, que usam a filosofia Ubuntu como valor central do seu trabalho. 1. Inspiração pelo exemplo Usar o Ubuntu como uma filosofia de liderança exige que os líderes inspirem outros pelo exemplo. Adotar os valores de honestidade, sinceridade, confiança, compaixão, empatia, dignidade e respeito pelos outros. Não devemos esperar que outros apresentem um comportamento ético, se nós não o demonstramos. Encontrar e fazer o nosso papel para promover o propósito de construção de valor social.

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2. Visão partilhada Uma visão para o futuro que ofereça esperança, oportunidades, responsabilidades e desafios para todos através de múltiplos pontos de vista e diversidade de perspetivas. 3. Transformação através de pessoas Procurar oportunidades para começar a transformação permitindo que as pessoas se tornem conscientes do seu potencial e descubram recursos que inicialmente não lhes estavam acessíveis. 4. Interligação e interdependência A crença na interligação e interdependência da humanidade. Vivemos numa delicada teia de inter-relações com os outros e o meio ambiente. Aceitar a responsabilidade de manter esta delicada rede. 5. Solidariedade O envolvimento da comunidade, o trabalho em equipa e um ambiente que fomente a solidariedade e o espírito de trabalho conjunto para o mesmo fim e para o bem da comunidade. 6. Desenvolvimento contínuo que vá ao encontro das necessidades de um mundo em mudança A Ubuntu Global Network promove um desenvolvimento contínuo, juntamente com um forte espírito de compaixão, da reciprocidade e dignidade. Desafia as pessoas a procurar oportunidades e inovação criativa, não só para o indivíduo, mas para todos. Visão Um mundo que abrace a filosofia Ubuntu, enfatizando a importância da comunidade, solidariedade, carinho, partilha, harmonia, hospitalidade, respeito e capacidade de resposta; um mundo em que se reconheça a verdadeira alteridade de todas as pessoas. Missão Desenvolver uma rede global inspirada na filosofia Ubuntu, que contribua para a transformação da sociedade através de atividades, ações e projetos que trabalham com pessoas nas suas comunidades. Objetivos da Ubuntu Global Network • Promover a consciencialização da filosofia Ubuntu e como esta pode ser aplicada na intervenção social; • Partilhar boas práticas, abordagens e experiências bem-sucedidas entre os parceiros da rede, a fim de melhorar a qualidade do trabalho atual; • Desenvolver projetos comuns, cooperação multilateral e parcerias dentro da rede;


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Cooperar com outros parceiros no nosso campo de ação fora da rede; Desenvolver e partilhar ações que reflitam o mais básico princípio Ubuntu: “Eu sou o que sou por causa do que todos nós somos”; Promover o empreendedorismo social, no sentido de gerar mudanças sociais.

Estratégias da Ubuntu Global Network A fim de atingir os seus objetivos a Rede poderá: • •

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Incentivar a educação sobre os princípios da filosofia Ubuntu, preservando a individualidade, a cultura e a integridade de cada pessoa; Organizar conferências internacionais, seminários e cursos de formação com o objetivo de fortalecer a manifestação da filosofia Ubuntu no quadro social internacional; Promover os princípios da Ubuntu Global Network em programas de cooperação internacional; Realizar campanhas promocionais específicas, que contribuam para atingir os objetivos da rede; Facilitar a implementação de ferramentas adequadas que promovam a divulgação da filosofia Ubuntu. p

Afiliação A Ubuntu Global Network está aberta a qualquer organização que partilhe a mesma visão e missão da rede. A rede oferece aos membros: a) Uma plataforma através da qual os membros podem partilhar e interligarem-se uns com os outros; b) Ajuda na identificação de desafios críticos; c) Oportunidades de convergir as necessidades e recursos entre os membros; d) Oportunidade de trocar informação e experiências livremente com outros membros com a mesma filosofia de base; e) Oportunidade para explorar e desenvolver a sua compreensão da filosofia Ubuntu; f) Todos os membros devem demonstrar o seu compromisso com a visão e a missão da Ubuntu Global Network.

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Vozes Ubuntu no Mundo

A UGN é um local onde eu vou encontrar e oferecer o meu apoio. Quando fundei a rede Ubuntu, no Brasil, há alguns anos atrás, eu perdia muito tempo a explicar o que era a filosofia Ubuntu. E as pessoas diziam-me: “você está louco, está largando o mundo corporativo para fundar uma empresa chamada Ubuntu?”. Mas quando cá cheguei (a Portugal) senti-me em casa e em família, usamos a mesma linguagem. Conheço estas pessoas há três dias, mas parece que as conheço há anos. Basicamente, a UGN, é um local onde vamos conectar forças, com projetos maravilhosos que estão a acontecer noutra parte do mundo, vamos simplesmente colaborar uns com os outros. Muitas vezes não precisamos de reinventar, mas sim de transformar os projetos já existentes num impacto maior e a rede global para mim é isso. Eduardo Seindenthal (Brasil), Ubuntu Global Conference, 2014

O mundo está pronto para receber a filosofia Ubuntu, tal como se de fruta madura se tratasse. Ubuntu é um conceito que está mais globalizado do que nunca. A rede conta com diferentes projetos que crescem organicamente em vários cantos do mundo. Temos as p

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pessoas certas que se juntaram para a Ubuntu Global Conference e estamos nas posições certas para levar esta filosofia mais longe. Pessoalmente, quero continuar a fazer crescer a filosofia Ubuntu nos Estados Unidos. Antes da conferência não me sentia tão preparado como me sinto agora. Tenho esta rede incrível, que é uma excelente fonte de amor e força. Temos aqui o começo de algo especial. Ubuntu tornou-se num conceito familiar e, muito em breve, todo o mundo estará a falar sobre esta filosofia. E nós seremos os principais culpados! Somos um conjunto de pessoas motivadas pela filosofia Ubuntu, lideradas por grandes líderes como John Volmink e Rui Marques. Com esta liderança e com as diferentes organizações da rede, acredito que a Ubuntu Global Network vai criar ondas de mudança nos próximos anos. Daniel Becton (EUA), Ubuntu Global Conference, 2014

Acho que neste momento a filosofia Ubuntu pode atingir uma escala global. Na Ubuntu Global Conference reunimos um grupo de pessoas, vindas de vários cantos do mundo, que partilham a mesma ideia. O objetivo desta rede é colocar a filosofia Ubuntu na narrativa do dia a dia das pessoas, numa perspetiva global, e levar a que esta filosofia guie as ações das pessoas. A filosofia Ubuntu cria condições para que a comunidade possa prosperar. Rosalind Scott (Reino Unido), Ubuntu Global Conference, 2014


ANDAR X ) HISTÓRIAS DE VIDA

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) Histórias de vida Entramos no décimo andar. Deparamo-nos com um espaço importante, habitado por todos os participantes da AU, em que as paredes são substituídas por janelas altas por onde entra mas também sai a luz. Brilhante, oferecida, humilde e notável. Um espaço elevado em que as vistas se alargam, a paisagem se estende e se vê com nitidez a linha do horizonte onde as histórias de vida se escrevem (um segredo: para lá dessa linha, o FUTURO). A AU procura dar força às vozes de cada um dos seus participantes, partindo da certeza de que cada ser humano, ao longo dos seus percursos, tem aprendizagens únicas e especiais. E que, as capacidades que se podem adquirir, através dessas histórias de vida, podem ser úteis e transformadoras para si e para os outros. Ao longo do caminho da Academia os participantes apresentam as suas histórias nos seminários, culminando este processo na apresentação em conferência pública intitulada de "Vidas Ubuntu".

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A importância das histórias de vida: uma metodologia com sentido Por Carolina Tomaz No contexto da Academia Ubuntu a iniciativa Vidas Ubuntu, em que cada participante é convidado a contar a sua história de vida em dez minutos, é um momento muito especial e de fortificação de laços entre os participantes. Esta iniciativa acontece internamente, onde apenas os participantes da Academia Ubuntu assistem, mas também externamente, em conferências organizadas para o efeito com público convidado. Todos temos uma história para contar, e as vidas Ubuntu vêm prová-lo. Vidas que ganham forma nas palavras partilhadas que complementadas com imagens projetadas, são exemplos de superação e coragem, pois na sua maioria são histórias de vida difíceis que ocorrem em contextos vulneráveis. A metodologia do storytelling, no formato Vidas Ubuntu, procura que cada participante desenvolva uma autorreflexão da sua vida assente no "olhar ubuntu" que por este motivo se torna mais aprofundada, valorizando o passado no presente na contribuição da construção de um futuro mais consciente. Como complemento desta autorreflexão e desta busca e encontro de memórias, a comunicação é uma das ferramentas que toma lugar quando cada um dos participantes sobe ao placo. O storytelling é uma metodologia cada vez mais valorizada e está crescentemente presente em vários contextos em diferentes partes do mundo. Na comunicação das marcas, nas organizações no envolvimento de líderes e colaboradores, em projetos sociais, entre outros, por ser tão útil enquanto método de aproximação, conhecimento, e identificação. As histórias têm o poder de aproximar, cativar e inspirar outras vidas que se possam rever e ganhar esperança ou mesmo seguir exemplos. Através da partilha de histórias de vida contadas na primeira pessoa é possível compreender o outro, pelas suas palavras, pelo seu olhar e emoções. E descobrir o quão é relevante escutar para comunicar, conhecer para compreender e sentir para aceitar. As Vidas Ubuntu são um dos grandes momentos da Academia Ubuntu, onde quem aceita o desafio, partilha perante um público a sua história de vida, em momentos repletos de verdade, sensibilidade e emoção, momentos capazes de deixar marcas nos corações de quem as ouve. Marcas positivas e de esperança, que desafiam cada um de nós a ser os heróis de amanhã, os "heróis da nossa própria vida". “Tell me a fact and I’ll learn. Tell me a truth and I’ll believe. But tell me a story and it will live in my heart forever.” (ancient indian proverb) Carolina Tomaz (Membro AU 2ª edição)

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) Preparação da Conferência "Vidas Ubuntu" Por Daniela Vieitas «Ao ouvir histórias pessoais percebe-se que em todas elas há algo que não se diz porque não pode ser dito, um segredo pessoal que nem o próprio consegue perceber na totalidade. E é esta parte que se oculta ou mal se desvela que é verdadeiramente interessante, por ser a mais íntima, a mais profunda, a mais pessoal, a que liga mais estreitamente Deus, que é amor e que ama cada pessoa de maneira diferente, e a pessoa que, na sua essência, dá uma resposta única, irrepetível.» (Pedro Arrupe na celebração das suas bodas de ouro na Companhia de Jesus a 15/01/1977 in: LAMET; 345)

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Começo com palavras emprestadas, porque estas traduzem o privilégio de poder acompanhar e preparar a conferência "Vidas Ubuntu”, para a Academia Ubuntu – Porto. É sempre um privilégio ouvir histórias pessoais e acompanhar pessoas que descobrem que a sua História tem importância, que pode ser inspiradora. Esta descoberta só é possível através de uma leitura libertadora da própria vida. Qual é a probabilidade de se transformarem os sofrimentos ou as dificuldades ou mesmo uma vida dita "normal", numa experiência que outros vão querer ouvir? É o que os participantes da Academia Ubuntu fazem, trazendo a público as suas próprias histórias, descobrindo-se generosos, oferecendo a quem os escuta aquilo que de mais íntimo, profundo e pessoal traziam oculto. Mas desengane-se quem pensa que uma História de Vida é apenas um desfiar de acontecimentos ou segredos. Quem a prepara apresenta uma leitura renovada sobre factos, uma tentativa de perceber, naquilo que é, o que vem da sua história e quanto, daquilo que é, só existe porque outros também são. A conferência ”Vidas Ubuntu” é um momento importante no percurso da Academia Ubuntu porque permite, com imensa dignidade, que cada participante ocupe o lugar central da sua própria história. Reler a vida pessoal é uma experiência transformadora que pode ser a alavanca de confiança necessária para colocar novas escolhas como hipóteses possíveis. O meu papel, na preparação da conferência, debruçou-se sobre dois aspetos essenciais: técnico e conteúdos. Técnico: perceber as características próprias de cada orador, ajudar a melhorar dicção, projeção e postura. Dar algumas dicas de como encarar o público, mantendo uma atitude acolhedora e genuína. Conteúdos: ajudar, cada orador, a trazer a filosofia Ubuntu à sua apresentação, identificar, nas histórias pessoais, momentos e acontecimentos que se possam traduzir em aprendizagem ou contribuído para a descoberta pessoal de que cada um é mais, quando deixa o outro ser.


Ubuntu - eu sou porque tu és, tornando cada um numa espécie de espelho potenciador do outro, só sendo real quando reflete e deixa refletir, não uma mera imagem, mas um outro inteiro, que torna, cada um, mais inteiro também. A conferência Vidas Ubuntu torna este efeito possível porque cada pessoa que se apresenta, oferece a sua história na consciência plena de que esta se vai apenas completar apenas na escuta atenta de cada pessoa presente na plateia. E o Ubuntu acontece. Para quem conta e para quem se conta através do outro. Daniela Vieitas (Atriz)

Vidas Ubuntu na primeira pessoa Anjos da Guarda por Mariana Sá Tal como todas as histórias, a minha também traduz um espírito e uma personalidade fundamentados num passado sempre presente. Eu nasci no ano de 1993, exatamente no dia 24 de julho. Acho que se pode afirmar que desde esse dia a minha personalidade se começou a definir e as circunstâncias existenciais porque todos passamos circunscrevem aquilo que somos, o nosso presente. Não me lembro exatamente da data, mas sei que era de noite, eu tinha uns 9/10 anos e chegava da natação com o meu irmão mais novo. Chegámos a casa e ouvimos gritos, tentámos abrir a porta mas do outro lado o meu pai num ato monstruoso espancava a pessoa mais importante da minha vida, a minha Mãe. Do que se passou exatamente naquela noite, lembro tudo. Lembro que a primeira coisa que fiz foi tentar empurrar a porta – mas sem efeito. E a segunda foi tapar os ouvidos do meu irmão e gritar por ajuda – e ela apareceu, só que um pouco tarde. O que se passou então, foi que naquele instante tão longo, a minha vida ficou definida por um eu que ainda goza de instabilidade e medos completamente inquietantes! Eu era uma criança, mas mais criança eram os meus dois irmãos, o Marcos e o Isaac, e todos sabemos que as crianças são o alvo da grande proteção, então eu decidi naquele passo que ser criança não era para mim e fui obrigada pelo meu espírito a ser o Anjo da Guarda, e a Mãe de toda a família. No meio de tanta rebeldia havia um eu meio abafado, e escondido na sombra, o meu padrasto. Entre desgraças e bonança estava ele e foi o meu passe de sabedoria e valores que nunca decifrei, até que nesta linha conheci a Academia, estudei, e percebi que afinal eu tive tanta sorte: "Eu fui abençoada com o meu próprio Nelson Mandela, e ainda acompanhado pela sua rainha, a minha Mãe!"

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Aprendi que a força se preenche pelo coração; que o respeito é autêntico – e tão tão importante; aprendi que cada adversidade é uma ponte e que todos somos bons, mesmo quando somos maus. O meu grande marco foi a violência doméstica ao qual a minha Mãe respondeu defendendo-se legalmente e socialmente, instruindo-me com ideais totalmente opostos à discriminação, e favorecendo a luta de quaisquer direitos que potenciassem a mulher como um sexo equiparado ao sexo masculino. Eu cresci com valores como a igualdade, o trabalho mútuo, a equidade, a valorização do outro pelo simples facto de que é pessoa independentemente de todas as características que lhe estejam associadas. Assim, hoje, eu não culpo nem julgo a vida – eu compreendo e sereno porque a minha personalidade se criou com todos aqueles valores, mas melhor do que isso, hoje eu percebo que todos somos abençoados com Anjos da Guarda se a nossa condição for "Vivermos porque os outros vivem". Este foi um percurso lento mas altivo, as decisões nem sempre foram as melhores, mas todas foram necessárias. É muito fácil desmotivar e deixar cair a nossa autoestima no poço que vai ficando cada vez mais fundo, mas o truque é capacitarmo-nos das nossas competências e atribuirmos força quando tudo parece ser pesado. Em 2006, o meu Anjo da Guarda decidiu dar-me uma pista, e cruzar-me com os Escuteiros. É neste movimento em que descubro que tenho qualidades tão apetecidas e acarinhadas por todos, que começa a desenvolver-se a melhor relação e apoio da minha vida. Nos Escuteiros é especial ser eu própria, trabalhamos como um coletivo – ninguém é esquecido - e os amigos são para a vida. É lá que começo a descobrir o que é a liberdade e que isso apraz uma responsabilidade bem vincada. Começo a conhecer-me, a testar-me, a moldar-me, mas a melhor sensação é sentir-me completamente protegida: "Aqui nada pode acontecer!" Nesta atividade é crucial perceber o conceito de trabalhar para e com os outros, e aqui surge um enorme desejo e valor de responsabilização e atuação a nível social. Esta pista de que vos falo vem na melhor altura. Eu sonhava ser bióloga, e estudei ciências - aqui era tão imatura que não percebia que estudar é crucial, então desisti optando pela via mais simples: decidi tirar um curso profissional relacionado com o ambiente, mas o meu Anjo da Guarda acenou para o lado: Não! e eu entrei no curso de Animação Sociocultural. Hoje sinto-me realizada. Descobri que nisto sou realmente boa! Só há pouco tempo percebi que o meu Anjo da Guarda ao inscrever-me nos Escuteiros estava a querer mostrar-me que eu não tinha um, mas dois sonhos – simplesmente o segundo ainda estava por detetar!


Com toda esta história é simples perceber que o Anjo da Guarda não é a entidade espiritual por que me rejo, ou a minha Mãe, ou o meu Padrasto, mas são sim, todas as pessoas que cruzam a minha vida e deixam a sua pegada bem intrínseca. Por isso, eu vos agradeço por neste dia serem o meu Anjo da Guarda! Mariana Sá (Membro AU 2ª edição)

Procurar Ser por Edson Incopté Nasci em Bissau, Guiné-Bissau, onde vivi até aos meus treze anos de idade, altura em que viajei para Lisboa, Portugal, para viver com a minha mãe que ali se encontrava, por um empurrão do destino, a viver com os meus dois irmãos, sendo que mais uma veio a nascer meses após a minha chegada. Fiz os meus estudos, básico e secundário em Lisboa, e posteriormente licenciei-me em Estudos Africanos, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Procurei, ao longo do meu percurso formativo, conciliar os estudos com o associativismo, por considerar que um deve ser o complemento do outro. Isto é, o conhecimento teórico adquirido na universidade, deve ser acompanhado pelo exercício prático, com influência direta na vida das pessoas, que resulta do associativismo e do envolvimento em movimentos de sociedade civil. Esta linha de pensamento acompanhou-me e guiou-me desde muito cedo, acabando por se consolidar, sobretudo, com a participação/colaboração no projeto Guiné-Bissau Contributo, e com a formação recebida na Academia Ubuntu. Duas escolas marcadas pelas frases «A vida só tem sentido se, para além de nós, outros também puderem viver»1 e «Eu Sou Porque Tu És2». Frases que fizeram transbordar em mim um sentido de compromisso para com o outro, que embora já existisse, nunca se manifestara de forma categórica. Passei a almejar mais e a querer fazer mais pela sociedade, porque só assim faz sentido e vale a pena estar na vida, pensando que, como desenvolve o lema da AU, “Eu só posso ser uma Pessoa através das outras Pessoas”. A formação na AU levou-me a procurar a raiz do meu ser. Isto é, aquilo que me faz ser a pessoa que sou, com um espírito Ubuntu, que veio a ser desenvolvido na Academia. Houve a necessidade dessa procura, porque o próprio sistema da Academia Ubuntu convida-nos a isso: a cimentarmos o nosso espaço e a nossa existência na sociedade e no mundo, através de questões identitárias e sociais, para depois partirmos à procura

1 Frase de Fernando Casimiro (Didinho), fundador do projeto Guiné-Bissau CONTIBUTO. 2 Tradução do conceito Ubuntu e, igualmente, lema da Academia Ubuntu.

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de realizações, afirmações e influências positivas na vida de outras pessoas. No fundo, convida-nos a olhar para o nosso próprio âmago, para que aí comecemos a mudança que queremos ver no mundo, através do estabelecimento de uma ponte que começa em nós e vai até onde quisermos. A minha procura desembocou no conceito e sentido de família que sustento. Acabei por perceber, sem grande esforço, confesso, que o meu conceito de família, que sempre fora muito lato, e o próprio ambiente onde cresci, representam a base daquilo que hoje sou. São, porventura, as sementes Ubuntu, regadas por muita gente, acabando assim por desabrochar na AU. A procura levou-me, igualmente, a recuar até ao período mais conturbado da minha curta existência e, quiçá, da história recente do meu país, Guiné-Bissau: a guerra civil de 1998. Recuei até essa época para então compreender que até nos momentos - ou talvez seja mesmo nesses momentos - mais difíceis, que se manifestam os maiores gestos do ser Ubuntu. Recordei-me da forma generosamente humana como as pessoas que saíram da capital, fugindo da guerra, foram recebidas pelas pessoas do interior do país que abriram as suas casas para acolher, sem perguntas, pessoas que não conheciam de lado nenhum. Bastou-lhes o facto de serem irmãos guineenses e, acima disso, pessoas tal como elas, precisando, naquele momento, de uma mão amiga. Essa recordação fez-me assimilar que, mais do que ter nascido e crescido num ambiente Ubuntu, ele (Ubuntu) é algo transversal que faz parte da essência humana. Portanto, trata-se, sobretudo, de uma questão de desenvolvimento pessoal a um nível que nos faça compreender e aceitar a interdependência do ser humano. E na base dessa ideia, concluí que Ubuntu implica ter a consciência de que o fulano tal é parte de um todo, inclusive de mim. Se o amar, estarei a amar a mim mesmo. Se o perdoar, em caso de necessidade, estarei a libertar-me. Porque, no relacionamento entre as pessoas, nem tudo é linear. Existirão momentos em que a compreensão e o perdão terão de falar mais alto. Mas Ubuntu implica, claramente, mais do que a explicação supra citada. Implica conceitos como Tolerância, Respeito, Disponibilidade, Interesse, Altruísmo e Dedicação. Tolerância no sentido de sermos tolerantes connosco próprios e com os outros a nossa volta, e não considerar tudo preto ou branco. Respeito pela igualdade que deve reinar sempre entre os Homens. Disponibilidade pela interdependência que faz parte do ser humano, portanto devemos estar disponíveis uns para os outros. Interesse no sentido de não sermos alheios ao que nos rodeia, tomarmos partido quando assim deve ser. Até porque interesses pessoais todos temos. O que nos diferencia é a capacidade de fazer com que as nossas ações superem a barreira dos nossos interesses pessoais. Altruísmo no sentido de empregarmos ações sem estar à espera de contrapartidas que nos favoreçam somente. Isto é, fazermos coisas esperando benefícios pessoais. E Dedicação no sentido de que, seja o que for que façamos, façamo-lo com todo o afinco, colocando tudo de nós.


A Academia Ubuntu também representou, não nos esqueçamos, porque é dos seus principais intentos, uma escola de liderança. Liderança servidora. Nesse capítulo tive a oportunidade de aprender, estudando líderes mundiais como Martin Luther King Jr., Nelson Mandela, Desmond Tutu, Mahatma Gandhi e Aung San Suu Kyi. Passei a conhecer melhor como essas figuras exerceram as suas lideranças, tendo em conta as dificuldades, forças e fraquezas que se foram manifestando. Acabei, através desse estudo, por consolidar a perceção que já tinha: o mundo atual, duma forma geral, carece de grandes referências, figuras capazes de inspirar gerações mundo fora. E, nessa base, assumi a alternativa de procurar referências e inspiração nas pessoas mais próximas, nas pessoas à minha volta. Referências e inspiração para desenvolver tudo o que a Academia Ubuntu cultivou em mim, tal como o desejo de ser Mais, que explicito no poema com que termino estas linhas: Desejos vãos Eu quero ser mais… Quero ir mais além Sonho fazer mais e mais… Sem temer frustrações Quero olhar para o futuro E me rever em grandes feitos Ser trilho de escape Caminho para a mudança Quero vida depois da morte Ser recordado e evocado Viver em milhares de corações E ser objeto de dissertações Mas caso não consiga tudo isso Recordem-me apenas Como alguém que tentou ser Nunca como quem procurou ter Edson Incopté (Membro AU 1ª edição. Formador 2ªedição)

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) A minha vida é Ubuntu? por Marino Gaspar

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Bom dia todos! Posso começar por vos dizer que a minha família é originária dos Açores, que os meus avós tiveram 2 filhos. O meu tio e a minha mãe tiveram uma infância e adolescência complicada, pois os meus avós têm costumes um pouco rígidos e, calculo eu, por consequência disso e também pela influência dos “loucos anos 80”, acabaram por ir na onda do sexo, drogas e rock-and-roll, acabando por se tornar nuns grandes malucos e por consequência toxicodependentes. Posto isto e após uma relação de quase cinco anos, um jovem GNR e uma moça com sede de aventura acabaram por se aventurar demais, fazendo acontecer esta prenda que têm à vossa frente. A gravidez foi complicada, a minha mãe já independente de casa dos meus avós teve que voltar a casa dos seus progenitores, e após vários meses de internamento, lá acabei por nascer. No regresso a casa, a minha mãe logo percebeu que ainda não estava preparada para assumir a maternidade, acabando por se desleixar com os cuidados que deveria ter com o seu novo bebé. E passado alguns meses, numa situação meio insólita, acabou por me abandonar doente, no centro de saúde da nossa área de residência! Só voltaria a aparecer cerca de um ano depois. Acabei por ser encontrado e, a minha avó a quem muito agradeço, foi chamada para me recolher. Caso isto não tivesse acontecido não sei o que seria de mim hoje! Embora nunca tenha tido a presença dos meus pais, a minha infância durante sete anos foi normal, até que um golpe do destino acabou por mudar a nossa vida para o sempre… No dia 10 de abril de 1998, o meu avô foi operado de urgência, tendo que amputar a sua perna esquerda devido a uma infeção generalizada no pé! Não vos posso dizer que a minha vida mudou no imediato, pois a minha avó tudo fez para que houvesse alguma normalidade em casa mas, passado um ano após a amputação da perna, o cansaço e a depressão chegaram lá a casa tornando a vida da minha avó bem mais complicada. Durante esse ano, houve várias ocasiões em que tive que passar algumas semanas em casa da minha mãe. A minha mãe na altura prostituía-se para poder arranjar dinheiro para a heroína, e durante essas horas eu era deixado aos cuidados do meu padrasto ou largado na rua até que ela voltasse. Apanhei alguma “porrada” do meu padrasto, mas o pior era quando era obrigado a ir aos caixotes a meio da noite. Durante o dia, a minha mãe e o meu padrasto consumiam o que podiam, e ressacavam enquanto eu e a minha irmã andávamos pelas ruas do “bairro Amarelo”, a brincar. Obviamente, no meio desta confusão toda, houve dias de escola totalmente perdidos. Quando ia à escola, havia dias em que ninguém me ia buscar à noite, e isto chamou a atenção das professoras e animadoras do ATL.


Após decisão de voltar e ir para casa da minha avó, comecei a dividir algumas tarefas com ela. Ao mesmo tempo que tudo isto acontecia, perguntava a mim mesmo porque é que não conhecia o meu pai, pois todos os meus colegas tinham o PAI, e eu tinha apenas um par de avós… Por muito que perguntasse à minha avó, poucas respostas consegui obter, até que um dia, numa ação de formação da Escola Segura, a GNR passou lá pela minha escola e conheci um Cabo que me deu uma ajuda. Imaginem só que até se combinou um encontro para o Dia da Criança de 2001. O encontro não aconteceu, e acabei por ficar triste e sem saber para onde me virar, pois um PAI naquele momento era algo crucial para mim! Em segredo a minha avó acabou por contactar com o meu pai, e combinou um encontro com ele. Lembro-me bem desse momento, na altura tinha-me caído um dente e estava convencido de que estava a caminho do dentista. Chegámos a um carro e perguntei à minha avó porque é que nos dirigíamos para lá. Era o meu pai. Sei que conversei com ele cerca de trinta minutos e depois levou-nos a casa deixando-me cheio de promessas que acabou por nunca cumprir. Mas com tudo isto, a vida não acaba, nova escola, novos desafios pela frente! Comecei tímido, sem fazer muitos amigos com os colegas da mesma idade que eu, e juntando-me sempre mais aos mais velhos, e tentando sempre afastar-me das confusões que são propícias nestes ambientes. Em casa cada vez via mais a minha responsabilidade a aumentar. Se a memória não me falha foi por essa altura que fui instruído pela minha avó a administrar a insulina ao meu avô, e a fazer os testes de glicemia! Sei que no segundo ciclo passei por muitos altos e baixos e que no sexto ano tive alguns problemas comportamentais. Por essa altura comecei a ser acompanhado pela psicóloga do centro de saúde pois a minha avó queixou-se que eu fazia xixi na cama! Lembro-me bem da dificuldade que tivemos em arranjar uma clínica em que pudesse fazer uma urofluxometria, para que o médico determinasse se o problema era físico ou psicológico. Na verdade, o que me vinha à cabeça era o porquê da minha vida ser assim, cheia de tarefas, responsabilidades, e sem grande liberdade para aprender, e para descobrir o mundo que me rodeava! A pessoa de quem eu mais gostava no mundo estava acamada, a fisioterapia e a prótese que lhe foi fornecida acabava por não resolver grande coisa, pois o meu avô era dependente de alguém para fazer qualquer coisa. Estava no limite mas, com o acompanhamento médico e social por parte da escola, acabei por recuperar o fôlego e acho que nessa altura acabei por renascer! Desde muito jovem fui apaixonado por computadores, e pela tecnologia em geral, e na altura havia uma professora que era responsável pela sala de informática, que nos deu umas aulas de iniciação à informática. Mais tarde, durante o secundário, acabo por fazer duas semanas de estágio nesta escola, fazendo a manutenção destes equipamentos.

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Resumindo, há muitas mais histórias a contar sobre o que aconteceu durante estes anos. O que vos posso dizer é que a minha escola básica foi a instituição que mais oportunidades me deu até hoje, e ainda tenho por lá muitos amigos. Após concluir o nono ano, tinha que decidir o que fazer da vida e, como já vos disse, acabei por fazer um curso profissional. A decisão não foi fácil, pois tinha que escolher entre ir para a escola secundária do Monte de Caparica e continuar a viver naquela realidade que me rodeava (e que fazia com que não conseguisse evoluir), ou aproveitar uma oportunidade que surgiu e sair de casa para estudar no Alentejo. Esta fase não foi nada fácil, pois o meu avô piorava de dia para dia, tendo recentemente amputado a segunda perna e tido um AVC. Nesta altura os cuidados que passámos a ter com o meu avô tiveram que aumentar e, como é logico, a minha responsabilidade para com os de casa também! Mas contra todas as previsões tornei-me bombeiro voluntário, aprendi técnicas de socorrismo e participei na fanfarra. Esta minha ligação aos Bombeiros voluntários viria mais tarde a ajudar-me a perceber como foi a morte do meu avô e que nada havia a fazer. Durante o verão de 2006, um amigo Jesuíta convidou-me para participar num campo de férias diferente que acabou por mudar a minha vida, dando-me coragem e ajudando-me a compreender melhor o mundo que me rodeia! Esse campo de férias chama-se GAMBOZINOS e mostrou-me que existem várias realidades, diferentes entre si, e que podem coexistir! Descobri que com quinze anos não era mau gostar de Beatles, Abba, ou Queen, descobri a espiritualidade, fiz verdadeiros amigos, e liderei a fanfarra do bota-fogo! Em setembro de 2006, lá parti eu para o Alentejo, mais precisamente para Avis, para a Escola Profissional Abreu Calado, onde acabei por me formar como técnico de informática e conhecer algumas das pessoas mais fascinantes da minha vida. Infelizmente, três meses após ter saído de casa, o meu avô morreu e a minha avó decidiu partir para os Açores. Durante a ausência da minha avó, acabei por entrar em depressão e quase que tive de abandonar a escola, pois comecei a perder módulos e a chumbar a várias disciplinas. Em boa hora apareceu na minha vida um tutor, que acabou por me recolher, por me ensinar a ser um homem, e ajudou-me também a recuperar as notas antes que reprovasse. Ao mesmo tempo, ganhei uma segunda família, com pais, irmãos, primos, enfim, tudo o que sempre sonhei… E ainda hoje, quando mais preciso, são a minha base, a minha segunda família, e mais do que isto não sei dizer. Mesmo assim, com a ajuda da minha tutoria, o caminho não foi fácil, pois tive que começar a trabalhar num restaurante, primeiramente em part-time, de forma a conseguir angariar dinheiro para as despesas do dia a dia. Além da importância monetária, este trabalho também teve importância na minha formação como homem, pois aprendi a fazer um pouco de tudo, e esses ensinamentos têm-me sido bastante úteis ao longo da vida!


Com o fim do curso, ao regressar a Lisboa, a pergunta que soava na minha cabeça era essencialmente esta: “E agora? Deram-me tanto, tornei-me um homem, o que poderei fazer pelos outros?” Juntei-me à equipa de animação dos GAMBOZINOS, onde organizávamos atividades com as crianças do bairro, mas isto não chegou… fui convidado a fazer parte do projeto Rabo de Peixe Sabe Sonhar, onde fui animador, coordenador-adjunto e responsável pela logística. Concluindo, pergunto: A minha vida é Ubuntu? Claro que sim, se não fossem as pessoas envolvidas na minha vida, nunca seria o que sou hoje, pois Ubuntu significa “eu sou porque tu és”, e eu sou porque vocês são. Marino Gaspar (Membro AU 2ª edição)

Ser em construção por Eugénia Costa Quaresma Queria agradecer todos os olhares interessados que tive ao longo da minha vida, pois foi a partir desses olhares interessados que sinto que nasci, renasci e fui crescendo… Quero dizer que iniciei este percurso na Academia com 35 anos e não teria começado se não fosse uma palavra da Tica a dizer: «porque não estendem mais um bocadinho, invés dos 30, alongarem mais um bocadinho?!» e se não fosse a palavra dela eu não poderia estar aqui hoje. O Espírito Ubuntu fala-me muito do sentimento de pertença e seduz-me muito particularmente este "ser pessoa" e nós vamo-nos definindo não só pelos locais de onde vimos, mas também pelos locais por onde passamos. Tenho que começar por prestar homenagem aos meus pais que nasceram e cresceram em S. Tomé, chegaram aqui antes da independência, naturalizando-se cá após a independência. Casaram-se e tiveram três filhos. Fui a primeira a nascer e o do meio faleceu no ano 2000. Sempre vivi na Margem Sul do Tejo, com os meus pais e os meus irmãos, com quem aprendi os valores do acolhimento, do sentido alargado de família, o respeito, a partilha, o trabalho, a responsabilidade e a importância de celebrar as conquistas fruto do sacrifício. Voltando ao sentimento de pertença, muitas vezes me senti mais portuguesa fora de Portugal e, algumas vezes em Portugal senti-me estrangeira. A questão da identidade sempre esteve presente na minha vida e foi neste grupo Exodus que eu aprendi que mais do que a filiação biológica e cultural, há uma filiação também muito importante que é a divina, que acaba por transcender e ajudar a resolver alguns conflitos internos. Foi neste grupo, onde participei dos 16 aos 29 anos, que descobri potencialidades, descobri sonhos, realizei sonhos, e fiz as primeiras ex-

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periências de coordenação, de representação do grupo, de condução de reuniões. O Exodus tem um carisma muito interessante, que é sair de si para ir ao encontro dos outros. Foi em ambiente de Igreja, em diferentes contextos (e gostaria de dizer que Igreja é um conjunto de pessoas que tem consciência que precisa de outros para caminhar) que emergi da multidão, que fui caminhando do anonimato para ser uma presença de referência, em que as pessoas foram reconhecendo em mim qualidades e me foram chamando. E, muitas vezes, estava diante de um microfone, dirigindo-me à assembleia, que eu me via e já me escutavam. Venho de uma paróquia multicultural e que, vive cada vez mais a interculturalidade, onde as bandeiras se apresentam como um símbolo da festa dos povos - celebração esta que ajuda imenso a ter uma visão de como o mundo deve ser. Cresci a ouvir frases como esta: «O ser humano não nasce, inteiramente programado está em construção. O mais importante é o que fazemos com o que recebemos de outros por via genética e cultural e com esta convergência somos chamados a tornarmo-nos pessoas.» Esta frase foi parafraseada por um amigo (P. Calmeiro Matias). A original encontrei-a atribuída a Jean-Paul Sartre e aprendi que nós somos responsáveis (escrevi isto nos muitos escritos que tenho), «somos responsáveis pelo que se mantém e se transforma na história da humanidade». E, muitas vezes, coloco-me a pergunta «o que posso eu fazer para que a situação melhore?», que era uma pergunta do passado que continua no presente, mas à qual acrescentei mais uma. Não é só «o que posso eu fazer para que a situação melhore?», mas «o que é que preciso de mudar em mim, para que a situação melhore?». Não basta só a boa vontade, às vezes tenho que transformar coisas em mim, para realmente chegar a ver aquilo que sonhei, aquilo que projetei, aquilo que idealizo. Por norma, as pessoas olham para mim e sabem que eu não sou uma pessoa conflituosa, mas alguém que vive muitos dilemas e muitos conflitos intrapessoais. E, nestes conflitos, entro em contacto com a minha agressividade interna e com a violência também. Com o tempo, fui percebendo quais são as pequenas coisas que me irritam, que são aquelas que desprezam alguma coisa da minha essência. Coisinhas rotineiras, pequenas coisas que aos outros não dizem nada, pequeninas frases, pequeninos gestos, pequeninas palavras, que passam despercebidas aos outros… mas que me incomodam… Refugiei-me muitas vezes no silêncio (há pessoas que não se refugiam no silêncio e explodem), por isso, é importante fazer referência a ele, que eu aos 24 anos consegui formular desta forma: «Faço silêncio, porque julgo que não tenho o direito de comunicar o barulho que vai cá dentro, acho que não tenho o direito de acrescentar o meu caos, ao caos do mundo e este silêncio, violenta o meu ser, porque não ouso partilhá-lo com mais ninguém a não ser com o papel.» Mas ao mesmo tempo que fui vivendo este silêncio asfixiante, também vivi o silêncio em que aprendi, que me permitia escutar os outros, o silêncio positivo, o silêncio que


ajuda os outros a crescer, o silêncio que me dava tempo para eu devolver uma resposta às pessoas, construtiva, que pusesse os outros a pensar. É importante falar do silêncio por causa das feridas e das cicatrizes que andam por aí; 36 anos correspondem ao tempo da independência de São Tomé e Príncipe, portanto, eu e tantas outras pessoas fazemos parte dela, vivemos os efeitos da colonização, entre uma mentalidade submissa e uma mentalidade revolucionária. Há feridas que ainda fazem eco na nossa sociedade e que precisam de paz e precisam da reconciliação e precisam daquela definição de cura que o Prof. Roberto Carneiro nos deu: TRANSFORMAR E INTEGRAR. Uma das coisas que aprendemos foi uma outra definição para a palavra CAOS, que é um monte de possibilidades. A possibilidade de nos reinventarmos e de renascer. Sinto que ao longo da minha existência, isto esteve presente, querer ser mais. E sinto que fui procurando ser capitã da minha alma e senhora do meu destino. Fui vencendo a timidez, consegui encontrar objetivos SMART (specific, measurable, attainable, realistic, time bound), aqueles objetivozinhos em escada que nos ajudam a caminhar, fui aprendendo a pôr a autoestima no lugar certo, a ir-me revelando como mulher, como uma conciliadora de vontades descobri que no meu sonho-projeto família procuro construir diariamente uma liderança partilhada, onde aprendemos o equilíbrio entre a generosidade e o dizer não, aprendemos a ver à distância, aprendemos o perdão. E, assim, vai crescendo a capacidade de amar a realidade e não a ilusão da paixão. À semelhança da orquestra cada um tem o seu papel, mas queremos ressoar a unidade na diversidade identitária, que nos caracteriza, e assim nos vamos orientando por valores que dizemos acreditar. Tenho-me descoberto como uma mulher de convicções, com uma sensibilidade intercultural e interreligiosa, disponível para o diálogo, com uma vontade de ir vencendo a minha timidez e vencer obstáculos que me aprisionam. Acredito imenso no potencial humano e sei que tenho qualidades que ajudam outros seres humanos a crescer. Acredito na educação e na mudança. Gosto de cantar e dançar simplesmente porque sim. Gosto do silêncio onde me encontro com Deus e com os outros. Gosto de comunicar as descobertas que me ajudam a crescer. Identifiquei-me quando escutei que, «liderar é fazer os outros desabrochar, é tornar os outros, parte do processo. É tirar-se de cena quando necessário». Este tipo de liderança é muito sinónimo de educação, tem muito a ver com a minha pessoa e também com o exercício da psicopedagogia curativa, que é a minha formação de base académica. Estar aqui na Academia permitiu-me (re)significar a minha existência à luz de um olhar interessado, permitiu-me reescrever com palavras do presente. Permitiu-me pensar África, a partir desta identidade muito própria a que chamamos Pérolas do Atlântico (São Tomé e Príncipe). E as pessoas que nela habitam aguardam o brilho da sua diáspora, no diálogo com quem nunca saiu da ilha. Sobretudo, com os jovens que sonham em sair de lá, que sonham uma vida melhor. Portanto, agir lá, é um futuro sonhado.

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) Portugal é o meu país, é o meu presente, faz parte deste mundo imenso que é património da humanidade, esta humanidade que é cada vez mais a minha terra. E gostaria de terminar, dedicando os aplausos, que hão de vir, à minha irmã, que está aqui presente, pois se ela não tivesse ficado tantos fins de semana com as minhas filhas eu não poderia ter beneficiado de tudo isto. Obrigada! Eugénia Costa Quaresma (Membro AU 1ª edição. Formadora 2ª edição)

Páginas abertas – A experiência de partilhar a história de vida

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A minha apresentação nesta conferência foi uma experiência que nunca antes vivi. Não foi apenas o momento em si, mas também a construção de todo o processo para aquele dia. Foi uma etapa de aprendizagem, da minha construção como ser humano e como indivíduo, que me levou a interiorizar tudo aquilo que passei, a encontrar e interiorizar um pouco do meu eu, comigo e com os outros. Uma coisa é eu saber da minha história, outra muito diferente é exteriorizar, partilhar, contá-la a outras pessoas sem que fique aquele sentimento de que sou coitadinha pelas dificuldades, pelas coisas menos boas que passei. Tive o privilégio de lembrar, transmitir, partilhar momentos que marcaram o meu pequeno percurso de vida, lembrar de coisas que me fazem feliz, coisas pelas quais me identifico e por que sempre lutei, coisas que me fazem mal, que me fizeram mal, pessoas importantes e menos importantes na minha vida, pessoas que me querem ver crescer mas também aquelas que não estão muito viradas para aquilo que faço e que deixo de fazer. Vidas Ubuntu é uma lição de vida, uma reflexão, uma oportunidade de mostrar e de pensar que a vida, por vezes, ensina-nos de uma forma não fácil. Temos, portanto, que ter a capacidade de inverter as situações, levar tudo aquilo que passamos como oportunidades de aprendizagem, de crescimento. Muitas das vezes, por passar dificuldades, decidimos desistir e optar pelos caminhos mais fáceis, mas não tem que ser assim, temos que saber levantar-nos cada vez que caímos. Foi uma oportunidade de poder fazer uma homenagem à minha família, agradecer às pessoas que me deram a oportunidade de viver de uma forma estável a minha vida, me deram amor, carinho, educação, saúde, conforto, amizade, confiança e bem-estar. Quando tinha 23 anos, em 2011 tive que sair de casa, depois de ter estado cinco anos em Portugal, devido a conflitos que surgiram. Nessa fase quebraram-se os laços que tinha estabelecido com a minha família, por ter decidido viver sozinha e lutar pelas minhas responsabilidades. O momento da conferência trouxe harmonia entre mim


a e minha família. Perceberam que tinha crescido e o quão importante a Academia Ubuntu tem sido para mim e para o meu crescimento. Após a minha apresentação, que pensei que tivesse sido banal, sem importância (tanto que nem a queria expor no youtube) tenho tido momentos inacreditáveis de partilha, pois as pessoas vão visualizando a minha apresentação e querem falar sobre ela. Quanto mais falo da minha história, mais as pessoas buscam força e motivação em mim, e mais eu me sinto capaz, com vontade de viver e de pensar que EU SOU PORQUE TU ÉS, e que existo neste mundo tendo em conta as outras pessoas, porque por mais pessoa “ individual” que eu seja, também preciso das outras pessoas e elas de mim. Maria Manuel (Membro AU 2ª edição)

A primeira vez que ouvi falar sobre a apresentação na conferência Vidas Ubuntu apreendi-a como se fosse um exercício em que cada um pode melhorar as suas capacidades de comunicação em público num assunto que domina bem. Mas hoje para mim, fazer a apresentação vai muito além de um simples exercício, é uma ferramenta de autoconhecimento, de autoanálise e de afirmação pessoal. O momento em que nos sentamos para construir a nossa apresentação define um ponto de partida e um ponto de chegada, o que é importante para nós, o que faz de nós quem somos e o queremos ser no futuro. Definimos os nossos valores e talvez os que nos estejam a faltar. O conceito “eu sou porque tu és” também se aplica aqui, porque fazer análises pessoais sem ser capaz de as expor e de envolver quem nos rodeia, pode ser um pouco redutor. A apresentação pública ajuda a consolidar e a situarmo-nos em relação à comunidade. São apenas dez minutos e isso talvez possa parecer pouco, e é na verdade, se o objetivo for apenas contar os acontecimentos da nossa vida. Os “apenas” dez minutos servem para mantermos o foco no que é importante, do que realmente conta sem nos perdermos em descrições de acontecimentos, mas sim valorizarmos sentimentos. Isabel Correia (Membro AU 2ª edição)

Ter vivenciado a experiência do momento Vidas Ubuntu, foi uma mais-valia para mim porque foi um momento onde, para além de ter partilhado a minha história de vida, pude também perceber que ao longo do meu percurso de vida com bons e maus momentos, não guardo rancor ou amargura ou até desgosto pelo que passei. Evidentemente não ter passado pelo que passei seria melhor, mas ao mesmo tempo entendo que foi necessário passar por tudo para que eu pudesse estar aqui hoje. Penso que tudo serviu para fortalecer o meu testemunho de vida e mostrar a força que carrego

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) dentro de mim. Partilhar - com uma sala cheia de pessoas - coisas que normalmente não partilho com ninguém, trouxe-me um sentido de liberdade e de comunidade capaz de aliviar qualquer fardo que ainda possa existir em mim derivado de vários acontecimentos dramáticos da minha vida. Estar nas Vidas Ubuntu foi perceber que há aceitação, que existe algo mais importante que a tua história de vida: Tu. Tu és muito mais importante do que tudo o que passaste, não importa o que viveste mas sim quem tu és, e “tu és porque eu sou”, e “eu sou porque tu és”. Pessoas, vidas, é o que ficou para mim das apresentações Vidas Ubuntu. Valorizar cada um pelo que é e não pelo que faz. Sem falar de que as nossas vidas são inspiração para a vida de outros, de exemplo para outros. E é esta a mensagem que vos deixo hoje: «Faz com que a tua vida sirva de exemplo para a vida de outros, e assim estarás a investir em vidas, porque o maior investimento da vida é investir em vidas»” Milton Godinho (Membro AU 2ª edição)

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CHEGAR )


«A Academia ensinou-me a saber colocar-me no lugar do outro. Ajudou-me a resgatar a responsabilidade pela minha vida e a preparar-me melhor para a ação. Obrigado Academia Ubuntu por este novo raiar!»

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IPAV – Instituto Padre António Vieira Missão - Estar ao serviço do bem comum, respondendo a necessidades sociais de uma forma eficaz. Visão - Organização da sociedade civil, líder em inovação social através de projetos de solidariedade que atuam em parceria em Portugal e no estrangeiro. O Instituto Padre António Vieira é uma Instituição Particular de Solidariedade Social, reconhecida como Pessoa Coletiva de Utilidade Pública, que tem por objeto a reflexão, formação e ação no domínio da promoção da dignidade humana, da solidariedade social, da sustentabilidade, do desenvolvimento, da diversidade e diálogo de civilizações/culturas através da conceção e gestão de projetos de inovação social, capazes de corresponder a soluções para necessidades sociais não resolvidas, no contexto nacional e internacional, designadamente, através do apoio a crianças e jovens, à família, à integração social/comunitária, na proteção dos cidadãos na velhice, invalidez e em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência. Sede: CiDEB - UCP Campus de Asprela Rua Dr. António Bernardino Almeida 4200-072 Porto Lisboa: Trav. Pedras Negras Nº 1 - 4º Andar 1100-404 Lisboa Telefone: +351 21 885 47 30 Fax: +351 21 887 76 66 http://www.ipav.pt


Eu sou porque tu és ) ACADEMIA UBUNTU ) Foto g r a fi as


)

A equipa Ubuntu Rugby em vĂ´o

) Academia Ubuntu com Desmond Tutu


Academia Ubuntu com o Presidente da RepĂşblica em BelĂŠm

) Actividades do projeto Embarca nascido na Academia Ubuntu


)

António Mateus na apresentação do seu livro sobre Mandela na AU

) António Vitorino na Academia Ubuntu


Apresentação de História de vida de Junildo

) Apresentação de Histórias de vida em Serralves


)

Fim de Semana Ubuntu Arrábida 2011 - discussão de grupos

) Final da apresentação Vidas Ubuntu - FCG


Membros da Academia entrevista Antรณnio Guterres

) Membros da Academia Ubuntu Porto


)

Os participantes da AU 2013-14

) PrĂŠmio Nobel da Paz, d. Ximenes Belo visita a Academia


Prémio Nobel da Paz, José Ramos Horta entrevistado pelos membros da Academia

) Rossio transformado em Praça Mandela por un dia


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Seminรกrio construir pontes

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Sessão da Academia na Univ. Católica - Porto

) Sessão de apresentação de projetos da Academia na FCG


)

SessĂŁo de trabalho da AU na Everis

) SessĂŁo de trabalho da Ubuntu Global Network no IPAV


SessĂŁo em Serralves

) Um momento de pausa....


)

Visita da AU à LIPOR

) Worshop Judo e liderança com Nuno Delgado



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Eu sou porque tu és

C OM O A POIO

AVA L I AÇ ÃO

ACADEMIA UBUNTU

A filosofia Ubuntu é uma filosofia de vida, uma maneira de ver o mundo e uma ética social. É um complexo código moral de valores interligados que guia as ações dos indivíduos. Pode ser descrito como um sistema cujos valores incluem a compaixão, o respeito, a dignidade humana, uma orientação humanística e o papel do coletivo." John Volmink

A história da Academia Ubuntu Filipe Pinto e Ana Pires (org.)

“A Academia Ubuntu é um projeto de capacitação de jovens com elevado potencial de liderança, provenientes de contextos de exclusão social e/ou com intuito de trabalhar neles, com o objetivo de que possam vir a desenvolver projetos de empreendedorismo social ao serviço da comunidade. Conceptualizado a partir de referências da cultura africana – Ubuntu – Eu sou porque Tu és - e do exemplo de vida de grandes figuras como Nelson Mandela, Martin Luther King, Desmond Tutu, Gandhi, Aung San Suu Kyi, Aristides de Sousa Mendes e outros, este projeto visa despertar uma nova identidade, uma transformação paradigmática, que se reflete num conjunto de ações, atitudes e pensamentos que cada participante apresenta em relação à comunidade, aos indivíduos com quem interage e a si próprio. Ubuntu é um conceito filosófico e um princípio organizacional de origem africana, das populações Bantu (na África do Sul, nas línguas Zulu e Xhosa), que contém na sua essência os princípios da partilha, solidariedade, confiança, respeito e cuidado mútuos. Ubuntu contém em si um estado (ser) e uma ação (tornar-se) que se complementam num modo de estar interdependente, contrário à lógica do individualismo. Para o Ubuntu, ser humano significa afirmar a humanidade própria através do reconhecimento da humanidade dos outros e estabelecer relações humanas solidárias. Não se baseia nem na lógica do indivíduo por si só, nem apenas na superioridade do grupo em relação ao indivíduo, mas antes na relação inacabada e em constante transformação entre ambos.”


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