Propostas de soluções para os Problemas Sociais Complexos

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Governação Integrada na Guiné-Bissau

Propostas de Soluções para os Problemas Sociais Complexos Este projeto é financiado pela União Europeia

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Governação Integrada na Guiné-Bissau

Propostas de Soluções para os Problemas Sociais Complexos


Ficha técnica Edição: Instituto Padre António Vieira Texto: Vários Revisão: Andreia Pinho Alves Design Gráfico: Miguel Rocha 1ª edição: fevereiro de 2018 Pré impressão & Impressão: Impress - Impressral Center Unipessoal, Lda. ISBN: 978-989-99993-3-6 Secretariado Executivo do GovInt Guiné-Bissau Morada: Rua Justino Lopes 80, Chão de Papel — Bissau Depósito Legal: 437693/18

Este documento foi elaborado com a participação financeira da União Europeia e cofianciamento do Camões — Instituto da Cooperação e da Língua. O seu conteúdo é da responsabilidade dos autores de cada capítulo, no âmbito do projeto Governação Integrada Guiné-Bissau (GovInt), promovido pelo Instituto Padre António Vieira - IPAV e pela Universidade Jean Piaget da Guiné-Bissau. Agradecemos a colaboração de todas as pessoas e instituições que contribuiram para a publicação deste manual, resultante das reflexões de 4 grupos de trabalho que se debruçam sobre problemas sociais complexos da realidade guineense e os contributos de convidados internacionais especialistas nas 4 áreas de trabalho. A presente edição segue a grafia do novo Acordo Ortográfico da língua portuguesa.


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Este projeto é financiado pela União Europeia

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Propostas de Soluções para os Problemas Sociais Complexos

Índice Agradecimentos

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Nota introdutória

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Lista de abreviaturas e acrónimos

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Problemas Sociais Complexos: Estratégias de Reabilitação dos bairros de Reno e Mindará

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Introdução ...........................................................................................................................................................................................................................16 Metodologia .....................................................................................................................................................................................................................16 Análise das causas dos problemas ............................................................................................................................................18 Dos problemas às respostas ..................................................................................................................................................................19 Eixos de intervenção prioritária ...................................................................................................................................................22 Respostas urgentes para problemas complexos ...............................................................................................23 Reabilitaçao dos bairros e mercado de Bandim

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Regularização Fundiária e melhoria das vias de acesso...................................................................................................... 23 Eletrificação dos bairros e reabilitação do sistema elétrico do mercado de Bandim................................... 24 Infraestruturas sociais......................................................................................................................................................................................... 24

Dinamização Comunitária e Formaçao Profissional .................................................................................. 25 Cultura e Desporto .......................................................................................................................................................................................... 27 Ambiente e Saneamento .......................................................................................................................................................................... 29

Conclusão ............................................................................................................................................................................................................................30 Referências bibliográficas .......................................................................................................................................................................32

Bairros em Bissau: Que Governação Integrada para um problema hipercomplexo?

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Reno e Mirandá: entender dois bairros particularmente críticos de Bissau ..........34 Governação integrada de bairros críticos num contexto de ausência de ação pública: uma (des)ilusão? ..........................................................................................................................................35 Bissau: os bairros como problema hipercomplexo ............................................................................................. 36 Governação integrada em bairros hipercomplexos ........................................................................................... 38

Comentário final: aprender, sempre; desistir, nunca

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Desemprego Jovem na Guiné-Bissau: reflexões e propostas de superação

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Enquadramento ........................................................................................................................................................................................................42 Propostas de superação ................................................................................................................................................................................43 Referências bibliográficas .......................................................................................................................................................................47

Algumas reflexões sobre o emprego

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Contexto demográfico ...................................................................................................................................................................................51 Retomando algumas constatações do relatório e do Congresso ......................................52 Perspetivas futuras .................................................................................................................................................................................................54 Crenças e expetativas limitantes .................................................................................................................................................58 Atores do emprego ...............................................................................................................................................................................................60 Pré-requisitos e condições ......................................................................................................................................................................61 Conclusão e reflexão final .....................................................................................................................................................................61

Soluções no processo de Reconciliação Nacional: Um processo complexo para a Guiné-Bissau

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Introdução ...........................................................................................................................................................................................................................64 A liderança partilhada ...................................................................................................................................................................................66 O instrumento nacional de comunicação alternativo .......................................................................68 Os mecanismos de avaliação e inspeção ....................................................................................................................69 Dimensões políticas de desenvolvimento sustentável ........................................................................70 Inclusão social e de género ..................................................................................................................................................................73 Integração de recursos ...................................................................................................................................................................................73 Conclusões .........................................................................................................................................................................................................................74 Referências Bibliográficas ......................................................................................................................................................................75

Intervenção no Congresso Internacional do Fórum para a Governação Integrada: Partilha sobre o processo de Reconciliação Nacional

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Propostas de soluções aos problemas da desigualdade de género na Guiné-Bissau

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Introdução ...........................................................................................................................................................................................................................85 Desigualdade de género na Guiné-Bissau: um longo caminho a percorrer .........................86 Metodologia .....................................................................................................................................................................................................................89 Desigualdade de género: Propostas de soluções aos problemas identificados ....................90 Fator cultural ........................................................................................................................................................................................................... 90 Fator económico .................................................................................................................................................................................................. 93 Fator religioso .......................................................................................................................................................................................................... 95 Fator político ............................................................................................................................................................................................................. 96

Operacionalização das estratégias propostas ........................................................................................................99 Observatório para a Igualdade de Género ................................................................................................................99 Conclusão ....................................................................................................................................................................................................................... 100 Referências bibliográficas ................................................................................................................................................................... 102

A Reconciliação e o desenvolvimento precisam dos homens e das mulheres

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Agradecimentos O eixo 3 do projeto de Governação Integrada na Guiné-Bissau (GovInt), que visa a participação e influência das políticas públicas através da constituição de um Fórum de Governação Integrada na Guiné-Bissau, foi implementado através do empenho e dedicação de um conjunto de pessoas que desinteressadamente deram a sua valiosa contribuição. Acreditando que este exercício é a mais simples demonstração de cidadania em prol do desenvolvimento do país, através desta feliz associação várias pessoas contribuíram e estão a contribuir para a discussão de possíveis soluções aos problemas sociais complexos da Guiné-Bissau. Felizes e honrados nos sentimos, enquanto IPAV e Universidade Jean Piaget Guiné-Bissau, pela possibilidade de ser o âmago da criação desta plataforma de reflexão positiva em prol do desenvolvimento do país. Queremos, por isso, agradecer à Delegação da União Europeia na Guiné-Bissau e ao Camões – Instituto Português da Cooperação e da Língua, por terem acreditado e possibilitado financeiramente a implementação deste projeto. Desta dinâmica conseguida, queremos ainda agradecer aos incansáveis coordenadores dos grupos de trabalho, nomeadamente: Aliu Djaló, António Spencer Embaló, Braima Sambu Dabó, Dautarin da Costa, Hallen Napoco, Minhone Seidi, Paulina Mendes e Saturnino de Oliveira, bem como a cada elemento que constitui estes grupos de reflexão. Não esquecendo as contribuições de João Paulo Pinto Có, que esteve na coordenação na fase inicial. Queremos também agradecer às várias instituições que se envolveram neste trabalho do Fórum para Governação Integrada, nomeadamente o Ministério da Função Pública, Ministério da Mulher e Criança, Instituto da Mulher e Criança, Conselho Nacional de Juventude e Rede das Associações Juvenis, assim como a UE-PAANE – Programa de Apoio aos Atores Não Estatais Nô Pincha Pa Dizinvolvimentu, financiado pela União Europeia e toda a sua estrutura. Agradecemos ainda o contributo de convidados internacionais como o Dr. João Ferrão, Dr.ª Teresa Fragoso, Dr. Victor Borges e Dr. Osíris Pina Ferreira, que prontamente contribuíram para a discussão, reflexão e partilha de boas práticas das realidades nas quais têm vindo a trabalhar, participando no Pré-Congresso e Congresso Internacional que decorreu em Bissau em novembro de 2017. 9


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Agradecemos, por fim, aos jovens voluntários da primeira edição da Academia Ubuntu Guiné-Bissau, Erikson Mendonça, Marciano André Malam, Serifo Abdul Magide Djaló e Paula Karina Lopes Camará, que contribuíram acompanhando os grupos de trabalho no papel de secretários. A todos o nosso profundo agradecimento.

Edson Incopté Instituto Padre António Vieira – IPAV Coordenador adjunto do projeto GovInt Guiné-Bissau Fevereiro 2018

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Nota Introdutória A presente publicação procede Governação Integrada na Guiné-Bissau: Olhares sobre problemas sociais complexos, lançada em novembro de 2017, a qual reúne reflexões através do mapeamento de problemas, resultado do trabalho de 4 grupos de trabalho sobre problemas sociais complexos da realidade guineense, nomeadamente: Bairros, Desemprego Jovem, Desigualdade de Género e Reconciliação Nacional. De salientar que esta publicação se insere no âmbito do projeto Governação Integrada na Guiné-Bissau (GovInt Guiné-Bissau), implementado pelo Instituto Padre António Vieira – IPAV em parceria com a Universidade Jean Piaget de Bissau, financiado pela União Europeia e cofinanciado pelo Camões – Instituto Português da Cooperação e da Língua. Nesta publicação o foco centra-se em propostas de soluções para os problemas trabalhados anteriormente pelos mesmos grupos. Ambas as publicações são resultado dos trabalhos dos diversos grupos de trabalho do Fórum para a Governação Integrada da Guiné-Bissau (Fórum GovInt Guiné-Bissau), que preconiza trabalhar a participação e influência nas políticas públicas. Com recurso a dinâmicas próprias de cada grupo, tal como na fase de mapeamento de problemas, os grupos de trabalho elaboraram mapas de soluções baseados no sentido de resposta à complexidade dos problemas sociais complexos anteriormente identificados. Para isso, apresentaram uma visão holística e abrangente, capaz de ser agregadora das interdependências e partilha de responsabilidade, não ignorando que para a resolução do problema central é fundamental considerar um conjunto de dimensões cujas interdependências se tornam fatores importantes na concretização de qualquer solução que se quer duradoura e sustentável. A resposta aos problemas sociais complexos acarreta um desafio enorme, não sendo de simples e imediata resolução. No presente trabalho constata-se que os grupos sentiram este desafio de forma peculiar: os mapas de soluções ajustaram-se às diferentes dimensões de cada problema, considerando questões culturais, sociais e históricas da realidade guineense. O processo de identificação de soluções não se concentrou apenas em Bissau e nas maiores cidades do país, procurando agregar perspetivas nacionais para conciliar amplitudes, não perdendo, ainda assim, o foco na realidade e nas características locais. 11


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No âmbito do Pré-Congresso e Congresso Internacional do Fórum para a Governação Integrada foi criado espaço para discussão com estudantes universitários de diversas instituições académicas de Bissau, os quais refletiram e apresentaram soluções para problemas alusivos a cada uma das áreas dos grupos de trabalho. Contou-se com participação do Dr. João Ferrão, Investigador Coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa; Drª Teresa Fragoso, Presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género – Portugal; Dr. Victor Borges, Consultor Internacional e Dr. Osíris Ferreira, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça de Bissau. A colaboração de convidados internacionais, personalidades ímpares com experiência comprovada em cada uma das áreas dos grupos de trabalho, permitiu enriquecer a reflexão dos grupos de trabalho e proporcionou a partilha de experiências e boas práticas nas suas realidades. O projeto almeja, através de resultados dos trabalhos, contribuir para alterações das políticas públicas na Guiné-Bissau disponibilizando, para isso, reflexão e propostas concretas de procedimentos para a melhoria da realidade guineense. Com esta publicação o sentimento é de dever cumprido. Resta, portanto, fazer votos que ela seja útil na implementação de projetos, programas e políticas em estreita articulação com vários atores. Mamadu Saibana Baldé Instituto Padre António Vieira – IPAV Técnico gestor do projeto GovInt Guiné-Bissau Fevereiro 2018

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Lista de abreviaturas e acrónimos ADPP – Ajuda de Desenvolvimento de Povo para Povo AMA-Mindaré – Associação de Moradores e Amigos de Mindará ANADEC – Ação Nacional para o Desenvolvimento ANP – Assembleia Nacional Popular BIOSP – Balcão de Informação e Orientação Socioprofissional CEDEAO – Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental C-Eventos – Associação Cutum Eventos CIG – Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género CMB – Câmara Municipal de Bissau CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa EAGB – Empresa de Eletricidade e Águas da Guiné-Bissau ESSOR – Associação de Solidariedade Internacional FDS – Forças de Defesa de Segurança GDVR – Gestão Durável e Valorização de Recursos GT – Grupo de Trabalho IMC – Instituto da Mulher e Criança IPAV – Instituto Padre António Vieira INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa MGF – Mutilação Genital Feminina MMFCS – Ministério da Mulher, da Família e Coesão Social NUNATIS – Núcleo Nacional de Técnicos da Intervenção Social ONG – Organização Não Governamental OSC – Organizações da Sociedade Civil RAJ – Rede de Associações Juvenis STJ – Supremo Tribunal de Justiça EU – PAANE – Programa de Apoio aos Atores Não Estatais Nô Pincha Pa Dizinvolvimentu

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Problemas Sociais Complexos: Estratégias de Reabilitação dos bairros de Reno e Mindará Minhone Seide – Câmara Municipal de Bissau (CMB) Saturnino de Oliveira – Investigador no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) Coordenadores do grupo de trabalho (GT) dos Bairros Grupo de Trabalho Edmilson Mendonça – Associação de Moradores e Amigos de Mindará (AMA-MINDARÁ) Ama Tidjane Seidi – Rede de Associações Juvenis (RAJ) Djibril Sanhá – Rede de Associações Juvenis (RAJ) Emílio da Costa – Cuntum Eventos (C-Eventos) Bruno dos Santos – Gestão Durável e Valorização dos Recursos (GDVR) Apoio/Secretariado Lamine Soncó – IPAV Guiné-Bissau Paula Karina Lopes Camará – IPAV Guiné-Bissau


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Introdução A definição de estratégias a adotar em zonas urbanas críticas requer uma reflexão exaustiva relativamente ao tipo e forma de intervenção mais adequada. Encontrar soluções que revelem um confiável grau de sustentabilidade temporal configurou-se mais complexo que a identificação dos problemas complexos, em particular quando se trata de problemas dos bairros, — uma realidade que envolve vários determinantes sociais onde as relações são múltiplas e nem sempre sugerem uma perceção imediata. A diversidade dos problemas não permitiu seguir um protocolo normalizado e exaustivo de respostas previstas e adequadas para cada situação diagnosticada, conduzindo antes a igual diversidade de respostas através de uma abordagem criativa e inovadora, onde se evitou que as soluções fossem reféns da vontade política ou da mobilização de grandes somas financeiras dado o atual contexto sociopolítico do país. Neste contexto, o exercício de evidenciação respostas/soluções passou, por um lado, obrigatoriamente por espelhar a realidade complexa e problemática do bairro e, por outro lado, evitar a repetição de estratégias insustentáveis, através de novas respostas resolutas e sustentáveis que permitissem oxigenar os bairros e aumentar a autoestima da população. O percurso da elaboração do mapa conceptual de problemas permitiu-nos deslumbrar, com maior precisão, as vias para chegar a soluções dos problemas sociais complexos dos bairros que passou, de forma rigorosa, pela participação ou não dos moradores; pela identificação de parceiros sócios (ONGs, organizações internacionais, etc.); e pelo diagnóstico pormenorizado das possíveis causas dos problemas de forma a evitar que as soluções sejam paliativas.

Metodologia A estratégia para definir as prioridades de intervenção passou por ter os próprios moradores como prioridade, através de um diagnóstico social bem estruturado. Com a população definiu-se a hierarquia das ações de intervenção e os parceiros-chave para alcançar os objetivos preconizados, numa linha de intervenção em que 16


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eles sejam os protagonistas na construção e implementação dos planos de melhoria do seu bairro. Atribuir-lhes responsabilidades associadas aos recursos humanos e garantir que se sintam motivados e comprometidos com o futuro projeto. O método de proximidade, numa dimensão interativa, através de uma abordagem de concentração nas atividades essenciais teve como objetivos: • Definir as expetativas/problemas de uma forma realística e prioritária; • Explicar as etapas para execução dos problemas onde são dissecadas as estratégias a utilizar; • Aclarar os resultados prioritários a curto, médio e longo prazo numa abordagem participativa. Através da técnica de brainstorming, numa linha de intervenção participativa, os trabalhos passaram por três etapas fundamentais: 1ª etapa: Encontros de trabalho com a associação de moradores dos dois bairros - Mindará e Reno; 2ª etapa: Workshop com estudantes da Universidade Católica de Bissau; 3ª etapa: Congresso Internacional do Fórum para a Governação Integrada na Guiné-Bissau1, com a participação de convidados internacionais e especialistas de vários grupos de trabalho (GT) do GovInt Portugal. Este foi um momento de intercâmbio e da análise crítica em relação aos trabalhos dos grupos do GovInt Guiné-Bissau, designadamente o grupo dos bairros através do estudo de caso de Reno e Mindará. Para o efeito, manteve-se o encontro de trabalho com a associação dos moradores dos dois bairros, Mindará e Reno. O objetivo passou por procurar soluções para os diferentes problemas identificados. A mesma dinâmica de trabalho foi igualmente realizada na Universidade Católica, com estudantes universitários. Estes dois encontros permitiram ter uma análise em diferentes perspetivas sobre o tema e daí saíram subsídios/contributos, sistematizados sobre as soluções aos problemas complexos dos bairros de Mindará e Reno, de forma integrada e colaborativa. No encontro com os moradores, o trabalho foi dividido em dois subgrupos, de acordo com o bairro. Os resultados da apresentação mereceram observações tanto da parte da coordenação como uma análise de ambos os bairros. 1 Decoreu de 13 e 14 de Novembro de 2017.

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O olhar dos estudantes universitários na Universidade Católica trata-se maioritariamente de não residentes destes bairros. Estes não participaram na fase anterior do projeto – na elaboração do mapa conceptual dos problemas sociais complexos nos bairros. Este facto não foi um mero acaso, dado o propósito do encontro ser trazer um olhar externo e académico, e incentivar igualmente as instituições académicas a refletir sobre os problemas complexos que afetam a nossa sociedade. Para isso, algumas turmas foram convidadas a refletir atempadamente sobre a temática e a propor neste encontro potenciais soluções para esses problemas sociais complexos mapeados numa fase anterior. Seguindo a estratégia de divisão em subgrupos de trabalho, os resultados foram apresentados no Congresso Internacional do Fórum para a Governação Integrada na Guiné-Bissau2 na presença do Professor Doutor João Ferrão, que foi coordenador do grupo de trabalho “Territórios Vulneráveis” do projeto GovInt Portugal. A sua presença permitiu contribuir através de comentários que permitiram orientar e melhorar substancialmente o trabalho, nomeadamente partilhando algumas experiências da realidade portuguesa neste domínio.

Análise das causas dos problemas Os bairros de Reno e Mindará, localizados no coração da cidade de Bissau, praticamente engolidos pelo maior mercado do país, já não têm muita capacidade de expansão pela sua posição geográfica e urbana. Algumas casas existem desde os tempos da independência, e os bairros têm vindo a atingir níveis de densificação cada vez mais elevados, começando a existir conflitos de espaço cada vez maiores. A localização privilegiada faz com que as casas e os poucos terrenos/espaços disponíveis sejam disputados por valores acima da média na procura de espaços para aluguer, nomeadamente casas, armazéns e espaços de venda informal. Desta forma, o tecido urbano apresenta-se cada vez mais denso e complexo, com passagens muito estreitas sem drenagem e construções clandestinas precárias que dificultam o acesso de carros e de serviços urbanos. 2 Fórum para a Governacão integrada na Guiné-Bissau, decoreu de 13 e 14 de Novembro de 2017.

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O elevado estado de degradação, associado à densidade populacional e a problemas sociais identificados, nomeadamente criminalidade, delinquência juvenil, abandono escolar, prostituição e ausência de espaço de intervenção estigmatizam o bairro e dificultam a delimitação de um plano estratégico abrindo caminho para duas possibilidades de intervenção: 1. A reabilitação urbana e melhoria das condições de vida dos moradores; 2. Demolição do bairro com realojamento fora da zona e investimento na reconversão do bairro numa zona comercial. Esta última proposta configura-se no plano estratégico a longo prazo pela Câmara Municipal de Bissau, mas como se pode calcular pelo atual contexto sociopolítico, é uma solução a longo prazo não oferecendo, para já, uma resposta para aos problemas diários que assolam os residentes dos dois bairros. Neste sentido, a procura de respostas passou necessariamente pela 1ª proposta — — A reabilitação urbana e melhoria de condições de vida dos moradores dos dois bairros, mas também do mercado que envolve e engloba esse território, porque os seus problemas estão associados e não se conseguem dissociar.

Dos problemas às respostas Definido o nosso objetivo de trabalho, lançamo-nos ao desafio de priorizar os problemas e as possíveis respostas. Numa teia de problemas interligados, como definir os principais eixos de intervenção? Este desafio não poderia ser alcançado sem a participação dos moradores enquanto atores-chave que vivem diariamente os problemas relatados. Neste sentido organizaram-se sessões de trabalho para desconstruir o mapa de problemas, e desenvolver possíveis respostas. Reavaliando o mapa concetual de problemas optou por se trabalhar os dois bairros em simultâneo, aproveitando as potencialidades e pontos fortes de um e outro bairros, explorar a proximidade física destes, podendo ser partilhadas infraestruturas e serviços, não descurando, neste exercício, o mercado de Bandim, para o qual se impunha delinear o mesmo plano estratégico, enquanto vetor principal de serviços para os dois bairros.

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O exercício foi um processo reflexivo que procurou ser sempre realista e enquadrar-se no atual contexto político do país, evitando cair no erro de fazer uma check-list de respostas, mas ações concertadas que beneficiem e envolvam a comunidade, fazendo-os sentir parte indissociável da solução. O diagnóstico permitiu verificar claramente a interdependência dos problemas cuja causa principal é a urbanização precária e evidenciou-se que, se conseguíssemos atuar neste sentido, teríamos praticamente todos os problemas resolvidos. Os instrumentos de planeamento das cidades norteiam o desenvolvimento e crescimento dos municípios e dos seus bairros e têm como objetivo ordenar o desenvolvimento das funções sociais da sociedade e propriedade urbana. Embora não nos apercebamos disso, o impacto de um plano diretor influência e dita as nossas escolhas e formas de viver nomeadamente através: • Da forma de locomoção: o tempo e dinheiro que gastamos nas deslocações. A ausência de serviços e infraestruturas como escolas, hospitais ou comércio obriga os moradores a ter que se deslocar para distâncias maiores, acarretando custos diários e tempo acrescidos. Os Planos Diretores distribuem, de forma harmoniosa, os serviços para que as pessoas possam morar, estudar, ir ao médico, brincar, entre outras atividades, numa área geográfica que lhes seja razoavelmente próxima. • Do sentimento de segurança no interior do bairro pela oferta de segurança pública: A oferta de serviços como comércio implica uma oferta de igual segurança, para que não ocorram situações de furto, vandalismo, etc. Os Planos Pormenores asseguram que existam esquadras de polícia de acordo com a densidade do bairro e serviços existentes em cada realidade local. • Da nossa perceção do bairro e o uso que fazemos dele: os Planos Diretores têm em conta não só a estrutura habitacional e serviços, mas também os espaços públicos que usualmente são decorados com mobiliário urbano e espaços verdes e que servem de zona de lazer e de confraternização. Ter espaços públicos de qualidade faz com que se goste de estar no bairro e que não se sinta necessidade nem vontade de sair dele, por se passar momentos de qualidade nele. 20


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• Da relação com meio ambiente: A produção e o descarte de resíduos sólidos faz parte do quotidiano urbano. O sistema de gestão de resíduos é necessário para a manutenção da qualidade de vida das comunidades, sob pena de gerar um impacto ambiental negativo, nomeadamente através de contaminações de solo, da água e do ar. Neste sentido, os serviços públicos e de infraestruturas urbanas são pilares de qualquer Plano Diretor. Este plano deverá estar em permanente atualização e aperfeiçoamento através de uma gestão participativa com a população. Sendo assim, e constatada a fraca capacidade institucional e de gestão municipal dos bairros, bem como o declínio da qualidade de serviços municipais prestados, o défice ao nível da boa governança e incapacidade de recolha de receita municipal a Câmara do Município de Bissau (CMB) não tem capacidade para fornecer serviços municipais aos bairros de Reno e Mindará ou a quaisquer outros bairros de Bissau, a menos que, a curto prazo, sejam implementadas reformas institucionais e financeiras de melhoria da qualidade de serviços aos munícipes, começando pela urbanização da cidade e definição de Planos Pormenores dos bairros. Nesta perspetiva, e não se avizinhando essas reformas tão cedo, como melhorar as condições de vida dos moradores do bairro de Reno e Mindará e do Mercado de Bandim? Perante o défice de infraestruturas, quais seriam as prioritárias, caso houvesse financiamento para elas? E na impossibilidade de construir dentro do bairro, que respostas podem ser encontradas fora do bairro para os seus habitantes? E, questão fundamental: como articular respostas com a problemática do bairro de Bandim, enquanto parte indissociável dos bairros de Mindará e Reno?

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Eixos de Intervenção prioritária Num esforço de reflexão conjunto foram definidos quatro eixos de intervenção prioritária, conforme alistado no quadro abaixo: Tabela I: Eixos de intervenção prioritária Eixos Prioritários

Eixos de Intervenção Prioritária Descrição ações de intervenção › Redução dos défices infraestruturais (centro de saúde e esquadra no topo das prioridades);

1. Reabilitação de › Implementação projeto melhoria dos Bairros/ bairros / mercados Mercado de Bandim; › Melhoria da acessibilidade e mobilidade;

Responsabilidades / Parcerias › Câmara Municipal de Bissau › Ministério Obras Públicas › EAGB – Empresa de Eletricidade e Águas da Guiné-Bissau › Associação de Moradores

› Regularização Fundiária

2. Dinamização Comunitária e Formação Profissional

› Redução dos défices infraestruturas (centro de saúde e esquadra no topo das prioridades);

4. Ambiente e Saneamento

› CMB – Câmara Municipal de Bissau

› Implementação projeto de melhoria dos bairros › ANADEC – Ação Nacional para o / mercado de Bandim; Desenvolvimento › Melhoria da acessibilidade e mobilidade › NUNATIS – Núcleo Nacional de Técnicos de Intervenção Social

› Reabilitação do campo de rádio como espaço alternativo aos dois bairros;

› Associações de Moradores › ADPP – Ajuda de Desenvolvimento de Povo para Povo

› Promoção de atividades culturais, desportivas e de lazer;

› Netos de Bandim › Associação de Moradores

› Formação artística

› CMB

› Envolver os moradores na gestão dos resíduos sólidos, em parceria com a CMB;

› Câmara Municipal de Bissau – – Direção do Saneamento e Ação Social

› Criação de espaço cultural comunitário; 3. Cultura e Desporto

› ESSOR – Associação de Solidariedade Internacional

› Projeto de melhoria de bairro (drenagem e abertura valetas, águas residuais, abastecimento de água, construção de latrinas, etc.)

Fonte: autores

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› ESSOR › Associação de Moradores


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Respostas urgentes para os problemas complexos Reabilitação dos bairros e mercado de Bandim No passado houve uma intervenção urbanística nos dois bairros através do projeto de melhoria de bairro que, para além de abrir e descongestionar vias de acesso, construiu valetas de drenagem de águas pluviais e demoliu alguns edifícios. No entanto, neste momento constata-se um retrocesso em todas as intervenções realizadas, contribuindo para a degradação acentuada das valetas e recongestionamento dos bairros. A alta densidade da ocupação do solo influência, de certa forma, o processo urbanístico, ou melhor, a “desurbanização” dos bairros é urgente como resposta no sentido de criar mecanismos que promovam a responsabilidade coletiva em relação ao bairro. Para o efeito, e considerando a presente atuação dos poderes públicos, o exercício de respostas de planeamento e investimento nos bairros depende exclusivamente das perspetivas existentes por parte da gestão municipal e governo para a implementação das soluções que se propõe abaixo: • Regularização Fundiária e melhoria das vias de acesso A efetiva integração dos moradores requer um conjunto de regularizações que ponham fim à questão da construção clandestina, que interfere com o quadro urbanístico e ambiental definido para a zona mas que, ao mesmo tempo, sirvam como instrumento para a promoção da cidadania, e o garante de níveis adequados de habitabilidade e condições de sustentabilidade urbanística, social e ambiental. A primeira e mais urgente das medidas é definir o limite territorial do mercado de Bandim, que engole cada vez mais os dois bairros em questão. Esta medida vai contribuir como resposta a várias questões, sobretudo em termos de mobilidade nos bairros. A demolição e realojamento, conforme já havia sido mencionado, não é uma medida que pareça realista em termos de implementação a curto prazo devido ao elevado custo financeiro que acarreta. Neste sentido, a solução seria uma demolição parcial, ou seja, identificar as casas que tenham sido construídas clandestinamente e, por isso, mereçam ser demolidas na base de 23


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critérios socio urbanísticos pré-estabelecidos. Esta intervenção vai permitir o descongestionamento dos bairros e a melhoria das vias de acesso, já que algumas casas se encontram parcialmente em cima das ruas sem qualquer tipo de privacidade. • Eletrificação dos bairros e do sistema elétrico do mercado de Bandim A iluminação ou a eletrificação foi apontada como um dos obstáculos ao desenvolvimento do bairro e na melhoria de condições sociais da população. No mapa de problemas a iluminação está relacionada com a insegurança do bairro. Uma proposta concreta seria a colocação de postos de iluminação solar nos espaços públicos. Relativamente ao mercado de Bandim, a preocupação está relacionada com a insegurança da eletrificação clandestina dos feirantes, que constitui um fator de risco para eventuais incêndios. A proposta saída do grupo de reflexão para as soluções passa pela reabilitação de todo o sistema elétrico do mercado, não excluindo as residências destes territórios. • Infraestruturas sociais Apesar da sobrelotação, da ocupação exaustiva e do pouco planeamento dos terrenos dos bairros, ainda assim é possível fazer algumas construções. No topo das prioridades dos moradores está o centro de saúde. Pode ser planeado aproveitando alguns espaços ainda existentes, apesar de serem de domínio privado, que possam ser utilizados para o bem coletivo. Do mesmo modo, com iguais níveis de preocupação foi apontada como prioridade a construção de uma esquadra de polícia. O governo, na impossibilidade da edificação de uma esquadra fixa, implementou esquadras móveis em alguns pontos e bairros de Bissau. A sugestão é que, a curto prazo, abranja os bairros de Reno e Mindará neste projeto alternativo.

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Dinamização Comunitária e Formação Profissional Na procura de respostas eficazes para o acesso aos serviços básicos, e tendo sempre presente os constrangimentos diagnosticados, delineou-se uma hipótese que congregaria grande parte dos problemas identificados: Abrir, à semelhança de alguns bairros, — Cuntum, Belém e Missira – um Balcão de Informação e Orientação Socioprofissional (BIOSP) para os bairros de Reno e Mindará, cuja ações principais são: • Promover a cidadania e o desenvolvimento local nos bairros, especialmente para pessoas mais vulneráveis económica e socialmente, que serão identificadas e incentivadas a frequentar este serviço e participar nas atividades que lhes serão destinadas com prioridade; • Inclusão social, educacional e profissional dos habitantes, para melhorar a sua qualidade de vida e autonomia, contribuindo no médio e longo prazo para melhorar as respostas sociais existentes através de uma melhor circulação da informação para chegar aos decisores locais.

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Governação Integrada na Guiné-Bissau

Figura 1. Funcionamento do BIOSP

Serviços sociais externos Serviços públicos de Estado

(=> guia e mapeamento): › Sistema de saúde › Serviços de Ação Social › Proteção social › CFP públicos › Sistema educativo › Administração (identidade, registo...) + Permanências nos BIOSP

Serviços sociais privados: › Outras ONG › CFP privados

Comunicação de informações Orientação Apoio técnico

Sala de informação

Sala de assistência social

Chefes de bairro, chefes tradicionais...

acolhimento individual, escuta das preocupações sociais (1 agente OCB ou do Ministério)

Informação, identificação dos mais vulneráveis, visitas domiciliares, mobilização, sessões temáticas

apo io, d ivul gaç ão Reu niõ es r egu lare s,

Lev a da c ntame n om uni to dos dad pro e blem as

Informações, DVD, folhetos, ofertas emprego, agenda BIOSP (OCB: perfis AOS, AOP ou Animador)

Mobilização

ONG

População vulnerável

Serviços associativos e privados do bairro › FIP, orientação profissional, SOC, SOT, SOAE, inserção › Percurso cidadão › Pré-escolar › Outros serviços das OCB e ONG do bairro

› Supervisão, formação (técnicos BIOSP, FIP, Educação) › Apoio técnico + permanências semanais › Compilações mensais e anuais de dados › Reuniões mensais de balanço com cada OCB › Medições e analise de impacto

Serviços públicos do bairro (=> guia e mapeamento): › Administrações do bairro - ...

Serviços sociais do bairro Fonte: Guião Metodológico BIOSP-ESSOR

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Atividades a implementar pelo BIOSP 1. Informar e orientar – Informar e orientar as pessoas – homens, mulheres – – em relação aos serviços que podem atender assuas necessidades e lhes permitam serem melhor reconhecidos como cidadãos, gozar dos seus direitos e assumir os seus deveres em diversas áreas; › Na área da educação, formação profissional e emprego; › Em termos de acesso a serviços básicos, incluindo sociais, saúde, justiça e administração. 2. Sensibilização e coesão social – Sensibilizar as comunidades e o público em geral sobre direitos, deveres, serviços e políticas públicas e contribuir para a coesão social na comunidade; 3. Divulgar informações de interesse geral sobre os serviços básicos e políticas públicas, às quais a população pode aceder através de programas de rádio, boletins de notícias, guia social ou espaços de concertação com representantes dos poderes públicos, onde os cidadãos, associações, autoridades locais e líderes comunitários podem discutir problemas dos bairros e a resposta dos serviços existentes; 4. Contribuir para a manutenção de um bairro limpo e saudável – Trabalho em rede com definição de um cronograma de ações de limpeza do bairro.

Cultura e desporto A multiplicidade da cultura guineense tem sido destacada como uma das principais características do património do país que pode facilitar a coesão social, mas também fundamental para o resgate do património e construção identitária do seu povo. Os bairros de Reno e Mindará não constituem exceção no que concerne à riqueza cultural, tendo os dois bairros visto nascer e amadurecer conceituados artistas musicais, nomeadamente Patcheco de Gumbé, Dupla de Forombal, entre outros. 27


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O talento faz-se notar igualmente no desporto, onde se improvisam campos de futebol nos cruzamentos de ruas ou em becos sem saída. Tanto Reno como Mindará são presença assídua nos campeonatos de defesa3 que se organizam anualmente. O bairro formou grandes futebolistas, entre eles muitos chegaram a vestir a camisola da seleção nacional, como é o caso do Ivanildo Cassama, Braima Injai, Germano Cabral, e tantos outros grandes nomes do futebol nacional. Figura 2. Campo de Futebol improvisado

Fonte: Autor

Neste sentido, e dada a ausência de infraestruturas culturais e desportivas, bem como praças e espaços recreativos, foram trabalhadas diversas respostas que possam ocupar o tempo livre da camada jovem, acreditando que esta medida terá um impacto positivo no Índice de Violência Urbana, tais como: 3 Campeonato de defesa é um campeonato inter-bairro realizado no tempo das chuvas, depois do término do campeonato nacional do futebol e que coincide com o período de férias escolares.

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Criação de um Centro Cultural Comunitário – Com esta medida pretende-se contribuir para democratização das práticas culturais, oferecendo mais opções para a população diretamente nos bairros. Atividades como música, teatro, cinema, artes plásticas, artesanato e dança, entre outras, contribuirão diretamente para valorizar quem trabalha diretamente com a cultura, para além de incidir na inclusão social e desenvolvimento integral dos cidadãos. Os benefícios serão sobretudo para as camadas mais jovens, pois através destes centros culturais será potenciada a diversão, amizade, novos aprendizados e novos talentos e, sobretudo, valorização da auto-estima para a população que, por vezes, vive de forma carente e sem espaços lúdicos para ocupar o excessivo tempo livre que possuem. Reabilitação de 2 campos de futebol exteriores ao bairro para benefício dos moradores de Reno e Mindará – Procurou-se, neste caso, encontrar soluções fora do bairro, uma vez que não há espaço para a construção de infraestruturas desportivas. Neste sentido, a solução passaria pela reabilitação de campos de futebol mais próximos, nomeadamente o campo de Rádio – na praça, – e o campo de Granja, tornando-os em espaços polidesportivos, de forma a incentivar simultaneamente a prática de desporto diversificada.

Ambiente e saneamento O escasso e incorreto saneamento dos bairros aparece no topo das queixas da população do Reno e Mindará. A proximidade do mercado, aliada à falta de acesso a saneamento básico, fazem com que tenha um enorme impacto ambiental na vida das populações, afetando a qualidade de vida. É, por isso, motivo de grande preocupação. Conforme descrito anteriormente, a não contemplação dos bairros em estudos de caso sobre o saneamento ambiental adequado está relacionado com a ausência de recursos da CMB para conseguir estruturar uma rede de qualidade. O aumento da densidade populacional tem acontecido de forma desordenada nos últimos anos, o que faz com que a administração pública não consiga acompanhar o ritmo de crescimento com ações de infraestruturas e serviços que respondam ao aumento significativo do aumento populacional e, consequentemente, de produção de resíduos.

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Para melhores condições de vida dos habitantes dos bairros destacados é necessário implementar um conjunto de ações que visem a preservação tanto do modo de vida da população como do meio ambiente, nomeadamente: • Fornecimento de água potável para o bairro e mercado de Bandim; • Reabilitação e drenagem de valetas; • A criação de BIOSP – em parceria com associação de moradores; • Criar e implementar um cronograma de limpeza e recolha dos resíduos, bem como a drenagem das valetas – pela CMB; • Desenvolver ações de sensibilização com o intuito de estimular a boa prática de gestão dos resíduos sólidos; • Criar pelo menos um espaço verde com apoio da comunidade.

Conclusão A conclusão deste trabalho oferece uma oportunidade para reflexão que visa o prosseguimento de esforços para a mudança e desenvolvimento social dos bairros que constituem o alvo deste estudo: Reno e Mindará. Na busca de respostas aos problemas sociais complexos dos bairros sublinha-se elemento determinante na melhoria da qualidade de vida dos moradores a análise de diferentes perspetivas envolvendo diversos atores que intervêm no bairro e fora dele. Ao longo do processo foi-se acentuando a dimensão do envolvimento da comunitário, numa ideia clara que quanto maior é a apropriação dos moradores em relação ao processo, mais eficientes serão as respostas a ser dadas aos problemas sociais encontradas no bairro. O comprimento deste pressuposto converge com a lógica de funcionamento de governação integrada. A realização de workshops e sessões de trabalho na comunidade serviram como fonte básica para a captação e tratamento de informações evidenciando, com excecional nitidez, que os participantes envolvidos nas discussões tinham como traço comum, mais do que seriedade e o compromisso com a agenda dos trabalhos propostos, uma formidável abertura ao aprendizado de novos conceitos e ideias e a sua aplicação para a materialização de um plano de ação com a finali30


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dade última de resolução dos problemas identificados, que condicionam as suas vidas e estigmatizam o seu bairro. Conforme pode ser verificado na definição dos eixos prioritários, a importância de sinergias entre a administração pública, organizações de sociedade civil (OSC) e de todo o tecido associativo que compõe os bairros é de suma importância para o desenvolvimento de uma base metodológica que vise sobretudo a resolução dos problemas identificados como os mais prioritários para a melhoria de qualidade de vida da população. No conjunto de respostas não foi esquecido o mercado do Bandim, enquanto maior produtor de resíduos e de outros problemas dada a sua posição geográfica relativamente aos dois bairros em estudo. Resolver a problemática dos bairros de Reno sem incluir o Bandim é o mesmo que nada fazer. A elaboração de um plano de ação com eixos definidos para a resolução dos problemas que estigmatizam os bairros de Reno e Mindará constitui um primeiro passo para se encontrar soluções que podem e devem servir como documento a apresentar aos parceiros de desenvolvimento para o estabelecimento de um projeto de melhoria dos bairros em questão – a curto e médio prazo, – de forma gradual e consolidada. Para tal, é necessário haver da parte dos decisores, da própria população e parceiros identificados uma vontade de mudança rumo a um modelo de bairro “ideal”. Por outro lado, é fundamental que a Vereação adira ao processo de reabilitação urbana que deve estar num plano de ordenamento territorial, para que possa ser sustentável em todas as suas perspetivas, nomeadamente a ambiental, económica e social.

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Referências bibliográficas Acioly, C. C. Jr. (1993), Planejamento Urbano, Habitacão e Autoconstrucão: Experiências com Urbanização de Bairros da Guiné-Bissau., Publikatieburo Bouwkunde Ascher, F. (2008), Novos princípios do Urbanismo/Novos compromissos Urbanos, Livros Horizonte, Lisboa. Bullot Mathilde, (sem data), Guião Metodológico Balcões de informação e de Orientação Social e Profissional, BIOSP-ESSOR. Guerra, I. (2000), Fundamentos e processos de uma Sociologia de Ação, O Planeamento em Ciências Sociais, PRINCÍPIA, Publicações Universitárias e Científicas, Lisboa. Trilla, Jaume (1998), Animação sociocultural, teorias programas, e âmbitos - Horizontes pedagógicos, Instituto Piaget, Lisboa

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Bairros em Bissau: Que Governação Integrada para um problema hipercomplexo? João Ferrão Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa


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Reno e Mirandá: entender dois bairros particularmente críticos de Bissau Coordenado por Saturnino de Oliveira e Minhone Seidi, foi elaborado um diagnóstico participativo sobre os bairros Reno e Mindará da cidade de Bissau, referidos pelos autores como “dois bairros problemáticos no coração da cidade”. O trabalho enquadra-se no projeto Governação Integrada na Guiné-Bissau (GovInt GB), tem como objetivo “compreender como se relacionam os fenómenos de segregação e exclusão sócio espacial que destacam os principais problemas, complexos e multifacetados, dos processos que os envolvem e das aspirações e perceções dos atores envolvidos”, e produziu como resultado principal a elaboração e conceptualização de um mapa de problemas comum aos dois bairros selecionados. Trata-se de um trabalho de indiscutível mérito por diversas razões: é inovador em termos de perspetiva e metodologia, eficiente na forma como contorna carências graves de informação oficial de base, ousado na mobilização de diferentes entidades dos bairros ou que neles tiveram algum tipo de intervenção na elaboração de um diagnóstico comum, rigoroso na aplicação de conceitos e procedimentos metodológicos, corajoso na identificação dos principais pontos críticos. Independentemente do mérito do trabalho desenvolvido, que me parece indiscutível, este pode ser avaliado a partir de diferentes ângulos. Por um lado, e numa ótica local, como processo de escuta de comunidades que não têm voz no espaço público, de mobilização de atores que nem sempre dialogam entre si, de aprendizagem coletiva baseada na interação, partilha de informação e concertação de opiniões, de eventual lançamento de sementes favoráveis a formas futuras mais colaborativas de (con)viver, debater e decidir em domínios cruciais para o quotidiano das pessoas e das comunidades estudadas. Por outro, e numa escala mais alargada, como uma forma de, a propósito de dois bairros concretos, suscitar um debate sobre o conjunto da cidade, colocando temas, perspetivas e tipos de soluções nas agendas pública e política sobre uma Bissau do futuro e com futuro. Finalmente, e a um nível muito distinto, os resultados do trabalho coordenado por Saturnino de Oliveira e Minhone Seidi constituem um repto estimulante – – quase diriamente, um verdadeiro teste – ao conceito de governação integrada tal como é habitualmente utilizado, bem como às noções-chave em que se baseia, como problema social complexo, colaboração interorganizacional, confiança ou liderança colaborativa. 34


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A avaliação das dinâmicas suscitadas – ou suscetíveis de serem ativadas – pela realização deste estudo nos bairros, na cidade de Bissau ou até ao nível da sociedade guineense exige procedimentos específicos, implica tempo para que seja possível identificar impactos imediatos e efeitos de médio prazo, e requer uma presença no local capaz de captar os vários sinais, por vezes subtis e quase invisíveis, de “ondas de propagação” originadas pelo processo de diagnóstico participativo realizado em Reno e Mindará. Numa ótica de curto prazo, não deixa, no entanto, de ser encorajador o modo como um grupo de estudantes da Universidade Católica de Guiné-Bissau apresentou, em escassos dias, um conjunto de propostas muito interessantes tendo como referência o mapa de problemas elaborado para aqueles dois bairros. O texto coordenado por Saturnino de Oliveira e Minhone Seidi rapidamente se transformou de ponto de chegada de um diagnóstico participativo num ponto de partida para um processo colaborativo de identificação de soluções, abrindo espaço para um novo ciclo de aprofundamento e enriquecimento do trabalho inicial. Enquanto observador externo, com conhecimento reduzido da realidade guineense em geral, e dos bairros analisados em particular, gostaria de realçar sobretudo a importância destes dois estudos de caso para o debate mais global sobre governação integrada.

Governação integrada de bairros críticos num contexto de ausência de ação pública: uma (des)ilusão? A governação integrada de bairros coloca, em qualquer parte do mundo, problemas de enorme complexidade inerentes a processos de governança de base territorial, que são, dada a sua natureza, inevitavelmente multissetoriais e multiatores. A governação integrada de bairros ditos críticos, problemáticos ou prioritários coloca problemas adicionais, pelo facto de sobreconcentrarem em espaços geográficos relativamente reduzidos situações de vulnerabilidade social, económica e ambiental não só graves mas que tendem a reforçar-se reciprocamente. Mas a governação integrada de bairros críticos em países como a Guiné-Bissau e em cidades como Bissau coloca problemas ainda mais acentuados, dada a debilidade do Estado e, consequentemente, a quase ausência de intervenção por parte das entidades públicas da administração central ou local formalmente competentes para atuar nos domínios em causa.

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Em abstrato, podemos definir um continuum de situações entre governo sem governança, governo em governança, e governança sem governo. No primeiro caso estaremos perante soluções de governação integrada envolvendo exclusivamente entidades da administração pública, quer do mesmo setor (governação integrada intrassetorial) quer de setores diferentes (governação integrada intersetorial). Na situação intermédia, que cobre combinações muito distintas conforme o papel e o poder dos vários atores institucionais em presença, a governação integrada inclui entidades da administração e outras organizações públicas, para-públicas ou não-públicas (ONG, associações, empresas, etc.). Finalmente, a governação integrada no que se refere à terceira situação exclui a presença de entidades da administração, por razões que se prendem, em geral, com o domínio de intervenção, que pode não exigir necessariamente a mobilização desse tipo de entidades, ou com a perspetiva adotada, caso prevaleça, por exemplo, uma ótica estrita de mercado ou comunitária. O conceito de governação integrada é suficientemente elástico para poder acolher, com eficiência, este continuum de situações. Contudo, a governação integrada em bairros ditos críticos, problemáticos, vulneráveis ou prioritários exige necessariamente a intervenção da administração central ou local, já que muitas das ações a desenvolver são da sua competência e responsabilidade, como sucede, para dar apenas dois exemplos simples, com o saneamento básico ou a rede viária. É face a este contexto que bairros de natureza já de si complexa, como Reno e Mirandá, surgem como problemas hipercomplexos. De facto a ausência de ação pública em domínios-chave dos direitos sociais impõe formas muito mitigadas de governação integrada, já que os atores-chave estão ausentes. Poderemos, então, falar de governação integrada de bairros com as características que o mapa conceptual de problemas elaborado para aqueles dois bairros permitiu identificar?

Bissau: os bairros como problema hipercomplexo Bairros como Reno e Mirandá acumulam três níveis de complexidade: um primeiro nível próprio de qualquer tipo de bairro, outro específico de bairros que sobreconcentram situações de vulnerabilidade social, económica e ambiental, e um terceiro que decorre da debilidade, ou mesmo ausência, da ação pública. Qualquer bairro corresponde a uma realidade sistémica de base territorial. A sua compreensão exige uma análise pluri e interdisciplinar. A parábola hindu dos cegos que caracterizam um mesmo elefante de forma completamente distinta de acordo com a parte do corpo que tocam (tromba, barriga, perna, cauda, etc.) 36


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ilustra bem a dificuldade de descrever, analisar e entender uma totalidade que é abordada a partir de perspetivas parciais (disciplinares, setoriais). Essa situação, já de si grave, acentua-se quando não se dispõe de informação e conhecimento básicos, nem dos recursos humanos e financeiros necessários. É o caso de bairros como Reno e Mirandá. Uma parte significativa do que ocorre num determinado bairro é influenciada pelas suas características físicas, urbanísticas, socioeconómicas e culturais. Sucede que a geografia dos problemas não coincide com a geografia das causas, e que a geografia das soluções não coincide totalmente com nenhuma das geografias anteriores. Problemas com particular incidência num determinado bairro, da pobreza à doença, da degradação habitacional ao desemprego, do abandono escolar à violência doméstica, podem ser parcialmente prevenidos, combatidos e mitigados através de intervenções locais, mas as causas estruturais e muitos dos atores chave com responsabilidade e capacidade para as superar ultrapassam amplamente a escala reduzida do bairro. As soluções de base comunitária, sendo muito importantes, não são suficientes. É o caso de bairros como Reno e Mirandá. No âmbito da ação das Nações Unidas foram aprovados recentemente dois relevantes documentos que responsabilizam todos os países membros daquela organização: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável (2015), que inclui um objetivo específico designado “Cidades e Comunidades Sustentáveis”; e a Nova Agenda Urbana, adotada na Terceira Conferência das Nações Unidas sobre Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável (HABITAT III) realizada em Quito (2016). Ambos os documentos valorizam os bairros como espaços de vida coletiva e palcos privilegiados de intervenções integradas, plurissetoriais e desenvolvidas com base em parcerias, que visam superar os problemas complexos que aí se fazem sentir. Cabe aos vários estados transpor as orientações políticas e estratégicas consagradas nesses documentos para as suas realidades nacionais. Em caso de inação, essas orientações não terão concretização ao nível local. É o que sucede em bairros como Reno e Mirandá. Finalmente, deve salientar-se que em áreas onde persiste uma cultura comunitária de entreajuda e existem ou atuam organizações não-governamentais empenhadas e capazes de ativar dinâmicas persistentes de diálogo, cooperação e partilha de soluções, a força dos fracos pode tornar-se surpreendentemente forte. É, ou pode ser, o caso de bairros como Reno e Mirandá. 37


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Face a este breve diagnóstico, como lidar, então, com os três níveis de complexidade – bairro; bairro crítico; bairro crítico em contexto de forte inação do Estado – – em áreas como Reno e Mirandá através de soluções de governação integrada?

Governação integrada em bairros hipercomplexos Pelas razões anteriormente apresentadas, os dois estudos de caso coordenados por Saturnino de Oliveira e Minhone Seidi levantam questões interessantes em relação ao conceito de governação integrada nas suas aceções e utilizações habituais. Tornam-se assim um desafio e, sem dúvida, uma fonte de inovação concetual e metodológica. A primeira constatação é que, nas situações descritas, não tem sentido falar de governação integrada de bairros, mas sim de governação integrada em bairros. Ou seja, face à ausência persistente de atores essenciais (entidades da administração local e central), não é possível ambicionar formas de governação integrada de natureza totalizante. Mas há, seguramente, espaço para construir formas de governação integrada mitigadas e ainda assim relevantes. A segunda observação prende-se com o processo de consolidação das formas de governação integrada nesses bairros: ele deverá ser incremental e policêntrico, isto é, ancorado inicialmente num número restrito de medidas ou pequenos pacotes de medidas com forte potencial de concretização, que podem evoluir para intervenções mais ambiciosas, e construído a partir de vários polos agregadores (alianças interorganizacionais), que podem coalescer no tempo de acordo com geometrias variáveis em função dos contextos, das dinâmicas de atores e das oportunidades que forem surgindo. Falar de governação integrada nestes casos exige, pois, que a adjetivemos: trata-se de modalidades de governação integrada incremental, policêntrica e evolutiva, construída a partir de cachos específicos de problemas críticos (sócio urbanismo, saúde pública, etc.). Nesta perspetiva, apresentam-se quatro sugestões para a adequação do conceito de governação integrada à especificidade de bairros hipercomplexos como os que foram analisados e debatidos na Guiné-Bissau:

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i) Sem ação pública não se resolvem problemas estruturais. Se assim é, a participação de entidades da administração, mesmo que ténue, é fundamental. Mobilizar setores críticos da autarquia e colocar as vereações do urbanismo e das questões sociais em diálogo constitui um primeiro esforço imprescindível. ii) Toda a caminhada, por mais longa que seja, começa por um passo. Esse incrementalismo, a que já aludimos anteriormente, pressupõe seletividade na definição das prioridades de ação. Estas prioridades, por sua vez, deverão ser identificadas a partir da conjugação de dois critérios: urgência e exequibilidade. É a coocorrência destes dois aspetos que viabiliza a construção, com segurança mínima, de cachos coerentes e evolutivos de medidas. iii) Só criando vários centros de decisão se garante eficiência na ação. É fundamental criar coligações estratégicas diferenciadas, tanto em termos de entidades participantes como de (sub)territórios de intervenção, mas que procurem partilhar uma meta/ visão integradora mínima de modo a evitar tanto formas perversas de competição como situações de duplicação de esforços por redundância de objetivos e de beneficiários. Repartir centros de decisão não significa fragmentar. É apenas a consequência inevitável de ser impossível desenvolver abordagens integradas totalizantes em áreas onde alguns dos atores chave não estão presentes. iv) Com visibilidade e notoriedade os fracos podem tornar-se mais fortes. Face à fragilidade das coligações locais que protagonizam formas de governação integrada em bairros com estas características, é necessário ir buscar reconhecimento, força e apoio no espaço público. Como? Levando estas questões para palcos de informação e debate externos e mais amplos, das tertúlias aos media (rádio, televisão), e transformando o capital social das organizações e respetivas lideranças envolvidas nas iniciativas de governação integrada em capital reputacional do bairro, assim combatendo a imagem estigmatizante que tende, de forma recorrente, a associar-se a este tipo de comunidades e espaços urbanos.

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Comentário final: aprender, sempre; desistir, nunca Afinal, o que aprendemos com o diagnóstico participativo de dois bairros de Bissau coordenado por Saturnino de Oliveira e Minhone Seidi (outubro de 2017), com o debate com cerca de 40 estudantes da Universidade Católica da Guiné sobre soluções capazes de darem resposta ao mapeamento de problemas resultante daquele diagnóstico (13 de novembro de 2017) e com o Congresso Internacional do Fórum para a Governação Integrada na Guiné-Bissau, realizado no dia seguinte naquela cidade? A resposta, que é multifacetada, parece-me clara. Em primeiro lugar, que é possível, com lideranças empenhadas, elaborar num curto período de tempo diagnósticos participados que são particularmente decisivos em contextos de penúria estrutural de informação e de conhecimento de base. Em segundo lugar, que as comunidades são uma fonte por vezes surpreendente de informação, conhecimento e ação, mas que esse facto não deve ocultar, e muito menos desresponsabilizar, as entidades públicas com competência e responsabilidade de intervenção em domínios cruciais para o efetivo desenvolvimento dos bairros em causa. Em terceiro, que as formas de governação integrada capazes de emergir nos contextos analisados são frágeis, não por demérito próprio mas pelas condições externas e internas que condicionam a sua atuação. Em quarto lugar, a convicção de que o debate teórico e metodológico em torno dos processos de governação integrada deverá ser capaz de acolher situações extremas de (quase) ausência dos poderes públicos, sem prescindir de lutar pelo seu envolvimento ativo em função das atribuições e competências que lhes estão cometidas. Finalmente, que o conceito e as práticas de governança integrada incremental, policêntrica e evolutiva em bairros vulneráveis pode ser um caminho a explorar nas muitas áreas do globo onde a ação pública, pelas mais diversas razões, tarda a chegar. Estas são, aliás, cinco razões que permitem aferir o indiscutível sucesso da iniciativa desenvolvida pelo Instituto Padre António Vieira (IPAV), em parceria com a Universidade Jean-Piaget Guiné-Bissau mas envolvendo outras entidades do país (universidades e ONG), em prol de uma missão que é, ela própria, um problema complexo: a de demonstrar que a governação integrada, enquanto conceito e prática, constitui uma via fundamental para melhorarmos a nossa capacidade coletiva de enfrentar problemas de enorme complexidade num mundo em crescente complexificação.

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Desemprego Jovem na Guiné-Bissau: reflexões e propostas de superação Dautarin da Costa Coordenador do grupo de trabalho sobre o Desemprego Jovem Grupo de Trabalho Dautarin da Costa (Coord.) – Aldeias de Crianças SOS Guiné-Bissau Mamadú Aliu Djaló (Coord.) – ENDA Bunha Mendes – Universidade Católica da Guiné-Bissau Gabriel Mendes – GLESSANAR Érica Mendes – ESSOR Josué Costa – Ministério da Função Pública António Badinca – SWISSAID Apoio/Secretariado Juelma Lídia Lhaabai Sá Tholley – IPAV Guiné-Bissau Marciano Malam – IPAV Guiné-Bissau


Governação Integrada na Guiné-Bissau

Enquadramento O presente texto é uma síntese dos conteúdos apresentados em Bissau no Congresso Internacional do Fórum para a Governação integrada na Guiné-Bissau. Para a preparação do Congresso, o grupo de trabalho dedicado à análise do Desemprego Jovem abraçou o desafio de encontrar pistas para a superação dos problemas identificados e evidenciados no mapa concetual do problema4. Neste texto o grupo procurará dar respostas ao desafio lançado através da exploração das principais ideias resultantes das sessões de trabalho. O desemprego jovem é um problema que na nossa contemporaneidade assume um lugar absolutamente central nos processos de desenvolvimento e estabilização social. Na Guiné-Bissau, a discussão pública sobre o emprego jovem encontra-se ainda longe dos níveis de intensidade e de profundidade suscetíveis de produzir mudanças. A situação é paradoxal, pois trata-se de um problema que, por não se encontrar na agenda das políticas públicas, acaba por não atingir o estatuto de problema social “real”. Neste caso, temos um problema cientificamente verificável, porque se manifesta de forma óbvia na vida das pessoas e comunidades, mas que não encontra réplica em termos da sua conversão para um problema sócio-político. Na Europa, por exemplo, é muito frequente o escrutínio dos governos através do número de postos de trabalho criados e da percentagem de jovens empregados. Este é um exemplo que evidencia não só a importância científica do problema, como também a sua elevação ao estatuto de problema social emergente. Na Guiné-Bissau, a promoção do emprego jovem não tem figurado enquanto critério fundamental de avaliação da qualidade do trabalho político. Em termos de senso comum, o problema do desemprego jovem é vivido, sentido e falado, porém, por outro lado, é também obscurizado pela falta de discussões e de políticas públicas que tenham em vista a sua superação. O contexto social guineense é particularmente desafiante no que toca à descodificação e superação do problema do desemprego jovem. O desafio decorre da multidimensionalidade do problema. Não se pode falar do (des)emprego jovem sem considerar os cruzamentos com os dados respeitantes à pobreza e escolaridade. O desemprego, a pobreza e a baixa escolaridade enquadram e configuram dinâmicas viciosas de produção e reprodução de processos multimensionais de exclusão social. 4 Ver Costa, Dautarin, (2017)

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Podemos observar, segundo os dados do Relatório de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas5, que o desemprego na Guiné-Bissau atinge: • 32,8% da população com menos de 15 anos; • 27,3% da população ativa (15-60 anos); • 12,4% população jovem (15-24 anos). Relativamente aos dados sobre a pobreza na Guiné-Bissau, inscritos no Relatório de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas6, podemos evidenciar os seguintes: • 84,4% da população guineense encontra-se numa situação de pobreza multidimensional; • 58,4% numa situação de pobreza severa; • 79,4% da população empregada continua pobre. No que respeita à escolaridade, podemos destacar que: • A média de anos de escolaridade na Guiné-Bissau é de 2,97; • A população ativa guineense tem um nível de escolaridade inferior a quatro anos de ensino básico8. Podemos observar que estes domínios de exclusão social se entrelaçam e se constituem enquanto variáveis de uma equação social complexa e multimensional. Tendo como base os dados apresentados, podemos entender que o problema do desemprego jovem vai para além da inscrição ou não no mercado de trabalho. Os dados mostram que, não obstante os preocupantes números do desemprego, ter trabalho não significa, necessariamente, obtenção de rendimentos suscetíveis de garantir razoáveis condições sociais de existência. O facto de o valor atribuído ao trabalho ser manifestamente insuficiente evidencia um problema, por um lado, estrutural, na medida em que alberga múltiplas dimensões, e, por outro, estruturante, no sentido em que promove de forma viciosa a manutenção dos elementos que a configuram. O cenário torna-se mais complexo se considerarmos que, face aos indicadores sócio-educativos, o valor técnico dos recursos humanos é genericamente bastante baixo. O nível médio de escolaridade é um indicador absolutamente crucial, na medida em que o valor do trabalho é determinado pelo valor técnico dos recursos humanos. 5 UNPD, Human Development Report 2016. 6 Idem 7 Idem 8 ILAP, 2010

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Este cenário obriga ao desenvolvimento de propostas sustentáveis de superação, que contemplem a multidimensionalidade do problema. Em rigor, as propostas de solução visarão problemas e não só um problema. Como já foi referido, a articulação entre o desemprego, a pobreza e a baixa escolaridade configura uma espécie de equação multivariada de profunda complexidade. Neste sentido, as propostas que serão apresentadas não terão a pretensão de esgotar as possibilidades de superação, pelo que deverão ser encaradas enquanto perspetivas revestidas da ambição de contribuir para a resolução dos problemas em análise.

Propostas de superação A criação de um contexto socio-económico favorável à promoção do emprego requer, inevitavelmente, uma transformação de fundo nos domínios das representações e práticas. Neste sentido, o grupo de trabalho entende que quaisquer medidas de superação deverão ter como alicerce a estabilidade política do país. Os problemas sociais tendem a emergir enquanto objetos de intervenção prioritária justamente em cenários de estabilidade política. Nas situações em que não existe estabilidade, os decisores políticos e os gestores da vida pública tendem a ser absorvidos por processos e dinâmicas que visam, sobretudo, a confrontação, a obtenção e a manutenção do poder. No meio das confrontações acaba por restar pouca margem para o desenho e implementação de políticas públicas estruturantes do desenvolvimento social. Deste modo, é fundamental que o sistema político seja reposicionado em função dos debates e de ações concretas, orientadas para o Desenvolvimento Humano Integral. O grupo de trabalho entende que num contexto de estabilidade política, o Estado deverá ser o propulsor de um clima de confiança, de modo a alimentar os processos de criação de um contexto socio-económico favorável à promoção da empregabilidade de jovens. Estes processos deverão ser alicerçados em políticas públicas que reforcem a capacidade do Estado, no que respeita ao investimento público nas áreas de educação, infraestuturas e modernização dos setores de produção. Seguindo esta linha, os jovens deverão ser inseridos nas oportunidades geradas pelo investimento público. 44


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A criação de novos postos de trabalho aumentará a capacidade de consumo, o volume de poupanças e o investimento privado. Nesta sequência, quando se observa o aumento da capacidade de investimento privado, passamos ao ponto em que se encontram reunidas as condições mínimas para a promoção do empreendedorismo jovem. Figura 3. Mapa de soluções Investimento Público

Políticas Públicas

› Educação › Infraestruturas › Modernização Setor Primário › Indústria transformadora

› Políticas fiscais › Mapeamento e recolha de receitas › Promoção de emprego

Estabilidade Política

Emprego Jovem sustentável › Capacidade de consumo › Poupança › Capacidade de investimento

Ambiente de Negócios

› Oportunidades › Funcionamento da Justiça

Cultura de trabalho

› Valorização do saber › Valorização do mérito › Emancipação › Empoderamento

Empreendedorismo Jovem Investimento Privado

› Investimento › Inovação

› Setores de produção

Fonte: autor

Considerando que os jovens passarão a ter como alternativa a criação da sua própria atividade geradora de rendimentos e perspetivando que essas atividades tenderão para a inovação e para criação de novas ofertas, teremos uma situação em que os jovens passarão a empregar e a formar outros jovens. Nesta linha, serão observadas mudanças ao nível das representações e práticas face ao mercado de trabalho, bem como ao nível do ambiente de negócios, que passará a ser mais aliciante para os investimentos privados de média e grande envergadura. A perspetiva do grupo de trabalho fundamenta-se na ideia de que os investimentos públicos nas áreas de educação, nas infraestruturas e na modernização dos setores de produção-criação, numa escalada sucessiva, exponencial e viciosa, 45


Governação Integrada na Guiné-Bissau

condições para o aumento da empregabilidade que, consequentemente, gerarão outras fontes de investimento e outras oportunidades de trabalho. O mapa das soluções (fig.3) propõe uma visão integradora sobre um processo que deverá ser desencadeado e alimentado pelo Estado, no sentido de estabelecer os alicerces necessários para a criação de um contexto socio-económico aliciante para os investimentos. Estes alicerces deverão fundar-se no reforço da eficácia e eficiência das instituições, de modo a: (1) Gerar confiança na relação entre os cidadãos e o Estado; (2) Promover um ambiente de negócios dinâmico e funcional; (3) Reforçar as competências dos jovens; (4) Promover a valorização da cultura de trabalho; (5) Fomentar a sustentabilidade do emprego jovem em termos de rendimento, autonomia, capacidade de inovação e estabilidade.

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Referências bibliográficas Costa, D., (2017), “Desemprego jovem” in Governação Integrada na Guiné-Bissau: Olhares sobre os problemas sociais complexos, Instituto Padre António Vieira (IPAV), Lisboa. Instituto Nacional de Estatística, (2010), Inquérito Ligeiro para a Avaliação da Pobreza. República da Guiné-Bissau, (2015), Plano Estratégico e Operacional 2015-2020 “Terra Ranka”. Ministério da Educação Nacional, da Cultura, da Juventude e dos Desportos, (2013), Relatório da Situação do Sistema Educativo – Margens de manobra para o desenvolvimento do sistema educativo numa perspetiva de universalização do Ensino Básico e de redução da pobreza, UNESCO-BREDA, Dacar, Senegal. PNUD,(2016), Relatório de Desenvolvimento Humano: Desenvolvimento Humano para todos, Nova Iorque RESEN, (2015), Para a reconstrução da escola da Guiné-Bissau sobre novas Bases – Resumo Executivo. SNV, (2011), Sistemas de Inspecção da Educacção. Os modelos teóricos e a sua aplicação no Senegal, Mali, Benim e Guiné-Conacri por comparação com a Guiné-Bissau. Secretaria de Estado da Juventude, Cultura e Desporto, (2015), Plano de desenvolvimento dos recursos humanos para a implementação da Política Nacional da Juventude da Guiné-Bissau.

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Algumas reflexĂľes sobre o emprego Victor Borges Consultor Internacional


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Na sequência da minha participação na oficina (workshop) sobre o desemprego jovem e no Congresso Internacional do Fórum para a Governação Integrada Guiné-Bissau, realizados em Bissau nos dias 13 e 14 de Novembro de 2017, não pude recusar o convite do IPAV para uma contribuição à publicação prevista no âmbito do projeto. À falta de tempo, juntam-se outros constrangimentos decorrentes do meu conhecimento sumário da realidade socioeconómica da Guiné-Bissau. Este texto tem como pano de fundo o relatório do grupo de trabalho desemprego jovem, as diversas intervenções e preocupações expressas durante a oficina e o congresso. Destacarei dois ou três pontos do relatório para acrescentar algumas reflexões genéricas sobre o desemprego jovem ou, se quisermos positivar a questão, sobre o desafio do emprego jovem na Guiné-Bissau. Este texto não deve ser visto como recomendações e pistas de acção apontadas por um perito. Tão pouco se trata de considerações baseadas em dados, estudos e pesquisas de terreno. O seu valor é, por conseguinte, relativo. Gostaria que as ideias apresentadas neste artigo fossem tomadas como um convite ao aprofundamento da reflexão interna sobre este tema vital para qualquer país, governo, família ou cidadão. Tenho para mim que nada, absolutamente nada, substitui a reflexão endógena a ser protagonizada por atores e partes interessadas guineenses implicados na gestão do emprego e do desenvolvimento, em geral. Se as ideias apresentadas neste artigo puderem ajudar, tanto melhor. Sendo, também, possível que não acrescentem valor ao debate interno, em curso ou futuro. Nesse caso a única sugestão que posso fazer aos atores envolvidos é que simplesmente ignorem as ideias esboçadas neste artigo.

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Contexto demográfico A problemática do emprego, na Guiné-Bissau e alhures, deve ser enquadrada no contexto político, económico, cultural, regional e demográfico. Vou, em primeiro lugar e de forma sumária, destacar a dimensão demográfica que diretamente influi sobre a procura do emprego. Como em outros países africanos, a Guiné-Bissau tem demonstrado taxas elevadas e contínuas de crescimento populacional. O quadro a seguir ilustra bem a dinâmica de crescimento populacional nas últimas décadas. Tabela II. Evolução da população da Guiné-Bissau 1970 1990 2000 2010 2015 2018 2050

711,827 mil 1,012 milhão 1,243 milhão 1,555 milhão 1,775 milhão 1,807 milhão 3,602 milhões

Fonte: World Population Review, disponível online em http://worldpopulationreview.com/countries/guinea-bissau-population/

Esta dinâmica populacional comporta ainda, pelo menos, duas características dignas de realce: • O peso da juventude. A idade média da população da Guiné-Bissau, neste momento, é estimada em 19 anos, muito mais baixa que a média africana (à volta dos 30 anos). Esta caraterística interpela de forma incontornável e inadiável os atores sociais e políticos. Os dados da projeção demográfica para 2050 (3,602 bilhões de habitantes) ilustram a dimensão hercúlea do desafio do emprego. A pressão sobre os setores da educação, formação e emprego, já grande, irá, a médio e longo prazos, ampliar-se, em termos quantitativos e qualitativos. O drama é que a Guiné-Bissau não pode contar muito com o mercado de emprego sub-regional (CEDEAO – Comunidade Económica dos Estados da Africa Ocidental) como almofada socio-laboral ou espaço de diluição da pressão sobre o mercado de trabalho interno. Infelizmente o desemprego e o subemprego constituem, igualmente, desafios estruturais de todos os países da sub-região. 51


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• Um outro aspeto importante da socio-demografia da Guiné-Bissau e da maioria dos países africanos, incluindo Cabo Verde, é a tendência pesada à concentração urbana. Em contexto de desemprego e subemprego, a concentração urbana vem agravar, ainda mais, a situação das periferias urbanas caracterizadas por défices de presença e de autoridade do Estado, de infra-estruturação, de habitação e de serviços sociais e urbanos básicos. A ocupação ilegal e desordenada do solo e de zonas de risco, a insalubridade, a degradação ambiental e riscos de catástrofes (naturais e antrópicos) são, infelizmente, traços comuns das periferias urbanas de todos os países da sub-região. Face à situação de desemprego, precariedade, pobreza, exclusão social e espacial de segmentos expressivos da população jovem e em expansão contínua, os Governos africanos estão desafiados a aprimorar as práticas de governação e de gestão do desenvolvimento para poder dar respostas consistentes em matéria de capacitação, de emprego e de outros bens e serviços públicos básicos. De outra forma, o futuro poderá ser marcado pelo agravamento de convulsões sociais e grandes movimentos migratórios internos, sub-regionais e internacionais9.

Retomando algumas constatações do relatório e do Congresso O relatório do grupo de trabalho10 indica que a escolaridade média do país se situa à volta de 3 anos, o que é objetivamente insuficiente para a qualificação da mão-de-obra, para o desenvolvimento pessoal e para a participação política e cívica dos cidadãos. E conclui que “existe uma escassez de recursos humanos devidamente preparados para a inscrição no mercado de trabalho”. (Dautarin, 2017, p.48) Durante o Congresso a questão da educação veio à tona, de forma 9 A África Ocidental é considerada a sub-região africana com maior potencial migratório. As ondas migratórias que desafiam a inospitalidade do deserto do Saara, aceitando riscos desmesurados em embarcações frágeis e superlotadas no mar Mediterrâneo, para arribar a terras hostis, independentemente de múltiplos questionamentos ideológicos, morais, políticos, económicos, securitários, humanitários e sociais aflorados superficialmente pela comunicação social internacional, espelham em certa medida, omissões, insuficiências ou simplesmente o fracasso de políticas de emprego e de rendimento dignos para jovens nos países de origem – uma promessa adiada das independências, do desenvolvimento e da democratização. Dando indicações sobre a realidade socioecónomica atual, esses movimentos migratórios constituem o prenúncio acanhado de dinâmicas migratórias e de convulsões sociais futuras, se a questão do emprego jovem não tiver respostas adequadas. 10 Costa, Dautarin (2017) “Desemprego jovem” in Governação Integrada na Guiné-Bissau: Olhares sobre os problemas sociais complexos, Instituto Padre António Vieira, Lisboa

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sistemática. Muitos participantes referiram-se aos défices acumulados e atuais da oferta educativa e os grandes desafios para o futuro, tanto em termos de quantidade que de qualidade e de relevância. Afirma o relatório que a taxa de desemprego da população ativa (15-60 anos) é de 32% (Costa, 2017). O estudo não menciona nem fornece dados sobre o subemprego. Constata, no entanto, que 79,4% dos empregados continuam em situação de pobreza. Esse dado permite razoavelmente concluir que a maioria dos empregados estará numa situação de trabalho precário, mal remunerado e sem proteção socio-laboral, o que tipifica situações de subemprego. Cruzando a informação sobre a escassez de recursos humanos preparados com a taxa de desemprego indicado no mesmo estudo (32,8%) pode dizer-se que a situação comporta um grande paradoxo que não é específico da Guiné-Bissau (acontece também em Cabo Verde e em outros países africanos): por um lado existe uma situação grave de desemprego e por outro o país está confrontado com a dificuldade em fornecer ao mercado mão-de-obra qualificada de que precisa. A educação/ formação impõe-se como prioridade estratégica indiscutível para partidos políticos, governo, setor privado, organizações da sociedade civil, famílias e cidadãos considerados individualmente. Acrescento, ainda, uma nuance referida por alguns participantes durante a oficina e o congresso. Trata-se do desemprego de diplomados do ensino secundário e superior, um drama social que os países africanos não foram capazes de prever e de prevenir. O desemprego de diplomados lembra-nos que era, é e será necessário definir com rigor as estratégias educativas e opções práticas alinhando a oferta educativa à procura de necessidades do mercado de trabalho. Infelizmente o emprego não pode ser decretado. Resulta de políticas económicas, de dinâmicas de investimentos e do alinhamento da formação com as necessidades do mercado. A questão do desemprego ou da promoção do emprego interpela, por conseguinte, os mais diversos setores de atividade. Em termos económicos, o estudo menciona a predominância dos setores primário e terciário que concentrariam a maioria da população empregada. A ausência de indústrias permite concluir que o setor terciário é constituído essencialmente por serviços da administração pública e conexos. E menciona que o setor pri53


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mário (agricultura, pecuária, pesca) continua refém de práticas de exploração tradicionais de baixa produtividade e rentabilidade económica. Julgo que, assim como em outros países, este setor primário tradicional é pouco atrativo11 para a juventude, particularmente a juventude formada e com aspirações (legítimas) à modernidade e à melhoria de condições de vida. O relatório do grupo de trabalho ressalta o caráter multissetorial do fenómeno do desemprego e do desemprego jovem em particular, destacando as dimensões política, económica, educativa e cultural que, por sua vez, se desdobram em diversos elementos, fatores e condicionalismos interligados e que se reforçam mutuamente. A multiplicidade de fatores condicionantes, de causalidades cruzadas, de atores envolvidos e as diversas dinâmicas decorrentes ilustram a complexidade do fenómeno do desemprego. As práticas rotineiras de governação e de gestão do emprego e do desenvolvimento em geral estão interpeladas. De facto, transsetorialidade aponta para novos modelos, abordagens e práticas de gestão, mais consentâneos com a natureza intrínseca e multifacetada da realidade que se quer mudar. Neste sentido, a governação integrada aparece como uma proposta de inovação credível e susceptível de ajudar a transcender os limites e perversões da abordagem institucional tradicional (vertical ou setorial). Ela requererá, todavia, a capacitação consequente e permanente de atores (políticos, gestores, administradores e técnicos) tendo em vista a adopção de novas atitudes e práticas de gestão e de liderança no espaço social, público e político.

Perspetivas futuras O estudo12 não explora as perspetivas futuras de emprego na Guiné-Bissau e remete para uma próxima etapa a “elaboração de propostas concretas que visem caminhos integrados de superação” (Dautarin Costa, 2017, p.55). Como disse anteriormente, julgo que essas propostas deverão resultar de uma reflexão interna alargada, envolvendo atores políticos, económicos (privados e públicos, 11 Aqui, também, não se trata de um caso específico da Guiné-Bissau. Infelizmente, franjas importantes da juventude africana escolarizada desenvolveu um preconceito extremamente desfavorável em relação ao trabalho manual e uma reacção de quase repulsa e relação à agricultura, associada à pobreza, exclusão social e menosprezo sociopolítico. 12 Costa, Dautarin (2017) “Desemprego jovem” in Governação Integrada na Guiné-Bissau: Olhares sobre os problemas sociais complexos, Instituto Padre António Vieira, Lisboa

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nacionais e investidores externos), académicos, cientistas sociais, organizações da sociedade civil e, enfim, a sociedade no seu todo. Não querendo orientar ou antecipar as conclusões da reflexão interna, deixo alguns subsídios / contributos que, seguramente deverão ser recontextualizados, reconfigurados e aprofundados, em função de opções da sociedade, dos atores sociais e do governo. 1. Aceleração do crescimento económico e a procura incessante de soluções ajustadas e sustentáveis na sua tripla dimensão – económica, social e ambiental. O crescimento requererá políticas setoriais integradas e coerentes com o propósito de aumentar a produtividade, a produção, o consumo e trocas comerciais sem os quais não pode haver geração sustentável de emprego. Assim vale a pena relembrar e realçar o previsto no plano estratégico e operacional 2015-29 “Terra Ranka”, a saber, a diversificação e modernização da economia – – exploração sustentável dos recursos naturais, aproveitamento do potencial industrial, por exemplo o processamento do cajú antes da exportação, a valorização do grande potencial turístico e a infra-estruturação. 2. Isolo o desafio de modernização e de valorização do setor primário que comporta uma grande potencialidade derivada da disponibilidade de solos, de água e de abundantes recursos biológicos. Todavia, o setor carece de transformação profunda para poder ser atrativo para empreendedores nacionais, sobretudo, para jovens diplomados. Com enquadramento e apoio adequados, os jovens, muito mais do que o agricultor tradicional, teriam a capacidade de o relançar e o tornar mais produtivo, mais rentável e, por conseguinte, mais competitivo e relevante para a economia nacional. Este enquadramento deveria declinar-se em capacitação permanente de produtores (agricultores, criadores e pescadores), acesso ao financiamento e a tecnologias modernas de produção e de conservação, infra-estruturação do espaço rural, entre outros aspetos. O aumento da produção teria impactos múltiplos e extremamente positivos a todos os níveis, a saber: segurança alimentar e situação nutricional, exportação13, emprego, aumento de rendimento de jovens e de famílias, fixação das populações no meio rural, equilíbrio no desenvolvimento regional, abrandamento do crescimento das cidades e da pressão sobre o solo urbano, alívio social e político para as autoridades que fica13 O desenvolvimento do turismo em Cabo Verde e as conhecidas limitações de produção agrícola neste país, constituem, inquestionavelmente, uma grande oportunidade para a agricultura e conexos da Guiné-Bissau. E um incentivo adicional à modernização, tendo em atenção os padrões e exigências de qualidade dos operadores turísticos.

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riam menos pressionados pela urgência para programar o desenvolvimento. E, certamente, os ganhos contribuiriam para o reforço da sociedade civil14 e da estabilidade política. 3. O crescimento económico e o desenvolvimento são processos conduzidos por homens. As políticas, os planos e as leis sem recursos humanos qualificados não são implementados convenientemente e tão pouco provocam as mudanças almejadas. Decorre desta constatação quase de la Palice uma prioridade ineludível e já aflorada no início deste texto: a educação e formação15, declinável nos seguintes aspetos que considero cruciais para um país em desenvolvimento: 3.1 Elevação contínua no nível de literacia e de competências de vida. Neste sentido coloca-se o desafio de um ensino primário de qualidade que garanta as aprendizagens básicas e crie condições para aprendizagens subsequentes, sejam elas escolares, profissionais e sociais; A generalização do ensino primário e educação de adultos, constituem um propósito humanista consensual e uma exigência elementar de qualificação da força produtiva. A esse respeito vale a pena relembrar a recomendação e o compromisso assumido por parte de todos os países do mundo perante a UNESCO, no âmbito da iniciativa educação para todos, o objetivo 4 – – educação de qualidade - da agenda 2030 (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) e as linhas de ação da Estratégia Continental da Educação para África, da União Africana (Agenda 2063). 3.2 Destaco, em segundo lugar, a extensão progressiva, equilibrada e sustentável do ensino secundário, da formação profissional e do ensino superior. Este alargamento da oferta educativa deve ser feito, em conformidade com exigências de qualidade, de sustentabilidade e de relevância em relação às necessidades da sociedade e prioridades económicas fixadas. De forma consequente, as áreas científicas e técnicas ligadas à produção, deveriam estar no centro das opções e do processo ensino-aprendizagem. Elas são determinantes para a transformação do setor primário, para o sur14 Efetivamente a agricultura, a pecuária e conexos têm a faculdade de engendrar a autonomia económica das pessoas (ausência de vínculo laboral com os poderes político e público), que muito mais facilmente farão valer o poder social resultante. 15 Estando todo o mundo de acordo, a nível discursivo, sobre a importância do capital humano para o desenvolvimento, não é certo que os atores tenham visão e estratégias ajustadas e práticas consistentes para o reforço da educação/formação.

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gimento da indústria e para o domínio tecnológico e financeiro da exploração e comercialização de recursos naturais. Como em outros países de áfrica e do mundo, a grande frustração de jovens diplomados desempregados e a subsequente crise de expetativas engendram tensões sociais difusas que, atingindo um determinado patamar, tenderá a reverberar sobre o nível e processo político. Por isso, o alinhamento da educação, formação, atividade económica e emprego é, simplesmente, crítico. Como em outros países africanos (e não só!) a preocupação de despistagem do risco de desemprego de diplomados de ensino superior deve começar com a gestão das ofertas educativas16. 3.3 O alinhamento da formação com as prioridades económicas deve incluir a promoção/reforço de atitudes e comportamentos individuais e de práticas sociais favoráveis à produção, à poupança, à acumulação e ao reinvestimento. Esta é uma mudança fundamental para as sociedades africanas. Por outro lado, opções voltadas para a ciência e técnica não devem excluir o objetivo de reforço da cultura de paz, de tolerância, de responsabilidade e de comprometimento com o interesse coletivo, que são os ingredientes básicos de boa convivência social e de estabilidade política. 4. A promoção do emprego requer, igualmente, a valorização e a modernização das profissões tradicionais (agricultores, pescadores, pedreiros, ladrilhadores carpinteiros, canalizadores, eletricistas, pintores de construção civil, artesãos, etc.). Muitas estratégias e práticas de formação profissional e de promoção do emprego em áfrica são omissas em relação às profissões tradicionais e aos operadores informais17. As consequências são incalculáveis para os operadores, para a economia e para o funcionamento da sociedade. A exclusão de operadores tradicionais e informais, para além de adiar a modernização / formalização, remete-os para o escanteio da vida socioecónomica, ao mesmo tempo que priva a sociedades de serviços de qualidade e indispensáveis para o seu normal funcionamento. Deve-se ressaltar que o apoio e enquadramento de profissões tradicionais comporta um potencial de desenvolvimento empre16 Longe de mim a ideia de reduzir a educação à sua dimensão económica ou utilitária. Os objetivos da educação são bem mais abrangentes. Todavia se não garantir aos diplomados uma saída profissional e o acesso a rendimento, as consequências para os interessados, famílias e a sociedade não se tardarão a manifestar. 17 A omissão das profissões tradicionais nas estratégias de promoção do emprego veicula, ainda que de forma involuntária e inconsciente, uma promessa não verbalizada mas assim entendida, de trabalho na administração pública e/ou no setor moderno da economia.

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sarial e de geração de empregos que não deve ser subestimado. A integração de profissionais tradicionais nas estratégias nacionais de promoção do emprego deve ser transladada em acções concretas, a saber, capacitação técnica, gerencial e social18; criação de mecanismos de apoio técnico, de acesso ao financiamento e de seguimento; inclusão no sistema de previdência social e de seguro contra acidentes; acesso à matéria-prima e mercado; incentivo e reenquadramento de práticas de acolhimento de aprendizes; 5. A promoção do emprego depende de muitas outras variáveis – relevância da estratégia adoptada, vontade política consistente19, recursos financeiros, investimentos nacionais e estrangeiros, ambiente de negócios, leis de trabalho e gestão das relações laborais, espaços, equipamentos e materiais e formadores, etc., que não me é possível desenvolver neste artigo. Realço, contudo, a importância decisiva da capacitação contínua de quadros e dirigentes do sistema educação/ formação/ emprego. Capacitação em termos técnicos, gerenciais, políticos e de liderança para a gestão do sistema, em particular, e para a governação do país, em geral20.

Crenças e expetativas limitantes A luta contra o desemprego esbarra-se, igualmente, com obstáculos psicológicos e societais que inibem a pró-atividade e que algumas abordagens tecnocráticas do emprego tendem a subestimar. Refiro-me a padrões e modelos enraizados de sucesso social, alimentados por sistemas desavisados de informação e de comunicação e que conformam atitudes e posturas (individuais e coletivas) em relação às opções de formação e de emprego. Cito alguns desses aspetos:

18 A capacitação deverá visar a melhoria da produtividade, da qualidade de serviço e de rendimentos e o apoio aos profissionais tradicionais para a construção projetos de vida viáveis. 19 A vontade política em relação à educação/ formação/ emprego deve transcender declarações formais. Ela deve ser avaliada em termos opções estratégicas e orçamentais e práticas político-institucionais. 20 A seguinte citação da OCDE resume o desafio de reforço/desenvolvimento de capacidades válido para todos os países em desenvolvimento: “A construção de uma cultura organizacional que promova a aprendizagem (e a eficácia) requer muito mais do que a simples mudança de políticas e de legislação (e de pessoas). Deve incluir a motivação de equipas, a capacitação de líderes e agentes de mudança (…) que possam inspirar e impulsionar os esforços para a melhoria de resultados”. In Evaluating Development Activities, 12 lessons from OECD, DAC, Paris, 2013.

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i. Decisões (pessoais, familiares e públicas) de estudos secundários e superiores determinadas, exclusivamente, por preferências e representações valorativas ultrapassadas, em desfasamento total com dinâmicas e exigências do mercado de emprego. ii. Percepção generalizada de que o emprego digno e seguro significa, necessariamente, integração e vínculo laboral com a administração pública e/ ou setor formal. iii. Expetativa segundo a qual o Estado “deve” ao jovem um emprego, se possível, na administração pública, em desconsideração das suas necessidades intrínsecas de funcionamento e de eficácia; iv. Crença de que na ausência de formação superior, de título académico e de enquadramento no setor público, as chances de emprego e de acesso ao rendimento são nulas ou desprezíveis. E que nem vale a pena ter projeto de vida ousado! v. Atitude de insegurança e de desvalorização de iniciativas e atividades económicas independentes (auto-emprego, criação micro e pequenas empresas). O auto-emprego não significa, obrigatoriamente, pobreza, precariedade e/ou ausência de proteção social21.

21 A pobreza de muitos trabalhadores independentes e artesãos deriva de atitudes e de práticas individuais nocivas em relação ao dinheiro e à ausência de projeto de vida articulado à volta da atividade. Efetivamente muitas profissões socialmente desvalorizadas, objetivamente geram rendimentos financeiros significativos e comportam potencial subestimado de modernização, de transformação empresarial e geração de empregos.

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Atores do emprego Evidentemente que no contexto dos países em desenvolvimento e, particularmente, dos países menos avançados, o governo constitui um ator central na promoção de emprego. Para além de empregos diretos e indiretos que a administração pública pode oferecer (serão sempre inferiores à procura!), o papel do governo é crítico para melhoria do ambiente de negócios, atração do investimento privado nacional e estrangeiro, apoio à atividade económica, incentivos fiscais ao emprego jovem, formação profissional, aprendizagem e regulação do mercado de trabalho, que são igualmente elementos facilitadores do emprego. Dito isto, a ação da governo deve ser complementada e progressivamente compensada pela ação de outros atores sociais. Cito os mais importantes: Setor empresarial – público, privado nacional e internacional – cujo papel na aprendizagem, formação, estágio, oferta de emprego, deve ser enfatizado. Organizações profissionais e sindicais. Contrariamente às perceções e práticas dominantes, essas organizações tem algum potencial de criação de emprego através da formação e de iniciativas empresariais, mutualistas e cooperativas. Famílias e dispositivos comunitários tradicionais encerram potencialidade de aprendizagem, formação e de apoio financeiro a iniciativas empresariais e cooperativas. Organizações não-governamentais e da sociedade civil que através da formação de cooperativas e de iniciativas empresariais, mutualistas, cooperativas e de voluntariado podem ter uma ação importante a favor da formação e do emprego. Finalmente os jovens, considerados individualmente. Sendo portadores de projetos de vida, de atitudes ativas de procura de emprego e/ou de criação de auto-emprego – micro e pequenas empresas) motivados e determinados em adquirir habilidades técnico-profissionais competências gerenciais são capazes de criar dinâmicas insuspeitáveis.

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Pré-requisitos e condições Sem cair no excesso de condicionalismos paralisantes de alguns doadores e parceiros internacionais, pelo menos algumas condições de base deverão ser realizadas e mantidas para que o país consiga ter políticas, estratégias e ações concretas e contínuas de formação e de promoção do emprego. Refiro-me à estabilidade política, segurança e funcionamento das instituições. Sem elas haverá menos investimento e crescimento económico e, ainda menos, a geração de empregos sustentáveis e em número suficiente. Na ausência dessas condições e de emprego, as tensões sociais resultantes terão reverberações imediatas e profundas sobre a paz social e agravarão a situação de instabilidade e de insegurança com efeitos em cascata. Tenho dito que o emprego e a luta contra a pobreza deveriam ser, igualmente, tópicos para o capítulo das estratégias e planos governamentais para a segurança e estabilidade.

Conclusão e reflexão final Este texto reitera a importância crucial do emprego para jovens, famílias, atores sociais e governo, na Guiné-Bissau e em qualquer país do mundo. Por isso todos deverão juntar esforços para capacitar, criar empregos e responder às necessidades e expetativas da juventude, em termos de desenvolvimento de competências técnico-profissionais, ocupação produtiva do tempo, acesso ao rendimento, crescimento socioprofissional e integração social. O emprego constitui uma exigência de realização pessoal e familiar, de paz e coesão social e de estabilidade política. Por detrás do emprego, incontestavelmente, há o desafio de crescimento económico e de desenvolvimento, sem os quais não há emprego. As políticas de desenvolvimento estão convocadas quando falamos de emprego. Por outro lado – e este é o meu último ponto – o desenvolvimento, quer queiramos quer não, comporta mudanças e rupturas, inclusive de natureza cultural. Não resisto à tentação desta reflexão final, eventualmente polémica, e que sempre partilhei com a juventude cabo-verdiana, em Cabo Verde e na diáspora. Temos que enfrentar e gerir as ruturas inerentes ao processo de desenvolvimento 61


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com inteligência, sentido prático, olhar no futuro e com a preocupação de forjar, remodelar, recriar e ser parte da modernidade. E neste particular reside um aspeto arrevesado, raras vezes, articulado e todavia perceptível no dito e não dito de muitos atores. O moderno é tomado como sinónimo de “cultura europeia ou ocidental” (?) que nos é apresentado de forma antagónica em relação à “cultura africana” (?). Nada de mais falacioso do meu ponto de vista! Modernidade significa, para mim, conhecimento e domínio científico, técnico, gerencial e ético de recursos e de processos; rigor na abordagem; procura incessante de melhoria de condições de vida, o nível pessoal e coletivo; práticas de governação respeitadoras de liberdade e de Direitos Humanos; preservação/proteção ambiental; e atualização de valores culturais. É evidente que a Ciência tem e terá capacidade de mudar crenças e práticas sociais em áfrica como, aliás, aconteceu e continua a acontecer nos países europeus, americanos e asiáticos. A grande armadilha cultural impregnada subtilmente nos discursos dominantes para ou em áfrica, resume-se na apresentação de um antagonismo indissolúvel entre o tradicional e o moderno e a associação da áfrica com o tradicional (e por conseguinte imobilismo sociocultural) articulado à volta de argumentos identitários enganadores. Em filigrana fica a ideia de escolhas auto-excludentes e de risco iminente de alienação cultural e de perda de identidade com mudanças ou ajustamentos de práticas individuais e culturais. Por detrás deste discurso identitário bloqueador e que nega o futuro, facilmente se pode descortinar manipulações e conveniências disfarçadas de acesso ou de manutenção de poder ou simplesmente justificação de tirania. O desenvolvimento mudou radicalmente a cultura dos países europeus sem que se fale de perda de identidade. Da mesma forma, áfrica não deixará de ser áfrica com as ruturas e mudanças subjacentes ao desenvolvimento. Os países asiáticos dão o exemplo eloquente de que modernidade e “Ocidente” (?) são duas categorias distintas. Praia, 14 de Janeiro de 2018

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Soluções no processo de Reconciliação Nacional: Um processo complexo para a Guiné-Bissau Braima Sambú Dabo Coordenador do grupo de trabalho Reconciliação Nacional Grupo de trabalho Isaete Djabula, Voz di Paz (Voz de Paz) Justino Sá, Assembleia Nacional Popular (ANP) Osíris Ferreira, Supremo Tribunal de Justiça (SPJ) Nelvina Barreto, MIGUELAN Mindjeris di Guiné Lanta (Mulheres da Guiné levamtam-se) Quemo Dabó, Fórum para a Paz (região de Bafatá) Coordenadores Braima Sambo Dabo, PROCIVICUS GNB Hallen Armando Napoco, Advogado e Consultor Jurídico (Escritório Equitas) Apoio /secretariado Edson Incopté, IPAV Guiné-Bissau Erikson Mendonça, IPAV Guiné-Bissau


Governação Integrada na Guiné-Bissau

Introdução Após a identificação das causas do problema relativo ao processo de reconciliação nacional, produto da nossa primeira fase de reflexão coletiva, passámos a construir, desde o nosso ponto de vista, alternativas como possíveis soluções. No entanto, afigurou-se mais fácil analisar o que está mal do que saber como resolver efetivamente os problemas em causa. Não obstante a dificuldade manifestada na previsão dos pontos mais promissórios de solução entre as várias alternativas possíveis, – dada a indefinição política do momento, – a equipa optou por priorizar as soluções, em função da importância, abrangência e efeito catalisador. Esta priorização foi feita em função do impacto dos mecanismos de responsabilização nos diferentes níveis e pelo potencial na promoção de melhor e maior participação social no processo. Foram essencialmente consideradas as causas que originaram muitos dos problemas identificados. Os principais objetivos que perspetivaram a visão do grupo de trabalho no início da reflexão foram: • Ter uma sociedade em paz com a sua própria história; • Permitir a construção de um sistema mais justo e equilibrado; • Perspetivar o desenvolvimento nacional. Por conseguinte, não se trata somente de propor soluções que permitam realizar ações de reconciliação, mas também criar os mecanismos necessários para a prevenção e resolução de conflitos, a fim de reforçar as condições de um desenvolvimento positivo. Os caminhos podem ser diversos e imprevisíveis, e os falhanços do grupo, assim como a persistência dos problemas vividos, testemunham bem a ineficácia e limitações das estratégias e recursos utilizados até ao momento. Remover obstáculos não conduz automaticamente ao progresso moral da vida coletiva, sendo que os resultados não estão dados. Se realmente queremos alcançar uma reconciliação nacional efetiva, temos necessariamente de abordar a questão do desenvolvimento sustentável e gerar boa governação essencial, para fomentar estratégias e políticas adequadas de crescimento económico forte e instituições democráticas sólidas, capazes de dar resposta às necessidades insatisfeitas e ao bem estar dos cidadãos. 64


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Para tal, a tónica deve ser colocada nas mudanças graduais e nas ações de monitorização e de aprendizagem que possam ser traduzidas em processos melhorados de influência política; “porque o que realmente conta para uma convivência harmoniosa e humana não é o Estado em si, mas o indivíduo dotado de compreensão racional, de criatividade e de valores qualitativos, como verdade, justiça, solidariedade e amor pelo próximo, capaz de o libertar do seu egoísmo.” (Rohden, Huberto 2015) Partindo desta máxima, o grupo definiu um mapa de soluções como possível roteiro à superação dos problemas no processo de reconciliação nacional, os quais para serem efetivos requerem uma abordagem estratégica a curto, médio e longo prazo. O mapa apresenta como eixo central um programa de ação integrado de reconciliação e desenvolvimento, e cinco dimensões de intervenção para sua implementação. Figura 4. Soluções a problemas associados ao processo de Reconciliação Nacional

Liderança partilhada

Construção do instrumento nacional de comunicação

Integração de recursos Programa de Ação Integrada de Reconciliação e Desenvolvimento

Dimensões Políticas de Desenvolvimento Sustentável

Mecanismos de avaliação e inspeção

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Dimensões do programa de ação integrada de reconciliação e desenvolvimento Partindo da experiência do grupo de trabalho e de uma observação crítica à evolução do nosso sistema político e institucional, foram consideradas cinco dimensões importantes como fatores-chave para superar os entraves da reconciliação nacional. Entre os quais destacamos a liderança partilhada como elemento crucial no processo; o instrumento nacional de comunicação alternativo; os mecanismos de avaliação e inspeção, a integração de recursos e as dimensões do desenvolvimento sustentável.

A liderança partilhada As mudanças serão sempre ditadas por lideranças estratégicas que tomem iniciativas, estabeleçam metas e se dediquem à execução por meio das quais deverão ocorrer resultados. Assim sendo, a liderança partilhada deve estar munida de elevada capacidade de gestão de direção, exercida por meio de um consenso amplo e isento de quaisquer interesses suscetíveis de afetar o rumo e ritmo do processo, envolvendo todas as partes potencialmente implicadas, com o propósito de reconciliação devidamente apropriado. Para que o processo de reconciliação seja efetivo e duradouro, os diferentes órgãos de gestão do Estado – a Assembleia Nacional Popular – ANP, o executivo, o sistema judiciário e a presidência da República, estão envolvidos no processo de definição de política apesar das suas competências específicas, deverão harmonizar os seus diferentes objetivos, mandatos, abordagens e recursos, para a manutenção dos mecanismos de verificação e de equilíbrio social. A reconciliação social é um processo de longo prazo e não se dá em ambientes hostis. Os membros e as instituições com responsabilidade primária na manutenção da paz e prevenção de conflitos (governo, poder local, partidos políticos), não devem ser substituídos pela comunidade internacional, que tem o papel de suportar os esforços nacionais e assistir à construção/ reforço de capacidades neste sentido. 66


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Assim sendo, os diversos atores têm que reconciliar os seus interesses, devendo o desejo de reconciliação recorrer da responsabilidade e consciência de cada um de uma atitude genuína. Portanto, a escolha não deverá estribar no perdão, mas no saber, na compreensão racional e na aposta no valor da educação como fator de transformação.

As medidas operativas Como medidas operativas a curto e médio termo deve realizar-se, em primeiro lugar, um mapeamento das pessoas e instituições que têm interesse e comprometimento direto na problemática da reconciliação nacional, para compreender o que motiva os seus interesses, a influência e as diferentes ações empreendidas pelos intervenientes, explicando as suas relações, posições perante determinado programa e os seus comportamentos, quando confrontados com a possibilidade de mudança. Em segundo lugar, constituir uma coligação estratégica de pressão para a reconciliação e desenvolvimento sustentável, colocando a tónica nas mudanças graduais de monitorização, aprendizagem e influência política. Em terceiro lugar, proceder à capacitação de um Conselho para a Reconciliação e Paz, com mandato de alto nível, que implemente totalmente os princípios de reconciliação nacional, tenha o potencial para coordenar as várias organizações e gere uma força capaz de garantir a coesão das instituições políticas.

Agência de implementação de alto nível Como medida estrutural a médio e longo termo, criar uma agência que seja de elevado nível, com sede, modo de intervenção própria, mandato e poderes de mobilizar mais recursos financeiros, e implementar projetos a nível nacional. O objetivo e natureza final desta agência passa pela adequada gestão, prevenção e resolução de problemas políticos e sociais capazes de criar ruturas graves, fortalecer gabinetes regionais e representantes internacionais para acompanharem a implementação e a monitorização das ações de reconciliação no terreno, envolvendo os agrupamentos locais e sub-regionais fronteiriços, como fator de democratização e manutenção da paz. 67


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Esta estrutura deve servir como um fórum para debate de todas as questões relacionadas com o processo de reconciliação nacional, a integração das dimensões do desenvolvimento sustentável e favorecer a prevalência de uma coerência política abrangente entre as instituições nacionais, internacionais, sub-regionais e regionais responsáveis pelo processo de reconciliação, de paz e desenvolvimento na Guiné-Bissau. Em termos políticos, diplomáticos, de Direitos Humanos, de desenvolvimento, instituições e demais medidas coerentes de reformas, dependem muito da cooperação do governo, organizações internacionais, ONG e setor privado como fator de fortalecimento da soberania nacional. O governo deve elevar a sua soberana responsabilidade na resolução preventiva de situações de conflitos e abordar os problemas sociais complexos que não estão a ser atendidos de forma adequada, na base de diálogo aberto e inclusivo. A Comissão preparatória do processo de reconciliação nacional em particular deve levar a cabo uma mudança de arquitetura que lhe proporcione maior eficácia e influência num nível mais elevado. Estas medidas devem conduzir ao fortalecimento da capacidade das organizações locais relevantes, gabinetes regionais e representantes internacionais que lidem com a reconciliação nacional, para acompanharem a implementação e a monitorização das ações no terreno, respeitando os seus mandatos.

O instrumento nacional de comunicação alternativo Existe, na realidade, fraco entendimento e conhecimento sobre a reconciliação nacional. Reforçar a comunicação e a informação por vias alternativas no seio das organizações e comunidades poderá facilitar a intermediação de proximidade, uma abordagem colaborativa mais eficaz na solução dos problemas e o debate em torno da forma como deve ocorrer o processo de reconciliação. O país carece realmente de ferramentas necessárias para fomentar eficazmente estratégias apropriadas de reconciliação e de prevenção de conflitos. Ferramentas que deem resposta à promoção da cultura política, uma cultura de conhecimento 68


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e apreciação de ações de cidadania, a qualidade de valores, tradições e normas sociais, que regulem as relações públicas assentes na comunidade de interesses e necessidades políticas e na consciência e atitude dos diferentes grupos e setores da população, para com os mecanismos existentes de poder político, através de intercâmbio de informação e processos de diálogo, mediação e negociação, conduzam a mudanças de comportamentos e uma maior exigência dos cidadãos. É necessário trabalhar atitudes, comportamentos e valores guiados pela consciência da nossa independência. Integrar os mesmos no sistema educativo a fim dos jovens serem, no futuro, cidadãos responsáveis. Posto isto, os guineenses, num esforço conjunto e determinado, com vontade positiva, serão capazes de erradicar as más práticas e implementar uma nova cultura moral, de respeito e dignidade pela vida humana, e transformar profundamente o ambiente legal e institucional, como condição para garantir um futuro mais pacífico e duradouro. A comunicação alternativa constitui um elemento de extrema importância para alcançar os efeitos desejados, na medida em que irá promover o fortalecimento das instituições e expressões da cultura política (o Estado, a Constituição, o direito, a democracia, etc.); Permite elevar o nível de informação qualificada e de competências políticas dos cidadãos; Assegurar a influência e incorporação dos cidadãos sobre o processo político; Garantir a proteção dos valores políticos, democráticos e de cidadania; Promover as alterações responsáveis, penalizando atitudes insustentáveis; e apostar no valor da educação como fator de transformação da opinião pública prevendo uma melhor e maior participação.

Os mecanismos de avaliação e inspeção A avaliação e a inspeção configuram-se como uma das maiores, senão das maiores fragilidades institucionais com que o país se tem confrontado durante anos de conflitos prolongados, tornando difícil assegurar qualquer processo de decisão sustentável, relacionado com a incorporação de questões nas decisões de gestão, tais como: Identificar as fraquezas de governação, as áreas de riscos, a perturbação periódica da paz, a participação pública em diferentes níveis, a monitorização interna e a avaliação de riscos financeiros.

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Nestas circunstâncias, é impensável realizar ações de desenvolvimento de forma séria ou desenhar qualquer progresso de gestão, sem as potenciais medidas que ajudem na otimização contínua de resultados. Assegurar uma estrutura que permita e facilite a regulação com menos custos, focado no cumprimento de diretrizes, no estabelecimento de objetivos que permitam examinar os critérios de intervenção, identificar os problemas, controlar e corrigir situações de abuso e falhas de vínculos contratuais com pleno conhecimento dos factos. Que favoreça a melhoria das práticas e o reforço da capacidade das estruturas sociais implicadas de forma a poder questionar os resultados e construir alternativas com base no olhar crítico em relação às medidas. Constituirá, sem sombra de dúvida, um importante instrumento para prevenir e melhorar a interação e a qualidade de execução no processo. É necessária a definição de critérios básicos na priorização e melhoria dos mecanismos de responsabilização a todos os níveis – local, setorial, regional e nacional, – por forma a promover uma melhor e maior participação. Será útil partilhar experiências nos diversos setores, participar no estabelecimento de códigos de conduta que sustentem o progresso das instituições, determinem o impacto das decisões, a monitorização da performance, a divulgação de boas práticas, assim como o desenvolvimento de capacidades próprias em cooperação com parceiros internacionais, que podem exercer positivamente uma forte influência na definição e correção de políticas, tornando públicos os resultados através de relatórios.

Dimensões políticas de desenvolvimento sustentável O desequilíbrio do sistema, considerado pela equipa como um dos entraves fundamentais no processo de reconciliação nacional, encontra-se estreitamente vinculado a boa governação. Esta deve refletir acertadamente as necessidades da vida espiritual e material da sociedade, reforçar as condições para um desenvolvimento local, e debelar as causas do desequilíbrio do sistema social e institucional do Estado da Guiné-Bissau. Sob este prisma, trabalhar as dimensões do desenvolvimento sustentável aqui consideradas, tais como a justiça social e ambiental, a inclusão social e de gé70


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nero, a eficiência governativa e integração dos recursos, pressupõe maior eficácia na resolução de problemas nos diferentes setores da vida comunitária ilustrada no trabalho dos grupos e muito particularmente no processo de manutenção do equilíbrio social e da reconciliação nacional.

Justiça social e ambiental A Guiné-Bissau tem vivido, desde há muito tempo, conflitos sociais múltiplos cada vez mais complexos. Para além dos problemas tradicionais não resolvidos, aparecem novos fatores sociopolíticos, religiosos, económicos e regionais que se misturam de forma negativa e sequencial, criam desequilíbrios, comprometem a paz e a justiça social e fomentam a exclusão, a discriminação e a falta de dignidade entre as diversas comunidades, aprofundando ainda mais feridas existentes. Para desconstruir o fundamento destes conflitos, as iniciativas de reconciliação deverão implicar todos os atores sociais, com relevância do Estado, as comunidades e as organizações da sociedade civil (OSC), incorporando os segmentos excluídos do processo de decisão. Enquanto instâncias de participação e de controlo social, as OSC devem jogar um papel importante na mobilização das decisões políticas, expressando esforços de democratização e difusão da noção de direito, justiça, ambiente saudável e exercício de cidadania. A justiça é geralmente entendida como uma condição fundamental para a manutenção da paz deverá, portanto, enquadrar-se como uma dimensão política do processo, sem ela continuará comprometido o desenvolvimento nacional. Em relação ao modelo de justiça a ser adotado para o processo de reconciliação e paz na Guiné-Bissau, o grupo entende ser importante determinar na base de um diagnóstico minucioso que permita determinar os elementos necessários de um modelo de justiça a ser aplicado em cada situação. Em todo o caso, a justiça a ser aplicada não deve ser baseada na punição dos culpados, mas seguir os princípios transitivos de remediar as divisões que surgem como resultado de violações dos Direitos Humanos; da procura da verdade; da reforma das instituições de promoção da democracia e o Estado de direito; ga71


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rantindo que as violações dos direitos não se repitam jamais, e poder atender e melhorar, sob responsabilidade coletiva as necessidades, a dignidade, os valores e as relações humanas para todos. Neste sentido, é crucial construir um Observatório, um Comité ou uma Célula Inter-Organizacional, que apoie o processo e vigie fortemente a perturbação periódica da paz, no sentido de consolidar os valores compartilhados e as conquistas alcançadas; promover a boa governação, os atributos que produzem sensação de respeito e levem à aquisição de credibilidade, cooperação e mobilização de pessoas. Que encorajem ainda a transparência e a restauração da confiança como fator central no processo de reconciliação e prevenção de conflitos.

Ecoeficiência e boa governação Para uma governação mais eficiente e integrada, segundo Rui Marques (2014) “é necessário trabalhar uma nova cultura organizacional, com novos métodos e novas competências”. Separar o funcionário administrativo especializado do funcionário político, sem o qual continuamos a correr o risco de ameaça de um desempenho puramente político do aparelho de Estado, do clientelismo, da corrupção, e a ignorância; que obriga e precisa sempre de mudar os funcionários públicos de acordo com a realização das eleições presidenciais e legislativas, sem tomar em consideração o funcionalismo profissional e especializado. Os funcionários políticos tais como o chefe de Estado e ministros, enquanto representantes do partido no poder, podem defender a implementação dos seus programas e critérios políticos, mas estes devem apoiar-se nas sugestões de funcionários especializados com maior e melhor informação sobre os problemas técnicos das instituições a que pertencem. “Enquanto os funcionários políticos podem ser colocados à disposição, ou transferidos (arbitrariamente) a qualquer momento e inclusive demitidos, os funcionários profissionais devem estar ligados um serviço determinado por preparação, concursos públicos e a estudos académicos. Estes, por vocação, devem administrar de maneira apartidária antes de tudo, o que é também válido para o funcionário “político” da administração oficialmente, pelo menos até ao ponto em que não são “razões de Estado”, isto é, interesses vitais da ordem dominante que se encontrem em questão. “Sine ira et studio” é dizer sem ira e sem presunção o que funcionário público deve cumprir o seu dever.” (Max Weber, 2015) 72


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Inclusão social e de género A Guiné-Bissau continua a ser um país onde as tradições culturais são portadoras de muitos fatores de exclusão que inviabilizam o acesso equitativo às mulheres em vários fóruns e oportunidades sociais, económicas e políticas. Atualmente muito se tem realizado na promoção de leis que incentivam e promovem a inclusão social das mulheres. No entanto, há muito a fazer para alcançar a equidade de géneros, a nível político e económico. Será necessário reforçar os mecanismos de proteção dos direitos das mulheres, que tome em consideração os obstáculos e restrições culturais que as impedem de participar e beneficiar de oportunidades em pé de igualdade com os homens. Os mecanismos que devem envolver as mulheres na definição e especificidade sentidas pelas próprias relativamente à carga horária laboral excessiva, à falta de acesso a recursos e benefícios, à participação e empoderamento perante desafios para satisfazer as necessidades nas práticas diárias. Urge reforçar as medidas que permitam maior sensibilização e informação sobre os hábitos e práticas nocivas, assim como de reforço da dignidade e saúde da mulher, por forma a elevar a sua motivação e capacidade organizacional, mas igualmente fortalecer a sua atitude para a ocupação de posições de destaque e responsabilidade nas instituições públicas e privadas, nas estruturas políticas, partidárias e na sociedade.

Integração de recursos A integração de recursos constitui um grande desafio à execução e transparência, na determinação das ações que serão necessárias realizar: Como?, Com quem?, Com que recursos e apoios? E quando?, (ver o que é necessário e como se realizará) na base da co-responsabilidade e comunicação que anule as desvantagens do desconhecimento da realidade integral e motivações locais, o elevado custo e as preocupações adicionais. Impõe-se a necessidade de uma reflexão sobre os meios humanos, financeiros e materiais necessários, uma visão comum e uma estratégia de execução conjunta dos recursos, o que permitirá garantir bons resultados, aumentar o alcance e melhorar o desempenho dos meios colocados à disposição. 73


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A mudança sustentável resulta, muitas vezes, de mudanças graduais no comportamento das pessoas e não só nos resultados produzidos, “então devemos definir o objetivo inicial e estabelecer as mudanças pretendidas, pensar nos resultados e impactos que o trabalho irá desencadear e atestar se o objetivo inicial é realista, assim como a probabilidade da sua ocorrência”. (Instituto de Desenvolvimento Global, 2013)

Conclusões Muito se tem falado sobre a necessidade de reconciliação. As experiências de outros países que foram bem sucedidos servem de exemplos práticos, mas não constituem nenhuma panaceia para a resolução dos problemas guineenses. Cada país tem as suas particularidades e as várias tentativas de solução de conflitos levadas a cabo na Guiné têm demonstrado a exclusividade desta realidade. O modelo a seguir deve ser fundamentado a partir da realidade guineense, das características socioeconómicas, religiosas, políticas e culturais de cada comunidade em particular, sob práticas híbridas, de maneira a poder resolver os problemas com meios de forma adequada e efetiva. Todos os atores têm, portanto, que reconciliar os seus interesses particulares em nome da reconciliação nacional. Sem um compromisso genuíno de todos, principalmente por parte das lideranças e pessoas-chave, não haverá nenhuma possibilidade real de implementar o processo de reconciliação no país, mesmo estando disponíveis os fundos e meios para a sua realização. Infelizmente a reconciliação social é um processo de longo prazo e não se dá em ambiente hostil, enquanto continuar a viver um período de instabilidade crónica, na medida em que os partidos políticos vão à procura de fontes de financiamento e a satisfação de compromissos e promessas políticas, fomentando maus hábitos de gestão e corrupção que tornam difícil a previsão promissória da solução mais adequada entre as várias alternativas possíveis. O presente trabalho reforça o estabelecimento de sentido de responsabilidade de acordo com as experiências vividas. Tudo dependerá do nível de compromisso que, – – explicita ou implicitamente, – se oponham à corrupção e lutem pela verdade, pelo perdão, paz e justiça, criando novas perspetivas de bem-estar e de segurança. 74


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Referências bibliográficas Instituto de Desenvolvimento Global, (2003), Guia de engajamento e de influência política, Edição ACEP. Marques, R. (2014), Problemas sociais e governação integrada, Edição Fórum para a Governação Integrada, Lisboa. Murdock, L. (2017), Peace building – Manual de formação, fundo de Consolidação da Paz das Nações Unidas. Nações Unidas. Rohden, H., (2015), Einstein o Enigma do Universo, Editora Martin Claret Editora. São Paulo, Brasil Weber, M., (2015), Ciência e Política – duas vocações, Martin Claret Editora. São Paulo, Brasil.

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Intervenção no Congresso Internacional do Fórum para a Governação Integrada: Partilha sobre o processo de Reconciliação Nacional Osíris Francisco Pina Ferreira Supremo Tribunal de Justiça de Bissau


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Caros congressistas, Permitam-me agradecer o convite que me foi endereçado pela organização para participar neste Congresso Internacional do Fórum para a Governação Integrada na Guiné-Bissau, subordinado ao tema Olhares sobre problemas sociais complexos. As questões analisadas neste trabalho de reflexão sobre a problemática do processo de Reconciliação Nacional no âmbito do projeto GovInt Guiné-Bissau traduz-se num desafio à sociedade guineense e à juventude em particular. Até então o trabalho feito pela equipa que dirigiu esta temática sublinha a necessidade de introdução de ferramentas de comunicação do quotidiano das instituições públicas e privadas – das ONG’s, associações, de cargos de liderança política e pública, nas forças da defesa e segurança, pelas mulheres, etc.) – dos conceitos como reconciliação nacional, diálogo, justiça social, género, paz, segurança e apropriação pelos atores sociais. Nesta fase os grupos de trabalho do GovInt Guiné-Bissau apresentam objetivos, um conjunto de produtos e resultados colaborativos, para que juntos, numa lógica assente em parcerias, com todas as forças vivas da sociedade, seja possível contribuir para o processo de diálogo e reconciliação nacional na Guiné-Bissau. É certo que a temática de reconciliação nacional faz parte da atualidade no nosso contexto nacional. Convém, porém, salientar que as comunidades ancestrais da Guiné-Bissau sempre se preocuparam com a interiorização nas gerações, da necessidade de compreender, debater, analisar e resolver problemas que perturbam e influenciam negativamente o relacionamento entre grupos sociais ou no interior do próprio grupo com vista a uma convivência pacífica entre povos. Os sucessivos atos de violência político-militar que assolaram a história do país deixaram cicatrizes e mágoas que perturbam a convivência pacífica, a estabilidade política e a tolerância entre diferentes grupos e cidadãos. O Golpe de Estado de 1980, o caso 17 de Outubro, a guerra civil de 1998, entre irmãos vindos da luta de libertação nacional dividiu o país e agudizou ainda mais os problemas sociais que, aliados aos trazidos pelo ajustamento estrutural económico, estimularam o sentimento de pertença étnica e de regionalismo no seio dos guineenses que outrora conviviam pacificamente. 78


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Contudo, a morte dos generais e do Presidente da República em 2009, seguido das mortes e violências de diferentes atores sociais, foram das marcas mais significativas no processo de construção da nossa Nação. As vulnerabilidades socioeconómicas, a falta de poder da autoridade, do Estado e a sua fragilidade, a proliferação das tendências e várias denominações religiosas, a falta de uma liderança política e segmentação (descoordenação dos atores e organizações) da sociedade civil não contribuem para a edificação de uma sociedade e de um Estado de direito democrático credível para assunção do processo nacional de reconciliação e desenvolvimento. A fragilidade do Estado e a sua ausência junto dos diferentes atores sociais alimentam o apetite para a impunidade. As diversas amnistias concedidas e aplicadas pelos órgãos legalmente instituídos não conseguiram travar violências e agressões, nem tão pouco aproximar os guineenses e/ou pacificar a sociedade no geral. Caríssimos, deste modo: Quem vai reconciliar quem? E com quem? Há (ou não) a necessidade de um processo de reconciliação? Quem são os agressores? E as vítimas? Em que medida os atores sociais estão preparados para o processo de reconciliação pessoal e/ou nacional? Existe vontade política dos atores políticos neste processo? Estamos em fase de crise ou falta do diálogo com vista a uma reconciliação nacional? Como vêem, são muitas as questões que constituem desafios para o país e estruturas sociais e políticas. Reconciliar, caros congressistas, implica reconhecer o erro, arrepender, perdoar, ser perdoado e aceite na sua comunidade, renunciar, transcender-se a si mesmo 79


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e ir ao encontro do outro. No passado recente houve inúmeras tentativas de aproximação e iniciativas para um processo de reconciliação nacional liderado por alguns atores e organizações da sociedade civil, tais como Estados gerais das forças da defesa e segurança, Voz di Paz, Mom Ku Mom, mulheres facilitadoras, entre outras. Algumas sociedades deram sinais de reconciliação interna. Destaco o exemplo da África de Sul, da República de Timor, do Ruanda, da Colômbia que, apesar da imperfeição dos modelos e experiência de cada um, demonstraram o anseio e a vontade de dar o primeiro passo para um processo complexo e duradouro, optando alguns pela indeminização, outros pela compensação da assunção do Estado da sua responsabilidade pelos males do sistema político e da violência perpetrada reduzindo o índice da violência e aproximando as partes desavindas no processo nacional de reconciliação. No caso concreto da Guiné-Bissau, apesar da existência de uma Comissão Organizadora para a Conferência Nacional, órgão legítimo, cujos objetivos se inscrevem em analisar, identificar as principais causas dos diferentes conflitos, descortinar as deferentes causas das contradições entre as estruturas dos órgãos constitucionais de soberania e da administração pública e ilustrar os mecanismos de gestão e prevenção de conflitos. Porém, ainda muito se deseja e não é a conferência nacional que resolverá os problemas sociais complexos, e das causas profundas socioeconómicas e políticas que afetam a comunidade guineense residente e na diáspora dos seus anseios a uma paz durável no país. A grande questão da problemática da justiça, da sua credibilidade, do seu acesso, do combate à impunidade, corrupção e da promoção de justiça social equilibrada em benefício e proteção de todos torna a justiça o “calcanhar de Aquiles” do sistema, como consequência direta da fragilidade do Estado e das suas instituições, apesar de se reconhecer algumas melhorias e esforços em tentar mudar o paradigma e o quadro geral e institucional. Outrora, tanto o movimento reajustador de 1980 como a guerra civil de 1997 foi proclamada a luta pela justiça, e “J” em maiúsculas, acabaram por se transformar em fontes de violência, de separação do tecido social guineense devido aos fins e sonhos que ficaram aquém da “Justiça” e da “J grande” proclamados pelos seus atores e protagonistas do sistema. 80


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O reforço do pilar da justiça como um dos fatores para o processo de reconciliação deve ser crucial, educativo e restaurativo acompanhado com um processo de diálogo, de verdade, perdão e arrependimento para um processo de reconciliação inclusiva, participativa e colaborativa entre todos os filhos da Guiné e é uma tarefa de todos nós: jovens, entidades religiosas, públicas e políticas. Uma justiça com a missão de reconciliar e reunificar os guineenses em prol da dignidade humana deve alicerçar-se nos valores do perdão, do diálogo, da verdade e do reconhecimento da culpa, seja ela do agressor ou da vítima, para uma Guiné reconciliada com a sua própria história, com os ensinamentos e erros do passado, vivida e reconstituída com ensinamentos de outros povos, mas sobretudo com base nas suas raízes e valores socioculturais redimensionados para o futuro. Perdoar não significa esquecer, mas é o primeiro passo para a aproximação e aceitação do outro. Urge, meus senhores, o reforço de sinergias e apropriação de todos os guineenses do processo de reconciliação, pois este deve ser um processo participativo, inclusivo. É preciso ter-se a coragem de assumir o erro do passado, trabalhar o presente e preparar o futuro. Sem este passo, haverá imensas dificuldades em construir uma nação de tolerância e cooperação. É possível reconciliar, é preciso dialogar! Ensina Sira Abenoza, “In Dialogue” e “Dialogue Socratic22”, dialogar não é esperar a reação do outro, mas aceitar e compreender as razões, as posições do outro, colaborando para a mudança no contexto real e atual, promovendo a verdade e um processo participativo para a paz social. A diversidade e realidade sociocultural do mosaico social guineense exige dos principais atores sociais nacionais um diálogo sério e fraterno – “Pabia, li na Guiné, no sta suma corda di batata”. A falta do diálogo entre atores sociais estimula crises e é fonte permanente(s) de instabilidade(s), com consequências na rotura do tecido social nacional. Não podemos fazer uma “tábua rasa” na história do país, das vidas do agressor e da vítima, da comunidade e do perfil de cada agente no ato de violência per22 Sira Abezona, Why Socratic Dialogue should become our business card, - disponível online em http://www.tedxesade.com

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petrada. Está-se a tempo e no momento certo para o início processo nacional. «A única revolução possível é dentro de nós», como já dizia Mahatma Gandhi. «O tempo é sempre certo para fazer o que está certo», segundo Martin Luther King Jr. A reconciliação nacional não é o resultado final, mas é caracterizada por uma série de atitudes e comportamentos para a melhoria do quadro pessoal e nacional no relacionamento entre os diferentes atores sociais e políticos para a resolução também dos problemas sociais complexos na sociedade. Isto implica reconstrução de confiança da comunidade e dos atores sociais promovendo a compreensão mútua e retorno da integridade pessoal da vítima. As crises sociais e problemas estruturais existentes serão ultrapassados sentados, criando espaço para diálogo. Não para o diálogo de posições, mas para um diálogo de coração e partilha de interesses comuns entre todos os atores sociais com vista à pacificação e reconciliação do país, adotando um modelo híbrido alicerçado nos nossos valores socioculturais. Tal como ensina Nelson Mandela, «tudo parece impossível até que seja feito». Nós, guineenses, somos capazes porque «somos comandantes das nossas almas e dos nossos destinos», in Invictus – Nelson Mandela. Somos todos chamados — — atores sociais, políticos, Forças de Defesa e Segurança (FDS), mulheres, jovens, religiosos, autoridades tradicionais — para o processo de diálogo, da reconstrução e da reconciliação da sociedade guineense. «Esta é a nossa pátria amada» — Hino Nacional Caros congressistas, O processo de preparação para a conferência nacional de reconciliação marca, todavia, uma etapa fundamental para a reconstrução de uma nova Guiné-Bissau através de um novo contrato social para a promoção da paz, do diálogo nacional, do desenvolvimento e da redução dos problemas sociais complexos no país, porque a Verdade deve ser o nosso caminho, o Perdão – o guia e a Reconciliação a nossa missão – É preciso estabilidade e Paz. Em nota de fecho, perifraseio Rui Marques que disse: “O futuro não está escrito, construiremos uma sociedade de esperança baseada na colaboração, nas siner82


Propostas de Soluções para os Problemas Sociais Complexos

gias e não na fragmentação em classes sociais. Que o GovInt possa ser uma das soluções para a resolução dos problemas sociais complexos.” Bem-haja. Por uma Guiné-Bissau Reconciliada com a sua história!

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Propostas de soluções aos problemas da desigualdade de género na Guiné-Bissau Paulina Mendes Coordenadora do grupo de trabalho Desigualdade de Género Grupo de trabalho Aissato Forbs Djaló – Ativista Social Alanam Gomes Soares – Gestora de Empresa Beatriz Abibe De Almeida – Marketing e Comunicação Cadija Mané – Socióloga e Ativista Social Cecília da Costa – Empresária Dienque Soares – Funcionário do Instituto de Mulher e Criança (IMC) Fatumata Djau Baldé – Ativista Social Infanli Seidi – Ativista Social Suzete Sabino Lopes – Técnica de turismo, ativista Marília Lima – Socióloga e Investigadora Cordenadores: António Spencer Embaló – Sociólogo Paulina Mendes – Socióloga, investigadora Apoio / Secretariado: Mamadu Saibana Baldé, IPAV Guiné-Bissau Serifo Madjide Djaló, Jurista


Governação Integrada na Guiné-Bissau

Introdução A primeira fase da implementação do projeto da Governação Integrada na Guiné-Bissau debruçou-se sobre o diagnóstico e os fatores que provocam a desigualdade de género. Neste âmbito, foram identificadas quatro dimensões responsáveis por esse fenómeno no país, a saber: cultural, religiosa, económica e política. Cada uma dessas dimensões, traduz-se em vários problemas que perpetram a desigualdade de género (Embaló, 2017). A segunda fase do projeto, que constitui o objeto do presente artigo, consistiu em delinear propostas de soluções para os problemas identificados, isto é, encontrar estratégias cujas implementações possam mitigar a desigualdade de género na Guiné-Bissau. Os resultados da reflexão mostram que a temática da desigualdade de género é complexa e melindrosa, na medida em que é difícil identificar os fatores que a originam, por estes se encontrarem acoplados aos valores socioculturais partilhados pela maior parte das comunidades do país. Por outro, é igualmente espinhoso tecer propostas de soluções que visem diminuir esse fenómeno, uma vez que ao resolvê-lo se pode gerar novos problemas. Grosso modo, em termos operacionais os fatores e os problemas identificados como aqueles que engendram a desigualdade de género na Guiné-Bissau estão tão interligados que em termos operacionais não são fáceis de distinguir – característico de problemas sociais complexos. O artigo é estruturado em 5 pontos: O primeiro debruça-se sobre o contexto e o segundo a metodologia. O terceiro ponto evidencia as propostas de soluções ou caminhos para mitigar os problemas inerentes aos fatores cultural, religioso, económico e político por forma a reduzir a desigualdade de género. O quarto trata da operacionalização das propostas de soluções e o quinto ponto, o Observatório da Igualdade de Género.

Desigualdade de género na Guiné-Bissau: um longo caminho a percorrer A integração da temática da desigualdade de género nas prioridades do projeto da governação integrada na Guiné-Bissau vem robustecer esforços que vinham 86


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sendo empreendidos ao longo dos anos pelo governo e parceiros. Neste quadro com vista a melhor apreender a dimensão desse fenómeno e as suas manifestações, foram realizados vários estudos para compreender as suas manifestações e posteriormente implementar um conjunto de medidas para diminuí-la. Foi neste âmbito que foram efetuados estudos relativos aos instrumentos jurídicos de proteção em 2006, a violência doméstica em 2007, a elaboração da Política Nacional de Igualdade e Equidade de Género e a Violência Contra as Mulheres, ambos realizados em 2010 e a violência baseada no género no meio universitário em 2013, entre outros. Como base nesses estudos foram tomadas medidas cuja implementação se faz de forma tímida. Assim, no âmbito legislativo ao nível nacional foram aprovadas pela Assembleia Nacional Popular (ANP): • A Lei sobre a mutilação genital feminina em 2011; • A Lei sobre a violência doméstica em 2014. Ao nível internacional foram adotados: • A Convenção sobre Eliminação de todos os tipos de Descriminação contra a Mulher (CEDAW); • O Protocolo relativo a esta Convenção; • O Protocolo que concerne a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos sobre os Direitos das Mulheres, a Convenção dos Direitos das Crianças (CDC). Desta forma, estes instrumentos jurídicos internacionais entraram automaticamente na ordem jurídica do país pela força do art. 29º da Constituição da República da Guiné-Bissau. Apesar dos esforços efetuados com a adoção de um quadro legislativo visando melhorar a situação da mulher e combater a desigualdade de género, o país ainda se encontra longe daquilo que é desejável. Na verdade, os fatores que concorrem para a desigualdade de género ainda estão presentes na sociedade guineense. Do ponto vista cultural, o casamento precoce continua a ser uma prática recorrente em quase todas as comunidades que compõem o país. Com efeito, segundo o MICS 2014, 37,1% das mulheres de 20-49 anos casaram-se ou vivem em união de facto sendo menores de 18 anos contra apenas 3,7% dos rapazes na mesma 87


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faixa etária. Das mulheres inquiridas com idade entre os 15-49 anos, 7,1% declaram terem sido casadas antes dos 15 anos contra 0,6% dos homens na mesma faixa etária. O casamento precoce é um fenómeno iminentemente rural, sendo que 47% de raparigas entre 20-49 anos se casaram antes dos 18 anos contra 26,8% no meio urbano. Da mesma forma, 5,8% de homens nessa faixa etária residentes no meio rural casaram-se antes dos 18 anos contra 1,8% nas cidades. Estes dados mostram quão desigual é o ponto de partida dos dois sexos que podem contribuir para aprofundar ainda mais a desigualdade de género no futuro. Ainda sobre o casamento, a poligamia enquanto um dos fatores geradores de desigualdade de género, continua presente na sociedade guineense. Segundo o MICS 2014, entre os indivíduos de 15-49 anos que estão numa união poligâmica, 44% são mulheres e 25,8% são homens. Por fim, a violência doméstica ainda é uma realidade compreendida pelas próprias vítimas. Com efeito, 41,8% de mulheres contra 28,7% de homens entre os 15-49 anos declaram que se justifica que um marido bata na mulher pelo menos em cinco circunstâncias identificadas: (1) Se a mulher sair sem lhe dizer; (2) Se a mulher não cuidar dos filhos; (3) Se a mulher discutir com o marido; (4) Se a mulher se recusar a ter relações sexuais com o marido; (5) Se a mulher queimar a comida. Do ponto de vista religioso, a Mutilação Genital Feminina (MGF) segundo o MICS 2014 afeta 45% de mulheres de 15-49 anos. Assim, entre as meninas de 0-14 anos, 29,6% foram alvo dessa prática, segundo foi declarado pelas mães de 15-49 anos e 12,8% das mulheres dessa faixa etária declaram que se deve continuar com a MGF (MICS, 2010). Do ponto de vista político, apesar do aumento do número de mulheres no Parlamento e nas instâncias de decisões, a situação é ainda desigual. O quadro acima descrito mostra que os fatores que concorrem para a desigualdade ainda estão presentes na sociedade guineense. Essa realidade fez com que o IPAV e os seus parceiros tomassem a iniciativa de enquadrar no seu projeto de governação integrada nessa temática, como um dos problemas sociais complexos, por forma a compreender melhor os seus contornos e propor soluções que possam mitigá-la. 88


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Metodologia Os procedimentos metodológicos utilizados pelo grupo de reflexão da temática de desigualdade de género foi o processo de ação-reflexão-ação, tal como aconteceu durante a implementação da primeira fase do projeto. Essa metodologia desenvolveu-se em fases: • A primeira traduz-se na apresentação dos conteúdos a discutir pelos coordenadores do grupo temático durante sessões de trabalho, neste caso concreto a consolidação da identificação de problemas relativos aos fatores identificados como responsáveis pelas desigualdades de género e as respetivas propostas de soluções. • Durante a segunda fase, cada um dos elementos do grupo refletiu e partilhou com os seus pares o entendimento que tem sobre a questão que é objeto de reflexão e fundamenta a sua perspetiva. • A terceira fase debruça-se sobre a análise de todas as contribuições dos elementos do grupo e a elaboração da sua compreensão final da temática em discussão. O processo de reflexão sobre a temática da desigualdade de género não ficou restrito aos membros do grupo temático em Bissau, mas extensivo às três regiões administrativas do país: Gabú (Pitche), Oio (Nhacra) e Quinara (Fulacunda). Adoptou-se, portanto, essa abordagem para poder legitimar e assegurar que os resultados fossem alcançados a nível nacional. As reflexões nessas regiões foram organizadas de forma diferente das sessões de trabalho que ocorreram em Bissau. Com efeito, em cada uma das localidades onde a reflexão decorreu foram efetuados dois grupos focais de discussão: um dos grupos composto apenas por mulheres a partir dos 18 anos de idade e outro por homens da mesma faixa etária. Separam-se os homens das mulheres para poder garantir a participação efetiva das últimas, uma vez que na maior parte das comunidades elas se sentem inibidas quando partilham o mesmo espaço que os homens, sobretudo para exporem os seus pontos de vista sobre uma temática tão melindrosa como a de desigualdade de género. O processo de reflexão-ação-reflexão foi igualmente adotada na realização desses grupos focais. A reflexão foi alargada às universidades. No caso específico desse grupo temático, foram recolhidos contributos dos alunos da Universidade Lusófona da Guiné 89


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apresentadas no Pré-Congresso. Foram recolhidos igualmente subsídios/contributos da Presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género de Portugal no Pré-Congresso e durante o Congresso. O Pré-Congresso decorreu no dia 13 de novembro de 2017 nas universidades de Bissau e o Congresso Internacional no Centro Cultural Português de Bissau, no âmbito do GovInt Guiné-Bissau.

Desigualdade de género: Propostas de soluções aos problemas identificados Não é fácil encontrar propostas para solucionar os problemas ligados à desigualdade de género na medida em que os fatores geradores estão ancorados em práticas culturais das diferentes comunidades que compõem o país. Apesar das dificuldades mencionadas, o grupo temático mergulhou num exercício de reflexão, que resultou num conjunto de propostas delineadas como respostas aos problemas identificados e analisados na fase do diagnóstico.

Fator cultural A cultura é uma dimensão que espelha a idiossincrasia de um povo, o que a torna na pedra basilar de identidade de indivíduos numa comunidade, pela vida na realidade guineense se iniciar na instituição familiar e nela terminar. Com efeito, todos os ensinamentos que adquirimos ao longo das nossas vidas são influenciados pela socialização que recebemos durante a nossa infância. Por isso, o fator cultural acaba por ter reflexo nos outros aspetos. Os principais problemas gerados pelo fator cultural são: casamento precoce, violência doméstica, mutilação genital feminina, poligamia, hardança/ levirato, gerantocracia, herança e posse de terra. Importa realçar que durante as sessões de reflexão nas regiões foram identificados outros problemas associados aos já identificados, como a prática de 23 Bnan’ha e a do filho herdar a sua madrasta em caso da morte do pai24, que são frequentes na região de Nhacra. O acesso 23 É uma prática frequente num dos subgrupos da etnia Balanta que não considera de adultério o facto de uma mulher casada passar a noite e/ou ter relações sexuais com outro homem quando viaja para fora da sua residência habitual. 24 É uma tipologia do levirato, uma vez que esta prática visa a coesão social da família, tal como é preconizado pelo levirato mais comum, que é da esposa ser herdada pelo irmão do falecido marido.

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da mulher à posse de terra e à herança enquanto problemas comuns aos fatores cultural e económico serão analisados apenas neste último. Casamento forçado e precoce Para reduzir o casamento precoce as propostas identificadas são as seguintes: • Criação de um grupo de reflexão que envolva os líderes de opiniões nas comunidades, de modo que possam apreender e reconhecer que as diferentes práticas socioculturais decorrentes das relações de género geram desigualdade de género. Todas as estratégias de sensibilização posteriores dependem desta, para poder produzir efeitos, porque se luta contra uma prática quando se reconhece os seus malefícios na nossa vivência; • Criação e promoção de campanhas de sensibilização para a igualdade de género e conteúdos que evitem práticas nefastas. A título de exemplo, a divisão de tarefas iguais entre rapazes e raparigas, a educação igualitária, a criação de condições para que as meninas tenham tempo para estudar em casa como acontece com os rapazes, para lhes poder garantir a mesma performance, os conteúdos que incidam igualmente sobre os males que o casamento precoce e/ou forçado representa na vida da vítima; • Promoção de acesso e permanência das raparigas no sistema de ensino para as poder tornar autónomas. Para tal, é necessária a aproximação de escolas às zonas de residência das comunidades ou tabancas e implementação de programa em cantinas escolares; • Introdução nos currículos escolares e conteúdos programáticos sobre desigualdade de género a ministrar – uma proposta transversal a todos os fatores identificados; • Alfabetização de adultos por forma a torná-los conscientes sobre as práticas que a desigualdade de género engendra. Violência Doméstica Com vista a reduzir a violência doméstica foram destacadas as seguintes propostas: • Estimular a criação de estruturas mediadoras de conflito na comunidade, de modo a evitar que os antagonismos domésticos se culminem em violência; • Criar condições para que haja menos situações de infidelidade no relacionamento de forma a evitar casos de violência, na medida em que muitos advêm de sentimentos passionais; 91


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• Estimular o respeito pela igualdade de condições e tratamento entre os cônjuges na própria família; • Promover encontros de reflexão – campanhas de sensibilização a diferentes níveis: publicitária, debate radiofónico e televisivo, através de teatros, porta à porta, trabalho de base dentro da família, criar hábitos de diálogo, participação conjunta dos cônjuges nas diversões (bai tambur djuntu25); • Incentivar o posicionamento de Igrejas e Mesquitas relativamente à condenação da violência doméstica nos seus espaços de culto; • Criar mecanismos que facilitem a difusão da lei sobre a violência doméstica e o cumprimento efetivo da mesma. Mutilação genital feminina A diminuição do fenómeno de mutilação genital feminina (MGV), requer entre outras a implementação das subsequentes propostas: • Escolarização dos atores, sobretudo mulheres, e alfabetização de adultos, uma vez que as pessoas que passam por estes processos parecem ter a consciência da gravidade dessa prática, logo menor probabilidade de deixarem que as suas filhas sejam submetidas a essa prática; • Promoção da sensibilização sobre os malefícios desta prática na saúde da vítima; • Desconstrução dos fundamentos que legitimam essa prática baseada na interpretação errada do Alcorão, que a considera a forma de purificação da mulher; • Difusão de Decreto-Lei contra a MGV e criação mecanismos para a sua efetiva aplicação. Poligamia As seguintes propostas foram delineadas para diminuir os casos da poligamia: • Introduzir nos conteúdos programáticos e currículos escolares a temática da poligamia e as suas consequências; • Alfabetizar os adultos para que possam ter consciência sobre as consequências que esta forma de casamento pode gerar na vida de um indivíduo; • Sensibilizar sobre a interpretação real dos princípios consagrados no Alco25 É uma ocasião de entretenimento público para atores, mas em muitos casos, por exemplo, em Fulacunda, tem suscitado frequentemente violência entre os casais por causa de ciúmes.

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rão sobre essa prática. • Promover a monogamia ou incentivar a oficialização dos casamentos nos espaços de djumbai26 e efetuar a sensibilização nas rádios, através das palestras ou considju27 e televisão, por forma evitar a poligamia; Hardança (Levirato) A minimização desta prática requer a implementação das seguintes estratégias: • Escolarização dos atores, uma vez que uma mulher e um homem escolarizados têm mais consciência das consequências que advêm dessa prática; • Sensibilização sobre as consequências do levirato na saúde dos atores. Por exemplo, as infeções sexualmente transmissíveis; • Empoderamento das mulheres, permitindo-lhes ser autónomas e lutar pelo seu património e pela guarda dos seus filhos. Gerantocracia28 Para diminuir esta prática que consiste num homem velho casar-se com uma rapariga muito mais nova, as seguintes estratégias foram propostas: • Promover a escolarização das raparigas para poderem aceder a empregos bem remunerados; • Promover a autonomia das mulheres, na medida em que os casamentos gerantocráticos são consumados, na maior parte das vezes, como estratégia de sobrevivência da rapariga e dos seus familiares. • A sensibilização sobre os males que esta prática pode causar na vida da vítima. O desconforto e o efeito da rejeição psicológica estão quase sempre presentes neste género de relações conjugais, nas quais a amplitude da idade dos cônjuges é demasiado elevada.

Fator económico O facto de as mulheres não poderem ser titulares de terras, apesar de algumas 26 É uma ocasião em que diferentes atores interagem na reflexão sobre uma ou várias temáticas. 27 Significa conselho. 28 Em Pitche esta prática representa um problema para essa comunidade, por registar casos em que as raparigas são retiradas do sistema do ensino muito cedo para se casarem com homens muito mais velhos que elas, sobretudo aqueles que têm alguma posse financeira.

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mudanças progressivas, é um dos aspetos que contribui para agravar a desigualdade de género na Guiné-Bissau. Devido ao nível de instrução geralmente menos elevado que o dos homens, por causa do fator cultural, torna-se difícil aceder a empregos qualificados que as poderia tornar autónomas. Registam-se igualmente situações em que, mesmo com o nível de instrução igual ao dos homens, raras vezes ascendem a cargos de responsabilidade e em alguns casos recebem salários mais baixos que os homens. A situação das mulheres agrava-se ainda mais nos locais de trabalho, pelo facto de serem as principais vítimas de assédio sexual. Aceso à posse da terra Para o acesso da mulher à terra é necessária a implementação das seguintes estratégias: • Promover campanhas de sensibilização e de reinterpretação dos costumes, de forma a permitir que a mulher tenha acesso à terra tanto da família de origem como na família do marido; • Incentivar o casamento oficial por forma a evitar as incongruências que o casamento tradicional geralmente gera em torno dos bens do casal, em caso do falecimento do marido. Herança Para minimizar os efeitos da herança na desigualdade de género, as seguintes propostas foram identificadas: • Consciencializar os atores sobre mecanismos legais que permitem a partilha prévia de bens (testamento); • Envolver líderes religiosos e comunitários para mediação em caso de problemas; • Promover a monogamia para evitar possíveis conflitos que possam surgir entre co-esposas e respetivos filhos. Acesso ao emprego Para alargar o acesso ao emprego, as seguintes propostas de soluções foram realçadas: • Escolarização ou alfabetização por causa das razões já mencionadas nos pontos anteriores; • Formação técnica de modo a proporcionar a autonomização das mulheres; • Criação do sistema de quotas reguladas. Isto é, facilitar o enquadramento das mulheres em caso de apresentarem as mesmas condições que os ho94


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mens, por forma a corrigir os desequilíbrios gerados pelo fator cultural; • Criação de incentivos fiscais às empresas que enquadrem jovens raparigas para melhorar os seus estatutos sociais. Assédio sexual em todos os setores de atividade produtiva Para minimizar os efeitos desta prática, as estratégias propostas são: • Sensibilização para consciencializar atores com vista a denunciar casos de assédio; • Adopção e disseminação da lei sobre assédio sexual; • Criação de uma linha verde de denúncias. Não valorização das atividades informais exercidas pelas mulheres Para valorizar as atividades exercidas por mulheres é necessário: • Escolarizar as raparigas para poderem organizar melhor as suas atividades económicas; • Incentivar ou sensibilizar no sentido de proporcionar a formalização das atividades económicas desenvolvidas pelas mulheres; • Incentivar o empreendedorismo (cooperativismo, etc.); • Assegurar o acesso ao microcrédito para desenvolverem os seus negócios. Desigualdade salarial A promoção da igualdade salarial requer: • Sensibilização para o respeito pelo princípio de trabalho igual – salário igual; • Penalização de entidades ou empresas que efetuam discriminação salarial baseada em género; • Incentivar a formalização da contratação laboral para todas as categorias socioprofissionais a fim de poderem assegurar os seus direitos sociais.

Fator religioso Algumas crenças e/ou práticas religiosas são responsáveis por uma parte não negligenciável das desigualdades de género observadas na Guiné-Bissau. Assim, a existência de locais de culto vedados à presença feminina entre os animistas, a consideração do homem como o único que pode ser cabeça do casal entre os cristãos, a excisão feminina entre os muçulmanos – são apenas alguns aspetos 95


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que concorrem par perpetuar a desigualdade de género. Obrigatoriedade da mulher se submeter ao homem/marido Para minimizar a submissão da mulher ao marido, as propostas vão no sentido de: • Escolarizar as raparigas; • Autonomizar as mulheres; • Sensibilizar visando desmistificar a representação simbólica do dote; • Promover a cultura de diálogo entre casais; • Desencorajar a prática da divisão de tarefas baseadas em género. Obrigatoriedade da mulher/filho seguir a religião do marido/pai e adotar o apelido do mesmo A minimização desta prática requer: • Sensibilização sobre o casamento inter-religioso e a necessidade de dar liberdade ao filho de adotar a religião de um dos progenitores; • Incentivo ao casamento civil. Ausência da liderança feminina Para fomentar a liderança feminina é necessário: • Incentivar a escolarização e a formação superior das raparigas; • Criar um programa especial de apoio às lideranças femininas por forma a despertar o interesse das mulheres para os cargos de liderança; • Reenquadrar/contextualizar as interpretações dos livros sagrados (Bíblia e Alcorão) e sua difusão através de sensibilização (nas rádios, conferências, palestras, etc.).

Fator político No país regista-se insuficiência de instituições de promoção da igualdade de género, ineficácia das que existem e escassez de instrumentos criados para o efeito. Há uma necessidade de criar um quadro jurídico que regule especificamente as figuras de assédio sexual e de pedofilia na Guiné-Bissau. Assim, elaboraram-se as seguintes estratégias – abaixo listadas – que visam diminuir as desigualdades de género, que decorram dos problemas identificados na dimensão política.

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Insuficiência de instituições de promoção de igualdade de género Para combater a desigualdade de género é necessário: • Descentralizar as estruturas públicas de promoção de igualdade de género para todas regiões administrativas do país; • Reforçar o orçamento do Ministério da Mulher; • Despolitizar o Instituto da Mulher e Criança (IMC) promovendo um concurso público para os quadros dirigentes desta instituição, a fim de evitar interrupções de projetos em curso, devido a mudanças constantes dos seus titulares causada por instabilidade política. Ineficácia de instituições e instrumentos de promoção da igualdade de género A promoção de eficácia das instituições requer: • Redinamização do Ministério da Mulher, Família e Coesão Social e do IMC; • Implementação efetiva da Declaração de Canchungo, que consagra uma quota de 40% da presença feminina no Parlamento; • Criação do sistema de quotas reguladas nas instituições públicas, que exige uma preparação prévia da mulher para poder estar em condições de exercer os vários cargos. Insuficiência de infraestruturas escolares em todas as localidades Neste âmbito as estratégias seguintes são necessárias: • Criação em todos os setores administrativos de níveis do ensino até o 12º ano; • Criar centros de formação técnico-profissional em todos os setores administrativos. Ausência de quadro jurídico específico sobre o assédio sexual e pedofilia As propostas de soluções a levar cabo neste âmbito são: • Adoção de uma lei sobre o assédio sexual e pedofilia, uma vez que essas duas carecem de um quadro jurídico específico, apesar de estarem reguladas indiretamente, através de interpretação subsidiária ou extensiva de outras figuras no Código Penal. • Capacitação dos agentes da polícia sobre a problemática da igualdade de género, para os permitir analisar os comportamentos e atitudes com base 97


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no direito positivo, não com base nos valores resultantes da socialização de cariz patriarcal. • Criação de linha verde para a denúncia de casos.

Operacionalização das estratégias propostas A operacionalização das estratégias elaboradas para responder aos problemas derivados dos fatores culturais, religiosos, económicos e políticos que geram a desigualdade de género, requer intervenção sincronizada de diferentes instituições, como evidência o mapa em baixo: O Estado debruçar-se-ia sobre a elaboração de políticas, financiamento e implementação de estratégias, enquanto a sociedade civil29 ocupar-se-ia de materializar estratégias, tais como sensibilização. O setor privado, pela sua lógica de lucro e por ser dominado por homens, ocupar-se-ia de desenvolver ações que permitam empreendedorismo feminino, que culminaria na autonomia das mulheres. O grupo de influência, por sua vez, preocupar-se-ia em garantir a receção efetiva das estratégias elaboradas para mitigar a desigualdade de género na comunidade. Figura 5. Mapa de operacionalização de estratégias Níveis de Intervenção Estado

Sociedade Civil

Igualdade de Género

Setor Privado

Grupo de Influência

Fonte: autora

29 A Sociedade Civil, dada a sua heterogeneidade, para poder efetuar sensibilização em perfeitas condições deve também ser alvo de sensibilização de modo a proporcionar a mudança de mentalidade dos seus atores.

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Observatório para a Igualdade de Género O observatório terá atribuições de acompanhar a execução de estratégias que visam alcançar a igualdade de género. Essa instituição será composta por três brigadas, como apresentado na figura 6: a primeira debruçar-se-á sobre as questões de sensibilização das comunidades em relação a estratégias a implementar; a segunda sobre advocacy, que se ocupará de políticas, de estratégias de luta contra grupos de interesse que bloqueiam a implementação dessas políticas e ainda angariação de fundos para financiar ações que promovam a desigualdade de género; a terceira, sobre o empoderamento económico30, que preconiza a autonomização da mulher. O observatório será constituído também por um grupo de intervenção social, que servirá de vanguarda para questões culturais e religiosas. Figura 6. Estrutura do Observatório Brigada de Empoderamento Social

Brigada de Advocacy

Observatório de Igualdade de Género

Brigada de Empoderamento Económico

Brigada de Sensibilização

Fonte: autora

30 O empoderamento da mulher deve ser efetuado de forma equilibrada, ou seja, deve ser articulado com outras dimensões da sua vida para não criar efeitos perversos.

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Conclusão Os resultados da reflexão mostram que a temática da desigualdade de género é melindrosa, por ser difícil identificar os fatores que a geram, por estes terem sustentáculo em consensos de diversas comunidades do país. Essa situação faz com que seja igualmente difícil propor soluções, uma vez que este exercício pode gerar novos problemas por esses fatores estarem intrinsecamente ligados entre si. Contudo, conclui-se que a desigualdade de género na Guiné-Bissau é causada por fatores culturais, religiosos, económicos e políticos, que geram problemas que assumem diversas manifestações, como demonstrado no mapa de propostas de soluções. Os referidos problemas são nomeadamente casamento precoce e/ ou forçado, mutilação genital feminina, violência doméstica, hardança (levirato), poligamia, gerantocracia, acesso à posse de terra, acesso a emprego, salário desigual, assédio sexual, obrigatoriedade da mulher em se submeter ao marido, obrigatoriedade da mulher e filho em seguir a religião do marido/pai e adotar o seu apelido, insuficiência e ineficácia de instituições de promoção de igualdade de género e falta de quadro jurídico que regule as figuras de assédio sexual e pedofilia. As propostas de soluções para mitigar os problemas atrás mencionados passam primeiramente pela criação de um grupo de reflexão com os líderes comunitários para que possam interiorizar que algumas das práticas socioculturais partilhadas nas suas comunidades representam problemas e geram desigualdade de género. Esta estratégia é fundamental para que outras a implementar possam também produzir efeitos, para poder amenizar o contexto que é adverso à igualdade de género. O acesso e permanência de mulheres no sistema de ensino é umas das estratégias transversais por representar soluções a vários níveis de problemas, pois a escolarização permite ao indivíduo tornar-se autónomo em todas as dimensões da sua vida. Os efeitos são ainda maiores se forem acompanhados pela introdução dos conteúdos programáticos nos currículos escolares que se debrucem sobre práticas que provocam desigualdade de género. A sensibilização é também identificada como uma resposta a quase todos os problemas identificados por proporcionar a tomada de consciência dos atores e 100


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refletir na mudança de atitudes e comportamentos dos mesmos, tal como escolarização. Alargar as instituições públicas de promoção da igualdade de género a todas as regiões administrativas do país, dinamizar as que existem e criar um sistema de quotas regulado de modo a permitir o enquadramento das mulheres em todas as instituições do país. É central a existência de um quadro jurídico específico que regule assédio e pedofilia no Código Penal é igualmente necessário. Desmistificar a representação simbólica do dote e promover a interpretação contextualizada dos livros sagrados (Bíblia e Alcorão) fazem parte das estratégias também fundamentais para mitigar a desigualdade de género no país. As estratégias elaboradas e a sua operacionalização requerem a intervenção e colaboração de diversas instituições. Implica ainda a implementação de um observatório para monitorar a aplicação dessas estratégias.

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Referências bibliográficas EMBALÓ, A. (2017), “Desigualdade de Género na Guiné-Bissau” in Governação Integra na Guiné-Bissau: Olhares Sobre os Problemas sociais complexos na Guiné-Bissau, pp.57-71, IPAV, Lisboa MANÉ, F. (2004), “A mulher e a criança no sistema jurídico guineense”, in Soronda, Nova série 8, pp. 29-51, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP), Bissau. MANÉ, F. (2006) Instrumentos Jurídicos sobre a Protecção da Violência, Bissau: RENLUV. MANÉ, F.; ROQUE, S. (2010), Um retrato da violência contra as mulheres na Guiné-Bissau, Instituto da Mulher e Criança – IMC, Bissau. MENDES, P. (2010) Análise da dimensão género no plano estratégico nacional de luta contra SIDA, UNICEF/SNLS. MENDES, P.; MANÉ, F. (2016), Avaliação do projeto “Para a promoção de um ambiente jurídico, institucional e sociocomunitário protector dos direitos das mulheres e raparigas nas regiões de Gabú, Bafatá, Oio e Bolama Bijagós, UNICEF. MENDES, P.; BALDÉ, F. (2014), Relatório sobre Aplicação/implementação da Declaração e do plano ação de Beijing na Guiné-Bissau, UNICEF/MFMCS. MENDES, P.; MANÉ, F. (2013), Estudo sobre a violência baseada no género no meio universitário na Guiné-Bissau, CODESRIA, Dakar. NASSUM, Musna et al (2007), Relatório de Estudo sobre a Violência Doméstica na Guiné-Bissau, Bissau: RENLUV. Relatório de Inquérito sobre Indicadores Múltiplos na Guiné-Bissau (MICS) (2010), Instituto Nacional de Estatística, Ministério de Economia e Finanças. Relatório de Inquérito sobre Indicadores Múltiplos na Guiné-Bissau (MICS) (2014), Instituto Nacional de Estatística, Ministério de Economia e Finanças. 102


Propostas de Soluções para os Problemas Sociais Complexos

ROQUE, S. et al (2009), Mulheres e violências. Combater as violências: propostas para a Guiné-Bissau, Lisboa: IMVF; VIEGAS, C. et al (2010) Subsídios para a Elaboração de Política Nacional da Igualdade e Equidade de Género na Guiné-Bissau, Instituto da Mulher e Criança – – IMC, Bissau.

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A Reconciliação e o desenvolvimento precisam dos homens e das mulheres Teresa Fragoso Presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género - CIG


Governação Integrada na Guiné-Bissau

No contexto da realização da Conferência Internacional sobre Governação Integrada, na Guiné-Bissau, tive oportunidade de participar como oradora convidada, mas também de conhecer melhor a realidade sobre a qual o projeto de Governação Integrada incidiu. Como sempre, nestes processos, a maior aprendizagem que retiro advém da partilha de experiências dos vários intervenientes, e é um pouco sobre essa aprendizagem e partilha que aqui me vou debruçar. Já antes da realização da Conferência, e enquanto Presidente da CIG – Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, pude conhecer um pouco do que neste âmbito se estava a desenvolver, ao ter acolhido nas nossas instalações, em Lisboa, o Presidente do IPAV, Rui Marques, acompanhado de um grupo de jovens guineenses envolvidos no projeto, os quais apresentaram alguns dos principais resultados alcançados numa das 4 áreas temáticas do projeto – Desigualdades de Género. De destacar a importância do envolvimento de atores de vários setores da sociedade, desde logo representantes de organizações da sociedade civil, estudantes e docentes universitários, representantes da administração pública, entre outros, envolvimento fundamental em processos de desenvolvimento e de procura de soluções para problemas complexos. Em Portugal, a CIG tem vindo a participar no Fórum para a Governação Integrada, no Grupo de Trabalho que tem como enfoque o Combate à Violência Doméstica, coordenado pela Prof. Dália Costa do CIEG-ISCSP31, que também esteve presente nesta visita. Durante a reunião pude igualmente partilhar com o grupo um pouco sobre aquela que é a missão da CIG e o trabalho que tem vindo a desenvolver ao longo dos seus 40 anos de existência, bem como aquela que tem sido a mais-valia da participação no Fórum da Governação Integrada em Portugal. Já em Bissau, a visita permitiu-nos vários momentos de imersão e aprofundamento do conhecimento sobre o trabalho desenvolvido, bem como a possibilidade de partilha de experiências. O primeiro momento implicou a visita ao bairro de Cuntum Madina, onde estava a decorrer a experiência piloto de Governação Integrada. Era domingo de manhã e fomos bem acolhidos, entre sol e sorrisos. Mas não pude deixar de observar, numa perspetiva das desigualdades de género, que enquanto no bairro os rapazes jogavam à bola, as raparigas carregavam bilhas de água para dentro das casas onde as aguardavam tarefas domésticas várias. 31 CIEG-ISCSP: Centro Interdisciplinar de Estudos de Género - Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.

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Propostas de Soluções para os Problemas Sociais Complexos

Figura 7. Rapazes a jogarem futebol

Fonte: autora

Figura 8. Raparigas a carregarem água para as tarefas domésticas

Fonte: autora

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Governação Integrada na Guiné-Bissau

No bairro as estradas são de terra batida, não há transportes públicos facilmente acessíveis ou com horários regulares, e as ruas têm pouca iluminação noturna. Nas noites de inverno, no regresso a casa vindos das escolas ou do trabalho, as ruas enlameadas são uma dificuldade acrescida para a vida desta população. Mas, no que à desigualdade de género diz respeito, sabemos que ruas mal iluminadas e falta de transportes públicos regulares e seguros são, claramente, fatores de risco acrescido de violência sobre muitas destas meninas, raparigas e mulheres, nas suas deslocações diárias. Num segundo momento tive oportunidade de participar nos workshops sobre “Reconciliação Nacional” e “Desigualdades de Género”, no qual eu e demais colegas do painel de comentadores e comentadoras tivemos oportunidade de, a partir das apresentações sobre estes 2 temas, feitas por alunas e alunos universitários, lançar para reflexão conjunta algumas perspetivas que permitissem alargar o âmbito de análise das questões apresentadas pelos grupos. E aqui pude observar que no painel de comentadores para o tema da “Reconciliação Nacional” apenas constavam homens, situação comum quando as matérias a tratar se prendem mais com intervenção no espaço público e menos no espaço doméstico. Já no painel de comentadores sobre Desigualdade de Género, a maioria eram mulheres. Nesse sentido foi particularmente interessante que as apresentações destes dois grupos fossem feitas numa mesma sala, permitindo trazer à discussão sobre o tema da “Reconciliação Nacional” a perspetiva da desigualdade de género e vice-versa, promovendo o que há muito se preconiza, o mainstreaming de género32. É sabido que os seres humanos tendem a criar categorias como forma de ajudar a compreender o mundo em que vivemos, e muitas vezes fazemo-lo de forma dicotómica e estanque. No entanto, tais categorias são muitas vezes limitadoras da realidade e, consequentemente, das escolhas das pessoas, mulheres e homens, que a habitam. Assim, ao longo dos tempos, a vida em sociedade tem-se organizado entre a esfera pública e a esfera privada, atribuindo-se a ocupação maioritária da primeira aos homens e a ocupação maioritária da segunda às mulheres. No conceito de esfera pública incluímos o exercício da maior parte das profissões, bem como a participação cívica e política, enquanto no conceito de esfera privada incluímos as tarefas domésticas e do cuidado. Ambas as esferas têm enorme importância para o desenvolvimento social e humano das pessoas e das 32 Ou transversalização da perspetiva de género. É um conceito de política pública que consiste em avaliar as diferentes implicações de qualquer ação [política] sobre as mulheres e os homens, incluindo na legislação e programas em todas as áreas e a todos os níveis.

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Propostas de Soluções para os Problemas Sociais Complexos

sociedades, no entanto, tem-se valorizado mais a esfera pública, desde logo pelo reconhecimento social e remuneratório auferido pelas atividades aí desenvolvidas, desvalorizando-se as atividades que têm lugar na esfera privada, as quais têm baixo reconhecimento social e pouco ou nenhum valor remuneratório atribuído. Por inerência, tem se valorizado mais o papel social dos homens, que intervêm maioritariamente na esfera pública, desvalorizando-se o papel social das mulheres, cuja intervenção se faz essencialmente na esfera do privado. Mas esta separação “espaço público – espaço privado” é artificial e as vivências e comportamentos nestes dois espaços de socialização entrelaçam-se, esbatendo quaisquer fronteiras. Por exemplo, a higiene, a saúde, a nutrição, a educação, acontecem em grande parte em contexto doméstico recaindo sobre as mulheres uma grande fatia dessa responsabilidade, a qual tem um enorme impacto ao nível da comunidade. No entanto, quando se definem medidas públicas para a saúde, nutrição ou educação, raramente é dado espaço de participação às mulheres, elas não são ouvidas ou as suas opiniões são desvalorizadas. É por isso crucial reconhecer que, independentemente da sua idade, da sua atividade profissional ou do seu nível de formação, as experiências das mulheres são válidas, os seus saberes são imprescindíveis e o seu conhecimento sobre as suas necessidades específicas devem ser tidos em conta para a boa tomada de decisão, quer no plano social, quer no plano político. Não haverá um verdadeiro processo de reconciliação nacional, promotor da paz e do desenvolvimento, se metade da população de um país é mantida à margem do mesmo. Por outro lado, a reconciliação nacional não se faz apenas no espaço público, é fundamental que ela aconteça também na esfera do privado, no seio das famílias onde, em grande parte, as pessoas adquirem a sua formação e valores de base. É fundamental repensar estes valores que têm permitido a perpetuação de situações de violência sistemática sobre as mulheres, quer nas suas relações de intimidade, em contexto familiar e doméstico, quer no espaço público. Estes valores, assentes em conceitos dicotómicos discriminatórios que atribuem à mulher um valor social e humano inferior ao do homem, tem-nas colocado num papel de subalternidade e submissão. As mulheres são, assim, vistas como “propriedade” de outrem, usualmente do pai ou do marido, que delas dispõe – das suas vidas, dos seus corpos – incluindo infligir-lhes violência física como forma de afirmação de uma dominação. 109


Governação Integrada na Guiné-Bissau

Uma das reflexões que retive da apresentação do grupo de alunos e alunas que abordaram o tema da “Reconciliação Nacional” foi, precisamente, a necessidade de, para se promover um processo deste tipo, ter de haver a consciência de que há um ofensor/agressor e um ofendido/agredido, para que se possam dar passos para reparar a situação. Nesse sentido, é fundamental que todas e todos tenham consciência de que o conflito entre agressores e agredidos não existe apenas no espaço público. Todos os dias metade da população é alvo de violência pelo simples facto de ter nascido mulher – violência que acontece no espaço público mas que acontece maioritariamente no seio das famílias, no espaço doméstico, em contexto de relações de intimidade. Assim, volto a sublinhar, não pode haver um verdadeiro processo de Reconciliação Nacional para o desenvolvimento e uma paz duradoura, sem que as mulheres sejam ouvidas no debate público e envolvidas no processo de reconstrução. Da mesma forma, deverá ser publicamente reconhecida e repudiada a violência de que estas são alvo em contexto doméstico, designadamente através da lei, bem como através de um novo entendimento daqueles que são comportamentos socialmente aceites e/ou condenados. Só uma sociedade em que mulheres e homens vivam livres de violência, quer no espaço público, quer no espaço privado, pode verdadeiramente almejar o desenvolvimento e a paz duradoura. Isto traz-me ao terceiro momento, o da Conferência Internacional sobre Governação Integrada na Guiné-Bissau, onde vários oradores e oradoras, oriundos de diferentes países da CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, com experiência profissional, política ou académica num dos 4 temas do projeto – – Bairros Críticos, Desemprego Jovem, Reconciliação Nacional, Desigualdade de Género – puderam partilhar e por em comum algumas das suas reflexões sobre os temas. Assim, e em jeito de conclusão, gostaria de referir as três principais notas que quis sublinhar na minha intervenção nesta conferência: A primeira, e bebendo do conceito de mainstreaming de género, é de que em qualquer um dos temas abordados as soluções possíveis para estes problemas complexos são pensadas, desenhadas e implementadas por pessoas, e os beneficiários das mesmas são também pessoas. Ora as pessoas não são entidades neutras, mas antes mulheres e homens, sobre as quais incidem estereótipos de género 110


Propostas de Soluções para os Problemas Sociais Complexos

discriminatórios com as respetivas expetativas normativas sobre qual o papel social que umas e outros deverão desempenhar, os quais têm por base relações de género desigualitárias, mas cujas consequências para aquelas e aqueles que os transgridem são normalmente a exclusão. Deveremos, por isso, ao pensar cada uma destas áreas de intervenção, começar sempre por compreender a situação de partida das mulheres e dos homens, pensando soluções à medida das suas necessidades específicas, para alcançar resultados que nivelem a situação de mulheres e homens, contrariando assim o perpetuar das desigualdades existentes. Em todas estas soluções possíveis há uma estratégia de base que é incontornável e que passa por promover uma educação que desconstrua os estereótipos de género que estão na génese das relações de poder desiguais entre mulheres e homens na sociedade. A segunda, a de dar a conhecer compromissos e instrumentos internacionais que, por um lado, vinculam os Estados que com eles se comprometem mas que, por outro lado, também legitimam e apoiam a atuação, quer dos Estados, quer dos diversos agentes relevantes na sociedade. Destaco por isso, e tendo em conta os temas da Conferência, a Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas nº1325 sobre Mulheres, Paz e Segurança33 a qual reafirma, entre outros: • A importância do papel das mulheres na prevenção e resolução de conflitos, negociações de paz, construção da paz, manutenção da paz, resposta humanitária e na reconstrução pós-conflito, e enfatiza a importância da sua participação e participação plena em todos os esforços para a manutenção e promoção da paz e da segurança; • A necessidade de aumentar a participação das mulheres e incorporar a perspetiva de género em todos os esforços de paz e segurança das Nações Unidas; • A necessidade de serem tomadas medidas especiais para proteger as mulheres e as raparigas da violência de género, em particular a violação e outras formas de abuso sexual, em situações de conflito armado. A terceira e nota final, a de que os países, e neste caso a Guiné-Bissau, não estão isolados. Integram muitas vezes comunidades formais e informais, no contexto das quais podem partilhar aprendizagens e boas práticas que ajudam na promoção do desenvolvimento mútuo. Um bom exemplo disso é o facto da Guiné33 https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N00/720/18/PDF/N0072018.pdf?OpenElement

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Governação Integrada na Guiné-Bissau

-Bissau pertencer à Comunidade dos Países de Língua portuguesa - CPLP, a qual tem permitido um trabalho conjunto, também ao nível das políticas de promoção da Igualdade de Género, através da aprovação, por parte dos seus representantes governamentais com responsabilidades políticas nesta área, de um Plano Estratégico e respetivos Planos de Ação, cujos documentos e relatórios de execução podem ser consultados no site oficial da CPLP34. Termino agradecendo a oportunidade deste contacto próximo com a realidade da Guiné-Bissau, esperando que as minhas reflexões possam ser mais um contributo para este trabalho contínuo de procura de soluções para problemas complexos, através de um modelo de Governação Integrada que promova e valorize a participação igualitária de mulheres e de homens para a construção de um mundo melhor. Lisboa, 28 de janeiro de 2018

34 https://www.cplp.org/Default.aspx?ID=3830

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