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O barco continuou a andar (Ana Ramos

Ana Ramos

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O barco continuou a andar

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Felizmente, a minha história é repleta de apoio, oportunidades, segurança e abundância. Uma história em que, desde o início, o porto foi tão seguro que permitiu que a curiosidade me guiasse porta fora para conhecer o mundo, com uma noção muito forte de que eu podia “fazer coisas” para resolver o que quer que me aparecesse pela frente. As oportunidades e as pessoas que têm feito parte da minha vida permitiram que crescesse, construindo uma imagem de mim própria muito forte e sólida. Assinalo algumas referências e marcos da minha infância: Passei os primeiros anos da minha infância com a avó Fina – uma mulher inspiradora. Dizia que, se tivesse estudado, teria sido engenheira! E era tão mais em tudo o que fazia. Fomos tudo o que podíamos ser entre o quintal e a feira. “O meu coração de ouro” - era como me apresentava aos vizinhos. Tenho duas irmãs. Os melhores presentes que os meus pais me ofereceram. Quando nasceram lembro-me muito bem que ouvir: “Ana, agora és a irmã mais velha! Contamos contigo para cuidar das tuas manas! É uma grande responsabilidade” – que assumi de peito inchado de orgulho pela confiança. Frequentei um Infantário no Cerco do Porto (onde a minha mãe trabalhava) e visitei diariamente o Centro de Paralisia Cerebral do Porto. Desde sempre a ser educada entre diferentes, e cedo percebendo que somos tão iguais. Aqui conheci a Lili, uma menina com paralisia cerebral. Era a minha melhor amiga. Éramos inseparáveis! Mais tarde, na Escola Primária, a minha colega de carteira era a Ângela: Uma menina bastante tímida, muito pobre e com muitas dificuldades de aprendizagem. O meu pai conta que pedi todo o material escolar a dobrar… Eu tinha combinado com ela que o material seria seu, se ela fizesse comigo os trabalhos de casa no recreio. Aceitou, felizmente! E tivemos sucesso juntas até mudarmos de escola. Tudo isto aconteceu, enquanto lidava mais ou menos alegremente com problemas de crescimento, com um problema de pele que sempre me acompanhou e - adivinhem só! - ainda tive um dentista que me tirou o dente da frente cedo de mais e andei até aos 14 anos com um belo sistema de ventilação. Umas belas facadas na auto-imagem!

Apesar desta ultima aventura, todas estas experiências fazem com que a minha imagem perante os outros seja muito consistente. Se lhes perguntassem quem é a Ana, certamente teriam respostas como: Fazer acontecer. Disponível. Altruísta, Crítica, Enérgica, Entusiasta. Sei que sempre fui uma pessoa voltada para fora, muito atenta aos outros e às suas necessidades. Considero isso uma benção. Chega a ser viciante estar disponível para os outros e ajudar, resolver… Para mim, um simples sorriso chega para me carregar as baterias! É-me muito dificil não fazer nada para melhorar um bocadinho o dia-a-dia de alguém se souber que está ao meu alcance. Sempre focada no controlo, na ação... em fazer coisas para corrigir o mundo! Como se só me sentisse bem ao facilitar a vida dos outros. Em 2011, ainda eu não sabia, começava um ciclo de perdas… Em 2011 deu-se o fim de um relacionamento de 8 anos que acabou comigo a ouvir um “Tu já não vales a pena!”. Este momento teve um impacto muito forte em mim. Para além da desilusão, trouxe-me a desconfiança. E um questionamento duro acerca do meu valor. Meses mais tarde, deu-se a morte do Avô Ramos, seguida da morte da Avó Fina, duas grandes referências. Estas perdas, apesar de eu saber que foram fins de ciclo esperados, normais e tranquilos, fizeram-me sentir mais sozinha, menos protegida. E ver o impacto que tiveram na minha família nuclear, fezme sentir que tinha que os proteger e dar motivos de alegria e orgulho. Em 2016, soubemos que o meu pai estava gravemente doente (situação com a qual ainda se confronta e que o acompanhará o resto da vida), e em 2018 iniciou-se um longo processo de diagnóstico, desta feita, relativo à minha mãe... Cada uma destas notícias a acentuar todos os medos... E a tornar mais nítida uma sensação de incumprimento da minha parte. Como se eu, que ajudo toda a gente, nada pudesse fazer para salvar os meus. Como podem imaginar, cada um destes acontecimentos ativava em mim o acelerador da ação. Eu tinha que, pelo menos, tentar corrigir a diferença entre o que estava a acontecer e o que eu e cada uma das pessoas envolvidas merecíamos. E bem que eu tentei materializar este meu esforço de diferentes formas. Durante estes mesmos anos: Estive cerca de 2 anos e meio em Angola, num projeto comunitário que fiz acontecer praticamente sozinha. Lancei um livro. Consegui comprar a sonhada casinha à beira-mar.

Mas, devo confessar, estas pancadas foram fragilizando a minha força... e fizeram-me questionar tudo. Desde então, dou por mim muitas vezes a dizer que não tenho fé. Em Junho de 2018, eu própria fui diagnosticada com cancro na mama. Fui operada para tirar o tumor, fui novamente operada para tirar os ganglios, fiz seis ciclos de quimioterapia, radioterapia, braquiterapia e esperam-me, aproximadamente, 10 anos de hormonoterapia. Como tirei os gânglios, há um risco grande do meu braço esquerdo inchar e trazer complicações (chama-se linfedema). Muitos profissionais de saúde, ao longo deste processo, quero crer que com a melhor das intenções, semearam muitos medos em mim…

“Não pode nunca mais fazer exercício físico!” “Livre-se de ser picada por um mosquito!” “Não vai poder viver sozinha!” “Todas as mulheres que passaram por isto que eu conheço foram abandonadas pelos maridos...” “Não pode nunca mais ir à praia.” “Não pode fazer viagens de avião.“ “Não vai poder ser mãe!” “Esqueça lá os seus voluntariados.”

Quando perguntei “Nunca mais?“, ainda me responderam “Não lhe vão crescer os gânglios, pois não?“. A Ana quebrou de medo. Com tantas limitações, estavam a roubar-me quase tudo que eu gostava e valorizava da vida. Perguntava-me: “Porquê passar por todo o sofrimento dos tratamentos se a meta era chegar a uma vida vazia?“. Fui absolutamente tomada pelo medo, pela frustração. Sentia que não merecia. E, pela primeira vez na vida, não tinha força nem vontade de corrigir a situação. E... sem solução, não sabia mais quem era. Vi-me obrigada a largar as rédeas por falta de força. Já não me sentia capaz de ajudar, de resolver, de fazer nada para ME corrigir... Desenvolvi até uma certa repulsa pelo meu corpo, que me estava a impedir de fazer o tanto que eu achava que ainda tinha para fazer. Não me revia nesta nova Ana. Dentro de mim, desisti.

E quando eu abandonei o controlo e tirei as mãos do leme, surpreendi-me ao ver que o barco continuou a andar. Eu posso não saber para onde ainda, mas ele continua a andar… Há algo de mágico em largar as rédeas, em aceitar que não controlamos e que podemos só “ ser “, que o mundo continua a girar sem termos de o empurrar. Fui salva pela amizade e pelo amor das pessoas à minha volta. A Academia de Líderes Ubuntu, para além da família que me deu, veio trazer-me nome para isto, para a aceitação, para esta espécie de fé no universo e nas pessoas... UBUNTU: Eu sou, porque vocês todos são, comigo. E temos em nós uma fonte infinita de vontade e contributo que não para de jorrar, mesmo que desaceleremos um pouco. Talvez jorre mais, principalmente quando desaceleramos um pouco. Perguntam-me muitas vezes se senti que o cancro me transformou. E, depois de muito ter pensado, respondo que não. Não sou uma Ana diferente. Aliás, convivo exatamente com os mesmos medos. Só ganhei consciência de que não controlo nada, de que estar triste e ter medo faz parte e sei que tenho que cuidar de mim para poder continuar a cuidar dos outros... Diria até que está tudo igual... é só que, com esta nova consciência, sinto tudo diferente. Já passou um ano desde o fim dos tratamentos. Um ano expectavelmente lento – se não parado! Mas a vida, surpreendeu-me, como sempre faz e pude dizer que não a alguns prometidos “nunca mais“. Faço exercício físico regular. Continuo a não gostar de mosquitos, mas convivo bem com eles. Continuo a viver sozinha. Vou à praia. Viajo (mesmo que viagens de curta duração) de avião... e por terra, e por mar. Envolvo-me com a mesma alma em projetos que me fazem sentido. Renovo a certeza de que viver é maravilhoso. E, com e para os outros, ainda melhor.

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