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Quem sou eu? (Salomé Abreu
Salomé Abreu
Quem sou eu?
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Uma semente deitada à terra no frio do inverno, brotou no fim do verão. Decidira nascer menina. Crescera no ventre quente da sua mãe, onde se alimentou de todas as suas emoções. E, quando germinou, veio iluminar a sua grande família, pois era a primeira filha, a primeira neta, a primeira sobrinha. Mas esta menina não sabia o quão difícil ia ser crescer para se tornar mulher. Enquanto germinava no escuro, alimentou-se das emoções mais coloridas e criativas, também se alimentou de emoções que não sabia onde a iriam levar e que eram escuras e frias. Ao descobrir um mundo iluminado, a plantinha cresceu, feliz, alimentada de amor e carinho. Mas à sua volta o amor e o carinho às vezes escasseavam. Estava aprisionado no meio de medos e palavras escondidas. Gestos escondidos. Olhares que não se cruzam. Afinal, estas eram as suas raízes, a sua génese. Deles se alimentou e formou. Crescendo e descobrindo-se, identificando os seus vazios, os seus desejos, as suas paixões, revelou-se uma ausência, profunda, intensa, a descoberto. Como uma ferida aberta, que se quer esconder do mundo. “Não sou capaz! Não mereço! Não consigo! Não sei quem sou! Quem sou eu? Quem sou eu?” Era um desassossego constante. Uma dúvida intermitente, que oscilava entre a descontração e a solidão. “Quem sou eu?” Hoje sei quem sou. Tenho medos, tenho vazios, tenho ausências. Mas encontrei-me. Falo com a minha própria voz, através da minha consciência, da minha reflexão, do meu sentir. Valorizo o que sinto e deixo que o coração dite o caminho. Mas hoje, até chegar aqui, aconteceu uma imensidão de experiências. Muitas lágrimas, muitas frustrações, muitas desilusões. A balança equilibrou-se. Hoje as memórias têm mais sorrisos, mais energia construtiva, mais beleza. Cresci criança, com os vazios e medos a ocuparem o pensamento. Quando chegou a adolescência, depois de muitos anos fechada dentro de mim, a minha planta queria desabrochar, mostrar-se. Na sua essência sabia quem era, mas não sabia expressar-se, não sabia chegar ao outro. Também não conseguia compreender o outro, as suas incoerências (e claro, nem conseguia ver as próprias).
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Atirava as pedras que tivesse na mão, em forma de julgamento e querendo mudar o outro. A adolescência foi marcada por este desabrochar bruto, agressivo, revoltado, zangado. Queria libertar o mundo inteiro das injustiças, sem compreender que a primeira a ser injusta era eu. Queria libertar o mundo da violência, mas a primeira a ser violenta era eu. Mas também queria ser amada, quando ainda não sabia amar-me. Atravessei desertos em que mendigava amor e recebia violência, possessão, controlo. Foi este o padrão das minhas relações íntimas até há pouco tempo. Não me amava, não me respeitava. E atraí os meus professores, esses homens que me foram ensinando, passo a passo, com muita dor, sofrimento, desilusão, paixão, o quão importante era amar-me incondicionalmente. Mas até lá, caí muitas vezes. Muitas mesmo. Literalmente. Durante estes anos da adolescência, entre charros, álcool, violência, discussões familiares constantes, inimizades, cresci. Cresci muito, na verdade. Vi o mundo através de realidades completamente diferentes daquelas que eu conhecia. Em que havia ausência de quase tudo – às vezes de casa, de comida, de condições de saneamento básico, mas principalmente do essencial: amor, afeto, respeito. Comecei a trabalhar assim que pude e conheci o mundo do trabalho precário. Do desrespeito pelo trabalhador e da desvalorização da mulher, em muitos casos. Do quanto nos escravizamos para obter o nosso sustento e das horas que damos e que não podemos recuperar. Cruzei-me com tantas histórias, tantas pessoas, tantas profundidades. E cresci. Intensamente. Sempre adorei histórias. Adoro escutar, no tom único de cada voz, as experiências de vida. Caminhos únicos. Escrevo-os, entre poesias e prosas de catarse. Aprendi também a ver a beleza em todas as coisas. Mesmo quando sofro, quando fico zangada ou frustrada. Atravessei desertos em que mendiguei amor, afeto, respeito. Hoje sou mãe. O meu maior professor nasceu de dentro do meu ventre e trouxe a sabedoria à minha consciência e aí obriguei-me a transformar-me. Ser mãe! Que enorme responsabilidade trazer um ser ao mundo e educá-lo. Eu, que sempre quis transformar o mundo, ia fazê-lo agora, dando vida a um
ser humano, a uma alma. E as perguntas começaram a surgir: Como poderia ensinar o respeito ao meu filho se eu não me respeito? Como poderia ensiná-lo a amar-se se eu não me amasse? Como poderia ensiná-lo sobre o valor da mulher se eu não me valorizasse enquanto mulher? E neste processo de tomada de consciência, de respostas naturais às minhas perguntas, separei-me do pai do meu filho. Também ela uma relação de dependência, de desrespeito, de violência psicológica, de possessão. De ambas as partes. É sempre de ambas as partes. Aquele que agride e o que permite ser agredido. E eu queria libertar-me. Não foi um caminho fácil. Não é um caminho fácil. Mas é o caminho que o meu coração pede. Ser mãe, sozinha, encarar a maternidade pela primeira vez em simultâneo com uma separação conflituosa, crescer brutalmente em tão pouco tempo, viver a desilusão de não ter a família sonhada, de retornar a casa da mãe, não ter independência financeira, foi doloroso. Mas foi necessário. Sem dúvida, tem sido um caminho maravilhoso. Com todas as lágrimas, dores, sofrimentos, desespero, dúvidas, mas muito, muito amor. Quis abraçar este caminho nos primeiros anos do meu filho de forma intensa e próxima. Fiquei com ele a tempo inteiro até aos dois anos, graças à generosidade do meu pai e da minha mãe que me apoiaram financeira e emocionalmente em todo este processo. Sou muito grata por isso. Têm sido incansáveis embora haja momentos em que eu não consigo ver essa entrega. Descobri o poder que é ligar-nos a outro ser, que nasce de dentro de nós e que cresce do nosso peito e amamentei até ao meu limite de cansaço. Sou uma amante da Natureza, dos nossos instintos, da necessidade do apego para mais tarde podermos voar em segurança. Luto todos os dias por conseguir um trabalho onde a minha maneira de viver a maternidade seja respeitada e possa viver uma vida digna, sem depender da minha família, mas não é fácil. Nada fácil. Comecei a conhecer a realidade das mães e, principalmente das mães que estão sozinhas, sem apoio. Luto todos os dias por um maior respeito pelo ser humano e pela sua humanidade, a começar em mim. Luto todos os dias por um maior respeito pela Mãe Natureza, tão generosa e abundante, e que nós não conseguimos respeitar e amar. Pelo excesso que pro-
duzimos, que desperdiçamos, alimento, água, floresta, animais, lixo. É urgente despertarmos! Luto, todos os dias, por conseguir aprender, em mim, o sentido de comunidade que perdemos neste progresso, em tantas coisas desumano, e que eu sinto tanta falta como mãe, mulher e ser humano. Não acredito em acasos. Nenhum de nós está aqui por acaso. Lutem, também, com o Amor na palma das mãos, pelo que acreditam profundamente. Desejo-vos um extraordinário caminho! Grata à vida!
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