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Ombros de gigantes (Tânia Martins

Tânia Martins

Ombros de gigantes

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Hoje vou contar uma história. Uma história como tantas outras, mas que me toca de forma única, por ser minha! Uma história que fala, acima de tudo, de Amor! De várias histórias e tipos de Amor! A minha primeira memória remonta aos 4 anos! A um dia frio, muito frio! Nesse dia, a tremer de frio misturado com medo, vi a minha mãe ir para o hospital. Passei algum tempo sem a ver por estar num serviço em que a minha entrada não era permitida. Quando o sol espreitou entre as nuvens e a pude ir visitar, fiz o meu pai voltar atrás, à porta do hospital, porque não tínhamos um ramo de flores para lhe dar. Sem ter consciência na altura, este percalço tornou-nos ainda mais família! Fez-nos perceber a fragilidade de sermos e mostrou-nos que devemos agradecer e gozar a presença de quem gostamos, em cada momento. Aos 5 anos queria muito aprender a ler para contar histórias à Ivone, uma vizinha com paralisia cerebral. Enquanto não o soube, inventava histórias que partilhava com ela. Quando aprendi a ler, um dos meus passatempos preferidos passava por me sentar junto à sua cama ou aos pés do seu carro, a partilhar com ela as aventuras das personagens. Sem que nenhuma das duas percebesse, na altura, a Ivone ensinou-me a respeitar e lidar com a diferença. Mostrou-me que podemos ser criativos na forma como nos comunicamos. Durante a sua vida, nunca deixou de sorrir quando ouvia a minha voz, mesmo quando as histórias e as minhas visitas não eram diárias. Tive a infância feliz de quem cresce numa aldeia. Sinto, hoje, que faz a diferença ter uma aldeia nesta história. Sendo filha única, sempre estive rodeada de primos e amigos e sempre vivi em comunidade. Na adolescência, a anorexia bateu-me à porta. Eu escancarei-a para que entrasse e, só na maior idade, lhe bati com a porta na cara. São inúmeras e inevitáveis as marcas que deixa. São algumas as feridas que deixa abertas e que, em muitos dias, ainda ardem. O confronto com o espelho é, muitas vezes, doloroso. Mas enfrenta-se de frente! Porque se aprende, no decurso da doença, que a vida e a saúde são dois bens preciosos, pelos quais devemos lutar, com todas as forças que temos. Aprendemos, de repente, a mentir, a manipular! Magoamos quem mais ama-

mos. Sem intenção, é bem certo, mas magoamos! Passamos a ser visita frequente do serviço de psiquiatria! Somos olhadas de lado pela sociedade, pela aldeia, e lidamos com a incompreensão de quem nos diz muito! Não é por mal, mas não é fácil de entender! O confronto connosco próprias é tão grande, tão intenso, que se torna quase impossível viver num corpo que não queremos! Os pêlos crescem em novas zonas, quando o organismo nos tenta proteger! Durante anos fui escrava do meu próprio corpo, em busca de um perfeccionismo que não nos merece tanta dor! Há dias em que ainda sou! Ninguém passa incólume à anorexia. Não é, apenas, uma doença da moda ou uma mania! Aparece de repente, teima quando queremos que desapareça e deixa rastilho! O caminho é longo e duro. Exige paciência e amor...muito amor! E nisso, os meus pais foram a melhor cura! Há uma vida antes e depois de... como acontece em quase todas as patologias! Mas é possível! Eu sei! Eu sou testemunha viva (com mais vida ainda!) disso! Renasci com e pela certeza que tinha um papel a desempenhar na sociedade! Na faculdade vivi o associativismo de uma forma dinâmica. Passei por estruturas como a Associação de Estudantes e a Federação Académica do Porto. Aprendi muito fora das salas de aula, liderei e fui liderada, tive que gerir conflitos e tive o privilégio de contactar com várias dimensões da vida, da sociedade e da política. Assumi como minhas as causas que defendi em muitas instâncias! Aprendi a lidar com diferentes tipos de público e conheci a sensação de concretizar sonhos! De ver no terreno ideias que nasceram na cabeça de equipas que me ensinaram a acreditar, lutar e fazer acontecer. Iniciei a minha carreira profissional num centro de acolhimento temporário, onde confirmei o amor à psicologia e aprendi a lidar com realidades tão diferentes daquela com que tinha crescido, de forma isenta e sem julgamentos. Aprendi e pus em prática o poder da empatia, aspeto que a cada dia, procuro melhorar! Novo percalço na saúde da minha mãe mostrou-me a sua garra e vontade de viver e a incondicionalidade do amor do meu pai que, de forma natural e desde sempre, foi a minha referência e o meu modelo de serviço ao outro. O amor e generosidade dos vizinhos da Capela, aldeia onde nasci e cresci, e de onde me afastei durante o secundário e a universidade, fizeram com que sentisse necessidade de lhes retribuir o bem que nos fizeram, a mim e ao meu pai,

nesta fase conturbada em que as nuvens cobriram o sol, na fragilidade de um coração que teimava em batalhar, acredito que, pelo amor que de si emanava e que sabia que tinha ainda muito que trabalhar. A minha forma de retribuir foi assumir a liderança de uma associação de jovens, em conjunto com uma equipa fantástica. Juntos criámos redes e reavivámos o brilho de uma instituição que se encontrava apagada! Quatro anos depois, e com o sentimento de missão cumprida para com a minha aldeia, segui o amor que, entretanto, tinha encontrado. Há bem pouco tempo, a anorexia voltou a espreitar e tentar entrar na minha porta. Mas a atenção e intervenção de um amor atento, ajudou-me a dar-lhe com a porta na cara, sem sequer a ter aberto. O mundo já desabou em mim. Salvaram-me o amor dos meus e os meus sonhos. O caminho na Academia foi essencial para sistematizar o que há tanto tempo já tinha percebido: os sonhos e o amor estão intimamente relacionados. Para mim pelo menos. Tem sido, o amor que me alimenta e impele a seguir os sonhos. Há quem diga que o pior dos medos é ter medo do medo. Ainda tenho um trabalho árduo a fazer no campo dos medos. Tenho muitos medos e muitas vezes. Acho que nunca deixei de fazer nada por medo, mas apenas porque, quando precisei daquele empurrão, estava lá alguém para mo dar: “Se vi mais longe, foi por estar nos ombros de gigantes”1. Tenho muito a agradecer porque sempre escolhi e fui escolhida pelas melhores, mais interessantes e mais bonitas pessoas do mundo. Começou pelos meus pais, que hoje sei reconhecer que tiveram que adiar ou deixar passar muitos sonhos para que eu pudesse sonhar e voar. Passou e passa por cada amigo, por cada colega de trabalho, por cada pessoa com quem me cruzo em projetos e atividades. Assume o seu expoente máximo na pessoa que escolhi para partilhar a vida, que me dá asas e raízes. Revolto-me muitas vezes. Comigo, com o sistema, com a sociedade em geral. Sofro de inquietude. Mas rapidamente me apazigua a consciência de que está nas nossas mãos agir. É da responsabilidade de cada um ser a mudança. Conheço tantas pessoas que são mudança, tenho o privilégio de chamar de amigas a tantas delas, que só posso ter esperança num amanhã melhor e num futuro sorridente. A Academia foi um terreno muito fértil neste campo, quer enquan-

1 Frase de Isaac Newton

to participante, quer enquanto animadora. Permitiu-me reconhecer e assumir medos, encontrar formas de os encarar. Ajudou-me a partilhar momentos, até aqui, escondidos. Ajudou-me a sistematizar e assumir que, sou quem sou, pela mochila que carrego. Apresentou-me pessoas tão bonitas e inspiradoras! A vivência da Academia enquanto animadora foi vivida em paralelo com uma nova aventura, um novo caminho: o da maternidade! (Re)descobri-me na gravidez! Gerar uma vida fez-me ir ao interior de mim! Fez-me apaziguar e ver uma beleza em todas as coisas, como nunca antes havia experimentado! Fez-me amar cada transformação que aconteceu no meu corpo! Sei que ter feito uma edição da Academia durante este tempo me ajudou a encontrar a paz que precisava para viver esta aventura, que é, sem dúvida, a mais bonita e mais desafiante de todas as que até hoje vivi! Abrandei o ritmo para dar lugar a reflexões internas e à espiritualidade! Aprendi que o cuidar de um filho, começa no momento em que se descobre que há dois corações a bater dentro de nós. Fui mãe em tempos de pandemia, de medos e incertezas, o que me dá o privilégio e a responsabilidade de ter trazido esperança e vida a um mundo que parecia estar do avesso, que se apresentava mais verde e menos poluído e, ao mesmo tempo, mais cinzento do que nunca, pelas notícias que nos surgem, de todos os cantos do planeta! Na bolha de amor que vivemos em tempos de quarentena, o Eduardo não se apercebe do que está a acontecer, mas um dia vou explicar-lhe a importância de um abraço, de um beijo, de estar com quem gostamos e com quem gosta de nós! Vou explicar-lhe que o amor se exprime de várias formas e que, apesar de não ter tido beijos nem abraços, a não ser dos pais, quando nasceu, foram várias as nossas pessoas que nos enviaram amor, amizade e carinho! Vou explicar-lhe o respeito pelo outro, pela natureza, a universalidade da fragilidade! Vou convidá-lo a conhecer o mundo e explicar-lhe que cabe a cada um de nós a luta contra as injustiças e desigualdades! Vou explicar-lhe que somos abençoados por viver num país livre e em paz! Vou explicar-lhe que, independentemente das viagens que façamos, “estamos todos no mesmo barco”! Vou apresentar-lhe a ética do cuidar e o serviço, como a Academia me ensinou (e ensina) a fazer: através do exemplo! Terei sempre a responsabilidade de continuar a crescer: só assim o poderei inspirar! Hoje, mais do que nunca, quero ser, a cada dia mais e melhor. E sei que só o serei no e com o outro. A Academia ensinou-me a dar um nome a isto: chama-se Ubuntu. Com a Academia descobri que, no vasto campo lexical que o di-

cionário nos oferece, a minha palavra preferida é gratidão. Sou grata a cada um que se cruzou no meu caminho, a cada experiência, que me ensinou que o sol está sempre lá, mesmo quando as nuvens teimam em tapá-lo, mesmo quando a chuva nos dificulta a visão. Só temos que procurar e seguir a luz. Hoje sou grata por, além de ser a Tânia Filha, a Tânia Esposa, a Tânia Amiga, a Tânia Mãe ser a Tânia Ubuntu e por poder partilhar a minha história e todas estas facetas que me fazem ser a Tânia Mulher que, da sua aldeia, percebeu, desde cedo, e como diz o poeta, que é do tamanho do que vê, e não do tamanho da sua altura!

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