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Sei o teu valor (Rosália Coelho
Rosália Coelho
Sei o teu valor
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Tudo começou no dia 1 de junho de 1980, o dia em que ganhei o Euromilhões! O meu nascimento foi repleto de dificuldades. Nasci com os pés para o mundo – escolhi entendê-lo como um presságio que a vida esperava coisas bonitas de mim. A minha mãe foi uma verdadeira guerreira: lutou por mim e pela minha vida. Tive uma infância feliz. Criei muitos brinquedos e desenvolvi a minha criatividade através da capacidade de me focar na solução: construía casas, barquinhos, carros com latas e, no jogo “faz de conta”, podia ser e fazer o que quisesse. Sou a mais nova de quatro irmãos. Nasci numa família numerosa que me transmitiu valores como termos de cuidar uns dos outros, respeito, responsabilidade, compromisso, solidariedade e honestidade. Uma família que tinha uma avó como matriarca com um instinto muito cuidador dos seus. Foi com esta base segura que comecei a construir o meu projeto de vida. A escola foi o meu segundo lugar seguro, uma segunda família. Lembro-me de um momento magnífico que teve lugar no jardim de infância: escrever o meu nome com plasticina! Foi a primeira vez que senti: “Eu consigo! Eu sou capaz!”. Recordo-me de um outro momento à lareira, de estar sentada num banquinho de madeira. No colo da minha mãe aprendia a juntar as sílabas, a ler, a escrever; a aceder ao código secreto de gente grande com a consciência de quanto isso me poderia possibilitar um mundo novo. No meu segundo ano, a minha professora Maria João ensinou-me uma lição: “eu sou responsável pelos meus comportamentos e não devo desculpar as minhas escolhas erradas e as minhas asneiras com os comportamentos dos outros”. Integrei este superpoder, o autocontrolo, de mãos dadas com a responsabilidade, a par da noção de que as minhas decisões só dependem de mim. Aos 12 anos, após terminar o 6.º ano de escolaridade na Telescola de Peroselo, a minha terra, eu tinha dois caminhos: ou ia trabalhar ou ia estudar. Tive que tomar uma grande decisão, mas eu tinha uma certeza muito clara: não queria ir para a fábrica de confeções! A minha irmã mais velha, que sempre viu em mim uma Joana D’Arque (e chamava-me assim!) acreditava nas minhas capacidades, numa altura em que eu não acreditava muito. Muito inspirada por ela, senti-me encorajada a escolher estudar.
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Sabia que as dificuldades económicas eram muitas, então trabalhei ao fim-de-semana para suportar esta minha decisão. Comecei, assim, a construir este grande sonho de ir para a Universidade porque sentia que seria uma via que me ia ajudar a ter novas experiências, a conhecer novos mundos e a dar um propósito à minha vida. Não sabia que curso seguir ou o queria fazer, apenas sabia o que não queria e fazia-me tanto sentido o poema “Cântico Negro” de José Régio:
“Vem por aqui - dizem-me alguns com os olhos doces. Estendendo-me os braços, e seguros de que seria bom que eu os ouvisse. (...) Não, não vou por aí! Só vou por onde me levam meus próprios passos... (...) Não sei para onde vou, sei que não vou por aí”1 .
No 7.º ano, na Escola Básica 2,3 do Pinheiro, a minha professora de Educação Moral dirigiu-me uma pergunta espetacular e inquietante: “O que queres ser quando fores grande?”. Como se algum dia eu fosse ser grande em altura! Do alto dos meus 1,56 metros, eu respondi-lhe: “Quero ser como o Vítor Baía!”. Efetivamente, para além de prosseguir estudos, eu tinha o futebol como segundo projeto de vida. Sempre gostei de ver e de jogar futebol, mesmo que isso me tenha custado muitos comentários desagradáveis como “és uma maria-rapaz!” que, felizmente, chutei para canto e foquei-me em aprimorar a minha técnica! E com isto aprendi uma outra lição: “só me chateia quem eu deixo”. Aos 13 anos, concretizei este sonho e comecei a jogar no Futebol Clube de Peroselo. Percebia que tudo é impossível, até acontecer! Joguei em mais 10 clubes e arrumei as sapatilhas aos 35 anos com uma carreira desportiva da qual me orgulho muitíssimo. Houve um momento em que o meu sonho enquanto futebolista esteve ameaçado devido a um problema na coluna. A médica só me disse: “se continuas a jogar podes deixar de te mexer” e percebi que tinha que parar. Felizmente, quando controlado o problema na coluna, regressei em 2011 para defender as cores auri-negras. O futsal devolvia-me novamente a esperança e a possibilidade de concretização de um sonho. Eu era guarda-redes, mas sempre sonhei marcar um golo... e consegui!
1 Cântico Negro, José Régio
No dia 31 de dezembro de 1997, estava no 12.º ano – já muito perto de entrar na Universidade – e o meu pai morreu nos meus braços. Foi um sentimento de impotência muito grande, uma dor que não se descreve, uma revolta que desagua no desespero. Zanguei-me com Deus. Como era possível estar a fazer-me aquilo? Foi muito difícil estar com a cabeça nas aulas, os resultados pioraram significativamente. No final do segundo período, na autoavaliação da disciplina de matemática, referi que achava que merecia um nove. A minha professora olhou nos meus olhos e disse: “eu sei o teu valor e vais manter a nota”. Percebi naquele instante mágico o que queria fazer com a minha vida: colocar sol onde existia noite, esperança onde existia desalento, amor onde existia dor. Queria fazer o que a minha professora fez comigo: reconciliar-me com a vida, acreditar nas minhas capacidades, dando-me um voto de confiança e alento ao meu sonho. Cheguei a Coimbra, em 1998, muito fragilizada. Com o meu coração triste, pesado e em tempestade. Como dar sentido à dor? Como continuar a construir sonhos? O caminho foi apostar no associativismo juvenil. Inspirada pelo meu primo Óscar e pela Dr.ª Paula - que viram em mim capacidade para tal – assumi a liderança da Radical Associação de Peroselo. Liderei a associação durante dez anos e um dos meus desgostos foi não ter conseguido garantir a sua continuidade após a minha saída. No meu diálogo com a dor, existiram perguntas transformadoras. Um dia, já após a morte do meu pai, comentava com a minha madrinha de curso – a Marta – que estava preocupada pelo facto da minha mãe não me telefonar. Ela perguntou: “E porque não ligas tu?”. Pois, era assim tão óbvio. Fez-me ver que podia ser eu a fazer o caminho em direção à minha mãe e as mil e uma formas de demonstrar amor que a minha mãe tinha para comigo que não passavam por telefonar-me. Uma outra questão marcante chegou-me pela voz da Professora Madalena. Quando concluí o meu genograma, partilhei a minha angústia por não me lembrar quando tinha sido a última vez que tinha dito ao meu pai que o amava. A pergunta dela – “de que outras formas lhe mostraste o teu amor?” – fez-me viajar automaticamente para um momento em que eu lhe estava a ler um artigo meu que tinha saído no Jornal de Notícias sobre o futebol feminino e em que o meu pai me disse que eu ia “conseguir chegar à seleção nacional”.
Mas antes de chegar à seleção nacional, terminei o meu curso. Quando soube da última nota estava a trabalhar como monitora na colónia de férias da Torreira e todos me diziam: “isto está tão mau! vais para o desemprego”. Sorri e disse: “deixem-me gozar a condição de recém-licenciada. Deixem-me saborear o meu sonho”. Saí da Torreira em setembro e passado três dias estava selecionada para um estágio profissional na Escola de Aguada de Cima. Já a trabalhar, comecei a pensar que, se calhar, devia deixar o futebol e tornar-me uma “pessoa séria!”. Só tinha a mágoa de não ter representado Portugal como o Vítor Baía e como o meu pai tinha sonhado. No dia seguinte a ter dito isto a uma colega, recebi uma mensagem: “Parabéns, foste convocada para a seleção!”. O caminho dos sonhos é, de facto, acreditar e nunca desistir. E foi com um orgulho imenso que fiz a minha primeira internacionalização e que ouvi o hino nacional no dia 24 de abril de 2004, quando vencemos a final contra a Espanha. Mais tarde, fui confrontada com mais um desafio. A voz dos meus alunos criou curiosidade na Cristina: queria conhecer a psicóloga de quem os alunos falavam tanto. Conhecemo-nos e ela desafiou-me a abraçar com ela, com a Ana e com o Marco a missão da Associação Psientífica. Também foi pelas mãos da Cristina que conheci o livro “Inteligência Emocional”, de Daniel Goleman, que foi a minha inspiração (e da Catarina) para construir a Atividade de Enriquecimento Curricular– Emoção em Ação (dinamizada em Águeda para cerca de 500 crianças do 1º ciclo desde 2016). Em 2010, a morte da Cristina foi mais uma curva muito apertada no meu caminho. Perdemo-la, mas a sua mensagem e o seu legado ficarão vivos para sempre. Aliás, o trabalho que desenvolvemos juntas, para além de estar a dar frutos, já foi reconhecido. Em 2019, o frio na barriga marcou o momento em que recebemos o Prémio BPI Infância, no Centro Cultural de Belém. O meu coração transbordou de gratidão pelo profissionalismo e dedicação da minha equipa que todos os dias coloca Emoção em Ação. E sei que a Cristina, seja onde for, está orgulhosa de nós! Como podem verificar. Adoro o que faço e a minha carreira não poderia desenvolver-se em melhor contexto: a escola! A escola a que eu devo tanto, a escola que me mostrou a importância de olhar nos olhos cada aluno, uma escola que promove a esperança. Este é o meu desafio todos os dias: uma psicologia de
rosto humano que, antes de confrontar cada criança e família com as dificuldades, os reconcilia com a suas histórias, compreende as suas potencialidades, faz renascer os sonhos e promove a colaboração. Um dos meus últimos desafios foi participar na Academia de Líderes Ubuntu, um “namoro” já antigo que rapidamente passou para um “casamento” que me trouxe autoconhecimento, autoconfiança, resiliência; aprofundou a minha empatia e a minha vontade de continuar um caminho de liderança servidora. Neste “casamento”, a ética do cuidado é base segura para os desafios do dia seguinte. Esta experiência reforçou a minha consciência de que sou autora da minha história e que tenho um propósito de vida: fazer diferente, fazendo a diferença. Continuarei a ser contadora de histórias. Sei que todas as histórias que partilho com as crianças e jovens com quem trabalho começam com “Hoje é um dia feliz porque estou na escola a aprender” e terminam com “Tu és mais forte e sei que no fim vais vencer”2! A Academia permitiu-me ainda fechar um ciclo de gratidão com a minha presença na Conferência Vidas Ubuntu que teve lugar na Fundação Calouste Gulbenkian. Ao partilhar a minha história, pude agradecer in loco o investimento que esta fundação fez na minha educação, pois fui bolseira no ensino secundário e universidade. Eternamente grata. Foi um bom investimento. Eu sou porque tu és e por isso #HojeÉUmDiaFeliz!
2 Música “Tu és mais forte”, do Boss AC