25 anos sem dormir Por João Magueijo
PÚBLICO celebra hoje 25 anos de vida nas bancas; há poucos meses cumpria eu as minhas bodas de prata de emigrado em Inglaterra. Tirando esta tangencial coincidência, há muito pouco em comum entre mim e este jornal. Achei pois surpreendente terem-me escolhido — um mero cientista — para fazer de senhor director por um dia, especialmente havendo pelo burgo tanta gente muito mais habilitada do que eu para cagar postas de pescada. O email de convite prometia ainda “completa liberdade” para fazer o que me desse na real gana com o jornal. Um sorriso maroto deve ter-me aparecido no rosto. Suponho que se quisesse dar à ciência mais “protagonismo” (para usar um vocábulo à Luís Figo) num país com mais orgulho, e com razão, nas suas proezas futebolísticas e tauromáquicas. Um país também onde a ciência continua a ser o parente pobre da produção intelectual, recheada de ilustres músicos e escritores, poetas e malucos vários. Só que a ciência que eu faço e amo não são telemóveis nem foguetões — é poesia. E depois tenho um segredo vergonhoso: antes de ser cientista, tive pretensões jornalísticas, num sentido muitíssimo lato do termo. Ao pedirem-me um editorial acerca das minhas relações com a imprensa senti pois um certo déjà vu. Recordo aqui a minha adolescência lusitana e um certo pasquim de bênção Louçânica, onde escrevinhávamos uns quantos sobre coisas como a legalização do aborto (quando isso ainda era monopólio de esquerdelhos), num estilo cheio de parvoíces e bacoradas. Mas esses desbragamentos foram sol de pouca dura e em breve caí no buraco negro que é fazer ciência. O universo dá-me uma enorme trabalheira, é uma estopada, não deixa grande tempo para fazer outras coisas. Não admira que tanta gente deixe os mesteres cósmicos para a religião, Deus que se amanhe enquanto nós mortais nos dedicamos à comunicação social. No início dos anos 1990 mudei-me para Inglaterra, com uma jura a pés juntos de que mulheres
portuguesas nunca mais. Enquanto por lá, perdi completamente o respeito pela imprensa. A grande maioria dos media ingleses é uma desgraça, e isto vai muito para lá dos infames tablóides. A receita é simples: aferir o que deixa o bife tradicional indignado e seguro da sua superioridade, inventar histórias que sirvam o ângulo, procurar factos que as assistam, inventá-los se não os há, suprimi-los se as contradizem... e pronto, vendas asseguradas, e tudo com infinitas pretensões de objectividade mediática. A generalização é injusta, claro está, aliás como em tudo, também no jornalismo os britânicos têm o pior e o melhor. Mas a única coisa que hoje leio com regularidade por terras de Sua Majestade é o Private Eye, uma espécie de Charlie Hebdo mas muito melhor, mistura de humor cáustico e jornalismo de investigação do mais fino. Que haver assunto há: corrupção é o que não falta em Inglaterra. Corrupção perfeitamente legalizada, entenda-se, não é como em Portugal ou Itália, povos muitíssimo inferiores à Europa Nazi-de-Espírito-do-Norte. Quis entretanto o acaso trazer-me de regresso à pena, desta vez em fainas de divulgação científica. Entre coisas menos laudatórias, chamaram a um dos meus livros uma “biografia gonzo”, de outro disse-se que era onde “Medo e Delírio em Las Vegas se cruza com Uma Breve História do Tempo”. Eu nem sabia o que queria dizer o termo “gonzo” ou que tinha a ver com jornalismo, já disse que para cagar de alto erudição o PÚBLICO podia ter escolhido melhor. Foi um amigo de Roma, adepto de cocaína e alucinogénios, que me corrigiu o défice cultural, obrigando-me a ler uma catrefada de livros de Hunter S. Thompson e Acosta, alguns em tradução italiana. Fiquei deslumbrado com aquilo. E se em vez de os jornalistas fingirem que são objectivos, coisa que nem a ciência é, exibissem os seus preconceitos na montra, polvilhados com drogas duras? E se os jornais ingleses dissessem abertamente “somos uma cambada de porcos xenófobos que andam alegremente a inventar histórias”? Não mereceriam finalmente uma pitada de respeito? O jornalismo gonzo certamente que me surgiu como um antídoto a muita hipocrisia. Por isso quando me convidaram para ser director por um dia do PÚBLICO foi isso que me ocorreu: fazer uma edição “gonzo” do jornal. Afinal tinham-me prometido a mais completa liberdade no aliciante email de convite. Por um dia. Mas é claro que isso da “liberdade completa” é coisa que não existe. Nem em utopias nos despimos de constrangimentos. Seria porventura razoável exigir à redacção do PÚBLICO que passasse um dia a tripar com LSD e a escrever sobre a situação económica da Grécia em textos onde deveriam misturar relatos da própria vida sexual? Talvez sim, talvez não. Afinal é uma festa de anos. Há uma fina linha entre ser-se uma figura decorativa e um tirano. Um jornal bem-sucedido é um trabalho de grupo, onde o colectivo é mais importante do que qualquer ronáldico ponta-delança. A redacção do PÚBLICO fugiu com as minhas sugestões e fez com elas o que quis. Que festejem bem. Que continuem assim até às bodas de ouro.
Editorial
TEM PO DE TU DO
Quanto tempo é que o tempo tem? O tempo – e tudo o que existe – tem 13.800 milhões de anos. É a idade do próprio Universo, o tempo desde o Big Bang, a grande “explosão” criadora de tudo. Estes 13.800 milhões de anos resultam dos cálculos mais recentes baseados em observações do telescópio espacial Planck, que afinou a idade do Universo com um nível de pormenor que permitiu atribuir-lhe mais 100 milhões de anos do que antes. Para nos situarmos, o nosso sistema solar, incluindo a Terra, formou-se há 5000 milhões de anos, tinha então o Universo já 9000 milhões de anos de existência. E, depois, a Terra ainda teria um longo caminho pela frente até ao dia, há uns meros seis milhões de anos, em que surgiram os primeiros hominídeos. Começamos esta edição de aniversário olhando para o tempo a grande escala. É o tempo do espaço, é o tempo do tempo, é o tempo de tudo.
C Por João Magueijo
elebra-se o centenário da teoria da relatividade geral, neste ano denominado “da luz”, mas oculta-se do pudor público o lado negro dessa bonita arte mágica. A relatividade geral pode ter dado femininas curvas ao espaço e ao tempo, atribuindo-lhes maleabilidade e vida própria, mas o que raramente se diz é que essa nobre ciência também retirou ao tempo o seu predicado mais óbvio: o fluir. Ao embrulhar na mesma trouxa o espaço e o tempo, negando-lhes natureza independente em favor de um híbrido — o espaço-tempo —, a teoria da relatividade roubou ao tempo o seu brotar. Da mesma forma que o eixo do xis (esse terror que aprendemos na escola) não “flui”, o tempo da relatividade também não escorre. Ao longo de uma linha espacial há ordem — há o equivalente da organização de um presente, passado e futuro —, mas não há nada que se assemelhe a um ponto particular e único que vai escoando ao longo dessa linha, o equivalente do presente. Dando direitos e deveres iguais ao espaço e ao tempo, amalgamando-os num ser único, a relatividade nega igualmente a existência de um presente que flui activamente do passado para o futuro. Ordem, sim. Fluir, não. Esse tempo, meus amigos, morreu. É pois singular que num ano de efemérides e de luz nos procuremos encavalitar na teoria da relatividade, demolidora como ela é do comum tempo. A própria luz — esse andaime absoluto da teoria da relatividade — só pode ter um papel orientador porque está fora do tempo. A luz equilibra-se na fronteira entre o espaço e o tempo, portanto o tempo está paralisado ao longo de um raio de luz. E o pior é que analisando a relatividade geral mais de perto encontramos horrores ainda piores lá escondidos. Até a ordem desse tempo que não flui pode ser destruída pela curvatura espaciotemporal e levada a aberrantes contradições. Maliciosas máquinas do tempo consentem-nos dar um tiro na avozinha antes de a nossa mãe ter nascido. Laçadas espaciotemporais permitem-nos ser pai e mãe de nós próprios, um exagero de minimalismo familiar e incesto. A ordem e a lógica são ameaçadas pela curvatura do espaçotempo. Proteja-se de contradições: evite espaçostempos com um rabo demasiado ondulado. Claro que nesta pasmaceira em que vivemos, longe de buracos negros e Big Bangs, ninguém se deve preocupar indevidamente com tanta patologia. Mas o mal está feito — a nossa metafísica está minada pela dúvida. Como funcionaria um jornal, se o tempo acabasse amanhã? Ou se o tempo começasse a andar para trás mais logo, quando a lua cheia nascesse e a maré mudasse? Ou se fôssemos uma linha já prefigurada e sem fluir, sem edições matutinas e vespertinas? Como seria um jornal, se o tempo fosse mais como o espaço, algo com recantos e cantinhos por explorar? Um cataclismo narrativo, por certo. Ou talvez não. Esta edição o dirá.
Dar tempo ao tempo
AFP
Cem anos a deitar a língua de fora Por João Magueijo
N
ão há verdades eternas, cada santo tem seu dia. Se, por um lado, Einstein nos deitou uma malcriada língua de fora, por outro, espera-se de todos os físicos igual pose fotográfica. Não há teorias finais — há, sim, coisas que vão funcionando até ver, e nem sempre tão bem como se gostaria, se as vamos esmiuçar melhor. O epíteto de “Novo Einstein” (que a imprensa sensacionalista tanto aprecia) aplicado a quem propõe uma teoria que pretende suplantar a teoria da relatividade é claramente ou ridículo ou um pleonasmo. Como cientistas somos todos novos Einsteins e Einsteinas: é uma deformação profissional. Somos pagos deduzidos de impostos para fazer esse papel, não das nove às cinco em horário continuado (porque isso não se ajeita ao perfil profissional), mas de noite e dia, até enquanto estamos a sonhar, eroticamente quem sabe. Ninguém duvida que a teoria da relatividade é uma obra de génio, entenda-se bem, mas a maior prova de respeito que lhe podemos oferecer é precisamente pô-la em causa. O tempo-que-flui tem entrado e saído da ciência, recauchutado ou modificado, ao ritmo das revoluções que vão e vêm. Saliente-se que o tempo que a teoria da relatividade enxovalhou é o tempo fundamental, associado aos processos elementares, às micropartículas puras, limpas de confusões. Não é o tempo sentido pelos sistemas complicados (como nós), que pela sua complexidade exigem outras estruturas, emergentes chamamos-lhes, para as opor a “fundamentais”. Em sistemas com tantas partes elementares que a floresta é mais importante do que as árvores, necessitamos de conceitos como a entropia, esse pesa-balbúrdias tão útil quando é tudo ao molho e fé em Deus. A entropia, como medida da confusão que sempre aumenta, dá-nos um tempo derivado, emergente, que sem dúvida sentimos à flor da pele, mas que sabemos resultar de uma ilusão criada pela multidão, pelo espírito de rebanho do universo. É um tempo que as partículas elementares nunca sentirão; se calhar é por isso que lhes faltam os sentimentos. Não há electrões apaixonados. Mas e se esta teoria da relatividade geral centenária fosse ela própria emergente e nãofundamental? E se a descrição da gravidade como as curvas e contracurvas do espaço-tempo fosse apenas uma média estatística, uma medida aplicada a uma multidão de entidades mais fundamentais, tal como a entropia? Uma das lacunas mais flagrantes da teoria da relatividade geral é a sua incapacidade para namorar com o resto da física. A relatividade geral é um elemento francamente anti-social dentro da confraria das nossas outras teorias. Não fala com a física quântica, esse outro pilar da física do século XX, e segrega a força da gravidade (que venera) das outras forças da natureza: a electricidade, o magnetismo e as forças nucleares. Tanta soberba agasta os físicos e daí as inúmeras tentativas de construir uma teoria de gravidade quântica, combinando a relatividade geral com a teoria quântica, e unificando a gravidade com as outras forças da natureza. A haver namoro entre a relatividade geral e a física quântica, o espaço-tempo deveria não só ser curvo, como existir na forma de “átomos” (no sentido grego do termo, de peças indivisíveis ou “quanta”). Deveria haver incertezas e flutuações quânticas no seu tecido. Pavores quânticos, de todas as formas e feitios, deveriam afligir os fenómenos gravitacionais, tal como afectam os outros: deveria haver gatos de Schrödinger a miarem em buracos negros, Big Bangs virtuais a saltarem do vácuo, ou maradices ainda piores. E obviamente o próprio tempo e o espaço poderiam ficar equiparados a conceitos emergentes, como a entropia, médias que se tornam relevantes simplesmente porque não temos “microscópios” suficientemente finos para sentir a natureza atómica da realidade subjacente.
Mas a verdade é que tudo isto são quimeras. Ao fim de várias décadas em demanda da teoria da gravidade quântica, a realidade é que ela continua a ser uma miragem. Ideias não faltam, mas, sejamos honestos, cordas ou laçadas são todas uma bela porcaria. Não há mal nenhum nisso, desde que a busca seja honesta; censurável é apenas a autoimportância sentida por alguns físicos: há quem insista que estamos no caminho certo, é só uma questão de seguir em frente a fazer contas pela mesma receita durante 200 anos... Que estupidez! Que rigidez de espírito! Será que se acha mesmo que em 200 anos ninguém iria arranjar nada melhor para fazer do que refinar as nossas ideias? É como esperar que o fado daqui a 200 anos seja uma Gisela João de bengalinha. Daqui a 200 anos muito provavelmente nem haverá fado, ou se o houver, sê-lo-á insonhavelmente diferente. Entretanto, e com menos arrogância, a infrutífera busca continua. No reino do faz-deconta em que os físicos vivem tudo é possível. O Big Bang pode ser um mero biombo que tapa um além. As constantes universais podem ser fluidas e variáveis. O espaço-tempo pode ser uma média de algo mais fundamental, polvilhado de quanta, espaço em grão, tempo em colar de pérolas. Tudo é possível. Tudo é possível, tudo pode é estar errado. Fica esta sensação de que andamos a fazer literatura de cordel ao pé do gadelhudo. Não que a relatividade geral não tenha deficiências, mas o que temos feito para as colmatar é bem pior. Ao longo destes 100 anos deitámos-lhe a língua de fora vezes sem conta, e no fim acabámos aos molhadíssimos beijos na boca ao homem.
Ao ver escoar-se a vida humanamente Em suas águas certas, eu hesito, E detenho-me às vezes na torrente Das coisas geniais em que medito. Mário de Sá-Carneiro Não percebo porque se perde tanto tempo a discutir o tempo, que não é nenhuma entidade metafísica, é apenas uma empresa de demolições. António Lobo Antunes
A história do Universo em 13 momentos É o início do Universo, que começa com o Big Bang, uma grande “explosão” que dá origem ao espaço e ao tempo. É o início de tudo o que existe. E que surgiu de uma concentração inimaginável de energia. A física actual é incapaz de descrever as fracções de segundo imediatamente seguintes ao Big Bang, quando o Universo era incrivelmente denso e quente.
Sabemos hoje que o Universo está em expansão. Que nasceu a partir de um momento zero e, desde aí, tem evoluído. A descoberta desta expansão, do final dos anos 1920, baseou-se em observações de que as galáxias se estavam a afastar umas das outras. Na realidade, é o espaço entre as galáxias que está a aumentar e, em consequência disso, as galáxias estão a afastar-se entre si. Imaginemos um balão em cuja superfície, o tecido do espaço-tempo, pintámos vários pontos: à medida que o enchemos de ar, expandindo-o, o espaço entre os pontos vai aumentado. É isso que está a acontecer ao Universo. Escolhemos aqui alguns momentos da sua longa existência ou, por outras palavras, da história de tudo
Teresa Firmino (texto) Cátia Mendonça (infografia)
10-43 segundo
10 -36 segundo
10-32 segundo
10 -4 segundo
380.000 anos
Este tempo é considerado a fronteira a partir da qual a noção de tempo (e o espaço) tem sentido. O tempo não tem provavelmente porções mais pequenas do que esta. Entre o Big Bang e os 10-43 segundo de existência do Universo é a chamada época de Planck, indescritível pelas teorias científicas actuais: a temperatura era tão elevada que as quatro forças fundamentais da natureza (gravidade, electromagnetismo, força nuclear forte e força nuclear fraca) estavam todas juntas numa só força. A partir dos 10-43 segundo, o Universo já se tinha expandido e arrefecido o suficiente – uma “bola de fogo” com uns incríveis 1032 graus Celsius – para que a gravidade se separasse das outras três forças. Criadas, e destruídas ao mesmo tempo, surgem as primeiras partículas e antipartículas elementares, como quarks e electrões ou positrões. A luz já existia como fotões.
É o início do que se pensa ter sido a inflação, um crescimento brutal do Universo, que numa fracção de segundo cresceu enormemente. Esta expansão exponencial permite explicar por que é que o Universo que vemos hoje tem um padrão global homogéneo: há galáxias e espaços vazios, galáxias, espaços vazios... de uma maneira quase uniforme por todo o lado para onde quer que olhemos. Nesta altura do Universo, já um pouco menos quente, também a força nuclear forte pôde separar-se da força nuclear fraca e do electromagnetismo.
A inflação cósmica terá terminado. Acabado um crescimento brutal durante uma fracção de segundo, o Universo volta a expandir-se mais lentamente. A inflação cósmica terá gerado ondas gravitacionais, perturbações no próprio tecido do Universo, o espaço-tempo, que podemos imaginar como uma folha de borracha elástica onde uma pedra que alguém atirasse para lá provocaria oscilações. Até agora, ninguém conseguiu detectar essas ondas. O Universo ficou nesta altura povoado por uma sopa de quarks e gluões, que colam os quarks entre si. Estes constituintes primordiais da matéria vagueiam livremente num estado desordenado (o plasma de quarks e gluões).
Por esta altura, formam-se os protões e os neutrões, os constituintes dos futuros núcleos dos átomos. Com a continuação do arrefecimento do Universo, os quarks, unidos pela força nuclear forte, puderam começar a ligar-se, formando os protões e os neutrões. Cada neutrão e protão tem três quarks. É a altura do chamado confinamento dos quarks. A criação dos protões significa também a criação do núcleo do hidrogénio, que é composto por um único protão.
Formação de átomos leves – hidrogénio, deutério, trítio e hélio. A temperatura do Universo baixa ainda mais – ronda agora os 2700 graus Celsius –, o que permite que os núcleos atómicos e os electrões, até aí separados, se juntem, formando os átomos. Antes disso, os fotões (a luz) chocavam com frequência com os núcleos atómicos e os electrões, o que impedia a luz de viajar. Por essa razão, entre o Big Bang e os 380.000 anos, o Universo é opaco, sendo impossível vêlo directamente. A junção dos electrões à volta do núcleo dos átomos deixa o caminho livre para a passagem dos fotões e o Universo fica transparente à luz. A matéria e a radiação separamse ou, como dizem os físicos, desacoplam-se. A luz desses tempos, a mais antiga que vemos e que se chama radiação cósmica de fundo, banha todo o Universo. Hoje na forma de microondas, permite inferir algo que se passou nos primórdios do Universo. É, pois, uma radiação “fóssil”, um eco do Big Bang.
0,01 segundo
Iniciam-se as fusões de protões e neutrões, que vão depois dar origem aos núcleos de outros átomos.
3 minutos
Criados os núcleos atómicos de deutério (um protão e um neutrão), de trítio (um protão e dois neutrões) e de hélio (dois protões e dois neutrões).
BIG BANG 2700º celsius
-240º celsius
ERA DAS TREVAS −32
10
−4
0,01
3 minutos
ERA OPACA Fonte: PÚBLICO
mil anos
milhões de anos
milhões de anos
milhões de anos
Formados os átomos leves e os fotões podem viajar pelo cosmos
10
Formados núcleos dos átomos leves
−36
Fusões de protões e neutrões
seg.
10
Formação de protões e neutrões
−43
Fim da Inflação cósmica
10
Inflação cósmica
Momento 0
Primeiras estrelas
Primeiras galáxias
O nosso sistema solar e expansão
ERA TRANSPARENTE
550 milhões de anos
Nascem as primeiras estrelas, iluminando o Universo. Este, em média, já arrefeceu bastante e está muito abaixo do zero usual: tem à volta de 240 graus Celsius negativos. Para trás ficou a “era das trevas”, a altura em que o Universo não tinha estrelas. Análises às observações do telescópio espacial Planck, divulgadas em Fevereiro de 2015, revelaram que as primeiras estrelas surgiram cerca de 100 milhões de anos mais tarde do que se supunha, portanto 550 milhões de anos após o Big Bang. As estrelas são essenciais à química da vida: é no seu interior, nas reacções de fusão nuclear, que se formam átomos mais pesados como o carbono ou o ferro. Ao morrerem, há estrelas que atiram para o espaço as suas camadas exteriores, incluindo átomos que fabricaram e que entrarão em novas estrelas e os seus planetas. Nós e a Terra temos pó de estrelas, como o ferro que transporta o oxigénio no nosso sangue.
acelerada do Universo
700 milhões de anos
9000 milhões de anos
10.200 milhões 13.800 milhões de anos de anos
São formadas as primeiras galáxias do Universo – incluindo a nossa Via Láctea, que tem pelo menos 100.000 milhões de estrelas, uma delas o Sol, que fica num dos braços da espiral. No centro da Via Láctea existe um buraco negro monstruoso (como, aliás, em muitas outras galáxias), com quatro milhões de vezes a massa do Sol. A nossa galáxia é tão grande que a luz demora 100 mil anos a atravessá-la de uma ponta à outra.
Forma-se o Sol a partir de uma nuvem de gás e poeiras, composta sobretudo por hidrogénio e hélio, mas com alguma contaminação por elementos pesados criados por gerações de estrelas anteriores. No disco de gás e poeiras que restou da formação do Sol ir-se-ão formar os planetas, incluindo a Terra, há cerca de 4500 milhões de anos, quando o Universo tinha 9300 milhões de anos. É também por essa altura que no Universo em expansão desde o Big Bang se manifesta uma força antigravítica. Não se sabe que força é essa – os físicos chamam-lhe energia escura –, mas sabe-se que contraria a gravidade exercida pela matéria e que provoca a expansão acelerada do Universo.
Surge a vida na Terra, mais exactamente as primeiras células. Ainda não têm núcleo, tal como, aliás, as bactérias actuais, mas a vida seguirá o seu curso até chegar a nós. Os primeiros humanos – ou seja, os primeiros membros do género Homo – apareceram há cerca de dois milhões de anos apenas, quando o Universo tinha 13.798 milhões de anos. Se pensarmos na nossa espécie, o Homo sapiens, só aparecemos há cerca de 200 mil anos.
milhões de anos
milhões de anos
Aparecimento da vida na Terra (as primeiras células)
Universo actual
É o Universo actual. A sua temperatura, de 270 graus Celsius negativos, está perto do zero absoluto (menos 273,15 graus). E aqui estamos nós, a olhar para trás no tempo, através da luz (em todo o seu espectro, desde os raios gama às ondas de rádio, passando pela luz visível aos nossos olhos) que nos chega dos mais variados fenómenos e objectos que povoam o cosmos. Desde galáxias, enxames de galáxias, supernovas, estrelas de neutrões, buracos negros, anãs castanhas, matéria escura, energia escura – e planetas em redor de outras estrelas que não o Sol, onde talvez alguém esteja também a perscrutar o cosmos como nós. O futuro do Universo parece ser o de expansão eterna: as galáxias ficarão tão dispersas que nem se veriam, uma paisagem triste e fria. Mas o nosso destino na Terra depende do destino do Sol, que ainda vai durar cerca de 5000 milhões de anos.
Chegados aos actuais 13.800 milhões de anos da história de tudo, aqui estamos agora às voltas com o tempo, humanos de uma espécie surgida há singelos 200 mil anos. Neste tempo de agora, que o nosso calendário assinala como 2015 d.C., reflectimos, vivemos e sentimos o tempo de muitas formas. Podemos analisá-lo de um ponto de vista físico, lembrando Einstein, do ponto de vista da história da ciência ou da experiência pessoal de uma cosmóloga pára-quedista a braços com a gravidade. Fomos ainda ver como o contamos com relógios atómicos e na bolsa, em que um milissegundo vale milhões. Visitámos uma loja em Lisboa que arranja relógios antigos, onde se conserta o tempo dos outros. Ouvimos quatro centenários, que desafiam o tempo e, ainda, quem dá o seu tempo aos outros. Continuamos esta edição olhando agora para o tempo a uma escala mais humana.
TEM PO DE 2015 AGO RA
Um minuto sob a gravidade de Einstein Abstracções de uma física pára-quedista a estudar gravidade e o tempo em queda livre Crónica Marina Cortês
O
s acontecimentos que se seguem decorreram no espaço de 3 minutos apenas. Na porta do avião mesmo antes de saltar, fazemos os exercícios de check up. Estou em instrução e tenho dois instrutores comigo, durante a primeira parte do salto. Tudo a postos: arqueia o corpo ao máximo contra a força do ar e... saltar! Estou no ar! Ajusta o equilíbrio, estamos a cair a 190km/h, não balances mais, estabiliza o corpo. Parece tudo bem. Agora os exercícios. Um dos instrutores solta-me como previsto. Lá vai ele. Agora o outro também me solta. Ai-ai, agora estou mesmo por minha conta, cruzes. A voar sozinha! Argh, o que é que é suposto fazer agora? Não há problema, procura um ponto no horizonte para fixar direcção. Aquelas montanhas parecem boas, vão servir. Hmm.. as montanhas estão a girar para a esquerda, acho que vou fazer aqui uma pequena volta. Inclino o braço na direcção oposta... Muito ligeiramente. O quê?!? O que foi isto? Que aconteceu? Estou de pernas para o ar, a olhar para o céu! Perdi a estabilidade. Altitude: 3,6 quilómetros. Bonito serviço. Agora estou a olhar para o céu azul acima. Terra à vista: nada. Vejo os dois instrutores lá no alto, altíssimos, a olhar para mim. Credo, estão a diminuir tão depressa, quer dizer que estou a cair muito mais rapidamente. Como perdi a estabilidade vou a muito maior velocidade que eles. Estou totalmente sozinha, por minha conta, a cair para o planeta a toda a força, e a girar numa espiral. Como estou a girar sem parar, não consigo puxar o páraquedas. Cada vez perco mais altitude, a velocidade agora são 260 km/h. Cada segundo que passa menos 70 metros e começo a ver tudo lá em baixo as casinhas e as estradas cada vez mais perto... Isto está bonito, está... Entretanto no gabinete: quando estou a estudar relatividade geral pergunto-me sempre se o Einstein
alguma vez terá pensado em estudar a gravidade ao vivo! Parece-me que estudar a gravidade no gabinete é muito diferente de estudá-la a saltar de um avião, em queda livre! Não só isto, mas nada melhor que um salto de pára-quedas para vivenciar a relatividade do tempo que ele advogava. Um segundo em queda livre parece-nos horas. O planeta lá em baixo a aproximarse a viva força. Nunca o tempo nos parece mais real, e mais inevitável do que quando estamos numa situação de vida ou morte. E no entanto, em física, a disciplina que ambiciona descrever a natureza na sua totalidade, não estamos muito habituados a levar o tempo a sério. Para a generalidade das teorias em física o tempo tanto pode avançar como recuar: a direccionalidade do tempo é um acidente que não é explicado de forma clara. As soluções nas quais o tempo recua são descartadas à mão sem explicação. Ou seja, as nossas teorias mais fundamentais da natureza ignoram o facto de que o tempo anda sempre para a frente! Isto é contra tudo o que observamos no dia a dia. É como os físicos estarem de costas voltadas para a natureza, ignorando o facto mais fundamental do mundo que nos rodeia: o tempo nunca anda para trás. Porque é que somos nós, os físicos, os únicos cientistas que não incorporamos a irreversibilidade do tempo nas nossas teorias? A química, biologia, antropologia, climatologia, etc., são todas ciências nas quais o tempo tem uma direccionalidade bem definida. As reacções químicas só ocorrem num sentido, nunca “desocorrem” (química); os organismos só ficam mais velhos, nunca mais novos (biologia); em antropologia estudamos os fósseis do passado (nunca os do futuro); os climatólogos também têm bem presente que o tempo só tem uma direcção, eles podem olhar para o passado mas não sabem (ou é muito difícil) prever o futuro, por causa da teoria do caos. Porque é que nós os físicos continuamos absorvidos na procura de equações “congeladas” no tempo, nas quais todo o passado e o futuro existem no mesmo instante e a passagem do tempo é uma mera ilusão?
Sendo a física a disciplina mais ambiciosa da descrição da Natureza, não é peculiar a falta de explicação para a uni-direccionalidade do tempo? Voltando à queda livre. Continuo em espiral no ar e o planeta a aproximarse cada vez mais. Por um momento consigo virar-me de costas, e tento alcançar o pára-quedas, mas perco logo o equilíbrio. Meu Deus, estou mesmo, “mesmo” em sarilhos. O que é que se está a passar, como é que eu páro isto? Um dos instrutores desce disparado para me alcançar e tenta voltar-me para baixo. Não funciona, agora estamos os dois de barriga para o ar! E depois eu viro-me, e agora volta-se ele. Estamos numa dança no ar, como uma máquina de lavar, como o “vira”. Ele perde-me de novo e lá vou eu às cambalhotas mais uma vez. O chão a aproximar-se. Ele consegue alcançar-me. Porque é que ele não me puxa o pára-quedas? Por que diabo é que ele não me puxa o pára-quedas?! “Desisto”, penso para mim, ele não consegue, vamos morrer os dois. Estou feita, é o fim. Adeus mundo. Olha ali o chão, já tão perto. 1500 metros. Sinto um forte puxão para cima, as pernas para o ar, cabeça voltada para baixo. As correias de suporte no peito a esmagar as costelas. Ele puxou o pára-quedas! ELE PUXOU O PÁRA-QUEDAS! Olho para cima e vejo um pára-quedas perfeito, quadrado, abertura sem problemas! O silêncio total é o paraíso, em contraste com o barulho ensurdecedor da queda livre. Só oiço o bater leve da borda do páraquedas. Pára-quedas saudável, vou viver. Sobrevivi! Já passou. Respira, respira. Respira, rapariga. O que é que acabou de acontecer!?! Bem, olha para baixo, descobre onde é que vieste parar, ainda tens de aterrar isto. Onde está a dropzone, onde está a pista do avião, onde é que eu estou? Lá estão o semi-círculo da aldeia de Empuria Brava e a praia, mesmo ao pé de Barcelona. A dropzone está por ali algures, ao lado. 1200 metros, está tudo fixe, respira fundo, relax, estás viva! Sobreviveste! Excepto que... Ao descer sinto os ventos a levantar. Meu Deus,
NUNO FERREIRA SANTOS
1990
>>>>>>>>>>>> Hubble A 24 de Abril de 1990, a bordo do vaivém Discovery, a NASA lança o telescópio espacial Hubble. Foi o primeiro telescópio espacial que permitiu observar o Universo tanto na mesma luz que os nossos olhos captam, como na radiação infravermelha. Com um limite de vida temporal por volta de 2020, o Hubble tem cumprido aquilo que se lhe pede: permitir que a relação da humanidade com o Universo desse um salto, já que, pela primeira vez, foi possível ver o cosmos com uma nitidez sem precedentes. S.J.A.
não estava tanto vento quando levantámos no avião. O pára-quedas começa a abanar desenfreadamente e a fazer o que bem lhe dá na cabeça. Agora está-me a arrastar de lado. Vira à esquerda, depressa! Oh meu Deus, agora estou na zona dos aviões!! Põe-te a andar daqui! Olha à volta, há aviões a vir? Põe-te mas é a andar! Pára-quedas dum raio vais fazer o que eu te mando. Agora, ouviste? 500 metros. Bonito, devia estar a começar a descida final, neste momento! Onde é que suposto eu estar? Ah, lá está o campo de aterragem, “só” a dois quilómetros distância. Ok, esquece isso, improvisa, improvisa. Aquele espaço ali terá de servir. Começo a descer tenho de ir na direcção do vento. Mas não há direcção do vento. Só a vento a abanar, vento a chocalhar, vento para cima, vento para baixo, vento de lado. Devia chamar isto de trajectória perturbativa. O meu trajecto tem incerteza quântica! Ok, ok, vai com calma, vê o altímetro. 250 metros, estou muito alta, já devia estar a 150! Vou chocar contra aquelas casas! Depressa, faz uma volta 360º, perde altitude. Oh que coisa, também não funcionou, agora estou em cima da auto-estrada!! Vejo os carros a acelerar nas duas vias. Dá outra volta, pirate mas é daqui. Começo a descida final, aqui mesmo vai ter de servir. Tento domar o pára-quedas, navegar em linha recta mas não há de quê. Esticão para a esquerda, esticão para a direita, O pára-quedas não reage, avança ao acaso, num caos os ventos mudam a cada segundo. Olho para baixo, o chão a aproximar-se vertiginosamente. Consigo ver as pedras de cascalho a passar aceleradas, como se estivesse num carro. Meu Deus que velocidade, tenho de abrandar, e rápido. Isto vai doer!!! Quando é que travo? A altura de puxar os travões é ainda mais crucial neste salto mirabolesco com ventos descontrolados. Quando é que suposto travar?!?! Agora? Não tenho a certeza. Será agora,
espero mais? É uma questão de segundos. Agora!! Puxa os cabos, com toda a força, puxa, puxa! Mais força! Tenho de puxar os cabos até às ancas e ainda estão à altura nos ombros. Com mais força! Tenho a cara azul do esforço, as veias a pulsar. Os ventos não me deixam puxar os cabos. Oh meu Deus, ainda estou demasiado alto, travei muito cedo. O que vai acontecer agora? O impacte está perto, prepara-te rapariga isto vai ser uma aterragem dos diabos! Crash!!! Ligeiramente nos joelhos, caio para a frente, para cima do pára-quedas. Estabiliza, pára. Wow! Nada mau, que fixe. Que fixe! Cheguei ao chão. Estou no chão! De volta ao planeta! Estou a salvo! Apetece-me beijar a terra e saltar. Mas como os ventos estão muito fortes tenho de puxar o pára-quedas para baixo de mim, porque esta a inflacionar e pode levar-me no ar de novo. Como se tivesse adivinhado, num instante o páraquedas inflaciona como um balão. Sinto um esticão forte a puxar-me para trás e para cima, a arrastar pelo chão. Está bonito, afinal ainda não é desta. Não tenho tempo para cortar os cabos. Para onde é que isto me está a levar? Olho à minha frente, o pára-quedas está-me a arrastar para a pista dos aviões!! Tenho de puxar um dos cabos para o colapso. Não funciona, os ventos estão demasiados fortes, o resto do páraquedas é como um balão, a puxar-me com a força de um gigante. Levanto-me e atiro-me para o ar, para cima do pára-quedas. Consigo enfiar um pouco mais debaixo de mim mas a parte inflada ainda é forte e continua a arrastar-me. E agora reparo que estou mesmo à beira da pista de aviões com o pára-quedas a puxar-me para o meio. Olho para a direita horrorizada e... claro, com a minha sorte de hoje, vem um avião no ar prestes a aterrar, talvez a 500 metros de distância. Dentro de segundos vai passar no centro da pista em frente de mim, o local exacto para onde o pára-quedas me está a arrastar. Nem consigo acreditar no que se esta a passar?!? Isto é algum filme do Bruce Willis?! Estou a segundos de ser atropelada por um avião, arrastada por um pára-quedas! Muito bem, vou-te puxar para baixo de mim, e agora!! Estou de rastos na berma da pista a puxar o pára-quedas freneticamente e a olhar para o avião a aproximar-se cada vez mais nítido. Puxo o mais depressa que consigo, agora com o avião no canto do olho. Está quase, ainda falta um bocado. VEM CÁ PÁRA-QUEDAS DUM RAIO! Queres-me matar! Consegui. Estou estendida sob o pára-quedas com a cabeça enterrada no tecido. Oiço o avião disparado passar à minha frente. O avião não me atropelou. Estou colapsada, nem consigo pensar, totalmente exausta. Sem energia. Oiço os ventos, assim que ouvir um abrandar salto num ápice, agarro tanto quanto posso, diminuo o volume e atiro-me de novo para cima do pára-quedas. Funcionou. Algumas partes ainda estão a voar ao vento mas nada de grave. Apanhei-te, meu pára-quedas idiota. Pego em todo o tecido agora entrelaçado, atiro para cima do ombro e começo a regressar ao hangar. Olha para isto, onde aterrei quase a 3 quilómetros de distância! Começo o caminho de volta com passos longos e espaçados. Respira fundo. As pernas a tremer e os joelhos a ceder. Estou estupefacta. Não consigo acreditar em tudo o que acabou de acontecer. Olho para baixo e fico surpreendida por os pés acharem o caminho de volta, um após o outro, devagar. O que é que aconteceu?! Ando e ando, com as duas toneladas de pára-quedas às costas, e finalmente chego à dropzone. Há uma multidão de pessoas estupefactas, a olhar para mim, com a boca aberta. Respiro fundo e volto para o outro lado. Vou para o hangar, enfiar a cabeça entre os joelhos! Volto para a física. Equações são muito mais fáceis de escrever do que lutar com um pára-quedas. Uma das grandes motivações para transformar o papel do tempo irreversível na física fundamental vem destas experiências tão vivas. Nas quais segundos parecem horas, e a realidade do tempo, e como avança só numa direcção é mais berrante que nunca. Nós os físicos que escrevemos equações em que o tempo não é real e tanto avança como recua devíamos deixar a secretária e vir olhar para o mundo cá fora. Pode ser que ficássemos convencidos do contrário. Cosmóloga, Observatório Real de Edimburgo
E A luz de Einstein Se a teoria da relatividade restrita de 1905 tinha juntado a matéria à energia (falamos de matéria-energia) e o espaço ao tempo (falamos de espaço-tempo), a teoria da relatividade geral reúne todos esses conceitos ao afirmar que a matéria-energia deforma o espaço-tempo. À volta de um astro o espaço e o tempo são distorcidos Por Carlos Fiolhais
m 2015, Ano Internacional da Luz, celebra-se o centenário de uma das teorias físicas mais formidáveis e também um dos picos mais altos do intelecto humano: a teoria de relatividade geral de Albert Einstein. A 25 de Novembro de 1915 o sábio suíço nascido na Alemanha escrevia a equação fundamental que junta matéria, energia, espaço e tempo para explicar a gravitação, descrevendo não só a queda de uma maçã e a órbita da Lua mas também os buracos negros e o Big Bang. Se a sua teoria da relatividade restrita de 1905 tinha juntado a matéria à energia (falamos de matéria-energia) e o espaço ao tempo (falamos de espaço-tempo), a teoria da relatividade geral reúne todos esses conceitos ao afirmar que a matéria-energia deforma o espaço-tempo. À volta de um astro o espaço e o tempo são distorcidos, deixando de valer a geometria euclidiana e a mecânica newtoniana a que estamos habituados. E os corpos caem porque o espaço é curvo. O espaço-tempo pode acabar ou começar. Os buracos negros são estrelas que, após violenta implosão, ficaram reduzidas ao seu caroço extremamente duro. O espaçotempo à volta é tão deformado que o nosso mundo acaba aí, isto é, terminam aí as nossas possibilidades de conhecer. Tudo cai para um buraco negro, incluindo a luz. Segundo Einstein, a luz pesa! Podemos imaginar o inverso de um buraco negro? Sim, se um buraco negro é o sítio para onde tudo vai, o buraco branco é o sítio de onde tudo vem (há quem especule que, associado a cada buraco negro, há um buraco branco, com a matéria a ser sorvida por um lado, no nosso mundo, e a jorrar do outro, sabe-se lá onde). O físico Stephen Hawking, cuja biografia é o argumento do filme A Teoria de Tudo, apostou um dia com um colega uma assinatura da Penthouse que não havia buracos negros e perdeu (é irónico um especialista em buracos negros ter apostado na não existência do seu objecto de estudo.) Existirão buracos brancos? Vivemos no interior de um: o Universo, provavelmente é infinito, o qual, de acordo com a teoria da relatividade geral, teve o seu início no Big Bang, há 13.800 milhões de anos. Esta grande explosão inicial pode ser imaginada como o evento em que tudo apareceu, o espaço e o tempo, a matéria e a energia, tendo começado tudo com a luz, que é energia. Einstein teve que porfiar antes de chegar à fórmula que encerra os segredos da gravitação. Cedo percebeu que a teoria da relatividade restrita, segundo a qual as leis da física são as mesmas para todos os observadores em repouso ou em movimento com velocidade constante, devia também ser aplicada a observadores com velocidade variável, isto é, acelerados. É esse o salto da relatividade restrita para a relatividade geral. Se Newton imaginou uma maçã a cair, Einstein imaginou-se a si próprio a cair. A epifania ocorreu em 1907 quando Einstein teve o que chamou o “pensamento mais feliz da sua vida”, quando, sentado numa repartição de patentes na Suíça, se apercebeu de que, se estivesse em queda livre, um movimento acelerado, “não sentiria o seu próprio peso”, uma vez que a cadeira cairia com ele. Embora a cair, o sábio estaria parado relativamente à cadeira. O princípio que afirma a queda idêntica de todos os corpos tinha sido descoberto por Galileu.
Atrevo-me a conjecturar que, daqui a dez mil anos, a descoberta da equação da relatividade geral feita por Einstein há cem anos será um dos marcos mais notáveis do século XX
Em 1971, um astronauta deixou cair na Lua um martelo e uma pena para mostrar que os dois objectos chegavam ao solo ao mesmo tempo. Se tudo cai do mesmo modo, podemos intuir que a força gravitacional é uma propriedade do espaço: nas vizinhanças de um astro, o espaço possui certas propriedades. Só faltava saber que propriedades são essas. Uma consequência imediata da generalização do princípio da relatividade era que um raio de luz vindo do espaço longínquo encurvaria ao passar perto do Sol. O efeito era minúsculo e não pôde ser logo confirmado. E ainda bem, pois o primeiro valor calculado por Einstein para o encurvamento dos raios de luz estava errado. Não admira que a matemática da relatividade geral seja incompreensível para um leigo, pois o próprio autor demorou uma década a lá chegar. Precisou de uma geometria curva em vez da geometria plana de Euclides. Geometrias ditas não euclidianas já existiam nos livros de matemática, dando razão a Galileu, que tinha dito que “o Livro da Natureza está escrito em caracteres matemáticos”. No longo caminho para a equação que descreve a gravitação, Einstein, melhorando a matemática, chegou finalmente a um valor para o ângulo de deflexão da luz que era o dobro do anterior. A equação era bela, mas faltava saber se era verdadeira. A Primeira Grande Guerra impediu a realização de expedições de observação de eclipses, ocasiões favoráveis para medir deflexões de raios de estrelas por trás do Sol. Uma observação de um eclipse total do Sol só pôde ser realizada no pós-guerra. Foi em 29 de Maio de 1919 que uma expedição inglesa, dirigida por Arthur Eddington, se deslocou à ilha do Príncipe para fotografar um desses eclipses. Os astrónomos obtiveram algumas imagens do Sol, numa aberta de um aguaceiro tropical. Einstein em breve recebeu um telegrama de um colega, felicitando-o pela previsão certeira. Nunca temeu estar errado. Chegou até a dizer que teria pena de Deus se a realidade fosse diferente do previsto (Deus para ele, esclareça-se, era a harmonia universal e não o autor do Fiat Lux). Nenhum cientista português participou na expedição a um território sob administração lusa. Os portugueses estavam tão afastados da ciência que, em 1925, Einstein, já nobe-
lizado, passou por Lisboa sem ser reconhecido. A 6 de Novembro de 1919, numa sessão da Royal Society e da Royal Astronomical Society em Londres, com a presença das maiores sumidades da ciência (na parede Newton assistiu impávido, pois só estava em retrato), os resultados da observação solar foram anunciados e Einstein foi aclamado. O Times de Londres titulou Revolução na Ciência. Newton tinha dito: “Se consegui ver mais longe foi porque estava aos ombros de gigantes.” A revolução significava que Einstein tinha subido para os ombros de Newton, conseguindo ver ainda mais longe. A fama mundial obtida num ápice facilitaria a sua mudança para Princeton, nos EUA. Em 1932, Einstein, pressionado pela perseguição nazi aos judeus, disse em Berlim à sua mulher: “Olha bem para a tua casa. Não mais a voltarás a ver.” E assim foi. Transposto o Atlântico, nunca mais voltaria à Europa. Foi simbolicamente a passagem da ciência do Velho para o Novo Mundo. Os génios também têm vida privada. No início de 1915 Einstein deixou Zurique para ocupar uma cátedra em Berlim. Nessa altura deixou também a primeira mulher, Mileva (ela ainda fez o gesto de se mudar para Berlim, mas já não havia força de atracção entre eles). Einstein logo encontrou afecto numa prima berlinense, Elsa, com quem se viria a casar pouco depois do eclipse de 1919. Foi Elsa que o acompanhou para Princeton. O Nobel da Física Richard Feynman afirmou um dia que a descoberta, há 150 anos, das equações de Maxwell, que unificam a electricidade e o magnetismo, esclarecendo que a luz é uma onda electromagnética, serão lembradas daqui a dez mil anos como o acontecimento mais relevante do século XIX. Na mesma linha, atrevo-me a conjecturar que, daqui a dez mil anos (uma insignificância quando comparada com a idade do Universo), a descoberta da equação da relatividade geral feita por Einstein há cem anos será um dos marcos mais notáveis do século XX. E só não a singularizo mais porque, uma década volvida, ficou pronta a teoria quântica, a espantosa teoria dos átomos e partículas atómicas. As duas são expressões máximas do pensamento humano. Arrisco esta profecia apesar de recear que pouca gente a entenda.
DR
Pode ser que mais gente a procure entender. Por ter alcançado uma fórmula “mágica” com o poder de explicar os mistérios do cosmos, o cérebro de Einstein tornou-se um mito para o homem comum, que sem conseguir ver a beleza das equações não poderá mais do que vislumbrar esses mistérios. Roland Barthes no seu livro Mitologias escreveu sobre esse cérebro: “Quanto mais o génio do homem era materializado sob a espécie do seu cérebro tanto mais o produto da sua invenção assumia uma condição mágica, reincarnava a velha imagem esotérica de uma ciência inteiramente encerrada nalgumas letras. Há um único segredo no mundo, e esse segredo condensa-se numa palavra, o Universo é um cofre-forte de que a humanidade procura a cifra.” E acrescenta: “É esse o mito de Einstein; aí se nos deparam de novo todos os temas gnósticos: a unidade da Natureza, a possibilidade de uma redução fundamental do mundo, o poder de abertura da palavra, a luta ancestral entre um segredo e uma linguagem, a ideia de que o saber total não pode descobrir-se senão de um só golpe, como uma fechadura que cede bruscamente depois de mil tacteamentos infrutuosos.” O cérebro de Einstein simboliza a capacidade humana de compreender a natureza. Todas as observações e experiências realizadas nos últimos cem anos confirmaram a teoria da gravitação einsteiniana, que concorda com a teoria de Newton no limite de forças gravitacionais pequenas. Até há aplicações tecnológicas, como o GPS. Resta um problema, cuja solução espera por um novo gigante. A teoria da gravitação ainda não foi satisfatoriamente unida à teoria quântica, a outra grande teoria física do século XX (uma teoria em relação à qual Einstein sentiu algumas dificuldades). Passaram 228 anos de Newton a Einstein e não sabemos quanto vai demorar até surgir um génio comparável. Se Einstein fez luz sobre as questões da gravidade, incluindo o magno problema do início do mundo, um novo Einstein acabará, mais cedo ou mais tarde, por fazer mais luz sobre o Universo. Professor de Física da Universidade de Coimbra (tcarlos@uc.pt)
1990
>>>>>>>>>>>> WWW São três letras cuja real importância ninguém podia perceber de início, mas representam uma das maiores revoluções no que é a dimensão de espaço e de tempo: WWW. As três letras significam World Wide Web e foram e são a chave para abrir o que se convencionou chamar “auto-estradas da comunicação” — ou seja, são o suporte tecnológico que, com a sua linguagem informática própria, constrói uma rede ou uma teia (web) que permite “navegar na Net” e chegar aqui e agora a todo o lado, quebrando as barreiras do espaço e do tempo. S.J.A.
1991
>>>>>>>>>>>> Fim da URSS A 19 de Agosto de 1991, a tentativa de golpe de Estado na URSS ameaça fazer regredir o tempo e anular a acção libertadora que levara à Perestroika de Mikhail Gorbatchov. O presidente é preso na sua datcha de Verão na Crimeia. A reacção nas ruas, liderada em Moscovo por Boris Ieltsin, faz falhar a tentativa de regressão à ditadura comunista. Daí ao fim da URSS foi um instante. A 25 de Dezembro, Gorbatchov assinava a dissolução da União Soviética e demitia-se, pondo fim a 70 anos do mais emblemático regime comunista. S.J.A.
Vítor Cardoso Houve um dia em que não houve ontem Desafiámos o físico português a fazer um passeio pelo Universo e pela forma como a nossa visão sobre ele se alterou ao longo do último século. “Passámos de um Universo parado para um Universo em ebulição, elástico e humano: nasce, cresce e, quem sabe, morre” Entrevista Teresa Firmino Fotos Miguel Manso
A
“Cientificamente, ter havido um ponto de partida é libertador. Não nascemos escravos de um Universo que já cá estava. Pelo contrário, evoluímos com ele”
os 40 anos, Vítor Cardoso é professor e investigador do Centro Multidisciplinar de Astrofísica e Gravitação (Centra) do Instituto Superior Técnico, em Lisboa. Também é professor na Universidade do Mississípi, nos Estados Unidos, e investigador do Instituto Perimeter, no Canadá. Nos últimos cinco anos, ganhou duas superbolsas no valor total de 2,5 milhões de euros, que tem utilizado na investigação das equações de Einstein, com a ajuda de um supercomputador chamado Baltasar Sete Sóis. Dedica-se à física teórica, nomeadamente à compreensão dos buracos negros, da matéria escura e das ondas gravitacionais. Toda a gente aceita hoje a ideia de que o Universo teve um início — o Big Bang — e que, desde então, o Universo está em expansão. Por que é que Einstein se recusou a aceitar esta realidade, que, aliás, uma das suas próprias equações da teoria da relatividade geral lhe indicava? Temos de tentar perceber o que ele fez com as mesmas barreiras psicológicas que imagino que existissem na altura: o Universo era simplesmente pensado como algo imutável, que sempre foi e sempre será. Einstein acreditava, portanto, num Universo estático. Ora, a física tem esta coisa extraordinária de prever coisas que nunca tínhamos imaginado quando a construímos, isto é, quando a passamos para a linguagem matemática. E os resultados de Einstein diziam-lhe que o Universo não devia ser estático. Mas até Einstein, que já tinha derrubado a barreira do tempo imutável, sucumbiu e se recusou a deixar isto acontecer: mudou um pouquinho a matemática para que as equações se adaptassem à sua interpretação da realidade. Fez batota para satisfazer o seu preconceito. Este tipo de actos, o de tentar subjugar a realidade aos nossos preconceitos, acontece não só em ciência, mas na política, na economia e no dia-a-dia. Na ciência, a realidade fala sempre mais alto e acaba por ganhar. Quando se fala de um Universo estacionário, isso quer dizer que se pensava que as estrelas não morriam? Que o nosso Sol se mantinha igual? As estrelas não nasciam nem morriam e não evoluíam. De alguma forma, isso dava-nos uma certa paz de espírito: o Universo era assim no tempo dos nossos avós e vai continuar assim no tempo dos nossos netos. Mas, por outro lado, o que aceitamos hoje é ainda mais bonito: as estrelas nascem, morrem e algumas explodem. O resto de algumas destas explosões de estrelas mortas forma planetas, alguns dos quais vão ter vida, como a Terra. Portanto, a vida resulta da morte, e é muito mais interessante pensarmos que já fomos estrelas e que provavelmente vamos voltar a ser daqui a muitos milhões de anos... O momento-chave da mudança na nossa visão do Universo foi quando o astrónomo Edwin Hubble descobriu, em 1929, que as galáxias se estavam a afastar umas das outras? Edwin Hubble descobriu que, em geral, todas as galáxias se estão a afastar de nós e que quanto mais longe de nós está uma galáxia, mais rapidamente ela se afasta. Portanto, o Universo está em expansão no verdadeiro sentido da palavra. Hoje é tão normal ouvirmos estas palavras que até parecem dizer algo fácil de entender. Mas não é. Quando olhamos para os céus, vemos sempre a mesma coisa, a Estrela
Polar está onde sempre esteve desde que nascemos. O que quero dizer com isto é que as observações de Hubble, que são sofisticadas e precisam de telescópios poderosos, nos dizem algo que é difícil de “ver” e representam um choque com aquilo em que acreditávamos há milénios. Ora, quando Einstein soube disto, percebeu logo a asneira que fez, e percebeu que a realidade o veio desmascarar. Nessa altura afirmou que o maior erro da sua vida foi tentar mudar as equações para se adaptarem ao que ele pensava... E, realmente, é um erro histórico! As implicações da expansão do Universo são muitas. Não só destroem por completo a ideia de que está tudo parado, mas também nos permitem fazer um jogo interessante: se o Universo está em expansão, significa que à medida que fica mais velho é também maior. O que significa que o Universo jovem é cada vez mais pequeno, e portanto o Universo teve uma data de nascimento. Depois de Hubble, estas e outras coisas fantásticas puseram todos a mexer e a querer saber ao certo de que forma é que o Universo se expande. Um dos melhores instrumentos que orbitam a Terra desde 1990 é o telescópio Hubble. Graças a essas e outras observações, sabemos que o Universo nasceu há quase 14.000 milhões de anos. Em menos de 100 anos, passámos de um Universo parado para um Universo em ebulição, onde estrelas nascem, morrem, chocam umas com outras e onde o próprio Universo é elástico e humano: nasce, cresce e, quem sabe, morre. A partir do momento em que se percebeu que o Universo se expandia, então, se andássemos para trás no tempo, houve uma altura em que tudo esteve junto. Não havia estrelas ou galáxias... ... Não havia nada, o Universo era um ponto. Nessa altura, a matéria como a conhecemos hoje não existia. Não existiam átomos nem sequer protões ou electrões, que estavam completamente desintegrados. Claro que isto é extremamente difícil de comunicar ou compreender, já que foge à experiência do diaa-dia. Na realidade, nem sequer temos uma teoria suficientemente forte para compreender o nascimento do Universo. A teoria da relatividade geral falha e não temos forma de pensar nesse “Universo-embrião”. Ainda antes das observações de Edwin Hubble, já tinha havido teorias que sugeriam a existência de um início do Universo, não é? Desde há muito tempo que um Universo estático causava incómodos. Não havia teoria nenhuma, propriamente dita, que sugerisse o nascimento do Universo. Contudo, um meteorologista e matemático russo, Alexander Friedmann, tinha descoberto em 1922 uma solução da teoria de Einstein que descrevia um Universo em expansão. Em 1927, o padre e astrofísico belga Georges Lemaître chegou também a um modelo de um Universo em expansão. Lemaître compreendeu até as implicações dessa descoberta, quando afirmou que “houve um dia em que não houve ontem”, isto é, que o Universo teve um início. E, contudo, o trabalho de ambos foi praticamente ignorado na altura: não eram cientistas de renome no local certo, e em ciência, por vezes, isto é importante: há que lutar pelas ideias persistentemente, até serem aceites pela comunidade. Até os resultados de Hubble encontraram resistência e durante décadas muitos não acreditaram neles. A primeira reacção de um cientista a uma descoberta é tentar mostrar que está errada. Talvez seja por isso que a ciência funciona tão bem: duas partes disputam com argumentos lógicos e lutam pela verdade até o assunto ficar esclarecido. Infelizmente, Friedmann não pôde lutar pela sua ideia, já que morreu pouco depois, aos 37 anos. A grande descoberta de Einstein foi que o espaço e o tempo são uma entidade única — o espaçotempo —, que é deformada pela presença da matéria e da energia. Como é que isso mudou a nossa visão do tempo? Em 1905, Einstein entendeu que o tempo não é absoluto, e que relógios iguais podem ter tiquetaques diferentes conforme a velocidade a que eles se movam: não é problema nenhum com o relógio, é o próprio tempo que flui de forma diferente... Isto vai até à raiz da nossa existência: afinal de contas, o que é o tempo?! O tempo é relativo, pode “mover-se” mais ou menos rapidamente. Todos os dias no CERN
“[Antes do Big Bang] é o campo da especulação e da metafísica. A ciência pára aí.”
[Laboratório Europeu de Física de Partículas, em Genebra] se verificam estas previsões, é algo já aceite por todos nós e que até passou para a cultura popular, mas era uma barreira imensa. Em 1916, Einstein percebeu que o tempo e o espaço são elásticos e duas faces de uma mesma entidade: o espaço-tempo. Pela primeira vez, o tempo não é uma entidade imóvel, é algo que pode ser distorcido. Isto permitiu-nos trabalhar a noção de tempo: o tempo pode fluir mais devagar ou mais depressa. A teoria da relatividade foi importante para termos até uma noção do início do tempo, tínhamos de quebrar primeiro a noção de que o tempo é uma coisa estática e imóvel e eterna. Creio que a noção do Big Bang só é possível depois de termos quebrado a barreira do tempo e de sabermos que podemos mexer no tempo. Que implicações filosóficas e religiosas teve o facto de sabermos da existência do Big Bang? Imagino que deve ter sido um grande choque saber que o Universo está a evoluir e que nós, enquanto parte do Universo, estamos a caminhar para algum ponto enquanto espécie e enquanto ser vivo no cosmos. Qual o nosso papel no Universo? Há algum propósito na nossa existência? Qual o futuro da humanidade? Quem criou o Universo? Estas perguntas devem ter ganho nova relevância. Mas, cientificamente, ter havido um ponto de partida é libertador. Não nascemos escravos de um Universo que já cá estava. Pelo contrário, evoluímos com ele. Se o Universo não é estático e está a mudar, então talvez possamos compreender as estrelas, como deitam tanta luz cá para fora, o que acontece no interior delas... Como é que se formaram, como morrem, como é que a vida nasceu... tudo isto! Tem de ter sido uma coisa bonita saber que, afinal, há alguma dinâmica no sítio onde vivemos. Em 1965, descobriu-se uma radiação “fóssil”, que é a luz mais antiga que conseguimos ver dos primórdios do Universo, quando tinha só 380 mil anos, e que se chama radiação cósmica de fundo. Esta foi a derradeira prova do Big Bang? A teoria de um Universo estático ou estacionário prevê que o Universo é hoje como foi há milhões de anos. Por outro lado, a teoria de que o Universo teve um início prevê muitas outras coisas: toda a matéria
estava concentrada inicialmente num único ponto e toda a matéria estava esmagada porque a temperatura era enorme. Mas, à medida que o Universo expande, arrefece e permite a criação de estrutura. Quando o Universo celebrou um segundo de vida, estava suficientemente frio para núcleos de átomos. E aos 380 mil anos a luz conseguiu finalmente “libertar-se” da matéria: é esta luz a que chamamos a radiação cósmica de fundo, um eco do Big Bang. Mas é um eco que tem toda esta evolução subjacente. É uma fotografia lindíssima do Universo jovem-adulto, só possível num cenário em que existe Big Bang. E um pormenor interessante é que esta “fotografia” foi descoberta por acaso por Penzias e Wilson em 1964. Enquanto instalavam antenas muito sensíveis, detectaram um ruído que atribuíram a... cocó de pombos. E que se verificou ser radiação cósmica de fundo existente em todo o lado e em todas as antenas. Hoje vemos galáxias pelo Universo todo. O que mais nos disse a radiação cósmica de fundo sobre o Universo que vemos hoje? O que permite saber sobre os primeiros 380 mil anos do Universo, que não vemos directamente? A radiação cósmica de fundo é quase isotrópica, isto é, a mesma em todas as direcções para onde olhemos. Isto faz sentido, dado que o Universo era o mesmo em todas as direcções quando esta luz foi libertada. Mas esta luz é antiga, está a viajar há muitos milhões de anos e já viu muita coisa. Desde os quase 14.000 milhões de anos que passaram desde que a radiação cósmica de fundo foi criada, muita coisa aconteceu: a gravidade atrai tudo o que pode, e a tendência é começar a formar “coágulos” de matéria, que são as sementes das futuras galáxias, estrelas ou mesmo buracos negros. Ora como esta luz viaja há tanto tempo, foi afectada por todos estes acontecimentos. Por isso, quando olhamos para a radiação cósmica de fundo, vamos ver todo este passado da luz como pequenos desvios em diferentes direcções. Outro marco da nossa compreensão do Universo foi o modelo da inflação cósmica. Por que foi preciso introduzir na teoria do Big Bang uma expansão vertiginosa do Universo nas primeiras fracções de segundo da sua existência? O Universo nasceu homogéneo e isotrópico, o mesmo em todo o lado e direcção e continua mais ou menos assim ainda hoje. No cômputo geral, é mais ou menos homogéneo. Se olharmos para o céu, há sempre uma estrela algures no caminho do nosso telescópio. Isto significa que a direcção do Pólo Sul no céu parecese, com uma precisão de uma parte em 10.000, com a direcção do Pólo Norte. Mas quando olhamos nestas diferentes direcções, estamos a ver luz que veio de partes completamente diferentes e que nem sequer deveriam saber da existência uma da outra. Então, como é possível que sejam tão semelhantes? Bem, uma explicação é que seja uma coincidência, mas tem de ser uma coincidência tão grande que é como ganhar a lotaria várias vezes seguidas... Parece batota! Pensamos que isto aconteceu porque houve uma inflação, isto é, um crescimento muito rápido, que dissolveu qualquer “coágulo” e imperfeição que existisse, um alisamento muito rápido do tecido onde estavam estes coágulos, e tudo ficou muito uniformemente distribuído. A inflação procura explicar por que é que o Universo é assim. Ainda antes da inflação, houve o Big Bang, o momento zero. Depois, houve a primeira fracção de segundo a partir da qual o conceito de tempo tem sentido: 10-43 segundo. Mas entre o Big Bang e os 10-43 segundo, o que é o tempo? Não sabemos. O 10-43 segundo é o que chamamos a escala de Planck (em homenagem a Max Planck, o físico que iniciou o estudo da mecânica quântica). Que é a escala da nossa ignorância. Diz-nos que daí para trás a mecânica quântica (que explica a existência de átomos, moléculas, etc.) é tão ou mais importante do que a gravidade. Quando o campo gravítico é muito forte — e era no início do Universo, porque estava tudo junto e era extremamente denso —, há efeitos de mecânica quântica que não podemos prever. Sabemos que têm de estar lá, mas não os sabemos calcular. Como não conseguimos casar a teoria quântica e a da relatividade geral, não sabemos o que acontece.
Do momento zero do Universo até aos 10-43 segundo, podemos dizer que há tempo? Do zero até aos 10-43 segundo não se pode dizer que não haja tempo. Há tempo, mas talvez seja de natureza diferente. Não se pode dizer mais nada. É um tempo diferente. Há efeitos de mecânica quântica que não conhecemos. Talvez o tempo flutue e dê saltos, talvez não ande sempre para a frente... Julga-se que nestas alturas o espaço-tempo é como espuma, tudo se mistura. É a partir de 10-43 segundo que a teoria de Einstein é aplicável. E antes do Big Bang? É o campo da especulação e da metafísica. A ciência pára aí. Em 1999, João Magueijo propôs uma alternativa ao modelo da inflação cósmica para explicar a homogeneidade do Universo a grandes escalas. Teriam sido os fotões (a luz) que puseram todo o Universo primordial em contacto e o tornaram uniforme. Para isso a luz teria de ter sido mais rápida no passado, o que questionava a constância da sua velocidade. Há hoje alguma observação astronómica que fundamente esta proposta? Ele tentou mudar as regras do jogo, para encontrar uma alternativa ao processo de inflação, que, como já disse, sugere que o Universo passou por uma fase de crescimento muito rápido, quando era criança. Em vez de ser a velocidade de expansão do Universo que mudava, era a própria velocidade intrínseca das coisas, neste caso da luz, que mudava ao longo da história do Universo. A luz punha tudo em contacto e a homogeneidade ficava mais ou menos explicada. Do ponto de vista teórico, nada proíbe que isso tenha acontecido. Mas Einstein acreditava que a velocidade da luz era constante, é um postulado da teoria dele. É assim que a física funciona: propõem-se alternativas para resolver problemas e fazem-se observações para ver qual é a que o Universo escolheu. Parece hoje que o Universo escolheu a inflação e que a velocidade da luz é mais ou menos constante ao longo da sua história. Portanto, a proposta de João Magueijo é interessante, mas a natureza não optou por ela. Contudo, ao explorar essa possibilidade, ficamos a saber algo mais sobre o Universo. Fazer ciência é testar hipóteses. A descoberta das ondas gravitacionais dos primórdios do Universo, anunciada em 2014, teria sido a prova final de que o modelo da inflação cósmica estava certo. Mas esse anúncio foi desmentido este ano por análises posteriores das observações, nomeadamente do telescópio espacial europeu Planck. Ficou muito desiludido? As ondas gravitacionais são distorções do espaçotempo que transportam informação sobre a gravidade. Viajam à velocidade da luz e foram previstas por Einstein há 100 anos, mas nunca foram detectadas directamente na Terra. O anúncio da descoberta matava dois ou três coelhos de uma cajadada: se estas ondas tivessem mesmo sido vistas, significava que a gravidade também tem natureza quântica, já que estas ondas seriam geradas por efeitos quânticos no início do Universo; significava também a verificação do mecanismo que mencionei, a inflação, já que só através da inflação é que as ondas gravitacionais são suficientemente fortes. Finalmente, a detecção das ondas significa que elas existem. Quanto ao episódio do anúncio da (falsa) descoberta em si, é uma ilustração perfeita de como a ciência (e o ser humano) funciona. Um grupo, da experiência BICEP2 no Pólo Sul, afirmou [em 2014] ter descoberto as ondas gravitacionais, talvez um pouco precipitadamente, para ficar com a fama e o proveito que adviriam se estivessem correctos. A reacção da maior parte de nós ao anúncio de qualquer descoberta é tentar provar que está errada. E, realmente, há cerca de um mês, a equipa do Planck, em colaboração com o BICEP2, mostrou que o anúncio foi precipitado. Mas repare: há agora um consenso entre os cientistas, portanto o método científico está a funcionar bem. Pode explicar um pouco mais o que são as ondas gravitacionais? E acha que vamos detectá-las? A teoria da relatividade de Einstein diz que espaço e tempo são um único tecido, e que as ondas gravitacionais são flutuações desta entidade à medida que o tempo passa. As ondas na superfície de
“Daqui a cerca de 4000 milhões de anos a Via Láctea vai colidir com Andrómeda. Vamos perder a nossa querida galáxia, mas por essa altura a Terra já não terá humanidade”
um lago são uma boa analogia. Outra boa analogia é imaginarmos que o Universo em que vivemos é o tecido de uma camisola. E que nós e tudo o que existe no Universo somos os desenhos pintados na camisola. Se eu tocar com o dedo na camisola, ela vai oscilar. E se eu puxar o tecido da camisola, os desenhos ficam mais ou menos esticados. Puxões que viajam no tecido são as ondas gravitacionais. Esta analogia mostra-nos o efeito de uma onda gravitacional sobre nós. Se uma onda gravitacional estiver a passar aqui entre nós, é o mesmo que eu puxar o tecido de uma camisola e o que veria é que ficaríamos sucessivamente esticados e comprimidos. A minha altura iria variar muito pouco, mas iria variar. O problema é que varia muito pouco, o que é bastante complicado de detectar. Estas ondas têm uma história interessante. Einstein previu a sua existência em 1916, mas 20 anos depois negou-a num artigo com [Nathan] Rosen. Einstein também errava, e bastante, e isto foi mostrado por [Howard] Robertson, que se apercebeu de que ele interpretou mal a solução. Mas Einstein era Einstein e o que perdurou foi a sua opinião... até 1955, quando [Richard] Feynman, [Hermann] Bondi e outros mostraram que as ondas têm de existir e transportar energia. A partir de 1960, começa-se a tentar detectar estas ondas na Terra, com barras de alumínio. Joseph Weber foi um pioneiro, construindo os detectores mais avançados. Infelizmente, alegou ter detectado dezenas de acontecimentos, mas mostrou-se mais tarde que resultaram de erros de software e hardware. Resumindo, a história da detecção destas ondas, chamadas “mensageiros de Einstein”, não começou muito bem, e havia algum receio de investir uma carreira no assunto. Nos anos 1980, o famoso físico Kip Thorne decidiu recomeçar todo o esforço com o LIGO, um observatório norte-americano. Acreditamos que a primeira detecção directa destas ondas vai acontecer daqui a um ou dois anos. Se não detectarmos nada em 2017... mau... Então, ou o Universo é completamente diferente da forma como hoje o entendemos, ou a teoria de Einstein está seriamente errada. Pensa-se que os buracos negros também geram ondas gravitacionais, duas coisas estudadas por si. Que mistérios procura desvendar? Bom, dado que vamos todos acabar dentro de um
buraco negro, é bom sabermos como estas bestas nasceram e cresceram. Buracos negros nascem quando uma estrela muito grande morre, e cai sobre si mesma, pois já não consegue suportar a atracção gravítica. Para um buraco negro, crescer é a única opção: eles comem tudo o que puderem. Os buracos negros são muito comuns em todas as galáxias: a nossa tem milhões de buracos negros “pequenos”, isto é, com cerca de 15 quilómetros de raio, mas um milhão de vezes mais pesados do que a Terra. Além disso, descobrimos nas últimas décadas que quase todas as galáxias têm no centro um buraco negro supergigante. No caso da Via Láctea, o centro é ocupado por um monstro gigante quatro milhões de vezes mais pesado do que o nosso Sol. Estes gigantes, apesar de muito mais pequenos do que a galáxia, controlam toda a sua actividade, incluindo o nascimento de novas estrelas. Estes gigantes nos centros das galáxias estão sempre acompanhados por outro gigante invisível, a que chamamos matéria escura. E que forma a maior parte da matéria do Universo e não fazemos ideia do que seja (por isso lhe chamamos “escura”, quando soubermos o que é, talvez mudemos o nome!). Ora, os buracos negros emitem quantidades prodigiosas de ondas gravitacionais. Procuro perceber esta emissão e a sua importância. Será que através das ondas gravitacionais podemos saber algo sobre a matéria escura? Como é que o acelerador LHC — onde se detectou o bosão de Higgs em 2012 e vai agora reabrir quase com a sua potência máxima — pode ajudar a descobrir o que é a matéria escura? O LHC tem tentado procurar também matéria escura, mas estamos sempre limitados pela energia necessária. No estado actual da física, a parte mais excitante está no Universo para lá do nosso sistema solar. Há pouco tempo, o CERN deu-nos provas mais ou menos conclusivas da existência do bosão de Higgs. Mas receio que daqui para a frente a física de partículas vá passar um mau bocado. Sempre precisou de mais e mais energia [para se colidirem partículas nos aceleradores], mas haverá uma altura em que, no planeta, é impossível dar essa energia toda. Teremos de olhar lá para fora e dar atenção a outro tipo de “aceleradores”. Creio que a física deste século está nos astros e na física gravitacional. Há muito por entender e muitas fontes de energia onde procurar informação. Precisamos de telescópios bons e mentes brilhantes. Os buracos negros estão entre os objectos mais exóticos do Universo? Ou nem por isso, e despertam é curiosidade nas pessoas?... São, sem dúvida, exóticos para a nossa experiência do dia-a-dia. São um “nada” que consegue curvar de tal forma o tiquetaque dos relógios que nada sai de dentro deles. Creio que o que desperta a curiosidade é o facto de desafiarem os nossos conceitos de tempo e espaço, e o facto de representarem um fim quase definitivo para tudo que engolem. E é preciso relembrar que eles existem. Teve duas superbolsas do Conselho Europeu de Investigação (ERC), em 2010 e 2015, para estudar as equações na teoria da relatividade geral. O que quer dizer estudar as equações de Einstein? O meu trabalho é pensar sobre o que nos rodeia, para percebermos, todos nós, o nosso Universo um pouco melhor. A minha investigação consiste em perceber a teoria de Einstein e o que ela prevê. É fácil de enunciar, é difícil de fazer, porque as equações de Einstein descrevem muita coisa: buracos negros, ondas gravitacionais, estrelas de neutrões, etc. As equações da relatividade são tremendamente complicadas de resolver e têm muitas soluções — tal como a “fórmula” da biologia dá origem a muitos seres vivos diferentes. Tome-se o exemplo do buraco negro no centro da nossa galáxia, que é fundamental para a vida da galáxia, para a formação de estrelas e até para o futuro longínquo da galáxia. Dedico-me a tentar perceber estes buracos negros, como crescem e como nos podem ensinar algo acerca da sua vizinhança. E estas superbolsas são fulcrais. A importância e a qualidade da ciência em Portugal tem crescido, muito rapidamente, nas duas últimas décadas. Os cortes orçamentais fizeram regredir a situação. A última bolsa do ERC vai permitir-me manter um
grupo de grande qualidade sem preocupações quanto aos cortes ou à política de contratações, durante os próximos cinco anos. E vai permitir-me actualizar o nosso supercomputador, que usamos intensamente para resolver as equações de Einstein. Esse supercomputador chama-se Baltasar Sete Sóis, nome inspirado em Baltasar Mateus, o SeteSóis, personagem de José Saramago em Memorial do Convento. Por que deu esse nome à máquina? O nome foi discutido com a minha mulher, queria que fosse algo com significado. Ora o Baltasar Sete Sóis é um personagem que ajuda o padre Bartolomeu Lourenço a construir o seu sonho, que é a Passarola, uma máquina voadora. Gostámos desta ideia, de o Baltasar ajudar a construir um sonho, especialmente da forma apaixonada com que as personagens do livro o faziam. Posso dizer, ao fim de cinco anos, que o Baltasar já construiu muitos sonhos! Neste passeio que estamos a fazer, houve mais um abalo, em 1998, na nossa visão do Universo. Não só o Universo se está a expandir como o está a fazer cada vez mais depressa. Por que é que isto surpreendeu tanto os cientistas? Bom, por várias razões, a começar pelo facto de que a expansão acelerada não estava no “menu”. E porque a descrição mais simples desta aceleração é uma energia escura, ou constante cosmológica (a mesma que o Einstein tinha introduzido por preconceito), que ainda hoje não sabemos bem explicar. Já agora, esta “reciclagem” da constante cosmológica não significa que Einstein estava, afinal de contas, certo. Isso é apenas uma coincidência, mas mostra que o homem tinha uma intuição danada para resolver problemas. O cenário mais consensual é o da expansão eterna do Universo. Como será o Universo com 26.600 milhões de anos, ou seja, com o dobro da sua idade actual? Esse futuro é negro? O futuro é escuro e frio! Essa pergunta é tramada, porque exige fazer alguns cálculos complicados. Mas deixe-me descrever o que vai acontecer, e como vamos ficar cada vez mais sós. Daqui a cerca de 500 milhões de anos, o Sol estará tão luminoso que a temperatura na Terra vai subir cerca de dez graus. O homem vai provavelmente começar a pensar, a sério, em mudar-se para outros planetas no sistema solar ou na galáxia antes disto. De qualquer forma, daqui a cerca de 4000 milhões de anos a nossa galáxia, a Via Láctea, vai colidir com outra, a de Andrómeda. Durante este processo, que levará muito tempo, algumas simulações mostram que a Terra vai passar muito perto do centro desta galáxia combinada, antes de ser ejectada para fora. Vamos perder a nossa querida galáxia, mas por essa altura a Terra já não terá humanidade [o Sol estará a morrer daqui a 5000 milhões de anos]. Daqui a 100.000 milhões de anos, todo o Grupo Local [umas 40 galáxias, incluindo a nossa] será uma única galáxia e o Universo já terá arrefecido e expandido de tal forma que esta única galáxia estará isolada do resto do Universo. Lentamente, estrelas deixarão de se formar. Algum tempo depois, os protões e neutrões desintegrar-se-ão. Qualquer vida que pudesse existir morre. Como puro exercício especulativo, podemos continuar: a matéria que existe vai cair para dentro dos buracos negros, e o Universo vai ter apenas buracos negros gigantes. Finalmente, estes vão-se evaporando lentamente. Não faço ideia do que acontece a seguir neste Universo. Dito assim, parece um cenário desolador. Poderemos pensar em nós como aquela luzinha trémula que surgiu no meio da noite e se apagou, mas foi bonito enquanto durou. Esta altura onde estamos agora é a melhor para estudar o Universo, agora já evoluiu bastante? É. Se fosse mais cedo, era impossível, porque não teria o tipo de estrutura que tem. Não haveria planetas do tipo da Terra a orbitar estrelas. Nem nós estaríamos cá nem alguma forma de vida vagamente semelhante à nossa. A questão é: há mais alguém a observá-lo e há ligeiramente mais tempo? Acha que há? Acho que sim. A probabilidade de haver vida nalguma ponta do Universo é imensa. O que não quer dizer que esses seres vivos sejam necessariamente parecidos connosco, física ou intelectualmente.
1991
>>>>>>>>>>>> A1 Em 1991, Portugal fica mais pequeno e mais rapidamente transitável: é finalmente concluída a construção da Auto-estrada entre Lisboa e o Porto, que tinha sido iniciada ainda em 1961 com o troço Lisboa Vila Franca — ou seja, 30 anos para acelerar o percurso de 330 quilómetros. Onze anos depois (2002), o país tornou-se ainda mais pequeno com a inauguração dos 240 quilómetros da A2 entre Lisboa e Albufeira, iniciada em 1996. S.J.A.
Este ano, o último dia de Junho vai ter mais um segundo Por Ana Gerschenfeld
E
ste ano, no último dia de Junho ou no primeiro de Julho (dependendo do fuso horário do local), os relógios do mundo inteiro — e em particular os dos computadores — vão ter de parar durante um segundo. Tal foi a decisão, tornada pública há dias, dos “guardiões da hora” a nível mundial: o Gabinete Internacional de Pesos e Medidas, com sede em Sèvres, nos arredores de Paris. Porquê? Porque a hora é hoje dada por relógios muito precisos e estáveis, ao passo que a rotação da Terra é irregular e está a ficar cada vez mais lenta. Isso obriga, de vez em quando, a fazer acertos. No início, havia a noite e o dia, a meia-noite e o meiodia. E as horas contavam-se partindo esse ciclo natural em intervalos regulares: horas, minutos e segundos. A partir de observações astronómicas, os astrónomos árabes tinham subdividido, já na Idade Média, o dia solar em 24 horas, as horas em 60 minutos e os minutos em 60 segundos. E, com base nisso, em 1874, o segundo fora cientificamente definido como um sexagésimo de sexagésimo de vigésimo quarto da duração média do dia solar. Um dia “civil” durava portanto 86.400 segundos. Só que, pouco depois, descobriu-se que o período de rotação da Terra não é assim tão regular: varia de forma imprevisível sob o efeito das marés, dos ventos, dos terramotos. Seguiram-se então definições do segundo com base no ano solar, que também não se adequaram à crescente necessidade de medir o tempo de forma cada vez mais precisa. Em 1955, foram inventados os relógios atómicos e, uns anos mais tarde, redefiniu-se o segundo com base na frequência da radiação electromagnética emitida por certos átomos. Este segundo “atómico” tinha a vantagem de ser bastante próximo do segundo oficial “natural” (baseado no dia solar) definido em 1874. Hoje em dia, os segundos atómicos servem para determinar a “hora atómica internacional” (TAI) graças a uma rede de centenas de relógios atómicos, espalhados pelo mundo — e entre os quais o Gabinete Internacional de Pesos e Medidas calcula uma hora média. Graças a diversos avanços técnicos, as “batidas” destes relógios atómicos têm-se tornado cada vez mais regulares, com os de última geração a demorarem milhões de anos a derivar alguns segundos. E o aperfeiçoamento não pára aí: em Fevereiro, cientistas japoneses anunciaram na revista Nature Photonics ter obtido relógios atómicos que teriam derivado menos de um segundo desde o Big Bang, há 13.800 milhões de anos. Em 1972, como os relógios atómicos respondiam de facto à necessidade de precisão no cálculo da hora global (nomeadamente nas redes de telecomunicações), a hora oficial na Terra, que até lá tinha sido medida em segundos “solares”, passou a ser medida em segundos “atómicos”. Entrou assim em vigor a escala horária UTC (Tempo Universal Coordenado). Mas surgiu então um outro problema: é que a rotação da Terra não tem parado de abrandar — em cerca de 1,7 milissegundos por século nos últimos séculos — e, se nada fosse feito, a hora UTC, agora medida em segundos atómicos, iria afastar-se cada vez mais da hora solar “real”. Na altura, ninguém desejava, por assim dizer, que acabasse um dia por “estar sol em plena noite” (mesmo que isso acontecesse daqui a milhares de anos). A hora UTC, que é de facto a norma através da qual o mundo acerta hoje os relógios e a hora civil, encontra-se sob a alçada da União Internacional de Telecomunicações. E, face ao problema do abrandamento da rotação
YULIA DARASHKEVICH/REUTERS
terrestre, aquela entidade recomendou então que a hora “oficial” dada pelos relógios — a hora UTC —, nunca se poderia afastar em mais de 0,9 segundos da hora dada pelo “relógio” natural da rotação da Terra. Foi justamente por essa razão que começou a ser preciso acrescentar segundos adicionais de vez em quando à hora UTC. Desde 1972, 25 destes “segundos intercalares” foram assim acrescentados. E este ano, mais uma vez, vai ser preciso fazer o acerto dos relógios. Diga-se, já agora, que a hora atómica internacional TAI está actualmente 35 segundos adiantada em relação à hora solar, uma vez que este tipo de acertos entre a hora atómica e a hora solar já tinha começado a ser feito nos anos 1960, antes da instituição da actual hora UTC.
Parar um segundo Como é que o salto de um segundo se vai processar? A 30 de Junho, quando forem 00:59:59 horas (hora UTC), todos os relógios do mundo que usam o sistema UTC terão de parar por um segundo — ou de marcar um segundo a mais (um sexagésimo primeiro segundo, com os relógios a dar 00:59:60 horas) — antes de passar para a hora seguinte. Isto acontecerá antes da meia-noite nas Américas, após a meia-noite na Europa — e mesmo depois do nascer do sol de 1 de Julho em países como o Japão ou a Austrália. Simples? Nem por isso. Acontece que os grandes sistemas informáticos — como os serviços de reservas das companhias aéreas ou os servidores das grandes empresas da Internet — vão ter de marcar o passo. Ora, em 2012, quando da introdução do último segundo intercalar, vários destes sistemas tiveram problemas para “digerir” o segundo e acabaram por ir abaixo, alguns durante várias horas. “Vamos ter de obrigar os nossos relógios a aceitar um segundo a mais num dado minuto”, explicava em finais de 2011 à revista New Scientist Felicitas Arias, astrónoma argentina e directora do Departamento do Tempo no Gabinete Internacional de Pesos e Medidas. E acrescentava: “Estamos a usar um sistema [horário] que interrompe o tempo, quando a característica do tempo é, pelo contrário, a continuidade.” A seguir ao segundo intercalar de 2012, servidores da companhia aérea australiana Qantas ou de sites como Linkedin, Mozilla, FourSquare ou Reddit foram atingidos por um bug de programação, que até lá tinha permanecido latente (e que portanto ninguém tinha detectado), no sistema operativo Linux utilizado por aqueles computadores. Outros servidores, que utilizavam Java (o célebre software da Oracle), também foram afectados. Pode isto tornar a acontecer? Ninguém sabe ao certo. Mas na sequência dos problemas com que se defrontou por ocasião do segundo intercalar introduzido em 2005, o gigante online Google divulgou uma forma de contornar o problema, como explicava há dias a CNN online. Trata-se de ir acrescentando alguns milissegundos aos relógios dos seus servidores ao longo do dia fatídico — “o suficiente para evitar o desastre no fim do dia, mas que [por serem apenas uns milissegundos] não fazem disparar os alarmes.” Porém, isso também não evita todos os incidentes. Há anos que a União Internacional de Telecomunicações está a considerar a hipótese de acabar, pura e simplesmente, com os segundos intercalares, deixando a hora UTC afastar-se da hora solar. Em Novembro deste ano, a questão tornará a ser abordada no congresso desta organização em Genebra. Mas o facto é que não há consenso entre os especialistas. Por um lado, há quem argumente que, com o passar dos séculos, a frequência de introdução de segundos intercalares vai aumentar até se tornar incomportável. Por outro, há quem alerte para o facto que abolir os segundos intercalares fará com que a hora civil acabe por perder a sua ligação com o tempo solar. Ainda segundo a New Scientist, este último argumento apresenta uma visão exagerada das coisas, uma vez que a hora legal em vigor nos diversos países já se encontra desfasada, por vezes de várias horas, em relação à hora solar — o que significa que o Sol não está nem perto do zénite quando os relógios assinalam o meio-dia. Por comparação, a abolição do segundo intercalar levaria, daqui por cem anos, a uma diferença de apenas um minuto entre a hora atómica e a hora solar.
Milissegundos que valem milhões No mundo de alta velocidade dos algoritmos financeiros, pouco tempo significa muito dinheiro Por João Pedro Pereira
1992
>>>>>>>>>>>> Salvar a Terra Em 1992, o Rio de Janeiro é o palco da Cimeira da Terra, a segunda conferência mundial sobre meio ambiente. A primeira realizara-se em Estocolmo em 1972. No Rio, 108 países comprometeram-se em travar a degradação do planeta e o consumo de recursos naturais, assim como encontrar modelos de desenvolvimento sustentável, ecologicamente equilibrados. Do Rio saíram convenções sobre biodiversidade, desertificação e clima. Esta última conduziu, em 1997, ao Protocolo de Quioto, no Japão, em que os países concordam em reduzir as emissões de gases com efeito estufa, evitando o aquecimento global. S.J.A.
A
o contrário dos humanos, os computadores não têm esperança, aquela disposição de espírito que leva a crer que algo acontecerá (ou deixará de acontecer), mesmo quando a informação disponível aponta em sentido contrário. Os algoritmos desenvolvidos para analisar uma imensa quantidade de dados e tomar uma decisão de compra ou venda de um produto financeiro não foram programados para cruzar os dedos e esperar que o pior passe. Os computadores seguem à risca as instruções com que foram programados e fazem-no em minúsculas fracções de segundo. Por vezes, isto leva a situações inesperadas. Um mini-crash dos mercados em 2010 ficou na história como um exemplo dos riscos colocados pelas transacções feitas por algoritmos, em particular por aquilo a que se chama high frequency trading (transacções de elevada frequência). É uma prática que envolve grandes quantidades de transacções automatizadas, feitas em curtíssimos períodos de tempo e onde a estratégia é normalmente ter um pequeno ganho em cada uma das múltiplas compras e vendas. A 6 de Maio daquele ano, o Dow Jones (o índice bolsista que agrega as cotações de grandes empresas como a Microsoft, a Coca-cola e a IBM) estava às 14h47 minutos de Nova Iorque a perder mais de 9%. A maior parte desta queda, invulgarmente grande, acontecera nos minutos anteriores. Ainda antes das 15h, as cotações já tinham recuperado boa parte das perdas. Foram precisos meses para que as autoridades regulatórias conseguissem explicar o que se passara: o crash tinha sido causado por computadores a comprarem e venderem uns aos outros, numa sucessão imprevisível de eventos. A bola de neve começou com uma empresa que usou um programa de computador para vender 4,1 mil milhões de dólares de contratos de futuros, independentemente do preço de venda. A maior parte foi rapidamente comprada por computadores de high frequency trading. Quando os algoritmos daqueles computadores consideraram que já tinham comprado demasiado, começaram a vender muito rapidamente. Em escassos 14 segundos, os contratos trocaram de mãos 27 mil vezes. Com uma venda maciça a decorrer, outros investidores começaram a comprar os contratos a preços reduzidos, mas a vender acções que tinham em mercados como a Bolsa de Nova Iorque. Por seu turno, alguns algoritmos detectaram a rápida sucessão de compras e vendas e pararam de transaccionar. O resultado foi um crash de alguns minutos, que terminou quando um algoritmo, desta vez do mercado onde eram trocados os contratos de futuros, interveio e suspendeu as negociações durante cinco segundos.
Ser o primeiro Nas rapidíssimas transacções algorítmicas de alta fre-
quência, ser o primeiro a ter acesso a informação relevante é uma vantagem que se mede em milésimos de segundo (ou, às vezes, até menos). A proximidade física às fontes de informação e aos mercados onde as acções e demais instrumentos são transaccionados é um bem cobiçado, já que permite encurtar o tempo que os dados e as ordens de compra e venda demoram a percorrer (normalmente através de cabos de fibra óptica) a distância entre computadores. “Cada microssegundo de vantagem conta. Ligações mais rápidas de dados entre bolsas minimizam o tempo que se demora a fazer uma transacção; as empresas lutam para ver qual é o computador que pode ser colocado mais próximo”, explica, num artigo recente para a revista Nature, o físico Mark Buchanan, autor do livro Forecast: What Physics, Meteorology and the Natural Sciences Can Teach Us About Economics. Buchanan argumenta que as transacções ultra-rápidas tem algumas vantagens. Por um lado, diz, tornou-se mais barato investir, já que as comissões cobradas aos investidores caíram com esta prática. Por outro, os preços dos diferentes instrumentos financeiros ajustamse mais rapidamente. “Em 2000, eram precisos, em média, minutos para que a mudança de preço num instrumento se repercutisse nos outros. Agora, demora menos de dez segundos. Nem toda a gente gosta disto: uma sincronização rápida elimina as oportunidades de lucro das empresas que fazem dinheiro por conhecerem os desequilíbrios momentâneos de preços”. Associada às transacções de alta frequência está também a prática de colocar no mercado sucessivas ordens de venda, a preços progressivamente mais altos, com o objectivo de descobrir que ordens são aceites e assim saber o preço máximo que alguém está disposto a pagar — estas ordens são dadas e canceladas em fracções de segundo. O prémio Nobel da Economia Joseph Stiglitz está no campo dos detractores deste tipo de práticas. Num discurso no ano passado, apelou a um maior escrutínio, disse ser céptico quanto ao “valor social” das transacções de elevada frequência e classificou-as como um jogo de soma negativa. “Porque o retorno privado pode exceder o retorno social, haverá um excessivo investimento na velocidade de aquisição de informação”, observou o economista. Em 2013, foi tornado público que a agência Reuters vendia, a um grupo restrito de investidores, um indicador sobre o consumo nos EUA dois segundos antes de o divulgar à generalidade dos seus clientes (que, por sua vez, o recebiam cinco minutos antes do público em geral). A vantagem podia chegar a dois segundos e meio, já que o contrato previa uma margem de erro de meio segundo. Aquele indicador, que influencia mercados, é elaborado pela Universidade do Michigan. Para ter acesso antecipado à informação e a poder revender, a Reuters pagava então à universidade um milhão de dólares por ano, mais comissões.
P
Judy Wajcman “Temos mais tempo mas não sentimos que o temos” Para Judy Wajcman, professora de sociologia na London School of Economics e autora de Pressed for Time, está a criar-se uma cultura na qual o tempo de lazer é desvalorizado Entrevista João Pedro Pereira e Luís Villalobos
rofessora de sociologia na London School of Economics, Judy Wajcman publicou recentemente um livro onde analisa a relação das tecnologias e a forma como sentimos o tempo. Em Pressed for Time — The acceleration of life in digital capitalism, sublinha que as pessoas não são reféns das tecnologias; logo, que não são estas as culpadas de sentirmos que andamos sempre a correr. A obra, que evita o facilitismo das ideias a “preto e branco”, evidencia factos, como estarmos a viver uma cultura que valoriza o estar atarefado e a hiperprodutividade. Muitas vezes, com o devido contexto, levanta mais questões do que dá respostas. Resumindo: faz pensar, algo que requer tempo. No seu livro refere que há uma espécie de paradoxo, com as pessoas a culparem os produtos tecnológicos pela pressão, pela noção de falta de tempo, mas, ao mesmo tempo, é a esses mesmos produtos que se recorre para tentar aliviar essa pressão. A tecnologia está, de facto, a acelerar as nossas vidas? A tecnologia que temos reflecte a sociedade, não a molda. E isso é argumento contra a ideia de que somos vítimas da tecnologia. A hiperactividade não existe por causa dela. A tecnologia só existe a partir do momento em que é fabricada, e lhe damos um sentido. Mas acha que não estamos a usar tecnologia da forma mais correcta? Uma questão passa pelo facto de a tecnologia estar a ser concebida, de uma forma geral, em Sillicon Valley, por empresas cujo objectivo é o lucro. Mesmo que digam que estão a querer transformar o mundo num sítio melhor e que estão a construir estas tecnologias a pensar em nós, o seu objectivo é conceber produtos que dêem dinheiro. Os cidadãos deviam estar mais envolvidos em todo esse processo de criação e concepção. Isto para termos diferentes produtos tecnológicos, mais afastados da noção de que mais velocidade é igual a progresso, que melhores vidas dependem da banda larga mais rápida, de que é isso que queremos, em vez de se pensar, de facto, em ajudar a termos melhores vidas e que problemas sociais é que queremos resolver. Como é que os cidadãos podem estar mais envolvidos nesse processo? Primeiro, há um problema no facto de os engenheiros que estão em Sillicon Valley serem, de uma forma geral, muito jovens, predominantemente brancos, embora haja alguns indianos, e do sexo masculino. Se houvesse mais diversidade, é provável que tivéssemos tecnologias diferentes. Depois, os governos devem ter um papel mais activo. Devem estar mais envolvidos na concepção dos produtos tecnológicos e facilitar o tal envolvimento dos cidadãos, nomeadamente através da educação ligada à área de ciência e tecnologia. Devia haver mais organismos onde se discutisse, de forma colectiva, os caminhos da investigação e desenvolvimento dos produtos. É sabido que muita da investigação e muito do desenvolvimento usados em Sillicon Valley têm por base tecnologia militar, como os drones, que podem entregar pizzas. E podia-se estar a pensar em áreas como a energia, problemas sociais, em vez de pensar: “Há esta tecnologia dos drones, vamos usar de forma comercial.” Considera que é errada a ideia de ligar a tecnologia a algo que tem de ser mais rápido? Sim, quando se pensa que o melhor motor de pesquisa é o que dá resultados de forma mais veloz, mas um outro motor de pesquisa, menos rápido, com diferentes algoritmos, pode dar outro tipo de respostas ligadas à informação que se procura, com outro tipo de conhecimento. As pessoas não se questionam sobre porque é que um determinado algoritmo resulta num tipo de informação e não
noutro. E o segredo mais bem guardado do mundo é o algoritmo do Google. Falou do papel das empresas. E em relação ao papel dos consumidores, dos cidadãos? Porque a forma como utilizamos a tecnologia diz algo sobre nós. Quando as pessoas incorporam essa necessidade de velocidade, o que é que diz delas próprias? No meu livro tento fugir à polarização, de que algo é totalmente bom ou totalmente mau. De que o problema se resolve com uma desintoxicação tecnológica. Numa sociedade que valoriza a velocidade, as pessoas tendem a usar a tecnologia nesse sentido. Quando se olha para os telemóveis, para smartphones, por exemplo, as pessoas querem estar em estrito contacto com a família e com os seus amigos. Quando os telemóveis surgiram, pensei que era mais uma ferramenta de trabalho. Como antiga marxista que sou, imaginei logo que seria uma forma de intensificar o trabalho. Mas todas as pessoas compraram telemóveis, de uma forma tão rápida, e verificou-se que querem estar em contacto com a família e amigos quando estão à espera do autocarro, por exemplo, para saber se é preciso ir ao supermercado ou se as crianças estão bem. Mas os telemóveis vieram intensificar o trabalho, certo? Sim, é verdade. Mas não se pode pensar no problema do tempo e das pessoas como uma questão individual. É um problema colectivo, ligado à forma como a sociedade está organizada: espera-se uma resposta rápida, que a pessoa está disponível, etc. Tem de se lidar com essas questões de forma colectiva, alterando as práticas do local de trabalho. Em termos históricos, os telemóveis são algo muito recente, tal como o email, e já usamos o email de forma diferente da que fazíamos há dez anos. Com o tempo, as pessoas vão alterar a forma como utilizam as diferentes tecnologias. E essa alteração virá no sentido de abrandar o ritmo na forma como se usa os telemóveis, desligando mais vezes ou não atendendo todas as chamadas? Não sei se é uma questão de mais ou menos velocidade, mas antes de usar as tecnologias para ter tempo para as coisas que queremos fazer. Em muitas famílias, os dois membros do casal trabalham. Face ao passado, a articulação entre os membros da família é mais complicada. E o telemóvel funciona para organizar e proporcionar tempo para estar com o seu parceiro ou com os seus filhos. Pode-se chamar tempo de qualidade, o tempo que se pretende ter. Diz que não podemos olhar para o tempo apenas como as 24 horas do relógio, mas também como espaço, e que há uma dessincronização entre as pessoas. Por exemplo, entre o pai e a mãe, que estão cada um no seu trabalho, e o filho, que está na escola. Isto contribui para a sensação de estarmos sempre com pressa? Uma das coisas de que se fala muito é de as fronteiras entre lazer e trabalho estarem a mudar, e julgo que isso é verdade. A discussão tem sido sobre como a tecnologia levou o tempo de trabalho a colonizar o tempo em casa e o tempo de lazer. Mas, por outro lado, a tecnologia permite que as pessoas, quando estão no trabalho, estejam em contacto com a família e os amigos. É um resultado do capitalismo industrial termos uma separação rigorosa entre trabalho e lazer. Mas talvez dentro de cinquenta anos seja mais normal não haver esta separação, poder passar algum tempo no trabalho a fazer compras ou outras coisas na Internet, e compensar isso com trabalho à noite. Há um conceito de flexibilidade — que é a flexibilidade dos empregadores — que é estarmos sempre disponíveis para trabalhar. E há a flexibilidade que nós queremos, que é termos mais controlo para organizar os diferentes aspectos das nossas vidas. A tecnologia pode tornar esse tipo de flexibilidade possível na generalidade dos países? Depende do que forem as condições de trabalho e essas não são resultado de smartphones e gadgets. A questão tem muito mais que ver com a desregulação dos mercados de trabalho. A grande intensidade do multitasking no
A tecnologia que temos reflecte a sociedade, não a molda. E isso é argumento contra a ideia de que somos vítimas da tecnologia
local de trabalho ajuda à sensação de estarmos pressionados pelo tempo? O multitasking é um mito. Os estudos mostram que as pessoas fazem as coisas numa sequência rápida, em vez de estarem literalmente a fazer várias coisas ao mesmo tempo. É mais fácil queixarmo-nos de que temos a caixa de correio cheia do que falar dos outros problemas de trabalho. Sou céptica em relação à justificação das interrupções causadas pela tecnologia. No livro diz que é possível comprar tempo. A que ponto há uma desigualdade de tempo provocada por uma desigualdade de riqueza? Há uma grande desigualdade. E, mais uma vez, não poria a tecnologia no centro disso. Sim, é possível comprar serviços, comprar o trabalho de outros. Em termos de poupar tempo, o que as pessoas ricas fazem é comprar muito trabalho dos outros. Uma das coisas de que vale a pena falar é de como o futuro com que Silicon Valley sonha para todos nós é um mundo com muitos assistentes pessoais nos telemóveis, como se todos vivêssemos em classes altas com escravos, mas com os escravos a serem máquinas. É uma fantasia antiga. Mas a maioria dos robôs está em fábricas de carros, está a pintar a spray, o que está a ser automatizado não são os serviços prestados por humanos. A promessa antiga da inteligência artificial e da robótica é que haverá mais inteligência e não teremos de fazer várias coisas, como cuidar dos mais velhos. Mas a inteligência artificial não está sequer perto disso. Que tipo de fantasia é esta de querer ter escravos automáticos? Não é um desejo que eu tenha. Estamos hoje a trabalhar mais horas, apesar de haver muitas tarefas automatizadas. Mas houve coisas, como a máquina de lavar, que nos trouxeram mais tempo. Temos mais tempo de lazer do que há cem anos. Do que precisamos é de um equilíbrio? Com tecnologias como a máquina de lavar, o que acontece é que os padrões se alteram quando elas aparecem. Hoje lavamos mais vezes a roupa. Temos mais tempo, mas não sentimos que o temos. Acho que esse é o paradoxo. Em parte, tem que ver com uma cultura que valoriza o estar atarefado e a hiperprodutividade. Os heróis de hoje são o Steve Jobs, o Ted Turner [magnata dos media americano], os heróis empreendedores... Li o perfil do Jony Ive [vicepresidente da Apple] na New Yorker. Falam sempre de
ser obsessivos, maníacos, de trabalhar 24 horas por dia. Há cem ou 200 anos, ter tempo para lazer era ter estatuto. Esse estatuto foi substituído por estar atarefado? Penso cada vez mais nisso, e julgo que sim. Um colega disse-me: “Imagina que eu digo que não tenho assim tanto email e que não tenho assim tanto para fazer. Toda a gente dirá que sou um falhado.” É uma americanização do estilo de vida. Está a criar-se uma cultura em que isso é valorizado e em que o tempo de lazer é desvalorizado. Consegue determinar o ponto em que começámos a desvalorizar o lazer e talvez a sobrevalorizar o trabalho? Um colega escreveu um trabalho sobre a antiga aristocracia, que se orgulhava de ter uma vida de lazer, dedicando-se à música, à caça. Tem que ver com o capitalismo industrial. As pessoas interiorizaram que o trabalho é uma coisa boa em si. O Ive, o tipo da Apple, disse que, mesmo quando era novo, estava sempre a trabalhar! Os desempregados hoje são vistos apenas como indolentes, preguiçosos. Na sua opinião, o trabalho é uma coisa boa em si mesma? Tenho de dizer que estou a repensar isso. Como uma marxista, sempre alinhei com a ideia de que não havia nada mais criativo e mais definidor de identidade. Talvez nos estejamos a focar demasiado no trabalho e haja mais coisas para fazer com o nosso tempo. Saber se podemos trabalhar menos, consumir menos e ter uma vida diferente é uma discussão que ainda não estamos a ter. A chave para isso é a redistribuição do trabalho, de forma a não haver uma sociedade em que há profissionais a trabalharem imensas horas, e muitas pessoas desempregadas e sem trabalho que chegue. Escreveu que pode ser que muitos de nós tenhamos mais tempo, mas não o tipo certo de tempo. O que quer dizer com isto? Estou a referir-me a tempo com outras pessoas. Há um estudo interessante que diz que tanto desempregados como empregados se sentem melhor quando o fimde-semana está a chegar, e que se sentem pior na segunda-feira de manhã. Isto acontece porque o tempo de socialização é aos fins-de-semana. Mesmo os desempregados sentem isto, porque o fim-de-semana é a altura em que têm tempo livre ao mesmo tempo que os outros. É uma questão de ter tempo social, não apenas tempo em abstracto.
1994
>>>>>>>>>>>> Mandela Presidente A 27 de Abril de 1994, o icónico líder de etnia xhosa e do clã Madiba, Nelson Mandela, (18/07/1918-05/12/2013), é eleito Presidente da África do Sul, a cuja democratização dedicou a vida. Foi um momento marcante na história do mundo, o da eleição do primeiro Presidente negro da África do Sul, Estado que fora o expoente do apartheid, regime segregacionista, que o antigo líder do ANC, depois de 27 anos de prisão (1962-1990), ajudou a desmantelar em conjunto com o então Presidente branco, Frederick de Klerk. Ambos receberam em conjunto o Prémio Nobel da Paz, em 1993. S.J.A.
RUI GAUDÊNCIO
1995
>>>>>>>>>>>> Outro planeta A ficção tinha sempre projectado este desejo da humanidade: o de não estarmos sós no Universo. Em Julho de 1995, foi dado um salto em que a realidade se aproximou desse patamar, quando os cientistas Michel Mayor e Didier Queloz, do Observatório Astronómico de Genebra, descobriram pela primeira vez que na nossa galáxia existia um planeta fora do sistema solar — ou seja, que a 50 anos-luz da Terra, na órbita de outra estrela, Pégaso 51, um planeta gravitava. Desde então, já vai em 1885 o número de planetas descobertos. S.J.A.
O Relógio do Apocalipse quer voltar a fazer medo Por Clara Barata
1998
>>>>>>>>>>>> Fim do IRA A 10 de Abril de 1998, o acordo de paz de Sexta-Feira Santa entre a Irlanda do Norte protestante e a República da Irlanda católica acelera o fim das acções terroristas de exércitos independentistas na Europa. É o primeiro passo para o fim do IRA (Exército Republicano Irlandês), católico, que em 2005 entrega as armas, depois de três décadas de acções terroristas. Em 2011, é a vez da ETA (Pátria Basca Liberta), ao fim de meio século de existência, pôr fim às suas acções armadas e declarar um cessar-fogo permanente. S.J.A.
24h00
Como se moveram os ponteiros O Relógio do Apocalipse é uma forma de ilustrar o quão perto estamos de uma catástrofe nuclear
1950
1960
F
altam três minutos para a meia-noite no Relógio do Apocalipse dos Cientistas Atómicos. Só estivemos tão perto da catástrofe em 1984, quando o confronto nuclear entre os Estados Unidos e a Rússia parecia tão provável que Sting compôs uma música com a letra “I hope the russians love their children too” e nos anos de 1953 e 1949: foi nessa altura que os EUA decidiram construir a bomba de hidrogénio, mil vezes mais poderosa do que as que foram lançadas sobre as cidades japonesas de Hiroxima e Nagasáqui, no fim da II Guerra Mundial. “Alterações climáticas sem controlo, modernização global das armas nucleares e arsenais grandes de mais representam ameaças extraordinárias e inegáveis à existência continuada da humanidade, e os líderes mundiais não têm agido com a velocidade ou na escala que se exigia para proteger os cidadãos da catástrofe potencial”, disseram em Janeiro os cientistas herdeiros da organização fundada pelos que construíram a primeira bomba nuclear, o projecto Manhattan. E, no entanto, esta avaliação drástica, feita depois do ano mais quente desde que começaram a ser feitos registos meteorológicos — segundo a agência espacial NASA e a Agência para os Oceanos e a Atmosfera norteamericana (NOAA) —, foi noticiada amplamente, mas sem criar grandes sobressaltos. “Recebemos muito mais atenção do que nos últimos anos e ficámos muito satisfeitos”, disse ao PÚBLICO Rachel Bronson, directora da revista Bulletin of the Atomic Scientists, criada em 1947, por cientistas ligados ao projecto Manhattan, e que é responsável por publicar e divulgar o Relógio do Apocalipse. “Ficámos com a sensação de que há um aumento do interesse nestes assuntos. Talvez pelo agudizar das relações entre os Estados Unidos e a Rússia, talvez por causa das negociações com o Irão, ou por causa da Coreia do Norte.” E, no entanto, é difícil tornar urgente o risco de uma catástrofe, mas que não se sabe quando acontecerá. Cria fadiga se nos estão sempre a recordar de um perigo que nunca mais se torna realidade. Como escreveu no Guardian Julian Baggini, escritor e fundador da revista The Philosopher’s Magazine, a propósito do último acerto do Relógio do Apocalipse, “esteja ou não correcta a nossa avaliação dos riscos actuais do mundo, não são os perigos que os cientistas consideram os maiores os que nos preocupam mais.” “Sim, esse sempre foi o desafio de comunicar o risco de um confronto ou de um acidente nuclear: a probabilidade é reduzida, mas o impacto é muito elevado. E
1970
1980
1990
as alterações climáticas são efeitos poderosos que só sentiremos a longo prazo. É mais difícil de responder a isto do que a algo que aconteceu ontem”, reconhece Rachel Bronson. “É difícil alguém acordar e sentir-se assustado com estas coisas. Mas acho que a divulgação do relógio cria um momento em que as pessoas podem pensar e falar disto.” A 22 de Janeiro, quando o Bulletin of the Atomic Scientists divulgou o último acerto do Relógio do Apocalipse, 400 mil pessoas acederam ao site (www.thebulletin.org) da organização quase imediatamente, contou Rachel Bronson. “Foi muito mais do que nos últimos anos. A questão nuclear está a tornar-se algo mais próximo. Sentimos que há mais interesse do que há dez anos.” O Relógio do Apocalipse estava na capa do primeiro número do Bulletin, em 1947, dois anos depois de os EUA terem bombardeado Hiroxima e Nagasáqui e o mundo ter visto os efeitos da nova arma que usava a energia explosiva da cisão dos átomos. O avanço ou recuo dos ponteiros do relógio é decidido por um painel de cientistas, especialistas em nuclear, desarmamento, armas, alterações climáticas, que analisam a situação mundial e fazem uma avaliação de quão perto a humanidade está de poder aniquilar-se a si própria.
Einstein na origem Nesse primeiro ano, faltavam sete minutos para a meianoite; 1991, após a queda do Muro de Berlim, e de os EUA e a ainda União Soviética assinarem o Tratado para a Redução de Armas Estratégicas (nucleares), foi o ano em que os cientistas, e o mundo, estiveram mais optimistas: o ponteiro dos minutos recuou até às 23h43. Há um claro desejo de intervenção política dos cientistas. “A mudança dos ponteiros do Relógio do Apocalipse é uma forma de concentrar a atenção das pessoas”, explica Bronson. “É um mecanismo grosseiro, algo discutível, que gera discussão: ‘Porque é que acelerámos o relógio?’, ‘Devíamos ou não ter movimentado os ponteiros?’. São cientistas que acertam o relógio e, no fundo, lançam uma conversa com o público sobre aquilo que nos ameaça a todos”, defende. A intervenção política dos cientistas teve origem nas cartas escritas por Albert Einstein e pelo físico húngaro Leo Szilard ao Presidente norte-americano Franklyn Delano Roosevelt, a partir de 1939, alertando para os esforços do regime nazi para construir uma bomba atómica, e incentivando os EUA a construí-la primeiro. E, depois da guerra, no que ficou conhecido como o Manifesto Russell-Einstein, em 1955: um apelo aos políticos a “compreender, e a reconhecer publicamente, que os seus objectivos não podem ser satisfeitos por uma guerra mundial”. O filósofo Bertrand Russell foi o impulsionador deste manifesto, que acabou por ser divulgado já depois da morte de Einstein, mas num momento em que a ameaça das bombas de Hiroxima e Nagasáqui se tinha agigantado: depois de se saber que os soviéticos tinham testado as suas primeiras bombas atómicas, o Presidente dos EUA Harry Truman deu luz verde para a construção de bombas termonucleares, mil vezes mais poderosas do que a bomba atómica. Em vez de usar a energia desencadeada pela separação dos átomos, a também conhecida como bomba H baseia-se em reacções tão poderosas como as que acontecem nas estrelas, onde os átomos de hidrogénio se fundem, numa reacção em cadeia que liberta uma energia monstruosa. É verdade que a reacção, hoje, aos acertos do Relógio do Apocalipse não é tão significativa como foi nesse ano. “Mas é até injusto fazer essa comparação”, defendeu Rachel Bronson. “O mundo está diferente e o espaço dos media é diferente, mas é claro que gostamos sempre de ter mais atenção.” 2000
2010
2015
5 min. 10 min. 15 min. 20 min.
23h57
1947
1953 Primeira publicação EUA e Rússia do Relógio testam bombas do Apocalipse de hidrogénio
Fonte: Bulletin of the Atomic Scientists, Universidade de Chicago
1968 França e China desenvolvem armas nucleares
1984 EUA e Rússia iniciam negociações para controlo de armamento
2007 1991
Fim da Guerra fria
Coreia do Norte faz teste nuclear
Modernização dos arsenais nucleares e alterações climáticas sem controlo
Faltam 3 min. para as 24h00 PÚBLICO
Por Marco Vaza
9.79 9.9
9.93
10.4 10.49 10.6s 10.79 10.9 11.07
11.4
11.9
O norteamericano Michael Phelps, actual detentor de sete recordes mundiais
16 Jun. 1999 (1.º abaixo dos 9,80s)
16 Ago. 2008 (1.º abaixo dos 9,70s)
16 Ago. 2009 (recorde mundial actual)
U. Bolt JAM
U. Bolt JAM
16 Jul 1988 (recorde mundial actual)
3 Jul. 1983 (1.º em crono electrónica)
M. Greene EUA
F. G. Joyner EUA
3 Jul. 1983 (1.º abaixo dos 10,80s)
C. Smith EUA
7 Jun. 1973 (1.º abaixo dos 11s)
E. Ashford EUA
2 Set. 1972 (1.º em crono electrónica)
R. Stecher RDA
20 Jun. 1968 (1.º abaixo dos 10s)
Masculino
R. Stecher RDA
4 Out. 1952 (1.º abaixo dos 11,5s)
J. Hines EUA
5 Jun. 1932 (1.º abaixo dos 12s)
M. Jackson AUS
5 Ago. 1922 (1.º recorde oficial)
T. Schuurman HOL
23 Abr. 1921 (1.º abaixo dos 10,5s)
M. Mejzlíková II CHE
6 Jul. 1912 (1.º recorde oficial)
13.6
C. Paddock EUA
Os recordes em que o tempo parou
9.58 9.69
D. Lippincott EUA
A
ntes de 1968, nunca os Jogos Olímpicos de Verão se tinham realizado a mais de 200 metros acima do nível no mar, mas esses Jogos da Cidade do México foram a 2244m de altitude. A menor concentração de oxigénio em altitude teve efeitos diversos no programa atlético. Nas provas de meio-fundo e fundo, as marcas foram de nível baixo, mas em salto em comprimento, triplo salto e velocidade bateram-se recordes do mundo. Nenhum durou tanto como o de Bob Beamon no comprimento (até 1991), mas falemos apenas dos casos de provas que são medidas em segundos e não em centímetros. Só na estafeta masculina de 4x100m, por exemplo, bateu-se o recorde do mundo por três vezes em três dias, desde a primeira eliminatória até à final. Como este, há vários casos de recordes do mundo que duraram apenas dias ou algumas horas, há outros que parecem eternos. Entre os recordes do atletismo de pista ao ar livre, mais maratona, o mais antigo é o de Jarmila Kratochvilova, nos 800m femininos, o mais recente é o de Dennis Kimetto, na maratona masculina. Um já dura desde 1983 (11.546 dias), o outro foi estabelecido no ano passado (159 dias). Se em homens e mulheres há recordes de longa duração, os números mostram que os recordes femininos têm uma longevidade média de quase o dobro (7007 dias) em relação aos recordes masculinos (3546 dias). Se o de Kratochvilova, obtido em 1983 nos Mundiais de Helsínquia, é o mais antigo, aquele que é considerado como o mais difícil de ultrapassar é o de Marita Koch nos 400m planos (1985). A atleta da República Democrática Alemã fixou a marca da volta à pista em 47,60s em Camberra, sendo que só mais uma atleta conseguiu uma marca dentro dos 47 segundos, precisamente Jarmila Kratochvilova (47,99s). Só para se ter uma ideia de como as atletas contemporâneas estão longe desta marca, o melhor registo de 2014, por exemplo, foi da norte-americana Francena McCory, quase dois segundos mais lenta (49,48s) que o recorde de Koch. A marca que deu para a britânica Christine Ohuruogo conquistar o título mundial em Moscovo 2013, por exemplo, foi de 48,91s. Durante a sua carreira, Koch estabeleceu dezenas de recordes, mas nunca se livrou da suspeita de doping, tal como os seus colegas da RDA. A velocista nunca teve um controlo positivo, mas antigos atletas do país já deram os seus testemunhos quanto à prática sistemática de doping. “A principal arma eram aqueles comprimidos azuis [o Turibanol] da Jenapharm, a companhia farmacêutica estatal”, escreveu nas suas memórias Arne Ljungqvist, presidente da Comissão Médica do Comité Olímpico Internacional. Tal como Koch, a checa Kratochvilova também levantou suspeitas, por só ter aparecido na altaroda do atletismo depois dos 30 anos, mas também pelo seu físico musculado e pouco feminino, o que sugeria o uso de esteróides. As mesmas suspeitas rodeiam a norte-americana Florence Griffith-Joyner e os seus recordes de 100m e 200m, estabelecidos em 1988, tal como as marcas das chinesas Wang Junxia (10.000m) e Qu Yunxia (1500m), ambas de 1993. A longevidade das marcas e as suspeitas que as rodeiam já motivaram várias propostas de que todos os recordes estabelecidos antes de 2000 fossem eliminados das listas e, embora as evidências do uso de substâncias dopantes sejam numerosas, fazê-lo seria admitir que alguns dos grandes nomes da história do atletismo não passavam de batoteiros. O mais antigo dos recordes masculinos pertence a Kevin Young, nos 400m barreiras, alcançado nos Jogos de Barcelona em 1992 e batendo na final o anterior recordista, o lendário Edwin Moses. Apenas mais três foram alcançados antes de 2000, nos 4x400m (estafeta dos EUA, em 1993), nos 1500m (Hicham El Guerrouj, 1998) e nos 400m (Michael Johnson, 1999). Mas há um nome que aparece três vezes nesta lista, Usain Bolt, detentor das marcas 100m (9,58s) e 200m (19,19s) planos desde 2009, e membro integrante do quarteto jamaicano recordista dos 4x100m em 2012. Há quem dê “Lightning” Bolt como candidato ao recorde de Johnson para deter o pleno da velocidade, já que os seus recordes das duas distâncias mais curtas parecem inatacáveis a curto e médio prazo, a não ser por ele próprio. Com melhor tempo de reacção e vento favorável no limite do permitido, ou mesmo beneficiando da altitude, Bolt poderá, dizem alguns estudos, fixar a marca do hectómetro abaixo dos 9,5. Para isso, talvez baste não abrandar para saudar o público quando está a cortar a meta muito à frente dos outros.
Feminino
14 recordes mundiais dos 100m na mesma pista Segundo as listas da Federação Internacional de Atletismo (IAAF), o recorde mundial dos 100m planos no sector masculino foi batido por 62 vezes, a última das quais em 2009 por Usain Bolt. Já o recorde feminino dura desde 1988, estabelecido por Florence Griffith-Joyner, e é o último dos 43 recordes ratificados pela IAAF. FONTE: IAAF
J.A.
O Homem continua a quebrar barreiras dentro de água
Por Manuel Assunção
O tempo na natação é relativo. Olhe-se para o caso de Johnny Weissmuller, agora provavelmente mais conhecido por ser o Tarzan mais emblemático do cinema, mas que durante muito tempo foi considerado o melhor nadador de sempre. Bateu mais de 50 recordes mundiais e ganhou todas as 12 corridas em que participou nos Jogos Olímpicos, conquistando cinco medalhas de ouro. Tornar-se o primeiro a baixar da barreira do minuto nos 100 metros livres, a prova-rainha da modalidade, foi um dos pontos altos da carreira do norte-americano. O seu melhor registo (57,4s) sobreviveu dez anos como recorde mundial, de 1924 a 1934, e no entanto, para os padrões actuais, apesar de obtido numa distância de sprint, seria considerado um tempo lento. Na natação, os recordes foram mesmo feitos para serem quebrados. O húngaro Zoltán Halmay foi o primeiro recordista dos 100m livres reconhecido oficialmente, depois de gastar 1m05,8s, em Viena, Áustria, em 1905. Mais de um século depois, a melhor marca (46,91s) pertence a César Cielo, 19 segundos abaixo da de Halmay e 10 abaixo da de Weissmuller. Ou, visto por outro prisma: se os três competissem simultaneamente, o húngaro e o norte-americano estariam 28 e 18 metros atrás do brasileiro, respectivamente, quando este atingisse a centena de metros. Por curiosidade, note-se que o actual recorde português (49,50s), de Alexandre Agostinho, só não daria para ganhar a prova nos últimos sete Jogos Olímpicos. Para um efeito dramático maior, considere-se os 1500m livres, a maior distância da natação competitiva, na versão piscina longa e no sector feminino. Em 1922, a norteamericana Helen Wainwright percorreu-a em 25m06,6s. No ano passado, Katie Ledecky, a rainha da média e longa distância da actualidade, gastou cerca de menos 10 minutos (9m38s) do que a sua compatriota. Aos 15m28,36s da sua performance — tempo que o cronómetro registou para Ledecky —, Wainwright estava a 576 metros de completar os 1500m. Claro que são comparações de coisas pouco comparáveis. Não se pode fazer paralelismo entre eras. “É tudo muito diferente e assim será daqui a uns anos”, afirma João Paulo Vilas Boas, treinador de natação e professor de Biomecânica da Faculdade de Desporto do Porto. A evolução é a norma, não apenas na natação. Há recordes mundiais que foram melhorados mais de 40, 50
ou 60 vezes desde que o primeiro foi registado. Os tempos progrediram radicalmente por várias razões. Somos mais altos, mais fortes e a era do amadorismo, especialmente nas grandes nações da modalidade, ficou há muito para trás. Há mais e melhores treinos e as carreiras duram mais. As alterações de estilo e das regras (a separação dos bruços e da mariposa nos anos 50, por exemplo) também influenciaram decisivamente o desporto. Assim como o desenvolvimento tecnológico dos materiais. Até as piscinas se “tornaram” mais rápidas. Tudo conta para ganhar um centésimo de segundo — ainda que o “desaconselhável” bigode de Mark Spitz, em Munique 1972, não o tenha impedido de conquistar sete títulos (e todos acompanhados por recorde do mundo). Há pouco tempo, assistiu-se ao maior “boom” de recordes da história da natação. Eles sempre caíram com alguma regularidade, mas muitas marcas tinham conseguido sobreviver ao teste do tempo. Os máximos de Janet Evans nos 400, 800 e 1500m livres e os últimos de Mary T. Meagher nos 100 e 200m mariposa duraram todos entre 18 e 19 anos e a holandesa Willy den Ouden teve o recorde nos 100m livres por 20 anos (1936 a 1956), entre outros exemplos. Mas nunca num período de dois anos como entre 2008 e 2009 houve tantos recordes a caírem. Ajudados pelos fatos de banho compostos de materiais não-têxteis, como o poliuretano, os atletas nadaram como nunca. Somente três recordes — todos nos 1500m livres — entre as mais de 80 provas da natação resistiram à era do vestuário de alta tecnologia. Entretanto, apesar do regresso a fatos mais convencionais, os nadadores parecem, aos poucos, ter encontrado maneira de voltarem a superar barreiras. Em Dezembro, no Mundial de Piscina Curta, no Qatar, foram registados 23 recordes mundiais. Vivemos para nos ultrapassarmos. Mas há quem defenda que estamos a chegar aos limites da velocidade que um humano pode atingir na água e que isso, num futuro próximo, obrigará a uma estagnação das marcas. João Paulo Vilas Boas, contudo, acredita que os recordes continuarão a ser renovados. “Não tenho dúvida. Estamos na pré-história do conhecimento em todos os domínios. E no desporto ainda mais. Daqui a 100 anos, os recordes de hoje já terão desaparecido há muito”. Só o tempo dirá. TIMOTHY CLARY/AFP
Dentro de um tubo em Sacavém vai simular-se a chegada a outros mundos Exploração espacial Inaugurado ontem o Laboratório de Plasmas Hipersónicos, onde está o Tubo de Choque, que servirá para preparar missões da Agência Espacial Europeia a planetas e luas do sistema solar. As primeiras experiências começam no Verão. Por Nicolau Ferreira
Desenho do Tubo de Choque e, em baixo, esta máquina durante a construção DR
Um pequeno meteoro em colisão contra a Terra não sobrevive à resistência da atmosfera. O atrito desintegra-o. Tudo o que fica no céu é um breve risco de luz. Uma nave que faça a mesma viagem a altas velocidades pode ter igual destino. A Agência Espacial Europeia (ESA) debate-se com este problema: não tem, para já, tecnologia para missões de naves a outros planetas e luas ou que tragam para a Terra amostras de asteróides ou até astronautas. Mas, ontem, foi inaugurado um laboratório português pedido pela ESA para ajudar a obter esta tecnologia. A nova instalação, em Sacavém, é agora a maior do país em investigação espacial. Este Laboratório de Plasmas Hipersónicos pertence ao Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear do Instituto Superior Técnico (IST), em Lisboa. Aí, vão simular-se as condições de chegada de objectos à Terra e a outros planetas e luas. “Uma nave espacial atinge a velocidade de dez quilómetros por segundo quando entra na atmosfera de um planeta”, diz o responsável pelo laboratório, o físico Mário Lino da Silva, que usou a imagem da estrela cadente para explicar os riscos dessa operação. Em Sacavém, está agora a ser instalado o Tubo de Choque Europeu para a Investigação de Alta Entalpia (ESTHER, sigla em inglês). Neste tubo vai dar-se a colisão entre uma onda de choque e uma mistura gasosa que imita a atmosfera de um planeta. Pode-se simular ali a atmosfera da Terra, de Marte ou de Titã, lua de Saturno, tendo em conta a sua composição e a densidade atmosférica. Tudo depende das missões da ESA.
Ao todo, o projecto custou dois milhões de euros: 250.000 euros do IST destinados à construção de raiz do edifício e o resto, pago pela ESA, foi para o Tubo de Choque. O projecto foi iniciado em 2010, depois de o consórcio liderado pelo IST ter ganho o concurso da ESA para a construção do laboratório. No consórcio “académico-industrial”, como diz Mário Lino da Silva, participam parceiros internacionais, assim como empresas portuguesas como a ISQ ou a Setofresa e Associados, estando a última a fabricar o Tubo de Choque. No laboratório, vão ser observados fenómenos que duram cerca de 30 milionésimos de segundo. O tubo, de 20 metros de comprimento e 40 toneladas, é constituído por duas partes importantes. Por um lado, tem uma câmara de alta pressão pequena, onde ocorrerá a combustão de hidrogénio, oxigénio e hélio, permitindo a estes gases atingir pressões de 600 atmosferas terrestres e 2500 graus Celsius. Por outro lado, há o tubo onde se vão injectar os gases que imitam a composição da atmosfera de um planeta (a da Terra teria 78% de azoto, 21% de oxigénio e menos de 1% de dióxido de carbono). A separar a câmara de compressão e o tubo há uma membrana fina. Depois, esta membrana será rompida e a mistura de gases na câmara de alta pressão entra no tubo a velocidades que podem atingir os 12 quilómetros por segundo (ou 43.200 quilómetros por hora). É aqui que se vai dar a onda de choque: ao entrarem no tubo, os gases vão sendo travados pelo atrito criado pela “atmosfera” ali recriada, tal como acontece quando um meteoro ou uma nave atravessam a nossa atmosfera.
O laboratório custou dois milhões de euros, financiados em grande parte pela Agência Espacial Europeia
No tubo, a energia da onda que se perde na velocidade é transformada em calor. A temperatura sobe até milhares de graus junto da onda de choque e produz plasma, o quarto estado da matéria, em que os electrões que normalmente andam à volta dos átomos (que compõem a atmosfera) libertam-se e passam a andar livremente. Parte da energia do plasma é libertada em forma de radiação: desde radiação ultravioleta, passando pela luz visível aos olhos humanos, até aos infravermelhos. Esta radiação é analisada em seguida por uma série de aparelhos no final do tubo, o que permite ter um perfil deste plasma e dar informação preciosa à ESA, já que pode ajudar a definir o material do casco de uma nave para entrar numa atmosfera. “As naves usam materiais ablativos, que ardem devagarinho durante a reentrada”, explica o cientista, dando como exemplo os já reformados vaivéns da NASA. Mas o cientista explica que existe uma diferença grande entre missões espaciais perto da Terra, como eram as dos vaivéns da NASA — que reentravam a cerca de seis quilómetros por segundo na
atmosfera terrestre —, e uma missão que traga amostras geológicas de um asteróide fora da órbita da Terra. “Se a nave vier de outro planeta e entrar na Terra, pelas leis da física essa entrada ocorre a dez ou 12 quilómetros por segundo”, diz. Apenas os EUA fizeram reentradas a velocidades superiores, quando trouxeram astronautas da Lua, nas várias missões Apolo, entre 1968 e 1972. “A Europa ainda não tem essa capacidade. Com o Tubo de Choque, é isso que vai ter”, prevê o cientista. No Laboratório de Plasmas Hipersónicos, o novo tubo permitirá jogar com a velocidade tanto da onda de propagação como da composição da atmosfera e a sua pressão. “É tudo o que precisamos para simular qualquer entrada na atmosfera.” O tempo de vida do laboratório será de 20 a 30 anos. E vai responder a qualquer pedido da ESA. Para já, estão encomendados testes de “cenários da reentrada terrestre de missões que vão buscar amostras de solo a Marte, cometas e asteróides”. Mas as experiências só se vão iniciar no Verão. Por agora, apenas está instalada a câmara de alta pressão. Depois, o tubo de ferro será instalado. Devido aos perigos inerentes ao uso de gases muito explosivos, a sala do tubo vai ficar separada da de controlo. Tudo num edifício que parece um bunker, desenhado e construído para minimizar acidentes. Segundo Mário Lino da Silva, o laboratório também servirá para “aumentar o conhecimento físico dos plasmas”. E pode ser ainda importante para compreender as consequências de corpos maiores que possam atingir a Terra, como o asteróide que caiu em Cheliabinsk, na Rússia, em 2013. O asteróide não matou ninguém, mas a onda de impacto partiu vidros e a luz cegou momentaneamente e queimou (pelos raios ultravioletas produzidos) várias pessoas. “Esta instalação está preparada [para estudar] impactos de meteoros”, frisa o investigador. “Para estudar os danos que podemos esperar devido à sua radiação e onda de choque.”